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Certa manhã surpreendi-me com uma reflexão um tanto quanto intrigante.

Alceu, um
amigo, me ligou para contar que sua gata, Miragem, estava parada de frente para a
cômoda do quarto havia muito tempo, sem mover nenhum músculo, olhando fixamente
para o armário como se tivesse visão de raio x. Curioso, ele resolveu investigar o motivo
pelo qual o animal se comportava daquela maneira. Então, arrastou o móvel e, de repente,
ouviu um barulho que parecia a tentativa de um bater de asas. Era um passarinho.
Provavelmente se escondendo da astúcia do felino, que não perdeu tempo em saltar tão
alto, de maneira tão abrupta, que acabou com a vantagem aérea do pássaro. Meu amigo,
então, tentava segurar a gata e fazer com que o passarinho saísse da zona de risco,
induzindo-o para o lado de fora da casa. Tendo conseguido colocar a ave para fora do
quarto e da casa, Alceu fora dar atenção à Miragem, que agora não lhe era mais solícita,
provavelmente, ao que parecia, devido ao fato de ser ele o responsável pela fuga da presa
pela qual esperara tão furtivamente, movimentando apenas as orelhas, com a intenção de
surpreender o pássaro a partir de um golpe arrebatador assim que a oportunidade
aparecesse. No entanto, toda essa dedicação fora frustrada pela ação do dono que, por
isso, agora não só era ignorado, como também não conseguia chegar perto do felino.

Você, leitor, deve estar curioso para saber qual o sentido desse fato para a introdução
de uma reflexão provocante que me causara surpresa. Eis, portanto, o motivo: os
acontecimentos da conjuntura narrados são os responsáveis por ponderações que não só
me intrigaram, como também, me fizeram rir. Perceba que existem três atores na
construção da situação que deixara a gatinha bastante aborrecida. O primeiro é o pássaro,
que entrara na casa e oferecera estímulos ao felino, na medida em que este atentou-se
tanto para uma primordialidade fisiológica, comer, quanto para uma característica
instintiva, caçar. O segundo é Miragem, que ao ver o pássaro, ligou-se intrinsecamente às
suas necessidades de caça e alimentação. O terceiro é o dono, que teve sua curiosidade
estimulada pelo comportamento furtivo da gata.

Epicteto dizia que as pessoas não são perturbadas pelas coisas, mas pelo modo que as
veem, de maneira que o que os outros fazem pode ser o estímulo para nossos sentimentos,
mas não a causa, que por sua vez, advém de alguma necessidade intrínseca (Marshall
Rosemberg, 2003). Portanto, o fato de que tudo o que ocorrera na conjuntura acima são,
na verdade, projeções da subjetividade e, tão logo, da necessidade de cada um dos atores,
não só me fez rir, pois eu nunca me atentei para a possibilidade de existir um ego felino,
mas também me fez pensar sobre a diferença que, por prudência, se deve ter na
observação dos motivos pelos quais gatos executam uma ação e na observação dos
motivos pelos quais os seres humanos apresentam determinado comportamento. É no
sentido de que o homem é racional e os demais animais não o são que devemos nos ater à
prudência na análise dos fatos narrados.

Tendo em vista que há três atores presentes na narração, podemos afirmar também
que existem quatro cenários que dividem a conjuntura e influenciam a ação de cada um
dos agentes. O primeiro está disposto sobre o fato de que o passarinho, por algum motivo
desconhecido adentrou a residência, instigando o gato a caça-lo para, então comê-lo, de
modo que, por uma necessidade de sobrevivência, o pássaro fora parar atrás da cômoda.
O segundo é constituído pela atitude dissimulada da gata que estimula a curiosidade do
dono de forma que este arrasta o móvel para satisfazer seu interesse. Quando o armário é
arrastado, os três agentes agem conjuntamente na formação do terceiro cenário. Na
medida em que é descoberto, o pássaro voa, logo, é avistado pela gata que pula para dar o
bote, fazendo com que o agente curioso da situação tenha a necessidade de segurar o
bichano, pois não gostaria que o passarinho fosse devorado e tão menos deseja limpar a
sujeira que a sucessão desse fato deixaria. O quarto cenário é formado por dois agentes, o
gato e o homem. O primeiro teve suas necessidades frustradas, então, não queria afagos
de seu dono. O segundo, após ter o interesse de manter o passarinho vivo e a necessidade
de não fazer sujeira atendidos, agora queria afagos de seu bicho de estimação. No entanto
não obteve sucesso, de modo que não se ateve a ganhar a atenção de Miragem, voltando,
portanto, à atividade que dispendia antes do acontecido.

Finalmente, a questão responsável pela minha surpresa diante da observação dos fatos
foi a seguinte: em todos os quatro cenários, seria possível perceber as necessidades e os
interesses dos agentes como responsáveis pelas ações de cada um deles, enquanto a
frustração ou realização de tais idiossincrasias seriam responsáveis pela postura
emocional diante de cada cenário discriminado anteriormente? Se fosse possível indagar
os atores quanto ao que cada um deles precisava e ao que gostariam de pedir ao outro a
fim de que tivesse seus interesses e, consequentemente, suas necessidades satisfeitas,
levando em consideração a realidade biológica dos respectivos agentes, constataríamos
que o único ser capaz de compreender o porquê do encadeamento de cada cenário, e o
porquê de sua ação, seria Alceu, pois é o único que tem não só a capacidade de reagir,
como também a capacidade de agir.

O agir, por decorrência do logos, é reservado ao ser humano. Não há logos presente
nos demais animais, há emoção, responsável por reações. A ação e a reação são similares
à força e ao movimento. A potência é responsável pela possibilidade da força, que por sua
vez, é responsável pelo movimento mantido pela inércia. Perceba que a ação está presente
apenas na força, enquanto que o movimento constitui a reação. Portanto, no decorrer de
toda situação narrada, é possível constatar que o ser humano é o único que tem ação, pois
é o único que tem capacidade de atentar-se às necessidades e interesses intrínsecos aos
seus sentimento. À prova disso, temos que o ímpeto do felino de caçar a ave é um
paradigma inquebrável, constatando-se, portanto, não como uma ação, mas como reação,
de modo que, analogamente à inércia, todas as vezes que um passarinho entrar em
cômodo onde a gata esteja presente, não só o primeiro cenário será novamente realidade,
mas também, caso a ave acabe atrás do móvel, o segundo.

No entanto, o que garante que Alceu terá a mesma reação todas as vezes que o
segundo cenário estiver disposto sobre a realidade? O homem é o único capaz de quebrar
paradigmas pois é o único passível de tomar conhecimento das circunstâncias, por isso,
evitou que o pássaro fosse caçado. Evitar é uma ação deliberativa. Caçar é uma ação
instintiva: uma reação.

Sendo assim, as necessidades e os interesses de todos os agentes são intrínsecos aos atos.
A diferença é que, no caso do ser humano, há deliberação e, portanto, responsabilidade
individual sobre o agir. Em contrapartida, a ação dos animais se dá devido a instintos, de
modo que estes não respondem por seus atos, por se tratarem de reações.

Desse modo, infere-se não só que a ação contém a reação, como também que a
recíproca não é necessariamente verdadeira, pois a postura emocional, pressuposta
anteriormente, não advém da ação, mas sim, da reação. Nesses casos, a reação não
contém a ação. No entanto pode haver reflexão acerca da reação, ocasionando, portanto,
uma postura racional, estando a ação contida na reação. Então, já que é impossível que os
animais reflitam sobre suas reações, eles não são responsáveis por suas emoções. Em
contrapartida, tendo em vista que para o homem há sempre a potência de refletir, ele se
torna responsável por suas emoções, estando somente sujeito às circunstâncias, cabendo a
ele deliberar sobre elas.

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