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LITERATURA, CINEMA, ADAPTACAO Joao Batista B. de Brito* Introdugio Na era da interdisciplinaridade, nada mais saudavel do que tentar ler a verbalidade da literatura pelo vies do cinema, ea iconicidade do cinema, pelo viés da literatura. Contudo, tantas € to polémicas sio as relagdes entre ¢ssas duas modalidades de discurso que dificilmente um ensaio ousaria recobri- Jas. Aqui nos limitamos a um breve “passcio” pelo temério, primeiramente, pensando nas afinidades entre essas modalidades, depois revisando parte do que uma teria aprendido c\ou ensinado a outra, e em seguida, discutindo as implicagées tedricas desse sério (?) problema intersemidtico que se chama “adaptacao”. Por economia metodoldgica, restringimos nosso corpus a lite- ratura ¢ cinema narrativos, deixando para outra instancia as propostas hist6- ricas de uma “poesia cinematogréfica”, e, no ambito literdrio, o género poé- tico propriamente dito. Literatura ¢ cinema : afinidades Quando se compara literatura e cinema o primeiro fato que ocorre 20 estudioso é 0 do enorme fosso semidtico que separa, aparentemente de modo * Professor de Literatura Brasileira na UFPB. Gi ee GRAPHOS inconcilidvel, essas duas formas de expressao, fundadas, cada uma, em espé- cies de signos e cédigos tao diferentes. A literatura, acredita-se, nao vai ter nunca a mobilidade pléstica do cinema, ¢ este, por sua vez, nunca o nivel de abstrag4o da literatura. Conhecidas sao as tentativas frustradas de se enten- der o funcionamento da significagio na expressao icénica do cinema, a partir da natureza lingiiistica do discurso literario, ¢ os becos sem saida em que uma vez se meteu um teérico da importancia de Christian Metz tém servido de ligdo a todos. Por outro lado, por grande ¢ intransponivel que seja esse fosso, h4 um numero consider4vel de semelhangas que podem ser apontadas ¢ que man- tém literatura e cinema numa espécie de estado sincrénico de comparabilidade permanente. Parte dessas semelhangas esto levantadas pelo critico america no Robert Richardson no seu livro Literature and Film que parcialmente aqui revisamos.? Depois de demonstrar que a literatura, 20 contrério do que se pensa comumente, é também uma arte visual, Richardson vai ao extremo de, sem 0 menor pudor teérico, colocar o cinema como uma ramificagao da literatura. No capftulo “técnica literdria ¢ técnica cinematogréfica”, ele se d4 ao trabalho de listar, ilustrando cada caso, uma série de pontos comuns entre aliteraturae o cinema, nem sempre cogitados pelos pensadores do assunto. Assim, a dissolugao de uma imagem em outra, tio comum no filme, éum recurso poético facilmente ilustravel; 0 actimulo de imagens de coisas lugares, sem a presenga humana, como no final famoso de O Eclipse de Antonioni, encontra um par num dado trecho do Eclesiastes; a focalizagao centripeta ¢ progressiva do muito grande para o muito pequeno, como acon- tece no inicio de tantos filmes, esta em Chaucer; 0 ponto de vista miltiplo sobre um dado fato ou personagem pode ser encontrado em intimeros tre- chos de Shakespeare ¢ de outros autores; a velocidade, tida como tao especi- ficamente cinematogréfica, pode ser acompanhada na poesia de John Skelton ede tantos outros poctas; a clipse suprimindo o supérfluo é outra técnica comum as duas artes; o processo da caracterizagao do protagonista do cine- ma € 0 mesmo que ¢sté no The Marble Faun de Hawthorne, ¢ até a trilha sonora pode achar seus equivalentes em certos procedimentos prosédicos na ficgo de Mark Twain, na poesia de What Whitman num texto tao remoto quanto o medieval Sir Gawain and the Green Knight. Sendo a literatura a mais velha das duas formas de arte, a idéia geral que Richardson tenta vender € a de que todas essas semelhangas seriam cau- sais, ou seja, teriam sido passadas da literatura para o cinema & guisa de heranga técnica, Contudo, o fato mesmo de que as suas exemplificagoes gi- — 10 — BRITO ram invariavelmente cm torno de um certo modelo de cinema, estritamente, 0 cinema experimental. enfraquece o seu argumento. A impressao que se tem éa de que os pontos comuns por ele levantados s4o sincrdnicos (¢ nao necessariamente diacrénicos), naturais ( isto é, decorrentes do que é scmioticamente aproximado nos dois discursos ) ¢, em muitos casos, despro- vidos da causalidade que ele thes atribui (isto ¢, nao existem no cinema, obrigatoriamente, por jé terem existido na literatura ). De modo que vemos como especulagio refinada ¢ inteligente, mas sem muito poder de convencimento ou de comprovagio, a sua insisténcia em que a arte cinematogréfica teria derivado, concretamente, de coisas tao dispares quanto, por exemplo : a poesia paralelistica ¢ parassintatica de Whitman, o mondlogo dramitico de Robert Browning ¢ seu emprego da voz dissociada da agao; o closet drama de Thomas Hardy em Dynast com sua proposta de nao ser encenado; a revolucioniria realizacao poética do Jmagismo anglo-americano, Na verdade, nao ¢ muito dificil notar que a grande énfase de Richardson recai sempre nas "estratégias mais anti-convencionais ¢ modernizantes da literatura universal, como se a narrativa tradicional nao interessasse. Isto, justamente porque ¢ preponderantemente uma concep¢ao de cinema de vanguarda que ele, subrepticiamente defende. Notem que, mesmo depois de haver sido obrigado a admitir a importancia de um ro- mancista tradicional ¢ convencional como Dickens, na formagao da lingua- gem cinematogréfica, ele nao hesita em afirmar que foi o romance moderno pds-Elenry James e a poesia do século XX o que enformou essa linguagem. O problema com o argumento de Richardson é que ele est4 pepe deixando no escantcio - embora ele proprio nunca explicite este fato! - cinema classico, ficcional, narrativo, por ironia justamente aquele que a his téria consagrou. E facil aceitar (€ alids, est4 biograficamente provado! ) que o ideograma chinés descoberto por Ezra Pound, através de Fenollosa, teve influéncia andloga sobre os poctas imagistas ¢ sobre um cineasta-pensador como Eisenstein, no caso deste, conduzindo a uma certa concep¢ao de me- téfora cinematogréfica. Porém , generalizar e deduir daf que foi a metafora cisensteiniana que ensinou o cinema a narrar consiste num erro de perspec- tiva, tanto histérica quanto semidtica. Por importante que tenha sido a contribuicao de Eisenstein a forma- 20 da linguagem cinematografica - ¢ ela foi enorme - a sua nogao de meté- fora ideogramatica, em que um dos elementos nao pertencia 4 diegese do filme, sé tern validade semiética muito setorizada, suplantada historicamen- te que foi pelas preméncias de um cinema narrativo ¢ realista, muito mais eu 9). ==

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