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alin enn in Cidade PANG Ne acme tian siONs SANDRA JATAHY PESAVENTO Imagindrio da Cidade © Sandra Jatahy Pesavento I? edigéo: 1999 Dircitos.reservados desta edicao: Universidade Federal do Rio Grande do Sul Capa: Carla M. Luzzatto Projeto grafico: Carla M. Luzzatto Revisdo: Maria Litcia Barbara Editoracao eletrénica: Ménica Ballejo Canto ‘a Ballejo Canto Supervisio: Moni Sandra Jatahy Pesavento Professora no Departamento de Historia da UFRGS. Mestra em Histéria pela PUCRS. Doutora em Histéria pela USP. Publicacoes: Repriblica Velha Gaticha: charqueadas, frigorfics ¢ criadores - RS 18891930; Histéria do Rio Grande do Sul; RS: a economia eo poder dos anos 30; RS: agropecudria colonial ¢ industrializacdo; A Revolu- (io Faleralista; A Revotucéo Farroupitha; Histéria da indistria sul-riograndense; Pecwéria ¢ indiistria, Formas de realizagéo do eapitalismo na sociedade gaiicha no século XIX: Burguesia gaticha; Dominacéo de capital e disciplina de trabalho, RS:1889-1930; Emergéncia dos subalternos: trabatho livre ¢ ordem burguesa; Cem anos de Repiiblica; Porto Alegre: espacos ¢ vivincias; Borges de Medeiros; Meméria da indistria gaticha: RS 1889-1930; De escravo a Libero: um dificil caminko; Reptiblica verso e reverso; O cotidiano da Repriblica: elite e povo na virada do século; O Brasil contempordneo; Os industriais da Repriblica; O espetdculo da rua; 500 anos de América: imagindrio e utopia; Histéria da Assembliia Legistativa do Rio Grande do Sul: a trajetéria do prarlamento gaticho; Porto Alegre caricat: 4 imagem conta a histéria; Os pobres da cidade: vida ¢ trabatho - 1880-1920; Exposicées universais: espetdculos da madternidade no século XIX; Imagens urbanas; Discurso ¢ narrative literaria P4721 Pesavento, Sandra Jatahy O imaginario da cidade: vis6es literdrias do urbano -Paris, Rio de Janeiro, Porto Alegre/ Sandra Jatahy Pesavento. — Porto Alegre : Ed. Universidade/UFRGS, 1999. 1. Literatura urbana — Historia — Paris. 2. Literatura ur- bana — Histéria — Rio de Janeiro. 3. Literatura urbana — His- toria — Porto Alegre. I. Titulo. CDU 82-94 (443/444) 82-.94(815.31) 82-.94(815.51) Catalogacio na publicagdo: Ménica Ballejo Canto. CRB 10/1023 ISBN 85-7025-4849 Sumério Capitulo 1 PEDRA E O SONHO: OS CAMINHOS DO IMAGINARIO URBANO / 7 Capitulo 2 O IMAGINARIO DE PARIS (DO FINAL DO SECULO XVIII AO FINAL DO SECULO XIX) / 29 Da muralha ao boulevard: o nascimento da metrépole pelo olhar do cronista / 32 Paris, capital do mundo: discursos ¢ imagens da cidade moderna pré-Haussmann / 53 De Paris para o mundo: visdes literarias da cidade haussmaniana / 89 Capitulo 3 RIO DE JANEIRO: UMA CIDADE NO ESPELHO (1890-1910) / 157 O efeito do espelho: da cidade maravilhosa ao pais das maravilhas / 157 Os herdeiros do barao e o sonho de uma Paris tropical / 163 Picaretas na alma encantadora das ruas: crOnicas cariocas da mudanga urbana / 181 As rachas do espelho: outras imagens de uma mesma cidade / 210 Capitulo 4 OS ECOS DO SUL: PORTO ALEGRE E O SEU DUPLO (1890-1924) / 245 Porto Alegre ¢ as ilusdes do espelho: do mito das origens a hegemonia simbélica do campo / 245 A cidade como desafio: utopias, projetos ¢ intervenes na capital do sul / 262 Os discursos da cidade: a vida literaria de Porto Alegre / 281 Saudosismo e passeismo: a cidade a sombra da aldeia / 303 Progressismo e modernidade: desejo de ser metrépole / 317 Amargura provinciana: 0 resto é paisagem / 335 De tudo um pouco: as ambivaléncias da pequena grande cidade / 350 Capitulo 5 UM FIM E UM COMECO, MAS SEMPRE A CIDADE / 391 - A PEDRA E 0 SONHO Os Caminhos do Imagindrio Urbano Capitulo 1 ‘0 principio era 0 barro, e nao a pedra, mas Id ja estav © sonho, mesmo que fosse fruto de uma violacdo ao sagrado. Assim, o Génesis narra a edificacdo da primei- ra cidade pelo fratricida Caim, esobedece as leis de Deus abelece as suas sobre a terra, submetendo a natureza. E é ainda pela obra do homem e pelo seu sonho de chegar ao cé que do barro se edifica a torre da confusao das linguas, novo castigo de Deus a raca maldita de Caim. Babel, a cel a torr de que fala o Génesis, teve sua imagem difundida através dc séculos ¢ fixada de forma paradigmatica na expressiv Bruegel o Velho. O nascimento da cidade nos chega, pois, de forma mi ca, com apoio no texto sagrado ¢ na imagem que nele se inspi- ra. Um discurso e uma imagem que nos chegam como repr sentacao de uma criacdo do homem. Como mito, trata-se de uma estrutura narrativa que nao somente conta e explica, mas revela € porta sentidos outros para além d dito. Assim, a cidade-mito das orig: do homem sobre a natureza — que se traduz em cultura — quanto 0 conflito, a ambicao e o desejo de um vir-aser sem fim da espécie huma Num desdobramento dos significados que recuperam a emergéncia simbélica da urbe na hist6ria da humanidade, te- mos, ainda, a conotacio do social: o erguimento de Babel foi obra coletiva, ¢ é sobre esse coletivo que se descarrega 0 castigo divino. Nesse espaco de concentracao populacional, os homens que vivem na cidade nao se entenderao, estando, pois, contida na narrativa original, uma condenacao: a cidade esta destinada a ser centro de conflito. O pecado inscrito, que acarreta o castigo, é aquele que se faz pre- sente no préprio ato fundador. Se, como diz o texto sagrado, Deus fez 0 ho- mem A sua imagem e semelhanca e o fez de barro, é com 0 mesmo material que os homens constroem a cidade, igualando-se, com isso, a Deus, em sta obra, e buscando — pela verticalidade da construgao — chegar aos céus, ele- var-se até seus domini: Entre as muitas possibilidades de acesso ao fendmeno urbano, optamos por seguir os discursos ¢ imagens que falam de uma cidade, caminho este que lidaria com os imaginarios sociais que os homens, ao longo de sua historia, puderam construir sobre a cidade. Nosso ponto de partida se insere no que chamariamos de historia cultu- ral do urbano € que se propée a estudar a cidade através de suas representa- Goes. Entendemos ser esta uma fascinante proposta para o nosso final de sécu- Jo, quando a cidade se coloca, mais do que nunca como desafio, sendo o lugar — por exceléncia — “onde as coisas acontecem”. Nesse contexto, se a cidade se impde como problema e, portanto, como. tema de reflexao € objeto de estudo, ela se oferece como um campo de abor- dagem para os estudos recentes sobre o imaginario social. Nossa contempora- neidade é atravessada pelo dominio das imagens, pela criac4o de uma realida- de virtual, pela expansao da midia e pela constituico de “um mundo que se parece”. Em suma, 0 imaginario, como sistema de idéias ¢ imagens de repre- sentacao coletiva, teria a capacidade de criar o real. Ou, como diz Manzini: Ns sabemos hoje ser nossa invengao tudo o que, a partir das estimulacdes senso- riais, se transforma em modelos mentais e produz a idéia de realidade ¢ aquilo que se apresenta a n6s como realidade 6, tem sido sempre, uma “realidade simu Jada”. Quer dizer, uma realidade construida em nosso espirito a partir de uma in- teracao entre as estimulacoes exteriores ¢ uma sedimentagao cultural ante jor! Assumir essa postura implica admitir que a representacao do mundo é, ela também, parte constituinte da realidade, podendo assumir uma forga maior para a existéncia que o real concreto. A representacao guia o mundo, através do efeito magico da palavra ¢ da imagem, que dao significado a realidade e pautam valores © condutas. Estariamos, pois, imersos num “mundo que se parece”, mais real, por vezes, que a propria realidade € que se constitui numa abordagem extremamente atual, particularmente se dirigida ao objeto “cidade”. ‘Manzini, Ezio. Un monde qui semble. In: Tiaverses 45. Revue du Centre Georges Pompidou Paris, nov. 1989. p.128 Ainda insistindo nos desafios que este nosso final de século tem tando) a paila, teriamos a questao da pluralidade de saberes, expressos em ee em producées de imagens, que se cruzam € nao se exclnem, es cimento uma dimensao transdisciplinar. Assim, a cidade é objeto nal iplos discursos ¢ olhares, que nao se hierarquizam, mas que se justapoem, comp : contradizem, sem, por isso, serem uns mais verdadeiros ou importantes ou se tue 0s OULTOS. : : : / e's decantada crise dos paradigmas e a complexidade da vida contemporé neaimpos aos "letores do urbano” una concepcao mnltifactada de anise, Esta seria, a nosso ver, uma das maneiras de entender o que chamarfamos de “cidade plural’, fendmeno miiltiplo e poliocular, Como refere Eagar Morin: O que me interessa nao é uma sintese, mas um pensamento tzansncplinay, um pensamento que nao se qucbre nas fronteiras entre as disciplinas. O que me . teressa ¢ 0 fendmeno multidimensional, ¢ nao a disciplina que recorta uma di mensio deste fendmeno. Tudo o que ¢ humano é, 20 mesmo tempo, psiquico, so” ciologico, econdmico,hist6rico, demografico.E importante que estesaspectos no sejam separados, mas sim que concorram para uma visio poliocula O que me timula é a preocupacdo de ocultar o menos possivel a complexidade ; Sendo a cidade, por exceléncia, 0 “lugar do homem”, ela 3s presta a multiplicidade de olhares entrecruzados ae de forma transdisciplinar, al na busca de cadeias de significados. : e ‘ eet ra, que coloca a histéria cultural urbana na ordem do dia, Pres supée 0 que se chamaria de “metaforizacao do social”. Ou seja as represent ges da cidade tendem a assumir uma forma metaférica de expres a € coisas que, associadas ao conceito de cidade, Ihe atribuem apelo a palavr: um outro sentido. oo. Como refere Alan Mons," ha metaforas visive' i ae gens urbanas visuais, na fotografia, na arquitetura, na pintura, nas escul a hos monumentos € prédios como um todo, no tragado das ruas, a graffi a na publicidade. Mas ha também praticas metaforicas, que #20 ane Se blicas ou privadas — que se realizam no tervit6rio urbano. Como am a produz transfiguracao de sentido, ha uma parte da representagao a plicita — a qual Mons chama de “transparéncia mediastica’ a — outa metaforicidade que, implicita, s6 aparece de quando em vez e cujo , que se expressam nas ima- *Morin, Edgar. Idéias contemporaneas. Entrevistas do Le Monde. Sao Paulo: Atica, 1989. p.35. “Mons, Alan. La métaphore social. Paris: PUF, 1992. ‘Ibidem, p.14 we implica o dominio de um cédigo. Sendo a cidade abordada por suas metafo- ras, o modo de proceder metaf6rico consistiria em contorar ou partir das imagens representadas para chegar nela de volta? Cidade-problema, cidade-representacao, cidade-plural, cidade-metafora — © urbano se impoe para o historiador da cultura nos dias de hoje como um dominio estimulante. A cidade nao é simplesmente um fato, um dado coloca- do pela concretude da vida, mas, como objeto de andlise e tema de reflexao, ela € construida como desafio e, como tal, objeto de questionamento. Nossa intencao é trabalhar a cidade a partir das suas representacoes," mais especialmente as representag6es literarias construidas sobre a cidade, Tal pro- cedimento implica pensar a literatura como uma leitura especifica do urba- no, capaz de conferir sentidos e resgatar sensibilidades aos cenarios citadinos, as suas ruas e formas arquitetnicas, aos seus personagens e as sociabilidade que nesse espaco tém lugar. Ha, pois, uma realidade material — da cidade cons- truida pelos homens, que traz as marcas da acao social. Eo que chamamos cidade de pedra, erguida, criada e recriada através dos tempos, derrubada e transformada em sua forma e tracado. Sobre tal cidade, ou em tal cidade, se exercita o olhar literario, que so- nha e reconstr6i a materialidade da pedra sob a forma de um texto. O escri- tor, como espectador privilegiado do social, exerce a sua sensibilidade para criar uma cidade do pensamento, traduzida em palavras e figuracdes mentais ima- géticas do espaco urbano e de seus atores. E, por tiltimo, numa visao ex-post, ousarfamos lancar o olhar do historia- dor sobre a visao literaria da cidade, numa tentativa de, por sua vez, recons truir o sonho que trabalhou a pedra. A literatura, ao “dizer a cidade”, con- densa a experiéncia do vivido na expressao de uma sensibilidade feita texto. Essa é, pois, uma estratégia de abordagem tedrico-metodolégica que apon- ta para o cruzamento das imagens com os discursos da cidade ¢ que, por sua vez, conduz a um aprofundamento das relacGes entre a historia e a literatura, além de ter por base 0 contexto da cidade em transformagao. Por principio, definimos que ha uma constatacao aprioristica: a historia ea literatura corresponderiam a maneiras diferentes de “dizer a cidade”, oua esforcos para representéla. Estarfamos, pois, diante de um patamar epistemo- logico basico, que partiria do conceito de representagao, assumindo que as “Ibidem, p.23, *0 conceito de representacao, atribuido de Marcel Mauss ¢ Emile Durkheim (Répresentations collectives et diversité des civilisations. Paris: Minuit, 1969. Oeuvres, do por historiado- res da cultura, como Roger Chartier e outros. 10 narrativas literdria e hist6rica implicam discursos que dao conta da realidade urbana através de diferentes caminhos metodolégicos ¢ contingéncias especi- ficas do género. i : : Ha, contudo, que estabelecer uma distincao também precipua: nessa nter-relacao estabelecida, é 0 historiador da cultura de hoje que vai se vol- um tempo ja transcorrido e do qual ele recolhe as represen- so, tar, ex-post, pa e n tacoes literdrias e urbanisticas para construir a sua representacao. Nesse « aescrita da literatura nao contemporanea ao tempo de narrativa do histor dor opera — para ele — como fonte para a criacao da sua versao. Ou seja, o historiador, que trabalha com um tempo que “corre” por fora da experién- cia do vivido, vai representar o ja representado, re-imaginar o ja imaginado. Nessa medida, imagens e textos sao — para ele — fontes sobre as quais vai colocar suas questdes. - Nao se trata de estabelecer — para o historiador — uma posicao de al guém que, situado para além do bem e do mal — ou acima do contexto histo- rico — para ele se volta, guardando, com relacao a autores de textos urbani tas ou literarios, uma distancia baseada em diferengas hierarquicas entre as ci éncias. Tanto o historiador se coloca no mesmo plano epistemoldgico de cons- truir o seu discurso sobre o real, quanto ele mesmo se insere num contexto determinado, sendo, pois, portador de todas as contingéncias de seu meio época, formacao cultural, etc. Logo, nao se trata de rei vindicar para a historia uma metaposicao entre as ciéncias ou um seu distanciamento do Soe Apenas que, no caso da criacao da narrativa historica, tratase de eocnpersr aquele “pais estranho” da passeidade, resgatando aquilo que um dia teria ocor- rido. Para acessar esse tempo ja transcorrido, © historiador precisa se valer de representacdes da época, que “documentam o real”, sejam elas de escritores, de poetas, de arquitetos ou mesmo de historiadores de entao... Tal tarefa é extensa € laboriosa, pois se trata de recolher, cruzar, compa- rare e relacionar todas as variaveis e registros a fim de construir uma narrativa que tenha 0 efeito de real, que dé uma versao do “passado” o mais proxima Possivel do que teria “verdadeiramente acontecido”..., ou seja, mesmo admi- indo que a representacao nao atinge ou revela uma verdade tinica e absoluta € que constréi algo de andlogo ¢ semelhante ao que efetivamente ocorreu um dia, o historiador nao se vé livre do fantasma da verdade buscada nem da Sujeicdes do método cientifico. . O historiador tem diante de si uma vasta oferta de textos, de livros, de narrativas, mas para que ele os transforme em documento, ha que atentar pats © fato de que, em determinada medida, ele deve responder as questoes pro- Postas pelo historiador, visto que, é 0 historiador que indaga e que, a partir we 1 disso, fara o texto-documento “falar”. Nao que 0 texto literario se substitua & hist6ria-arquivo e a documentos oficiais, mais associados com 0 historiador. O texto literario, no caso, permite um olhar que se some a toda uma bagagem propria ao oficio do historiador, que é 0 seu “capital especifico” O que importa é adotar uma postura que veja, na literatur: de pensar a histéria. Todas essas consideracoes trazem mais dtividas que certezas, mas cremos ser mais interessante e promissora a controvérsia do que o dogma e achamos que o historiador da cultura, em termos contemporaneos, se encontra nesse primeiro caminho, nesta sua estratégia de entender a hist6ria como narrativa €, portanto, como representacao do real. Mas por que o historiador se volta para a obra literaria? O dialogo entre historia ¢ literatura é bastante antigo, mas 0 que se con- figura como novo é 0 fato de o historiador assumir a concepcao da historia como narrativa. Essa postura foi objeto de reflexes que se acumularam a par- tir da década de 70, desde Hayden White’ e Michel de Certeau® a Paul Ri- coeur,’ Jacques Ranciére!” e Francois Hartog." Chartier afirma que a expre sao usada por Lawrence Stone’* de retorno da narrativa é, em si, malposta, pois a historia sempre foi uma forma narrativa, desde que tomemos em conta anogao aristotélica da narrativa, como a da articulacao de um enredo de acdes representadas. O que esta em pauta é 0 tipo especffico de narrativa que corresponde ao discurso histrico, que é também uma espécie de ficcao — quando levamos em conta as dimensdes do imaginario, os critérios de escolha e selecao da monta- gem e desmontagem do enredo ou a sua condicao de ser uma representacao do passado. Contudo, guarda uma especificidade com relacao & narrativa ficcional dita literaria pela preservacao de um método especifico que prevé o recurso necessario as fontes, matéria-prima que fundamenta a construcao dos significa- dos. Da mesma forma, s6 a narrativa hist6rica tem a pretensao de se referira um “passado real”, efetivamente acontecido, embora Ricoeur também argumente , uma forma White, Haiden. Metahistory: the historical imagination in nineteenth century in Europe. 8.1: John Ho- pkins University Press, 1973 *Certeau, Michel. Lécriture de Uhistoire. 3.ed. Paris: Gallimard, 1985. "Ricoeur, Paul. Temps et récit. Paris: Seuil, 1988-85. 3v "Ranciére. Jacques. Les mots de Uhistoire; essais de poétique du savoir. Paris: Seuil, 1992 "Hartog, Francois. Liart du récit historique. Passés recomposés. Paris, jan. 1995. "Chartier, Roger. A historia hoje: dtividas, desafios, propostas. Estudos Histéricos, n.13, jn.- jun.1994. "Stone, Lawrence. The revival of narrative: reflections on a new old history. In: The past and the present. Boston: Routledge & Kegan Paul, 1981 12 tue, na literatura, os fatos narrados sao “reais acontecidos” para a vor narrati- ya.!' Por outro lado, o escritor de ficcao literaria também guarda com as ‘fon- es? uma relacao de proximidade, pois elas compoem o que se chamaria o seu tyeferencial de contingéncia”, que confere plausibilidade ao texto. O historia- dor busca recriar o que teria se passado um dia, € 0 escritor de literatura cria yum enredo que poderia também ter ocorrido. Nesse sentido, ambas as repre- sentacoes sao plausiveis e tratam de convencer 0 leitor € transporta-lo a aa tro tempo, mas s6 o historiador empenhase em demonstrar que a sua versio nao apenas “poderia ter sido”, mas “efetivamente foi”, . a Sendo ambas representacoes do real, a historia tem a tendéncia de util zat, por vezes, a obra literaria como uma “fonte a mais”. Nossa idéia é de que a lite- fatura nao pode ser entendida como uma “fonte a mais”, mas justamente como afonte que pode dar aquele “algo mais” que os documentos comumente usa- dos pela historia nao fornecem. Referimo-nos ao que se poderia chamar as sen- sibilidades ou a “sintonia fina” de uma época, as caracteristicas essenciais que estariam na raiz dos modos de pensar, sentir, agir e, sobretudo, de representar 0 mundo. Como refere Chartier,” 0 que cabe ao historiador encontrar as repre- sentaces passadas na sua irredutivel especificidade. Diriamos mais: deve enten- dé-la como “sintomas” de uma época, correspondendo ao sistema de idéias ¢ imagens dos homens de um outro tempo. E por este caminho, que se integra ao que chamamos de uma historia cultural urbana, que visamos a resgatar as formas literarias de representacao das cidades. Consideramos que a literatura tem, ao longo do tempo, produzi- do representagées sobre 0 urbano, que traduzem nao so as transformacées do. espaco como as sensibilidades e sociabilidades dos seus agentes. _ Como refere Odile Marcel,!°a literatura, como representacao das formas urbanas, tem o poder metaf6rico de conferir aos lugares um. sentido euma funcao. E nessa medida que as obras literarias, em prosa ou verso, tém contri- buido para a recuperacdo, a identificacao, a interpretacao ¢ a critica das for- mas urbanas. Acrescentariamos que essa potencialidade metaférica de trans- figuracao do real nao apenas transmite as sensibilidades passadas do “viver em cidades” como também nos revela os sonhos de uma comunidade, que proje- ta no espago vivido as suas utopias. ‘Ricoeur, op.cit., p.344 ae ce “Chartier, Roger. Histoire intelectuelle et histoire des mentalités. Trajectoires et questions. In: Chartier, Roger etal. La sensibilité dans Uhistoie, Brionne: Gérard Montfort, 1987. PAT | "Marcel, Odile. Formes urbaines et littérature. Le Courrier du CNRS. La ville. Paris, n.81, été 19 p13, m 13 Assim, os relatos literarios nos colocam diante das cenas urbanas que re- constituem uma possibilidade de existéncia do social, expressando as forcas em luta, os projetos realizados e as propostas vencidas, aquilo que se concreti- zou ¢ aquilo que poderia ter sido, mas nao ultrapassou o nivel do projeto, do sonho e do “desiderato”. ‘Trata-se, sem dtivida, de espacos ¢ personagens imaginarios que, contudo, s stroem sobre experiéncias vividas na trama das relacGes sociais. Odile Mar- cel, em seu artigo, tece consideraces sobre a nossa contemporaneidade, quan- do, pela forga da imagem trazida pela midia, a leitura do social nao se faz mais pela literatura, que perderia, assim, toda sua funcao de representacao do real, como, por exemplo, a narrativa ficcional de vanguarda."” Todavia, entendemos que mesmo essa forma literaria expressaria a maneira contemporanea de expres- sao atual da crise dos paradigmas, representados pela critica a racionalidade, a objetividade € ao predominio do social sobre 0 individual. Mas, para efeitos deste estudo, nao 6 a literatura contemporanea que interessa, mas sim a literatura do final do século XVIII as primeiras décadas do século XX. Nestas, as representa- des do urbano qualificam 0 social, identificando uma reconstrucio do mundo sensivel que se expressou em discursos ¢ também em imagens — visuais e men- tais — evocadas pelo texto literario. Concordamos com Claude Duchet, na correlacao que estabeleceu entre literatura e cidade, quando confere aquela seu valor de “sintoma”, de muta- ao de habitus, de chamamento e aculturacao as novas formas de viver citadi- nas. A literatura, no caso, anuncia, denuncia ou nega as formas sociais da exis. téncia urbana e as suas formas materiais de expressao. Nesse contexto, 0 escr tor, autor do texto ficcional que “diz” a cidade a seu modo, é 0 que se chama- ria um espectador privilegiado do social, capaz de traduzir, em forma literaria — romance, crénica ou poesia — um urbano que “poderia ter sido” e que as- sume um “efeito de real”. Ora, o discurso literario da uma nova existéncia a coisa narrada. Se € 0 olhar que qualifica o mundo, a narrativa literaria ordena o real e Ihe confere um valor, exercendo uma espécie de “pedagogia da imaginacao”. A retérica, o estilo, os registros de linguagem que selecionam palavras e fazem uso de me- taforas sao responsaveis pela formacao do museu imaginario de cada um. E nesse sentido que afirmamos que Paris 6 um mito urbano pelo efeito da palavra do escritor que libertou o sonho que se inscrevera na pedra E por ai que se insinua a atividade da literatura e, por extensao, a do prd- prio historiador, que aborda o imagindrio urbano lendo a escrita da cidade "Marcel, op.cit., p.124. 14 os tracos deixados pela arquitetura e pelo tragado urbano. Ocorre o que se oderia chamar de um deslocamento, na medida em que as imagens produ- em seu ESpaco NO pensamento e€ se traduzem em discursos. Esses registro: materiais sao portadores de um sentido e de uma funcao, como diz Lucrécia ’Alessio Ferrara: As transformacdes econémico-sociais deixam na cidade marcas ¢ sinais que con- tam uma hist6ria nao verbal pontilhada de imagens, de mascaras, que tem como significado 0 conjunto de valores, usos ¢ habitos, desejos e crencas que misturam, através do tempo, o cotidiano dos homens." Por isso, a hist6ria da imagem urbana contém um relato das formas de " sentir, ver ¢ sonhar a cidade, onde, como refere Guy Petitdemange, a arquite- tura joga o papel do subconsciente, expressando 0 “desejo coletivo inalcanca- yel que se configura material e imediatamente”."” Esse é 0 ponto pelo qual o historiador se aproxima do urbanista e através do qual se estabelece a possibilidade de resgatar, pela imagem urbana atual, as representacGes das cidades que passaram ou que pretenderam ser um dia. Mas, se 0 urbanista se preocupa com a forma e com os planos de intervengao na cidade, o historiador recolhe fotografias ¢ pinturas — elas também formas ico- nograficas de registro do sensivel. O que é interessante de verificar, em termos de identidade meméria, € que, por vezes, essa figuracao imagética da cidade pode predominar, com os seus sentidos subjacentes, a cidade concreta habita- da pelos homens: As imagens se fabricam em diferentes niveis, por diferentes técnicas: todas mobi- lizam a memoria, 0 passado, mas o declinam a sua mancira. O didlogo com os ha- bitantes se ancora sempre na meméria, tinico monumento popular, a disposicao de todos.” Retomamos, pois, a idéia de que a materialidade das formas da arquite- tura ou a aparente fixidez do espaco — que dao 0 contorno morfolégico e visual 4 cidade — implicam uma relacdo complexa entre forma fisica ¢ rela- ea “Ferrara, Lucrécia D'Alessio, As mascaras da cidade. In: 0 olhar perifirico. Sao Paulo: EDUSP/ FAPESP, 1993. p.202. ‘ctitdemange, Guy. Avant le monumental, les passages: Walter Benjamin, In: Baudrillard, Jean Stal. Citoyennité et urbanité. Paris: Esprit, 1990. ’Querrian, Anne. Images et mémoires. Les Annales de la Recherche Urbaine. Images et mémoire. Pa- Ms, n.42, mars/avril.1989. p.3. a 15 Ges sociais de forca, que, por sua vez, se expressam por representacées imagi- narias. Nessa medida, é que a arquitetura podera, como diz Giedion,”! nos in- troduzir no processo de tomada de consciéncia de uma época. Afinal, a prefe- réncia por esta ou aquela forma, a definigao de um estilo ou o recurso e 0 emprego de determinados materiais podem — ou nao — dizer muito sobre o avango técnico de uma €época dada, mas sempre traduzem uma sensibilidade corrente. E ainda nesse sentido que concordamos com Christian de Portzam- pare,” quando diz que o espaco faz apelo a um registro da nossa percepcao € do nosso conhecimento do mundo, algo da ordem da moral, dos valores e da idcologia ¢ que tem uma relativa autonomia. Ou seja, a arquitetura € 0 traca- do de ruas e pracas sao, sem dtivida, o registro fisico de uma cidade, mas tam- bém sao um modo de pensar sem linguagem. Portanto, o espaco é sempre por- tador de um significado, cuja expressao passa por outras formas de comuni- cacao. Ora, a forca de uma imagem se mede pelo seu poder de provocar uma reacdo, uma resposta.” E, pois, na capacidade mobilizadora das imagens que se ancora a dimensao simbélica da arquitetura. Um monumento, em si, tem uma materialidade ¢ uma historicidade de producao, sendo passivel, portan- to, de datacao e de classificagao. Mas o que interessa a nés, quando pensamos © monumento como um traco de uma cidade, é a sua capacidade de evocar sentidos, vivéncias e valores. As imagens urbanas trazidas pela arquitetura — ou pelo tragado da cida- de, ou pela publicidade, pela fotografia, pelo cartaz, pelo selo, pela pintura, pelo desenho e pela caricatura — tém, pois, o potencial de remeter também, tal como a literatura, a um outro tempo. E 0 caso de um monumento que se edifica no passado, mas que é pensado e sentido a partir do presente. O espa- co urbano, na sua materialidade imagética, torna-se, assim, um dos suportes da meméGria social da cidade. A modificacao do espaco de uma cidade, dando a ela forma e feigao, con- tém em si um projeto politico de gerenciamento do urbano em sua totalida- de. E, por um lado, uma tarefa de profissionais especificamente habilitados para tal — urbanistas, arquitetos, engenheiros —, mas também comporta 0 que se poderia chamar de intervencao do cotidiano. Ou seja, esse espaco so- nhado, desejado, batalhado e/ou imposto é, por sua vez, também reformula- do, vivido e descaracterizado pelos habitantes da urbe, que, a seu turno, 0 re- qualificam e Ihe conferem novos sentidos. Estariamos, segundo a classificacao "Giedion, Siegfried. Espace, temps, architecture. Paris: Dendel, 1990. p.46, *Portzamparc, Christian de. L’architecture est d'essence mythique. In: Divorne, Francoise (org.). Ville, forme symbolique, pouvoir, projets. Liege: Mardaga, 1986. p.22. *Marin, Louis. Des pouvoirs de Vimage. Paris: Seuil, 1993. 16 de Marcel Roncayolo, diante dos “produtores do espago”, no caso dos profis- sionais do urbano, ¢ diante dos consumidores do espaco, quando se tratar dos habitantes da cidade. Parece-nos especialmente instigante a reflexao de Pierre Sansot sobre a memoria coletiva e as permanéncias urbanas para este nosso caminho de bus- car as representacoes da cidade através das suas imagens. Argumenta Sansot® com a eloqiiéncia do caco, do registro ou do documento e a sua virtualidade de despertar a evocacao, numa linha de pensamento que tanto nos faz pensar em Walter Benjamin como em Jorge Luiz Borges, quando diz. que 0 espaco tem por missao dar significado ao tempo e a historia... Na seqliéncia desse ra- ciocinio, Pierre Sansot estabeleceu um indice de indeterminacao ¢ relativis- mo para a recuperacao da memoria urbana trazida pelas imagens, pois esta evocacao contempla tanto a acao da consciéncia coletiva quanto a do incons- ciente coletivo, ambos processos nao quantificaveis que escapam a determina- cao do tempo. Se tais argumentos sao, em si, dados de fluidez’e proliferacao de combinacées possiveis, Sansot introduz um elemento de permanéncia: os arquétipos fundamentais, ou elementos de constancia da natureza humana, presentes em todas as sociedades. Aqui nos parece residir um dos elementos essenciais para a dimensao simbdlica das imagens do urbano: a necessidade de atribuir significados rituais ¢ miticos as coisas ¢ as praticas sociais. Dessa forma, entende-se a necessidade do monumento ligado ao mito das origens ou ao mito fundador, assim como os centros de referéncia no assentamento do poder, ou, ainda, a demarcacao das esferas puiblicas e privadas. Finalizan- do, Sansot conclui sua linha de raciocinio ao considerar que, para a constru- ao da memoria coletiva referida ao espaco urbano, os homens vao “inventar seu passado” a imagem de seu presente Caberia, nesse caso, indagar, com ironia, se cabe, finalmente, distinguir as imagens “reais” das “criadas”. Se tudo 0 que se vé e se experimenta é, por sua vez, recriado enquanto sensacao, revivido enquanto memoria articulado- ra de lembranca e decodificado em seus significados, a atribuicao de sentido as imagens podera depender do ponto de vista ou do lugar de quem vé e de como sente aquilo que se apresenta. Sem dtivida, as imagens urbanas tém 0 seu lado simb6lico consensual, imposto ¢/ou atribuido, mas, paralelamente as assimetrias s is, a desigual apropriacao do solo e os distintos posiciona- Mentos politicos podem, por sua vez, colocar outras quest6es € levar a outros entendimentos. — PRoncayoto, Marcel. La ville et ses territoires. Paris: Gallimard, 1990. *Sansot, Pierre, Mémoire collective ct perdurances urbaines. In: Les Annales, op.cit., p = Aidéia do contraste, produzindo a revelacao ou a descoberta, seria desenvol yida por Walter Benjamin, ele proprio leitor de Baudelaire ¢ amante de Paris. Cortando os vinculos genéticos passado/presente, o que Benjamin postula é a criacao de contra-imagens que rompam o continuo da hist6ria, oportunizando o ue se chamaria “o salto do tigre”, que daria margem A inteligibilidade, pelo con- traste® Expliquemo-nos: nao é que Walter Benjamin nao privilegie a teoria e a construcao de conceitos para o entendimento das representagdes do social, pois, para tanto, langa mao das categorias da “dialética da paralisia” ou da fantasmago- tia, versao benjaminiana do fetichismo da mercadoria marxista*! Entretanto, o que cabe resgatar neste momento € 0 método de que se vale Benjamin para, através do cruzamento de imagens contrarias, obter a revelacao da coeréncia de sentido de uma época. Analisando a obra de Benjamin, Willi Bolle indica a técnica da montagem, tomada de empréstimo das vanguardas artisticas, em especial do cinema, ¢ a sua transposicao para a historia. Segundo Bolle, a historiografia benjaminiana, como construgao, pressupdeum trabalho de “destruicao” e “desmontagem’” daquilo que o passado oferece, visando a uma nova construcao, ditada pelo “agora”. Para tanto, sugere a montagem em forma de “choque” ou contraste, confrontando as imagens antitéticas e, por conseguinte, dialéticas, para promover o “despertar” ou a “revelacao”. Ora, uma metropole propicia aos seus habitantes representacoes contraditérias do espago e das sociali- dades que af tém lugar. Ela é, por um lado, luz, sedugao, meca da cultura, civili- zacao, sindnimo de progresso. Mas, por outro lado, ela pode ser representada como ameacadora, centro de perdicao, império do crime e da barbarie, mostrando uma faceta de inseguranca e medo para quem nela habita. Sao, sem diivida, visdes contraditérias, de atracao e reptidio, de seducao e rechaco, que, paradoxalmen- te, podem conviver no mesmo portador. Essa seria até, como lembra Marshall Berman,” uma das caracteristicas da modernidade como experiéncia historica individual e coletiva: a postura de celebracao e combate diante do novo, que em parte exerce fascinio e em parte atemoriza. Assim é que, seguindo a estratégia metodolégica da montagem segundo o choque contrastivo, é possivel pér frente a frente as representacdes da cidade que falam de progresso ou tradi¢ao, as que celebram 0 urbano ou idealizam o tural, o imaginario dos consumidores do espaco frente aos dos produtores da As consideragées de Philippe Hamon*® sobre a condicao do olhar de quem “véa cidade” incidem sobre essas quest6es levantadas. E possivel “ver” a cidade “real”, contemporanea, através das descricées literdrias de estados passados da cidade, ao que se poderia acrescentar que, por sua vez, no seu tracado ¢ nas “ruinas” que per- manecem, é possivel “ler” a cidade que um dia foi ¢ da qual pouco resta. Nesse pon- to nos aproximariamos mais uma vez de Calvino, com as suas “cidades invisiveis”, metafora da estratégia metodoldgica que objetiva tornar “visivel” o “invisivel”. E Hamon que langa a pergunta: haveria uma “visao literaria” da cidade distin- ta da vis4o do arquiteto, do pintor, do higienista, do fot6grafo, do politico? Em principio, seriamos tentados a responder que sim, pois cada um carrega consigo o seu “capital” neste ato de “ver” e “narrar” a cidade, constituido de suas habilitacoes especificas e cargas de sensibilidade préximas, mas sao todos olhares que se cruzam em torno da mesma concretude da urbe. As representacdes da cidade, construidas por cada um desses leitores, é que estabelecerao distancias ¢ aproximacoes, pergun- tas € respostas umas as outras, como num jogo de espelhos. Nao nos esquecamos, contudo, de que o historiador da cultura trabalha com sinais e mensagens emitidas no passado, sob a forma de imagens e di sos. O problema que se configura é de que as cidades modernas realizam, por vezes, a “pasteurizacao” do urbano, destruindo a meméria, substituindo o ve- Iho pelo novo, impessoalizando a cidade. Ha, no plano das imagens deixadas no tracado urbano, muitas intervencées que dificultam a “leitura” das cidades contidas na cidade contemporanea. Da mesma forma, 0s tais “filtros” do pas- sado podem tornar estranhos ¢ mesmo indccifraveis palavras e discursos que tiveram sentido um dia, no seu contexto. Tentando “decifrar” o urbano, Richard Sennet®” pondera que justamente a capacidade das grandes cidades de proporcionar a alteridade ¢ 0 contraste podem estimular o poder da interpretacao visual. A complexidade do meio urbano que, sob um certo ponto de vista, poderia representar descaracteriza- cao, diferenca, anonimato e impessoalidade, segundo a posi¢ao de Sennet, pode vir a tornarse um elemento de reeducacao do olhar, propiciando a cap- tacao de uma nova coeréncia para o mundo. A perspectiva de Sennet, que enfatiza a necessidade de mudanca de pers- pectiva do olhar sobre 0 urbano, é uma proposta que se liga a de outros “leito- res” da cidade. A comegar, como o proprio Sennet invoca, pela figura de Char- les Baudelaire, que via na cidade de Paris a possibilidade de uma transcendéncia do olhar, tais as correspondéncias possiveis de serem apreendidas pelas muilti- plas figuras, espacos e praticas sociais oferecidas. iscur> a *Riissen, John. La histéria, entre modernidad y post-modernidad. In: Gallego, José Andrés (org.) New History, Nouvelle Histoire; havia una Nueva Historia. Madrid: Actas,1992 }enjamin, Walter. Paris, capitale du XIXe siécle, Le livre des passages. Paris: CERF, 1989. {Bolle, Willi. A fisiognomia da metrépole moderna. Sao Paulo: Companhia das Letras, 1994 ‘Berman, Marshall. Tudo que é sdlido desmancha no ar; a aventura da modernidade. Sao Paulo: Com- Panhia das Letras, 1986, 'Hamon, Philippe. Voir la ville, In: Romantisme, Paris, CDU-SEDES, n.83, 1994. p.5-6 Sennet, Richard. La ville d vue d’oeil. Paris: Plon, 1992. - 18 19 ciocinios expostos, ao postular o recorrente cruzamento das praticas com as epresentacoes.™* A rigor, as técnicas de montagem por justaposi¢ao e contraste nao sao, m si, excludentes, e, na pratica, os historiadores tanto se valem de uma quan- to de outra, contextualizando e opondo imagens e discursos antitéticos, na pusca de significados ¢ correspondéncias. No caso especifico das visdes literarias do urbano — ou da visualizacao, ‘como histéria, de um texto literario —, alguns procedimentos metodolégicos especificos se apresentam, mas que, como se vera, confluem para a aborda- gem anteriormente enunciada, que aproxima Walter Benjamin de Carlo Gin- pburg © de Roger Chartier: Primeiramente, ha que ter em conta as condig6es de construgao ou pro- ducao do texto/documento que, na sua escritura, respondeu a uma questao. Nao ha, no caso, texto — a nao ser como resposta a uma problematizacao. Essa instancia remete necessariamente ao contexto da producao do texto, que si- tua o autor — temporal e espacialmente — na sua individualidade, meio soci- al e cultural, implicando, com isso, elementos referenciais como uso de lin- guagem, palavras de referéncia, tendéncias e piiblico de destino. Tais ques- toes implicam, necessariamente, que se leve em conta a recepgao, que marca, por sua yez, a construcao de sentidos outros, distintos daquele original pre- tendido pelo autor-produtor. Tal processo se complica na medida em que se -estabelece a defasagem ou filtro do tempo entre a leitura contemporanea, que ode apagar aquilo que nao faz sentido. A historia é, no caso, afetada pela opa- cidade dos textos antigos, que nao se revelam a leitura, mesmo “cientifica”, dos contemporaneos. Ha, pois, uma relacao de proximidade e de distancia que se estabelece “entre as duas temporalidades. Voltamos ao ponto de que a tarefa nao é facil, mas fascinante: penetrar nos significados produzidos no passado; acessar © que era inteligivel por de- terminados cddigos que hoje se revelam incompreensiveis; procurar ver por que certos textos do passado continuam a ter sentido no presente. Nao entendemos o problema do distanciamento como uma impossibili- dade de acesso ao passado, mas como um desafio que a nova histéria cultural deve ter presente. Apoiados num novo paradigma centrado na cultura, uti zando conceitos tais como os da representacao e do imaginario ou o principio do cruzamento das praticas com os discursos de representagao do real, esco- tados na estratégia metodolégica detetivesca da montagem por contraste e jus- laposicao, resta definir nosso marco espaco-temporal de estudo. a “Chartier, Roger. A nova historia cultural: entre praticas e representacées. Lisboa: a urbe, a visao das elites citadinas com a dos populares e deserdados do sistema, a dimensao da esfera ptiblica, como representacao, com o imaginario constitui- do sobre 0 privado, as imagens do espaco que contrapdem 0 centro ao bairro ou, ainda, a propria viso da rua, vista como local de passeio ou passagem, con- traposta Aqueles que nela moram por nao terem outra opcao. Ainda obedecendo ao principio da desmontagem e remontagem dos frag- mentos do urbano, obtidos por idéias e imagens de representacao coletiva que sao contrastadas com o intuito de reyelar uma nova constelacao de significa- dos, Willi Bolle® indica uma outra técnica de inteligibilidade: a montagem por superposicao. Refere que esta seria talvez “a mais propicia para radiogra- far o imaginario coletivo”, pois nela a tomada de consciéncia se daria aos pou- cos € nao por efeito da revelacao por choque, mencionada anteriormente. Se- ria 0 processo metodolégico através do qual o historiador iria justapondo per- sonagens, imagens, discursos, eventos, performances “reais” ou “imaginarias” do espaco urbano. Seria, talvez, a técnica que mais se aproxima ao que comumente se cha- maria a contextualizacao, o referencial de circunstancia ou, ainda, 0 quadro de contingéncias que demarca a situacao a ser analisada. Assim é que, na cida~ de, compareceriam, como fragmentos da hist6ria ou atores a serem justapos- tos uns aos outros, a multidao ¢ o flaneur, o povo e o destacado personagem, negros, mulheres, marginais, politicos, becos e avenidas, festas, rituais, cotidi anidade e eventos excepcionais. Frente a essa estratégia de um historiador que recolhe fragmentos expres- sos em discursos e imagens que falam de um passado, tentando aproximar-se do imaginario coletivo de uma 6poca — e, portanto, representando o ja re- presentado —, é impossivel deixar de pensar em Carlo Ginzburg,** com as suas consideracées sobre o historiadordetetive. Ginzburg defende que conheci- mento do historiador é indiciario e fragmental. Tal como Freud ou Sherlock Holmes, ele opera de forma detetivesca, recolhendo os sintomas, indicios e pistas que, combinados ou cruzados, permitam oferecer deduces ¢ desvelar significados. Por vezes, a constituicao de um paradigma indicidrio nao se pren- de as evidéncias manifestas, mas sim aos pormenores, aos sinais epis6dicos, aos elementos de menor importancia, marginais e residuais, que, contudo, per mitirao a decifragao do enigma e o desfazer de um enredo. Por outro lado, essa seria ainda a estratégia metodolégica de Chartier, que complementa os Bolle, op.cit., p.98 "Ginzburg, Carlo. Raizes de um paradigma indicidrio. In: Ginzburg, Carlo. Mito, emblemas, si- nais. S40 Paulo: Companhia das Letras, 1990. fel, 1990. trocas entre o Brasil e a Franga nao merecam ser estudadas. Como utopias projetos, elas um dia mobilizaram a vida e foram fruto de composigdes de forcas, de discussoes ¢ de acertos. Como diz Alan Mons, essas imagens constituem o campo de uma pratica rativa, com estilizacoes mediaticas que fazem passar a representacao da ci- ade de um registro a outro (cidade ancestral/cidade moderna, por exem- Jo), efetuando a transposicao da imagem dos lugares.” ‘Temos consciéncia que esse € um caminho que passa pela recepgao,* que plica a releitura e re-producao de um texto ou imagem pelo leitor, que cons- {r6i, com isso, novos significados. Da mesma forma, poderfamos problematizar ‘essa reconstrucdo/apropriacao ou o processo pelo qual discursos e imagens se transformam, passando de um grupo social ou de uma época ¢ local para ou- tro. Ao se apropriarem de representacGes construidas em outro contexto — que podem ser datadas ¢ localizadas, correspondendo a situacdes particulares —, seus novos detentores estabelecem aproximacoes, limites e equivaléncias. A apropriacao € seletiva e constitui a resposta a uma forma de consumo e de estra- tégia de viver. Em suma, recepcao/reprodugao de idéias e imagens correspon- lem a necessidades, a enfrentamentos e a campos de luta. Como refere Bour- dieu,” o real 6 um campo de disputa para definir o que é 0 real. Assim, a pro- ducao de representagdes sobre o mundo que constitui o imaginario coletivo de uma sociedade, corresponde a esse jogo de forcas. Ha uma temporalidade das praticas sociais ¢ de suas representagdes, mas as idéias “viajam” no tempo € no espaco € sao “recicladas” em outro contexto, que as “historiciza”. Ocorrem, nesse proceso, simplificagdes e acréscimos, acei- tacdes € rejeicdes, selecdes e versdes, implicando a atribuicao de outros senti- dos distantes daqueles do original, ¢ isto decorre de fatores tao concretos quanto relagdes de forcas ou niveis de acumulacao, mas também por acao de elemen- tos nao mensuraveis, as utopias € os desejos. Nossa idéia é analisar como, nas “ressondncias” e “ressemantizagoes” das representac6es urbanas entre a Franca e o Brasil, do final do século XVIII 2 primeiras décadas do nosso século, ocorre um processo ao mesmo tempo pi radigmatico de representagao da “cidade moderna” quanto de metaforizagao do social, com atribuicdes de novos significados. Nossa proposta de investigacao ¢ analise trabalha com recortes temporais € espaciais diferenciados ¢ significativos na sua espacialidade: da Paris do final do século XVIII as reformas de Haussmann, na segunda metade do século XIX, 0 Rio de Janeiro, da belle époque e de Pereira Passos do inicio do século, e a Porto Alegre do final do século as primeiras décadas do século XX, mais precisamente, até a gestio José Montaury na prefeitura de Porto Alegre, finda em 1924. que'se coloca em pauta, no estudo das cidades como representagao, é © processo de desterritorializacao, no tempo € no espaco, que os discursos e imagens urbanos podem sofrer. Afirmar isso nao significa des-historicizar ne- cessatiamente a producao das representacoes, pois cada sociedade cria para si 0 sistema de idéias e imagens que a sancionam e legitimam. Se os discursos imagens construidos sobre o urbano sao um indice soci- al € um objeto do imaginario coletivo, sao também capazes de migrar no tem- PO € No espago. Nesse contexto, é possivel que, em locais e momentos diferentes, sejam adotadas solugées idénticas ou andlogas, mas a explicacao de uma imitacao pura ¢ simples, fruto de um cosmopolitismo ingénuo, deve ser descartada. O fato de ser possivel estabelecer uma articulacao entre praticas e representacoes do urbano entre épocas e locais variados, nos mostra que problemas semelhan- tes ou mesmo idénticos se colocaram nesses tempos e espacos distintos. ___ Assim, é possivel que as imagens e os discursos urbanos possam nao $6 ser lidos e entendidos como ser matrizes de praticas sociais em contextos distintos daqueles que Ihes deram nascimento. Por um lado, isso se deve a um compo- nente de universalidade de um mesmo processo — o da urbanizacio ou da constituicdo da sociedade burguesa —, que tende a tornar reconhecivel, em situacSes concretas diferenciadas, problemas e desafios semelhantes que ge- ram respostas e formas discursivas muito proximas. Por outro lado, ha que ter €m Conta o processo de integragao de areas distantes a uma mesma cultura ocidental, envolvendo os fendmenos referentes a circulagao e recep¢ao das idéias. Por tiltimo, nao ha que duvidar da capacidade de informagao de nos- as clites, perfeitamente conhecedoras do que se chamariam “os progressos cientificos, culturais e artisticos” de seu século. __ Estabelecer esse nivel de reflexao nao implica, repetimos, negar a especi- ficidade de cada contexto, que faz com que sejam assumidas as particularida- des locais. Da mesma forma, ao migrarem no tempo € no espa¢o, as imagens € 0s discursos sobre a cidade podem ser cada vez mais dotados de novos senti- dos em fungao de conjunturas e composigées sociais diversas. A concretude das condigdes locais limita a efetivacao de praticas urbanas efetivas, mas nao é porque “nao deram certo” — ou nao se realizaram na sua integridade — que a “Mons, Alan. Imagerie urbaine: une symbolique differée. Les Annales de la Recherche Urbaine. Ima- eset mémoire, Paris, n.42, mats/avril. 1989. p.37 "A obra mais conhecida € classica dos processos de recepcao é a de H. B. Jauss, Pour une esthé- fiquede ta réception. Paris: Gallimard, 1978. "Bourdieu, Pierre. Ce que parler veut dire. Pavis: Fayard, 1982. ad 23 Nesse sentido, Paris, além de ser a “capital do século XIX”, como a defi- niu Walter Benjamin, constitui-se, também, no paradigma da “cidade moder na”, ou na sua metonimia.* Ou seja, Paris passa, a partir do século passado, a constituir-se na cidade emblema do conceito de metrépole, a tal ponto que a enunciacao magica do seu nome faz com que se evoque todo 0 processo mais amplo que comporta e configura a “grande cidade”, Para usar uma expressao da linguagem, torna-se uma parte (Paris) para expressar o todo (a modernidade em termos urbanos), Como microcosmo da modernidade e macrocosmo do social, desperta todo um imaginario, construido por tipos especiais de “Ieitores da cidade” — escritores, poetas, fotdgrafos, pintores — e suscita acdes de intervencao no urbano, exemplificadas pelo desempenho de Haussmann, o prefeito que re- volucionou a capital francesa. Ora, 0 “caso parisiense” mostra ser a cidade 0 espaco ¢ o tempo de reali- ‘acao da modernidade, da mesma forma que configura uma referéncia iden- titaria muito forte a capital francesa. A identidade, sendo também uma repre- sentacao do real que cria uma comunidade simbélica de sentido, oportuniza, tanto a sensacao de “pertencimento”, quanto constréi a nocao de alteridade. E, no jogo das representacées entre “nds” € os “outros”, o “modelo parisiense” vem a se constituir no “outro” desejado, ou, em outras palavras, no “vi identitario sonhado pelas elites brasileiras. No primeiro dos exemplos escolhidos — a cidade do Rio de Janeiro —, a seducao por Paris obedece captagao de uma cocréncia de sentido, no qual a ado¢ao do “modelo parisiense” é “sintoma” da modernidade desejada e represen- aa possibilidade de assumir um padrao identitario que, metonimicamente, pas sa da cidade para o pais. Ocorre 0 que se pode chamar de metaforizacao do soci- al, processo que implica a desterritorializacao /historicizacao de acdes ¢ discursos que, ao se deslocarem no tempo e no espaco, assumem novos significados. Assim, os tais leitores “especiais” da cidade oportunizam um deslizamen- to de sentido no ato de representar 0 urbano, conjugando e trocando signos entre a “cidade real vivida” e a “cidade literaria”. As representagées literarias do urbano sobre o Rio transformado tanto expressam, de forma narrativa, as sensibilidades ¢ as percepcdes das mudan- gas em curso, quanto sao capazes de resgatar e intuir certos tracos eminente- mente nacionais de vivenciar este processo. A riqueza do enfoque literario se traduz justamente na capacidade de aproximar-sc da dimensao universal da metropolizacao da vida — 0 que apro- ja as representacoes urbanas: brasileiras das pari ienses —e a recupe- formas essencialmente originais de vivenciar a modernidade urbana. F através desse feeling literario que a narrativa dos escritores da época, ao da cidade, corresponde a uma forma de “dizer ° Brasil : E, chegando ao nosso segundo caso brasileiro de andlise — a cidade ee orto Alegre, no extremo sul do Brasil —, terfamos uma cadeia de intermedi- faces para as representacoes literdrias do urbano. Externamente, tem-se o modelo parisiense, universalmente consensual, assim como 0 modelo nacional carioca, também paradigmatico para a moder- idade brasileira. Interamente, configurase 0 peso simbélico do padrao re- jonal identitario, articulado em termos de representagoes do mundo rural e Gotado de alta positividade. Nessa dupla insergao ¢ condicionamento, colo- cam-se os impasses da modernidade urbana para a capital gaticha, transmiti- dos pelo olhar da literatura. i. oo Pretendemos, com isso, estabelecer as aproximagoes entre as visoes litera- rias da cidade e as representagoes identitarias dos “modos de ser’ "nacional € regional. © Brasil seria, ousariamos dizer, o reino da representacao social, 0 erreno fértil para a construcao de metaforas € paraa realiz cao da metoni- mia, onde 0 peso do simbélico se sobrepée sobre a realidade e onde o “pare- cer” tem 0 efcito de “ser”. : Nao se quer encontrar Paris em Porto Alegre, mas sim ver como, em situa- ges diferenciadas, tal como no Rio de Janeiro, é possivel acompanhar esse pro- cesso de percepcées e representagoes da cidade através do olhar dos escritor sag Se as condicdes hist6ricas nao permitem a realizagao das praticas urba- nas projetadas, se a realidade social nega as socialidades desejadas, enfim, se a concretude da existéncia impée limites a realizagao da cidade ideal, no plano das representacGes o transito é livre. O detalhe assume a dimensio do todo, o enunciado magico da palavra que nomeia adquire uma forca de real ea ima- gem mental ou visual da 4 aparéncia 0 atributo da essencia. Por tiltimo, caberia, ainda, dizer que as comparagoes, tal como defende Fran- cis Godard,” nao uniformizam, num mesmo patamar, as especificidades das con- digdes histricas de cada espaco em questo. Como refere o autor, deve-se distin- guir e levar em conta as tendéncias universais — adyindas da tansformacao capi talista do mundo ¢ da modernidade — e os processos préprios as culturas locais, que dao 0 contorno da especificidade de cada érea em questao. ae “Godard, Francis. Les comparaisons internationales. Le Courrier du 1994, IRS. La ville. Paris, n.81, “C£Douchet, Claude. La ville siécle. Romantisme. Paris: CDU-SEDES, n.83, 1994. - 8 A torre de Babel. Pieter Bruegel, 1563 Torre de Babel. M. C. Escher, 1928

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