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ISSN 1516-9162

REVISTA DA ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE


n. 38, jan./jun. 2010

ESTRUTURAS CLÍNICAS

ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE


Porto Alegre
REVISTA DA ASSOCIAÇÃO ISSN 1516-9162
PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE
EXPEDIENTE
Publicação Interna
n. 38, jan./jun. 2010

Título deste número:


ESTRUTURAS CLÍNICAS

Editores:
Valéria Machado Rilho e Beatriz Kauri dos Reis

Comissão Editorial:
Beatriz Kauri dos Reis, Deborah Pinho, Glaucia Escalier Braga,
Maria Ângela Bulhões, Otávio Augusto W. Nunes,
Sandra Djambolakdjan Torossian, Valéria Machado Rilho.

Colaboradores deste número:


Marta Pedó, Paulo Afonso R. Santos e Maria Lúcia Stein

Editoração:
Jaqueline M. Nascente

Consultoria lingüística:
Dino del Pino

Capa:
Clóvis Borba

Linha Editorial:
A Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre é uma publicação semestral da APPOA que
tem por objetivo a inserção, circulação e debate de produções na área da psicanálise. Contém
estudos teóricos, contribuições clínicas, revisões críticas, crônicas e entrevistas reunidas em edições
temáticas e agrupadas em quatro seções distintas: textos, história, entrevista e variações. Além da
venda avulsa, a Revista é distribuída a assinantes e membros da APPOA e em permuta e/ou
doação a instituições científicas de áreas afins, assim como bibliotecas universitárias do País.

ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICADE PORTO ALEGRE


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R454

Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre / Associação


Psicanalítica de Porto Alegre. - Vol. 1, n. 1 (1990). - Porto Alegre: APPOA, 1990, -

Absorveu: Boletim da Associação Psicanalítica de Porto Alegre.

Semestral

ISSN 1516-9162

1. Psicanálise - Periódicos. I. Associação Psicanalítica de Porto Alegre

CDU 159.964.2(05)
CDD 616.891.7
Bibliotecária Responsável Luciane Alves Santini CRB 10/1837
Indexada na base de dados Index PSI – Indexador dos Periódicos Brasileiros na área de
Psicologia (http://www.bvs-psi.org.br/)
Versão eletrônica disponível no site www.appoa.com.br
Impressa em dezembro 2010. Tiragem 500 exemplares.
ESTRUTURAS CLÍNICAS
SUMÁRIO

EDITORIAL............................ 07 “Um gêmeo cheio de delírio” ...... 95


A twin full of delirium
TEXTOS Gerson Smiech Pinho
As quatro estruturas
fundamentais do sujeito: Uma história improvisada:
autismos, psicoses, sexo e morte escritos
neuroses e perversões ............... 09 em oficina ......................................... 104
The four fundamental
structures of the subject An improvised story:
Alfredo Jerusalinsky sex and death written in workshop
Marieta Luce Madeira, Paulo Gleich e
O traço do caso na clínica Simone M. Rickes
psicanalítica com crianças
e adolescentes ........................ 20 Boderline:
The case trait in the children nas bordas de quê? ...................... 115
and teenagers analysis Borderline: what border?
Leda Mariza Fischer Bernardino Eduardo Mendes Ribeiro
Adolescência virtual ..................... 29 ENTREVISTA
Virtual adolescence Estrutura é a
Daniel Paola da linguagem.................................. 126
Language’s structure
Dora ....................................................... 39 Alfredo Eidelsztein
Dora
Elaine Starosta Foguel RECORDAR, REPETIR,
ELABORAR
O que consome o adolescente .... 49
What the adolescent consumes
O pensamento estrutural:
Carmen Backes um modo de interpretar
o mundo ............................................... 133
Estruturas clínicas: The structural thought: a way of interpreting the world
questões preliminares .................... 70 Ione Bentz
Clinical structures: preliminary questions
Eda Estevanell Tavares, Maria Lucia VARIAÇÕES
Müller Stein e Otávio Augusto Winck Nunes Neurociências e psicanálise:
Quando o nome definindo discordâncias para
do pai não vem ............................... 79 construir o diálogo ...................... 145
When the name of the father doesn´t come Neuroscience and psychoanalysis: defining
Maria Ângela Bulhões disagreements to build a dialogue
Benilton Bezerra Jr
A psicose, seu tratamento,
seus limites ........................................ 87 Desabrigados da palavra ........... 160
Psychosis, it’s treatment, it’s limits Dislodged from the word
Adão Luiz Lopes da Costa Ieda Prates da Silva
EDITORIAL

O s mistérios da mente e sua capacidade de atormentar e até mesmo de


enlouquecer os homens têm sido objeto de interesse e estudo tão antigos
quanto a própria história humana. Da tentativa de extirpar a “pedra da loucura”,
na Idade Média, passando pelo inconsciente freudiano, até as atuais propostas
de interpretar e tratar os males psíquicos pela via orgânica, muitos caminhos
foram e são percorridos.
Do ponto de vista da psicanálise, a porta de entrada para o inconsciente
foi a histeria. Tratava-se, inicialmente, do específico da neurose. O trabalho com
o inconsciente levou Freud a formular outras questões a respeito das vias da
delimitação do psiquismo, passando por diferentes organizações neuróticas,
como a fobia e a neurose obsessiva, mas não se restringiu a elas.
Foi através do estudo do caso Schreber que Freud articulou grande parte
de suas proposições teóricas sobre o campo da psicose, especificamente a
paranoia, bem como aprofundou conceitos importantes, como o narcisismo,
extraindo dessa articulação consequências fundamentais para a prática psica-
nalítica.
Jacques Lacan retomou essa obra de Freud no seminário As psicoses ou
As estruturas freudianas das psicoses, de 1955-1956. Esse seminário foi profe-
rido por Lacan na gestação do estruturalismo na França, corrente de pensamen-
to que elegeu em vários momentos como interlocutor de questionamentos que
desejava transpor para a psicanálise.
No terreno específico das modalidades clínicas, ou estruturas clínicas,
como frequentemente chamamos, a influência estruturalista se faz presente,
seja pelo nome que porta, seja porque neurose, psicose e perversão possuem
7
EDITORIAL

cada uma delas, para além dos matizes e formas diferentes, um núcleo derivado
das relações com o Nome-do-Pai.
Mas hoje, será que referendaríamos a influência do estruturalismo? E, se
não, seria agora por influência de uma cultura que não se interessa mais pelo
que permanece? Ou por que o invariante da estrutura desmerece as muitas
mudanças que um sujeito é capaz de realizar, independente de sua estrutura
clínica? Ou ainda, a propalada mutabilidade e velocidade de nosso tempo influ-
enciam a noção de um psiquismo que muda, transforma-se? Os sintomas têm
mais relevância que a estrutura de fundo? O aparente importa mais que a causa
dele? Se sim, isso implica um fechamento para o inconsciente enquanto instân-
cia não aparente?
Seja onde procuremos possíveis influências da cultura atual, encontra-
mos referências à mutabilidade. Importa o que se desfaz, o que se transmuta, e
a concepção de sujeito moderno acompanha essa noção. Mas, e o sujeito da
psicanálise? Como consideramos a tensão entre o fixo e o cambiável? Como
incluir a noção de mutabilidade sem recair na imprecisão dos diagnósticos
fenomenológicos? Questões centrais do nosso trabalho, que permearão os tex-
tos publicados neste número da Revista da APPOA.

8
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 38, p. 9-19, jan./jun. 2010

AS QUATRO ESTRUTURAS
TEXTOS FUNDAMENTAIS DO SUJEITO:
autismos, psicoses,
neuroses e perversões1
Alfredo Jerusalinsky2

Resumo: O texto estabelece uma diferença de posicionamento entre o modelo


positivista e o modelo estruturalista. Discute, ainda, a influência do estruturalis-
mo na psicanálise e seu desdobramento na prática clínica.
Palavras-chave: estruturas clínicas, psicanálise, neurose, psicose, estrutura-
lismo.

THE FOUR FUNDAMENTAL STRUCTURES OF THE SUBJECT


AUTISMS, PSYCHOSES, NEUROSES AND PERVERSIONS

Abstract: The text establishes a difference of positioning between the positivistic


model and the structuralistic model. It also discusses the structuralistic influence
in psychoanalysis and its effects on the clinical practice.
Keywords: clinical structures, psychoanalysis, neurosis, psychosis,
structuralism.

1
Trabalho apresentado nas Jornadas Clínicas da APPOA, Estruturas Freudianas, realizadas
em Porto Algre, outubro de 2009.
2
Psicanalista; Membro da APPOA, do Núcleo de Estudos Sigmund Freud, do Centro Lydia
Coriat e da Association Lacaniènne International ; Doutor em Educação e Desenvolvimento
Humano (USP); Autor dos livros: Psicanálise do autismo (Porto Alegre: Artes Médicas, 1984),
Psicanálise e desenvolvimento infantil (2. ed. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1999), Seminário
I, Seminário II, Seminário III, Seminário IV e Seminário V (São Paulo: USP) e Saber falar:
como se adquire a língua? (Porto Alegre: Vozes, 2008). E-mail: jerusalf@uol.com.br
9
Alfredo Jerusalinsky

N ão me parece que tenha sido fruto do acaso a escolha da imagem utilizada


para simbolizar nossos trabalhos sobre a psicose nestas Jornadas. A ex-
tração da pedra da loucura3 , dentre todos os quadros que pintou Hieronymus
Bosch, é o mais realista, o menos simbólico em seu conteúdo: é uma cirurgia.
Curiosa seleção: deixou de fora as obras de Bosch que tematizam o delírio.
Suponho que essa seleção tenha se imposto devido ao peso com que o real,
como conceito de Lacan, irrompe na loucura. Significa dizer que o não casual
dessa seleção reside, precisamente, na questão de estrutura. Qualquer outra
de suas telas poderia simbolizar nossos trabalhos sobre a loucura; por exem-
plo, o tríptico, de Hieronymus Bosch, O jardim das delícias 4 , que aborda o
paraíso, o purgatório e o inferno. Não obstante, cabe observar, as estruturas
fundamentais ou as estruturas do inconsciente estão bem representadas pela
escolha feita.
Chama a atenção que, tão cedo, alguém testemunhe a estrutura do in-
consciente através de sua própria loucura e de seu próprio delírio tornado ima-
gem. Poderíamos dizer, para ser justo, que esse é o quadro mais científico de
Hieronymus Bosch. Talvez seja, precisamente, o menos delirante, o menos
representativo de seu inconsciente; ele pintou a realidade. Ponto que somos
obrigados a reconhecer a partir do que a psicanálise ensina sobre a loucura, a
saber, que ela é determinada ao redor de um eixo que tem a ver com o real.
Mas certamente não aderiríamos à ideia de que, extraindo-se uma pedra
do cérebro, a loucura acabaria; chame-se essa pedra de corpo estranho, ano-
malia anatômica ou substância bioquímica. Mais do que a ideia, talvez o quadro
ofereça a esperança, provavelmente a do próprio Hieronymus Bosch, de se ver
livre de sua angústia esquizofrênica, pois o pouco que sobrou de sua biografia
alude a uma possível esquizofrenia de crises periódicas. Esperança de se ver
livre de sua angústia siderativa; de que alguém retirasse de sua própria cabeça
isso que ele vivia como corpo estranho, irreal, invasivo. Tal como descrevem os
pacientes psicóticos, que dizem ter invasores que falam dentro de sua cabeça
ou de um corpo estranho em seu corpo; sensação que não lhes pertence e na
qual eles não se reconhecem.

3
Quadro de Bosch, pintado entre 1475 e 1480, pertencente ao acervo do Museu do Prado,
Madri, Espanha.
4
Quadro de Bosch, pintado entre 1504, pertencente ao acervo do Museu do Prado, Madri,
Espanha.
10
As quatro estruturas fundamentais...

Assim, com toda a desfaçatez e com toda a intenção proposital, eu pro-


nuncio a palavra “estrutura” de um modo marcante, porque reconheço nela a
arma mais formidável que o pensamento humano contemporâneo fabricou para
fazer frente ao positivismo cru e nu. Não obstante a amplitude dos critérios de
pensamento que o estruturalismo ofereceu, a partir do seu nascimento, e a
diversidade interpretativa que sobre a estrutura pode ser feita, o estruturalismo
permitiu que, em parte, o positivismo viesse repousar também na sombra de
sua própria estrutura, na sombra da metodologia que o estruturalismo ofereceu.
Estrutura é a arma mais formidável para desligar pensamento e razão. De
um lado, o finalismo idealista; de outro, seu materialismo ingênuo, que oferece
um campo de pensamento. Dessa forma, a dedução da verdade ocorre a partir
do campo das ideias, precisamente para que a dedução da verdade permita ao
humano uma autonomia de reflexão que abranja toda a extensão e todas as
formas mais heterogêneas do discurso, e não do objeto ou da palavra divina.
Nunca, na história da humanidade, havia se desenvolvido um método tal, muito
embora fosse sonhado por Descartes.
Descartes, confessa, sonhou sua metodologia. Ele teve três sonhos, na
noite do dia 10 para 11 de novembro de 1619: sonhou a ideia de um método
universal para encontrar a verdade textual. A resposta estava nos seus sonhos;
como vira positivista depois, ninguém sabe (como confiava nos seus sonhos,
muito positivista não era!). Ele teve que produzir três sonhos, porque o princípio
do método cartesiano é a composição de três – seguramente teve que sonhar
um de cada vez; não podia sonhá-los misturados. Digamos que Descartes so-
nhou o estruturalismo; essa é a minha interpretação, um pouco arriscada. Ou
seja, um método que lhe permitisse deduzir em sonhos, por meio de ideias, a
verdade.
O estruturalismo enfrentou suas vicissitudes. E não poderia ser de outro
modo. Uma disciplina que tão vigorosamente entra no século XX na polêmica
sobre o pensamento, colocando em questão os critérios de verdade que até
então vinham se formulando, não poderia deixar de sofrer atribulações e, ainda,
dada a sua riqueza, tentativas de captura. É por isso que o estruturalismo adqui-
re variantes, que vão desde as estruturas mais abertas e flexíveis, nas quais
cabe a análise dedutiva de qualquer forma de pensamento, até as formas mais
fechadas, que reduzem o estruturalismo a um método unívoco, ou seja, um
método limitado. Uma das variantes é a popperiana, método crítico e científico
de 1932, que captura o estruturalismo dentro de um território unívoco. Com
Popper, o sonho de Descartes se realiza através de um método capaz de, por si
só, garantir a verdade; sem nenhuma abertura, sem nenhuma variação.
A palavra “estrutura” já havia sido usada por Freud. Em Lacan, a encon-
tramos do início ao fim de sua obra, mais especificamente nos Seminários O
11
Alfredo Jerusalinsky

sintoma ([1975-1976] 2008), L´insu ([1976-1977] 1998) e A topologia e o tempo


([1978-1979] inédito). Então, se ele deixou de ser estruturalista, temos que
perguntarmo-nos como o estruturalismo de Lacan se modificou, porque certa-
mente, num sentido total, não desapareceu. Lacan não renunciou, pelo menos
no essencial, ao que o estruturalismo ofereceu: deduzir a verdade das ideias.
Poderíamos dizer o mesmo de inúmeros cientistas sociais e de inúmeras ver-
tentes do campo das ciências, a linguística, por exemplo; o estruturalismo deu
como fruto um Peter Gay, um Lévi-Strauss e, curiosamente, do lado do pensa-
mento americano, também, Donald Campbell, por exemplo.
O curioso e maravilhoso livro de Michael Crichton (2008), Devoradores de
mortos, é uma reconstrução da vida dos vikings e dos povos nórdicos, que
segue o método historiográfico estruturalista, a partir da carta de um embaixa-
dor árabe, Ahmad Ibn Fadlan, do ano 922 de nossa era. Michael Crichton, na
ciência, é um homem de muito prestígio, pois é antropólogo, além de autor do
roteiro de O parque dos dinossauros (2009). Então, devo dizer que vale a pena
não exercer, contra ele, nenhum preconceito, já que, em todo caso, O parque
dos dinossauros é, estruturalisticamente falando, uma boa dedução; é aí que
reside o interesse desse livro. Ele recolhe um documento histórico muito valio-
so; seu trabalho é ímpar. Por ele, fica-se sabendo que a moral sexual nem
sempre foi a mesma.
Como nosso tema é o modo como a psicanálise se vale do conceito de
estrutura – a vertente aberta e não unívoca, em contrapartida à de estrutura
fechada –, vou me permitir um pequeno comentário sobre a moral. A moral é um
território que, pela variabilidade histórica e pessoal, de família em família, de
sujeito em sujeito, é conceito de difícil leitura científica, pois é colocado forte-
mente à prova pela extrema variabilidade de verdades morais que se supõem
eternas ou que sempre foram assim, mas que se demonstram, rapidamente,
como mutáveis. Basta escutar com atenção a moral de cada um de nossos
pacientes para perceber as variantes. Claro, quando se encontra com variabili-
dades em macro, ou seja, em alta dimensão de diversidade e de divergência,
isso parece notável. Por exemplo, nos povos nórdicos não se concebia a ques-
tão da fidelidade tal como em outros povos e tempos. O embaixador árabe que
foi capturado pelos vikings foi obrigado a ser um soldado viking durante quatro
anos, o que não era fácil, muito menos para um árabe. Ele relata surpreso:
quando um guerreiro volta para a aldeia (eram povos quase nômades) e ele
encontra sua mulher transando com outro, não fica indignado. Então, pergunta:
– “Por quê?” O guerreiro responde: – “Minha mulher estava com outro, pois eu
não estava aqui; se eu estivesse, ficaria brabo, mas como eu não estava aqui...”
– “Mas como, ela não é sua esposa?” – “Sim, é minha esposa, mas eu não
estive durante quatro anos aqui e ela não está morta, está viva. Além do mais,
12
As quatro estruturas fundamentais...

ela não sabia se eu estava vivo ou morto”. Portanto, conclui o embaixador árabe:
“Esses vikings não sabem o que é a moral”. Qualquer pensamento
fenomenológico aderiria facilmente à conclusão do embaixador árabe, mas um
pensamento estruturalista se perguntaria em que consiste a moral dos vikings.
Assinalo, com isso, que os parâmetros de comportamento não são de-
monstrativos de quase nada. Não digo nada, mas quase nada, porque eles
precisam ser confrontados com o tecido significante, o tecido simbólico, para
serem lidos. O comportamento é letras entre os humanos; e, para se ler uma
letra, precisa-se saber em que estrutura ela funciona; não somente a que histó-
ria pertence – o que implica uma série –, mas também em que estrutura ou em
que lógica ela funciona. Falar de estrutura é falar da lógica. Falar da lógica
implica em como se transmite a verdade. Quais são os princípios que permitem
afirmar que algo que seja verdadeiro em certo tecido significante permaneça
como verdadeiro no tecido seguinte? O tecido se transforma, mas a lógica
ordenadora do critério de verdade permanece. Em psicanálise, isso chama-se
filiação.
A filiação é o que permite a continuidade do simbólico, independentemen-
te da mudança da figura, quer dizer, independentemente da mudança da moral,
da moda, do aspecto e do comportamento. É assim que alguém pode se reco-
nhecer e ser reconhecido como filho, apesar de o pai ser careca e o filho, punk ,
usar um corte moicano e quatro piercings, três tatuagens, das quais o pai tem
horror. O que não impede que ele seja reconhecido como filho, e se reconheça
como filho porque há um traço que sustenta a continuidade simbólica.
O que quer dizer a continuidade simbólica? Não quer dizer a continuidade
moral. Não quer dizer a continuidade da figura. Significa a continuidade, perma-
nência, ou persistência de uma lei que obriga o sujeito a certas formas de proce-
der para produzir um reconhecimento de valor recíproco. Significa que o sujeito
é capaz de produzir uma operação cuja resultante seja reconhecível pela gera-
ção anterior como algo de valor simbólico, de valor representativo da cultura na
qual ambas as gerações trabalham. Significa que aquilo que o filho faz seja pas-
sível de ser reconhecido pelo pai como algo que assegura a continuidade histórica
de sua estirpe, a continuidade dos valores essenciais que estavam em jogo, que
não são de ordem moral. O filho pode obedecer, ou não, aos modos que legitimam
o reconhecimento, por exemplo, transar com uma mulher, ou transar com um
homem; mas, apesar de não obedecer a esses princípios, ele inscreve seu ato no
julgamento da geração anterior e aceita ser reconhecido ou rejeitado em função
de seu ato. Quer dizer que seu ato não é rompimento, não é ataque à ordem
simbólica anterior; é um novo modo de demandar reconhecimento.
Tropeçamos com adolescentes, atualmente, em posições extremas de
aparente rompimento com a geração anterior, como, por exemplo, cabelo moicano,
13
Alfredo Jerusalinsky

skinheads, tatuagens no corpo todo, penduricalhos por todos os lados, piercings


na ponta da língua... Submetem-se a processos dolorosos, oferecendo um espe-
táculo de horror para a geração anterior e, também, de estranhamento. Ou seja, a
geração atual não permite que a geração anterior se espelhe nos seus filhos.
A potência paterna, durante o processo migratório e a busca de autono-
mia do homem moderno, repousou, em parte, em assegurar que o filho fosse
um continuador da própria profissão do pai. Para um advogado pai, um advogado
filho; para um médico pai, um médico filho; para um agricultor pai, um agricultor
filho, etc. Esse espelhamento de reconhecimento pela via do imaginário foi recu-
sado progressivamente pelas gerações que advieram no pós-guerras.
Os adolescentes disseram: – “Não queremos ser iguais a vocês, quere-
mos ser diferentes; precisamos de modos de reconhecimento da continuidade
simbólica que não repousem no mimetismo”. O que os colocou na borda da
loucura, borda do não reconhecimento recíproco da continuidade simbólica, pois
rompeu o suporte imaginário dessa continuidade, como por exemplo, se vestir
igual ao pai. E esse rompimento, na verdade, é uma forma de negativa. Para
quem se propõe a uma continuidade simbólica que não repouse no mimetismo,
é evidente que é uma perda de tempo aprender a ser ou a se vestir igual. Temos
que nos perguntar se esse rompimento do mimetismo, essa quebra do espelho
que os adolescentes e os jovens provocam, é um ataque contra a continuidade
simbólica ou não.
O estruturalismo nos fornece instrumentos para fazermos essa pergunta
e não repousar nem no positivismo do objeto que está em questão – piercing ou
não piercing, corpo ou não corpo – e, também, não ter que responder pela
fenomenologia da continuidade imaginária.
Perguntar sobre a continuidade da significação é perguntar se, apesar de
recusar o mimetismo, a nova geração continua ou não fazendo história. Ela
pertence à história dessa civilização, embora seu modo de operar seja diferen-
te? Reconhecemo-nos em nossos pacientes psicóticos ou em nossos pacien-
tes que estão em quadros de borda? Sem dúvida a presença desse hiato, dessa
“hiância” discursiva, a tematização dos nossos pacientes psicóticos no seu
delírio alude incessantemente a esse rompimento geracional. Nós podemos ler
isso de um modo histórico ou anistórico. Lacan vacilou incessantemente entre
um modo e outro de leitura, o modo histórico e o modo anistórico. Essa
pendulação será frutífera, se não se pretender tomar apenas um dos ângulos do
pêndulo e resumir-se ou constranger-se a esse único ângulo, ou bem o históri-
co, ou bem o estruturalista puro, o qual provoca um isolamento de qualquer
condição histórica.
Uma forma de ler a ameaça de rompimento, o retorno do delírio psicótico
do rompimento geracional que ameaça a continuidade simbólica é, por exem-
14
As quatro estruturas fundamentais...

plo, lê-lo a partir do ângulo de quando um pai esmorece, ou a função paterna


esmorece. Temos aí o risco de rompimento da continuidade simbólica, que faria
ir ao encontro de todo o psicótico para vasculhar como a função simbólica caiu.
Seria um método possível.
Outro, talvez, seja o preferido pela antipsiquiatria quando do encontro
com o lacanismo, momentos em que se fizeram congressos e debates conjun-
tamente. O ponto em que a antipsiquiatria tornou-se permeável à intervenção do
psicanalista no campo hospitalar, na leitura da loucura, vai indagar as vicissitu-
des que, no discurso social, tem a posição paterna. A posição paterna e não a
função. Entre a posição e a função, Lacan oscilou; o que torna difícil, para ele,
deixar claro o conceito de pai, pois ora é uma função, ora é uma figura histórica.
E devo dizer que a minha experiência clínica me recomenda fazer uma miscelâ-
nea entre as duas.
Na minha concepção estruturalista, não alcanço, em termos de estrutu-
ra, fazer mais do que uma miscelânea, ou seja, uma intersecção. Não saberia
como estabelecer um método para uni-las porque, embora continue trabalhando
na tentativa de articulá-las – vai exigir meus próximos 40 anos de vida –, me
desculpo (ou não me culpo?) por não sabê-las, porque inclusive Lacan não sa-
bia como articulá-las; por isso ele oscila entre uma e outra.
No seminário L´insu que sait de l´une-bévue s´aile à mourre ([1976-1977]
1998), Lacan disse que a psicanálise é uma religião moderna, justamente por-
que tem o que o idealismo sempre teve, que é deduzir a verdade das ideias.
Afirmação lacaniana que não aprecio nem um pouco, pois se alinha à concep-
ção de uma dedução pura das ideias, de como ter fé na estrutura. Ideia. Posi-
ção, a qual ele tentou recusar, pelo menos a partir do seminário Os quatro
conceitos fundamentais da psicanálise (Lacan, [1964] 1985). Então, ter mais fé
na estrutura do que na história, ou ter mais fé na história do que na estrutura,
conduz, provavelmente, aos mesmos equívocos.
Assim, ao cancelar qualquer interrogação sobre a loucura, reduzindo-a a
um mecanismo bioquímico, pode parecer ser a grande solução. Porque o desa-
fio que os neuroquímicos colocam para a psicanálise pode nos levar a essa
indagação e a essa solução. O que representaria uma oscilação entre a respos-
ta racionalista e idealista, de um lado, e do outro, ao racionalismo científico cuja
materialidade cambaleia, porque a história, de qualquer forma, precisa de uma
interpretação, não são os fatos que a causam.
A versão mais científica de Lacan tem o pai como causa. O pai da estru-
tura, em termos de estrutura lógica da função, ou o pai da história? Não há
possibilidade de manifestação do pai da estrutura sem o pai da história, e su-
põe-se que algo de verdade a questão da estrutura contenha. A história é legível
somente em termos de estrutura. Essa é a tautologia lacaniana. A história de-
15
Alfredo Jerusalinsky

monstra a sua verdade na estrutura, na leitura estrutural; a estrutura demonstra


a sua verdade na história. Evidentemente, isso faz uma elipse evitando o corpo,
por isso podemos encontrar Lacan dizendo: ”O corpo não tem importância ne-
nhuma”. O que também nos coloca numa posição complicada, porque não sa-
bemos a importância que tem o corpo na loucura; não somente do ponto de
vista bioquímico, genético e neurológico, mas, também, enquanto corpo real.
A esse respeito, vou me permitir, com a devida permissão de sua autora,
citar brevemente um caso clínico que foi trazido por uma jovem analista, pois ele
é exemplar no tocante à questão das formas da loucura. Trata-se de uma jovem
de 14 anos, com síndrome de Down, que, quando chegou ao tratamento – um
par de anos atrás –, engatinhava como um animal, tirava suas roupas, colocava
seu dedo na vagina, chupava seu dedo, cheirava suas próprias fezes, se arra-
nhava, batia a sua cabeça contra a parede, se auto-agredia ostensivamente,
especialmente, e quase exclusivamente, na frente da mãe; bastava o olhar ma-
terno para provocar essas manifestações. Após todos esses atos, imediata-
mente fazia um pequeníssimo intervalo para olhar a reação das pessoas à volta,
o que denotava o caráter provocativo desses atos, e então largava uma gargalha-
da. Digamos que é bem parecido ao que os casos históricos de perversão nos
mostram.
O livrodeElisabethRoudinesco(2008) A,parte obscura de nós mesmos,
leitura recomendável para analistas, contém relatos de personagens históricos
que produzem esse tipo de comportamento, seja em acessos místicos, seja
em acessos de criminalidade, porque estão complementados com assassina-
tos, atuações perversas, sádicas, etc.
A menina em questão – jovem evidentemente psicótica com um quadro
esquizofrênico, sem capacidade de simbolização em função de sua estrutura
psíquica – dirige seus atos a alguém; quer dizer, a significação de seus atos não
é zero. Ela provoca. E a analista, com toda perspicácia, percebe a fantasmática
que está em jogo aí, percebe como o pai e a mãe estão implicados nessa
fantasmática mínima elementar, que está totalmente colada ao corpo. Apesar
de não haver nenhum relato possível, nenhum tecido simbólico que se distancie
do corpo, essa menina, em função da compreensão da significação mínima de
seus atos, oferecida pela analista, vai abrindo um espaço de fala e, dois anos
depois, começa a falar, e não produz mais nenhum desses atos.
Nada foi mudado em termos neuroquímicos; apenas foi mudada a posi-
ção de escuta, na qual o corpo muda completamente de posição. A menina,
hoje, continua sendo psicótica, porque a sua posição é completamente infantil,
não há nenhuma representação do sujeito no discurso social, a não ser sob a
forma de um sujeito completamente infantil, e no real; mesmo que ela se identi-
fique com alguma personagem de ficção – por exemplo, a princesa das histórias
16
As quatro estruturas fundamentais...

infantis, e especialmente Fiona, de Shrek , o monstro repulsivo. O que muda é


que agora, em lugar de ela atuar, a personagem passa a ser um campo de
relato: ela é a Fiona. É alguém que pode se distanciar simbolicamente de seu
corpo, tanto que a sua feiúra, representada como excrescência no olhar da
mãe, pode ser desvinculada da posição simbólica em que ela se representa. É
uma Fiona. E ela é psicótica.
Mas é evidente que a psicose de dois anos atrás não é a mesma psicose
de hoje. Então, o que mudou? Mudou a filiação pela qual a menina se reconhe-
cia – o traço de reconhecimento estava ligado à condição de excrescência do
corpo, de um corpo amaldiçoado – e que a obrigava a ligar a fantasmática, seu
fantasma, ao corpo. Uma escuta gera uma suplência – não gera uma metáfora
paterna, tomando-se ao pai como causa – no campo da linguagem que lhe
permite falar desse corpo sem sê-lo, e construir uma história em que ela é a
heroína, a personagem. Mesmo um romance, no qual seu corpo não é o que
determina a filiação. O problema de nossa colega analista é que a menina fez
filiação no olhar dela; com isso, nossa colega vai ter que viver muitos anos
sustentando esse olhar, até que seja possível que essa menina se aproprie
desse traço filiatório.
Não sei se isso pode ser chamado de função paterna, é uma função; não
sei se merece ou não o nome de pai. Se tomarmos o lado histórico dessa
menina, posso dizer que foi uma recusa ao pai e à mãe o que essa menina
conseguiu. Seu pai padece de um delírio erotomaníaco, no qual o corpo está
sempre em destaque; não é só um delírio, mas uma atuação erotomaníaca, ele
é um ninfomaníaco. De todo modo, do lado histórico, a menina teve que fazer
recusa das figuras parentais; é por ter “forcluído” o pai e a mãe que a suplência
da análise se tornou possível, pois se a menina continuasse ligada a esse traço
filiatório estaria frita, estaria, ainda, rastejando como um animal.
As vicissitudes da psicose e das perversões nos confrontam com os
limites de nossa teorização, ora por nos lançarem no lado da historicidade, ora
no lado da função. A estrutura pode servir para ler ambas as coisas, mas nor-
malmente ela tem se alinhado mais à função e pouco à história. Podemos dizer
que fica mais cômodo, porque, no lado da função, vira método; e, quando temos
um método capaz de nos aproximar da verdade, ficamos mais cômodos, porque
nós nos encostamos a ele, e tendemos a ler sempre do mesmo modo. Quando,
na verdade, a psicanálise é justamente o cancelamento do método, não da
estrutura, mas, sim, do método.
O que é um analista? O que forma um analista? A psicanálise forma em
cada um o cancelamento do método unívoco de leitura e o capacita ou coloca
em condições de fazer a leitura do que ele pode fazer, segundo o que ele lê do
romance da vida de seu paciente. Não dá para medir o quanto de analista se
17
Alfredo Jerusalinsky

formou em alguém através de teste do quão rigoroso é o método que ele aplica.
Se fosse assim, teríamos um método uniforme, a ser aplicado para todo e qual-
quer paciente. E o analista é justamente aquele que permite que a transferência
o atravesse e faça dele uma folha ao vento, ou seja, o arraste para o lado e os
extremos, para as alturas e os infernos, que ele é capaz de suportar sem perder
a capacidade de interpretar, de ler, de transformar isso em texto.
Se me perguntam se eu sou o mesmo analista para todos os meus paci-
entes, tenho que responder que não, porque se eu fosse não seria analista.
Descartes sonhou um método que garantisse a verdade; a psicanálise está no
avesso desse sonho. Quando se trata da loucura, vemos isso operar in extremis,
quer dizer, na queda de qualquer possibilidade de ler com um método uniforme.
Já na neurose há uniformidade. Qualquer tentativa de uniformizar a leitura, ou de
fazer uma nosografia ou uma taxonomia para uniformizar a leitura, nos levaria ao
fracasso da compreensão da psicose. Podemos, por métodos bioquímicos e
neuroquímicos, reduzir a expressão sintomática, mas certamente não conse-
guiríamos que o fantasma se desligasse do corpo, que é a cura que podemos
tentar.
Assim, para que o fantasma se desligue do corpo – como no exemplo da
paciente acima – implica fazer a leitura do que os seus traços corporais, mani-
festados na loucura, significam, e não o que significam universalmente. Por
isso, toda a tentativa de classificação está na contramão da psicanálise, ou
seja, a psicanálise e o DSM-IV não combinam. Da mesma forma, as classifica-
ções sexológicas da primeira metade do séc. XX, que são taxonômicas, ou
seja, por traços de comportamento, também não combinam.
A psicanálise é aprender a ler. Nossos professores de primeiro grau, que
nos ensinaram as letras, não nos deram instruções a respeito de quais livros ler,
nem como interpretá-los, nem como deveríamos lê-los. Nós, que transmitimos a
psicanálise, apenas somos capazes (e ainda bem!) de transmitir as letras míni-
mas. Ou seja, uma capacidade de leitura que em cada um tem um limite. É
verdade que há um limite mínimo, há um piso inferior necessário, quer dizer, não
dá para ser analista e analfabeto. Só isso.

REFERÊNCIAS:
CRICHTON, Michael. Devoradores de mortos. Porto Alegre: L&PM Editores, 2008.
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18
As quatro estruturas fundamentais...

ção não comercial da Associação Lacaniana Internacional, 1998.


ROUDINESCO, Elisabeth. A parte obscura de nós mesmos. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 2008.

Recebido em 10/11/2009
Aceito em 05/01/2010
Revisado por Otávio Augusto Winck Nunes

19
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 38, p. 20-28, jan./jun. 2010

O TRAÇO DO CASO NA
TEXTOS CLÍNICA PSICANALÍTICA
COM CRIANÇAS E
ADOLESCENTES1
Leda Mariza Fischer Bernardino2

Resumo: Discute-se neste trabalho o destacamento do “traço do caso” como


estratégia para pensar a clínica, especialmente na análise de crianças e adoles-
centes. Conclui-se que o trabalho em torno do “traço do caso”, ao transformar o
produto da escuta analítica em texto, pode permitir o surgimento da letra, convo-
car uma operação de leitura e trazer efeitos interessantes para a direção do
tratamento.
Palavras-chave: traço do caso, letra, identificação, clínica psicanalítica.

THE CASE TRAIT IN THE CHILDREN AND TEENAGERS ANALYSIS

Abstract: This paper discusses the relief of the “case trait” like a strategy to
think about the clinic practice, especially in the children and teenagers analysis.
The conclusion points the interest of the “case trait” to the conduction of the
treatment, because it brings the possibility of appearance of the letter and a
reading operation of the clinic.
Keywords: case-trait, letter, identification, psychoanalytic clinic.

1
Trabalho apresentado nas Jornadas Clínicas da APPOA: Estruturas Freudianas , realizadas
em Porto Alegre, outubro de 2009.
2
Psicanalista; Analista-Membro da Associação Psicanalítica de Curitiba e da Association
Lacanienne Internationale; Professora titular da PUCPR; Pós-Doutora em Tratamento e Preven-
ção Psicológica pela Université de Paris 7 (bolsa CAPES). E-mail: ledber@terra.com.br
20
O traço do caso na clínica...

D iante do reducionismo e do empobrecimento galopantes da clínica, que


atualmente impera na prática da psicopatologia dita “geral” – através da
adoção e do uso indiscriminado de manuais descritivos e estatísticos dos cha-
mados “transtornos mentais” – alguns psicanalistas franceses (Melman, Czermak,
Thibierge, 2008), atuantes no campo da psiquiatria, com sólidos estudos da
psicopatologia tal qual foi construída classicamente, com bases psicanalíticas,
encontraram uma forma de resgatar o raciocínio clínico e a riqueza da formação
psicanalítica através do conceito de “fato clínico”.

O que é o fato clínico?


Para Charles Melman (2008), o fato clínico fundamental é o destacamen-
to de um traço. Haveria, nos casos clínicos, algo que faria “um”, que possibilita-
ria identificar sua especificidade. Isso abre caminho para um tipo especial de
reunião clínica, que promove discussões em torno do “traço do caso”.
Pretendemos discutir, neste trabalho, a importância desse recurso, tanto
para a formação do psicanalista quanto para a condução psicanalítica do trata-
mento, a fim de enfatizar, na sequência, a particularidade desse recurso na
análise de crianças e adolescentes.
Para tal, somos conduzidos à questão propriamente psicanalítica do que
dá lugar ao único, ao singular de cada paciente, ponto que remete à concepção
psicanalítica de um aparelho psíquico que deve se construir para cada um, a
partir de sua história, conforme Freud ([1923]1972) propôs. Para Lacan ([1961-
1962] s/d), isso implica o processo necessário para o surgimento do sujeito e
sua relação com o traço que o funda, ou seja, o conceito de traço unário. Pas-
semos, então, a discutir esses elementos.

Lacan e os conceitos de sujeito e de traço


Para Lacan ([1964]1979), o sujeito se institui em sua singularidade após
sua inserção na linguagem, o que se dá na relação com um outro, semelhante
privilegiado, que representará para ele esse campo, dito do Outro, tesouro de
significantes. O sujeito surgirá desse banho de significantes e conjunto de sig-
nificações, após um tempo necessário de alienação a esses saberes e um não
menos necessário tempo de separação dos mesmos. Dessas operações psí-
quicas – alienação-separação – surgirá um sujeito, dividido entre o que ficou
escrito e recalcado desse encontro com seus outros e o que pensa consciente-
mente saber de si. Lacan ([1964]1979) situa o sujeito nessa divisão, entre os
significantes que o representam: um S 1, que o insere em uma série significante,
e um S2, que traz um saber perdido (inconsciente) sobre ele.
Mas como, com tal história, o sujeito pode se considerar como um, úni-
co, singular, e reconhecer-se como tal? É a questão levantada por Charles Melman:
21
Leda Mariza Fischer Bernardino

O que é que faz com que nós mantenhamos ou sejamos manti-


dos por essa permanência estranha, que quase nos garante que
somos, aproximadamente, os mesmos ao longo de todo esse
percurso da existência? (Melman, 2009, p. 331).

Lacan ([1961-1962] s/d) concebeu, a partir de sua leitura do texto freudiano,


o conceito de traço para definir essa marca identificatória, necessária para o
sujeito poder se reconhecer no campo simbólico. Chamou-o então de “unário”,
por sua função de permitir a alguém contar-se como “um”, diferente dos outros.
Em 1961-1962, no Seminário IX – a identificação, Lacan resgata o einziger
Zug, o “traço único” freudiano e transforma-o em importante conceito de sua
teoria:

Nestes elementos de informação significante, a originalidade que


traz o traço, digamos, a serialidade que ele comporta, traço tam-
bém de discrição, de corte, o que Saussure não articulou melhor
senão dizendo que, o que os caracteriza é ser o que os outros
não são (Lacan, [1961-1962] s/d, p.26).

Este traço, curiosamente, é proposto como a diferença que se instala na


repetição, caracterizando a identidade não por uma suposta igualdade, mas
justamente pela diferença que se repete através da sutileza de um traço, que
reaparece em um novo contexto, ou com nova roupagem. Comporta, então: a
originalidade, nos dois sentidos, de origem e de novidade; a serialidade: o sujei-
to faz parte de uma série que o precede, dos humanos, ao mesmo tempo em
que se iniciam, com esse traço, as demais marcas; e o corte, de separação e
de divisão, desse grupo que de certa forma o constitui.
Por isso, contra o “um” da totalidade, propõe o um como o traço destaca-
do por Freud ([1921] 1972) e enfatizado por ele:

Este traço único, este einziger Zug [...] poderia substituir todos
os elementos do que constitui a cadeia significante, suportá-la,
ele sozinho, pura e simplesmente por ser sempre o mesmo (Lacan,
[1961-1962] s/d, p. 32).

O traço é, em suma, a repetição de uma diferença que justifica o


surgimento de “um”, um significante que se destaca dentre todos os outros: S1,
o enxame que dá início à série significante. Entretanto, longe de ser o que
unifica, é justamente o que confronta o sujeito com o preço de sua identificação
enquanto falante – sua divisão, sua incompletude –, como já assinalava Lacan:
22
O traço do caso na clínica...

Se o traço é pura diferença, a identificação não é unificação, mas


fissura. Ele introduz uma diferença no real que apaga a coisa, a
única identificação possível é o eclipse do sujeito entre os
significantes (Lacan, [1961-1962] s/d, p.92).

Assim, não seria conveniente traduzi-lo como “único”, mas, sim, como
“unário”. Situar o traço é encontrar, nos diferentes pontos de repetição de um
sujeito, o que marca sua singularidade, relacionada certamente com sua estru-
tura clínica e com seus sintomas, mas peculiares a ele. Se compararmos com
a lógica do DSM IV, por exemplo, que segue uma direção exatamente oposta, o
quadro clínico no qual o paciente pode ser situado vai inseri-lo em um grupo que
apresenta sintomas comuns – ali ele encontraria sua “identidade”, que só pode-
ria ser imaginária.
Se retomarmos a história do movimento psicanalítico, vemos que Freud
([1914]1974) fez esse empreendimento, desde seus encontros com Charcot:
ele isolou um traço que se repetia na clínica, o sexual. Ao realçar este traço, ao
identificá-lo, ele inaugurou a clínica psicanalítica.
Tomando seu exemplo fundador, podemos dizer que o traço é o fato clíni-
co fundamental, básico, porque ele inicia a clínica. Algo que é destacado, que
aponta um enigma cifrado, que convida a uma leitura. É o estatuto de sintoma:
um fato enigmático, que convida o clínico a trabalhar.
Dessa forma, em psicanálise, tomamos o sintoma não como indicativo
de um “transtorno”, mas como fato clínico: algo que pede uma leitura, uma
interpretação no sentido de deciframento, de uma produção única por parte do
sujeito.
Fazemos então a hipótese, a partir desse fato clínico fundamental, de
que o fato deve ser articulado. É o que Freud descobre, diz Thibierge: “o corpo é
marcado por um traço que faz interpretação de um desejo, de um gozo sexual”
(Thibierge, 2008, comunicação oral). E isso só se tornou um fato clínico porque
Freud o identificou – ele o chamou de “formação do inconsciente”. É um fato
clínico porque foi um “achado” que, ao fazer limite ao saber, pedia uma leitura,
uma interpretação.
Para Thibierge, Lacan nos mostrou que o sintoma é o que faz parar o
gozo, porque traduz uma interpretação desse gozo. Se não há essa redução, o
gozo é ilegível. A redução fálica faz do sintoma o traço de um gozo selvagem,
mas interpretável. Trata-se de um traço que se liga ao corpo e o alça ao simbó-
lico, detendo o gozo orgânico ilimitado – em alguns casos ele se apresenta
como sintoma, apelo ao outro, e pede interpretação. A leitura permitirá identifi-
car as marcas singulares do sujeito que sintomatiza, o trabalho psicanalítico
permite esse desdobramento.
23
Leda Mariza Fischer Bernardino

Para Thibierge, “o traço é um significante, uma marca para o outro. É um


ponto de referência para o significante” (Thibierge, 2008, comunicação oral).
Este autor destaca a questão da identificação: “desde que o escrevo, este traço
me coloca diante da questão: o que é que identifica este traço? Como vou lê-lo?
A maneira como vou lê-lo vai decidir sobre sua identificação”(id., ibid., comuni-
cação oral).
Na clínica, essa leitura pode ser feita de várias formas. Thibierge se per-
gunta: por que privilegiar a leitura psicanalítica, em detrimento da leitura dita
“científica”? Ele responde: a ciência trata o traço como o 1 da matemática, faz a
partir daí uma afirmação universal, que se refere ao homem genérico. O traço
marca uma diferença, segundo a qual 1 é diferente de 1, diz a psicanálise,
portanto, a “identidade” é impossível. O que traz dificuldades: se é algo singular,
o que quer dizer? Aí entra o clínico, aquele que vai tentar dizer algo sobre o real,
a partir de suas investigações.
Logo, o traço é algo a partir do qual vai girar a questão da identificação,
que é diferente do que a ciência propõe em torno do conceito de identidade.
Atualmente, tenta-se promover um movimento rumo à busca da identidade, que
estaria relacionado com a dificuldade de precisar o conceito de identificação.
Essa reivindicação de identidade é um sintoma de nossa época, ligado à busca
de reconhecimento, tendo em vista a falência das instâncias simbólicas, que
tradicionalmente referendavam as identificações. Na contemporaneidade, as
referências imaginárias tomam a dianteira.
O traço, por sua vez, é o suporte do Eu, sujeito do inconsciente, que é
sempre uma divisão e uma abstração evanescente, surge justamente no corte
que o supõe separado, condição para ser falante e desejante. Esse sujeito que
fala de modo verdadeiro e legítimo, que deseja, a partir de uma existência sim-
bólica e pulsional, é cada vez mais convocado a se calar.

A estratégia clínica do traço do caso


A proposta de Marcel Czermak é “tornar o caso falante”. Ele se indaga:
“como se fabrica este enigma do que é um fato clínico?” (Czermak, 2008, p.92).
Segundo ele, depende do método e da transferência O método psicanalítico,
como sabemos, é o da associação livre, esse convite para falar “livremente”. A
transferência é o que instala o ouvinte em um lugar privilegiado de escuta e de
intervenção, um endereçamento possível para essa fala.
Santurenne explica como se pode trabalhar com esse exercício do des-
taque do “traço do caso” que faz enigma:

Cada um vai ter que ocupar um lugar inédito, com uma distância,
em relação à fala inaugural do paciente, na intenção de destacar
24
O traço do caso na clínica...

nela o fato clínico, isto é, o realce de uma afirmação, sua surpre-


sa, sua retomada em um trabalho lógico, no reaparecimento, na
iteração do que só se encontra uma vez descoberto” (Santurenne,
2008, p.13).

Ele destaca três etapas no processo, comparando com o trabalho do


fotógrafo: na primeira etapa, a questão clínica é postulada – “introduz a
instantaneidade da interlocução entre o vivo da fala do paciente e o interlocutor
atento” (id., ibid., p. 14) [o momento de tirar a foto]; na segunda, ocorre a trans-
crição e o trabalho de leitura que se segue [em que pode se “revelar” o traço do
caso]; a terceira, finalmente, com o momento da discussão, traria

(...) o acabamento do instantâneo, a aposta que se faz no “fato


clínico”- artifício elaborado para nos convidar a uma nova apreen-
são ou a uma des-apreensão, a partir do inédito, para estabelecer
um fato clínico que escapa um pouco da operação habitual do
trabalho teórico (Santurenne, 2008, p. 14).

No terceiro tempo chegamos ao “fato clínico”, em um processo espiral –


a descoberta do “traço do caso” cria um novo “fato clínico”, diferente do inicial,
trata-se de uma redescoberta do paciente.

O traço do caso na clínica com crianças e adolescentes


Finalmente, podemos agora abordar nossa questão. Considerando-se que
a especificidade da clínica psicanalítica com crianças e adolescentes reside na
escuta de sujeitos ainda em processo de constituição da subjetividade; que o
discurso em torno do fato clínico é muitas vezes plural – tem a palavra do sujei-
to, mas também a dos pais, às vezes até dos professores ou outros integrantes
do campo social que o encaminham; ou ainda, que o discurso não necessaria-
mente vai ser verbal. O dispositivo do destacamento do traço do caso seria
operável nessa clínica?
A experiência nos ensina que o traço, na clínica de crianças, relaciona-se
com o lugar apontado pelos pais, em seu discurso, para cada um dos filhos.
Além disso, é necessário identificar qual lugar a mãe dá ao pai e, a partir daí,
qual lugar cada filho passa a ter.
Assim, podemos utilizar o dispositivo proposto: identificar o traço pelo tex-
to da fala da criança e de seus familiares em uma escrita do caso, que conterá
também os efeitos inconscientes desses discursos sobre aquele que escuta.
Bergès e Balbo aludem à questão das lembranças de infância para abor-
dar essa questão do traço. Para eles, a lembrança de infância é “aquilo que a
25
Leda Mariza Fischer Bernardino

criança cria, para manter vivo um ‘fragmento de pura verdade’, isto é, uma inscri-
ção significante infantil” (Bergès e Balbo, 1997, p. 109). Aí eles situam o traço:
“Ela vai construir para si uma série de lembranças, das quais o traço unário,
apagado e lembrado por seu intermédio, é uma inscrição significante” (id., ibid.,
p.109).
Renato, 11 anos, dentre as várias reproduções de marcas de sua “tribo”,
rasura o nome em inglês de uma loja para skatistas – drop dead (literalmente
“caia morto”) – e convoca o trabalho analítico. Com associação livre, transferên-
cia, escuta em ação, uma leitura foi possível: uma história que remetia a um
bisavô que, atingido por um raio diante de seu filho, “caiu morto” (Bernardino,
2003).
Assim, o texto da fala ou da expressão significante da criança, por outras
vias – desenho, modelagem, pintura –, pode permitir “ler” esse traço, na transfe-
rência, que estaria presente na “escrita do caso” e pediria uma “leitura” fora da
sessão, mas no contexto da apresentação desta escrita para os pares.
Bergès e Balbo utilizam o termo “inscrição significante” porque essa ex-
pressão remete “às relações necessárias entre o significante e a letra” (Bergès
e Balbo, 1997, p. 108). Mas uma questão fica em aberto – se é, como os
autores lembram, “o recalque, a partir das construções, que permite inventar
para si um passado” (id., ibid., p.108); se é à fantasia que cabe retomar “a
inscrição significante em uma lógica formulável da relação entre o sujeito toma-
do na linguagem e o objeto” (id., ibid., p.109) , como se daria então, na clínica de
crianças pequenas, quando intervimos em um tempo anterior ao recalque propri-
amente dito?
Uma tentativa de resposta possível seria a teoria das identificações, des-
critas por Freud ([1921] 1972) como bastante precoces. Assim, tanto a primeira
identificação – a identificação ao Pai –, quanto a segunda identificação – ao
objeto perdido – ocorreriam em tempos lógicos anteriores à operação edípica
propriamente dita. Apenas na terceira identificação – que põe em cena a estru-
tura do desejo, da fantasia, como desejo de desejo insatisfeito (histérica), esta-
ríamos no pós-recalque secundário.
Vejamos mais detalhadamente essas operações. A primeira identifica-
ção, segundo Freud, ao Pai, dá-se por “incorporação”. Trata-se, para o filhote
humano, de identificar-se com o Outro, com a mãe enquanto portadora da metá-
fora paterna primordial, mãe cujas palavras ele “ingere”.
Darlene, 41 anos, encontra-se pela primeira vez com seu pai, desapareci-
do desde que sua mãe dela engravidara, em um relacionamento casual. Aos
colegas do trabalho, que a indagaram sobre a situação insólita, ela respondeu:
“estava digerindo ainda a história”! Mesmo adulta, é do corpo que se trata, dian-
te daquele que – mesmo desaparecido – transmitira “traços” identificatórios.
26
O traço do caso na clínica...

Sessões depois, ela narra um sonho: “uma tv ligada, mas somente os pontinhos
aparecendo, e um risco no meio, em zigue-zague”. Realmente, ela “saíra do ar”
com esse encontro. Mas o risco no meio, associado primeiramente à aprendi-
zagem da escrita e ao exercício repetitivo de um traçado, remete diretamente à
letra inicial do sobrenome paterno...
Essa identificação marca a antecipação do sujeito e prepara seu lugar
de falante, toca o sujeito do inconsciente. Mas essa primeira identificação só é
possível pela segunda – a identificação por regressão – com o Outro da de-
manda. É a identificação a um traço único tomado do Outro do desejo, consi-
derado como objeto, em que a identificação viria substituir a perda pela frustra-
ção necessária; essa identificação toca o Eu (moi). O Outro é a metáfora do
traço unário (um “pedacinho” dele é incorporado – por metonímia, o pedaço
pelo todo); mas o que é introjetado é seu lugar e sua função, fazendo dessa
introdução do Outro ato de desejo, ao entrelaçar corpo e significante, no regis-
tro da experiência pulsional. Já na fantasia, o sujeito, separado do Outro, mas
a ele unido no campo da representação, se faz ausência-presença do objeto a e
esse processo é que constitui a identificação com o traço unário: busca repetitiva
da inauguração mítica, que o traço unário qualifica. A identificação de terceiro
tipo, por sua vez, a histérica, é a identificação imaginária, narcísica, é o sujei-
to, na qualidade de desejante, “agindo” seu desejo do desejo do Outro. Para o
sujeito, conforme aponta Melman (2009), identificar-se com o significante da
falta do outro o faz faltante, insatisfeito e, portanto, portador de um desejo
inconsciente.
Esse caminho aborda a passagem de real a significante, narra a entrada
no campo simbólico, que podemos situar miticamente na primeira identificação;
mas é apenas no segundo tempo, com a apreensão do outro como objeto, que
pode ser inscrita. Como afirmam Bergès e Balbo, “para que seja possível uma
inscrição, é preciso que a coisa caia, e é sobre seu suporte que se inscreve o
significante que poderá decifrá-la” (Bergès e Balbo, 1997, p. 112).
A escuta no tempo da infância poderia permitir o destacamento deste
traço deixado pela coisa? Segundo esses autores, sim, pois “quando [a coisa]
se perde ou pode ser perdida, permite que o significante venha inscrever-se
nela, para poder ser lido ou decifrado” (id., ibid., p. 112).

Conclusão
A proposta do trabalho de reunião entre pares para destacar o “traço do
caso”, na clínica de crianças, poderia permitir, assim, um trabalho conjunto de
leitura e deciframento, ao convocar essa reflexão, que incluiria o texto da crian-
ça (suas verbalizações, suas produções através do brincar, da modelagem, do
desenho e da pintura), o texto da fala de seus pais e o próprio relato do analista,
27
Leda Mariza Fischer Bernardino

sua escrita, dando lugar aos efeitos inconscientes da escuta mais além do
setting analítico.
O trabalho em torno do “traço do caso” pode ser proposto como um outro
lugar para pensar a clínica. Não se trata de supervisão, de discussão clínica ou
de trabalho teórico. Implica a transformação do produto da escuta em texto –
permitindo o surgimento da letra, que convoca uma operação de leitura. Provoca
um distanciamento do caso, para lançar-lhe nova luz, e permite uma leitura na
qual o papel dos pares, com sua escuta-leitura, faz função de alteridade; possi-
bilita um distanciamento da captura imaginária que todo caso tem a tendência a
provocar.
Dessa forma, pode-se ir além da leitura convencional, que permite identi-
ficar a estrutura, trabalho importante, mas insuficiente para a direção do trata-
mento de cada caso particular. É uma estratégia que viabiliza mais recursos
para uma intervenção que se dirija à singularidade do paciente.

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Recebido em 18/06/2010
Aceito em 20/08/2010
Revisado por Beatriz Kauri dos Reis
28
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 38, p. 29-38, jan./jun. 2010

TEXTOS

ADOLESCÊNCIA VIRTUAL1

Daniel Paola2

Resumo: O texto aborda a atualidade da adição virtual, principalmente, quando


da adolescência. O autor se utiliza, inicialmente, da formulação lacaniana do
estádio do espelho para sustentar a virtualidade como presente nos processos
humanos, inclusive no estabelecimento da adição.
Palavras-chave: adolescência, virtual, adição, psicanálise, estádio do espe-
lho.

VIRTUAL ADOLESCENCE

Abstract: The text approaches the actuality of the virtual addiction, especially
during adolescence. The author makes use, initially, of the lacanian
conceptualization of the mirror stage as to support the presence of virtuality in
the human processes, as well as in the establishing of addiction.
Keywords: adolescence, virtual, addiction, psychoanalysis, mirror stage.

1
Traduzido por Paulo Gleich.
2
Psicanalista; membro da Escuela Freudiana de Buenos Aires (EFBA). Autor dos livros:
Transadolescência(Ed. Letra Viva, 2007); Psicosis y cuerpo(Ediciones Laderiva, 1994);
Erotomania, paranoia y celos (Homo Sapiens, 2000); Erradamente la pulsion(Homo Sapiens,
2005). E-mail: purple@sion.com
29
Daniel Paola

A adição virtual

O psicanalista enfrenta a atualidade de um novo desafio na prática com ado-


lescentes. Começou a ser motivo de consulta uma modalidade de adição
virtual que captura os jovens diante dos computadores, transformando o laço
social que as gerações precedentes consideram dentro de padrões de normali-
dade.
A chamada adição à internet não figura como diagnóstico no DSM IV já
que, de acordo com seus parâmetros, sempre é necessária uma substância
química para defini-la. No entanto é vox populi entre os psiquiatras associar
essa adição a um transtorno compulsivo que oculta um comportamento
depressivo e hostil frente ao social.
Para a analista Nelly Vázquez, da consultora eMarketer3 , a adição virtual
poderia ser uma atividade letal, dados os recordes que algumas pessoas se
propuseram a estabelecer jogando no computador. Essa analista menciona que
a adição não é só dos jovens, já que também alguns adultos poderiam ver-se
implicados, segundo os dados apresentados pelo Computer Addiction Services
do Hospital McLean, de Massachusetts, Estados Unidos.
De acordo com o Departamento de Pedagogia Aplicada da Universidade
Autônoma de Barcelona, a adição virtual não exige conhecimento prévio nem
especial capacidade intelectual, já que se desenvolveriam sobretudo atividades
psicomotoras que melhorariam com a persistência, gerando, além disso, perso-
nagens fantásticas, afastadas por completo da vida real.
Para o psicanalista, a adição se define em outros termos. O adicto, to-
xicômano ou não, apresenta questões particulares em relação ao discurso, sendo
o discurso definido como o próprio dizer referenciado com respeito a uma verda-
de, que encerra um plus frente ao semelhante, referido a outra posição de saber,
quanto à produção do que foi dito.
Com respeito ao discurso, o adicto apresenta uma substituição do plus
da verdade na substância que lhe outorga um saber. Esse saber outorgado pela
substância é excludente de todo partenaire que não declare uma identidade de
percepção É por isso vivencial. que, em terapias grupais cujo referente é cons-
tituído por líderes que transitaram por transtornos idênticos, são estes os úni-
cos, entre certos círculos de adictos, que poderiam ter palavra autorizada no
tempo em que se propõe uma abstinência.

3
Empresa americana de consultoria em tecnologia.
30
Adolescência virtual

Nesse mesmo sentido, a constituição grupal que implica o deslocamento


real a determinado lugar, para falar do tema que se queria evitar, já resulta por si
mesma difícil na adição virtual, porque deixar de lado o computador para reunir-
se com outros já se revela impossível em alguns casos, pela angústia súbita da
falta do elemento julgado imprescindível. Nesse sentido, nenhum adicto à internet
poderia iniciar contato com um semelhante que lhe propusesse regras
condutivistas de abstinência. Portanto, realizar um grupo virtual entre adictos à
internet traria o problema de não propor a abstinência.
À diferença do toxicômano, que poderia ter uma conduta social, o adicto
virtual realiza seu laço fundamentalmente através dos jogos em rede, e é impos-
sível que detecte por si mesmo algum tipo de inconveniente em seu proceder, já
que não há substância proibida nem lei que o julgue. Talvez os efeitos gerados
na escolaridade sejam os mais chamativos para os pais, que então começam a
tomar consciência de um suposto problema. Mas o psicanalista encontra-se
habitualmente com um inocente ou, melhor dito, com uma mente virginal, que
nem sonha em deixar seu adorado entretenimento.

A abstinência
A abstinência é, então, o primeiro obstáculo que o psicanalista enfrenta.
Porque os pais creem que a suspensão do jogo é uma tarefa imediata e que se
resolve com proibições ao jovem, entre as quais se contam, por exemplo, cortes
de luz ou impedimentos no uso do computador. Da mesma maneira, qualquer
familiar de um paciente psicótico crê que o analista tem o poder de proibir o
delírio. É comum, entre familiares de pacientes psicóticos, a desconformidade
com o psicanalista que não expõe a falsidade dos argumentos delirantes ou
alucinatórios, numa suposição mágica como a que se outorga ao encantador de
serpentes ou a quem sopra e faz garrafas.
Propor que não há abstinência quanto ao uso do computador é o primeiro
passo para conseguir que o adicto virtual finalmente possa entrar no discurso,
na medida em que seu jogo determina um gozo. E se de entrada houvesse que
definir gozo, proporia que, em sua generalidade, este serviria de suporte a seu
próprio fracasso. Porque não haveria gozo que ao fim das contas não tendesse
a sua extinção, pois qualquer atividade humana tem um limite à satisfação com
a qual se pode alimentar.
Suponhamos que elegemos a sobremesa que mais nos apetece e decidi-
mos degustá-la para sempre. Em um primeiro tempo, a satisfação vai ser óbvia.
Em um segundo tempo, a satisfação pertence à escolha, já que, sendo a sobre-
mesa que mais nos apetece, passa a ser o significante que a representa en-
quanto gozo. Em um terceiro tempo, depois de alguma forma de declaração de
impotência, esse gozo fracassa, porque produz rechaço. Nesse último tempo já
31
Daniel Paola

nos encontramos em contato com a ponta do real, porque o indivíduo tende a se


perguntar que sentido tem estar concentrado em algo que lhe provoca aversão.
No trato da aversão se encontra a possibilidade de um novo sentido através de
uma identificação rechaçada.
No contato com o adicto virtual há de se saber esperar esses tempos, e
eles não poderiam se produzir se os pais do ou da jovem não acordam com a
regra básica de uma abstinência, com respeito a propor uma proibição do jogo
virtual que consome a vida de seus filhos. Isso não exclui dois fatos: o primeiro
é de conter a hostilidade dos pais que esperam eficiência e rapidez, o segundo
é de dispor de uma localização teórica do momento em que se encontra quem
se satisfaz com o jogo ou já goza dele.

Partindo do estádio do espelho


O estádio do espelho de Lacan ([1936] 1994) e seu posterior desenvolvi-
mento no seminário A angústia ([1962-1963] 2005) são o lugar apropriado para
começar a considerar o problema. Se chamamos i(a) a imagem real que o infans
retém, no sentido de que vai dar existência a seu corpo, de acordo com a ima-
gem virtual i’(a), que é produto do que se sabe reflexo no espelho, não por isso
essa oposição se termina de uma só vez e para sempre nos primeiros meses de
vida.
Que o infans tome de sua imagem virtual i’(a) a possibilidade da unidade
que vai dar sentido a seu corpo, até então fragmentado por uma incompleta
mielinização de sua via piramidal, não por isso teria de se desconhecer que sem
o assentimento, tal como o propôs Lacan, de um partenaire que o sustenha,
não haveria eficácia possível para a dimensão do Outro como campo do
significante.
O infans, portanto, não só vê a duplicidade da imagem enquanto se vê e
ao mesmo tempo se registra no espelho como imagem virtual, mas também vê
a forma do partenaire refletida, estabelecendo a identidade com ele, na imagem
que habita o espelho. Essa identidade virtual é causa de júbilo pela via do absur-
do, porque tanto um quanto outro se encontram na mesma dimensão virtual que
os une.
Sem essa dimensão virtual que une o infans com o partenaire adulto na
imagem, não se poderia pensar no falo como aquilo que está por fora da ima-
gem, enquanto a dimensão virtual os projeta unidos no plano do espelho. E o
júbilo é júbilo da transmissão incipiente desse falo, já existente por antecipação
no partenaire que preparou toda a cena ou que se surpreende por havê-la feito
possível.
Como resultado dessa primeira unidade redunda sua impossibilidade de
fato, porque não haverá senão para sempre dois no lugar do um, imagem real
32
Adolescência virtual

i(a) e imagem virtual i’(a), duplicidade que é margem de um Imaginário que se


reduz à circunstância de um corpo que no Outro toma sua dimensão simbólica,
e no gozo que essa redução provoca. Redução que, por outro lado, é determina-
da pelo que não se vê como escotoma, do qual advém a dimensão do falo, que
contém então o signo menos do que não habita o ser enquanto imagem.
A redução é do significante, já que é impossível atribuir-lhe uma significa-
ção se, de entrada, não há Um teleológico para a mentalidade, como existe na
filosofia em relação ao ente. Essa redução é gozo que o pensamento encerra,
jamais resignado a suportar limites ao estar sustentado pelo Ideal do Eu, que
tende à propriedade dos fractais, ou seja, aos números dos quais não se conhe-
ce a localização do limite.
Aqueles que se apresentam com uma adição virtual ao consultório de um
psicanalista poderiam ser considerados como tendo alguma alteração deste
estádio do espelho, se é que suas consequências não são somente determina-
ção do primordial, mas também circulação permanente em fatos do real da vida
de qualquer ser falante. Suponhamos que houve uma parada permanente nesse
momento de júbilo e chamemos isso de adolescência virtual: Quais são as
coordenadas futuras para esse ser falante?

A ilusão do intersubjetivo
Proponho voltar agora a esse instante de júbilo no qual o infans se encon-
trou do outro lado do fato do real que os sustenta frente ao espelho. Esse outro
lado virtual, enquanto é imagem, permite a suposição de unidade em uma cena
na qual há conexão de um a outro, nesse caso infans e adulto, conexão virtual
livre de efeitos desse real que se apresenta no corpo, que ainda não se move
como se moverá no futuro. Essa conexão então permite a suposição de enlace
entre ambos em uma intersubjetividade fantástica, que retornará como estra-
nha, dada sua falsidade real.
A imagem real sempre oferecerá a inevitável oferta do campo do verdadei-
ro, cuja significância exclui qualquer tentáculo de um a outro, ou do sujeito ao
campo do Simbólico, a não ser por uma passagem ao ato, que suponha a
crença salvadora da suposição de um saber que se encontre nos meandros da
linguagem que nos habita em sua dimensão inconsciente. Isso quererá dizer
que não há intersubjetividade possível na realidade psíquica, a não ser que haja
um estancamento no gozo que suponha a ilusão efetiva dessa virtualidade.
O século XX foi testemunho de uma humanidade unida virtualmente atra-
vés de líderes carismáticos, impelidos ilusoriamente às soluções finais que ter-
minavam nos campos de extermínio e concentração. Por acaso se chamou
essa solução de adição virtual? Não existem os espelhos desde a origem do
vidro?
33
Daniel Paola

A virtualidade dos dias de hoje parece ter excluído os líderes. Ao menos,


essa adição virtual aos jogos e à internet não propõe campo de concentração,
além do que a comodidade da própria casa – ou do ciberespaço, menos perigo-
so, aliás, que o paradigma das câmaras de gás – oferece. Com isso, pretendo
propor que virtualidade sempre houve, ainda que agora, através da internet, a
liderança tenha se deslocado para a primazia do objeto instaurado pela ciência,
que já faz muitos sonharem com todo tipo de robôs.
No filme Sleeper4 , de Woody Allen, do ano 1968, o protagonista é desper-
tado em um futuro longínquo, pleno de uma vida robotizada, após a
crioconservação de seu corpo. Quando lhe explicam a quantidade de feitos que
os robôs serventes realizam, o sleeper pergunta se se poderia ter sexo com as
mulheres robôs, esfregando as mãos com a intensidade própria de um festim
auto-erótico. O mundo virtual dos computadores encerra uma variável do auto-
erotismo, sempre em busca da originalidade que sustente a diferença com as
gerações que o precederam.
A adição virtual, então, não é mais que a reedição de um laço intersubjetivo
respondendo como um Um virtual à univocidade do líder, descrito como ideal de
Eu por Freud ([1921] 1981), em Psicologia das massas. A diferença para com o
objeto da ciência, objeto positivo, gadget, como escreveu Lacan em A terceira
([1974] 1985), é que esse objeto não pode existir, se concebemos a existência
do fantasma senão como um efeito do lado do sujeito, ou seja, como um objeto
ainda não negativizado.
A direção da cura poderia então orientar-se com a abstinência relativa-
mente ao uso do jogo virtual, tomando em conta a coagulação de um instante
virtual que encerra o sujeito frente à fascinação do ideal de Eu que suporta uma
primeira ilusão intersubjetiva, que pouco a pouco deverá ser destituída para dar
lugar ao sintoma. Se é que existe a chance de sua produção.

O jogo e o sintoma
Qual é a demanda que um sujeito capturado pelo jogo virtual encerra? Em
princípio se desconhece. Para cada um haverá alguma demanda, que poderá
ser formulada no curso de uma análise. E os sintomas que se gerarem através
de seu encontro serão variados, de acordo com as identificações edípicas que
poderão se desenvolver.

4
O Dorminhoco, na versão lançada no Brasil (N.T.).
34
Adolescência virtual

Mas pode-se apreciar, se existe a possibilidade de jogar e o psicanalista


não é vencido pelo preconceito, um efeito interessante ligado ao sintoma. Cada
dificuldade, cada obstáculo no jogo, que é preciso dominar com a insistência de
um proceder, refere-se a uma superação de quem joga ligada à obtenção de
uma satisfação, tal como o sentido alimenta o sintoma no discurso. Porém,
sucede que de tanto jogar se consegue um efeito: com a persistência, desapa-
rece a obtenção de satisfação, porque se consegue superar cada um dos obs-
táculos.
Mais além de que o jogo possa mudar, chega um momento em que, à
diferença daquele que se faz por dinheiro, a satisfação desaparece e surge uma
espécie de impotência frente ao tempo perdido. Ou seja, aquele que esgota seu
gozo na incorporação da satisfação se encontra apenas com o real, que produz
aversão de maneira equivalente a como o sintoma se impõe no discurso: con-
creto e com a necessidade de ir contra ele.
Os personagens fantásticos que são criados no jogo, por outro lado, não
são mais que os mesmos que a fantasia desenvolve detrás dos líderes de mas-
sas, até que se perdem na irrealidade que a virtualidade propõe frente à vida.
Não haverá de se esperar senão até que se esgote o efeito de uma satisfação
que, cedo ou tarde, fracassa; melhor se aquele que joga pode analisar o porquê
de sua exagerada dependência ao líder que seu personagem fantástico encerra.
Passar da irrealidade virtual intersubjetiva a aceitar que o intersubjetivo não
existe nos fatos reais faz quem joga passar por um esboço de sua libido objetal.
Nada mais nem nada menos que o pulsional escópico é o que se detém no jogo
virtual, já que se crê ver tudo para superar os obstáculos e não se pensa no tempo
que passa e no corpo que envelhece. É um escotoma que não é visto porque o
jogo tem o próprio limite de sua finitude quando se conhecem todos os segredos.
Haverá de se conseguir sair dos computadores, se é que podemos espe-
rar algo de um futuro sem campo de concentração, mesmo que esse campo
seja cada vez menos perigoso para a vida, já que, como jogo, não teria por que
matar alguém, salvo alguma exceção que pretenda instaurar um recorde de
permanência.

Há fim
Definir o termo adolescência virtual traz em segunda instância outro pro-
blema. Não creio ser prudente definir adolescência ligada exatamente ao crono-
lógico, já que existem sujeitos que se comportam toda a vida como tais, crendo
que efetivamente há iniciação eficaz no relativo ao sexual que os aparta dessa
etapa. Assim como não por ter a primeira relação sexual há algum início, tampouco
por ter um suposto saber sobre o conhecimento do sexual se chega a algum
porto da maturidade.
35
Daniel Paola

Por que não há iniciação sexual? A própria experiência sexual demonstra


que não é por saber que existe a eficácia. Que um indivíduo atravesse a primeira
relação sexual não é garantia de nenhuma iniciação, assim como não assegura
nenhuma eficácia de função na próxima. De qualquer forma, atravessar esse
momento de início, fato que geralmente transcorre na adolescência, não é igual
a não fazê-lo, já que justamente ali se põe à prova uma inscrição irredutível do
sujeito; me refiro ao recalque primordial, que faz de suporte para tolerar a falta
perpétua de garantia quanto à função.
É no seminário Os nomes do Pai que Lacan desdobra esse ensino. Que
não haja iniciação quer dizer que não há mais que um véu de sentido para o
sujeito. Não se poderia então despertar de maneira alguma depois de uma inici-
ação, porque não há possibilidade de fazer disso uma inscrição. Haveria portan-
to um registro onde é possível supor a falta de inscrição: esse registro é o real.
Não há iniciação no real, quer dizer que todo sujeito deverá suportar a
consequência da diferença entre o imaginário e o sentido que nele é imaginado.
Essa consequência é a ineficácia de todo sujeito para estabelecer uma inscri-
ção de início. Portanto, dizer que não há iniciação é o mesmo que dizer que não
há relação sexual, sem implicar, além disso, que a iniciação estaria ligada ao
sexual. Por esse motivo, nada do virtual fará inscrição, e nenhuma adição tem a
eficácia de alguma iniciação. O que, sim, se inicia é o discurso do inconsciente,
no preciso momento em que se abandona a crença de algum começo.
Nesse sentido, Freud teria sido, segundo Lacan, um verdadeiro incauto
do real, já que nunca se valeu do estabelecimento de uma iniciação mas, pelo
contrário, diria de minha parte, de uma retroação inconsciente para demonstrar
o retorno do recalcado. E há de se pensar também que essa retroação impõe ao
ser falante a convicção de que há fim, mesmo que não haja início. Poderá haver
um momento de concluir se se compreende que só há instante de ver, e que o
escópico está sempre esburacado de escotoma.

O que não funciona


Quando insisto em sustentar que a adolescência poderia ser um tempo
que dura toda a vida não estou me referindo a uma vulgar configuração da ima-
gem que o indivíduo porta, seja em hábitos, vestimenta, música preferida ou
inclusive em condutas sexuais. Aquilo que liga o ser falante à adolescência se
encontra relacionado à crença falsa de alcançar uma iniciação de algum tipo
que seja garantia eficiente de função, seja do intersubjetivo, do sexual ou do
próprio inconsciente.
A adolescência é essa crença própria de toda mentalidade pela qual trans-
corre cada ser falante e que evidentemente poderia concluir-se em vida, se se
tolera a inexistência dessa garantia que recai sobre a função. A mentalidade é
36
Adolescência virtual

um espaço extensamente desenvolvido por Lacan nos últimos seminários, do


qual se depreendem algumas considerações. Já não será o mesmo pensar o
conceito de inconsciente se não se alude ao sentimental do ser falante, enquan-
to o amor e o ódio, como odioamoramento, constituem o obstáculo próprio, ao
qual se aferra todo sujeito, para não topar com a essência da significação:
existe o que não funciona. E o que não funciona existe no jogo virtual também,
para dar esboço a essa mentalidade, quando o obstáculo desaparece e já não
se pode acrescentar mais satisfação.
A pregnância que o registro imaginário adquire é de tal magnitude que a
invenção da psicanálise desenvolvida por Freud nos situa, com respeito ao lap-
so, como paradigma do inconsciente, de uma maneira positiva. E foi assim que,
mediante o lapso, muitos psicanalistas acreditaram poder chegar a alguma quin-
tessência, porque a primeira versão, como cabia, demostrava um descobrimen-
to sem falha. O jogo virtual também é um lapso, só que investido do intersubjetivo:
ou não foi por ali que Jung desenvolveu sua teoria?
Em compensação, uma releitura de Freud em virtude da extensa contri-
buição de Lacan não deixa entrever nenhuma euforia, seja ela genital ou a
provocada por um atravessamento fantasmático. Pelo contrário, aquilo que
universaliza a existência do inconsciente é a própria falha com seu fundo de
não-função. Quem se encontra aprisionado no campo de concentração do jogo
virtual já está investido, por si mesmo e sem sabê-lo, dessa não função.
Sob esse critério, do qual poderão ou não compartilhar, a direção da cura
é antes um processo que, mediatizado pelo lapso como paradigma do inconsci-
ente, leva a desaferrar-se de todos aqueles fonemas que foram associados ao
transcendental dos primeiros anos de vida. Como resultado desse devir, a exis-
tência ficará ligada à própria estrutura do sonho, com seu umbigo ou escotoma,
dando a esse furo o privilégio de constituir-se na via de saída de tudo o que se
paga como usura de falsas verdades. O jogo virtual é o sonho primeiro, que
ainda não foi interpretado.
A frase de J. Lacan que testemunha para mim esse tema encontra-se no
seminário L´insu ([1976-1977] inédito); diz assim: Teria que tentar ver, como
enuncia S. Freud, sobre o que está fundado esse algo que não funciona senão
para a usura, cuja verdade está suposta”.
Ou seja, a questão que se desenvolve na adolescência com respeito à
não-função, e leva ao estabelecimento do sintoma, é própria da essência que
toda análise atravessa e aprofunda, como amostra do que não funciona e pelo
qual o sujeito paga um preço desnecessário chamado gozo; devido a isso, é
preciso sustentar uma verdade falsa. Se não se adverte que essa não-função é
realmente operativa e se chama falo, a consequência será a constância de um
tabu: a virgindade. A adição virtual é de alguma maneira uma virgindade, porque
37
Daniel Paola

o falo como não-função está somente esboçado no que virá.


Com efeito, a vida e a clínica psicanalítica nos demonstram que se pode
existir com pleno uso da virgindade se se espera perpetuamente a consolidação
da garantia da função universal intersubjetiva que não erra. É óbvio que, ao me
referir à virgindade, não estou fazendo alusão em absoluto ao genital, mas a um
estado da mentalidade na qual o sujeito crê, acima de tudo, no que funciona
sempre, seja a psicopatologia, a religião ou a injúria. E que existem muitos
seres falantes que jamais usaram um computador para abstrair-se em um jogo
virtual, mas fazem do intersubjetivo a política de suas vidas.

REFERÊNCIAS
FREUD, Sigmund. Psicologia de las masas y análisys del yo [1921]. In: ______.
Obras completas de Sigmund Freud. Madrid: Editorial Ballesteros, Biblioteca Nueva,
1981.
LACAN, Jacques. El estádio del espejo como formador de la funcion del Yo (Je) tal
como se nos revela en la experiência psicoanalítica. In: ______. Escritos. Editorial
Siglo XXI, 1994, v.1.
______. Seminario: La angustia [1962-1963]. Buenos Aires: Editorial Paidós, 2005.
______. Seminário: Los nombres del padre [1973-1974]. Inédito.
______. La tercera. Intervenciones y textos II. Buenos Aires: Editorial Manantial,
1985.
______. L´insu que sait de l´une-bévue s´aile à mourre (1976-1977). Texto estabele-
cido por Jacques Alain Miller. Paris: Ornicar, n.12-13.

Recebido em 13/07/2010
Aceito em 30/08/2010
Revisado por Otávio Augusto Winck Nunes

38
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 38, p. 39-48, jan./jun. 2010

TEXTOS

DORA1
Elaine Starosta Foguel2

Resumo: O presente texto é uma retomada do caso Dora, de Sigmund Freud.


Nele, a autora apresenta uma nova leitura em relação ao equívoco freudiano na
condução dessa análise. A autora estabelece um paralelo entre o segundo so-
nho da paciente e o trabalho do artista holandês M. C. Escher intitulado Relati-
vidade.
Palavras-chave: Dora, histeria, psicanálise, sonhos, transferência.

DORA

Abstract: This paper is a retake of the case Dora, by Sigmund Freud. The author
presents a new reading in relation to Freudian mistake on the conduction of this
analysis. The author draws a parallel between the second patient’s dream and
the work of the Dutch artist M. C. Escher entitled Relativity.
Keywords: Dora, hysteria, psychoanalysis, dreams, transference.

1
Trabalho apresentado nas Jornadas Clínicas da APPOA: Estruturas Freudianas , realizadas
em Porto Alegre, outubro de 2009.
2
Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) e do Campo
Psicanalítico, de Salvador; Especialista em clínica da Dor (UNIFACS-BA); Mestre em Filosofia
da Ciência (UFBA). E-mail: elainefoguel@terra.com.br
39
Elaine Starosta Foguel

Introdução

A retomada do estudo do caso Dora (Freud,[1905] 1974) no ano, de 2009, nos


faz indagar – mais além das revisões clássicas do próprio Freud e de Lacan
–, o que ocorreu nessa cura, que não se deu a contento e terminou com o
abandono do tratamento. E por que, ainda assim, Freud fez tanta questão de
publicá-la, mesmo à revelia do seu editor?
O genial analista que, cinco anos antes, depurara o método catártico e
que, com a pressão de sua mão na testa da paciente, demandava que ela
descrevesse em palavras as imagens vistas – que associasse e seguisse seu
fio lógico –, não aplicou em Dora sua própria invenção de fazer falar. Ao invés, se
pôs ele, Sigmund Freud, a tagarelar no lugar da analisante, e tagarelou tal qual
um professor que defende tese universitária. Freud foi mais do que generoso ao
tornar públicos os meandros desse tratamento “de modo algum gratificante”,
que até hoje, mais de 100 anos depois, rende aos analistas material para deba-
te e articulação na transmissão da psicanálise.

Retomamos o caso Dora através:


1. dos relatos e análise dos dois sonhos de Dora e de algumas das
marcas significantes feitas por Freud na sessão, sem as quais não teríamos
como detectar tais sutilezas;
2. da recusa de Dora a aceitar a interpretação freudiana do significado do
seu segundo (é isso, não é?) sonho;
3. da análise das posições libidinais que sublinhamos no caso clíni-
co.

E, propomos que:
1. A psicanálise com Freud deu a Dora, de volta, a mesma versão neuró-
tica e sintomática à qual ela estava presa.
2. Dora não teve a oportunidade de construir e-ou inventar outra versão
para fazer frente ao real da sua condição feminina.
3. A comunidade psicanalítica nada sabe ou pode saber sobre a
posição fantasmática de Dora, pelo menos a partir do material do caso
clínico apresentado por Freud, uma vez que Dora não teve a oportunidade de
esboçar nem mesmo uma única construção sobre seu fantasma. Dora é a
Madona dos psic analistas, não só a de Dresden, mas também a de Leo-
nardo da Vinci, cujo segredo não foi revelado. Por isso, continuamos a
estudá-la.
Com este trabalho pretendemos, ainda, a título de discussão sobre a
neurose e, através da ilustração das diversas posições identificatórias que Dora
ocupava, comparar a sua situação neurótica com um desenho de Escher –
40
Dora

conhecido artista holandês, que viveu entre 1890 e 1972 – de 1953, intitu-
lado Relatividade (apud Ernst, 1994). Com esse propósito específico,
poderíamos até mesmo renomear o trabalho para A casa de Dora . Que-
remos também reconh ecer que a coragem de Freud em tornar públicos
seus impasses e dificuldades foi o canal do avanço da psicanálise, tanto
nas considerações metapsico-lógicas quanto nas da direção do trata-
mento.
Para finalizar, pretendemos levantar uma hipótese sobre o que teria
levado Freud a relegar, nesse tratamento específico, seu próprio método
psicanalítico de fazer falar. Esclarecemos ainda aqueles que ora se iniciam
na psicanálise que a hipótese de Freud ter relegado seu próprio método
psicanalítico no caso Dora é polêmica e totalmente de nossa responsabili-
dade.

Parte I: as perspectivas
Os ensaios sobre o caso Dora são inúmeros e sempre provocam novas
especulações sobre o que estava em jogo no quadro de histeria da jovem e por
que ela se recusou a seguir com seu tratamento. No entanto, há duas articula-
ções que já são clássicas e que inspiram a maioria das outras. A primeira, do
próprio Freud, afirma que os sintomas de Dora provêm do recalque de que “(...)
ela estivera, por todos aqueles anos apaixonada pelo Senhor K”. (Freud, [1905]
1974, p. 35) e que “sua doença era, portanto, uma demonstração do amor por
K.” (id., ibid., p. 37).
A família de Dora era composta de pai, mãe e irmão mais velho. O pai
tinha uma amante, a Sra. K. Ocorre que os K., que, por sua vez, tinham filhos
pequenos, mantinham uma amizade íntima com a família de Dora. Essa, por
sua vez, tinha uma ligação especial com a Sra. K. e com as crianças. E o Sr. K.
lhe fazia um assédio erótico há anos.
Fizemos então uma série de quatro desenhos para ilustrar as dife-
rentes constelações libidinais que encontramos, e como Dora aí se situa-
va.
Cada desenho corresponde a uma das perspectivas ou pontos de fuga
libidinais da jovem. É importante observar que conservamos a triangulação
com o propósito de afirmar uma identificação de Dora com sua mãe. Se essa
identificação está ausente na descrição de Freud (id., ibid.), ou só aparece
no relato do desprezo da jovem pela mãe, não é bom ignorar o traço de
tolerância crônica amarga sintomatizada da Sra. Bauer, com o qual Dora se
contagiara totalmente. Então, em todas as perspectivas, optamos por deixar
a mãe presente, não esquecendo que Dora assim também o fez nos seus
dois sonhos.
41
Elaine Starosta Foguel

Primeira perspectiva: a estrutura “familiar”

A figura 1 corresponde ao que ocorria antes da cena do lago: os pais de


Dora são casados e coabitam, mas aparentemente não há correspondência
sexual entre eles. Dora mantém com a Sra. K. uma amizade estreita. Juntas,
leem secretamente um livro de Mantegazza – fisiologista, neurólogo e antropó-
logo italiano, que viveu entre 1831 e 1910 – sobre sexualidade. Lacan ([1958]
1998) sustenta, que não apenas Dora se permitia ser uma moeda de troca e
gozar nesse lugar, para disso se queixar, mas que se não fora Dora, seu pai não
teria como sustentar suas relações extramaritais com a Sra. K. , pois ele nada
teria a oferecer ao marido da sua amante.
Não seria um exagero conferir a Dora tanto poder? A tramoia era consentida
entre os adultos: a Sra. Bauer se livrava das doenças venéreas do marido, que
já a havia contagiado com catarros vaginais e do qual tinha nojo. O Sr. K.
recebia “Deus sabe” quais benefícios na área comercial ou financeira. O Sr.
Bauer obtinha da amante sua quota de gozo sexual e cuidados femininos, e
todas as mulheres recebiam braceletes e anéis. Enfim, um esquema “daque-
les”.
Dessa forma, uma hipótese a considerar é que Dora não contava tanto,
ao contrário do que se pode pensar, ou do que ela mesma poderia almejar,
pois quando se viu desprestigiada por todos e imolada pelo próprio pai, a po-
tência que ela fantasiara ter diante dessas pessoas caiu por terra, provocan-
do-lhe enorme abalo narcísico e produção sintomática. Foi nessa época que o
pai a leva a Freud pela segunda vez, e que ela então começa seu tratamento
psicanalítico.
42
Dora

Segunda perspectiva: a interpretação de Freud

O segundo desenho (figura 2) corresponde a uma construção da análise


feita por Freud ([1905] 1974) a respeito da cena do bosque, na qual o Sr. K. faz
uma proposta indecorosa a Dora, que lhe responde com uma bofetada. Ao ser
confrontado pelo pai da garota, o Sr. K. nega a cena e a atribui à mente fantasiosa
e libidinosa da adolescente, que se interessava tanto por sexualidade a ponto
de ler, com sua esposa, livros sobre o assunto. O pai não apoia Dora, e ela se
encontra duplamente traída: pelo pai, que parece não desejar que nada o atrapa-
lhe nos seus assuntos com os K., e pela adorada amiga, a Sra. K., que escancara
o segredo das suas leituras secretas.
É nessa perspectiva que Freud (id., ibid.) sustenta que Dora recalcava
seu amor por K. Entre as questões que se colocam aqui, é necessário sublinhar
que a homologia entre fantasia erótica recalcada – que é por definição perversa
– e o afeto de amor pode ser um descaminho interpretativo, como parece ter
sido o que ocorreu com Freud nesse caso. Podemos questionar: Dora amava o
Sr K.? Amava? Era esse amor recalcado que a deixava doente? A verdade do
sintoma se revelaria nessa espécie de tradução feita pelo analista das imagens
do sonho? Nessa mesma linha, a interpretação pelo analista sobre o sentido do
sintoma do analisante corresponde a uma ficção com valor de verdade para o
analisante? Tudo indica que Freud se adiantou à paciente, num afã interpretativo
que desencaminhou a análise.
43
Elaine Starosta Foguel

Terceira perspectiva: a transferência

A figura 3 dá relevo às interpretações transferenciais não feitas a tempo


por Freud, e que poderiam ter evitado, segundo ele próprio, o acting-out de Dora
e salvado o tratamento. Essa perspectiva está na nota de rodapé (1) de 1923
(Freud, [1905] 1974, p. 114), na qual Freud esclarece que a transferência redu-
plicou a neurose e que ele, em pelo menos dois momentos, não sublinhou, nem
questionou, nem interpretou Dora. O esquema acima tenta representar a trans-
ferência não interpretada de Dora ao seu analista. Freud chama a atenção para
o fato de que Dora estaria deslocando para o psicanalista conteúdos relativos às
suas fantasias conflitantes em relação ao Sr. K.

Quarta perspectiva: a homossexualidade ou ginecofilia em Dora

44
Dora

Esta perspectiva (figura 4) corresponde ao que Freud escreve posterior-


mente à publicação do artigo e que está na nota de rodapé (3), na qual ele se dá
conta da importância da ginecofilia em Dora:

Quanto maior o intervalo de tempo que me separa do fim desta


análise mais provável me parece que a falha em minha técnica
esteja nesta omissão: não consegui descobrir a tempo nem infor-
mar à paciente que seu amor homossexual (ginecofílico) por Frau
K. era a corrente inconsciente mais poderosa de sua vida mental.
(...) Era preciso que eu tivesse decifrado este enigma e procurado
o motivo de tão extraordinário ponto de recalque (Freud, ([1905]
1974), p. 116-117)3.

De acordo com a proposta destes desenhos, em cada perspectiva libidinal


indicada pela linha mais forte, a posição de Dora no conjunto muda. No entanto,
consideramos que todos os esquemas são verdadeiros, isto é, correspondem a
diversas identificações de Dora, simultâneas, confusas, alienantes. Buscava o
antigo amor do pai, identificando-se ao sintoma dele, ao tempo em que despre-
zava a mãe como mulher, tal qual o esposo. Cuidava para que tudo parecesse
harmônico, agradável, amigável, numa bela indiferença em relação à perversão
com a qual coabitava e da qual bebia um trago. A fumaça, significante da trans-
ferência a Freud do objeto masculino, ficou sem articulação na cadeia da fala de
Dora.

Parte II: os sonhos de Dora


Gostaria agora de propor uma leitura dos dois sonhos de Dora, diversa
daquela que Freud apresenta, mas que só foi possível a partir da escuta de
Freud e das marcações por ele feitas no relato do tratamento. Ambos os sonhos
carregam o paradoxo neurótico de Dora em torno dos significantes “casa” e
“escada”.
No primeiro sonho, o ponto paradoxal se encontra nas frases:
Logo que me encontrei fora da casa, despertei
[Quando me acordo, sinto cheiro de fumaça].
Marcação de Freud na sessão:

3
Em 1909, Freud publica o artigo Fantasias histéricas e sua relação com a bissexualidade
(Freud, [1909] 1974), no qual descreve a importância das fantasias inconscientes no
desencadeamento dos sintomas. Ele esclarece que: “Os sintomas histéricos são a expres-
são, por um lado, de uma fantasia sexual inconsciente masculina e, por outro lado, de uma
feminina” (p.168).
45
Elaine Starosta Foguel

Então o sonho está dizendo não descansarei e não poderei dormir


tranquilamente enquanto não sair dessa casa. Mas no seu relato
você inverteu e disse: logo que saí, despertei (Freud, [1905] 1974,
p. 64, grifos do autor).

De acordo com essas duas frases, somadas à interpretação de Freud


dos restos diurnos, escrevemos as seguintes possibilidades do desejo e do
gozo de Dora no paradoxo apontado por Freud:
(1) Dora saiu dormindo, só se acordou fora da casa. Então sentiu o cheiro
de fumaça.
(2) Saiu da casa, então poderia dormir tranquilamente. Mas estava na
rua. Como dormiria tranquilamente na rua? Sentiu o cheiro da fumaça.
(3) Ao despertar, estava na sua cama, então não havia saído da casa,
estava no incêndio, podia sentir o cheiro da fumaça.
Vê-se que é impossível decidir onde estava Dora quando despertou. Ela
despertou no sonho, mas continuou dormindo. A cada vez que acorda desse
sonho repetitivo, tem uma alucinação olfativa do incêndio sonhado. Ela sai, mas
fica. Fica, mas sai. Quando pensa que vai sair, se encontra dentro, quando
pensa que está dentro, se vê fora. Não há saída, e tampouco ela sabe como lá
entrou; acorda, mas continua dormindo; dorme, mas está na rua: na sua confi-
guração neurótica parece não haver escolha, a impotência é vivenciada como
impossibilidade, como um paradoxo indecidível. Ora, o “indecidível” não é o “con-
trário”, nem o “oposto”. Ao oferecer a Dora uma versão de seu inconsciente
como sendo o “contrário” do que aparece no seu discurso, ela continua presa
nessas mesmas armadilhas identificatórias, sem poder propor nada de diferen-
te a partir da verdade dos seus sintomas, quando parece não haver saída: ela
teria que ficar ou com o Sr. K., ou com a Sra. K., ou identificada com a versão do
pai.
No entanto, a verdade de Dora parece que não passava pela interpretação
do oposto. Porque podemos afirmar isso? Primeiro, ela não concordou com a
interpretação de Freud. Segundo, por que ela abandonou a análise diante do
destino superegoico que lhe apontava a psicanálise: ser obrigada a amar o
marido da amante do seu pai. Foi embora, e só faltou dizer: “vocês homens, são
todos fumaça”.
Do segundo sonho, gostaríamos de sublinhar o seguinte trecho da análise:
– Sabe, Dr. Freud, no sonho que eu lhe contei eu me via distintamente
subindo as escadas.
– E isso se liga ao quê?
– É porque meu quarto fica no andar de cima, então eu tenho que subir as
escadas.
46
Dora

– Não no sonho, Dora, pois se você viajou de uma cidade desconhecida


para Viena sem a ajuda do trem, você também poderia dispensar um lance de
escadas.
Nesse segundo sonho, ela abandonara a casa paterna, mas não encon-
trara um lugar familiar e adequado. Tudo era estranho. Dora estava perdida no
espaço, sem encontrar o caminho de ida, nem o de volta. De repente se parali-
sou, não conseguiu se mover do lugar, o que a angustiou. E eis que, sem saber
como, volta para o mesmo lugar do qual desejara se afastar, a casa paterna.
Sobe as escadas para seu quarto e já está calmamente lendo no seu quarto,
enquanto seu pai está sendo enterrado. Nesse sonho, denominado por Freud
([1905] 1974) de sonho de vingança, os mesmos significantes “casa” e “escada”
reincidem; a mesma estrutura se repete: uma demanda frustrada de fuga, de
saída da neurose, mas em vão, nem com a morte do seu pai, por ela sonhada,
ela conseguiria deslocar suas identificações para outro espaço.
Nos seus sonhos e na sua neurose, Dora habita uma casa semelhante à
que Escher desenha no quadro citado. Em alguns quadros, Escher só utiliza
um ponto de fuga; em outros, ele utiliza três pontos de fuga, assim fundindo três
mundos distintos em uma só unidade, como no quadro Relatividade, de 1953.
Dividindo o quadro em três e seguindo a trajetória das figuras nas escadas em
direção aos jardins, vemos que muitas vão conseguir sair das escadas e entrar
nos jardins. Mas não todas. Algumas ficam num espaço absurdo, presas num
ponto paradoxal: por onde pisam não é teto, nem parede, nem chão. Como, por
exemplo, a figura com saco nas costas saindo de um “porão”. Esse tipo de
perspectiva, que cria espaços paradoxais dos quais não há saída, serve para
ilustrar a posição impossível de Dora. Seria Dora não analisável? Impossível
para Dora abrir mão da demanda de amor do pai e seguir seu próprio caminho?
Tornar-se a mulher de um homem que ela escolhesse? Subir as escadas e
chegar ao jardim?

À guisa de finalização
Para finalizar, o que ocorreu com Freud em relação a esse tratamento?
Jones (1989), relata que o caso Dora fora pensado inicialmente como o capítulo
psicopatológico que faltava na Traumdeutung; seu título seria Sonhos e histeria,
fragmentos de uma análise. Freud desiste de incluí-lo, para não misturar duas
teorizações no mesmo livro, isto é, o mecanismo dos sonhos com a teoria da
neurose. No entanto, ainda segundo Jones, o caso Dora é uma continuação do
livro dos sonhos, no qual Freud queria mostrar a semelhança entre as estruturas
do sonho e a do sintoma, e de que modo a interpretação do primeiro no trata-
mento interfere no segundo. Era esse o seu propósito. E essa talvez seja a
questão problemática, ele tinha algo em mente: a pesquisa de uma hipótese.
47
Elaine Starosta Foguel

Mais de uma década depois, nos estudos técnicos, ele mesmo aconse-
lhará:

Não é bom trabalhar cientificamente num caso enquanto o trata-


mento ainda está continuando – reunir sua estrutura, tentar predi-
zer seu progresso futuro e obter, de tempos em tempos um qua-
dro do estado atual das coisas, como o interesse científico exigi-
ria. Casos que são dedicados, desde o princípio, a propósitos
científicos, e assim tratados sofrem em seus resultados (Freud,
[1912] 1974, p. 153).

REFERÊNCIAS
ERNST, Bruno. El espejo mágico de M.C. Escher. Köln: Taschen Verlag, 1994. Dispo-
nível em: http://hightouchconcept.files.wordpress.com/2007/06/mc escher relativity
623x600.jpg ou Ernst, Bruno. El espejo mágico de M. C. Escher. Köln, 1994, p. 47.
Acesso em 03 de agosto de 2009.
FREUD, Sigmund Fragmentos da análise de um caso de histeria [1905]. In:______.
Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Tradução e direção de
Jayme Salomão. 23 ed. Rio de Janeiro: Imago, 1974.
______. Fantasias histéricas e sua relação com a bissexualidade [1909]. In: ______.
Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Tradução e direção de
Jayme Salomão. 23 ed. Rio de Janeiro: Imago, 1974.
______. Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise [1912]. In: ______.
Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Tradução e direção de
Jayme Salomão. 23 ed. Rio de Janeiro: Imago, 1974.
JONES, Ernest. A vida e a obra de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1989. v. 2.
LACAN, J. A direção do tratamento e os princípios de seu poder [1958]. In: ______.
Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 591-652.

Recebido em 28/10/2009
Aceito em 30/11/2009
Revisado por Gláucia Escalier Braga e Otávio Winck Nunes

48
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 38, p. 49-69, jan./jun. 2010

TEXTOS
O QUE CONSOME
O ADOLESCENTE
Carmen Backes 1

Resumo: A partir de três fragmentos da clínica com adolescentes, a autora


acompanha a forma como opera o mecanismo da recusa da ausência do falo
materno na constituição de uma modalidade do objeto-fetiche. O artigo não se
ocupa da recusa da realidade, como na psicose e na perversão, mas do modo
como um tipo de funcionamento fetichista se imiscui na neurose.
Palavras-chave: adolescência, consumo, objeto, falo, castração.

WHAT THE ADOLESCENT CONSUMES

Abstract: From three adolescents’ clinical fragments, the author follows the ways
through which the mechanism of refusal of the absence of the mother’s phallus
works in the constitution of a fetish-object modality. The article does not approach
the refusal of reality, as in psychosis or perversion, but rather the manner through
which a type of fetishistic functioning merges into neurosis.
Keywords: adolescence, consumption, object, phallus, castration.

1
Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA); Psicóloga do
Instituto de Psicologia (UFRGS); Doutoranda em Educação (UFRGS). Autora do livro: O que é
ser brasileiro? (Escuta, 2000) e organizadora do livro: A clínica psicanalítica na
contemporaneidade (Editora da UFRGS, 2008). E-mail: cbackes@cpovo.net.
49
Carmen Backes

P ara iniciar, esclareço que optei deliberadamente pela ambiguidade da ex-


pressão “consome”, no caso do adolescente, na medida em que pretendo
abordar sua posição de consumidor e também sua posição de consumido (como
ideal inclusive para os adultos). Contudo, uma terceira posição coloca-se em
relevo neste texto: a forma como ele se consome na relação ao falo faltante.
A seguir, retomo a interrogação: qual o interesse que o estudo da adoles-
cência retira da clínica da infância? Primeiramente, podemos assegurar que a
adolescência realiza um corte com a infância, tendo em vista o luto dos objetos
infantis, que é necessário operar. Mas também podemos dizer que a adolescên-
cia efetiva continuidade com a infância. De que ordem é essa continuidade?
Rassial (1997) afirma que na adolescência é necessárirealizar o nova-
mente uma série de operações fundadoras. Em primeiro lugar, se, na fase do
espelho, era o olhar e a voz maternos que lhe asseguravam consistência e
existência, na adolescência, o jovem deverá – se não se apropriar destes obje-
tos parciais –, ao menos, deslocá-los para os pares.
Em segundo lugar, se, na fase fálica, na circulação pelo complexo de
Édipo, tudo girava em torno da mãe, é o reconhecimento da função paterna o
que, na infância, provocará a “desistência” do objeto materno; na adolescência,
é a validação do Nome-do-pai o que permitirá o acesso à relação genitalizada ao
outro do Outro sexo. A adolescência comporta, portanto, a confirmação do reco-
nhecimento do outro sexo, como também o reconhecimento do seu próprio, a
partir da aceitação da falta materna.
Por último, na infância, o sujeito se constitui enquanto alguma coisa para
o desejo dos pais, principalmente da mãe; na adolescência ele deverá reorientar
a pergunta sobre o desejo: se antes tudo se articulava em torno de como satis-
fazer melhor ao Outro originário, agora ele deverá operar o giro de tomar-se da
responsabilidade sobre seu desejo.
Como vimos, o infantil faz retorno na adolescência de forma massiva,
tendo em vista a necessidade da ratificação ou não, a posteriori, das operações
fundadoras realizadas na infância. Os casos clínicos que serão arrolados no
decorrer deste artigo apresentam a leitura de três questões interpretativas do
retorno dessas operações na adolescência e sua relação com o objeto, quais
sejam:
– o caso da adolescente Laura dá a ver a operação de ratificação da
metáfora paterna;
– o extrato clínico da jovem Lana dá visibilidade à posição de ambiguidade
na relação à falta do falo materno;
– e, por fim, o desabafo da mãe da adolescente Vitória retoma a questão
da castração materna e sua relação com a pulsão escópica e invocante, en-
quanto a filha poderia oferecer, portar ou significar a positivação do objeto faltante.
50
O que consome o adolescente

O objeto-fetiche
Uma forma muito particular de constituição do objeto diz respeito ao seu
caráter de fetiche, que tem como intuito o encobrimento de uma falta intolerável
ao sujeito – a castração materna. Dos autores que se ocuparam desse tema,
interessa aqui ressaltar a forma como Freud ([1927] 1981) se ocupou do objeto-
fetiche enquanto precursor, nessa forma de tomar a negação da falta do falo na
mãe, como também interessa incluir as posições de autores contemporâneos
acerca da utilização, nos dias de hoje, dos objetos-fetiche como aqueles que
poderiam disfarçar a falta, e também auxiliar a suportar a desestabilização da
imagem identitária na presença do Outro.
O objeto-fetiche, Freud definiu-o em um artigo escrito no ano de 1927
como aquele que apaga a diferença sexual, pois se origina da eleição da crian-
ça, cujo olhar extasiado escorrega do recém-descoberto corpo faltante da mãe
para se fixar no primeiro objeto que brilhe suficientemente para ofuscar essa
ausência. Para o neurótico, ele é a negação do saber sobre essa falta; para o
perverso, a elevação desse substituto ao estatuto de objeto mesmo.
Essa conceituação freudiana já está contida, todavia, em seu texto de
1910, quando escreve um ensaio sobre a vida e obra de Leonardo da Vinci2
(Freud, [1910] 1981). O tema do fetichismo situa-se a propósito de uma recorda-
ção de sua infância precoce: o artista descreve, em um de seus diários, a lem-
brança de estar no berço quando se aproxima um pássaro abutre-milhafre3 , que
lhe abriu a boca com sua cauda-rabo e golpeou com ela, repetidas vezes, entre-
dentro4 dos lábios. Freud salienta, no entanto, poder tratar-se mais de uma
fantasia ulterior, transferida para o período da lactância5 , do que propriamente
uma recordação infantil, o que não altera em nada suas conclusões acerca do
episódio. Lembra, também, que o artista dedicou grande tempo de suas investi-
gações científicas, quando adulto, ao estudo e à compreensão do voo dos pás-
saros.
A tradução de tal fantasia mostra uma orientação erótica, porque cauda-
rabo, segundo Freud, é um dos mais significativos substitutivos para pênis, em
muitas línguas e não somente para o italiano (língua de origem de Leonardo da
Vinci). A recordação faria referência à mãe, pois os egípcios 6 associavam o

2
O ensaio tem como título Uma recordação infantil de Leonardo da Vinci.
3
“Abutre” é como Freud lê na tradução alemã. Strachey, porém, afirma que, no original em
italiano, tratar-se-ia do milhafre.
4
Idem.
5
A mãe que amamenta o filho é transformada em uma ave que introduz sua cauda na boca da
criança.
6
A divindade egípcia Mut tinha cabeça de abutre e aparecia portando um falo.
51
Carmen Backes

abutre à maternidade, tendo como verdade que todos os abutres são fêmeas e
se reproduzem sem necessidade da participação do macho, dado este que se
refere à história do artista, por ter sido filho ilegítimo, filho de abutre, pois Leonar-
do passou os primeiros anos de sua vida sem saber do pai e longe de sua
companhia7 .
O artista, na infância, assim como toda criança pequena, passa por um
momento de intensa investigação acerca dos genitais humanos 8 . Faz parte das
teorias sexuais infantis a suposição de que todos são portadores de pênis. A
eleição de um objeto-fetiche ocorre justamente diante da “descoberta” frustrante
de que alguns deles não o têm, e é a forma de negar a castração feminina, na
tentativa de recompor o corpo materno. Esse objeto é um “símbolo substitutivo
do membro da mulher” (Freud, [1910] 1981, p. 1596).
O objeto-fetiche é um objeto de caráter imaginário, através do qual uma
perda e uma falta intoleráveis são ocultadas. Trata-se de um objeto mágico de
satisfação que se utiliza do mecanismo da denegação para exprimir a impossi-
bilidade de lidar com a ausência e com a alteridade e diz respeito à impossibili-
dade de passar da imagem ao símbolo.
Desde Freud, muitos foram os analistas que se ocuparam desse tema.
No entanto, a produção recente de Maria Rita Kehl (2009) sobre a vacilação da
imagem identitária parece abrir um caminho profícuo em se tratando desse as-
sunto, qual seja, a constituição e a função do objeto-fetiche na adolescência.
Apoiando-se nas teorizações do psicanalista francês Jean-Jacques Rassial e
utilizando-se da conceituação do objeto-fetiche em Freud, a autora propõe for-
mulações que apresento a seguir, pois, acredito, poderão contribuir para a aná-
lise das relações do sujeito adolescente com os objetos em geral e com os
objetos de consumo em particular.
Kehl descreve como um fenômeno psíquico o fato de, no contato com o
Outro, seja ele exótico, estrangeiro ou familiar, operar-se imediata desestabiliza-
ção da imagem identitária, “ofuscada pela presença da imagem do outro” (Kehl,
2009, p. 130). Todorov (1993) já afirmava que cada encontro opera um enfraque-
cimento, e que a identidade vacila na proximidade com o estrangeiro. Para o

7
É necessário aqui chamar novamente a atenção para a troca do nome da ave, quando o texto
original de Leonardo da Vinci, em italiano, é vertido para o alemão por Freud, pois, na espécie
dos milhafres existem os machos e as fêmeas, e a reprodução se dá por acasalamento. Tendo
em vista essa troca, é necessário interrogar a associação com a deusa egípcia Mut.
8
Freud ([1910] 1981) trabalhou intensamente essa questão no caso do Pequeno Hans.
52
O que consome o adolescente

autor, esse é um paradoxo que pesa sobre o gênero humano: no processo


mesmo do expansionismo e do estabelecimento de relações, a identidade sem-
pre se vê ameaçada.
Diante da vacilação imaginária que sentimos na presença do Outro, ime-
diatamente tendemos a nos identificar com essa imagem “brilhante” que se nos
apresenta, para rapidamente recuperarmos nosso narcisismo abalado. É a ope-
ração de identificação, tanto mais facilitada quanto maior for a pregnância desse
objeto-imagem. “Se isso ocorre na relação cotidiana com nossos semelhantes,
que dizer da relação com as imagens fulgurantes produzidas pela indústria cul-
tural?”, pergunta Kehl (2009, p. 130).
Portanto, a vacilação identitária no contato com o Outro é um processo
psíquico comum a todos, inclusive comum às sociedades, aos povos e às cul-
turas no processo de colonização, por exemplo, conforme analisa Todorov (1993).
Na adolescência, porém, essa vacilação é mais avassaladora, pois a explosão
pubertária faz surgir um “novo” corpo, e o sujeito necessita operar o trabalho
psíquico de assunção dessa nova imagem. O adolescente se vê, de um instante
para outro, com um corpo que excede nas proporções, como também excede
na capacidade de reapropriação. Nesse momento é que ele pode lançar mão
dos objetos-fetiche, que o auxiliem na contenção desse “novo” corpo, e buscar
o reconhecimento não mais do lado do olhar materno e paterno, mas do olhar
dos pares. Qualquer objeto pode fazer essa função, inclusive aqueles de mar-
cas (griffes) reconhecidas pelo semelhante que, pelo fato mesmo de serem
amplamenteratificadospelosocial,maisfacilmenteseoferecem nesse l9u.gar
Isso nos fornece elementos para melhor compreender o lugar privilegiado que o
adolescente ocupa como consumidor e também o tratamento especialíssimo
que a ele é destinado pela indústria do marketing, como também a forma parti-
cular e franca com que adere aos objetos de consumo.
A esse respeito, refiro um singelo exemplo clínico: Lana tem 15 anos e
começa a se exercitar nos rituais de passagem, frequentando bailes de
debutantes. Para isso, usa vestidos que sua mãe confecciona, “vestidos de
mulher”, segundo suas palavras. O fato de ser a mãe quem cria e costura os
vestidos, porém, nunca pode ser revelado; ao contrário, a menina-mulher, sem-
pre mente que foram feitos por um estilista famoso, que é disputado por todas
as adolescentes da cidade.

9
Essas ideias estão mais amplamente trabalhadas no artigo “Patricinha” ou “Largada”: as
identificações na adolescência, Revista da APPOA – Clínica da adolescência, n. 23, dez.
2002.
53
Carmen Backes

O artifício da pequena mentira, utilizado pela adolescente, revela uma


ambiguidade interessante: ao mesmo tempo em que traz um terceiro elemento
– o estilista – para relativizar a pregnância da imago materna, também atribui
intenso valor fálico à mãe, pois seus vestidos podem se confundir com os do
estilista. Isso sugere pensar que a relação do adolescente com os objetos de
consumo está perpassada pela questão de o que fazer com a falta do falo ma-
terno, ou de como fazer o deslocamento dessa questão. Essa relação é intensa
em ambiguidade, pois, como vimos com o exemplo de Lana, o objeto-fetiche é
e não é o substituto do falo materno, é a presentificação ao mesmo tempo em
que a negação dele. Essa báscula coloca em causa uma operação necessária:
a de produzir o deslocamento da preocupação e ocupação com o falo materno.
O extrato clínico, ao mesmo tempo em que nos mostra que um objeto-
fetiche pode ocupar o lugar privilegiado de substituto e de presentificação do falo
materno, também pode fazer função de suporte da passagem e do luto do corpo
infantil para o corpo adulto. O adolescente está em pleno processo de luto pelo
corpo da infância, pelos objetos, pelas roupas, pelos pais, enfim, por tudo aquilo
que fazia parte do universo infantil. Talvez aqui possamos encontrar alguns ele-
mentos que contribuam para o entendimento de por que o consumo dos obje-
tos-fetiche é tão mais pregnante na adolescência, pois a desestabilização ima-
ginária operada pelo processo da puberdade inclui a desestabilização da ima-
gem do próprio corpo e a adesão a esses objetos traz a ilusão da reapropriação,
ainda mais quando operada conjuntamente com a validação social.
A vacilação da identidade corporal, que a puberdade impõe, traz consigo
a reativação da relação ao espelho. A relação ao Outro, agora operada não mais
pelas figuras parentais, mas, sim, pelos pares, traz junto o compartilhamento
dos objetos que oferecem uma identidade ortopédica e a possibilidade de
reasseguramento do controle do corpo. A fantasia de descontrole intensifica-se,
pois as moções pulsionais reativadas pela reedição do complexo de Édipo pre-
cisam sofrer “nova” interdição (castração simbólica), pois agora, na adolescên-
cia, aparecem reforçadas pela capacidade instrumental do exercício da sexua-
lidade. A aderência ao objeto-fetiche pode se oferecer como possibilidade de
trânsito em torno da operação de castração.
Incluo aqui, apenas para ilustrar, pois será retomado adiante, o caso de
outra adolescente, para lembrar que o estranhamento com relação ao próprio
corpo, que se dá na puberdade, pode ser reativado quando da experiência da
maternidade. É o que nos mostra o caso de Laura.
A adolescente Laura, logo após o nascimento de seu primeiro filho, “fica
sem roupa”: não consegue usar as roupas de grávida, pois já não está mais;
tampouco as roupas de antes da gravidez, pois já não servem. Não se reconhe-
ce no espelho e é tomada de estranhamento e angústia quando se vê automati-
54
O que consome o adolescente

camente vestindo as roupas de sua mãe. Passa uma tarde toda “perdida”, tran-
sitando pelo shopping, com o sentimento de não se reconhecer, não consegue
comprar nada.

O campo pulsional e a demanda materna


O estabelecimento do campo pulsional, bem como de seus objetos cor-
respondentes, se dá na relação ao Outro. Veremos que, na tenra infância, a
constituição do campo pulsional e do campo do Outro ocorrem simultaneamen-
te, e a troca de objeto – a passagem de uma fase a outra – somente se opera a
partir de uma reviravolta na demanda do Outro. Conforme afirmamos acima, na
passagem adolescente acontece uma verdadeira efusão pulsional, que se vê
incentivada agora, pois o jovem está instrumentalizado para o exercício da se-
xualidade. Juntamente com essa incrementação pulsional ocorre a reativação
do complexo de Édipo e, portanto, também da rivalização pelo objeto fálico.
Reafirmo que o objeto pulsional se constitui na relação ao Outro e vai
mudando através da reviravolta na demanda que se opera primeiro no campo do
Outro materno. Diferentes modalidades do agir adolescente podem se manifes-
tar diante das dificuldades de operar com a falta do falo materno, dificuldades
essas que podem se manifestar tanto do lado da mãe como do lado dos filhos.
A reinscrição, na adolescência, das vivências em torno do falo, são
incrementadas pelas mudanças corporais que a puberdade impõe, pelas mu-
danças nas relações e pela mudança do lugar social do adolescente. Tal reins-
crição inclui outros tantos elementos, quais sejam:
– ocupação com a falta no Outro: a alienação ao desejo (falta) no Outro é
elemento constitutivo do infantil e retorna na adolescência em forma de pergunta
sobre o desejo. A operação adolescente fará o reendereçamento da interroga-
ção, deslocando-a das figuras originárias e voltando-a para o sujeito. Já traba-
lhamos alguns elementos dessa questão, a propósito do caso clínico que no-
meamos de Lana.
– a necessidade da alteridade: para o sujeito infantil a mãe situa-se na
posição de Outro; na adolescência, através do exercício da função paterna,
opera-se a necessária relativização dessa alienação ao desejo materno. Esses
elementos serão situados adiante, a propósito do caso da adolescente Laura;
– a ambiguidade na relação ao Outro, que se reativa pela reedição da
fase do espelho: a relação especular é fonte de amor e agressividade, ao
mesmo tempo, e a operação de separação do par imaginário na adolescência
opera também a reativação desses afetos, em forma de rebeldia e dependên-
cia simultaneamente. Para extrair consequências, apresentamos o seguinte
fragmento clínico, que coloca em relevo aspectos relativos à pulsão escópica
e invocante.
55
Carmen Backes

Da mãe da adolescente de nome Vitória, ouço frequentemente a expres-


são “estou sem objeto”, numa referência a estar sozinha e sem interesse para
nada. Também a constatação, em forma de queixa, de que sua filha está parti-
cularmente entregue ao consumo, só fala nisso, compra compulsivamente rou-
pas, brincos, objetos e adornos os mais variados. Ao mesmo tempo, a adoles-
cente tenta, não sem atrapalhações, iniciar-se na vida sexual com o namorado,
iniciação essa que a mãe acompanha de perto. Para conter os gastos da filha,
a mãe esclarece reiteradamente que o dinheiro é fruto de seu trabalho e que tem
se esforçado muito para consegui-lo, e que a filha não dá valor para a quantidade
que despende nas compras. Os adornos são adquiridos não necessariamente
para a circulação social, mas frequentemente são portados para “encher” os
olhos da mãe, quando a adolescente veste, circula pela casa, mostra e depois
guarda, para voltar a utilizar ou não. A mãe elogia com frequência: “tudo nela fica
bem”. E mostra certa dificuldade em não ceder aos apelos consumistas da filha,
pois enxerga nela um viés depressivo.
Parece instalar-se na relação entre elas a alternância do objeto fálico
imaginário: enquanto a mãe trata de lembrar sempre da posição profissional e
intelectual reconhecidamente fálica que ocupa, a adolescente responde, a seu
modo, fazendo-se passar, com o auxílio dos objetos, pela jovem mascarada do
falo, convocando assim o olhar materno sobre si, também como complemento
materno. Em ambas pareceria trabalhar a preocupação com o buraco impossí-
vel de suportar. O falo imaginário é o objeto brilhante por excelência, aquele
capaz, como nenhum outro, de “escamotear” a falta no Outro primordial – uma
das figuras da recusa da falta do falo. A reativação insistente do falo, em sua
versão imaginária, é que necessita passar para a ordem do simbólico.
Às representações freudianas do objeto da pulsão – seio, fezes, falo –
Lacan ([1964] 1979) acrescentou o olhar (pulsão escópica) e a voz (pulsão
invocante), que são de extrema importância na adolescência. Na infância, quan-
do da experiência do espelho, a mãe, olhando a criança, antecipa discursivamente
a imagem corporal, até então não constituída como totalidade, tendo em vista a
prematuridade motora do bebê. A vacilação da identidade corporal, que a puber-
dade operou, faz com que o adolescente reconstitua o estádio do espelho, con-
forme já afirmamos.
A difícil operação, que a adolescência exige, é a apropriação imaginária
desses objetos – olhar e voz –, que funcionarão como instrumentos “para confir-
mar essa identidade através dessa experiência que ressitua o semelhante do
outro sexo” (Rassial, 1997, p. 148). No lugar da mãe, aos pares agora pode se
endereçar a invocação do olhar e de seu dizer, para o reconhecimento identitário
e nova sustentação da imagem corporal. Vitória parece ter dificuldade de operar
o redirecionamento da invocação de um olhar sobre si, insistindo em demandá-
56
O que consome o adolescente

lo da mãe, ao “encher seus olhos”. Essa expressão, que ambas utilizam fre-
quentemente, é interessante, pois remete àquele objeto que caberia exatamen-
te na borda materna.
Na menina, o dar o corpo a ver toma o eixo central, associado ao cresci-
mento dos seios, à mudança na silhueta e à visibilidade da menarca. Enquanto,
para o menino, a mudança no timbre da voz e a profusão do discurso elevam-se
sobre os demais. As adolescentes querem ser vistas, e os adolescentes que-
rem ser escutados; ao mesmo tempo, elas ensurdecem e eles não enxergam.
Ainda a propósito desse recorte clínico, abordaremos agora outros ele-
mentos que dizem respeito à circulação pulsional e às condições de possibili-
dade de se operar a passagem de uma fase a outra. Para que o filhote humano
possa largar o seio, é necessário que a mãe o queira também. Dessa forma, a
“migração da libido” sobre as zonas erógenas, a passagem de uma pulsão (oral,
anal, fálica) a outra não está dada pelo amadurecimento, desenvolvimento ou
ultrapassamento de fases, mas, sim, por uma reviravolta dupla na demanda, um
“reviramento da demanda do Outro” (Lacan, [1964] 1979, p.171). Portanto, é
necessário que se opere um reviramento na demanda do Outro originário, para
que se opere o consequente reviramento na demanda do sujeito: o objeto vai se
constituir, se ressignificar e mudar, ou não, na relação à demanda do Outro.
A ideia de ultrapassamento de fases 10 , de uma linearidade na constitui-
ção do campo pulsional, que estaria “inscrita no organismo”, força o pensamen-
to de que, superada uma fase, ela não deverá mais se apresentar. Lacan ([1962-
1963] 2005) rompe com essa linearidade, propondo em contrapartida a
circularidade, quando afirma que o ingresso no complexo de Édipo, a circulação
pela castração, faz ressignificar a oralidade e a analidade, as ditas pulsões pré-
edípicas. De fato, é somente quando a mãe é interditada, na fase fálica, que o
seio entra num tempo verbal até então inexistente; o que é do campo pré-edípico
(oral, anal) vai ser ressignificado pelo falo, em sua ausência.
Disso que afirmamos, desde Lacan, que a passagem de um objeto
pulsional a outro não se dá por maturação, mas pelo reviramento na demanda
do Outro, podemos interrogar: o que é necessário que se opere do lado do Outro
e do lado do sujeito, para que esse reviramento aconteça?

10
Crítica que Lacan faz ao modo como Melanie Klein e Anna Freud tomam o “pulsional” de
Freud, contida no Seminário 11 (Lacan, [1964] 1979, p. 170).
57
Carmen Backes

Quando falamos em “demanda”, imediatamente poderemos supor que se


trata de um pedido, algo que fica explicitado na relação ao outro. Porém, Lacan
trata de – logo no início do capítulo XIV do Seminári Aotransferência, capítulo
sobre Demanda e desejo nas fases oral e anal – esclarecer que, no entanto, “a
demanda não é explícita. Ela é, mesmo, muito mais que implícita, ela é oculta
para o sujeito, ela é como algo que deve ser interpretado. E é aí que reside a
ambiguidade” (Lacan, [1960-1961] 1992, p. 198). E acrescenta ainda que as
necessidades do sujeito passam “pelos desfiladeiros da demanda”. A novidade
que ele propõe então, para argumentar com as teorias “naturalizantes”, é a de
que “tudo aquilo que é, no sujeito que fala, tendência natural, tem que se situar
num mais-além e num aquém da demanda” (id., ibid., p. 199).
A demanda de ser alimentado, que se dirige a um Outro que a espera,
Lacan define como sendo a demanda oral. À demanda de ser alimentado res-
ponde, no lugar do Outro, a demanda de se deixar alimentar, isto é, demanda de
que a criança demande. Nesse sentido, são duas demandas complementares.
“O que existe que responda melhor, aparentemente, à demanda de ser alimen-
tado do que a de deixar-se alimentar”, pergunta Lacan (ibid, p. 201).
Essa relação mãe-criança “parece ser feita para se fechar de maneira
estritamente complementar”. Porém, sabemos

[...] que é no próprio modo de confrontamento entre as duas de-


mandas que jaz este ínfimo gap, esta hiância, este rasgão, onde
se insinua de uma maneira normal a discordância, o fracasso pré-
formado do encontro. Este fracasso consiste, justamente, em não
ser encontro de tendências, mas encontro de demandas (Lacan,
[1960-1961] 1992, p. 201-202).

Poderíamos acrescentar que é sempre muito bem vindo, por paradoxal


que isso possa parecer, que não ocorra a perfeita complementaridade. Os con-
flitos que surgem no processo de alimentação, por exemplo, na amamentação,
manifestam que essa demanda é “transbordada por um desejo”. Fazendo recu-
sa à complementaridade é que o sujeito não permite que se dê a “extinção ou o
esmagamento da demanda na satisfação”, mantendo justamente a brecha do
desejo:

A ambivalência primeira, própria a toda a demanda, é que, em


toda demanda, é igualmente implicado que o sujeito não quer que
ela seja satisfeita. O sujeito visa em si à salvaguarda do desejo, e
testemunha a presença do desejo inominado e cego (Lacan, [1960-
1961] 1992, p. 202).
58
O que consome o adolescente

Ainda acerca da demanda oral, Lacan observa que ela contém em si


duas características que indicam a especificidade da dimensão do desejo: está
ligada à boa vontade do Outro; e está ligada à possibilidade da negação (“Isso
não! Aquilo”, “Tenho fome de chocolate”). Se se trata de um cruzamento de
demandas (diálogo fictício em que há pedido e resposta), demanda de ser ali-
mentado versus demanda de se deixar alimentar, é possível que se produza
toda espécie de equívocos, como também a possibilidade de sujeição. As
psicopatologias alimentares nos dão notícias disso.
Já a demanda anal acrescenta outras especificidades: primeiramente se
coloca o pedido de que o sujeito retenha o objeto, associado ao pedido de que
o expulse no momento indicado. Inclui-se nessa fase a função do educador e
também se funda o desejo de expulsar, com a ressalva de que a expulsão é
exigida em certa hora, caracterizando-se pela completa reversão da iniciativa
em benefício do Outro: o desejo é o desejo do Outro. No caso da disciplina, a
demanda é exterior, está no nível do Outro e é

[...] o ponto onde nasce o objeto de dom enquanto tal. Nessa


metáfora, o que o sujeito pode dar está exatamente ligado àquilo
que ele pode reter, a saber, seu próprio dejeto, seu excremento. É
impossível não se ver aí algo de exemplar, indispensável de se
designar como o ponto radical onde se decide a projeção do dese-
jo do sujeito no Outro (Lacan, [1960-1961] 1992, p. 216).

O desejo está no Outro, o sujeito quer o que o Outro quer. Assim, é


demandado que o sujeito dê alguma coisa que satisfaça o educador materno. A
complexidade dessa demanda merece atenção, pois é essencial, trata-se da
disciplina da necessidade, elemento importante na teorização das pulsões e
que Freud ([1929] 1981) coloca em relevo no texto O mal-estar na cultura de
1929. Porém, logo que o Outro obtém o presente, joga-o na privada. Nesse
ponto situa-se o viés melancólico da neurose obsessiva, na medida em que o
sujeito se “designa no objeto evacuado” (Lacan, [1960-1961] 1992, p. 217). Isso
poderia dar uma indicação da tristeza que a mãe de Vitória enxerga no olhar da
filha.
A fase anal inclui, então, dois tempos da demanda e duplicidade na cons-
tituição do objeto: o cíbalo, demandado como dom, presente precioso e logo
transformado em dejeto. Isso faz lembrar o modo como Vitória lida com os
objetos que lhe são muito importantes: não pode não adquiri-los, para, logo em
seguida, ficarem esquecidos no fundo do armário.
A necessidade é o dom à mãe, cujo produto obterá a aprovação desta
(“Tudo nela fica bem!”), mas imediatamente lançado à condição de dejeto e se
59
Carmen Backes

vai, esgoto abaixo. O sujeito satisfaz uma necessidade para satisfação do Ou-
tro materno, ele está apenso à necessidade do Outro e, ao mesmo tempo,
identificado ao objeto excrementício.
Dito de outro modo, para o sujeito, a relação ao desejo não é natural, pois
está mediado pelo Che vuoi?, expressão adotada por Lacan para fazer menção
à tentativa operada pelo sujeito de identificar no Outro aquilo que ele quer de
mim. Na fase fálica, o pequeno bebê já não é mais tudo para o Outro materno,
que agora quer algo alhures, para além e para aquém do sujeito. A equação
pênis = falo = filho, coloca o órgão masculino como objeto privilegiado, e a
ambivalência que se apresentava na fase anal com relação ao objeto
excrementício (“Que lindo!”, mas privada para ele), retorna agora sobre o pênis =
falo: “Que lindo! Tu prometes, porém agora és ainda muito pequeno!”, lançando,
dessa forma, para o futuro uma promessa. Uma divisão se instaura: por um
lado, o objeto se torna marca de um interesse privilegiado; por outro lado, a
depreciação do sujeito no momento em que ele é lançado numa promessa, pois
se ele virá a ser, ele ainda não o é. Então, o sujeito “é apreciado como objeto, e
depreciado como desejo” (Lacan, [1960-1961] 1992, p. 218).
Por outro lado, a partir da experiência de estranhamento da adolescente
Laura, poderíamos supor que seu bebê-falo nasce já com a incumbência de
aplacar as falhas imaginárias – sua e de sua mãe – oferecendo um suporte
identificatório para o “ser mulher”, que ela dificilmente encontraria em outras
referências. Contudo, o que é que o falo-filho garante?

Trânsito em torno do falo materno


A seguir, retomo os recortes clínicos apresentados neste artigo para
incluir um novo elemento de discussão. Sugiro pensar que, em todos eles,
se apresenta a questão da circulação em torno do falo materno, circulação
essa que redunda, por vezes, num tangenciamento ao mecanismo da recu-
sa. Essa é uma possibilidade de leitura das questões interpretativas da ado-
lescência, na relação com o objeto, que se apresentam nos casos clínicos;
contudo, já de início, fazendo a ressalva de que não se trata de recusas
psicóticas ou fetichistas, mas de uma possível montagem fetichista dentro
da neurose. Esse esclarecimento é importante, pois a definição original que
Freud ([1927] 1981) apresenta sobre o fenômeno da recusa, enquanto recu-
sa de uma realidade traumatizante e essencialmente referindo-se à ausên-
cia de pênis na mulher, o autor evoca principalmente para explicar o fetichismo
e a psicose.
Para iniciar, podemos dizer que a recusa, na sua concepção clássica, se
distingue do recalcamento. Freud ([1927] 1981) sugere, no texto sobre O
fetichismo, que o recalcamento age sobre o afeto, enquanto a recusa age sobre
60
O que consome o adolescente

a representação da pulsão. Penot 11 (1992) concorda com Freud ao acrescentar


que

[...] o recalcamento não suprime mais o afeto (somente desloca-


do) do que a recusa a representação (reduzida a não significância),
mas tanto um quanto a outra sofrem um tratamento particular, que
visa a abolir seus efeitos na economia psíquica (Penot, 1992, p.
25).

De toda forma, a recusa objetiva faz a economia, de algum modo, do


preço a pagar pela castração (luto edipiano) e pelo consequente acesso à ins-
tância simbólica. Assim, ao mesmo tempo em que testemunha certo fracasso
do recalcamento, a problemática da recusa constitui uma invalidação da própria
negação; com efeito, ela está mais do lado de um indecidido. Acrescentemos
que a recusa se apresenta como recusa da realidade psíquica, e não propria-
mente da “realidade exterior”.
Assim como Freud ([1927] 1981) refere-se à psicose e ao fetichismo
através da recusa, Lacan ([1955-1956] 1985) utiliza a expressão “forclusão” para
a psicose e “desmentido” para o fetichismo. Eu diria que, nos extratos aqui
apresentados, não se trata de desconhecimento, mas de perceber a falta e a
consequente dificuldade em lidar com ela. O caráter do objeto, porém, é que se
diferencia, não tomando o viés totalmente fetichista. Trata-se mais da ilusão da
completude, de um engodo transitório e insistente ao mesmo tempo, na medida
em que o objeto insiste, mas substitui-se sistematicamente e não propriamente
há a eleição de um único objeto-fetiche. Aí talvez se situe a principal diferença
entre o fetichismo, e isso que aqui nomeei como uma montagem fetichista na
neurose. Mais do que buscar o termo adequado para nomear a operação (recu-
sa, desmentido, negação, renegação, forclusão), trata-se aqui de apresentá-la e
oferecer elementos para a discussão, através de recortes clínicos.
Dessa forma, o que queremos salientar é que se o objeto precisa ser
positivado, recuperado, através de possíveis representantes (os objetos de con-
sumo, por exemplo), é porque sua ausência foi constatada, mas não necessa-
riamente aceita. Toda a operação talvez pudesse ser traduzida por: “Eu compre-

11
O psicanalista Bernard Penot aborda a dificuldade de aceitação da castração (ausência de
falo no Outro), através do conceito de recusa em duas principais obras: Figuras da recusa,
Porto Alegre: Artes Médicas, 1992; e A paixão do sujeito freudiano, Rio de Janeiro:Companhia
de Freud, 2005.
61
Carmen Backes

endo, mas não consigo, não tenho meios suficientes para lidar com a falta”, que
se traduz por teimosia, insistência, rebeldia, atitudes essas tão francamente
presentes no adolescente. Proponho chamar a atenção para essa modalidade
de recusa que não diz respeito exatamente a uma recusa da realidade, como
nos casos de psicose, e também não necessariamente se colocam do lado de
um funcionamento francamente perverso, mas, talvez, o modo como o funciona-
mento fetichista se imiscui na neurose.
A inconformidade com a realidade corporal (ausência do pênis-falo) talvez
esteja mais do lado das jovens adolescentes, que submetem seus corpos a
esforços extremados em busca da perfeição nunca alcançada, pois sempre
haverá algo que não está bem. Ademais, chama a atenção o fato de essa
inconformidade frequentemente dirigir-se à figura materna, numa modalidade
reivindicatória que comportaria a queixa do tipo “por que tu me fizeste assim tão
incompleta”. Dessa forma, pareceria haver algo de certa recusa em aceitar a
incompletude materna, que redunda na dificuldade em aceitar a incompletude
do corpo próprio, incompletude essa que o recurso a diferentes objetos pode
disfarçar.
Toda criança passa por um período de recusa da ausência de pênis na
mulher, e a capacidade de superar a presença-ausência do pênis tem sua pri-
meira matriz na maneira como é simbolizada pela criança a presença-ausência
de sua própria mãe, jogo esse que foi muito bem ilustrado, na obra de Freud
([1920] 1981), pelo brinquedo de seu neto, o fort-da. O reconhecimento da au-
sência da mãe, como também da falta do órgão na metade dos humanos, é
fonte de desprazer que a recusa tenta evitar. Esse processo foi habilmente
explicitado pelo autor no caso clínico do pequeno Hans (Freud, [1909] 1981).
São as formas de superação desse impasse que vão determinar ou não o aces-
so à genitalidade – à fase fálica. Tanto o menino como a menina, primeiro,
imaginarizam a mãe como detentora do falo, e é essa representação que com-
põe os elementos estáveis da descoberta freudiana do inconsciente, que o autor
nomeou de “representações de coisa”. O falo, acrescenta Lacan ([1955-1956]
1985), é convocado a desempenhar, no inconsciente, o papel de um significante
– o significante da falta12 . Essencialmente, a criança reconhece que aquilo que
a mãe deseja é o que lhe falta, e são as tentativas de resolução desse impasse
que colocarão o pequeno sujeito a “trabalhar” e a determinar as diferentes moda-

12
Ou seja, as representações de coisa têm vocação para funcionarem como significantes.
62
O que consome o adolescente

lidades sintomáticas. Sobre as possíveis saídas sintomáticas, Freud brindou-


nos com o exemplo da fobia do pequeno Hans, conforme já indicamos acima.
Porém, acrescentemos que tanto as saídas homossexuais como as fetichistas
ancoram-se também na necessidade de obturar a decepção diante do corpo
materno faltante.
A recusa, na adolescência, está relacionada à dificuldade de se defrontar
com a redescoberta da falta no campo do Outro. Cai a onipotência das instânci-
as ligadas às figuras parentais, que tudo sabem e a tudo respondem. Defrontar-
se com a falta no Outro provoca angústia, desamparo e vazio no adolescente,
que buscará se desvencilhar desses sentimentos das formas que lhe forem
possíveis. Assim, ele poderá operar as mais diversas manobras para fazer a
economia da angústia e do sentimento de vazio depressivo. Por outro lado, pode
também adotar a postura de arrogância reivindicativa diante dessa constatação,
como outra forma de recusa que as versões imaginárias do falo (objetos do
consumo), como pequenas rolhas 13, fariam a tentativa de tamponar. Sustentá-
culo imaginário externo que lhe permita manter-se circulando no laço social.

Modalidades da recusa
O bebê humano, em seus primeiros contatos com o universo da lingua-
gem, depara-se com dois níveis de discurso: aquele veiculado pela relação es-
pecular com o outro originário e o discurso veiculado pelo entorno social mais
amplo, incluindo a figura do pai, discursos esses que nem sempre estão em
consonância.
O acesso à fala, por parte da criança, não está ligado a uma geração
espontânea, algo dado pela prontidão orgânica, pois ela é, antes de mais nada,
tomada por uma matriz e antes mesmo que pudesse emitir uma palavra, ela foi
envolvida por um discurso, apanhada num campo de significações que será
determinante da sua relação com a realidade. Caracteriza-se, dessa forma, o
que podemos chamar de “antecedência do discurso parental”.
A diferença que se coloca entre as representações operadas pelo discur-
so materno e o discurso social – entre a imagem especular e a simbólica do
discurso – pode operar vivências de estranheza com o próprio corpo que, às
vezes, resultam em recusa da realidade corporal, nos casos mais graves, ou
mesmo em vivências de estranheza passageiras, relativas ao próprio corpo,
marcadamente em circunstâncias especiais da vida. Nesse sentido, lembre-

13
Expressão cunhada por Lesourd (2004).
63
Carmen Backes

mos do caso de Laura, que, diante da primeira experiência de maternidade,


vive um episódio de estranheza ao vestir sistematicamente as roupas da
mãe.
O interesse aqui não se dirige para os casos de estranheza psicótica;
antes, para uma modalidade de funcionamento, na qual o trânsito em torno de
certa recusa da ausência do falo materno parece convocar o adolescente a fazer
uma tentativa de positivação, através de objetos de escolha e compartilhamento
coletivo. Isso estaria na relação direta com a dificuldade de inscrição simbólica
da diferença dos sexos, ou seja, da operação de castração e da aceitação da
ausência do falo.
A seguir, relaciono “figuras”, conforme nomeia Penot (1992), ou modalida-
des de aparição da recusa familiar, que se traduz, num funcionamento mental
compartilhado, como a inadmissão ou o não reconhecimento de algum elemen-
to da história relativa àquele grupo social mais próximo ou mais amplo. Dou
destaque àquelas figuras que se relacionam com os casos clínicos apresenta-
dos neste trabalho.
A primeira modalidade que relaciono é a recusa em função da incoerência
das mensagens advindas das figuras parentais: do lado do pai advém uma men-
sagem, enquanto que, do lado da mãe, advém a mensagem oposta ou vice-
versa. Esse modo de apresentação da recusa remete a um elemento comum da
história das três adolescentes mencionadas neste artigo, cujas mães “moder-
nas” mantiveram, por longo período, casamentos com homens que eram consi-
deravelmente inferiores em seu papel e reconhecimento sociais. Esse era um
assunto não falado nas famílias, e que supostamente as mães aceitavam com
“naturalidade” pouco disfarçada, pois o desvalor de seus maridos se fazia notar
no tratamento doméstico que a eles destinavam. Ou seja, operava uma desi-
gualdade que essas mães aceitavam em tese – serem casadas com maridos
inferiores economicamente –, mas para o que não demonstravam aceitação
real, que se manifestava, por exemplo, na desvalorização da palavra paterna, ou
seja, trata-se do caso no qual a figura materna “não admite” o lugar, a palavra, o
desejo do pai, enfim, não o reconhece.
Esse é um elemento que sobressai no caso da adolescente Laura, cuja
mãe exercia uma atividade profissional de reconhecimento nacional, enquanto o
pai “desaparecia em sua sombra” e só comparecia com o nome que a mãe
utilizava para ser identificada publicamente. A tarefa paterna, nesse caso, era de
oferecer as condições (a infraestrutura) para que a mãe dispusesse de maior
desenvoltura para desempenhar suas atividades profissionais; afora isso, sua
ocupação era estritamente intelectual. A adolescente faz, a princípio, um movi-
mento identificatório ao pai, indo dedicar-se a estudos universitários bastante
intelectualizados. Não leva muito tempo, depois de formada, para que abandone
64
O que consome o adolescente

esse projeto e vá dedicar-se a auxiliar a mãe, no lugar do pai, na medida em que


este havia se separado dela e, portanto, abandonado suas tarefas de auxiliar.
Nos três casos que citei, opera, do lado da mãe (por coincidência, pois
poderia ser do lado do pai), a inadmissão ou a destituição dos valores do cônju-
ge, por serem pais advindos de origem mais humilde. Isso se associa com um
elemento da realidade atual, pois a mãe passa a ocupar lugar muito mais valo-
rizado social e financeiramente do que o pai. O efeito de estranheza da puérpera
Laura se opera quando, diante do espelho, veste as roupas da mãe e quando
percebe a agradável sonoridade das iniciais do nome de seu filho – nome que
junta os sobrenomes de seu pai e de seu marido; no exato momento em que cai
o nome da mãe e ela nomeia um pai14 .
A dupla mensagem de uma das figuras parentais que provoca efeito
injuntivo para a geração dos filhos também pode aparecer sob outras formas.
Em casos mais extremos, a onipotência inabalável, do lado paterno ou materno,
ao não revelar algum fato que possa “denegrir” ou desvalorizar seu passado
familiar ou pessoal, tal como uma falha inconfessável, provoca uma não integração
psíquica de uma parte da herança histórica por inadmissão desses elementos.
Por vezes, uma tradição repetida inadvertidamente, ou um pensamento anterior
já em funcionamento na ordem familiar e sobre o qual não há questionamento –
como, por exemplo, decidir a respeito da educação dos filhos segundo os crité-
rios de praticidade e objetividade em detrimento de outros – pode produzir sujei-
tos reféns de “outra cena” familiar.
Em todas essas modalidades de funcionamento familiar pareceria haver
carência de pensamento e de discurso da família sobre si mesma. A dificuldade
da família de constituição de uma narrativa própria, ou a obstrução desse pro-
cesso, a incapacidade de contar (conforme Benjamin, 1994), lança a geração
dos filhos numa insistência em torno do objeto. As narrativas contemporâneas
podem oferecer elementos que ajudam os jovens a dar estofo a uma história
familiar por vezes empobrecida de elementos simbólicos necessários para a
constituição do mito familiar de cada sujeito.
O psicanalista Bernard Penot (2005) sugere que só poderia ser traumáti-
co para uma criança aquilo que é traumático para os pais, ou seja, aquilo que
excede a sua capacidade de pensar e, portanto, não encontra representação
simbólica possível. O sujeito em sofrimento é mantido impedido de ter acesso à

14
Esclarecemos que Laura não havia adotado o sobrenome do marido, por ocasião do casa-
mento. Esse sobrenome só aparece no momento do registro do primeiro filho.
65
Carmen Backes

compreensão de elementos de sua história através de um discurso intergeracional,


pois as “fontes referenciais significativas” não estão colocadas a sua disposi-
ção. A dinâmica familiar provoca uma recusa persistente, que invalida a
simbolização de certos elementos de sua vida.
Para todas essas modalidades ou “figuras da recusa”, Penot (1992) su-
gere pensar em “carência fantasmática”, o que, aliás, parece bastante oportuno,
na medida em que é próprio da adolescência o franco processo de constituição
do fantasma, que pode redundar até mesmo no seu inacabamento. Nos casos
que aqui propus analisar, a deficiência na constituição fantasmática se enlaça à
dificuldade familiar de restituição de uma verdade, ou seja, a família opera a
rejeição de uma realidade anterior, que não pode ou não quer ser reconhecida.
Assim, frequentemente, as dificuldades dessa ordem, no adolescente, reme-
tem-se a prováveis deficiências no seu entorno originário.
Dessa forma, o que referimos aqui por recusa, por parte do adolescente,
refere-se, no mais das vezes, a uma “inadmissão”, na geração dos pais, de
algum elemento da história familiar que opera efeito na geração subsequente.
Dizendo de outro modo, caberia às figuras da geração precedente a possibilida-
de de pensar sua própria falta, ou seja, que o outro se reconheça faltante e
possa transmitir o desejo. Nos casos que analisamos, trata-se da dificuldade
dessas mães de porem em ação sua própria falta e de torná-la simbolizável para
seu filho, ou seja, de operarem o luto da onipotência. A necessária operação de
castração do Outro materno permite, assim, que ele seja relativizado, mas para
isso é necessário o suporte numa figura terceira (paterna). Lacan ([1964] 1979)
formaliza essa operação com o matema significante da falta no Outro S (A
barrado). Com isso, ele quer salientar a forma como está presente no discurso
da mãe sua própria falta, quando esta não está escamoteada. O contrário redu-
ziria a margem de liberdade de funcionamento do sujeito (filho).
Isso nos faz pensar novamente na manifestação do consumo na adoles-
cência, e na insistência do objeto (fetiche), como sendo da ordem de uma falta
de liberdade, de uma inibição, portanto, mais do que de um sintoma. Ou seja,
quando o objeto fetiche vem a cumprir função apenas ortopédica, obnubilando a
falta materna. Essa operação, contudo, manifesta, de forma ambivalente, que a
completude é claudicante, como todo equipamento ortopédico tende a mostrá-
lo. E, justamente por falhar na sua intenção, necessita ser reiterada sistemati-
camente, assim como o objeto precisa ser substituído indefinidamente.
A adolescência comportaria, então, o trabalho exigido pelo encontro da
posição feminina por parte de todo o sujeito, ou seja, da diferença entre os
sexos. Assim, recoloca-se na adolescência a redescoberta do significante da
falta no Outro. Por que falo em redescoberta? Porque uma das fantasias sexu-
ais infantis, muito bem demonstrada por Freud ([1909] 1981) com o relato do
66
O que consome o adolescente

caso pequeno Hans, é a de que todos os humanos são portadores do pênis-falo.


A fantasia infantil de completude se atualiza na puberdade sob a forma de
complementaridade dos sexos, da fantasia da realização da completude conju-
gal. No entanto, é no início da atividade sexual do adolescente que este se
defronta com a incompletude que o encontro sexual não para de inscrever. O
objeto de consumo pode se colocar como a forma moderna da tentativa de
velamento fetichista desse impossível. A adolescência comporta, portanto, a
perlaboração, diante do desvelamento do feminino. Lesourd nomeia as saídas
sintomáticas desse trabalho da adolescência como “figuras da incompletude”, e
a “cristalização da patologia adulta se construirá privilegiando as dificuldades
subjetivas diante de uma das figuras da incompletude” (Lesourd, 2004, p. 49).
Lembro que a dificuldade do reconhecimento da diferença entre os sexos
pode produzir saídas variadas. A acentuação, pelo fenômeno pubertário, das
características que marcam a diferenciação sexual – crescimento dos seios,
dos pelos – pode provocar a adoção, tanto por parte dos meninos como das
meninas, de uma aparência andrógina.
Lesourd toma então a recusa mais como recusa do feminino e a
concomitante manutenção de uma relação infantil com o objeto que preserva a
mãe originária. Contudo, outras modalidades de relação com a falta podem se
apresentar no sacrifício do corpo na adolescência, principalmente por parte das
meninas, seja na academia, seja na eterna insatisfação com relação às roupas
ou ao fio de cabelo fora do lugar, que podem associar-se à busca da ausência do
defeito que reatualiza, a todo instante, a falta no próprio corpo e no Outro.
Uma questão que ainda resta: por que essas modalidades de recusa que
sugerimos tomar como um funcionamento em que o objeto fetiche assume um
caráter particular, embora não se trate propriamente de fetichismo, não deriva-
ram para a psicose ou mesmo para a perversão?
Para a psicanálise, o período de latência, que ocorre depois da circula-
ção pelo complexo de Édipo até a entrada na puberdade, coincide com uma
renúncia temporária de satisfação das moções pulsionais sexuais sob um modo
direto. Pode-se dizer então que a latência coincide com a aquisição das capaci-
dades sublimatórias (Penot, 2005, p. 111). A qualidade dessa capacidade
sublimatória do período de latência dará indícios da “força do eu” para suportar a
desestabilização que a puberdade impõe com a nova avalanche de energias
pulsionais. Trata-se de diferenciar se são “sublimações verdadeiras”, em que o
recalque não teria participação essencial, ou se são defesas oriundas do recalque
dos representantes pulsionais e, portanto, do retorno do recalcado em forma de
sintoma.
É necessário destacar que Freud ([1915] 1981) associa o processo
sublimatório com as pulsões sexuais inibidas quanto ao seu objetivo, definindo-
67
Carmen Backes

o como processo que consiste numa mudança no modo de satisfação. É, por-


tanto, uma via de satisfação importante para o adolescente, diante da
efervescência pulsional que a puberdade impõe.
Nesse sentido, pareceria que um “direcionamento” sublimatório por parte
das autoridades parentais funcionaria melhor do que a recriminação superegoica.
Lembremos aqui da diferença que se coloca, por um lado, entre o superego
repressivo parental e, por outro lado, aquilo que pode ser transmitido como “sa-
ber gozar pulsional”15 , que o adolescente percebe como sendo acessível a ele,
além de apreciado e recomendado pela autoridade parental. Nesse sentido,
pareceria que “dar exemplo” ao adolescente, através de um saber-fazer com a
realidade, funcionaria melhor em termos “educativos” do que a repressão
superegoica.
Na continuidade entre as gerações, opera-se um jogo entre repetição e
diferença. Os jovens inscrevem, com mais ou menos sofrimento, alguma dife-
rença num mundo “mais velho”, ao mesmo tempo em que fazem outras tantas
repetições. O caso da adolescente Vitória dá indícios sobre a maneira pela qual
o outro parental terá sabido se “desfazer”, ceder seus objetos, como também se
prestar à operação de simbolização de seu rebento. Nesse caso, o investimento
pulsional parental sobre seu “único” objeto parece não ter tido suficiente qualida-
de sublimatória, produzindo uma modalidade de recusa parental que insiste na
filha adolescente.
Quais soluções pulsionais o jovem será capaz de colocar em operação
diante do drama existencial que a adolescência implica? Certamente entrará
em jogo a capacidade de se entregar a atividades sublimatórias a sua disposi-
ção, e a tarefa dos adultos será de abrir e incentivar o acesso a satisfações
pulsionais em lugar de pura descarga. A possibilidade do adolescente de se
enganchar num projeto, seja ele profissional, amoroso ou intelectual, será dife-
rente se nisso estiver incluído o reconhecimento pelo adulto parental e não so-
mente pelo social. De qualquer modo, nunca é demasiado lembrar que, para o
pulsional, não haverá satisfação integral.
Nos casos das adolescentes aqui analisadas, é essa possibilidade de
orientação e aquisição de consistência, a partir das significações e dos
referenciais oferecidos pelo Outro familiar, que parece estar evanescida ou não
aceita. O jovem, por estar exatamente atravessando o processo de constituição

15
Expressão utilizada por Penot (2005).
68
O que consome o adolescente

fantasmática, encontra dificuldade dupla na consecução desse projeto: naquilo


que ele necessita sistematicamente se apoiar para fortalecer essa construção,
sistematicamente insiste em não se oferecer à simbolização por certa recusa
de significação e de valor.

REFERÊNCIAS
BACKES, Carmen. Patricinha ou largada: as identificações na adolescência. Revista
da Associação Psicanalítica de Porto Alegre – Clínica da adolescência, Porto Alegre,
n. 23, p. 31-40, dez. 2002.
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Recebido em 20/08/2010
Aceito em 30/10/2010
Revisado por Valéria Rilho
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