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DE LÉVI-STRAUSS A M.A.U.S.S.


MOVIMENTO ANTIUTILITARISTA
NAS CIÊNCIAS SOCIAIS
Itinerários do dom*

Paulo Henrique Martins

* Este artigo constitui um balanço provisório dos dez radigma do dom” e o de Jacques Godbout, “Introdu-
anos de difusão de uma abordagem não-estrutura- ção à dádiva”, que tratam diretamente do assunto; e
lista sobre o dom, que destaca a liberdade da ação o artigo de Gabriel Cohn, “As diferenças finais: de
sem negligenciar o valor da obrigação. Assinalamos Simmel a Luhman”, no qual o autor propõe revisi-
o período de dez anos pois o ano de 1998 é um tar Simmel a partir de sua proximidade de autores
marco para alguns eventos que tiveram relevância como Mauss – e numa outra perspectiva também
na difusão de uma nova abordagem sobre o dom: Luhman –, que se recusam a aceitar um paradigma
em primeiro lugar, o lançamento do livro O espíri- baseado na centralidade da troca na vida social, que
to da dádiva, de Jacques Godbout em colaboração recusam o reducionismo econômico e que valori-
com Alain Caillé, que atualiza o valor do dom para zam as relações recíprocas sempre renovadas, sem
explicar fenômenos sociais modernos como a soli- perder de vista a totalidade. Deve-se ainda relacio-
dariedade social e a doação de órgãos, por exem- nar na linha de textos não estruturalistas sobre o
plo; em segundo, a visita de Godbout ao Brasil dom o artigo de Lygia Sigaud, “As vicissitudes do
como conferencista da Anpocs; em terceiro lugar, a Ensaio sobre o dom”, de 1999. Embora não dialo-
publicação na Revista Brasileira de Ciências Sociais gando diretamente com os autores do M.A.U.S.S., a
de autores que se mostram simpáticos à revisão do autora realiza uma brilhante revisão da leitura empre-
debate. Assim no número 38 da RBCS de 1998 fo- endida por Lévi-Strauss sobre o dom.
ram publicados três textos que, no nosso entender,
legitimam direta ou indiretamente um paradigma
do dom: o artigo de Alain Caillé “Nem holismo nem Percepções do dom
individualismo metodológico: Marcel Mauss e o pa-

Artigo recebido em janeiro/2007 Qual o lugar dos estudos sobre o dom ou a


Aprovado em dezembro/2007 dádiva1 no interior da Teoria Social? No caso brasi-

RBCS Vol. 23 nº. 66 fevereiro/2008


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leiro, a difusão dos estudos sobre o dom está con- referências na origem e no desenvolvimento dos
dicionada absolutamente pela presença do estru- estudos interacionistas.
turalismo antropológico como filtro mediador? Ou A desconstrução da abordagem estruturalis-
existem outras leituras também legítimas que va- ta do dom contribui para revelar, por outro lado,
lorizem o dom numa perspectiva disciplina mais o vínculo do dom com o novo movimento teó-
ampla, envolvendo a sociologia, a economia, a fi- rico, expressão vulgarizada por Jeffrey Alexander
losofia e a política e que sejam relevantes para a para explicar que a renovação da teoria socioló-
renovação do pensamento teórico? gica passa necessariamente pela consideração da
No desenvolvimento deste artigo defende- hermenêutica científica, do discurso e da cultura
remos o caráter interdisciplinar e interacionista (Alexander, 1987). Sobre este último ponto – uma
dos estudos sobre o dom, reforçando a tese, já maior associação do social com a cultura –, o dom
proposta por outros autores, de entendê-lo como aparece necessariamente como operador simbó-
fundamento de um novo paradigma,2 como base lico estratégico do novo movimento teórico pelo
de uma ciência moral humanista cujas raízes es- fato de situar-se nas fronteiras de disciplinas como
tão inscritas não apenas na trajetória de Mauss, a etnologia, a antropologia e a sociologia.
mas, antes, no humanismo de Durkheim.3 Pre- Neste texto, partimos do princípio de que o
tendemos reforçar a leitura não-estruturalista da novo movimento teórico tem desdobramentos nas
dádiva, permitindo entendê-la como uma teoria ciências sociais que se reportam necessariamente
de reciprocidade aberta e ambivalente. Não-estru- a certas experiências de descontinuidades epis-
turalista porque sem negar o valor da lingüística têmicas no campo científico: uma, mais restrita,
estrutural esta outra abordagem do dom conside- diz respeito à virada lingüística ocorrida entre os
ra igualmente válidas as correntes do pensamento anos de 1970 e 1980 (Dosse, 1997); outra, mais am-
que se desenvolveram em paralelo ao estrutura- pla, trata da virada epistemológica que remete aos
lismo. Tal abordagem alternativa distancia-se do anos de 1940, mais precisamente aos fenômenos
tratamento tradicional oferecido pelo estruturalis- trágicos da Segunda Guerra Mundial e à crise da
mo – que enfatiza no dom uma função de troca filosofia da história (Merleau-Ponty, 1960). Nesta
relativamente rígida –, para realçar no vínculo so- segunda e mais abrangente leitura, o novo mo-
cial um paradoxo entre a regra e a espontaneida- vimento teórico afirma-se não apenas com relação
de, entre a liberdade e a obrigação. Por se abrir ao estruturalismo, mas, igualmente, com relação
à liberdade e à criatividade do sujeito social, essa a uma série de outras correntes de pensamen-
visão não-estruturalista é também antiutilitarista, to que se desenvolveram em paralelo ao estrutu-
revelando-se como um recurso explicativo impor- ralismo como a teoria crítica da escola de Frank-
tante para a crítica dos discursos que reduzem os furt, a filosofia política crítica do totalitarismo de
motivos da ação social a um utilitarismo mate- Hanna Arendt, Claude Lefort e Cornelius Casto-
rial – o interesse econômico no caso do merca- riadis, a filosofia analítica inglesa de Wittgenstein,
do – ou a um utilitarismo normativo – o respeito que tem uma ponte na França mediante Ricoeur
incondicional à norma no caso de sistemas esta- e as escolas interacionistas norte-americanas de
tais tecnocráticos. Na perspectiva aqui assinalada, Blumer, Goffman e Garfinkel. Neste texto, preten-
o dom aparece como uma alternativa a esses dois demos situar os estudos sobre o dom nesta ótica
paradigmas tipicamente modernos, o do mercado mais ampla que inclui o estruturalismo, mas que
e o do Estado. se enraíza em um diálogo mais amplo com outras
Tal leitura alternativa que identifica o dom correntes teóricas.
como um sistema aberto de reciprocidades permi- De modo geral, os esforços de divulgação dos
te associar Marcel Mauss a autores interacionistas estudos sobre o dom encontram dificuldades de
como Simmel, lembra Gabriel Cohn, que valori- várias ordens, dependendo dos contextos sócio-
zam “relações recíprocas sempre renovadas para históricos de sua recepção. Desde já, é importante
além do seu impulso inicial” (Cohn, 1998, p. 54). esclarecer que a revisão dos estudos sobre o tema
Nesta associação podemos também relacionar no pensamento social, no Brasil, exige não se re-
autores como Mead, Cooley e Goffman, que são duzir a relação entre dom e troca no campo acadê-
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mico à ótica sugerida pela antropologia estrutural idéias de caridade, de virtude divina, de angelismo,
e por Lévi-Strauss, incluindo outras percepções isto é, de identificação da idéia de dom com uma
científicas e não-científicas do tema. Há que se interpretação espiritualista do ser humano. Em-
chamar atenção sobre as implicações semânticas bora tal compreensão religiosa do dom pelo senso
da dádiva, isto é, sua recepção e difusão no ima- comum não deva ser desprezada, pretendemos de-
ginário popular através da reprodução da tradição monstrar que esta é apenas uma leitura do termo,
católica. Há que se ressaltar ainda as reações dos e que não é a mais importante.
defensores do utilitarismo econômico contra uma
teoria eminentemente antiutilitarista como esta, o
Dom e utilitarismo econômico
que tem sido ressaltado por vários autores, embora
no Brasil este debate necessite de maior vigor.
Uma segunda dificuldade para a difusão des-
Há, em suma, três focos de resistência contra
te debate na Teoria Social tem relação com o re-
uma difusão mais empolgante do dom no pensa-
ducionismo econômico e com as resistências de
mento crítico: uma tem a ver com a representação
certas teorias individualistas – como as da escolha
religiosa do termo dom, outra, com a reação utilita-
racional e do individualismo metodológico –, que
rista e neoliberal contra o pensamento humanista e
não identificam no sistema da dádiva uma catego-
associativo e, em terceiro lugar, no interior do cam-
ria sociológica que contemple a presença da ra-
po acadêmico, a reação dos simpatizantes da an-
cionalidade instrumental que elas tanto valorizam.
tropologia estrutural contra releituras da obra de
Este tema tem recebido uma atenção bastante am-
Mauss a partir de um enfoque sociológico e polí-
pla dos críticos, envolvendo o próprio projeto do
tico. É de se ressaltar que, em conjunto, tais resis-
M.A.U.S.S. (Movimento Antiutilitarista nas Ciên-
tências inibem o avanço do debate, exigindo cer-
cias Sociais) (Caillé, 1989 e 1998; Godbout, 1998a
to esforço para desfazer os nós criados em torno
e 1998b), que defende a idéia de que o sistema
desse tema. Vejamos a seguir cada um deles mais
do dom não é arbitrário e que se abre a diversas
de perto.
racionalidades, entre outras, a do interesse instru-
mental. Mas considerando o peso do utilitarismo
nas ciências sociais, inclusive no Brasil, não se
Dom e senso comum pode deixar de fazer uma alusão à dificuldade que
o mesmo significa na divulgação dos novos estu-
Sobre o primeiro aspecto, a forte vinculação dos sobre o dom. Pois, para os simpatizantes das
do termo dom com o senso comum religioso, já teorias acima lembradas a dádiva seria uma “teoria
tratamos deste assunto em outra oportunidade, em menor” ao pressupor que a ação social se fundaria
particular no artigo “A sociologia de Marcel Mauss: em mera generosidade e altruísmo. Ao contrário,
dádiva, simbolismo e associação” (Martins, 2005). propõem tais críticos, os homens seriam, sobretu-
Embora este tema não seja fundamental neste arti- do, indivíduos egoístas que agem de acordo com
go, é de se reconhecer que parte das dificuldades seus próprios interesses, não existindo a gratuida-
de difusão dos estudos sobre a dádiva no Brasil, de e o desinteresse. Muitos dos esforços dos estu-
está ligada à forte associação deste termo com a diosos sobre o dom, ao menos nos anos de 1980,
religiosidade popular e com a influência do cato- foram direcionados para provar que a ação social
licismo tradicional sobre o imaginário da doação. não se reduz apenas ao interesse material, haven-
No caso dos países influenciados pela cultura re- do também o interesse pelo poder, pelo prestígio
ligiosa ibérica e, em particular, a lusitana, a forte e pelos bens simbólicos em geral. Além do fato de
associação da palavra dom com o imaginário cató- que o interesse não é apenas autocentrado, mas
lico tradicional constitui um elemento inibidor da também heterocentrado. Este tipo de discussão
sua compreensão científica,4 demonstrando a força abre necessariamente os estudos sobre a dádiva
do senso comum na representação deste fenôme- para a tradição interacionista, assunto que será
no socioantropológico. De fato, no imaginário bra- aprofundado mais adiante.
sileiro, esta palavra está fortemente associada às
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Dom e estruturalismo antropológico como defendem os autores pós-estruturalistas –,


as teses do dom como uma função estrutural fixa
Há uma dificuldade respeitável dentro do passam a ser revistas. A crítica tem como fonte cen-
próprio campo das ciências sociais para se atu- tral o reconhecimento da liberdade do sujeito so-
alizar a compreensão do Ensaio sobre a dádiva: cial na definição de suas obrigações morais e nos
forma e razão das trocas nas sociedades arcaicas processos de construção de alianças e de formula-
(em Mauss, 2003), desfazendo a redução do dom ção de novos sistemas de reciprocidade. No Brasil,
à troca, como foi feito por Lévi-Strauss a partir de deve ser destacada a crítica acertada que faz Ly-
uma leitura marcada pela influência da teoria lin- gia Sigaud à tentativa de Lévi-Strauss de reduzir as
güística, com impacto importante sobre os estudos obrigações que via Mauss nas ações de dar-rece-
antropológicos.5 O pensamento crítico demonstra ber-retribuir a uma teoria de troca rígida (Sigaud,
dificuldades para se libertar da leitura estruturalis- 1999, p. 106), o que constitui uma contribuição
ta na medida em que houve uma revitalização da importante para se avançar na reinterpretação dos
dádiva, nos anos de 1980, a partir da idéia de que estudos sobre o dom.
a mesma contém uma explicação mística da troca
(Sigaud, 1999, p. 113). A persistência do estrutura-
Síntese preliminar
lismo através de novas leituras que atualizam sua
essência dificulta os esforços de se retomar o En-
saio sobre a dádiva sob outro ângulo teórico que As resistências à renovação dos estudos so-
realce suas dimensões sociológicas e polítidcas bre a dádiva revelam a força de crenças, precon-
que são necessárias para a crítica ao utilitarismo. ceitos e desinformações que distorcem a recepção
De fato, existem divergências que tendem a correta do seu sentido. Nenhuma das objeções tra-
situar em lados opostos aqueles estudiosos simpa- dicionais constitui, porém, um impedimento para
tizantes da vinculação dos estudos sobre o dom à que se resgate o valor do dom na crítica social. É o
antropologia estrutural, e os que sustentam pos- que faremos, a seguir, procurando demonstrar que
suir a dádiva um sentido mais universal, que in- no dom há uma teoria da reciprocidade aberta e
teressa também à sociologia e às ciências sociais flexível, que permite revelar a complexidade das
como um todo. Para os que defendem haver uma motivações presentes na ação social, que favorece
estreita associação do dom com a antropologia es- resgatar a experiência e o valor da ação intersub-
trutural, o interlocutor privilegiado de Mauss seria jetiva, que favorece, ainda, articular o saber co-
Lévi-Strauss, seu discípulo mais conhecido, e os mum e o saber científico e que, por fim, valoriza
tradutores deste pai da antropologia estrutural que o cotidiano sem desprezar as articulações entre os
passou a considerar a reciprocidade como uma planos micro e macro.
forma de intercâmbio simétrico (Sabourin, 2004, Nessa perspectiva, a confusão semântica ge-
p. 78). Nesta ótica, a disputa entre antropólogos rada pelo termo dom não deve ser considerada
estruturalistas e demais cientistas sociais sobre a uma dificuldade para seu reconhecimento como
herança de Mauss gera prejuízos em termos de um sistema de ação primário presente em todas
difusão do dom como uma teoria do conhecimen- as sociedades tradicionais e modernas, como de-
to extremamente relevante, por exemplo, para a monstrou Mauss no seu Ensaio sobre a dádiva. A
crítica do pensamento hegemônico, o utilitarismo co-presença cultural e histórica deste sistema mo-
econômico.6 Ao deixar o dom prisioneiro de uma tivou Caillé a propor que ele constitui o paradigma
disputa acadêmica e de um quadro de análise rígi- por excelência, ou seja, um paradigma arcaico e
do, perde-se de vista seu valor prático para a crí- anterior àqueles do mercado e do Estado, que se-
tica teórica no sentido de repensar o direito, a eco- riam derivações do dom (Caillé, 2002b; Godbout,
nomia e a política. 2002). Este caráter universal do dom, mas, ao mes-
Mas, a partir dos fins dos anos de 1970, com mo tempo, aberto à diversidade, à liberdade de o
as pressões políticas e teóricas a favor do “retorno sujeito social desfazer a aliança segundo suas mo-
do sujeito” – não de um sujeito ontológico, mas tivações particulares dadas por certo quadro nor-
de sujeitos abertos à diferenciação e à diversidade, mativo, permite propor, igualmente, o dom como
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base de uma ciência moral humanista, que possi- valores do método lingüístico na organização de
bilita sua articulação com a solidariedade e com um conhecimento objetivo.
a democracia. Desse modo, a discussão sobre o A crítica filosófica referente aos status do su-
dom pode se libertar progressivamente dos velhos jeito e do objeto é ampla, diga-se de passagem,
condicionantes interpretativos, que o definiam co- estando na base de contribuições hermenêuticas
mo uma função simbólica rígida, para receber e fenomenológicas de grandes autores do sécu-
nova acolhida na teoria social. lo XX, como Husserl, Heidegger, Sartre, Bergson,
Mas o trabalho de desconstrução das resis- Wittgenstein, Austin, Ricoeur, entre outros. Mas
tências assinaladas – a tradição religiosa católica, gostaríamos de nos deter em Maurice Merleau-
o utilitarismo econômico e a antropologia estru- Ponty, que escreveu um instigante artigo intitulado
tural – não pode ser feito apenas pela declaração “De Mauss à Claude Lévi-Strauss” (1960). Para ele,
de boas intenções reconciliando o dom e o novo os lugares do sujeito e do objeto apresentam uma
movimento teórico. É importante entender que as conotação particular quando se pensam as rela-
leituras diversas sobre este sistema – vulgares ou ções entre os seres humanos e a invenção de um
científicas – resultam de um trabalho de adaptação mundo compartilhado. Nessa direção, o reconhe-
e recriação de conceitos a partir de um contexto cimento do corpo fenomenal – ou corpo subjeti-
que é sempre mutante. Nesse sentido, entendemos vo – é uma condição para se superar o dualismo
que o desenvolvimento desta reflexão deve con- citado. Entender este corpo não mais como mero
siderar alguns passos: um deles, os sentidos da suporte mecânico, mas como capacidade expres-
tradução e do contexto que delimitam o trabalho siva, permite que o sujeito se perceba imediata-
de adaptação e recriação de idéias apropriadas; o mente no outro e que ele e o outro sejam seres
outro, o contexto no qual foi produzido o Ensaio igualmente atravessados pelo mesmo mundo.
sobre a dádiva, que compõe a matriz inspiradora
do debate para todos os envolvidos. Tal contex- O mundo fenomenológico não é o ser puro, mas
tualização permite entender que a obra de Mauss o sentido que transparece na intersecção de mi-
não tem apenas valor etnológico ou antropológico, nhas experiências e daquelas do outro, pelas en-
mas uma grande atualidade sociológica para a ex- grenagens de umas sobre as outras, ele é logo
plicação das sociedades contemporâneas. inseparável da subjetividade e da intersubjetivida-
de que conseguem sua unidade pela retomada de
minhas experiências passadas nas minhas expe-
riências presentes, pela experiência do outro na
Vicissitudes de uma interpretação minha (Merleau-Ponty, 1999, p. XV).
não-estruturalista do dom
Na percepção do outro, afirma Merleau-Pon-
O resgate dos estudos sobre o dom numa ty em outra passagem, eu atravesso em intenção a
perspectiva não-estruturalista deve considerar a distância infinita “que separa sempre minha subje-
proposição sustentada pelos teóricos da fenome- tividade do outro e que me permite constatar uma
nologia de que a realidade objetiva – que o es- outra presença no mundo” (Idem, p. 494).7
truturalismo definiu como sendo uma invariante No artigo citado, o autor reinterpreta de forma
simbólica – é sempre uma projeção do pensamen- ambivalente as idéias de sujeito e objeto por meio
to, e que sua apreensão objetivada sempre escapa das noções de estrutura e de vivido, revelando a
dos métodos aplicados. Não apenas por haver uma complexidade do debate naquele contexto his-
relação de dependência mútua entre o sujeito e o tórico de organização do pensamento estruturalis-
objeto, mas porque o próprio método é sempre ta francês. Em certo momento, defende, por exem-
condicionado pela experiência vivida do sujeito plo, a idéia de experiência na antropologia como
social. Esta tese apresenta de imediato uma refle- sendo a expressão de nossa inserção como sujeitos
xão filosófica sobre a relação entre o sujeito e o sociais em um todo que nos precede, no qual já
objeto do conhecimento e uma outra de caráter haveria uma síntese que delimitaria nossa investi-
epistemológico a respeito da importância do con- gação laboriosa, “pois vivemos na unidade de uma
texto para a produção e a adaptação de idéias e só vida todos os sistemas de que nossa cultura é
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feita” (Idem, 1960, p. 132). Porém, num momento seu mestre pensou o dom não apenas como uma
seguinte, afirma que na outra ponta do campo da linguagem simbólica mas como um caminho teóri-
antropologia, em certos sistemas complexos, as es- co de crítica ao utilitarismo mercantil e favorável a
truturas se quebram e se abrem; a sociedade deixa um projeto associacionista, como veremos adiante.
de aparecer como uma segunda natureza, cada um Esta distância ocorre quando Lévi-Strauss busca
sendo convidado a definir seu próprio sistema de superar a dualidade entre sociedade e indivíduo,
troca; as fronteiras da cultura se rompem, a função entre sujeito e objeto, entre consciente e incons-
simbólica perde sua rigidez e se estabelece um uso ciente, recorrendo à lingüística estrutural para pro-
profano da vida (Idem, p. 141). Como se perce- por um método rigoroso de análise do empírico.
be, as reflexões do autor refletem neste período a Ele tenta atribuir a Mauss esta preocupação com
preocupação de resgatar a dimensão sistêmica da regras precisas, com “ciclos de reciprocidade cujas
vida social, mas sem perder de vista o vivido. Daí leis são doravante conhecidas” (Idem, pp. 31-33),
ele falar de uma dupla experiência: antropológica concluindo que as trocas não estão nos fatos, mas
e estrutural, sociológica e vivencial. Lévi-Strauss apenas na aplicação do método aos fatos.
teve grande sucesso no primeiro caminho, isto é, Quando decide matematizar as formas simbó-
na busca de matematizar e codificar as funções licas e considerá-las realidades universais apreen-
simbólicas fundamentais da experiência cultural. didas pelo método lingüístico, como é o caso do
Mas esta opção, veremos, levou-o inevitavelmente tabu do incesto, independentemente das vicissi-
a desvalorizar o vivido e a experiência da inter- tudes históricas e particulares, o autor necessa-
subjetividade na configuração das regras objetivas, riamente rompe com a tradição fenomenológica
inclusive aquelas da linguagem. e hermenêutica para propor um novo método de
A questão que podemos colocar, desde logo, é análise combinatória que perde de vista o valor
a seguinte: até que ponto Lévi-Strauss “trai” Mauss do vivido. Neste momento, o pai da antropologia
abandonando uma leitura fenomenológica da ex- estrutural, sem desconsiderar a relação orgânica
periência para vagar pela lingüística estrutural? A entre sujeito e objeto, opta por uma compreen-
resposta não é simples uma vez que Lévi-Strauss são que se afasta da determinação do sujeito para
insiste em sua fidelidade a Mauss, seja quando fala valorizar um sistema de interpretação, a antropo-
das relações entre a sociologia e a psicologia, con- logia estrutural, que explique simultaneamente os
siderando a experiência individual em face da co- aspectos físico, fisiológico, psíquico e sociológico
letiva, seja quando discute a idéia do fato social de todas as condutas (Idem, p. 24).
total, o qual permitiria observar no comporta- Esta primeira reflexão de caráter filosófico
mento dos indivíduos as influências sociológicas, leva-nos, por conseguinte, a outra de caráter epis-
históricas e fisiopsicológicas, como o faz no texto temológico relativa ao contexto de produção do
introdutório aos escritos reunidos de Mauss sob o conhecimento e da experiência. A presença per-
título Sociologia e antropologia (2003). Assim, se ceptiva no mundo, na perspectiva de Merleau-
nos dedicarmos ao estudo do concreto e do com- Ponty, serve, de fato, para esclarecer algo decisivo
pleto, diz ele, “devemos necessariamente perceber no desenvolvimento deste artigo, em particular o
que o verdadeiro não é a prece ou o direito, mas esforço de reorganização dos estudos sobre o dom
o melanésio desta ou daquela ilha, Roma ou Ate- no interior do novo movimento teórico. Pois contra
nas” (Lévi-Strauss, 2003, p. 24). Ou seja, há aqui este reducionismo lingüístico, insurgem-se aque-
a valorização da experiência individual, mas de les que defendem uma outra leitura do dom, lei-
uma experiência que se submete às obrigações tura que resgate a dimensão plural e permanen-
coletivas, o que também é sugerido por Mauss no temente renovadora da experiência do vivido, da
Ensaio... O autor também não trai Mauss ao con- liberdade do sujeito na organização da ordem do
cluir que para “apreender um fato social total é mundo.
preciso apreendê-lo totalmente”, isto é, como uma Na perspectiva da fenomenologia, o trabalho
“coisa” da qual faz parte a apreensão subjetiva intelectual não se produz a partir de um lugar abs-
(Idem, p. 26). A distância com relação a Mauss, no trato, mas de um lugar visível, mesmo que os ma-
nosso entender, aparece quando ele esquece que teriais utilizados para a criação intelectual, como
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memórias, vivências e crenças, sejam muitas vezes partir de um mesmo lugar, na prática enquanto
invisíveis para o autor. Esta é uma questão fecun- o segundo privilegia um esquema dicotômico de
da que suscita acima de tudo a busca de sentido dois sistemas – o europeu individualista e o pa-
fornecida pela nossa experiência cultural, psicoló- triarcal e pessoal – para explicar a realidade so-
gica, emocional, política e social, pela vivência no ciocultural brasileira, Freyre entende que ao longo
cruzamento da experiência do outro. Este senti- da modernização brasileira os valores impessoais
do é determinado e singularizado pela expressivi- da re-europeização teriam vencido os valores pes-
dade do sujeito, pelo modo como se faz presente soais do passado (Souza, 2001a, pp. 197-198). Es-
no mundo no interior de um contexto intersubjeti- sas considerações são importantes para lembrar
vo particular, único caminho para se evitar “a ilu- que não basta que os processos de tradução sim-
são de ver o que não se vê” (Merleau-Ponty, 1964b, bólica de narrativas e esquemas explicativos se-
p. 20), de desconhecer o impacto sobre os discur- jam marcadamente originais, sendo fundamental
sos objetivados, inclusive o científico de uma ex- entender como se fundam as pessoas morais, as
periência comunitária, associativa, local, nacional estruturas de self que delimitam a percepção mo-
ou transnacional que marca de modo particular a ral e cognitiva.8
percepção do sujeito no mundo. O problema do trabalho intelectual não está
Essas reflexões buscam situar um aspecto apenas, pois, em destacar as diferenças culturais e
crucial na organização do pensamento crítico, a de tentar padronizar certos registros teóricos como
saber, a importância de contextualizar as condi- se eles fossem universais. Isto o estruturalismo an-
ções de produção do conhecimento, dando conta tropológico o fez. O problema está em esquecer
simultaneamente do lugar de quem pensa, do ou- que a própria enunciação de tais registros já está
tro pensado – que é pensante também – e daquilo marcada por certa presença perceptiva, por uma
que observa. A dificuldade de sair do pensamento experiência particular de tradução simbólica de
operacional fundado na idéia de um corpo objeti- idéias e de teorias.9 Mesmo que vivenciada incons-
vado – mesmo que seja o corpo simbólico – para cientemente, tal tradução já delimita uma expe-
entrar num pensamento crítico – inspirado num riência intelectual particular que deve ser expli-
corpo fenomenal e aberto à intersubjetividade – citada para que a crítica social possa revelar sua
exige que o trabalho intelectual esteja sensibili- pertinência discursiva. Os próprios princípios da
zado para a importância de contextualização do tradução são delimitados por duas fontes, lembra
pensamento, isto é, de analisar sob que condições Bruno Karsenti. De um lado, há que se reconhecer
ocorrem os trabalhos de tradução, adaptação e a existência de princípios que são sempre formu-
criação de idéias e teorias. Apenas a partir de tal lados a partir de fatos sociais concretamente pen-
sensibilização é que as experiências de criação do sados; de outro, alguns fatos apresentam-se como
conhecimento, geradas em contextos sócio-históri- mais interessantes para revelar aqueles princípios
cos diversos, podem ser reorganizadas, respeitan- da tradução, que outros fatos disponíveis (Karsen-
do-se as exigências, os modos de percepção e de ti, 1994, p. 93).
vivências de outros contextos. Desde que a criação intelectual se inscreve
Semelhante discussão é decisiva para se en- num mundo intersubjetivo, é inevitável que as tra-
tender que muitas vezes a busca de originalidade duções e as classificações de idéias obedeçam a
teórica apenas camufla as dificuldades dos autores certas particularidades fenomenais. Para Gregory
de contextualizar o pensamento. Vale a pena ilus- Bateson, o fenômeno do contexto, assim como o
trar este debate com uma situação prática expos- da significação, define a separação entre a ciência
ta por Jessé de Sousa nas releituras que fez das na acepção clássica e a ciência que ele se propu-
obras de Gilberto Freyre e de Roberto DaMatta, nha a fundar, a “ecologia do espírito” ou ecologia
tradicionalmente considerados como autores que de idéias que permitiria compreender as razões
oferecem análises originais da realidade brasilei- pelas quais certos sistemas de idéias sobrevivem
ra (Souza, 2001a, 2001b). Demonstra Souza que e outros não. E ele acrescenta que a exploração
apesar das tentativas de alguns de apontar Freyre do conhecimento implica “a identificação de uma
e DaMatta como autores que pensam o Brasil a rede mais vasta e dispersa de índices ou pontos
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de referências, a partir dos quais se define um ter- assentado sobre o mercado, o segundo, sobre o
ritório científico novo” (Bateson, 1977, pp. 14-15). Estado.
Entendemos que tal rede, no âmbito de nossa dis- A redação do Ensaio sobre a dádiva, em 1924,
cussão, tem pelo menos quatro pontos de intersec- não foi mero exercício intelectual, mas responde
ção: o discurso no seu contexto original; o lugar às inquietações dele sobre os rumos hesitantes do
do autor-tradutor e de sua modalidade expressiva movimento bolchevique na Rússia, na tentativa de
própria; as idéias enraizadas, em moda e domi- criar as condições para a emergência do socialismo
nantes no campo intelectual do autor-tradutor; e o real. Simpatizante inicialmente da revolução russa
senso comum do contexto em observação. (Graeber, 2006), Mauss cedo compreendeu que as
O que se diz, ou não, a respeito de um autor tentativas dos bolcheviques de eliminar a econo-
ou de uma teoria, é resultado de uma presença mia de mercado, interpretada como um empecilho
perceptiva do intelectual-tradutor no seu mundo para o projeto revolucionário, estava condenada ao
de idéias e no seu contexto sócio-histórico. Neste fracasso. Caillé e Graeber (2002) destacam a preo-
trabalho de contextualização das idéias há, inevita- cupação que teria tomado conta deste intelectual
velmente, um movimento de naturalização de cer- socialista francês quando constatou que os revo-
tas narrativas, o que implica marginalização de ou- lucionários russos teriam cometido um equívoco
tras idéias. O lugar de onde se pensa e se fala – lu- ao tentar implantar o socialismo pela eliminação
gar intelectual, científico, moral – delimita o cam- do mercado. As reflexões de Mauss nos anos de
po de percepção do autor-tradutor, abrindo portas 1920 implicam, pois, certa reorientação dos estu-
para o conhecimento e fechando outras. Tudo isso dos da escola sociológica francesa num contexto
gera omissões aparentemente inexplicáveis. Ao marcado por fortes turbulências políticas (Primeira
mesmo tempo se naturalizam certas crenças inte- Guerra Mundial e revolução bolchevique) e pelos
lectuais que, ao ganharem aura de verdade cien- ares inovadores da modernização urbana e dos
tífica, inibem a apresentação e a discussão de ou- valores libertários expressos nas lutas pelos direi-
tras narrativas sobre o tema. tos de cidadania, no plano micro, e de reorganiza-
ção da sociedade mundial, no plano macro.
O drama vivido pela esquerda socialista em
face dos impasses da revolução russa, em parti-
Contextualizando os estudos
cular pela incapacidade deste movimento de eli-
sobre o dom
minar a economia de mercado, desafiava os es-
píritos da época, levando Mauss a redefinir sua
O momento político compreensão da sociedade, lembra D. Graeber
(2006). Tal drama apontava para a necessidade de
David Le Breton comenta que as sociologias o pensamento crítico rever o lugar do mercado na
nascem em zona de turbulência, de falta de refe- modernidade, deixando de lado o viés maniqueís-
rência, de crise de instituições, “lá onde são elimi- ta das esquerdas (associação do mercado com o
nadas as antigas legitimidades” e onde há necessi- mal), para reinterpretá-lo como um mecanismo es-
dade de “se dar significação à desordem aparente, sencial às trocas nas sociedades complexas.
de encontrar as lógicas sociais e culturais” (Le Além do contexto histórico que delimita as
Breton, 2006, p. 11). Este comentário me parece preocupações de Mauss, não podemos deixar de
apropriado para situar o contexto histórico que lembrar a influência de seu tio, Émile Durkheim,
delimita o trabalho de sistematização, por Mauss, um crítico severo do utilitarismo econômico, con-
dos estudos sobre o dom, na década de vinte do forme observamos nas críticas formuladas por
século passado. Este era um contexto de turbulên- ele no segundo prefácio da Divisão do trabalho
cias sociais, políticas, mas também teóricas. Pois social, quando propõe a necessidade de regula-
foi entre as duas grandes guerras que o mundo mentar a atividade econômica, pois esta, deixada
passou a conhecer a emancipação dos dois prin- a si mesma, traria grandes danos para a sociedade.
cipais paradigmas do século XX, o individualista Referindo-se ao propósito de seu livro, Durkheim
mercadológico e o holista-burocrático: o primeiro, lembra ter insistido várias vezes sobre o “estado
DE LÉVI-STRAUSS A M.A.U.S.S 113

de anomia jurídica e moral em que se encontra à vida, o que implica numa crítica importante ao
atualmente a vida econômica” e que o mundo eco- racionalismo que foi captada acertadamente por
nômico nos dá o triste espetáculo de desordens Durkheim.
de todos os tipos, o que exige regulamentação e A primeira e a segunda tópicas são bastante
uma força moral que se faça respeitar. Até por- conhecidas. Por isso, vamos nos dedicar a avançar
que é falso o antagonismo “que se quis estabele- algumas considerações sobre a terceira.
cer com excessiva freqüência entre a autoridade Esta sugere uma nova releitura do fato social,
da regra e a liberdade do indivíduo” (Durkheim, a partir do esforço de Durkheim de articular as
2004a, pp. VI, VII, VIII). Embora o antiutilitarismo representações coletivas com as experiências dos
de Mauss tenha se voltado progressivamente para indivíduos em interação na vida cotidiana, esforço
uma reflexão sobre os sentidos das práticas e das que o leva a oferecer um curso sobre Sociologia e
motivações da ação social, não se pode negar que Pragmatismo, entre dezembro de 1913 e maio de
a posição teórica e política do seu tio - contra a 1914 (Durkheim, 2004b). O caráter antiutilitarista
ação de desregulamentação do mercado sobre a do sistema do dom tem como importante referên-
ordem social –, tenha tido influência importante cia a renovação da crítica intelectual durkheimia-
sobre sua trajetória. na presente neste curso. O resgate dos registros
A crítica ao individualismo mercantilista, já desta terceira tópica, que Mauss definiu como a
presente em Durkheim, de um lado, e a tentati- coroação da filosofia de Durkheim, foi possível
va de encontrar saídas para o pensamento de es- devido ao esforço do próprio Mauss de recuperar
querda e para o movimento associacionista, neste as anotações de aulas feitas pelos ex-alunos que
contexto de revisão do debate da escola francesa sobreviveram à guerra. Tais anotações são a base
e de incerteza da geopolítica européia, de outro do livro Pragmatisme et sociologie (2004b), que re-
lado, são ingredientes que levaram Mauss a rever úne anotações de sala de aula de alunos do autor,
progressivamente as teses socialistas, visto que es- reunidas por Durkheim no pós-guerra.
tas demonstravam insuficiência para a crítica do Neste curso, ele trata da relação entre a es-
utilitarismo econômico dominante. cola pragmatista norte-americana – represen-
tada por figuras como Peirce, James, Dewey e
Mead – e a sociologia, buscando articular teorica-
mente suas reflexões sobre as representações co-
O momento intelectual letivas, com as teses, aparentemente opostas, do
pragmatismo social norte-americano, que tentava
A sistematização da teoria do dom estabelece associar a produção intelectual sobre a verdade
uma continuidade inegável com relação à produ- aos determinantes psicosociais e não utilitários das
ção sociológica de Durkheim e à parceria deste práticas interativas. Para o fundador da sociologia
com Mauss. Do ponto de vista conceitual, a teoria francesa, haveria no pragmatismo, em particular
do dom situa-se, no nosso entender, no desdo- nas teorias mais sociológicas de C. Peirce e G.
bramento final das três tópicas de Durkheim: a Mead, um sentido de vida e de ação individual que
primeira tem a ver com a compreensão do fato seria muito importante para os estudos da socie-
social numa perspectiva funcional e histórica, que dade. De fato, há nesses autores uma preocupação
encontramos na Divisão do trabalho social; a se- evidente de pesquisar os fundamentos da vontade
gunda, que remete às representações coletivas dos coletiva sem cair no excesso de formalização dos
fatos sociais, está presente em Formas elementares sistemas sociais, nem nos casuísmos racionalistas
da vida religiosa, que redefine o fato social a partir das teorias individualistas do contrato social. Se
das crenças e representações coletivas. A terceira, considerarmos, por exemplo, John Dewey, encon-
apenas esboçada, mas de grande relevância, diz tramos nele, lembra Honneth, uma teoria da coo-
respeito ao seu interesse de articular a discussão peração reflexiva que é fundamental para se pen-
mais geral das representações coletivas com a pre- sar a democracia e a associação nos dias atuais, e
ocupação do pragmatismo de associar as idéias entender a democracia como uma forma reflexiva
às coisas e à experiência, de ligar o pensamento de cooperação comunitária que supera os limites
114 revista brasileira de ciências sociais - vol. 23 nº. 66

das disputas entre republicanismo e procedimen- ser limitada a um modo único e verdadeiro que
talismo (Honneth, 2002, p. 267). Esta é uma pista teria como autor-tradutor privilegiado, ao menos
importante para se explorar a relação entre dom, no Brasil, Claude Lévi-Strauss, e como disciplina
associação e democracia. central a antropologia estrutural.
Esta terceira fase da obra de Durkheim foi in- Nesse texto queremos demonstrar, ao contrá-
terrompida devido a alguns fatos: a eclosão da Pri- rio, que são diversas as modalidades de leitura da
meira Guerra Mundial, a morte de seu filho André, obra deste autor e, em especial, do Ensaio sobre a
na guerra, e o falecimento do próprio Durkheim, dádiva, de 1924 (Mauss, 2003), que Georges Gurvi-
em 1917, por não ter suportado a perda do filho. tch, na apresentação que fez da primeira edição de
Mas esta fase constitui, no nosso entender, uma Sociologie et anthropologie, define como uma das
fonte de inspiração decisiva para Mauss conceber obras-primas da sociologia francesa. No caso da
a tese do “fato social total”, que se funda, ao mes- diversificada obra de Mauss – autor com formação
mo tempo, nas crenças coletivas e nas experiên- em filosofia, filologia, história, etnologia, sociolo-
cias concretas dos atores sociais, e que permite gia e antropologia –, é possível relacionar diversas
completar o desenho da filosofia moral libertária, possibilidades de releituras desse ensaio. Guardan-
inicialmente proposta por Durkheim. do esta perspectiva, Marcel Fournier, importante
biógrafo de Mauss, organizou recentemente, na re-
vista Sociologie et Sociétés, uma coletânea intitulada
O dom: do estruturalismo para “Présences de Marcel Mauss” (Fournier e Marcel,
o pós-estruturalismo 2004), na qual relaciona autores que receberam
influências diversificadas de Mauss, como Pierre
Essas observações são cruciais para a virada Bourdieu, Jean-Pierre Vernant e Maurice Agulhon.
epistemológica que enfatiza uma leitura não-es- Para os que propõem que a teoria do dom possui
truturalista do dom, mas que não recusa de algum implicações teóricas, morais e políticas mais am-
modo a importância do estruturalismo. Não se tra- plas que aquelas da antropologia estrutural – tese
ta de menosprezar o conhecimento científico para que defendemos neste texto –, há outros interlocu-
valorizar no seu lugar o saber comum e cotidia- tores importantes a assinalar, como Mary Douglas,
no, como o propõem alguns pós-estruturalistas. no pensamento antropológico anglo-saxão, Claude
Trata-se de preservar a possibilidade do método Lefort e Alain Caillé, na filosofia política francesa,
científico sem desconsiderar a importância do in- Maurice Godelier, na antropologia comparada, ou
dividualismo contemporâneo em refazer as nar- Jacques Godbout, na sociologia.
rativas e o próprio método. Nessa perspectiva é Nessa perspectiva, entende-se que a força
de se perguntar: até que ponto o dom se constitui do estruturalismo antropológico na mediação do
num sistema universal válido em todas as circuns- trabalho de tradução dos estudos sobre o dom
tâncias ou conhece ele igualmente as vicissitudes no Brasil tenha contribuído de algum modo para
da relatividade da tradução que põe em suspeita a deixar “invisível” uma importante leitura não-es-
objetividade do método lingüístico? truturalista que na França subsistiu de modo mais
Analisando-se o privilégio adquirido pela an- tímido durante a fase hegemônica do estruturalis-
tropologia estrutural neste trabalho de difusão do mo e que foi retomada com intensidade a partir da
dom no Brasil – e, igualmente, o esquecimento década de 1980 quando a hegemonia do estrutura-
de outras leituras possíveis desta contribuição de lismo passou a ser questionada. Tal releitura deno-
Mauss –, somos levados a concordar que as difi- minada por alguns de pós-estruturalista significou
culdades da tradução também se fazem presen- a abertura dos estudos sobre o dom a partir de no-
tes neste caso. Por isso somos favoráveis a que se vos contextos, em particular aquele do individua-
respeite a pluralidade de leituras do pensamento lismo contemporâneo que leva necessariamente a
crítico para que se possa comparar e analisar as se pensar “os dispositivos democráticos de outros
diferenças e as proximidades de interpretações mundos possíveis” (Corcuff, 2006, p. 86). Tal in-
até que se chegue a alguns consensos. Ou seja, a dividualismo, diferente daquele narcisista que re-
divulgação dos estudos sobre a dádiva não pode força o egoísmo e a separação, permite redefinir a
DE LÉVI-STRAUSS A M.A.U.S.S 115

obrigação do dom – que tem um peso importante mesmo movimento a socialização dos indivíduos
na leitura tradicional do tema e, em particular, na- e sua unificação em um grupo” (Karsenti, 1994, p.
quele do estruturalismo – a partir da liberdade do 87).11 Ora, se o símbolo e o dom são fenômenos
indivíduo de aceitar, ou não, os atos de doar, de que se complementam – quando não se comple-
receber e de retribuir. tam no processo concreto de formulação de alian-
Há mais de duas décadas, vêm crescendo ças geradoras do social –, então devemos reco-
progressivamente as pesquisas, as teses, os cursos nhecer que o debate pós-estruturalista do dom
e os encontros que se apóiam numa outra compre- tem importância estratégica para um pensamento
ensão do dom, que ultrapassa a leitura antropo- crítico e plural e, como defenderemos neste artigo,
lógica restrita oferecida pelo estruturalismo para para se pensar a emancipação de uma ciência mo-
incorporar percepções diferenciadas advindas de ral e humanista.
uma perspectiva pós-estruturalista e interdiscipli-
nar. Esta releitura foi fornecida pelo cruzamento
de disciplinas como a sociologia, a política e a O dom, o pós-estruturalismo e
filosofia, e a própria antropologia, que se liber- o individualismo contemporâneo
tou progressivamente do esquema teórico rígido
do estruturalismo, o qual desvalorizava tanto a li- De certo modo, Mauss antecipou esta aber-
berdade do indivíduo e dos grupos sociais como a tura dos estudos não-estruturalistas sobre o dom
importância do senso comum na invenção de mo- na sua fase de maturidade, em um texto intitulado
dalidades diversificadas e plurais de organização “Fato social e formação do caráter”, que preparou
do pacto cultural e social. para apresentação no Seminário Internacional de
O debate que se segue ao estruturalismo tem Ciências Etnológicas e Antropológicas, ocorrido na
contribuído para retomar o espírito humanista e li- cidade de Copenhague, em 1938. Neste pequeno
bertário da escola francesa de sociologia, em par- texto, há comentários reveladores a respeito do in-
ticular os estudos sobre o dom10 com perspectivas dividualismo moderno que ele, então, passava a
importantes para a renovação das ciências sociais. considerar fundamental para se pensar a moderni-
A importância que estamos dando às condições dade. Diz ele que “é em oposição à vida coletiva
de tradução de contextualização sócio-histórica que o indivíduo – o ser – de pura consciência e
dos estudos sobre o tema, no Brasil, tem uma sig- liberdade, se criou na vida”. Para ele, em outra
nificação particular no que diz respeito ao lugar passagem, o indivíduo tornou-se, nas sociedades
desta teoria na formulação de um novo movimen- modernas, sujeito e objeto, agente responsável
to teórico. da vida social: “Agora, o indivíduo é a fonte da
Os estudos sobre o dom na perspectiva pós- mudança social. Ele sempre o foi, mas não sabia”
estruturalista permitem avançar no campo das ciên- (Mauss, 2004, p. 140).12 Esta intuição de Mauss é
cias sociais a crítica teórica de Merleau-Ponty ao confirmada por M. Godelier, para quem nas socie-
dualismo cartesiano e resgatar o valor da intersub- dades modernas três coisas se modificaram funda-
jetividade pela demonstração de que existe uma mentalmente: a relação dos indivíduos com a se-
estreita ligação entre dádiva e simbolismo. Na ori- xualidade, o lugar dos homens e das mulheres na
gem, lembra Caillé, o símbolo é o próprio signo sociedade (e, portanto, a relação entre sexos) e o
da aliança, e esta apenas é contraída pela dádiva. lugar das crianças (Godelier, 2004, p. 565). Esta
Não podemos apreender a dádiva abstratamente, emergência do individualismo reflexivo moderno
“mas apenas a partir do que se passa entre os ato- não ficou indiferente a Mauss, como vimos ao lem-
res, a partir do que os une ao separá-los, campo brar suas notas para o congresso de Copenhague.
de intermediação que o fenômeno do simbolismo Existem, então, outros autores de formações
institui e no qual consiste” (Caillé, 1998, p. 31). Na diversas na antropologia e na etnologia, mas, igual-
concepção do símbolo e do simbolismo não existe mente, na sociologia, na economia, na história
“nem indivíduo nem sociedade, mas somente um e na filosofia que, sem negar a importância de
sistema de signos que mediatiza as relações que Mauss para a fundação da antropologia estrutu-
cada um mantém com cada um, construindo num ral, recusam-se a aceitar o reducionismo discipli-
116 revista brasileira de ciências sociais - vol. 23 nº. 66

nar que nega o valor da liberdade individual, em vem conservar cuidadosamente e (querer) decidi-
contraste com a própria posição de Mauss. Eles damente” (Mauss, 2004, p. 140). Enfim, esta outra
sustentam, em conjunto, que Marcel Mauss tem leitura – pós-estruturalista ou não estruturalista,
uma contribuição bem mais geral para a teoria dependendo do ângulo de observação – apenas
crítica contemporânea, a qual não tem sido devi- foi realçada, nos inícios dos anos de 1980, no con-
damente ressaltada. Esta contribuição, acrescenta- texto de enfraquecimento das teses estruturalistas
mos, tem uma relevância não apenas acadêmica, e do surgimento de “novas sociologias”, que res-
mas, sobretudo, política, pelo que significa como gatam a crítica antiutilitarista contida no dom e
referência para uma crítica sistemática e poderosa sua relevância para a consolidação da crítica moral
do utilitarismo econômico, a partir dos horizontes humanista, presente no espírito socialista e asso-
abertos pelo pós-estruturalismo. ciacionista de Durkheim e Mauss.
Aqui, há, de fato, uma distância importante Temos, então, duas explicações válidas da teo-
entre as expectativas nutridas por antropólogos e ria do dom. Uma diz respeito, como já foi assinala-
sociólogos com relação aos usos do dom. Se para do, à fama adquirida pela antropologia estrutural
os antropólogos na linha do estruturalismo a pre- e pela associação do dom com o método lingüísti-
sença de sistemas fixos de trocas é decisiva para co estrutural que permitiria apreender os sistemas
explicar as sociedades tradicionais, para os soció- separados da realidade, determinando as regras
logos, simpatizantes de uma abordagem pós-estru- existentes entre tais sistemas. A outra tem a ver
turalista, interessa na teoria do dom outra coisa, com o modo como Mauss busca, intencionalmen-
a saber: como a liberdade do indivíduo moderno te, com base nos estudos das sociedades arcaicas,
subverte os sistemas de obrigação estabelecidos, desenvolver as linhas gerais de uma reflexão pró-
para criar novos sistemas de reciprocidades am- pria às sociedades modernas, que tem dois pontos
bivalentes e abertos. Por exemplo, o dom entre de destaque: uma crítica da filosofia utilitarista e
anônimos, como a doação de sangue, é um fenô- da teoria econômica dominantes nas sociedades
meno típico dos tempos modernos, assim como o contemporâneas, esboçada na conclusão de seu
trabalho voluntário junto a desconhecidos (o que ensaio sobre o dom; e a valorização da liberda-
não acontece em sistemas de troca tradicionais, de de interação dos indivíduos na organização da
nos quais a proximidade sanguínea e étnica são vida social. Esta crítica é realizada indiretamente,
fatores determinantes do dom), ou as trocas hori- a partir de uma etnografia que se inspira nos siste-
zontais, chamadas de dádiva-partilha, entre ho- mas de trocas nas sociedades arcaicas para dedu-
mens e mulheres. zir que sua universalidade atravessaria as socieda-
Para a sociologia e para a filosofia política des modernas. Mauss sugere que o fenômeno do
contemporâneas, a atualidade crítica do dom se dom continua sendo fundamental para explicar a
faz, portanto, a partir da relevância da reciproci- aliança na atualidade, revelando, claramente, sua
dade aberta para se compreender a dinâmica e a intenção de demonstrar esta tese quando afirma
complexidade das trocas nas sociedades dos indi- que “é possível estender essas observações à nos-
víduos, trocas que são sempre determinadas por sas sociedades” (Mauss, 2003, p. 294). Este segun-
ambivalências constituídas entre os motivos da do aspecto leva certos autores a posicionar Mauss
liberdade e da obrigação, do interesse e do “de- ao lado de Simmel, como fundadores do intera-
sinteressamento” (Caillé, 1998, 2002b, 2006). Em cionismo crítico que defende a hipótese de que a
suma, há no próprio Ensaio..., e em outros textos sociedade se funda a partir das relações humanas
do Mauss, uma leitura teórica alternativa menos (Papilloud, 2004; Caillé, 2002b).
voltada à explicação das sociedades tradicionais
do que correlacionada com a modernidade. Afinal,
como afirma Mauss no final de seu texto prepa- Resgatando o estruturalismo
rado para o Congresso de Copenhague, não se pelo social
trata de cair num viés romântico de fazer o culto
dos heróis, “mas de despertar nos homens o sen- Podemos nos perguntar se o destaque dado
tido do que eles são para a sociedade o sentido a Lévi-Strauss como autor-tradutor privilegiado das
de mudanças sociais na sociedade que eles de- idéias de Mauss – em larga medida, justificado pela
DE LÉVI-STRAUSS A M.A.U.S.S 117

sua relevância para a antropologia contemporâ- rava profundo, mas isolado: “o caráter voluntário
nea – é, de fato, o problema central das diver- por assim dizer, aparentemente livre e gratuito, e,
gências acadêmicas em torno do tema. Nossa opi- no entanto, obrigatório e interessado dessas pres-
nião é que esta disputa é periférica e que tanto os tações” (Mauss, 2003, pp. 187-188). Nessa perspec-
antropólogos lévi-straussianos como seus críticos tiva, é correta a ênfase que Lévi-Strauss dá ao valor
têm razão. da obrigação – sintetizado na sua tese sobre o tabu
Lévi-Strauss utilizou com muita competência do incesto – que ele elaborou a partir da investiga-
a revelação de Mauss sobre as trocas simbólicas ção do casamento prescrito entre primos cruzados
e generalizadas para propor teses interessantes, (um primo se proíbe de casar com a irmã do primo
entre elas destaca-se a definição da família como na expectativa de que este renuncie igualmente a
fa-to social. Pois, ao resgatar o conceito maussiano casar e possuir sua irmã). Mas, é apenas válida no
de aliança para explicar a constituição do parentes- que diz respeito a este tipo de sociedade, em que
co a partir do pacto social, ele rompe com a visão a moral coletiva e religiosa se impõe claramente
biológica de família, permitindo nova compreen- sobre as condutas dos membros do grupo, não
são do fenômeno social. Na perspectiva de Lévi- servindo para generalizações. Pois esta teoria da
Strauss, as relações de parentesco não derivam de aliança, baseada no casamento prescrito, não pode
grupos familiares isolados, mas se constituem por ser estendida à sociedade moderna individua-
códigos, configurando um sistema de comunica- lista, em que a constituição da parentela passa a
ção cultural e social, melhor dizendo lingüístico, ser largamente influenciada pela ação individual.
como se observa na leitura de sua descrição minu- Na verdade, a dádiva contém em si não ape-
ciosa do parentesco (Lévi-Strauss, 1982). nas os fundamentos teóricos para os estudos sobre
Isto não elimina, porém, uma questão cen- o simbolismo na contemporaneidade (assunto que
tral: os limites claros do campo de investigação voltaremos a tratar adiante), e que marcou os estu-
científica do pai do estruturalismo para a explica- dos antropológicos no século XX, mas, igualmen-
ção da sociedade moderna, como já foi lembrado. te, uma crítica perspicaz do utilitarismo econômico
Pois Lévi-Strauss desenvolveu sua teoria das trocas e mercadológico a partir de um conceito de “fato
a partir não do fenômeno urbano – como propõe social total”, cuja ambição deixa revelar os traços
Mauss na conclusão do Ensaio... – mas da orga- de uma ciência moral transdisciplinar.13 No Ensaio
nização das sociedades tradicionais, entre elas as sobre a dádiva, a contribuição de Mauss para o
tribos nambiquaras, de Mato Grosso (que ele visi- debate antiutilitarista aparece no modo como ele
tou algumas vezes quando esteve no Brasil como demonstra estarem as idéias de mercado, de alian-
professor da Universidade de São Paulo). Ou seja, ça, de trabalho, de contrato e de solidariedade ir-
as conclusões da antropologia estrutural – como, remediavelmente ligadas a certas fundamentações
por exemplo, a do tabu do incesto –, não foram de caráter moral.
pensadas em contextos urbanos, mas a partir de A fundação do M.A.U.S.S. – Movimento An-
grupos sociais organizados de forma tradicional, tiutilitarista nas Ciências Sociais –, na França, em
com influência decisiva do fato religioso. 1981, expressa adequadamente tal reação teórica,
Em larga medida, as observações de Lévi- voltada para o resgate do legado teórico da escola
Strauss sobre esses grupos sociais tradicionais francesa de sociologia e de seu valor para sistemati-
confirmam as observações de Mauss a respeito zar uma crítica mais articulada do economicismo.14
de haver uma obrigatoriedade fundadora de tro- A releitura da obra de Mauss por este movimento
cas e contratos feitos sob a forma de presentes, tem permitido retomar e ampliar o valor de sua
em sociedades como aquelas da Escandinávia, nas crítica teórica e demonstrar sua importância para
quais, apesar de aparentemente voluntárias, as tro- reorganizar os campos disciplinares nas ciências
cas eram obrigatórias. No desenvolvimento deste sociais contemporâneas. Este novo trabalho de tra-
raciocínio, já na introdução do Ensaio..., Mauss dução ocorreu num momento muito especial, o
propõe que, de todos os temas complexos e dessa da crise do paradigma estruturalista nas ciências
multiplicidade de coisas em movimento, ele gosta- sociais a partir da “virada lingüística” dos fins dos
ria de analisar apenas um dos traços que conside- anos de 1970 (Dosse, 1997) e, também, o de ex-
118 revista brasileira de ciências sociais - vol. 23 nº. 66

pansão de um intercâmbio intelectual muito rico modo que, no lado contrário, sua interrupção é
entre a escola francesa e a escola anglo-saxônica. motivo para a inimizade, a desonra e a guerra. Co-
Este intercâmbio revela-se com particular interesse mo teoria relacional, o dom permite enfoques ori-
no interior do M.A.U.S.S., pois havia uma tentativa ginais e múltiplas interpretações da realidade, in-
de articular a dádiva com a tradição pragmática clusive a de repensar a produção econômica e o
norte-americana e com as escolas interacionistas trabalho social não apenas a partir da exploração
(Caillé, 2002b; Chanial, 2001), retomando, de certa e do conflito, mas incorporando indicadores de
forma, o trajeto interrompido pelo pai da sociolo- bem-estar e de “vida boa”.
gia francesa. Ao ampliar a compreensão da sociedade pela
Nas páginas seguintes, voltaremos à teoria introdução do simbolismo,16 Mauss superou a di-
maussiana à luz desta interpretação pós-estrutura- cotomia que tinha aprisionado Durkheim entre o
lista e contextualizada, de modo a avaliarmos sua sagrado e o profano (Caillé, 1998) e fez avançar a
abrangência conceitual e sua contribuição para a compreensão da sociedade superando outra dico-
renovação do campo intelectual. tomia clássica da sociologia, aquela entre agência e
estrutura. Mediante a concepção do simbolismo, diz
Karsenti, percebe-se “que a oposição entre indivi-
Elementos da teoria do dom dual e coletivo perde literalmente toda pertinência.
Ou melhor, temos que aceitar que esta distinção
A noção de simbolismo corresponde apenas a variações diferenciadas de
um simbolismo único, característico de uma socie-
O ciclo do dom confunde-se com o ciclo da dade determinada” (Karsenti, 1994, p. 91). Enfim,
vida ao realçar a relação orgânica entre qualidade neste trabalho de desconstrução de um mito de
do vínculo e da aliança e finalidade da vida huma- “economia natural” que teria existido, desde sem-
na. Trata-se de uma questão de interesse moral e pre, a partir da presença de um homo oeconomicus
que tem implicações políticas na medida em que, agindo motivado por seus interesses individuais e
como nos lembra J. Baechler, “um fim é a solução egoístas, vários autores concordam (Karsenti, 1994;
de um problema de sobrevivência posto à espécie Godbout, 1998a; Caillé, 2000b; Martins, 2005) que
pela sua natureza, uma solução que põe de ime- o mais importante na crítica de Mauss ao utilitaris-
diato um novo problema: o que fazer para que a mo foi demonstrar que os bens que circulam na so-
solução se torne real?” (Baechler, 2002, p. 63). O ciedade não são apenas materiais, mas, sobretudo,
ciclo do dom permite compreender que a qualida- simbólicos. Diz Godbout que no ato de doação de
de da relação entre o ser humano e a natureza em algo a alguém, não é apenas a coisa que é dada,
geral depende de uma questão moral: a capacida- mas, também, a intenção (Godbout, 2000) ou o
de de correr o risco de se relacionar com outros, “hau”, o “espírito da coisa” (Mauss, 1999, p. 161).
com vistas à produção do mundo pelo trabalho, Assim, na organização da prática social, há sempre
pela política, pela honra ou dignidade, mas, sobre- dois bens em circulação: um material, a coisa dada,
tudo, pelo interesse coletivo de se fazer alianças um simbólico, a intenção oferecida.
com vistas a tornar perene o movimento fluido das Merleau-Ponty entendeu claramente a impor-
instituições sociais e culturais.15 tância de Mauss para as ciências sociais ao afirmar
Tal risco é devidamente assinalado por Mauss que sem negar os princípios da escola francesa ou
nas conclusões do Ensaio sobre a dádiva, ao pro- os de Durkheim, ele conseguiu superar o erro de
por que, de uma ponta à outra da evolução huma- situar o observador fora do objeto observado, erro
na, não há duas sabedorias: “Que adotemos então que impediria a “penetração paciente do objeto,
como princípio de nossa vida o que sempre foi a comunicação com ele” (Merleau-Ponty, 1960, p.
um princípio e sempre o será: sair de si, dar, de 126). Mas esta penetração no fenômeno apenas
maneira livre e obrigatória; não há risco de nos pode ocorrer, explica o autor, se entendermos que
enganarmos” (Mauss, 2003, p. 301). A maturação o fato social não é uma realidade bruta, mas “um
do ciclo do dom, esclarece, favorece o entendi- sistema eficaz de símbolos ou uma rede de valores
mento, a amizade, a aliança e a honra, do mesmo simbólicos que se insere no mais profundo dos
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indivíduos”, levando-nos a compreender que não a rever a premissa durkheimiana do fato social,
temos que escolher entre indivíduo e sociedade, reapresentando-o como “fato social total”. Esta re-
pois são tudo totalidades ou conjuntos articulados visão teórica aponta, portanto, para um aconteci-
(Idem, p. 125). mento inédito das ciências sociais, que foi produ-
Por conseguinte, enfatiza Merleau-Ponty, zido entre Durkheim e Mauss, a saber, a invenção
Mauss, ao conceber o social como um simbolismo, do simbolismo. Os estudos sobre as significações
permitiu-se os meios de respeitar a realidade do in- subjetivas das trocas, que o levam a valorizar a
divíduo, aquela do social e a variedade de culturas, idéia de totalidade, foram sistematizados a partir
sem tornar umas e outras impermeáveis entre si. das revisões feitas por Mauss das análises durkhei-
“Uma razão ampliada deve ser capaz de penetrar mianas do sagrado, da religião e das representa-
até o irracional da magia e do dom” (Idem, p. 126). ções coletivas, como o demonstra Camile Tarot
(1999). A compreensão da sociedade como fato
social total permitiu a Mauss superar as dualidades
conceituais presentes no pensamento de seu tio,
O fato social total Émile, articulando de modo dialógico categorias
aparentemente opostas, como o macro e o micro,
A simpatia de Mauss para com o movimento o subjetivo e o objetivo, o individual e o grupal, o
associacionista do início do século XX, na França, sagrado e o profano, o cultural e o social, a práxis
levou-o a refletir em profundidade sobre os moti- e a teoria, o unidisciplinar e o multidisciplinar.17
vos variados da associação humana. Segundo ele, A sistematização dos estudos sobre a dádiva
tais motivos não podem ser restringidos a certos levou Mauss, de certo modo, a uma ruptura parcial
determinantes particulares – econômicos, políti- com o esquema teórico de Durkheim. Enquanto
cos e/ou culturais –, visto que tudo tem relevância este via a obrigação como a condição central e in-
para a constituição do vínculo social, sendo a so- condicional da moral social, Mauss entendia que o
sistema moral conhecia certa flexibilização, resul-
ciedade um “fato social total”.
tante da pluralidade de determinações. Assim, em-
A crítica ao utilitarismo mercantil, de um
bora considere o dom uma obrigação em última
lado, o resgate da dimensão moral da vida so-
instância, ele reconhece que, na prática, há uma
cial, de outro, levaram Mauss a rever e ampliar
ambivalência constitutiva do dom entre a obriga-
a noção de fato social de Durkheim. Para ele, a
ção e a liberdade, entre o material e o simbólico
sociedade seria um “fato social total” e no interior
e que se insinuam no movimento de produção do
do conjunto de prestações e contraprestações que
fato social que é total.
definem a vida social em geral, a atividade econô- A atualidade da contribuição de Mauss para
mica e mercantil seria apenas um aspecto particu- as ciências sociais pode ser, assim, sintetizada em
lar deste conjunto, limitando-se pelo caráter dos dois pontos fundamentais: a definição da socieda-
rituais e das obrigações coletivas. A esse respeito, de como um fato social total, permitindo articular
esclarece Karsenti que o dom permite revelar os adequadamente aquelas dicotomias tradicionais
comportamentos de homens concretos e não um da sociologia já referidas, e a introdução do sim-
conjunto de regras jurídicas ou morais definidas bolismo como fundamento último das trocas entre
abstratamente. Nesse sentido, complementa ele, o pessoas morais. Trata-se de uma contribuição de
fato social total, longe de indicar uma generali- importância paralela àquela do sujeito do incons-
dade desencarnada, “emana da descrição de uma ciente de S. Freud, com a diferença de que, em
realidade constituída de experiências comuns que Mauss, a noção de pessoa moral não se limita às in-
manifestam a vida do grupo como grupo: “O com- junções de crenças coletivas, como em Durkheim,
pleto, mediante um singular desvio, se identifica nem ao cognitivismo individualista, da psicologia
ao concreto, concebido sob a forma da expressão experimental. A pessoa moral, em Mauss, supera
viva de um grupo social considerado na sua glo- ambas as posições pela ênfase sobre o valor da
balidade” (Karsenti, 1994, p. 45). relação na constituição da sociedade.
Neste esforço de entender as razões não- A proposição do dom como base de uma ci-
econômicas das trocas sociais, Mauss foi levado ência moral e humanista18 explica-se pelo seu re-
120 revista brasileira de ciências sociais - vol. 23 nº. 66

conhecimento como fenômeno de caráter relacio- da política, da religião, da ciência etc.). Isto é, tudo
nal e paradoxal que articula diferentes planos do o que se troca – tudo o que se dá, que se recebe ou
conhecimento, como aqueles formados pelos pa- que se retribui – é carregado de sentidos duplos:
res do objetivo e do subjetivo, do micro e do ma- as palavras são pronunciadas com gestos expres-
cro, do profano e do sagrado, do individual e do sivos, os presentes são dados com boas ou más
social. Trata-se de um sistema de conhecimento, intenções, as ordens são proferidas com sentimen-
ao um só tempo, simples e complexo. Simples, na tos de orgulho ou de baixo-estima, as mercadorias
medida em que busca explicar a realidade, inicial- são vendidas com imagens de sedução ou de re-
mente, não a partir de estruturas regulamentadas, pulsão. Pela associação do dom com o simbolismo
mas, diversamente, a partir de um sistema infor- generalizado, Mauss conseguiu demonstrar que as
mal, aquele das trocas diretas entre indivíduos e coisas materiais ofertadas, as hospitalidades dadas
grupos no plano da vida cotidiana. Complexo, e os serviços prestados são plenos de significações
porque ambiciona ultrapassar o campo restrito do que, num lado, favorecem a aliança e o vínculo e,
plano microssociológico para demonstrar que as no lado contrário, a inimizade.
regras paradoxais que delimitam as trocas da vida Compreendido como “fato social total”, o sis-
cotidiana se reproduzem igualmente na esfera tema do dom deixa de constituir uma teoria do
macrossociológica dos sistemas formais, de forma domínio particular de determinada disciplina – se-
sub-reptícia certamente, mas decisiva para selar ja ela a antropologia, a etnologia, a história, a
por meio da confiança a validade dos contratos sociologia, a política, a lingüística ou outra qual-
jurídicos e administrativos. quer –, para aparecer como o fundamento de uma
Ele teve sucesso na empreitada teórica do ciência moral antiutilitarista poderosa, que ofere-
“fato social total” – que é uma categoria abran- ce os recursos conceituais necessários à crítica do
gente do ponto de vista teórico e disciplinar –, pensamento mercantilista hegemônico e à revalo-
quando entendeu que a aliança nasce de uma rização do indivíduo dentro dos sistemas de obri-
expressividade coletiva e compartilhada – gestos, gações coletivas. A força crítica do dom está no
rituais, trocas, mortes etc. – que envolve todos os seu caráter paradoxal, permitindo compreender a
membros do grupo, acionando, para isso, os re- sociedade como um conjunto de fatores diversos
cursos afetivos, cognitivos, materiais e espirituais que se entrecruzam, mas que não se submetem
existentes na comunidade. Do mesmo modo, per- funcionalmente a uma determinação qualquer,
cebeu que a construção da aliança entre pessoas seja ela a religião – nas sociedades tradicionais –,
morais exige que o conjunto de recursos visíveis ou a economia de mercado – nas sociedades mo-
e invisíveis (materiais e simbólicos) disponíveis na dernas. O reconhecimento do paradoxo do dom
tradição e na memória circule permanentemente, explica-se, por outro lado, pela sua possibilidade
envolvendo todos os participantes em ações recí- de demonstrar, a partir do simbolismo, que a reali-
procas de doações, recebimentos e retribuições. dade social e cultural é fabricada por significações
A recusa de participar de tais atividades – fes- compartilhadas por indivíduos e grupos sociais,
tas, rituais, serviços gratuitos, trabalhos conjuntos que sustentam a invenção do mundo em vários
etc. – em geral é percebida pela comunidade como planos: no micro e no macro, no individual e no
um sinal negativo, como se fosse uma manifesta- social, no sagrado e no profano, assim como, po-
ção de descaso ou mesmo de inimizade. demos acrescentar, no masculino e no feminino,
Enfim, a idéia de “fato social total” pressupõe no similar e no diverso.
a presença de sistemas de reciprocidades das ati- Do mesmo modo, ao permitir compreender
vidades humanas, sustentados por um simbolismo que essas trocas entre indivíduos, grupos e nações
generalizado em todos os planos da vida, come- são, em geral, incertas, indeterminadas e assimé-
çando com mais intensidade afetiva e menos regu- tricas, o sistema do dom contribui para que se en-
lação cognitiva no plano do cotidiano (do indiví- tenda que a regra de equivalência típica da econo-
duo, da família, dos amigos etc.) e se estendendo mia de mercado – um bem dado implica em um
com menos intensidade afetiva e mais regulação bem pago – não é uma regra geral, como propõem
cognitiva para as estruturas formais (da economia, os doutrinadores liberais e utilitaristas, mas a ex-
DE LÉVI-STRAUSS A M.A.U.S.S 121

ceção. Analisando a sociedade a partir do “fato so- não redutível apenas aos aspectos materiais ou aos
cial total”, percebe-se, diferentemente, que grande valores utilitaristas baseados nos cálculos, nas ne-
parte das trocas segue uma regra assimétrica que cessidades e nas preferências. Pela valorização do
se estende no tempo, gerando um endividamento simbólico, ele concluiu que tudo na sociedade é
simbólico coletivo dos membros da coletividade e importante para esclarecer sua origem e funcio-
expresso em regras, rituais, proibições e permis- namento, sendo de particular relevância aqueles
sões. Certamente o reconhecimento da existência fatos que consideramos banais e irrisórios, como
de trocas assimétricas não significa que estamos na os risos, os gestos, as falas, os rituais, as danças,
ordem da democracia. Ao contrário, inúmeras so- além, é claro, dos serviços e dos bens materiais
ciedades tradicionais e mesmo modernas insti- (Mauss, 2003, p. 191).
tuem sistemas de dominação a partir de assime-
trias, como vemos no Brasil, por exemplo, a partir
da instituição do clientelismo. O dom e o interacionismo crítico
Mas, o simples reconhecimento da pluralida-
de de lógicas de organização do imaginário só- Dom e compreensão
cio-histórico e das práticas concretas, sejam elas
simétricas ou assimétricas, é fundamental para se Como é possível a sociedade? Com esta per-
desnaturalizar a ideologia mercantilista e utilitaris- gunta C. Papilloud abre seu texto sobre uma re-
ta que se propõe a aparecer como a única e legíti- flexão comparativa entre Mauss e Simmel, para
ma lógica de organização da vida moderna. Tal re- defender a tese de que esses dois autores são os
conhecimento da diversidade é fundamental para reais precursores de uma abordagem inédita da
se entender que, por trás do fetichismo da troca relação humana, que pode ser definida como inte-
econômica simétrica, que está na base da lógica racionismo crítico. Para Papilloud, a conversão de
mercantil e cujo lema é trabalhar para consumir e Maus para as teses interacionistas significou certo
acumular, há um desejo – assimétrico – bem mais distanciamento de Durkheim, o que ficou eviden-
amplo de compartilhar a vida, pois esta não pode te quando Mauss e Paul Falconnet escreveram o
ser vivida individualmente, mas apenas coletiva- texto “Sociologia” para a Grande enciclopédia, no
mente. Tal consciência coletiva implícita é a base qual afirmam que o social se reconhece “pela pre-
de uma ordem moral geral ligada ao anseio de sença de suas ações e reações, de suas interações”
preservação da sociedade e, em última instância, (Mauss, 1901, apud Papilloud, 2004, p. 61).
do ser humano, que é o motivo primeiro e últi- A. Caillé também propõe que o sistema da
mo da constituição do vínculo social, da aliança e dádiva constitui uma abordagem interacionista,
da política solidária. por excelência. Mas uma abordagem interacio-
Na verdade, o “rochedo no qual se assenta a nista que não se limita ao plano microssocioló-
vida social”, como lembra Mauss na conclusão do gico, pois considera com o mesmo valor a esfera
Ensaio..., apenas é detectado quando entendemos macrossociológica. A compreensão do sistema do
que os bens que circulam no interior da sociedade dom como uma modalidade particular do inte-
são sempre portadores de um duplo sentido, ma- racionismo teria ficado encoberta pela maneira
terial e simbólico. A tese do fato social total surge, como Lévi-Strauss inseriu o dom dentro dos es-
na obra de Mauss, quando ele compreende que tudos antropológicos (Caillé, 1998). Ao reduzir o
todos os eventos possuem uma significação sim- dom a um sistema de troca relativamente rígido e
bólica para a vida social. Ao assim proceder, ele próprio de sociedades tradicionais, a antropologia
aprofunda a tese de Durkheim acerca da existên- estrutural teria dificultado que viesse à tona a con-
cia de uma obrigação social que sobredetermina a tribuição fundamental de Mauss para as ciências
liberdade individual. Mas, ao mesmo tempo, o au- sociais e para o entendimento do dom como fato
tor entende que as regras podem ser transgredidas político, interativo e dinâmico.
ou negadas, pela vivência da liberdade, fazendo É necessário, assim, romper o véu que isola-
do que era paz, guerra, e vice-versa. va o dom dentro das ciências sociais (e da filosofia
Mauss faz este aprofundamento ao introdu- moral, acrescentamos), o qual induzia os pesqui-
zir uma compreensão simbólica da prática social sadores a vê-lo como um fenômeno de interesse
122 revista brasileira de ciências sociais - vol. 23 nº. 66

meramente antropológico e estrutural, com pouca simbólico, sobretudo o de Goffman, é importante


relevância para outras disciplinas, sobretudo para para situarmos os caminhos de investigação pos-
aquelas relacionadas com o interacionismo. Deve- síveis a partir do dom. A compreensão e a expli-
se notar que há diferentes escolas interacionistas, cação deste sistema não pressupõem o estudo do
que não se situam apenas nos Estados Unidos e indivíduo nem do grupo, tampouco o estudo dos
que se enraízam historicamente em outros países. planos macro ou microssociológico, considera-
Nesse sentido, Caillé lembra que, tal como os inte- dos isoladamente. A idéia da sociedade como um
racionismos de Simmel e de Elias, aquele de inspi- “fato social total” explica-se pelo valor da circula-
ração maussiana se diferencia do norte-americano ção das coisas entre os indivíduos e os grupos.
por algumas razões. Em primeiro lugar, a excessiva Nesse sentido, ao fazer a crítica aos limites
ênfase dos estudiosos norte-americanos no plano da teoria marxista sobre o trabalho, Vandenber-
microssociológico – no chamado “face a face”. No ghe esclarece – reiterando comentário de Godbout
caso do interacionismo em Mauss, diferentemente, (1998b) a este respeito – que o valor da dádiva não
“não somente é o conjunto das interações entre as é ligado nem ao uso nem à troca, mas ao vínculo,
pessoas que ele tende a considerar, na escala da ao relacional, reforçando a compreensão intera-
sociedade no seu todo, mas também as relações cionista da dádiva. Assim, conclui: “Invertendo a
das pessoas com os objetos, com as coerções ma- caracterização do fetichismo da mercadoria feita
teriais, em suma, com a morfologia social”. Desse por Marx, poderíamos dizer que as relações entre
modo, conclui Caillé, temos aqui uma espécie de as pessoas (na dádiva) não mais aparecem como
“interacionismo generalizado”, que tem mais a ver uma relação entre coisas, mas que as relações en-
com a sociologia histórica comparativa weberiana tre coisas agora aparecem como uma relação en-
e com o marxismo do que com a psicologia social tre pessoas” (Vandenberghe, 2004, p. 110). Esta
(base do interacionismo norte-americano) (Caillé, observação é interessante para entendermos que,
2002b, p. 247). ao se enfatizar a relação entre pessoas na dádiva,
Nesta tentativa de enquadramento da teo- a circulação dos objetos, ou o “espírito das coi-
ria do dom como uma abordagem interacionista sas” – o hau, dos antigos –, tanto pode reforçar
aberta a uma compreensão ampliada da socieda- práticas emancipatórias como, ao contrário, prá-
de, é importante relacionar como o símbolo da ticas conservadoras. Tudo depende, logo, da vi-
aliança surge na teoria maussiana do simbolismo: vência da associação e da aliança, o que nos leva
necessariamente a articular, no sistema do dom,
Ora, esta [a aliança] não é outra coisa senão a do interação e experiência vivida, sociologia interati-
político. A questão sobre a qual Mauss encerrava va e sociologia fenomenológica.
o Ensaio sobre o dom. Pois tudo em Mauss leva de
Os estudos sobre a dádiva despertam, inevi-
fato a esta questão do político [...] os símbolos só
têm vida e significação enquanto representam, co-
tavelmente, certa curiosidade sobre a ação social
memoram, performam ou renovam um dom, uma direta, sobre as modalidades de existência das prá-
ad-sociação ou, de modo mais geral, o político. ticas sociais no plano microssocial. Isto não anula,
Enquanto podem ser compreendidos e portanto todavia, o interesse da teoria da dádiva para os
traduzidos uns nos outros (Idem, pp. 251-253). estudos macrossociológicos, das organizações for-
mais. Na verdade, quando nos debruçamos sobre
Ou seja, a passagem de um entendimento do os requisitos da confiança entre atores sociais e
dom como uma regra rígida para uma leitura pós- agentes institucionais no interior de organizações
estruturalista, que o compreende como uma signi- como as burocrático-legais ou, então, as mercan-
ficação da aliança, abre inevitavelmente perspecti- tis, ou ainda nas práticas do mundo do trabalho,
vas promissoras de uma aproximação dos estudos observamos que esta confiança não pode ser ob-
sobre o dom com o interacionismo crítico. Este en- tida nem pelas cláusulas contratuais livres entre
tendimento da teoria do dom dentro de uma tra- parceiros, nem pela obrigação legal. Ao contrário,
dição teórica compreensiva e fenomenológica, que a confiança exige certo risco, qual seja, o de acre-
dialoga em diferentes níveis com as sociologias de ditar que aquele outro com quem me relaciono
Simmel, de Weber, de Schutz e do interacionismo não vai me trair, embora nada assegure isso. Há
DE LÉVI-STRAUSS A M.A.U.S.S 123

um risco inerente ao dom pelo fato de não ha- Dom e vida associativa
ver certeza de que o donatário vai receber a ação
ou vai retribuí-la. Tudo é possível! (Fixot, 1994, p. A contribuição de Mauss para a crítica teóri-
187). Este risco não pode ser simetricamente cal- ca se faz pela demonstração de que o dom não é
culado, ele está aberto às incertezas. Isto explica, apenas uma teoria ingênua, fundada supostamen-
portanto, o interesse dos parceiros comerciais ou te sobre as intenções generosas e altruístas do ser
dos agentes burocráticos de que as pessoas se co- humano, servindo para repensar o conjunto das
nheçam, que tenham antecedentes de honestidade instituições sociais a partir dos seus fundamen-
e lealdade. Pois, no lado contrário, sob o peso da tos morais e normativos que variam de sociedade
desconfiança e da corrupção, os sistemas formais para sociedade. As tentativas de estigmatizar o sis-
inevitavelmente se degradam. tema do dom como uma teoria ingênua, escondem
Mas, é certamente no âmbito das relações preconceitos e ignorância a respeito de um pen-
interpessoais que a dádiva aparece com maior ni- samento que se apóia num sistema de motivações
tidez. Porque é no plano da ação direta que se complexas da ação social. A teoria do dom cons-
constrói primeiramente a sociedade, onde são titui uma saída teórica importante para dar conta
edificadas as bases intersticiais das organizações da complexidade e da diversidade das motivações
formais e informais. Ali, nascem as redes sócio-hu- sociais, inclusive aquelas utilitárias, presentes na
manas – sistemas de trocas diretas entre familiares, vida cotidiana.
vizinhos e amigos –, as quais existem de manei- Mauss não rejeita, simplesmente, as teses li-
ra subjacente a outras redes, como as sociotécni- berais. Ao contrário, ele buscou esclarecer que o
cas – que aparecem como exigência de gestão das interesse é um motivo importante da prática social,
organizações formais – ou as socioinstitucionais – mas que a própria idéia de interesse é complexa,
que aparecem como exigência de governança en- na medida em que, além do interesse materialista
tre Estado e sociedade civil, envolvendo agências e calculista, pode-se falar de interesse pela honra
governamentais e não-governamentais (Martins e e pelo poder não apenas em função de si mesmo
Fontes, 2004). mas também para o outro. Na vida real, o interesse
O mercado de trabalho também não pode do sujeito não se centra, necessariamente, apenas
funcionar a contento caso patrões e empregados, na sua própria pessoa, mas na de todos com quem
ou produtores e consumidores, desconfiem das mantém interação na vida privada ou na vida pú-
intenções uns dos outros. Em todos esses casos, blica. Cada um de nós revela, em algum momento
os contratos devem ser legitimados por um míni- da vida cotidiana, um interesse que transcende o
mo de confiança no outro, uma aposta indiscutível ego e se transporta para o outro – seja ele alguém
no dom, de modo que o interesse objetivo revela- da família, um conhecido ou um mero desconhe-
do pela mercadoria ou pela lei possa aparecer cido –, e este tipo de ação se faz, no mais das ve-
como algo natural, como se o contrato encerras- zes, de forma espontânea. Não custa lembrar que
se em si mesmo uma cláusula oculta de confian- tal compreensão ampliada do motivo do interesse
ça e respeito, o que é falso. Isto é, apesar de o não tem apenas valor teórico, mas prático, uma vez
dom funcionar mais visivelmente nas socialidades que pode impactar favoravelmente a reconfigura-
primárias,19 ele continua a aparecer como recurso ção das políticas públicas e de novas modalidades
fundamental para permitir, no plano das sociali- de participação da sociedade civil na organização
dades secundárias, que os parceiros dos campos da esfera pública, por exemplo.
mercantil ou burocrático se disponham a incor- O caráter paradigmático do sistema do dom
porar livremente as regras do jogo, como se con- traz uma contribuição inestimável para repensar
fiar nas regras sem duvidar de sua validade fosse as abordagens teóricas e metodológicas na socio-
algo eminentemente natural. A dádiva funciona, logia, em diversos campos: do trabalho, da famí-
assim, em geral, nos dois registros, o primário e lia, da religião, do desenvolvimento e da política,
o secundário, embora tenha maior visibilidade no entre outros. De fato, a idéia da sociedade como
primeiro. um “fato social total” fabricado a partir de bens
simbólicos e materiais não apenas amplia o en-
124 revista brasileira de ciências sociais - vol. 23 nº. 66

tendimento da ação social, como permite, igual- res diferenciados (técnicos e populares) como as
mente, se atravessar mais facilmente as fronteiras negociações e as alianças alinhavadas entre agên-
interdisciplinares, tudo em benefício de um pensa- cias governamentais, não-governamentais (ONGs,
mento moral e político mais complexo. Para isso, é Igrejas), associações de bairro e atores sociais, no
importante chamar a atenção sobre o fato de que a âmbito local.
teoria do dom é eminentemente relacional, não se O desafio, no fundo, é observarmos se as
fixando, por conseguinte, nem na estrutura nem possibilidades inscritas nas redes sociais existentes
na agência, mas no ciclo incessante de prestações nas municipalidades e nas comunidades são sufi-
e contraprestações de bens materiais e simbólicos. cientes para incrementar o surgimento de práti-
O ciclo de endividamento simbólico suscitado pela cas associativas mais horizontais e abertas a novas
circulação de bens (bens simbólicos, como inten- modalidades de solidariedade e de cooperação,
ções, gestos, gentilezas e rituais, e bens materiais, práticas essas que legitimam o surgimento de uma
como serviços a terceiros, auto-ajuda, utensílios esfera cívica e pública politicamente consistente.
ou mesmo mercadorias) institui necessariamente Pois, apenas a partir de uma esfera com esta ca-
vínculos e alianças que estão na base da produção racterística, isto é, ancorada nas trocas diretas, é
das identidades, dos lugares e das estruturas. possível pensar numa experiência de cidadania
Em contrapartida, quando alguém deixa de democrática ampliada, plural e participativa, que
cumprir as expectativas coletivas geradas pelo en- respeite as diferenças e as universalidades dos sis-
dividamento mútuo (ao se aceitar algo de alguém, temas simbólicos e de poder.
necessariamente entramos em dívida com esta pes-
soa, mas, caso não queiramos manter a reciproci- Contribuição da teoria do dom para
dade, basta não retribuirmos o gesto, a intenção a crítica do pensamento utilitarista
ou o bem dado) desfaz-se o vínculo e a aliança. hegemônico
Esta compreensão dinâmica da ação social tem,
na prática, o mesmo efeito que significa a pas- A força do dom como “princípio ativo” de
sagem da descrição da realidade externa, de um uma crítica teórica capaz de se contrapor à doutri-
momento inicial em que ela é apreendida, como na utilitarista dominante ficou tolhida, já dissemos
uma fotografia, para um outro momento, em que é anteriormente, pelo modo como a antropologia
apreendida pelas imagens de um vídeo. estrutural traduziu o dom no seu próprio domínio
A perspectiva de sistematização de uma nova conceitual, limitando, por conseguinte, seu impac-
leitura do dom tem pertinência clara no sentido to à análise das sociedades tradicionais e inibindo
de enfatizar o valor do fato associativo e do mo- a compreensão do seu potencial para o entendi-
vimento associacionista (Martins, 2005; Chanial, mento das sociedades contemporâneas.
2001) e/ou a importância de se pensar um novo Mas, com a crise do estruturalismo no contex-
paradigma da ação coletiva que enfatize o valor to da globalização de idéias nos fins dos anos de
da solidariedade e da participação na sociedade 1970, houve um maior intercâmbio de pesquisado-
civil. Esta observação é mais do que justificada res, gerando uma aproximação fértil, geográfica,
num mundo globalizado, em que crescem as de- temática e conceitual das grandes escolas do pen-
mandas por reconhecimento, por participação e samento humanista, sobretudo as francesa, anglo-
por inclusão e as reações violentas pelas recusas saxônica e germânica. No que diz respeito especi-
desses direitos à cidadania e à vida saudável. ficamente à escola francesa de sociologia, a crise
No desenvolvimento de uma sociologia do do estruturalismo permitiu resgatar a contribuição
dom, prestamos especial ênfase ao modo de orga- de Mauss a partir de uma crítica cultural e so-
nização das socialidades primárias, isto é, à esfera cial renovada pela filosofia política francesa e pela
microssociológica, com a intenção de verificar as filosofia analítica inglesa, a primeira enfatizando
perspectivas de construção de uma discursividade o tema da democracia, a segunda, o tema da lin-
crítica no interior delas, via redes locais, como a guagem da vida cotidiana. Nessa mesma direção, a
família, a vizinhança e as associações. Uma discur- aproximação da tradição renovada de Mauss com
sividade que considere tanto o confronto de sabe- o interacionismo norte-americano, nos anos de
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1980, permitiu flexibilizar a vinculação excessiva individual. Tal diferença se evidencia pelo fato de
do dom com a obrigação moral coletiva, o que que esses autores entendem a liberdade como um
abriu caminho para realçar o papel da liberdade motivo que extrapola o mero interesse individual
individual ou do dom do indivíduo na constituição ou grupal, para encerrar um valor humano coleti-
da prática social. Em suma, o debate que se su- vo imprescindível para uma perspectiva democrá-
cede à crise do estruturalismo propiciou compre- tica e participativa ampliada.
ender que o sistema do dom aplica-se, igualmente, A leitura do Ensaio sobre a dádiva a partir da
às sociedades tradicionais e às modernas, às so- ótica de um sistema teórico interdisciplinar mais
ciedades fundadas em crenças a-históricas e àque- amplo – que incorpora, paradoxalmente, motivos
las fundadas na criação histórica, sendo ele peça diversos da ação humana, como os de liberdade e
central para se repensar a economia, a política e a obrigação, do interesse e do desinteresse – permi-
democracia numa perspectiva antiutilitarista. te introduzir uma série de inovações significativas
O reconhecimento do valor do dom para a para o pensamento humanista crítico. Para atingir
explicação da sociedade moderna individualista o dogma utilitarista, Mauss buscou demonstrar,
implica, necessariamente, que os motivos funda- por exemplo, o equívoco de reduzir as origens
mentais das prestações e das contraprestações da vida social à idéia de uma “economia natural”,
humanas não são apenas de caráter obrigatório e fundada numa representação abstrata denominada
dados pelas crenças e tradições, como verificamos homo oeconomicus, como propõem os economis-
nas sociedades tradicionais estudadas pelos antro- tas clássicos.
pólogos clássicos. Semelhantes motivos são tam- Na crítica ao utilitarismo materialista, em
bém de caráter livre e espontâneo, gerados pelos conseqüência, Mauss buscou reinterpretar a eco-
desejos e utopias de indivíduos e grupos sociais, nomia do mercado com base em uma abordagem
como é próprio das sociedades contemporâneas. socioantropológica e interacionista mais ampla,
Do mesmo modo, os indivíduos e pessoas morais pela qual o mercado é visto como um mecanis-
não se relacionam apenas pelo interesse por si, mo de regulação entre outros. Tal opção teórica
mas pelo interesse pelo outro, ou, então, interesse levou-o a rediscutir em profundidade outras no-
pelo poder, ou pela honra ou pelo prestígio. Enfim, ções complementares, como aquelas relacionadas
ao se desprender da imagem egoísta e individua- ao contrato, ao trabalho e à utilidade, e novas mo-
lista, o interesse torna-se “desinteressamento”, ou dalidades de compreensão e interpretação da rea-
seja, interesse que se desprende de sua referência lidade vivida que, no seu conjunto, revelam uma
para se tornar outra referência de si ou interesse complexa teoria das motivações humanas. Por isso
do outro (Caillé, 2006). consideramos que o sistema da dádiva encerra
Por conseguinte, mais do que uma mera atua- as bases de uma ciência moral de caráter inter-
lização do sistema do dom, este reconhecimento disciplinar, fundamental para o avanço do novo
da presença de motivos variados da ação huma- movimento teórico nas ciências sociais, sem negli-
na aponta para uma crítica teórica de valor moral genciar a contribuição decisiva do estruturalismo
indiscutível. Esse projeto intelectual re-humani- na demonstração do simbolismo para as práticas
zante, que está presente na obra de Mauss, não culturais e sociais.
é um fato isolado. Ele se cruza, na verdade, com
outras contribuições relevantes para esse tipo de
crítica ao reducionismo utilitarista e ao pensamen- Notas
to objetivista, como aquelas oferecidas ao longo
do século XX por autores como Simmel, Mead,
Merleau-Ponty, Goffman, Habermas, Castoriadis,
1 Numa primeira aproximação, a título de esclareci-
Lefort, Taylor, entre outros. No seu conjunto, as
mento para os que não são iniciados no assunto,
obras desses autores evidenciam o valor da liber- podemos dizer que o sistema do dom consiste
dade para a emancipação do ser humano, mas a num conjunto de prestações e contraprestações
partir de um lugar diverso daquele do liberalismo que se expandem ou se retraem mediante uma trí-
clássico, que é basicamente centrado no interesse plice obrigação – doação, recepção e retribuição
126 revista brasileira de ciências sociais - vol. 23 nº. 66

de bens materiais e simbólicos –, sendo constata- e entendimentos, e, sobretudo, para a construção


da sua presença em todas as sociedades existen- de uma crítica teórica e moral mais ampla.
tes, tradicionais e modernas, conforme deduzimos
6 Como veremos mais adiante, ao realçar a ambiva-
da leitura de Marcel Mauss.
lência da ação social o dom permite demonstrar
2 Para Alain Caillé, os dois outros paradigmas, o que as motivações humanas não podem, em ab-
individualista e o holista, apresentam-se sempre soluto, se limitar à função do egoísmo e do inte-
como verdades abstratas e intemporais. Função, resse material.
estrutura, valores e cálculo, interesse individual e
7 Contra um pensamento operacional, próprio da
boas razões apresentar-se-iam sempre pelas mes-
antiga ciência experimental de base cartesiana
mas modalidades independentemente de tempo
que entende a criação humana como o produto
ou lugar. Em contrapartida, o paradigma do dom
de um processo de informações concebido sobre
deixa tudo aberto às investigações histórica, etno-
o modelo da máquina humana, Merleau-Ponty
lógica ou sociológica sem trazer respostas pron-
propõe, na sua última obra escrita em vida, L’oeuil
tas. Nesse sentido, o dom seria antiparadigmático
et l’esprit, um corpo que acorde outros corpos as-
(Caillé, 2002b, p. 81).
sociados, os “outros” que não são meus congêne-
3 Segundo Axel Honneth, a tese de Durkheim sobre res (Merleau-Ponty, 1964a, pp. 12-13). E porque o
a divisão do trabalho social é um insight impor- corpo vê e se move, ele tem as coisas em torno
tante para a compreensão da solidariedade social, de si mesmo; elas (as coisas) estão incrustadas
na medida em que demonstrou que tal solidarie- na própria carne como um anexo ou um prolon-
dade nas sociedades modernas depende das for- gamento dele, fazendo parte da definição plena
mas democráticas e reflexivas da divisão do tra- do corpo, sendo que o mundo é feito do próprio
balho (Honneth, 2002, p. 275). Ora, tal releitura é corpo (Idem, p. 19).
curiosa, uma vez que as teses de Durkheim sobre
8 Souza escapa dos perigos do culturalismo, presen-
a divisão do trabalho eram vistas como provas
tes nessas narrativas que insistem sobre a origina-
de um funcionalismo que fazia do fundador da
lidade, recorrendo com oportunidade à genealo-
sociologia francesa um autor, sob certos aspectos,
gia do indivíduo moderno realizada por Charles
suspeito. A retradução de Honneth traz novas lu-
Taylor em A fonte do self (2005). Tal recurso facilita
zes sobre o tema.
explicar que a noção de indivíduo é complexa e
4 Evidentemente, estamos nos referindo aqui à tra- contraditória e que o self pode conhecer diferen-
dição do catolicismo tradicional. Pois, no lado tes formas generalizantes, que não se reduzem
oposto, vimos surgir no Brasil, a partir da segun- nem àquela do individualismo moderno ocidental
da metade do século XX, uma outra tradição reli- (Souza, 2001a, p. 182) nem a de leituras dicotômi-
giosa católica, como a da Teologia da Libertação, cas e culturalistas sobre a pessoa moral. Não cabe
que defende a reinterpretação de temas impor- aqui entrar nesta discussão riquíssima da ontolo-
tantes, como o da caridade, com impactos positi- gia moral do Ocidente, formulada por Taylor, mas
vos sobre o socialismo associativo de movimen- é necessário sublinhar sua pertinência para o que
tos como, por exemplo, o MST e o da economia aqui estamos discutindo, a saber, que a genealo-
solidária. gia do trabalho intelectual e a consideração pela
análise reflexiva das condições lingüísticas, cultu-
5 O papel do pai da antropologia estrutural na for-
rais, emocionais e, sobretudo, morais, presentes
mulação de uma certa leitura do dom pode ser
no vivido, são decisivas para se delimitar a cons-
mais bem compreendido a partir do esclarecimen-
trução do conhecimento num certo lugar e num
to fornecido a este respeito pelo sociólogo cana-
certo tempo.
dense Marcel Fournier, o mais importante biógra-
fo de Mauss. Num fórum especial sobre as “Novas 9 Clifford Geertz, com base em sua vasta experiên-
Sociologias”, no Encontro Anual da Anpocs, em cia de antropologia comparada, oferece mais
2004, Fournier esclareceu que Lévi-Strauss, em elementos para situar este debate sobre a ação
uma carta a um amigo, teria dito que Mauss teve intelectual no “terreno”. Afirma ele que nossa
o mérito de chegar até o rio, mas ele, Lévi-Strauss, compreensão de nós mesmos e de outros – nós
é que teria feito a travessia das águas. Embora mesmos entre outros – “é influenciada não ape-
esta afirmativa sirva para reforçar a vinculação de nas pelo intercâmbio com nossas próprias formas
Mauss com a antropologia estrutural, ela é, em si, culturais mas, também, e de maneira bastante sig-
insuficiente. Não pelo fato de que Lévi-Strauss não nificativa, pela caracterização que antropólogos
tenha feito bom uso do sistema teórico do dom, críticos, historiadores e outros, fazem das formas
mas porque este sistema se abre para outros usos culturais que nos são alheias, transformando-as,
DE LÉVI-STRAUSS A M.A.U.S.S 127

depois de retrabalhadas e redirecionadas, em se- relançar ou de lançar uma discussão e uma infor-
cundariamente nossas” (Geertz, 2001, pp. 17-18). mação científica sobre a questão das dimensões
Geertz está pensando aqui nas vicissitudes do an- não mercantis e não monetárias da troca”. “Não
tropólogo no “terreno” e dos perigos de se fazer se trata de opor a axiomática do interesse a um
“imaginação moral” esquecendo-se do imperativo certo espiritualismo do desprendimento, da gra-
da diversidade cultural. tuidade ou da ação não finalizada, mas de opor
a esta axiomática limites precisos de legitimida-
10 Já há material relevante disponível na Revue du
de, tanto atuais como passadas, metodológicas e
Mauss sobre a produção teórica pós-estruturalista
antropológicas. Para isto, importa reabrir o deba-
nos últimos 25 anos. No Brasil, porém, o trabalho te que havia sido iniciado sobretudo por Mauss,
de retradução dos estudos sobre o dom ainda ne- Malinowski e Polanyi [...]” (Bullletin du MAUSS,
cessita de maior visibilidade acadêmica, embora 1982, p. 9). Apenas nos fins da década de 1980,
iniciativas práticas venham ocorrendo nas gran- esta crítica antiutilitarista difusa transforma-se
des associações científicas como Anpocs, SBS – numa crítica antiutilitarista propositiva, que ele-
Sociedade Brasileira de Sociologia e a ABA – As- ge o sistema do dom como veículo central para
sociação Brasileira de Antropologia. se avançar na desconstrução do caráter restritivo
11 A idéia de totalização do social, que propõe Mauss das teses economicistas dominantes, e na crítica à
a partir do dom e que será discutida mais adiante, proposta ingênua da economia de mercado como
implica, lembra Karsenti, num importante desloca- uma economia natural que existiria desde sem-
mento epistemológico que apresenta Mauss como pre, estando hipoteticamente na origem e no de-
peça fundamental no nascimento da lingüística senvolvimento de todas as sociedades humanas.
que, como se sabe, foi fundada oficialmente por 15 Nesse sentido, a crítica antiutilitarista de Mauss fi-
Saussure no seu Cours de linguistique general, mi- ca muito próxima daquela empreendida por um
nistrado no ano de 1916 (Karsenti, 1994, p. 88). filósofo moral da contemporaneidade, Charles
12 “Agora, é o indivíduo que é a fonte da mudança Taylor. Para este autor, o utilitarismo clássico equi-
social. Ele sempre foi, mas não o sabia. As leis voca-se ao tentar rejeitar as distinções qualitativas
eram decididas por seus príncipes e suas reli- e hiperdimensionar a quantificação e o cálculo
giões. Seus costumes pareciam-lhe sair de suas (Taylor, 2005, p. 39). Ambos os autores buscam
técnicas. E estas últimas estavam cravadas no ar- desnaturalizar o utilitarismo e provar a existên-
tesanato, permitindo-lhe mais a ingeniosidade do cia de uma fundamentação moral por trás das
que a inovação. O engenheiro surgiu lentamen- motivações utilitaristas. Mauss critica a idéia de
te com as primeiras máquinas. E as sociedades uma economia natural, que existiria desde sem-
modernas mudam rapidamente como nunca antes pre; Taylor, ideais como o self desprendido que,
visto. Trata-se, mesmo considerando todas as difi- ao objetivar o mundo circundante, inclusive as
culdades, da ação do indivíduo” (Mauss, 2004, p. emoções, produz uma espécie de distanciamento
140). e agir instrumental sobre o mundo, que gera ilu-
sões como a da economia natural, por exemplo.
13 Esta crítica, que tem uma significação preciosa, Ambos sublinham uma “valorização forte” (noção
tanto cultural como também social e política, proposta por Taylor) dos bens à nossa disposi-
aproxima Mauss de outro grande teórico antiuti- ção, no sentido de que tais bens precisam de uma
litarista do século XX, Karl Polanyi, que demons- distinção qualitativa, uma vez que, lembra Taylor,
trou na sua obra clássica, A grande transformação, eles funcionam “em algum sentido como padrão
a dependência estreita da economia de mercado para nós” (Idem, p. 36).
com a cultura histórica de uma época e de uma
16 A valorização do simbolismo não significa a des-
determinada civilização.
consideração dos condicionantes sociais, históri-
14 A sigla M.A.U.S.S. tem dois significados: prestar cos e mesmo biológicos do ser humano. Ao con-
uma homenagem a Marcel Mauss, um dos funda- trário, amplia a compreensão do sujeito humano
dores da escola francesa de sociologia e sinteti- ao permitir sair de uma concepção objetivista
zar o descontentamento de um grupo de intelec- para uma outra mais ampla, que integra os pla-
tuais com a “fragilidade da ciência econômica e nos da interioridade e das redes de inserção do
de suas pretensões explicativas” (Caillé, 1989, p. self no mundo. Pelo simbolismo pode se compre-
7). No início, antiutilitarismo significava apenas ender, enfim, que as próprias nomeações desses
antieconomicismo. Na declaração de intenções do condicionantes – o que chamamos de biológico,
M.A.U.S.S, os signatários do documento assinalam corporal, objetivo ou subjetivo – varia de cultura
que “o objetivo do movimento era sobretudo de para cultura e depende dos esquemas perceptivos
128 revista brasileira de ciências sociais - vol. 23 nº. 66

prevalecentes em diferentes sociedades. Esta idéia amigos e dos vizinhos. No registro das socialida-
de uma corporeidade humana como fenômeno des secundárias, ao contrário, a funcionalidade
social e cultural, como motivo simbólico é bem dos atores sociais vale mais do que suas persona-
desenvolvida em A sociologia do corpo, de David lidades, como se observa nas práticas do mercado,
Le Breton (2006). do Estado e da ciência. Nenhuma administração
governamental pode funcionar caso não exista o
17 Em Fenomenologia da percepção Merleau-Ponty
espírito do serviço público, assim como uma pátria
critica o dualismo cartesiano e a exaltação que
não sobrevive caso ninguém se disponha a morrer
ele considera ilusória da separação entre sujeito
por ela (Caillé, 2002a, p. 196). O mesmo se pode
e objeto. Pensa ele, diferentemente, que tudo que
dizer do serviço médico. Os hospitais e as clínicas
o indivíduo percebe é extensão dele, e o olhar
médicas não podem funcionar eficazmente caso
objetivado – que cria a ilusão da separação entre não haja algum tipo de solidariedade entre médi-
o sujeito e o objeto – é secundário com relação cos, enfermeiras, funcionários e familiares em tor-
à sua expressividade, a seu “sentir total” que en- no do sofrimento do doente, espelhando, em cada
globa o subjetivo e o objetivo. Para o autor, tal personagem envolvido, a proximidade inexorável
separação apenas é possível, do ponto de vista da morte e da finitude.
lógico, pela leitura simplificada da percepção fe-
nomenal que enfatiza a exterioridade do corpo,
produzindo uma “imagem empobrecida” do ver-
dadeiro corpo, que apenas se revela integralmen- Bibliografia
te na sua expressão fenomenal (Merleau-Ponty,
1999, p. 493). Pensamos que a idéia de sentir total
deste filósofo está intimamente ligada àquela de Alexander, J. (1987), “O novo movimento teó-
fato social total de Mauss. rico”. Revista Brasileira de Ciências So-
ciais, 2 (4): 5-28jun.
18 No número especial de comemoração dos dez
anos de fundação do Boletim do MAUSS (depois Baechler, J. (2002), “Naturalité, universalité, ob-
transformado em revista), em 1992, intitulado jectivité”. La Revue du M.A.U.S.S: Y a-t-il
“Dez anos de evolução das ciências sociais: me- des valeurs naturelles?, 19: 51-64.
tamorfose do MAUSS”, Alain Caillé propõe, num
texto provocativo intitulado “É preciso criar uma Bateson, G. (1977), Vers une écologie de l’esprit.
nova disciplina nas ciências sociais e qual?”, a Paris, Éditions du Seuil, vol. 1.
fundação de uma filosofia política que teria a
eficácia da ciência. Para ele, a filosofia política CaillÉ, A. (1989), Critique de la raison utilitaire.
atual seria a melhor representação de um modelo Paris, La Découverte.
normativo para as ciências sociais (Caillé, 1992,
_________. (1992), “Faut-il créer une nouvelle dis-
p. 40). Sem desconsiderar esta proposta, pensa-
mos todavia que os avanços no debate sobre o
cipline dans les sciences sociales, et
dom desde então têm revelado existir uma força laquelle? La Revue du MAUSS: dix ans
moral que termina se impondo ao elemento polí- d’évolution des sciences sociales, 15-16:
tico, embora nele se inspire para assegurar a sua 11-42.
aderência normativa e prática. Daí considerar-
mos que a expressão “ciência moral humanista” _________. (1998), “Nem holismo nem individua-
pode também ser apropriada para pôr em relevo lismo metodológicos: Marcel Mauss e o
a questão dos incondicionantes da ação social e paradigma da dádiva”. Revista Brasileira
sua importância na constituição da aliança e, tam- de Ciências Sociais, 13 (38): 5-37.
bém, da democracia.
_________. (2002a), “Dádiva e associação”, in P. H.
19 Inspirado nos estudos sobre o dom, Caillé propõe Martins (org.), A dádiva entre os moder-
haver uma tendência da sociedade moderna a pro- nos: discussão sobre os fundamentos e as
vocar a separação crescente entre dois registros de
regras do social, Petrópolis, Vozes.
socialidades, que permanecem bastante imbrica-
dos em sociedades mais tradicionais. O primeiro _________. (2002b), Antropologia do dom: o tercei-
registro é o das socialidades primárias, no qual as ro paradigma. Petrópolis, Vozes.
relações entre as pessoas são mais importantes do
que os papéis funcionais que elas desenvolvem. _________. (2006), “O dom entre interesse e ‘de-
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resumos / abstracts / résumés 207

De Lévi-Strauss a M.A.U.S.S. – FROM Lévi-Strauss TO De LÉvi-Strauss AU M.A.U.S.S. –


Movimento AntiUtilitarista M.A.U.S.S. – ANTI-UTILITARIAN MoUvEMENT AntiUtilitaristE
nas Ciências Sociais: Itine- MOVEMENT IN THE SOCIAL SCI- DANS LES SCIENCES SOCIALES  :
rários do Dom ENCES: GIFT ITINERARIES ITInÉRAIRES DU Don

Paulo Henrique Martins Paulo Henrique Martins Paulo Henrique Martins

Palavras-chave: Dádiva; Teoria so- Keywords: Gift; Social theory; Mar- Mots-clés: Don; Théorie sociale;
cial; Marcel Mauss; Movimento an- cel Mauss; Anti-utilitarian movement. Marcel Mauss; Mouvement antiutili-
tiutilitarista. tariste.
Studies on the gift offer an invalu-
Os estudos sobre o dom oferecem able contribution to the current so- Les études sur le don offrent une
uma contribuição inestimável para a cial theory, surpassing utilizations contribution inestimable à la théorie
teoria social hoje, que ultrapassam offered by the structural anthropol- sociale d’aujourd’hui, qui dépasse
os usos oferecidos pela antropologia ogy. They are relevant for rethink- les usages offerts par l’anthropologie
estrutural. Eles são relevantes para ing the social and politics allowing a structurelle. Ils sont importants pour
se repensar o social e a política e deep dialog with many other think- repenser le social et la politique et
permitem um diálogo em profundi- ing currents. In reevaluating the gift permettent un dialogue en profon-
dade com várias outras correntes do today, especially from the standpoint deur avec plusieurs autres courants
pensamento. Ao se reavaliar o dom of new contemporary versions on de pensée. Lorsqu’on évalue le don
na atualidade, sobretudo a partir the theme, such as the one offered dans l’actualité, surtout à partir des
das novas leituras contemporâneas by the so-called M.A.U.S.S. – Mo- nouvelles lectures contemporaines
sobre o tema, como aquela ofere- vimento Antiutilitarista nas Ciências sur le sujet, comme celles proposées
cida pelo M.A.U.S.S. (Movimento Sociais (Anti-Utilitarian Movement par le M.A.U.S.S. (Mouvement Antiu-
Antiutilitarista nas Ciências Sociais), in the Social Sciences), another com- tilitariste dans les Sciences Sociales),
descortina-se também uma outra prehension of the French sociologi- appara»t également une autre com-
compreensão da escola sociológica cal school of is uncovered, particu- préhension de l’école sociologique
francesa e de Marcel Mauss, em par- larly Marcel Mauss, the first one to française et, particulièrement, de
ticular, o primeiro a sistematizar os systematize the studies on the gift. Marcel Mauss, qui a été le premier à
estudos sobre a dádiva. systématiser les études sur le don.

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