Você está na página 1de 13

AS MARCAS DA DOR: UMA ANÁLISE DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA NA CIDADE DE

NATAL/RN

Mikarla Gomes da Silva1

Resumo: O estado do Rio Grande do Norte aparece em quinto lugar quando o assunto é violência
doméstica segundo dados divulgados em 2015 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE). Desse modo, o trabalho tem o objetivo apresentar a lei 11.340/06 mais conhecida como Lei
Maria da Penha, na cidade de Natal/RN, esta que se estabelece como primeira ferramenta legal de
enfrentamento a violência de gênero contra a mulher. Neste sentido, o trabalho avalia a Lei
11.340/06, a priori, com uma análise sobre a violência doméstica contra o feminino e como esta se
interliga com o conceito de feminicídio, uma vez que à violência contra a mulher é fruto de uma
construção histórica, cultural e social pautadas nas categorias de gênero e de relação de poder. No
mais, a pesquisa tenta identificar quem atravessa o gênero agredido no que corresponde à classe
social, raça/cor e geração, uma vez que os números globais colocam as mulheres negras, pobres e
na faixa etária entre 18 a 30 anos como vítimas da violência.

Palavras-chave: Gênero. Violência Doméstica. Lei 11.340/06. Feminicídio.

A violência doméstica revela-se nas relações íntimas/conjugais um lugar-lócus que é


predominantemente o espaço privado, assim ocorre na privacidade do casal, ou seja, no lar/casa
podendo atingir familiares e pessoas que lá convivem (BANDEIRA, 2013). Contudo, se desmonta a
ideia romantizada do espaço doméstico/privado como lugar do afeto, amor, proteção e segurança,
visto que a violência doméstica escolhe este como lugar de suas múltiplas violências, como se este
fosse o lugar seguro, invisível e silenciado de cometê-la, na ideia de que o que ocorre em casa fica
em casa, ou ainda em briga de marido e mulher não se mete a colher. Destarte, é no privado que a
violência contra a mulher, refiro-me aqui, a conjugal, atinge índices alarmantes, constituindo este
como o espaço favorável de violência contra o feminino.
A violência contra as mulheres, sobretudo, a doméstica é um mecanismo que fundamenta
subordinação frente ao masculino, visto que há um sistema simbólico que hierarquiza e legitima
uma ordem geral de controle sobre os corpos femininos (FEMENÍAS & ROSSI, 2009). Essa função
ou ainda norma social aparece como uma “arma” cultural que condiciona os sujeitos a sistemas
estruturados que cria espaços de significação e de reconhecimento. Esse binômio homem-mulher
localiza também o pólo superior-inferior e esta condição articula os espaços e territórios possíveis
dos papéis sociais e sexuais. Portanto, o espaço doméstico/privado pode ser compreendido

1
Mestranda pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte - Natal/Brasil

1
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
historicamente como lugar do silêncio e da disciplina, paradoxalmente como o lugar que protege a
violência.
Objetivando apresentar como a violência doméstica e o feminicídio aparecem como
expressões continua de reiteração de violência no corpo feminino estruturou-se o texto em três
momentos: no primeiro, Mulher: violência sem sangue com sangue e com morte discorre-se sobre
como a violência tem marcado o corpo feminino. Ao problematizar a violência e suas dimensões
traçamos diálogo direto com as formulações propostas na Lei 11.340/06, Lei Maria da Penha e a lei
do Feminícidio, apresentado as violências contidas nas Leis como violência sem sangue
(BANDEIRA, 2013), violência com sangue e violência com morte. No segundo momento, intitulado
Rio Grande do Norte: quando as violências sem sangue e com sangue se transforma em violência
com morte apresento números que colocam o estado como lugar da violência de gênero, sobretudo, a
violência doméstica marcada no corpo feminino no ano de 2016. Destarte, o trabalho analisa como a
violência doméstica contra o feminino na cidade de Natal/RN se interliga com o conceito de
feminicídio, uma vez que à violência de gênero, sobretudo contra a mulher é fruto de uma construção
histórica, cultural e social pautadas nas categorias de gênero e de relação de poder. Por fim, reflito
sobre o continnum da violência e suas reiterações nos mais diversos espaços.
Faz se necessário aqui apresentar brevemente como compreende-se o gênero, uma vez que
essa discussão é primária ao falarmos da Lei Maria da Penha, bem como da Lei do Feminicídio.
Deste modo, apreendemos gênero com um construto social e retiramos os marcadores biologizantes,
visto que estamos em concordância com a proposta analítica de Judith Butler (2003) de pensar a
performatividade, logo o gênero é assumido no texto a partir de identidade representada pelo
próprio sujeito. Assim a compreensão de gênero na qual construímos o trabalho e que tomamos
como conceito para pensar o gênero em si é a noção de gênero como plural (BENTO, 2006) onde o
gênero, sexo e sexualidade se distinguem.
Nesta perspectiva há uma junção das performances de gênero e sexuais através da
percepção que ambos são produções sociais e culturais, mas que são diferentes, pois a atuação de
um destes domínios não implica na necessidade ou anulação do outro (BENTO, 2006). No mais,
ratificamos a apreensão do conceito como produção social e cultural. Outrossim, vale ressaltar que
o texto da Lei Maria da Penha, está em consonância com a perspectiva adotada, visto que o mesmo
deixa explícito que o termo gênero é concebido a partir da identidade de gênero, com isso, a
performance de gênero (BULTLER, 2003) compõe o reconhecimento dos sujeitos por meio de sua
auto representação. Ao apresentar o gênero a partir de uma perspectiva plural, a Lei possibilita

2
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
proteger e abranger de maneira mais ampla as mulheres vítimas de violência doméstica e
intrafamiliar.

Mulher: violência sem sangue, com sangue e com morte

O artigo 7º do inciso II da Lei Maria da Penha, elucida que a violência psicológica


configura-se como qualquer dano emocional que provoque estrago a saúde psicológica originado de
ameaça, xingamentos, manipulação, chantagem, isolamento, entre outros. Conforme Isadora Vier
Machado e Miriam Pillar Grossi (2015) os meios ou estratégias que podem acarretar a violência
psicológica está embutido de características que se cruzam entre os danos do plano moral e no plano
psicológico. Diante disto, as autoras compreendem a violência psicológica a partir de suas
multiplicidades, um conjunto de violências que afere o psicológico composta por modalidades. As
violências psicológicas para estas centralizam-se “na historicidade da Leia Maria da Penha e a
concretiza enquanto lugar de memória dos movimentos feministas brasileiros” (MACHADO &
GROSSI,2015, p.562), uma vez que este corrobora para ampliar a noção de violência com a
intenção de proteger os sujeitos de direito, no caso da lei, as mulheres.
À luz das concepções conceituais das autoras referenciadas de pensar as violências
psicológicas a partir da dor no corpo a dor na alma, apreendemos esta a partir do que Bandeira
(2013) nomeia como violências sem sangue e abarcamos outras violências apresentadas na Lei
Maria da Penha, tais como, a violência moral e a violência patrimonial. Nesse sentido, apresento a
violência sem sangue a partir dos incisos II, IV e V da Lei 11.340/06, uma vez que entendo que há
nestas violências um controle dos sujeitos a partir de um terrorismo psicológico e moral,
inicialmente apresentada através das “sutilezas” e certa invisibilidade da própria violência. O medo,
controle, destruição parcial ou total de seus bens, xingamentos, difamação e humilhação, por muitas
vezes se dá de forma imperceptível, desta forma, é na repetição das violências que se identifica a
própria violência. Vale destacar que a violência simbólica se aproxima de certa forma a violência
psicológica, visto que está se faz presente nas relações de força, logo o poder vai conferir e
legitimar os significados das violências.
A violência psicológica pode ser concebida como a violência primária mediante as outras,
contudo esta pode desencadear as demais violências. Segundo Virgínia Feix (2011), a violência
psicológica está essencialmente relacionada a todas as outras expressões de violência doméstica e
familiar contra a mulher.
Para Feix (2011):

3
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
Os ataques à liberdade de escolha pela afirmação constante da incapacidade da mulher de
fazer e sustentar eticamente suas escolhas infantilizam-na enquanto sujeito; impedindo-a de
desenvolver sua identidade com autonomia, pelo permanente ataque a sua tentativa de
diferenciação e afirmação de sua alteridade em relação ao agressor, ou seja, como outro ser,
capaz de autodeterminação. As condutas descritas no inciso II como violência psicológica
estão intimamente relacionadas ao boicote do ser; ao boicote à liberdade de escolha, que
nos define como humanos. (FEIX, 2011, p.205).

No desafio de pensar os entraves e consequências que as violências sem sangue introjetam,


neste caso, nas mulheres, concordo com Feix (2011) ao afirmar que a violência psicológica fere e
marca a subjetividade dos que passam constantemente por este tipo de violência e que esta é a
violência que perpassa pelas demais. Logo, sofre-se uma dupla violência, visto que se adiciona o
sofrimento psicológico com o físico, sexual, moral ou patrimonial.
De acordo com Machado e Grossi (2015) o conceito de violência psicológica apresentada na
Lei 11.340/06 é essencial porque demarca uma nova postura frente às violências contra as mulheres,
além de indicar uma nova visão das próprias mulheres como sujeitos de direitos. É necessário
destacar que o conceito de violência psicológica conforme as autoras a Lei 11.340/06 “revela que a
implementação da Lei Maria da Penha é uma tarefa permeada pelas subjetividades, crenças e
formação específica das/os agentes de segurança e justiça em questão” (MACHADO & GROSSI,
2015, p.572).
Destarte, ao apresentar a violência sem sangue, compreendida aqui como violência
psicológica, moral e patrimonial entendemos que estas não deixam marcas físicas, porém as marcas
atacam a subjetividade, uma ferida/ dor que pode permear por tempo indeterminado. As calúnias,
ameaças, xingamentos, assédios, humilhação, controle, ferem a relação mais íntima e subjetiva dos
sujeitos, “não são necessariamente ataques ao corpo, mas a identidade a subjetividade da mulher,
em outras palavras, o que a constitui como pessoa” (BANDEIRA, 2013, p.74). Assim, as práticas
da violência sem sangue, sobretudo, a violência psicológica pode ser compreendida como primeira
etapa do ciclo de violência e reverberar nas demais.
A partir da contribuição teórica de Bandeira (2013) tomamos a ideia de pensar as violências
sem sangue como aquelas oriundas da violência psicológica, violência patrimonial e violência
moral. Neste caminho vamos além e pensamos nas violências com sangue e violências com morte,
entendendo as violências com sangue a partir do parágrafo 7º do capítulo II da Lei 11.340/06, Lei
Maria da Penha, a violência física e a violência sexual.
Deste modo, ao apresentar a violência física e a violência sexual como violências com
sangue estou aferindo a estas o domínio do corpo feminino como sujeito da violência visível, dado
que estas violências tem como principal objetivo ferir e marcar os corpos femininos. Marcas estas

4
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
que diferentemente das violências sem sangue tem seu marcador a visibilidade da dor, dos tons de
roxos, logo se faz visível.
Feix (2011) aponta a violência física são legitimadas nas relações de poder, de um domínio
do homem sobre a mulher, visto que estas institui-se como dispositivo de controle, disciplinador e
regulador dos corpos. (FOUCAULT, 2004). Logo, a violência doméstica sugere uma experiência
especifica centrada na conversão de diferenças e de assimetrias em uma relação hierarquia de
desigualdade, gerando práticas de dominação, exploração (BANDEIRA, 2013). Destarte as
violências apresentadas na Lei Maria da Penha, são compreendidas como recursos, mecanismos de
controle e dominação dos homens sobre as mulheres, visto que as violências se inscrevem e
exteriorizam na dor dos corpos agredidos, violentados, explorados, desmoralizado. Assim, as
violências que denominamos como violências com sangue são as que apresentam o corpo da mulher
como um “corpo de batalha”2 e, nesta luta, como já mencionado as marcas são visíveis.
No percurso de pensar a violência doméstica como um fenômeno socialmente construído
que ocorre no interior das relações sociais, trazemos para o diálogo Mariza Corrêa (1981). A autora
mostra como as violências encontram na sociedade justificativas, respostas para legitimar o ato da
violência. Nesse sentido, apresento como violência com morte o feminicídio, visto que compreendo
que esta pode ser entendida como a última etapa da violência contra a mulher, pensando as relações
conjugais/íntimas, que acarretaram na morte da mulher pelo companheiro ou ex-companheiro.
Assim, eventualmente as violências apresentadas na Lei 11.340/06 pode originar na violência com
morte, logo quando se extrapola os abusos verbais, psicológicos e físicos.
Conforme Corrêa (1981), os homicídios de mulheres praticados por seus companheiros ou
ex-companheiros parecia oferecer o privilégio da impunidade, onde mais uma vez via a mulher em
uma situação estruturalmente subordinada. Os crimes passionais eram julgados a partir da conduta
moral do réu ou vítima como se este fosse referência para “legitimar” dada violência. Ademais, a
mulher no cenário de vítima era duplamente violentada, primeiro pelo companheiro, segundo pelo
judiciário, era julgada pela sua conduta moral e social. Para autora os “crime passionais” tinham
como motivação o: adultério, a legítima defesa e defesa da honra, este último nos lembra a tradição
patriarcalista onde a honra é defendida/lavada com próprio sangue.
Os advogados de defesa de maridos, noivos, namorados ou amantes, assassinos de suas
companheiras, passaram a afirmar então que a paixão era uma espécie de loucura
momentânea, tornando irresponsáveis na ocasião do crime os que estavam por ela
possuídos” (CORRÊA, 1981, p.22).

2
Expressão utilizada por Lourdes Bandeira em Conferência realizada no Senado Federal, intitulada “Feminicídio como
violência política” no dia 16 de fevereiro de 2017.

5
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
Dessa forma, podemos inferir que os homens em sua maioria matavam as mulheres por
motivo de traição, não aceitação de vê-la com outro mesmo com o fim do relacionamento e homens
que diziam defender sua honra (como uma defesa de sua masculinidade). Estes que foram
defendidos e absolvidos socialmente e juridicamente pautados em discursos introjetados
socialmente em uma sociedade estruturalmente machista, que legitima a violência contra o feminino
a partir de uma legitima defesa da honra, em outras palavras, absolvem estes conferindo ao mesmo
como se eles fossem as vítimas e não os réus, logo crimes absolvidos pela ofensa a honra e a
dignidade familiar. A ideia de legitima defesa da honra traz consigo a justificativa de recompor um
sentimento de dignidade, ao matar a mulher adultera e seu amante parece retomar sua dignidade,
sua masculinidade lhe é devolvida ou reconstruída.
Segundo Pimentel, Pandjiarjian e Belloque (2006) até o início do século XXI persistiram-se
a luta por leis e jurisprudência que enquadrasse os agressores, sobretudo, porque os resultados de
sentenças que davam liberdade aos agressores marcam de maneira significativa a incorporação de
estereótipos, preconceitos e discriminação das mulheres. Com isso, podemos dizer que ao decretar
liberdade de agressores e assassinos quem sai “vencedor” é o sistema machista, visto que era na
soltura e legitimação do crime como permissível que o machismo se fortalecia. A violência contra
as mulheres é apreendida como uma violação dos direitos humanos das mulheres, porém o que
concerne à violência com morte no Brasil é só no ano de 2015 que sanciona-se uma lei tipificada
acerca dos crimes cometidos em virtude da violência contra a mulher, a Lei 13,104/15, que cria o
delito de feminicídio, refiro-me à violência com morte. Deste modo, até então homens matavam
suas esposas, companheiras ou namoradas em nome de uma suposta honra conjugal ou familiar
O feminicídio, crime contra a mulher, retira todo caráter de crime de amor, como reivindica
e reivindicava a luta feminista e de movimento de mulheres. Ao chamar de crime passional é como
se tirasse toda a subjetividade feminina e reconhecesse o sujeito masculino como sujeito absoluto,
detentor de poder (vítima e vitorioso). A lei do feminicídio outorgada no Brasil em 15 de março de
2015 coloca a mulher em ênfase, esta é a vítima e não a “réu”. A Lei 13.104/2015 qualifica o
feminicídio como crime de homicídio. O feminicídio no Brasil está de certo modo atrelado a
violência doméstica, como este fosse uma extensão da Lei Maria da Penha, visto que as duas leis
tem por finalidade proteger os direitos das mulheres, bem como coibir e prevenir a violência. Além
disso, o feminicídio tem o seu principal cenário o contexto de violência doméstica e familiar e, que
geralmente é precedido pelas violências sem sangue e violências com sangue. Deste modo, a morte
de mulheres pelo fato de serem mulheres abonada sócio culturalmente por uma história de

6
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
dominação, subordinação, de poder do homem sobre a mulher respaldou os assassinatos
relacionados a gênero, logo o feminicídio.
Neste contexto, o feminicídio no Brasil tem um significado político haja vista que denuncia
a falta de compromisso por parte das Convenções internacionais. Sendo assim, pode ser
compreendido como uma violência política relacionado ao fato de não se tratar de uma violência
eventual, mas sim em uma prática que tem seu fundamento a relação desigual de poder. Assim, o
Mapa da Violência 2015 aponta que dos 4.762 assassinatos de mulheres registrados no ano de 2013
no Brasil, a maioria foram cometidos por familiares, 50,3%, no qual 33,2% foi cometido por
companheiro ou ex-companheiro e ainda evidencia que a casa é o lugar da morte, portanto, o local
de risco para as mulheres. Logo, o feminicídio aparece como continuação da violência doméstica,
sua fase final.
O Mapa da Violência nos alude para outros números significativos, onde apresenta que
mesmo com a Lei Maria da Penha em vigor houve um aumento da violência contra a mulher no ano
de 2006 e uma pequena queda no ano de 2007 e posteriormente os números da violência contra a
mulher voltou a aumentar. Os números da violência de 2005 a 2013 mostra que a implementação da
Lei Maria da Penha nos seus anos iniciais não conteve de forma efetiva a diminuição da violência
contra a mulher, reverberando esta em violência com morte. Portanto o feminicídio “ocorre quando
o Estado não garante a seguridade das mulheres ou cria ambientes no qual as mulheres não estão
seguras em suas comunidades ou lares” (LISBOA, 2010, p.64).

Rio Grande do Norte: quando as violências sem sangue e com sangue se transformam em
violência com morte

O Rio Grande do Norte ocupa o 5º lugar no ranking quando assunto é violência doméstica
(WAISELFIZ, 2015). O estado apresenta uma taxa de 6,2% (79.708) de mulheres agredidas por
pessoas que mantém algum vínculo afetivo. Assim, percebe-se que a violência doméstica mesmo
com a implementação da Lei Maria da Penha não conteve nos seus sete anos de vigência
(2006/2013) a violência contra a mulher no âmbito doméstico. Segundo Waiselfiz (2015), somente
cinco estados brasileiros diminuíram os índices da violência contra as mulheres, Rondônia, Espírito
Santo, Pernambuco, São Paulo e Rio de Janeiro, os demais estados as taxas de violência
aumentaram. O mapa ainda aponta que o Rio Grande do Norte teve um acréscimo significativo de
homicídios de mulheres potiguares de 33 mortes em 2003 para 89 mortes em 2013.

7
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
Condutas Violentas Letais Intencionais de Mulheres- RN
80 66
55 53
60
40 26 25 32
10 6 3 4 4 4 8 5 2 1 0
20
0
Homicídio Feminicídio Lesão corporal Latrocinío Estupro seguido Outros
seguida de de morte
morte

2014 2015 2016

Dados: OBVIO RN- Janeiro-Novembro

Segundo o Observatório da Violência Letal Intencional do Rio Grande do Norte (OBVIO


RN) os assassinato de mulheres no estado potiguar decorrente do feminicídio tem aumentado
gradativamente, ano após ano, de acordo com gráfico acima o crime de feminicídio foi qualificado a
partir de assassinatos oriundos de violência doméstica e violência de gênero , destaca-se que
Observatório de Violência Letal Intencional do Rio Grande do Norte não contabilizara o estupro
seguido de morte, no entanto este faz parte das violências atreladas ao feminicídio, sendo assim se
contabilizássemos os números do estupro seguido de morte dentro dos casos de feminicídio no RN
teríamos em 2016 das 95 mulheres mortas 37 casos de mulheres mortas pela violência com morte.
Nesse contexto de violência contra a mulher no Rio Grande do Norte atrelado ao feminicídio
vale lembrarmos agosto de 2016 onde 11 mulheres em aproximadamente 11 dias foram
assassinadas. Destas, sete mulheres foram vítimas de feminicídio, entendido aqui como também o
último ciclo da violência doméstica e, que chamamos de violência com morte. Edilene Felipe,
Josefa Ferreira, Francycris Silva foram mortas pelos seus maridos, já Ana D’Avila, Maria do
Socorro, Mykaela Rhuanna e Nayara Régia3 foram mortas pelos ex-companheiros. Mortas no
contexto de relações interpessoais e íntimas ou por alguma razão pessoal por parte do agressor,
podendo estar associado à violência doméstica; e pela apropriação do corpo feminino como
proprietário sob o ideal se não for minha não será demais ninguém.
Ana D’Ávila foi a primeira vítima de feminicídio do agosto sangrento do Rio Grande do
Norte, foi assassinada pelo ex- companheiro em Santa Cruz, cidade vizinha da capital potiguar
Segundo o delegado da região, Silva Júnior, o responsável teria sido o companheiro dela.
Ana chegou a procurar a delegacia em março, quando foi aberto inquérito de violência
doméstica e o juiz determinou o afastamento do companheiro. Apesar da medida, o

3
Fonte: http://www.bbc.com/portuguese/brasil-37278496

8
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
homem invadiu a casa em que Ana vivia e a matou a facadas. Ela teria gritado por ajuda ao
vê-lo armado.4
Edilene Felipe foi morta a facadas pelo seu marido na cidade de São José do Mipibu, grande
Natal. De acordo com o delegado Geriz, responsável pelo caso "Ele era ciumento, bruto, e queria
voltar para ela. Eles estavam separados havia oito dias. Na noite do crime, conversaram em casa
...Quando os filhos acordaram, a mãe estava morta5”.
Mykaella Ruanna foi morta a tiros pelo seu ex- companheiro ao sair da academia na cidade
de Natal. O seu filho 3 anos presenciou o crime.
"Pa, pa, pa, pa". O som dos tiros que mataram a diarista Mykaella Ruanna Fagundes, de 21
anos, no Rio Grande do Norte, é repetido pelo filho dela - órfão aos três anos...Ele estava na
hora que aconteceu (o crime), diz uma parente da vítima à BBC Brasil. "E sabe que a mãe
não volta”6

As mortes te mulheres vítimas de seus companheiros ou ex-companheiros não teve seu fim no mês de
agosto, em 12 de dezembro de 2016 o assassinato de Ana Lívia Sales mulher de 19 anos, mãe de uma criança
de seis meses chocou o estado, o caso da Ana foi uma de tantas outras mulheres que no ano de 2016 entrou na
estatística da violência com morte. Ana Lívia fora morta pelo seu ex- companheiro, pai da criança enquanto
amamentava o seu filho na casa da ex-sogra por golpes de faca. De acordo com jornais locais Ana Lívia teria
ido à casa do ex- companheiro amamentar o filho que passara o dia com o pai, foi acompanhada por uma
amiga, pois tinha medo que acontecesse algo, a amiga ficou do lado de fora esperando a mesma
comunicando-se pelo celular. Em mensagens antes do crime teria dito a amiga que estava com medo, que ele
tinham trancado a porta7.
Uma amiga de Ana Lívia esperava por ela na frente da casa e foi a última pessoa a falar com a vítima
pessoalmente e pelo celular. Na última mensagem enviada pela vítima para a amiga ela escreveu "tô
com medo". A amiga respondeu "qualquer coisa grita". De acordo com a amiga da vítima, o casal
se separou recentemente e a mulher já tinha prestado queixa à Polícia Civil por violência
doméstica. Vizinhos disseram que ouviam as agressões que seriam motivadas por ciúmes8

O agressor e assassino de Ana Lívia Sales, Felipe Cunha Pinto, 19 anos confessou o crime e disse ter
sido motivado por legitima defesa. Felipe Cunha não fora o único a afirmar que teria cometido o crime por
legitima defesa, outros disseram ser por traição, logo entendo que estes mataram suas companheiras ou ex-
companheiras por legitima defesa da honra, mais uma vez na premissa se não vai ser minha não será de mais
ninguém. É nesse ideal de legitima defesa, principalmente, da honra que homens seguem matando suas
companheiras ou ex-companheira. É necessário destacar que a mulheres que sofrem violência doméstica são

4
Idem.
5
Idem
6
Idem
7
Fonte:http://g1.globo.com/rn/rio-grande-do-norte/noticia/2016/12/mae-e-morta-facadas-na-grande-natal-enquanto-
amamentava-bebe.html
8
Idem

9
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
primeiramente mortas simbolicamente, uma vez que entendemos que as violências sem sangue e com sangue
são as mortes inicias dado que estas essas ceifam as mulheres pouco a pouco. Desse modo, questionamos: o
que é necessário fazer para que mais mulheres não sejam mortas pelos seus companheiros ou ex-
companheiros? Quem a cultura do machismo matará/agredirá/violentará hoje?

Reflexões finais

Pensar os variados tipos de violência contra a mulher no sentido político nos permite refletir,
a partir das concepções de Judith Butler (2015), sobre como a mulher em situação de violência
constante – seja simbólica, psicológica ou física – está inserida numa condição precária da vida.
Butler (2015) define condição precária da vida como sendo:
[...] A condição politicamente induzida na qual certas populações sofrem com redes sociais
e econômicas de apoio deficientes e ficam expostas de forma diferenciada às violações, à
violência e à morte. Essas populações estão mais expostas a doenças, pobreza, fome,
deslocamentos e violência sem nenhuma proteção. A condição precária também caracteriza
a condição politicamente induzida de maximização da precariedade para populações
expostas à violência arbitrária do Estado que com frequência não têm opção a não ser
recorrer ao próprio Estado contra o qual precisam de proteção. Em outras palavras, elas
recorrem ao Estado em busca de proteção, mas o Estado é precisamente aquilo do que elas
precisam ser protegidas. Estar protegido da violência do Estado-Nação é estar exposto à
violência exercida pelo Estado-Nação; assim, depender do Estado-Nação para a proteção
contra a violência significa precisamente trocar uma violência potencial por outra. Deve
haver, de fato, poucas alternativas. É claro que nem toda violência advém do Estado-Nação,
mas são muito raros os casos contemporâneos de violência que não tenham nenhuma
relação com essa forma política (BUTLER, 2015, p. 46-47).

Nesse sentido, a partir das formulações da Butler (2015) podemos também fazer uma
relação sobre os tipos de violência cometidos pelo o Estado seguindo a mesma linha de raciocínio já
apresentada: violência com sangue, violência sem sangue, violência com morte. Estamos tentando
demonstrar com isso que a mulher vítima de violência doméstica ao recorrer aos mecanismos
oferecidos pelo Estado com o objetivo de proteção ou amparo, acaba por não se sentir nem
protegida nem aparada pelo fato de que o próprio Estado não proporciona itinerários cabíveis para
que essa vítima se sinta devidamente resguardada pelo o Estado, como, por exemplo, nos casos já
citados onde as vítimas sofrem duplamente a violência cometida contra o seu gênero feminino, uma
vez em casa e a outra na delegacia, uma vez no âmbito doméstico e a outra no ambiente hospitalar.
Essas questões referem-se sociologicamente e historicamente a como o machismo está incutido nas
relações interpessoais e institucionais.
Pensando numericamente o estado do Rio Grande do Norte tem 168 municípios e apenas 5
Delegacias Especializadas em Atendimento à Mulher que funcionam de segunda a sexta das 09

10
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
horas as 18:00 horas. Segundo os dados do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte o estado
tem 15 mil processos judiciais relacionados aos crimes contra a mulher, desses 15 mil processos a
maior parte é oriunda de Natal9 que é a capital do estado, Parnamirim que se encontra na Grande
Natal e Mossoró que é o polo regional do oeste potiguar. Natal apresenta-se como município do Rio
Grande do Norte mais violento para as mulheres e nesse número as interseccionalidades
correspondem aos últimos dados apresentados pelo Mapa da Violência de 2015 a qual apresentam
as mulheres negras, pobres e na faixa etária entre 18 a 30 anos como vítimas da violência sem
sangue e violência com sangue, o que acaba refletindo na violência com morte.
Dessa maneira, se torna ainda mais visível a possibilidade de considerar a violência contra a
mulher como um atentado a vivência do gênero feminino, tendo como pressuposto que a violência
como prática social pode ser entendida como uma prática de não reconhecimento da importância da
vida do “Outro”. Esse “Outro” sujeito, ou seja, a mulher que é passível de ser violentada, humilhada
ou assassinada, tem a sua vida perdida ou negada pelo fato do agressor não reconhecer na figura
feminina uma vida que merece ser vivida ou respeitada.
Afirmar que uma vida pode ser lesada, por exemplo, ou que pode ser perdida, destruída ou
sistematicamente negligenciada até a morte é sublinhar não somente a finitude de uma vida
(o fato de que a morte é certa), mas também sua precariedade (porque a vida requer que
várias condições sociais e econômicas sejam atendidas para ser mantidas como uma vida).
A precariedade implica viver socialmente, isto é, o fato de que a vida de alguém está
sempre, de alguma forma, nas mãos do outro (BUTLER, 2015, p. 31).

As questões que essa discussão desemboca e que servem para complexificar ainda mais a
nossa reflexão são: de quantos “Outros” podemos falar quando nos referimos à violência contra a
mulher? Do “Outro” como sujeito agressor? Do “Outro” como instituição incorporada no papel do
Estado que em suas atribuições não oferece com efetividade proteção e amparo às vítimas de
violência doméstica? Ou do “Outro” como norma social produzida e reproduzida através do
machismo? As respostas para essas indagações talvez sejam acionadas por meio do
entrecruzamento formado pelo possível complemento de suas resoluções explicativas. Em outras
palavras, o que estamos tentando dizer é que não se pode isolar o ponto de vista sobre a violência
contra a mulher em apenas uma via de acesso. Um dos apontamentos do trabalho é que na maioria
dos casos estudados, desde o momento da denúncia, a mulher está sujeita a sofrer variados tipos de
violência em diferentes espaços por diferentes pessoas. Essas violências “secundárias” podem ser

9
Natal tem duas Delegacias Especializadas de Atendimento a Mulher. A Delegacia Especializada da Zona Sul,
localizada na Rua do Saneamento, 28 – Ribeira e a Delegacia Especializada da Zona Norte, localizada na – Av. Dr.
João Medeiros Filho, s/n - Potengi. Ambas funcionam pela manhã/tarde de segunda-feira a sexta-feira.

11
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
entendidas como extensões do atentado à vida física, psicológica ou simbólica da mulher em
ambiente doméstico.

Referências

BANDEIRA, L. M. A violência doméstica: uma fratura social nas relações vivenciadas entre
homens e mulheres. In: Mulheres Brasileiras e Gênero nos Espaços Público e Privado: uma
década de mudanças na opinião pública. 1ed.São Paulo: Perseu Abramo, 2013.

BENTO, Berenice. “A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual”. Rio


de Janeiro: Garamond, 2006.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade/ Judith Butler;


tradução, Renato Aguiar. –Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

BUTLER, Judith. Quadros de Guerra: Quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2015.
BRASIL, Lei Maria da Penha. Lei n. 11.340/2006. Coíbe a violência doméstica e familiar contra a
mulher. Presidência da República, 2006

BRASIL, Senado Federal Relatório da Comissão Palarmentar de Inquérito Misto, 2013

BRASIL, Lei do feminicídio. Lei 11.304 de 09 de março de 2015

CORRÊA, Mariza. Os crimes da paixão. São Paulo. Ed. Brasiliense, 1981


FEMENÍAS, Maria Luisa. ROSSI, Paula Soza. Poder y violencia sobre el cuerpo de las mujeres. In:
Sociologias, Porto Alegre, ano 11, nº 21, jan./jun. 2009, p. 42-65.

FEIX, Virgínia Das formas de violência contra a mulher – artigo 7º In: Lei Maria da Penha
comentada em uma perspectiva jurídico-feminista. Carmen Hein de Campos Organizadora.
Editora Lumen Juris Rio de Janeiro 2011.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2004.

LISBOA, Teresa Kleiba. Políticas públicas com perspectiva de gênero- afirmando a igualdade e
reconhecendo as diferenças. In: Fazendo Gênero 9. Diásporas, diversidades, deslocamentos.
Florianópolis-SC, 2010.

MACHADO, Isadora Vier, GROSSI, Miriam Pillar Da dor no corpo à dor na alma: o conceito de
violências psicológicas da Lei Maria da Penha In: Estudos Feministas, Florianópolis, maio-
agosto/2015

PIMENTEL, Silvia; Pandjiarjian, Valéria; BELLOQUE, Juliana. “Legítima Defesa da Honra”.


Ilegítima impunidade de assassinos: Um estudo crítico da legislação e jurisprudência da América
Latina In: Vida em família: uma perspectiva comparativa sobre “crimes de honra”/Family

12
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
Life: a comparative perspective on “crimes of honour”.Organizadoras: Mariza Corrêa Érica
Renata de Souza. Campinas – SP, Pagu-Núcleo de Estudos de Gênero/Center for Gender
Studies/Universidade Estadual de Campinas/StateUniversity of Campinas, 2006. [Tradução/
Translation: Maria Luiza Lara.].

WAISELFIZ, Julio Jacob. Mapa da Violência 2015: Homicídio de mulheres no Brasil, 2015
The pain marks: an analysis of domestic violence in the city of Natal / RN

Abstract: The state of Rio Grande do Norte appears in October 2011 by the Brazilian Institute of
Geography and Statistics (IBGE). Thus, the work aims to present a law 11.340 / 06 better known as
the Maria da Penha Law, in the city of Natal / RN, which establishes as the first legal instrument to
combat gender violence against women. In this sense, the work is a Law 11.340 / 06, a priori, with
an analysis of domestic violence against the feminine and how they intertwine with the concept of
feminicide, since violence against a woman of a historical, cultural and social categories based on
the categories of gender and power relations. No more, the research tries to identify who crosses the
gender attacked in what corresponds to social class, race / color and generation, since the global
numbers put as black women, poor and the age group between 18 to 30 years as victims of violence.
Keywords: Gender. Domestic violence. Law 11.340/06. Feminicide

13
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

Você também pode gostar