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Adolescência Virtual PDF
Adolescência Virtual PDF
ESTRUTURAS CLÍNICAS
Editores:
Valéria Machado Rilho e Beatriz Kauri dos Reis
Comissão Editorial:
Beatriz Kauri dos Reis, Deborah Pinho, Glaucia Escalier Braga,
Maria Ângela Bulhões, Otávio Augusto W. Nunes,
Sandra Djambolakdjan Torossian, Valéria Machado Rilho.
Editoração:
Jaqueline M. Nascente
Consultoria lingüística:
Dino del Pino
Capa:
Clóvis Borba
Linha Editorial:
A Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre é uma publicação semestral da APPOA que
tem por objetivo a inserção, circulação e debate de produções na área da psicanálise. Contém
estudos teóricos, contribuições clínicas, revisões críticas, crônicas e entrevistas reunidas em edições
temáticas e agrupadas em quatro seções distintas: textos, história, entrevista e variações. Além da
venda avulsa, a Revista é distribuída a assinantes e membros da APPOA e em permuta e/ou
doação a instituições científicas de áreas afins, assim como bibliotecas universitárias do País.
R454
Semestral
ISSN 1516-9162
CDU 159.964.2(05)
CDD 616.891.7
Bibliotecária Responsável Luciane Alves Santini CRB 10/1837
Indexada na base de dados Index PSI – Indexador dos Periódicos Brasileiros na área de
Psicologia (http://www.bvs-psi.org.br/)
Versão eletrônica disponível no site www.appoa.com.br
Impressa em dezembro 2010. Tiragem 500 exemplares.
ESTRUTURAS CLÍNICAS
SUMÁRIO
cada uma delas, para além dos matizes e formas diferentes, um núcleo derivado
das relações com o Nome-do-Pai.
Mas hoje, será que referendaríamos a influência do estruturalismo? E, se
não, seria agora por influência de uma cultura que não se interessa mais pelo
que permanece? Ou por que o invariante da estrutura desmerece as muitas
mudanças que um sujeito é capaz de realizar, independente de sua estrutura
clínica? Ou ainda, a propalada mutabilidade e velocidade de nosso tempo influ-
enciam a noção de um psiquismo que muda, transforma-se? Os sintomas têm
mais relevância que a estrutura de fundo? O aparente importa mais que a causa
dele? Se sim, isso implica um fechamento para o inconsciente enquanto instân-
cia não aparente?
Seja onde procuremos possíveis influências da cultura atual, encontra-
mos referências à mutabilidade. Importa o que se desfaz, o que se transmuta, e
a concepção de sujeito moderno acompanha essa noção. Mas, e o sujeito da
psicanálise? Como consideramos a tensão entre o fixo e o cambiável? Como
incluir a noção de mutabilidade sem recair na imprecisão dos diagnósticos
fenomenológicos? Questões centrais do nosso trabalho, que permearão os tex-
tos publicados neste número da Revista da APPOA.
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Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 38, p. 9-19, jan./jun. 2010
AS QUATRO ESTRUTURAS
TEXTOS FUNDAMENTAIS DO SUJEITO:
autismos, psicoses,
neuroses e perversões1
Alfredo Jerusalinsky2
1
Trabalho apresentado nas Jornadas Clínicas da APPOA, Estruturas Freudianas, realizadas
em Porto Algre, outubro de 2009.
2
Psicanalista; Membro da APPOA, do Núcleo de Estudos Sigmund Freud, do Centro Lydia
Coriat e da Association Lacaniènne International ; Doutor em Educação e Desenvolvimento
Humano (USP); Autor dos livros: Psicanálise do autismo (Porto Alegre: Artes Médicas, 1984),
Psicanálise e desenvolvimento infantil (2. ed. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1999), Seminário
I, Seminário II, Seminário III, Seminário IV e Seminário V (São Paulo: USP) e Saber falar:
como se adquire a língua? (Porto Alegre: Vozes, 2008). E-mail: jerusalf@uol.com.br
9
Alfredo Jerusalinsky
3
Quadro de Bosch, pintado entre 1475 e 1480, pertencente ao acervo do Museu do Prado,
Madri, Espanha.
4
Quadro de Bosch, pintado entre 1504, pertencente ao acervo do Museu do Prado, Madri,
Espanha.
10
As quatro estruturas fundamentais...
ela não sabia se eu estava vivo ou morto”. Portanto, conclui o embaixador árabe:
“Esses vikings não sabem o que é a moral”. Qualquer pensamento
fenomenológico aderiria facilmente à conclusão do embaixador árabe, mas um
pensamento estruturalista se perguntaria em que consiste a moral dos vikings.
Assinalo, com isso, que os parâmetros de comportamento não são de-
monstrativos de quase nada. Não digo nada, mas quase nada, porque eles
precisam ser confrontados com o tecido significante, o tecido simbólico, para
serem lidos. O comportamento é letras entre os humanos; e, para se ler uma
letra, precisa-se saber em que estrutura ela funciona; não somente a que histó-
ria pertence – o que implica uma série –, mas também em que estrutura ou em
que lógica ela funciona. Falar de estrutura é falar da lógica. Falar da lógica
implica em como se transmite a verdade. Quais são os princípios que permitem
afirmar que algo que seja verdadeiro em certo tecido significante permaneça
como verdadeiro no tecido seguinte? O tecido se transforma, mas a lógica
ordenadora do critério de verdade permanece. Em psicanálise, isso chama-se
filiação.
A filiação é o que permite a continuidade do simbólico, independentemen-
te da mudança da figura, quer dizer, independentemente da mudança da moral,
da moda, do aspecto e do comportamento. É assim que alguém pode se reco-
nhecer e ser reconhecido como filho, apesar de o pai ser careca e o filho, punk ,
usar um corte moicano e quatro piercings, três tatuagens, das quais o pai tem
horror. O que não impede que ele seja reconhecido como filho, e se reconheça
como filho porque há um traço que sustenta a continuidade simbólica.
O que quer dizer a continuidade simbólica? Não quer dizer a continuidade
moral. Não quer dizer a continuidade da figura. Significa a continuidade, perma-
nência, ou persistência de uma lei que obriga o sujeito a certas formas de proce-
der para produzir um reconhecimento de valor recíproco. Significa que o sujeito
é capaz de produzir uma operação cuja resultante seja reconhecível pela gera-
ção anterior como algo de valor simbólico, de valor representativo da cultura na
qual ambas as gerações trabalham. Significa que aquilo que o filho faz seja pas-
sível de ser reconhecido pelo pai como algo que assegura a continuidade histórica
de sua estirpe, a continuidade dos valores essenciais que estavam em jogo, que
não são de ordem moral. O filho pode obedecer, ou não, aos modos que legitimam
o reconhecimento, por exemplo, transar com uma mulher, ou transar com um
homem; mas, apesar de não obedecer a esses princípios, ele inscreve seu ato no
julgamento da geração anterior e aceita ser reconhecido ou rejeitado em função
de seu ato. Quer dizer que seu ato não é rompimento, não é ataque à ordem
simbólica anterior; é um novo modo de demandar reconhecimento.
Tropeçamos com adolescentes, atualmente, em posições extremas de
aparente rompimento com a geração anterior, como, por exemplo, cabelo moicano,
13
Alfredo Jerusalinsky
formou em alguém através de teste do quão rigoroso é o método que ele aplica.
Se fosse assim, teríamos um método uniforme, a ser aplicado para todo e qual-
quer paciente. E o analista é justamente aquele que permite que a transferência
o atravesse e faça dele uma folha ao vento, ou seja, o arraste para o lado e os
extremos, para as alturas e os infernos, que ele é capaz de suportar sem perder
a capacidade de interpretar, de ler, de transformar isso em texto.
Se me perguntam se eu sou o mesmo analista para todos os meus paci-
entes, tenho que responder que não, porque se eu fosse não seria analista.
Descartes sonhou um método que garantisse a verdade; a psicanálise está no
avesso desse sonho. Quando se trata da loucura, vemos isso operar in extremis,
quer dizer, na queda de qualquer possibilidade de ler com um método uniforme.
Já na neurose há uniformidade. Qualquer tentativa de uniformizar a leitura, ou de
fazer uma nosografia ou uma taxonomia para uniformizar a leitura, nos levaria ao
fracasso da compreensão da psicose. Podemos, por métodos bioquímicos e
neuroquímicos, reduzir a expressão sintomática, mas certamente não conse-
guiríamos que o fantasma se desligasse do corpo, que é a cura que podemos
tentar.
Assim, para que o fantasma se desligue do corpo – como no exemplo da
paciente acima – implica fazer a leitura do que os seus traços corporais, mani-
festados na loucura, significam, e não o que significam universalmente. Por
isso, toda a tentativa de classificação está na contramão da psicanálise, ou
seja, a psicanálise e o DSM-IV não combinam. Da mesma forma, as classifica-
ções sexológicas da primeira metade do séc. XX, que são taxonômicas, ou
seja, por traços de comportamento, também não combinam.
A psicanálise é aprender a ler. Nossos professores de primeiro grau, que
nos ensinaram as letras, não nos deram instruções a respeito de quais livros ler,
nem como interpretá-los, nem como deveríamos lê-los. Nós, que transmitimos a
psicanálise, apenas somos capazes (e ainda bem!) de transmitir as letras míni-
mas. Ou seja, uma capacidade de leitura que em cada um tem um limite. É
verdade que há um limite mínimo, há um piso inferior necessário, quer dizer, não
dá para ser analista e analfabeto. Só isso.
REFERÊNCIAS:
CRICHTON, Michael. Devoradores de mortos. Porto Alegre: L&PM Editores, 2008.
______. O parque dos dinossauros. Porto Alegre: L&PM Editores, 2009.
LACAN, Jacques. O seminário, livro, 11: os quatro conceitos fundamentais da psica-
nálise [1964]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.
______. O seminário, livro 23: o sinthoma [1975-1976]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2007.
______. A topologia e o tempo [1978-1979]. Inédito.
______. L´insu que sait de l´une-bévue s´aile à mourre [1976-1977]. Paris: publica-
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As quatro estruturas fundamentais...
Recebido em 10/11/2009
Aceito em 05/01/2010
Revisado por Otávio Augusto Winck Nunes
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Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 38, p. 20-28, jan./jun. 2010
O TRAÇO DO CASO NA
TEXTOS CLÍNICA PSICANALÍTICA
COM CRIANÇAS E
ADOLESCENTES1
Leda Mariza Fischer Bernardino2
Abstract: This paper discusses the relief of the “case trait” like a strategy to
think about the clinic practice, especially in the children and teenagers analysis.
The conclusion points the interest of the “case trait” to the conduction of the
treatment, because it brings the possibility of appearance of the letter and a
reading operation of the clinic.
Keywords: case-trait, letter, identification, psychoanalytic clinic.
1
Trabalho apresentado nas Jornadas Clínicas da APPOA: Estruturas Freudianas , realizadas
em Porto Alegre, outubro de 2009.
2
Psicanalista; Analista-Membro da Associação Psicanalítica de Curitiba e da Association
Lacanienne Internationale; Professora titular da PUCPR; Pós-Doutora em Tratamento e Preven-
ção Psicológica pela Université de Paris 7 (bolsa CAPES). E-mail: ledber@terra.com.br
20
O traço do caso na clínica...
Este traço único, este einziger Zug [...] poderia substituir todos
os elementos do que constitui a cadeia significante, suportá-la,
ele sozinho, pura e simplesmente por ser sempre o mesmo (Lacan,
[1961-1962] s/d, p. 32).
Assim, não seria conveniente traduzi-lo como “único”, mas, sim, como
“unário”. Situar o traço é encontrar, nos diferentes pontos de repetição de um
sujeito, o que marca sua singularidade, relacionada certamente com sua estru-
tura clínica e com seus sintomas, mas peculiares a ele. Se compararmos com
a lógica do DSM IV, por exemplo, que segue uma direção exatamente oposta, o
quadro clínico no qual o paciente pode ser situado vai inseri-lo em um grupo que
apresenta sintomas comuns – ali ele encontraria sua “identidade”, que só pode-
ria ser imaginária.
Se retomarmos a história do movimento psicanalítico, vemos que Freud
([1914]1974) fez esse empreendimento, desde seus encontros com Charcot:
ele isolou um traço que se repetia na clínica, o sexual. Ao realçar este traço, ao
identificá-lo, ele inaugurou a clínica psicanalítica.
Tomando seu exemplo fundador, podemos dizer que o traço é o fato clíni-
co fundamental, básico, porque ele inicia a clínica. Algo que é destacado, que
aponta um enigma cifrado, que convida a uma leitura. É o estatuto de sintoma:
um fato enigmático, que convida o clínico a trabalhar.
Dessa forma, em psicanálise, tomamos o sintoma não como indicativo
de um “transtorno”, mas como fato clínico: algo que pede uma leitura, uma
interpretação no sentido de deciframento, de uma produção única por parte do
sujeito.
Fazemos então a hipótese, a partir desse fato clínico fundamental, de
que o fato deve ser articulado. É o que Freud descobre, diz Thibierge: “o corpo é
marcado por um traço que faz interpretação de um desejo, de um gozo sexual”
(Thibierge, 2008, comunicação oral). E isso só se tornou um fato clínico porque
Freud o identificou – ele o chamou de “formação do inconsciente”. É um fato
clínico porque foi um “achado” que, ao fazer limite ao saber, pedia uma leitura,
uma interpretação.
Para Thibierge, Lacan nos mostrou que o sintoma é o que faz parar o
gozo, porque traduz uma interpretação desse gozo. Se não há essa redução, o
gozo é ilegível. A redução fálica faz do sintoma o traço de um gozo selvagem,
mas interpretável. Trata-se de um traço que se liga ao corpo e o alça ao simbó-
lico, detendo o gozo orgânico ilimitado – em alguns casos ele se apresenta
como sintoma, apelo ao outro, e pede interpretação. A leitura permitirá identifi-
car as marcas singulares do sujeito que sintomatiza, o trabalho psicanalítico
permite esse desdobramento.
23
Leda Mariza Fischer Bernardino
Cada um vai ter que ocupar um lugar inédito, com uma distância,
em relação à fala inaugural do paciente, na intenção de destacar
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O traço do caso na clínica...
criança cria, para manter vivo um ‘fragmento de pura verdade’, isto é, uma inscri-
ção significante infantil” (Bergès e Balbo, 1997, p. 109). Aí eles situam o traço:
“Ela vai construir para si uma série de lembranças, das quais o traço unário,
apagado e lembrado por seu intermédio, é uma inscrição significante” (id., ibid.,
p.109).
Renato, 11 anos, dentre as várias reproduções de marcas de sua “tribo”,
rasura o nome em inglês de uma loja para skatistas – drop dead (literalmente
“caia morto”) – e convoca o trabalho analítico. Com associação livre, transferên-
cia, escuta em ação, uma leitura foi possível: uma história que remetia a um
bisavô que, atingido por um raio diante de seu filho, “caiu morto” (Bernardino,
2003).
Assim, o texto da fala ou da expressão significante da criança, por outras
vias – desenho, modelagem, pintura –, pode permitir “ler” esse traço, na transfe-
rência, que estaria presente na “escrita do caso” e pediria uma “leitura” fora da
sessão, mas no contexto da apresentação desta escrita para os pares.
Bergès e Balbo utilizam o termo “inscrição significante” porque essa ex-
pressão remete “às relações necessárias entre o significante e a letra” (Bergès
e Balbo, 1997, p. 108). Mas uma questão fica em aberto – se é, como os
autores lembram, “o recalque, a partir das construções, que permite inventar
para si um passado” (id., ibid., p.108); se é à fantasia que cabe retomar “a
inscrição significante em uma lógica formulável da relação entre o sujeito toma-
do na linguagem e o objeto” (id., ibid., p.109) , como se daria então, na clínica de
crianças pequenas, quando intervimos em um tempo anterior ao recalque propri-
amente dito?
Uma tentativa de resposta possível seria a teoria das identificações, des-
critas por Freud ([1921] 1972) como bastante precoces. Assim, tanto a primeira
identificação – a identificação ao Pai –, quanto a segunda identificação – ao
objeto perdido – ocorreriam em tempos lógicos anteriores à operação edípica
propriamente dita. Apenas na terceira identificação – que põe em cena a estru-
tura do desejo, da fantasia, como desejo de desejo insatisfeito (histérica), esta-
ríamos no pós-recalque secundário.
Vejamos mais detalhadamente essas operações. A primeira identifica-
ção, segundo Freud, ao Pai, dá-se por “incorporação”. Trata-se, para o filhote
humano, de identificar-se com o Outro, com a mãe enquanto portadora da metá-
fora paterna primordial, mãe cujas palavras ele “ingere”.
Darlene, 41 anos, encontra-se pela primeira vez com seu pai, desapareci-
do desde que sua mãe dela engravidara, em um relacionamento casual. Aos
colegas do trabalho, que a indagaram sobre a situação insólita, ela respondeu:
“estava digerindo ainda a história”! Mesmo adulta, é do corpo que se trata, dian-
te daquele que – mesmo desaparecido – transmitira “traços” identificatórios.
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O traço do caso na clínica...
Sessões depois, ela narra um sonho: “uma tv ligada, mas somente os pontinhos
aparecendo, e um risco no meio, em zigue-zague”. Realmente, ela “saíra do ar”
com esse encontro. Mas o risco no meio, associado primeiramente à aprendi-
zagem da escrita e ao exercício repetitivo de um traçado, remete diretamente à
letra inicial do sobrenome paterno...
Essa identificação marca a antecipação do sujeito e prepara seu lugar
de falante, toca o sujeito do inconsciente. Mas essa primeira identificação só é
possível pela segunda – a identificação por regressão – com o Outro da de-
manda. É a identificação a um traço único tomado do Outro do desejo, consi-
derado como objeto, em que a identificação viria substituir a perda pela frustra-
ção necessária; essa identificação toca o Eu (moi). O Outro é a metáfora do
traço unário (um “pedacinho” dele é incorporado – por metonímia, o pedaço
pelo todo); mas o que é introjetado é seu lugar e sua função, fazendo dessa
introdução do Outro ato de desejo, ao entrelaçar corpo e significante, no regis-
tro da experiência pulsional. Já na fantasia, o sujeito, separado do Outro, mas
a ele unido no campo da representação, se faz ausência-presença do objeto a e
esse processo é que constitui a identificação com o traço unário: busca repetitiva
da inauguração mítica, que o traço unário qualifica. A identificação de terceiro
tipo, por sua vez, a histérica, é a identificação imaginária, narcísica, é o sujei-
to, na qualidade de desejante, “agindo” seu desejo do desejo do Outro. Para o
sujeito, conforme aponta Melman (2009), identificar-se com o significante da
falta do outro o faz faltante, insatisfeito e, portanto, portador de um desejo
inconsciente.
Esse caminho aborda a passagem de real a significante, narra a entrada
no campo simbólico, que podemos situar miticamente na primeira identificação;
mas é apenas no segundo tempo, com a apreensão do outro como objeto, que
pode ser inscrita. Como afirmam Bergès e Balbo, “para que seja possível uma
inscrição, é preciso que a coisa caia, e é sobre seu suporte que se inscreve o
significante que poderá decifrá-la” (Bergès e Balbo, 1997, p. 112).
A escuta no tempo da infância poderia permitir o destacamento deste
traço deixado pela coisa? Segundo esses autores, sim, pois “quando [a coisa]
se perde ou pode ser perdida, permite que o significante venha inscrever-se
nela, para poder ser lido ou decifrado” (id., ibid., p. 112).
Conclusão
A proposta do trabalho de reunião entre pares para destacar o “traço do
caso”, na clínica de crianças, poderia permitir, assim, um trabalho conjunto de
leitura e deciframento, ao convocar essa reflexão, que incluiria o texto da crian-
ça (suas verbalizações, suas produções através do brincar, da modelagem, do
desenho e da pintura), o texto da fala de seus pais e o próprio relato do analista,
27
Leda Mariza Fischer Bernardino
sua escrita, dando lugar aos efeitos inconscientes da escuta mais além do
setting analítico.
O trabalho em torno do “traço do caso” pode ser proposto como um outro
lugar para pensar a clínica. Não se trata de supervisão, de discussão clínica ou
de trabalho teórico. Implica a transformação do produto da escuta em texto –
permitindo o surgimento da letra, que convoca uma operação de leitura. Provoca
um distanciamento do caso, para lançar-lhe nova luz, e permite uma leitura na
qual o papel dos pares, com sua escuta-leitura, faz função de alteridade; possi-
bilita um distanciamento da captura imaginária que todo caso tem a tendência a
provocar.
Dessa forma, pode-se ir além da leitura convencional, que permite identi-
ficar a estrutura, trabalho importante, mas insuficiente para a direção do trata-
mento de cada caso particular. É uma estratégia que viabiliza mais recursos
para uma intervenção que se dirija à singularidade do paciente.
REFERÊNCIAS
BERGÈS, J.; BALBO, G. A criança e a psicanálise. Rio de Janeiro: Cia de Freud, 1997.
FREUD, S. A história do movimento psicanalítico [1914]. In: ______. Edição standard
brasileira das obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1974. v.
XIV.
FREUD, S. Psicologia das massas e análise do Ego [1921]. In: ______. Edição
standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago,
1972. v. XVIII.
FREUD, S.. O Ego e o Id [1923]. In: ______. Edição standard brasileira das obras
completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1972. v. XIX
LACAN, J.] L’identification. [1961-1962]. Paris: Association Freudienne Internationale,
s/d.
LACAN, J.. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise
[1964]. Rio de Janeiro, Zahar, 1979.
MELMAN, Charles. Remarques. In: CZERMAK, M.; VEKEN, C. Les jardins de l’asile:
questions de clinique usitée et inusitée. Paris: A.L.I., 2008.
MELMAN, Charles. Para introduzir a psicanálise nos dias de hoje. Porto Alegre: CMC
Editora, 2009.
SANTURENNE, François. Façons de faire. In: CZERMAK, M.; VEKEN, C. Les jardins
de l’asile: questions de clinique usitée et inusitée. Paris: A.L.I., 2008, p. 13-17.
THIBIERGE, Stephane. Séminaire sur le trait du cas. Seminário inédito proferido na
Association Lacanienne Internationale, Paris, abril de 2008 (comunicação oral).
Recebido em 18/06/2010
Aceito em 20/08/2010
Revisado por Beatriz Kauri dos Reis
28
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 38, p. 29-38, jan./jun. 2010
TEXTOS
ADOLESCÊNCIA VIRTUAL1
Daniel Paola2
VIRTUAL ADOLESCENCE
Abstract: The text approaches the actuality of the virtual addiction, especially
during adolescence. The author makes use, initially, of the lacanian
conceptualization of the mirror stage as to support the presence of virtuality in
the human processes, as well as in the establishing of addiction.
Keywords: adolescence, virtual, addiction, psychoanalysis, mirror stage.
1
Traduzido por Paulo Gleich.
2
Psicanalista; membro da Escuela Freudiana de Buenos Aires (EFBA). Autor dos livros:
Transadolescência(Ed. Letra Viva, 2007); Psicosis y cuerpo(Ediciones Laderiva, 1994);
Erotomania, paranoia y celos (Homo Sapiens, 2000); Erradamente la pulsion(Homo Sapiens,
2005). E-mail: purple@sion.com
29
Daniel Paola
A adição virtual
3
Empresa americana de consultoria em tecnologia.
30
Adolescência virtual
A abstinência
A abstinência é, então, o primeiro obstáculo que o psicanalista enfrenta.
Porque os pais creem que a suspensão do jogo é uma tarefa imediata e que se
resolve com proibições ao jovem, entre as quais se contam, por exemplo, cortes
de luz ou impedimentos no uso do computador. Da mesma maneira, qualquer
familiar de um paciente psicótico crê que o analista tem o poder de proibir o
delírio. É comum, entre familiares de pacientes psicóticos, a desconformidade
com o psicanalista que não expõe a falsidade dos argumentos delirantes ou
alucinatórios, numa suposição mágica como a que se outorga ao encantador de
serpentes ou a quem sopra e faz garrafas.
Propor que não há abstinência quanto ao uso do computador é o primeiro
passo para conseguir que o adicto virtual finalmente possa entrar no discurso,
na medida em que seu jogo determina um gozo. E se de entrada houvesse que
definir gozo, proporia que, em sua generalidade, este serviria de suporte a seu
próprio fracasso. Porque não haveria gozo que ao fim das contas não tendesse
a sua extinção, pois qualquer atividade humana tem um limite à satisfação com
a qual se pode alimentar.
Suponhamos que elegemos a sobremesa que mais nos apetece e decidi-
mos degustá-la para sempre. Em um primeiro tempo, a satisfação vai ser óbvia.
Em um segundo tempo, a satisfação pertence à escolha, já que, sendo a sobre-
mesa que mais nos apetece, passa a ser o significante que a representa en-
quanto gozo. Em um terceiro tempo, depois de alguma forma de declaração de
impotência, esse gozo fracassa, porque produz rechaço. Nesse último tempo já
31
Daniel Paola
A ilusão do intersubjetivo
Proponho voltar agora a esse instante de júbilo no qual o infans se encon-
trou do outro lado do fato do real que os sustenta frente ao espelho. Esse outro
lado virtual, enquanto é imagem, permite a suposição de unidade em uma cena
na qual há conexão de um a outro, nesse caso infans e adulto, conexão virtual
livre de efeitos desse real que se apresenta no corpo, que ainda não se move
como se moverá no futuro. Essa conexão então permite a suposição de enlace
entre ambos em uma intersubjetividade fantástica, que retornará como estra-
nha, dada sua falsidade real.
A imagem real sempre oferecerá a inevitável oferta do campo do verdadei-
ro, cuja significância exclui qualquer tentáculo de um a outro, ou do sujeito ao
campo do Simbólico, a não ser por uma passagem ao ato, que suponha a
crença salvadora da suposição de um saber que se encontre nos meandros da
linguagem que nos habita em sua dimensão inconsciente. Isso quererá dizer
que não há intersubjetividade possível na realidade psíquica, a não ser que haja
um estancamento no gozo que suponha a ilusão efetiva dessa virtualidade.
O século XX foi testemunho de uma humanidade unida virtualmente atra-
vés de líderes carismáticos, impelidos ilusoriamente às soluções finais que ter-
minavam nos campos de extermínio e concentração. Por acaso se chamou
essa solução de adição virtual? Não existem os espelhos desde a origem do
vidro?
33
Daniel Paola
O jogo e o sintoma
Qual é a demanda que um sujeito capturado pelo jogo virtual encerra? Em
princípio se desconhece. Para cada um haverá alguma demanda, que poderá
ser formulada no curso de uma análise. E os sintomas que se gerarem através
de seu encontro serão variados, de acordo com as identificações edípicas que
poderão se desenvolver.
4
O Dorminhoco, na versão lançada no Brasil (N.T.).
34
Adolescência virtual
Há fim
Definir o termo adolescência virtual traz em segunda instância outro pro-
blema. Não creio ser prudente definir adolescência ligada exatamente ao crono-
lógico, já que existem sujeitos que se comportam toda a vida como tais, crendo
que efetivamente há iniciação eficaz no relativo ao sexual que os aparta dessa
etapa. Assim como não por ter a primeira relação sexual há algum início, tampouco
por ter um suposto saber sobre o conhecimento do sexual se chega a algum
porto da maturidade.
35
Daniel Paola
REFERÊNCIAS
FREUD, Sigmund. Psicologia de las masas y análisys del yo [1921]. In: ______.
Obras completas de Sigmund Freud. Madrid: Editorial Ballesteros, Biblioteca Nueva,
1981.
LACAN, Jacques. El estádio del espejo como formador de la funcion del Yo (Je) tal
como se nos revela en la experiência psicoanalítica. In: ______. Escritos. Editorial
Siglo XXI, 1994, v.1.
______. Seminario: La angustia [1962-1963]. Buenos Aires: Editorial Paidós, 2005.
______. Seminário: Los nombres del padre [1973-1974]. Inédito.
______. La tercera. Intervenciones y textos II. Buenos Aires: Editorial Manantial,
1985.
______. L´insu que sait de l´une-bévue s´aile à mourre (1976-1977). Texto estabele-
cido por Jacques Alain Miller. Paris: Ornicar, n.12-13.
Recebido em 13/07/2010
Aceito em 30/08/2010
Revisado por Otávio Augusto Winck Nunes
38
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 38, p. 39-48, jan./jun. 2010
TEXTOS
DORA1
Elaine Starosta Foguel2
DORA
Abstract: This paper is a retake of the case Dora, by Sigmund Freud. The author
presents a new reading in relation to Freudian mistake on the conduction of this
analysis. The author draws a parallel between the second patient’s dream and
the work of the Dutch artist M. C. Escher entitled Relativity.
Keywords: Dora, hysteria, psychoanalysis, dreams, transference.
1
Trabalho apresentado nas Jornadas Clínicas da APPOA: Estruturas Freudianas , realizadas
em Porto Alegre, outubro de 2009.
2
Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) e do Campo
Psicanalítico, de Salvador; Especialista em clínica da Dor (UNIFACS-BA); Mestre em Filosofia
da Ciência (UFBA). E-mail: elainefoguel@terra.com.br
39
Elaine Starosta Foguel
Introdução
E, propomos que:
1. A psicanálise com Freud deu a Dora, de volta, a mesma versão neuró-
tica e sintomática à qual ela estava presa.
2. Dora não teve a oportunidade de construir e-ou inventar outra versão
para fazer frente ao real da sua condição feminina.
3. A comunidade psicanalítica nada sabe ou pode saber sobre a
posição fantasmática de Dora, pelo menos a partir do material do caso
clínico apresentado por Freud, uma vez que Dora não teve a oportunidade de
esboçar nem mesmo uma única construção sobre seu fantasma. Dora é a
Madona dos psic analistas, não só a de Dresden, mas também a de Leo-
nardo da Vinci, cujo segredo não foi revelado. Por isso, continuamos a
estudá-la.
Com este trabalho pretendemos, ainda, a título de discussão sobre a
neurose e, através da ilustração das diversas posições identificatórias que Dora
ocupava, comparar a sua situação neurótica com um desenho de Escher –
40
Dora
conhecido artista holandês, que viveu entre 1890 e 1972 – de 1953, intitu-
lado Relatividade (apud Ernst, 1994). Com esse propósito específico,
poderíamos até mesmo renomear o trabalho para A casa de Dora . Que-
remos também reconh ecer que a coragem de Freud em tornar públicos
seus impasses e dificuldades foi o canal do avanço da psicanálise, tanto
nas considerações metapsico-lógicas quanto nas da direção do trata-
mento.
Para finalizar, pretendemos levantar uma hipótese sobre o que teria
levado Freud a relegar, nesse tratamento específico, seu próprio método
psicanalítico de fazer falar. Esclarecemos ainda aqueles que ora se iniciam
na psicanálise que a hipótese de Freud ter relegado seu próprio método
psicanalítico no caso Dora é polêmica e totalmente de nossa responsabili-
dade.
Parte I: as perspectivas
Os ensaios sobre o caso Dora são inúmeros e sempre provocam novas
especulações sobre o que estava em jogo no quadro de histeria da jovem e por
que ela se recusou a seguir com seu tratamento. No entanto, há duas articula-
ções que já são clássicas e que inspiram a maioria das outras. A primeira, do
próprio Freud, afirma que os sintomas de Dora provêm do recalque de que “(...)
ela estivera, por todos aqueles anos apaixonada pelo Senhor K”. (Freud, [1905]
1974, p. 35) e que “sua doença era, portanto, uma demonstração do amor por
K.” (id., ibid., p. 37).
A família de Dora era composta de pai, mãe e irmão mais velho. O pai
tinha uma amante, a Sra. K. Ocorre que os K., que, por sua vez, tinham filhos
pequenos, mantinham uma amizade íntima com a família de Dora. Essa, por
sua vez, tinha uma ligação especial com a Sra. K. e com as crianças. E o Sr. K.
lhe fazia um assédio erótico há anos.
Fizemos então uma série de quatro desenhos para ilustrar as dife-
rentes constelações libidinais que encontramos, e como Dora aí se situa-
va.
Cada desenho corresponde a uma das perspectivas ou pontos de fuga
libidinais da jovem. É importante observar que conservamos a triangulação
com o propósito de afirmar uma identificação de Dora com sua mãe. Se essa
identificação está ausente na descrição de Freud (id., ibid.), ou só aparece
no relato do desprezo da jovem pela mãe, não é bom ignorar o traço de
tolerância crônica amarga sintomatizada da Sra. Bauer, com o qual Dora se
contagiara totalmente. Então, em todas as perspectivas, optamos por deixar
a mãe presente, não esquecendo que Dora assim também o fez nos seus
dois sonhos.
41
Elaine Starosta Foguel
44
Dora
3
Em 1909, Freud publica o artigo Fantasias histéricas e sua relação com a bissexualidade
(Freud, [1909] 1974), no qual descreve a importância das fantasias inconscientes no
desencadeamento dos sintomas. Ele esclarece que: “Os sintomas histéricos são a expres-
são, por um lado, de uma fantasia sexual inconsciente masculina e, por outro lado, de uma
feminina” (p.168).
45
Elaine Starosta Foguel
À guisa de finalização
Para finalizar, o que ocorreu com Freud em relação a esse tratamento?
Jones (1989), relata que o caso Dora fora pensado inicialmente como o capítulo
psicopatológico que faltava na Traumdeutung; seu título seria Sonhos e histeria,
fragmentos de uma análise. Freud desiste de incluí-lo, para não misturar duas
teorizações no mesmo livro, isto é, o mecanismo dos sonhos com a teoria da
neurose. No entanto, ainda segundo Jones, o caso Dora é uma continuação do
livro dos sonhos, no qual Freud queria mostrar a semelhança entre as estruturas
do sonho e a do sintoma, e de que modo a interpretação do primeiro no trata-
mento interfere no segundo. Era esse o seu propósito. E essa talvez seja a
questão problemática, ele tinha algo em mente: a pesquisa de uma hipótese.
47
Elaine Starosta Foguel
Mais de uma década depois, nos estudos técnicos, ele mesmo aconse-
lhará:
REFERÊNCIAS
ERNST, Bruno. El espejo mágico de M.C. Escher. Köln: Taschen Verlag, 1994. Dispo-
nível em: http://hightouchconcept.files.wordpress.com/2007/06/mc escher relativity
623x600.jpg ou Ernst, Bruno. El espejo mágico de M. C. Escher. Köln, 1994, p. 47.
Acesso em 03 de agosto de 2009.
FREUD, Sigmund Fragmentos da análise de um caso de histeria [1905]. In:______.
Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Tradução e direção de
Jayme Salomão. 23 ed. Rio de Janeiro: Imago, 1974.
______. Fantasias histéricas e sua relação com a bissexualidade [1909]. In: ______.
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JONES, Ernest. A vida e a obra de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1989. v. 2.
LACAN, J. A direção do tratamento e os princípios de seu poder [1958]. In: ______.
Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 591-652.
Recebido em 28/10/2009
Aceito em 30/11/2009
Revisado por Gláucia Escalier Braga e Otávio Winck Nunes
48
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 38, p. 49-69, jan./jun. 2010
TEXTOS
O QUE CONSOME
O ADOLESCENTE
Carmen Backes 1
Abstract: From three adolescents’ clinical fragments, the author follows the ways
through which the mechanism of refusal of the absence of the mother’s phallus
works in the constitution of a fetish-object modality. The article does not approach
the refusal of reality, as in psychosis or perversion, but rather the manner through
which a type of fetishistic functioning merges into neurosis.
Keywords: adolescence, consumption, object, phallus, castration.
1
Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA); Psicóloga do
Instituto de Psicologia (UFRGS); Doutoranda em Educação (UFRGS). Autora do livro: O que é
ser brasileiro? (Escuta, 2000) e organizadora do livro: A clínica psicanalítica na
contemporaneidade (Editora da UFRGS, 2008). E-mail: cbackes@cpovo.net.
49
Carmen Backes
O objeto-fetiche
Uma forma muito particular de constituição do objeto diz respeito ao seu
caráter de fetiche, que tem como intuito o encobrimento de uma falta intolerável
ao sujeito – a castração materna. Dos autores que se ocuparam desse tema,
interessa aqui ressaltar a forma como Freud ([1927] 1981) se ocupou do objeto-
fetiche enquanto precursor, nessa forma de tomar a negação da falta do falo na
mãe, como também interessa incluir as posições de autores contemporâneos
acerca da utilização, nos dias de hoje, dos objetos-fetiche como aqueles que
poderiam disfarçar a falta, e também auxiliar a suportar a desestabilização da
imagem identitária na presença do Outro.
O objeto-fetiche, Freud definiu-o em um artigo escrito no ano de 1927
como aquele que apaga a diferença sexual, pois se origina da eleição da crian-
ça, cujo olhar extasiado escorrega do recém-descoberto corpo faltante da mãe
para se fixar no primeiro objeto que brilhe suficientemente para ofuscar essa
ausência. Para o neurótico, ele é a negação do saber sobre essa falta; para o
perverso, a elevação desse substituto ao estatuto de objeto mesmo.
Essa conceituação freudiana já está contida, todavia, em seu texto de
1910, quando escreve um ensaio sobre a vida e obra de Leonardo da Vinci2
(Freud, [1910] 1981). O tema do fetichismo situa-se a propósito de uma recorda-
ção de sua infância precoce: o artista descreve, em um de seus diários, a lem-
brança de estar no berço quando se aproxima um pássaro abutre-milhafre3 , que
lhe abriu a boca com sua cauda-rabo e golpeou com ela, repetidas vezes, entre-
dentro4 dos lábios. Freud salienta, no entanto, poder tratar-se mais de uma
fantasia ulterior, transferida para o período da lactância5 , do que propriamente
uma recordação infantil, o que não altera em nada suas conclusões acerca do
episódio. Lembra, também, que o artista dedicou grande tempo de suas investi-
gações científicas, quando adulto, ao estudo e à compreensão do voo dos pás-
saros.
A tradução de tal fantasia mostra uma orientação erótica, porque cauda-
rabo, segundo Freud, é um dos mais significativos substitutivos para pênis, em
muitas línguas e não somente para o italiano (língua de origem de Leonardo da
Vinci). A recordação faria referência à mãe, pois os egípcios 6 associavam o
2
O ensaio tem como título Uma recordação infantil de Leonardo da Vinci.
3
“Abutre” é como Freud lê na tradução alemã. Strachey, porém, afirma que, no original em
italiano, tratar-se-ia do milhafre.
4
Idem.
5
A mãe que amamenta o filho é transformada em uma ave que introduz sua cauda na boca da
criança.
6
A divindade egípcia Mut tinha cabeça de abutre e aparecia portando um falo.
51
Carmen Backes
abutre à maternidade, tendo como verdade que todos os abutres são fêmeas e
se reproduzem sem necessidade da participação do macho, dado este que se
refere à história do artista, por ter sido filho ilegítimo, filho de abutre, pois Leonar-
do passou os primeiros anos de sua vida sem saber do pai e longe de sua
companhia7 .
O artista, na infância, assim como toda criança pequena, passa por um
momento de intensa investigação acerca dos genitais humanos 8 . Faz parte das
teorias sexuais infantis a suposição de que todos são portadores de pênis. A
eleição de um objeto-fetiche ocorre justamente diante da “descoberta” frustrante
de que alguns deles não o têm, e é a forma de negar a castração feminina, na
tentativa de recompor o corpo materno. Esse objeto é um “símbolo substitutivo
do membro da mulher” (Freud, [1910] 1981, p. 1596).
O objeto-fetiche é um objeto de caráter imaginário, através do qual uma
perda e uma falta intoleráveis são ocultadas. Trata-se de um objeto mágico de
satisfação que se utiliza do mecanismo da denegação para exprimir a impossi-
bilidade de lidar com a ausência e com a alteridade e diz respeito à impossibili-
dade de passar da imagem ao símbolo.
Desde Freud, muitos foram os analistas que se ocuparam desse tema.
No entanto, a produção recente de Maria Rita Kehl (2009) sobre a vacilação da
imagem identitária parece abrir um caminho profícuo em se tratando desse as-
sunto, qual seja, a constituição e a função do objeto-fetiche na adolescência.
Apoiando-se nas teorizações do psicanalista francês Jean-Jacques Rassial e
utilizando-se da conceituação do objeto-fetiche em Freud, a autora propõe for-
mulações que apresento a seguir, pois, acredito, poderão contribuir para a aná-
lise das relações do sujeito adolescente com os objetos em geral e com os
objetos de consumo em particular.
Kehl descreve como um fenômeno psíquico o fato de, no contato com o
Outro, seja ele exótico, estrangeiro ou familiar, operar-se imediata desestabiliza-
ção da imagem identitária, “ofuscada pela presença da imagem do outro” (Kehl,
2009, p. 130). Todorov (1993) já afirmava que cada encontro opera um enfraque-
cimento, e que a identidade vacila na proximidade com o estrangeiro. Para o
7
É necessário aqui chamar novamente a atenção para a troca do nome da ave, quando o texto
original de Leonardo da Vinci, em italiano, é vertido para o alemão por Freud, pois, na espécie
dos milhafres existem os machos e as fêmeas, e a reprodução se dá por acasalamento. Tendo
em vista essa troca, é necessário interrogar a associação com a deusa egípcia Mut.
8
Freud ([1910] 1981) trabalhou intensamente essa questão no caso do Pequeno Hans.
52
O que consome o adolescente
9
Essas ideias estão mais amplamente trabalhadas no artigo “Patricinha” ou “Largada”: as
identificações na adolescência, Revista da APPOA – Clínica da adolescência, n. 23, dez.
2002.
53
Carmen Backes
camente vestindo as roupas de sua mãe. Passa uma tarde toda “perdida”, tran-
sitando pelo shopping, com o sentimento de não se reconhecer, não consegue
comprar nada.
lo da mãe, ao “encher seus olhos”. Essa expressão, que ambas utilizam fre-
quentemente, é interessante, pois remete àquele objeto que caberia exatamen-
te na borda materna.
Na menina, o dar o corpo a ver toma o eixo central, associado ao cresci-
mento dos seios, à mudança na silhueta e à visibilidade da menarca. Enquanto,
para o menino, a mudança no timbre da voz e a profusão do discurso elevam-se
sobre os demais. As adolescentes querem ser vistas, e os adolescentes que-
rem ser escutados; ao mesmo tempo, elas ensurdecem e eles não enxergam.
Ainda a propósito desse recorte clínico, abordaremos agora outros ele-
mentos que dizem respeito à circulação pulsional e às condições de possibili-
dade de se operar a passagem de uma fase a outra. Para que o filhote humano
possa largar o seio, é necessário que a mãe o queira também. Dessa forma, a
“migração da libido” sobre as zonas erógenas, a passagem de uma pulsão (oral,
anal, fálica) a outra não está dada pelo amadurecimento, desenvolvimento ou
ultrapassamento de fases, mas, sim, por uma reviravolta dupla na demanda, um
“reviramento da demanda do Outro” (Lacan, [1964] 1979, p.171). Portanto, é
necessário que se opere um reviramento na demanda do Outro originário, para
que se opere o consequente reviramento na demanda do sujeito: o objeto vai se
constituir, se ressignificar e mudar, ou não, na relação à demanda do Outro.
A ideia de ultrapassamento de fases 10 , de uma linearidade na constitui-
ção do campo pulsional, que estaria “inscrita no organismo”, força o pensamen-
to de que, superada uma fase, ela não deverá mais se apresentar. Lacan ([1962-
1963] 2005) rompe com essa linearidade, propondo em contrapartida a
circularidade, quando afirma que o ingresso no complexo de Édipo, a circulação
pela castração, faz ressignificar a oralidade e a analidade, as ditas pulsões pré-
edípicas. De fato, é somente quando a mãe é interditada, na fase fálica, que o
seio entra num tempo verbal até então inexistente; o que é do campo pré-edípico
(oral, anal) vai ser ressignificado pelo falo, em sua ausência.
Disso que afirmamos, desde Lacan, que a passagem de um objeto
pulsional a outro não se dá por maturação, mas pelo reviramento na demanda
do Outro, podemos interrogar: o que é necessário que se opere do lado do Outro
e do lado do sujeito, para que esse reviramento aconteça?
10
Crítica que Lacan faz ao modo como Melanie Klein e Anna Freud tomam o “pulsional” de
Freud, contida no Seminário 11 (Lacan, [1964] 1979, p. 170).
57
Carmen Backes
vai, esgoto abaixo. O sujeito satisfaz uma necessidade para satisfação do Ou-
tro materno, ele está apenso à necessidade do Outro e, ao mesmo tempo,
identificado ao objeto excrementício.
Dito de outro modo, para o sujeito, a relação ao desejo não é natural, pois
está mediado pelo Che vuoi?, expressão adotada por Lacan para fazer menção
à tentativa operada pelo sujeito de identificar no Outro aquilo que ele quer de
mim. Na fase fálica, o pequeno bebê já não é mais tudo para o Outro materno,
que agora quer algo alhures, para além e para aquém do sujeito. A equação
pênis = falo = filho, coloca o órgão masculino como objeto privilegiado, e a
ambivalência que se apresentava na fase anal com relação ao objeto
excrementício (“Que lindo!”, mas privada para ele), retorna agora sobre o pênis =
falo: “Que lindo! Tu prometes, porém agora és ainda muito pequeno!”, lançando,
dessa forma, para o futuro uma promessa. Uma divisão se instaura: por um
lado, o objeto se torna marca de um interesse privilegiado; por outro lado, a
depreciação do sujeito no momento em que ele é lançado numa promessa, pois
se ele virá a ser, ele ainda não o é. Então, o sujeito “é apreciado como objeto, e
depreciado como desejo” (Lacan, [1960-1961] 1992, p. 218).
Por outro lado, a partir da experiência de estranhamento da adolescente
Laura, poderíamos supor que seu bebê-falo nasce já com a incumbência de
aplacar as falhas imaginárias – sua e de sua mãe – oferecendo um suporte
identificatório para o “ser mulher”, que ela dificilmente encontraria em outras
referências. Contudo, o que é que o falo-filho garante?
11
O psicanalista Bernard Penot aborda a dificuldade de aceitação da castração (ausência de
falo no Outro), através do conceito de recusa em duas principais obras: Figuras da recusa,
Porto Alegre: Artes Médicas, 1992; e A paixão do sujeito freudiano, Rio de Janeiro:Companhia
de Freud, 2005.
61
Carmen Backes
endo, mas não consigo, não tenho meios suficientes para lidar com a falta”, que
se traduz por teimosia, insistência, rebeldia, atitudes essas tão francamente
presentes no adolescente. Proponho chamar a atenção para essa modalidade
de recusa que não diz respeito exatamente a uma recusa da realidade, como
nos casos de psicose, e também não necessariamente se colocam do lado de
um funcionamento francamente perverso, mas, talvez, o modo como o funciona-
mento fetichista se imiscui na neurose.
A inconformidade com a realidade corporal (ausência do pênis-falo) talvez
esteja mais do lado das jovens adolescentes, que submetem seus corpos a
esforços extremados em busca da perfeição nunca alcançada, pois sempre
haverá algo que não está bem. Ademais, chama a atenção o fato de essa
inconformidade frequentemente dirigir-se à figura materna, numa modalidade
reivindicatória que comportaria a queixa do tipo “por que tu me fizeste assim tão
incompleta”. Dessa forma, pareceria haver algo de certa recusa em aceitar a
incompletude materna, que redunda na dificuldade em aceitar a incompletude
do corpo próprio, incompletude essa que o recurso a diferentes objetos pode
disfarçar.
Toda criança passa por um período de recusa da ausência de pênis na
mulher, e a capacidade de superar a presença-ausência do pênis tem sua pri-
meira matriz na maneira como é simbolizada pela criança a presença-ausência
de sua própria mãe, jogo esse que foi muito bem ilustrado, na obra de Freud
([1920] 1981), pelo brinquedo de seu neto, o fort-da. O reconhecimento da au-
sência da mãe, como também da falta do órgão na metade dos humanos, é
fonte de desprazer que a recusa tenta evitar. Esse processo foi habilmente
explicitado pelo autor no caso clínico do pequeno Hans (Freud, [1909] 1981).
São as formas de superação desse impasse que vão determinar ou não o aces-
so à genitalidade – à fase fálica. Tanto o menino como a menina, primeiro,
imaginarizam a mãe como detentora do falo, e é essa representação que com-
põe os elementos estáveis da descoberta freudiana do inconsciente, que o autor
nomeou de “representações de coisa”. O falo, acrescenta Lacan ([1955-1956]
1985), é convocado a desempenhar, no inconsciente, o papel de um significante
– o significante da falta12 . Essencialmente, a criança reconhece que aquilo que
a mãe deseja é o que lhe falta, e são as tentativas de resolução desse impasse
que colocarão o pequeno sujeito a “trabalhar” e a determinar as diferentes moda-
12
Ou seja, as representações de coisa têm vocação para funcionarem como significantes.
62
O que consome o adolescente
Modalidades da recusa
O bebê humano, em seus primeiros contatos com o universo da lingua-
gem, depara-se com dois níveis de discurso: aquele veiculado pela relação es-
pecular com o outro originário e o discurso veiculado pelo entorno social mais
amplo, incluindo a figura do pai, discursos esses que nem sempre estão em
consonância.
O acesso à fala, por parte da criança, não está ligado a uma geração
espontânea, algo dado pela prontidão orgânica, pois ela é, antes de mais nada,
tomada por uma matriz e antes mesmo que pudesse emitir uma palavra, ela foi
envolvida por um discurso, apanhada num campo de significações que será
determinante da sua relação com a realidade. Caracteriza-se, dessa forma, o
que podemos chamar de “antecedência do discurso parental”.
A diferença que se coloca entre as representações operadas pelo discur-
so materno e o discurso social – entre a imagem especular e a simbólica do
discurso – pode operar vivências de estranheza com o próprio corpo que, às
vezes, resultam em recusa da realidade corporal, nos casos mais graves, ou
mesmo em vivências de estranheza passageiras, relativas ao próprio corpo,
marcadamente em circunstâncias especiais da vida. Nesse sentido, lembre-
13
Expressão cunhada por Lesourd (2004).
63
Carmen Backes
14
Esclarecemos que Laura não havia adotado o sobrenome do marido, por ocasião do casa-
mento. Esse sobrenome só aparece no momento do registro do primeiro filho.
65
Carmen Backes
15
Expressão utilizada por Penot (2005).
68
O que consome o adolescente
REFERÊNCIAS
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Recebido em 20/08/2010
Aceito em 30/10/2010
Revisado por Valéria Rilho
69