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HISTORIA DA MECÂNICA ESTATßTICA* t

SILUO R. A. SALINAS
Univenidade de São Puttlo
I

A mecânica estatfstica pretende elucidar a conexão entre o mundo microscópico,


I

{
e a des-
constituldo por partículas em movimento, govornadæ pelas leis da mecânica, I

duæ descrições da natureza são autô'


cnção macro-scó¡ca dos fenômenos físicos. Estas
ao estilo da famosa duali-
no-ur, indepenãentes, e de certa forma se complementam
I

ánda-càrpúsculo da mecânica quântica. A teoria macroscópica


por excelência é
dade I

a termodinámica, com as Su¿ts variáveis macroscópicas,


"visíYeis", como a temperatura'
vamos ver que a mecâ-
a pressão, o volume ou a quantidade de matéria de um sistema.
sozinha pala as novas regu-
nica, mesmo na sua versão quântica, foi incapaz de apontar
de forma essencial com o número
laridades da termodinâmica, que estão relacionadas
enoÍne de partlculas que constituem os corpos macroscópicos'
centrais da sua
As bæes da moderna mecânica estatística, bem como os problemas
alguns pesquisadores eminen'
fundamentação, podem ser encontrados nos trabalhos de
clausius, Boltzmann, Gibbs, e um
tes do finaL do seculo passado, como Maxwell,
principalmente na obra de Ludwig Boltz-
pouco mais tarde o própìio Einstein. Mas é
mais candente'
mann (1844-1906) àue todas estæ questões aparecem de uma forma
Neste nosso trabalho vamos então apresentar os passos iniciais do desenvolvimento
procufa dæ bæes
da mecânica estatística, com ênfase na obra de Boltzmann' na sua
mecânicas da tennodinâmica, e nos debates que ele trava com os seuscontemPofâneos'
debates, e que
Pode-se dizer que a moderna mecânica estatística surgiu a partir destes
a própria *r"ãrri"u quântica não intror¿uz modifìcações mais sérias næ formulações
ou nos grandes problemæ tratados por Boltzmann'

1. Situação da física por volta de 1870


o eletro-
Por volta de 1870, as tr€s grandes vertentes da flsica clássica - a rnecânica,
magnetismo e a termodin emica - já se apresentavam como teorias bem definidas'
A própria termodinâmica, cuja formulação é relativamente mais recente, mostrava-se
,* tS7S, næ palavræ de Maxwell, como uma ciência com fundamentos seguros, defi-
nições claras e limites distintos.
A mecânica newtoniana era a grande ciência acabada da época, que além de ter
filosó-
sido colocada em bases formais rigorosæ já tinha exercido profunda influência
todos fenômenos ffsicos âs
fica. No entanto, o mecanicismo, a tentativa de reduzir os
Maxwell, Helmholtz, Boltz-
leis da mecânica, apesar de constituir o celne da ffsica de
t Aula ministrada no II Encontro de História e Filosofia tla Ciência - UNICAMP - 14 a 17 de
novemb¡o de 1979.
Cadernos de História e Filosofia da Ciênci¿ J (1982), pp' 2842'
Histórin da Mecânica Estatística 29

mann e da maior parte dos seus contemporâneos, encontrava-se æsediado e em plena


retirada no final do século Pæsado.
Os postulados fundamentais do eletromagnetismo foram formulados por Maxwell
em 18ã4, e a existência dæ ondas eletromagnéticas, com a conseqüente unificação do
eletromagnetismo e da óptica, foi comprovada experimental¡nente por Hertz em 1887.
No entanto, o eletromagnetismo ainda necessitava, para a sua formulaçâ'o mais com'

e os "energeticistæ" são os seus grandes admiradores.

2. As leis da termodinâmica
A termodinâmica pode ær formulada em tennos de duas leis básicas. A primeira
lei incorpora e generaliza a idéia mecânica de conservação cla energia. O seu estabele-
cimento pressupõe a superação da teori calor não
pæsa de uma forma de energia' Esta multanea'
mente, nos trabalhos de Mayer, Joule, ores euro-
peus. Em particular, Helmholtz formula a primeira lei numa linguagem bern próxima
à da mecânica, que pode ser expressa peia equação

Lu= LQ + Lll, (2.r)

onde At/ é a variação da energia interna do sistema, LQ é a energia absorvida em forma


de calor e Lh) o t¡abalho mecânico realizado sobre um certo sistema.
A segunda lei surge a partir da teoria do funcionamento dæ máquinæ térmicæ' O
seu primeiro formulador, Sa ensa em termos do calórico e
postula que o calor deve flui a uma fonte fria a fim de pro-
duzir trabalho. As idéias de por Clapeyron, Kelvin e Clau'
sius. Em 1865, Clausius define uma nova gtandeza térmica, a entropia, que se conserva
numa máquina ideal, mas que em geral aumenta para um sistema fechado. A palavra
entropia vem de um vocábulo grego que signifìca evolução, mudança, e se adapta
muito bem ao final do seculo XIX, quando a influência do pensamento de Da¡win é
marcante. Nos processos irreveníveis - como, por exemplo, na difusão de um gás -
a entropia devi aumentar. Aliás, a maioria dos processos reais é irreversfvel e cor'
responde a um aumento da entropia. Num plocesso quase+stático, que representa
uma sucessão de estados de equilíbrio macroscópico, a variação de entropia ÀS é dada
por
30 Silvio R. A. Saliras

^ó'
= *,T ez)
onde T é a temperatura absoluta do sistema.
As leis da termodinâmica podem ser resumidas numa citação de Clausius, utilizada
por Gibbs em 1875 no frontispfcio do seu famoso trabalho sobre o equillbrio das
substâncias heterogêneas: "A energia do mundo é constante. A entropia do mundo
tende para um valor máximo."

3. Comportamento dos gases

As tentativas de explicar o comportamento do ar, que é o único gás efetivamente


estudado até meados do século XIX, dão origem à chamada teo¡ia cinética, precursora
da moderna mecânica estatlstica.
No século XVII os aparelhos de medida de pressão e de temperatura já estão sufi-
cientemente desenvolvidos para permitir certas observações quantitativas sobre o ar.
Descobre-se então a pressão atmosférica, que é muito estudada, e Robert Boyle esta-
belece a lei dos gæes,

pZ : constante, (3.1)

ondep e Øsão apressão e o volume dogás,respectivamente,caexperiênciaéfeitaâ


temperatura ambiente. Deve-se observar o cará,tq estritamente empfrico desta lei,
pois ela não depende de modelos matemáticos ou mecânicos. Por outro lado, a idéia
de calor especffìco e de calor latente só foi introduzida em meados do século XVIII
por Josoph Black. lævando-se em conta que o cdor específìco dos gæes é constante
fato que também vale para os sólidos com o nome de lei de Dulong e Petit e que o
-
-
produto pV ê proporcional à temperatura, Clausius estabelece uma equação para r
entropia dos gases. Modemarnente, para um gás ideal clássico monoatômico de,fy'par-
tlculæ, podemos escrever a função entropia de Clausius na forma

S=kN9n V 3KN
a NSs,
¡r2 QnT Q.2)

onde ¡b é a chamada constante de Boltzmann e,Se é uma constante independente de


TEeN.
As teorias geralmente aceitas até meados do século XIX supunham que æ partlculas
do ar se dispõem de forma estática, ligadas entre si através de pequenas molas. A
compressão ou a distensão das molas é que produzia a va'jação da pressão do gás.
Modelos desta natureza foram utilizados por Newton e depois por Laplace para dedu-
zfu a ldi de Boyle. Portanto, houve grande resistência à idéia moderna de que os sólidos
Históris da Meaînica Estatística 3I

é que são compostos de partículas localizadas, -enquanto os gases são compostos de


partlculas em movimento translacional muito'rrípido. Os grandes precursores das
teorias dinâmicas dos gæes foram Daniel Bernoulli (1738) e os ingleses John Herapath
(1821) e John J. Waterston (1S43). Este último chegou mesmo aos conceitos de cami-
nho livre médio de uma partícula e de equipartição da energia' No entanto, não se
pode dizer que tenham tido maior impacto sobre os seus contemporâneos'

4. Teorias dinâmicas dos gases


A teoria dinâmica dos gases passa a ter importância com o aparecimento de um
modelo proposto por Krönig (1356) e desenvolvido por Clausius (1857). Trata-se
de uma explicação da lei de Boyle em termos microscópicos e puramente mecânicos'
Como o modelo é muito simples, vamos tentar explicá-lo. Consideremos uma caixa
de lado L, isto é, com volume v : L3 . Dentro da caixa existem.fy' partfculas com
velocidade de módulo constante c. As partículas se dividem em 6 feixes que se movem
ao longo dæ direções dos eixos de coordenadæ cartesianæ. Vamos supor ainda que
as partículas não interagem entre si, mas que apenas se chocam elasticamente com as
paredes do r elásticos, em que o sentido dæ velôcidades das
partfculas se a pressão do gá¡. É r¿cit obter o número total
ãe partfculas caixa, de ltea L2, durante o intervalo de tempo
f, isto é,
^
fun{r'"u)'
Como o momento transferido por uma partfcula de mæsa lø durante o choque é
t:", o momento total transferido no tempo Âf é

Lt)2mc-
äNr&'c
A partir da segunda lei de Newton, que defìne força como momento transferido por
intervalo de tempo A f, podemos obter a pressão, isto é, a força por unidade de área,

n =ff ø" c tr) 2mc þ |2. (4.r)

Desta ultima equação temos a lei de Boyle,

pv
1

=tN mc2 . Ø.2)

Mais ainda, levando-se em conta a forma moderna da lei de Boyle, pV:lIkZ, vemos
que fica patente o relacionamento entre a temperatura e a energia cinética dæ par-
tículas do gás.
32 Silvio R. A. Salirws

Clausius percebe que a velocidade c é uma espécie de valor médio e que æ colisões
moleculares são muito importantes para explicar a equalização das velocidades. Em
1859 ele introduz o conceito de caminho livre médio, que é o espaço percorrido em
média entre duas colisões moleculares, para removef certæ objeções ao seu modelo.
Uma destæ objeções é o curioso argumento do perfume: se todas As partículas de um
gás viajam de um lado a outro de uma sala com a mesma velocidade c, que deve ser
muito grande, então um frasco de perfume aberto numa extremidade seria imediata'
mente percebido por um observador na outra extremidade da sala. Mas isto não acon-
tece, as partículas de perfume levam um certo tempo pafa se difundir, e as colisões
molecula¡es é que são responsáveis por este atraso. Deve-se também notar que o con'
ceito de caminho livre médio abre perspectiv¿N para um yasto prograrna de ciílculo das
ehamadas propriedades de transporte: condutividade térmica, difusão de partículas,
viscosidade, etc. . .
A noção matemática de uma funçÍio de distribuição das velocidades das partículas
de um gás surge claramente num trabalho de Maxwell, publicado em 1860. Maxwell
é capaz de reescrever a expressão (4.2) para a lei de Boyle na forma

pv=lxm<i'>, Ø.3)

onde c2 é substinído pelo valor médio 1 /2 ) definido pela relação

f (1') dl
<1,2> :1tr2 , (4.4)
tfo) db

em que f (i)é' a funçäo de distribuição das velocidades, isto é, f(l )d/ dáonú'
mero de partlculascomvelocidade i : (vx,vy,v) tal que rrrestánointervalo
eîttevx e vx + dvr,v, no intervalo entre rrt ,y*dv, e vrnointervaloentr€
"
vz e vz * dvz.Usando argumentos de isotropia no espaço das velocidades, Maxwell
observa que f ( t ) obedece "a mesma fórmula com que os erros são distribuidos
na teoria dos mfnimos quadrados". Temos então a famosa distribuição de Maxwell-
Boltzmann, dada por

lkr),
1

f t) = c exp (-lm v' (4.s)

onde Cé uma constatte e m a massa dæ partíctrlas.


Nesta época surgem, em rápida sucessão, vários resultados da teoria cinética:
(Ð Maxwell calcula uma expressão para o caminho livre médio À das partículæ
de um gás (À é invenamente proporcional à densidade e à seção de choque dæ par'
tfculas). A hipótese brísica por detrás deste cálculo é que as velocidades das partículas
História ds Meainics Estatt'stíca 33

não estão correlacionadas - esta é a hipótese do caos molecular, que será depois uti
lizada por Boltzmann.
(ii) Maxwell mostra que o coefìciente de viscosidade de um gás independe da den-
sidade (o que não é nada intuitivo) e é proporcional à raiz quadrada da temperatura.
A confirmação experimental deste fato, pelo próprio Maxwell e Posteriormente por
vários outros pesquisadores, representa um grande triunfo da teoria cinética.
(iii) Clausius estabelece o "teorema da equipartição da energia" e calcula o cÍuor
específico dos gases. Aqui surgem alguns problemas que só serão resolvidos de maneira
satisfatória mais tarde, com o advento da mecânica quântica. Por exemplo, o teolema
da equipartiçâo prevê que a relação entre os calores específìcos a pressão constante e
a volume constante é 5l3 e 4/3 respectivamente para os gases monoatômicos e diatô'
micos. Embora tenha havido boa concordância exPerimental com as medidæ para os
gases monoatômicos (que foram isolados na última década do século passado), a re-
lação entre os calores específicos do ar, que é um gás essencialmente diatômico, dava
com boa segurança o valor 1,4*7 15, bem longe da previsão teórica'
Há quem afìrme que o desenvolvimento da teoria cinética, aliado à influência das
teorias de Dalton na qufmica, contribuiu decisivamente para reabilitú o conceito
de átomo flsico, atacado no final do século por ffsicos e fìlósofos de formação posi'
tivista. O átomo ganha uma nova realidade e se desprende dos liames com a metaff-
sica. Através das medidas dos coeficientes de transporte, que são escritos em termos
do caminho livre médio, estimam-se diâmetros e massas atômicæ. Calcula-se também
o número de átomos num centímetro cúbico de um material - assim é que se produ-
zem os números de l,oschmidt e Avogadro.
A distribuição de Maxwell em si começa a ser verifìcada apenas na década de 20
cdrn æ experiéncias de Stern. Em 1955, Miller e Kusch realizam experiências de gran-
de precisão que confirmam a distribuição de Maxwell-Boltzmann de forma altamente
satisfatória.

5. Bases mecânicas da Segunda I'ei


Para descrever a termodinâ¡nica em bases mecânicas é imprescindfvel encontrar
funções mecânicas que representem grandezas como a temperatura e aentropia e que
sejam capazes de distinguir entre os dois tipos de energia - trabalho e calor. Além
disto é necessário ca¡acteizar mecanicamente o estado de equillbrio termodinâmico
e distinguir, sob o ponto de vista mecânico. entre processos reversíveis e ir¡eversí-
veis. Este é o programa de pesquisa que vai ser adotado por Ludwig Boltzmann a partir
de 1865.
Logo após a publicação do trabalho de Clausius, em que a função entropia é de-
finida de forma clara, Boltzmann propõe u¡n modelo mecânico a partir do qual deriva
uma expressão analltica para a função entlopia e mostra que ela aumenta com o tem-
po. No entanto, ele é obrigado a admitir que as partículas do gás se movem em órbitas
periódicas, e o próprio período de revolução entra na sua expressão da entropia. Este
34 Silvio R. A. Salinos

trabalho inicial de Boltzmann é muito criticado, inclusive por Clausius, e cai logo no
esquecimento.
Pouco depois desta primeira tentativa, Boltzmann aparentemente lê os trabalhos
de Maxwell e se convence da utilidade da função de distribuição das velocidades
f(t ) e da necessidade de levar em conta os choques moleculares para produzir uma
evolução do sistema para o equilr'brio. Datam deste perlodo alguns trabalhos em quo
Boltzman¡r amplia as idéiæ de Maxwell e consegue novamente escrever uma expressão
analftica para a funçíÍo entropia. Finalmente, em 1872, ele publica o primeiro traba-
lho que contém uma equação para a evolução temporal da função de distribuição das
velocidades das partfculæ de um gás. Esta é a famosa equação de transpofte de
Boltzmann.
Considerando um gás distribufdo uniformemente no espaço, em que só ocorrem
colisões binárias entre as partículas, a variaçlio temporal da função Í pode ser (f)
estabelecida a partir do estudo de duæ partículas com velocidades y'1 e i2 Que colidem
e têm æ suæ velocidades mudadæ pa:.a li
e ili. Admitindo-se durante o choque
a conæwação do momento,

mù + ïrl2 - mli + mli (5.1)

e da energia cinética,

I I
I*r.I*, 2
mli2 + a
nrl (s.2)

e supondo-se que ar¡ velocidades não são correlacionadæ (hipótese que já havia sido
utilizada por Clausius e por Maxwell e que fìcou conhecida como "Stosszahlansatz"
ou "caos molecular'), isto é, que

1(ûr,ì, ): f (lr) f (lr) , (53)

tem{e a chamada equação de Boltzmann,

Ir, t ) : I d a I dlz'o (a) I ù - tz It f ( tí, t) f (li, t ) - î (l t, t ) î( ir, r)1,


*,t,
(s.4)

onde o (g) é a seçäo de choque molecr¡lar em função do ángulo sólido O.


Como produto essencial desta dedução, Boltzmann mostrou a existência de uma
certa função

H(t) = Idf f (i,t)9.n l(i,t), (s.5)


Históriø dø Meúnica Estatístico 35

cuja derivada em relação ao tempo nunca é positiva, isto é, tal que

4lçs
dt
(s.6)

Este é o famoso "teorema-H" de Boltzmann.


A partir de (5a) pode-se perceber que a distribuição de Maxwell é uma condiçäo
sufìciente para o equillbrio, isto é, quando

f(it,t)f(tr,t):fOi,t) f (li,t) (s.7)

a função f não depende do tempo e deve ser da forma (4.5). Por outro lado, com o
auxllio da função fI, mostra-se também que dilldt: 0 implica uma função / indepen-
dente do tempo, dada pela fórmula de Maxwell. Isto significa que a distribuição de
Maxwell-Boltzmann é uma condição necesMria e suficiente para o equilrtrio termo-
dinâmico. Além disto, pode-se mostra¡ que no equilÍbrio a entropia de -um gás ideal
é dado por -kH.
Aparentemente neste ponto o programa de Boltzmann estava encerrado. Diga-se de
passagem que a equação (5.4) deu enæjo a um grande progresso no cálculo dæ pro-
priedades de transporte e que ainda é,utihzadapraticamente na sua forma original. No
entanto, começam a surgir certas objeções ao trabalho de Boltzmann. É exatamente
a discussão destas objeções que dá origem rà formulação moderna da mecânica estatfs-
tica.

6. Paradoxo da reversibilidude
I¡schmidt, colega de Boltzrnann na Universidade de Viena. {ìrme defensor do ato-
mismo, alega numa discussão em 1876 que æ leis da mecânica são reversíveis no tempo
e que, portanto, não poderiam produzir uma função do tipo da entropia. para todo o
processo em que a entropia aumenta, existe um processo análogo, com as velocidades
dæ partículas invertidæ, em que a entropia diminui. Isto signifìcaria que o aumento
ou a diminuição da entropia dependem apenas dæ particulares condições iniciais dos
sistemas.
Para responder a esta objeção, Boltzmann é levado a esclarecer e enfatizar o caráter
estatístico da sua teoria - ele está usando distribuições estatísticas e supondo que as
velocidades das partlculas não estejam correlacionadas (hipótese do "caos molecular").
Além disto, Boltzma¡rn admite que possam existir condições iniciais que levem a uma
diminuição da entropia. No entanto, no chamado espaço de fæe, tais condições cor-
respondem a regiões muito menores do que as regiões æsociadas às condições iniciais
que aumentam a entropia.
Aliás, o caráter probabih'stico da segunda lei da termodinámica já havia sido sufì-
cientemente enfatizaclo por Maxwell através de uma série de exemplos. Num destes
36 Silvio R. A. Salinas

exemplos, Maxwell ilustra como seria possfvel, a partir de dois sistemas em equilíbrio
térmico, tomar um deles mais quente e o outro mais frio sem realizar nenhum trabalho
externo. Bastaria pqra tanto introduzir um Pequeno furo, com uma portinhola, entfe
æ paredes dos dois sistemas, e dispor de'ã doorkeeper,veryintelligentandexcetidingly
quick, with microscopic eyes": Sabendo-se que no gás em equilíbrio æ partfculæ se
distribuem com as mais variadas velocidades, de acordo com a distribuição de Maxwell,
a função deste porteiro, o "demônio de Maxwell", seria abrir rapidamente a Portinhola
para que as partfcr-rlas com maiores velocidades passassem num determinado sentido.
No outro sentido ele poderia, por exemplo, deixar passar as partfculas de velocidades
mais baixas. Claramente, neste processo o lado frio se torna mais frio e o lado quente
mais quente, sem a realização de qualquer trabalho extemo, em contradição com a
segunda lei da termodinâmica. No entanto,.não é provável que se encont¡e uma enti'
dade tão rápida e inteligente, com plena informação sobre os detalhes dæ configU-
rações moleculares.
O próprio Gibbs, na sua famosa obra sobre o equilíbrio dæ substânciæ heterogê'
neæ, traduzida para o alemâ'o por Ostwald e altamente respeitada pelos energeticistas,
afìrma que "the impossibility of an uncompensated decreæe of entropy seems to be
reduced to improbability." Esta frase mais tarde vai ser inscrita por Boltzmann na
abertura'do prefácio para o segundo volume das suas Lições sobre a teorio dos gases
e parece resumir a!¡ su¿ui idéias sobre a segunda lei.

7. Modelo do gtÍs de Boltzman


A necessidade de esclarecimento do conteúdo estatfstico de suas formulações con-
duz Boltzmann em 1877 à elaboração de um modelo simplificado para um gris de par-
tícglæ. Para facilitar os cálculos e a caracterização do estado microscópico do sistema,
Boltzmann supõe que astrf partículas do gás podem assumirvalores discretos O,e,2e,
3e, . .., pe de energia, onde e é uma constante positiva e pe deve ser menor que a
eneryia total E.
O estado microscópico do gß, que será chamado de configuração, fica delinido
quando sabemos o valor da energia de cada partfcula. Assim, numa certa configuração
a partícula I tem energia 2e, a paftícula 2 tem 8e, a partfcula 3 tem 20e, e æsirn por
diante.VamosusaranotaçãoOIno,rtt,rt2,...]Paradesignaronúmerodeconfigu'
rações distintas com ze partfculas de energia 0, n1 partícnlas de energia e, n2 de ener-
$a2e, etc. . Um simples raciocínio combinatório mostra que

iv!
SlIzo, flr,... ] : (7.1)
no! ntl. ..

Utilizando a hipótese dæ probabilidades iguais a priori, isto é, pmtulando que todas as


confìgurações são igualmente proVáveis, podemos escrever que
-'
História da Mecânica Estatístict 37

P [no, nt,. . .l = C l2 Íno, nt, . . ,f, (7.2)

onde P L no, nr,. . . ] designa a probabilidade de ocorrência de uma configuração per'


tencente ao conjunto definido pelos "números de ocupação" ns, il!, . . ., e C ê wna
coßtante de proporcionalidade. Esta noção de probabilidade é agora bem mais clara
e sofisticada, e vai dar origem ao que Ehrenfest denomina mais tarde de "teoria ergó-
dicao'.
Maximizando a probabilidade P com as condições de vfnculo

(7.3)
?nt:*
e

It' i e n;: E, Q.4)

que expressam respectivamente a conservação do número de partículæ e da energia,


obtemos

'i acp (-þ i e)


(7.s¡
N 4 acp (-ßie)
t

Fazendo g : :3 NkT, aconstante ß é dada por 7lkT. Nestecaso aexpressão (7'5)


2
pode ser interpretada como uma forma discreta da distribuição de Maxwell-Boltzrnann,
e'a maximização da probabilidade P corresponde à situação de equilíbrio termodinâ-
mico.
Para obter o teoremall basta tomar o logaritmo da probabilidade,

9n P : bt C + P.nNl - O" nt! =- 2 n¡ Q.nr?i * constante, (7.6)


ì
onde utilizamos a aproximação de Stirling püa os fatoriais de números grandes. Mais
luna vez, fica claro que a maximização tla probabilidade, ou seja, a minimização de II, .

corresponde ao processo de evolução prìra o equilíbrio termodinámico. Além disto,


apr or médio
ico de/f,%-
pff ro grande
de partfculæ. É com bæe em cálculos neste modelo que Boltzmann desenvolve toda
uma idéia de como seria a evolução dos gases para um estado macroscópico de equilf'
brio termodinâmico.
38 Silvio R. A. Salirws

Poderíamos ter sofisticado um pouco mais o modelo a fim de raciocinar em termos


do espaço de fase do gás (espaço f) e do espaço ¡r das moléculas individuais. O espaço
¡.r seria dividido em células iguais de volume <¡. O volume no espaço I que conesponde
a uma paficular distribuição no espaço ¡r seria dado por

vnfns, ilt,...r : -no -n, ... (7.7)


rl, -
É claro que a partir desta expressão, æ raciocinarmos em termos dos volumes ocup¿-
dos pelæ várias distribuições, obtemos de novo todas æ relações anteriores. Neste
ponto, é importante discutir um pouco mais detalhadamente o conceito de probabili-
dade que Boltzmann vem utilizando. Quando ele considera o comportamento do siste-
ma em função do tempo, o conceito de probabilidades no espaço de fase passa a ser
utilizado na acepção de freqüência temporal. Entretanto, não há provÍls de que a fra-
ção de tempo gæta por um sistema dentro de uma certa região do espaço de fæe é pro-
porcional ao volume desta região. Esta é a questão ergódica, que ainda possui grande
atualidade nas reflexões sobre os fundamentos da mecânica estatística.

8. Psradoxo da reconência
Durante os anos subseqüentes ao trabalho de 7877, Boltzmann participa de várias
discussões, principalmente com os seus colegæ ingleses, firmes defensores da teoria
cinética e do atomismo, em que o sentido do teoremallvai sendo aos poucoß esclare-
cido. Boltzmann chega até mesmo a sugerir um gráfico da função H co¡ia o tempo
- em geral H está bem próximo do seu valor mfnimo, mas pode haver alguns picos
bastante pronunciados. Uma visualização de H contta o tempo seria dad4 por exem-
plo,. pela sucessão grátfrca de árvores invertidæ, quæe todæ muito baixas, com galhos
horizontais ou quase horizontais; ocasionalmente surgiria uma árvore maior ou mais
inclinada, mas a probabilidade de ocorrência diminuiria enormemente com a sua altura.
Em 1896 surge uma dæ mais séria objeções a Boltzmann, proposta por Zermelo,
antigo estudante de Planck em Berlim. A objeção de Zermelo se bæeia num teorema
mecânico demonstrado pouco antes por Poincaré. Este teorema afirma que qualquer
sistema de partículas, com forças de interação que dependem apenas dæ posições,
sempre retorna, depois de um certo tempo r , a lm vizinhança arbitrariamente pró-
xima das suas condiçÕes de partida. A rlnica condição restritiva é que æ coordenadæ
de posição e de momento sejam limitadas (isto é, que æ partfculæ tenham uma energia
finita e que estejam contidæ dentro de um recipiente). Verifìca-se também que o teo-
rema de Poincaré só não é válido para um conjunto muito pequeno (de medida nula,
em linguagem matemática) de condições iniciais. E claro que este teorema exclui a
existência de qualquer função mecânica que tenha uma direção privilegiada no tempo.
A respæta de Boltzmann a 7ærmelo foi imediata - o teorema H não é puramente
mecânico, æ leis estatísticas são fundamentais para explicar o comportamento dos ga-
Hßtória da ltlectînico Estatística 39

ses. Boltzmann também apontou que o período ¡ é muito grande, da ordem da idade
do universo para um gás de pãrtículas. Este é aliás um ponto bastante sutil, pois há
sériæ objeções ao tipo de cálculo que leva a este enorme valor de r . No entanto, expe-
riênciæ numéricas recentes, com "gases" de discos ou esferas rígidas, parecem apoiar
inteiramente esta suposição de um r muito grande. Nesta época há uma troca de arti-
gos entre Boltzmann e Z,ermelo sobre æ características do teoremal/. Apesar do apoio
dos seus contemporâneos ingJeses, Boltzmann está claramente na defensiva. No conti-
nente europeu a influência dos energeticistas é extremamente poderosa e todos os fun-
damentos da teoria cinética são postos à prova. O próprio Zernrelo está até mesmo dis-
posto a abandonar triunfos da teo¡ia cinética, como os c¿ílculos dos coefìcientes de
transporte. Não se deve esquecer também que havia problemas, como a aplicação do
teorema de equipartição da energia aos calores especfficos dos gases, que permanecia
como um ponto vulnerável da teoria (embora já se apontasse que a estrutura intema
das moléculas, revelada átravés das raias espectrais, deveria ser muito mais rica do que
se poderia supor na época). Dentro deste clima é que Boltzmann abandona pela primei-
ta vez a sua postura realista diante do mundo físico e introduz uma hipótese cosmo-
lógica, de caráter subjetivista, para explicar o teorema 1L Boltzmann sugere que a en-
tropia do univeno pode ser mdxima, mas que há flutuações e que ocasionalmente po-
dem ocorrer vales profundos em que a entropia é um mfnimo. A vida só seria possível
no fundo destes vales, subindo em direção aos máximos da entropia. Portanto, para ÍN
civilizações existentes, a entropia aumenta e a direção do tempo é totalmente subjetiva,
dependendo da nossa localização no Universo. Hipóteses desta natureza sobre a seta
do tempo vão surgir freqüentemente na ciência, mesmo nos anos mais recentes.
Uma das explicações mais brilhantes sobre a îatureza do teorema .11 foi dada por
Paul e Tatiana Ehrenfest, na primeira década do século, com a introdução do chamado
"ûrodelo da urna". Vamos considerar duæ urnas contendo 100 bolas, numeradæ de I
a 100. Num certo instante inicial a urna A contém Po : 90 bolas e a urna B contém
'Qó : l0 bolas. Sabe-se perfeitamente quais æ bolæ que estão localizadas em cada
urna. Vamc supor agora que se disponha de uma'roleta, com números de I até 100, e
que a roleta é posta em funcionamento cada 30 segundos, por exemplo (A t : 30s).
Cada vez que sai um número na roleta a bola correspondente é removida de uma dæ
urnas e colocada na outra. Podemos então construir um gráfico do módulo lPr-Q.
em função do tempo t: r Lf, onderéuminteiro.Éclaro que se obtémumaseqüên-
ll
cia de pontos cujas alturas sucessivas diferem de duas unidades. Começando com o
valor I Pe -Qo I : 80, os pontos da curva tendem acair e ase situarnasvizinhanças
do "equilfbrio" I P -Q I : 0. Pode haver picos ou valores muito altos de I P-Q l. No
entanto, após cada pico a curva tem a tendência de cair novamente. Com este modelo
os Ehrenfest rcalizun uma série de cálculos probabilfsticos que apóiam as idéias de
Boltzmann sobre a evolução de um sistema para o equihbrio. Mais recentemente, Mark
Kac propôs um outro modelo, conhecido como modelo do anel, que contém elemen-
tos probabilísticos e que igualmente ilustra de maneira quantitativa o comportamento
40 Silvio R. A. Salirws

irrevenível em direção ao equilíbrio. Não há dúvidæ d de Lo-


schmidt nem as objeções de Zermelo se aplicam a estes do, fica
também evidente ó papel desempenhado pela estatlstic objetos
idênticos.

9. A mecânica estatísticø de Gibbs


pode-se dizer que a formulação moderna da mecánica estatfstica é fìnalmente esta-
belecida com a publicação por Gibbs, dos híncípios elementmes da me-
única estatísf¡c¿. Ñeste liwo, que foi rapidamente traduzido para o alemão por Zet-
melo, Gibbs retoma o trabalho de Boltzmann de 1877, mas näo se Preocupa em olhar
detalhadamente para os choques moleculares ou para as formulações iniciais do teore-
ma fI. Num certo sentido elJ poderia ser criticado por evitar o problema mais diffcil
dos processos irreverslveis. No entanto, a sua obra coloca em bæes sólidæ - e muito
práticas - toda a mecânica estatística de equilíbrio. Além disto fica bem definida a
ãonexão entre a mecânica estatística e a termodinâmica em diferentes situações ff'
sicæ.
Gibbs parte do espaço I do gás e trabalha com uma função p de distribuição de
pontos neste espaço. Num certo instante de tempo t, cada ponto no espaço I corres-
ponde a uma cópia fiel do sistema estudado, que está sujeito a determinadas condi'
gõrs *".tottópicæ. Esta é a idéia de "ensemble", que de certa forma jd está presente
na obra de Boltzmann. A função p evolui no tempo de acordo com o chamado teore-
ma de Liouville, que futuramente vai se transfoÍnar no ponto de partida de tentativæ
de generalização da equação de transporte de Boltzmann. O teorema de Liouville
es,tabelece çe
dp
=Q (eJ>

ou seþ,
go
' + Ilt,pI : 0 (e.2)
qt

ondefféahamiltonianadosistemaeosfmbolo[.,.]indicaosparênteæsdePoisson
da mecânica clássica. Numa situação estacionária temoe

{p,XtI: O . (9'3)

Para energia frxa, p


deve ser uma constante, pois todos os pontos do espaço de fæe
acesslveis ao sistema são igualmente prováveis. A este ensemble, que corresponde ao
Históris da Mednìco Estatística 4l

tratamento de Boltzmann de 1877, Gibbs deu o nome de microcanônico. Temos então


p : 7l{¿, onde Sl é agora o volume acesslvel ao sistema no espaço de fase.
Næ situações em que a energia pode variar, mas com a temperatura fixa, Gibbs pos-
tula a seguinte forma de p.'

p gxp Cry I kT).


'Z= (e.4)

onde Z é um fator de normalização. A introdução deste ensemble, que Gibbs deno


mina canônico, simplifica enormemente os cálculos estatísticos, como foi realmente
apreciado mais tarde, næ décadæ de 20 e 30.
No ensemble micròcanônico, como já havia sido apontado por Boltzmann, a cone-
xão com a termodinâmica se faz através da entropir

S= k În O . (9.5)

No ensemËle canônico este papel é desempenhado pela energia livre de Helmholtz,


F : U -TS, que é definida como

F= -kT Qn Z (e6)

Além destes dois ensembles, Gibbs também introduz um ensemble grande-canônico


que cotresponde à situação física em que o sistema está em contato com um reservató-
rio térmico (Z constante) e de partlculas (potencial químico ¡.r constante).
'Apenas a questão da evolução para o equilíbrio resiste a uma formulaçÍiomatemá-
tica fechada. No entanto, Gibbs propõe uma série de sugestões que ainda permanecem
como importantes pontos de indagação. De acordo com o teorema de Liouville, o en-
semble dos pontos representativos de um sistema evolui no tempo como um fluido
incompressível, isto é, o volume total que o "fluido" ocupa no espaço de fæe perma-
nece inalterado. No entanto, depois de algum tempo este volume, que inicialmente po-
deria ser uma região conexa, vira um emaranhado que cobre todo o espaço de fæe
Gibbs traça uma analogia com a tinta que se dissolve na âgoa - é claro que as partl-
culas de tinta não perdem a sua individualidade; no entanto, depois de certo tempo
estÍio dissolvidæ de maneira praticamente uniforme por todo o volume do líquido.
E exatamente isto que deve ocorrer com um ensemble de pontos no espaço de-fæe.
Se abandonarmos o nível mais fino da descriçã'o microscópica e tentarmos considerar
regiões macroscopicamente muito pequenas, mas microscopicamente gtandes no espa-
ço l, podemos introduzir uma densidade grosseira Þ, que realmente tende com o tem-
po para um valor uniforme. No sentido da distribuição mais grosseira é que devemos
entender a irrevenibilidade dos fenômenos flsicos. No domfnio microscópico é claro
que continuam valendo as leis da mecânica, com as objeções de Loschmidl e Zermelo.
42 Sitvìo R. A. Salin¿s

BIBLIOGRAFIA BÁSICA:

(1) S.G. Brush, Kfneflc Theory, v' 1, Pergamon, I 965 ; v. 2, Pergamon, 1966.
(2)M.J. Klein,PaulEhrenlest, theM¿kingof øTheoretìcalPhystcist, North-Holland, 1972'
(3)E.G.D. e \ü. Thining, editores,'Tl¡e Boltzmann Equatton, Theory and Applicatlons, springer,
t973.
(4)p. e T. Ehrenfest, The Conceptuøl Foundations of the Statistlcal Approach ín Mechanìcs,
t¡ad. M.J. Moravicsik, Cornell U' P., 1959.

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