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A Genealogia da moral como um pressuposto de

aversão ao comunitarismo religioso: uma leitura


das aflições de Nietzsche

André Luiz Rocha da Silva1


Stefan Vasilev Krastanov2

Resumo: O presente artigo tem como pano de fundo a distinção dos dois tipos de
sujeito presentes na Genealogia da moral, de Nietzsche, o homem seguidor e o indivíduo
artista. Essa distinção formulada a partir do ato interpretativo quer mostrar a diferença
fundamental das concepções de vida: a vida como permissão e cumprimento do plano
divino, adepta do cristianismo e consolidada pela prática do medo, e vida como devir,
sustentada por Nietzsche como efetividade. Construída essa base, é criado um esquema
possível que sustenta a obra genealógica de Nietzsche sobre o seguinte foco: a aversão
nietzschiana ao comunitarismo religioso, isto é, à negação da vida. Assim, quer-se
mostrar como a consciência de culpa e a necessidade de pertencimento atuam num ciclo
vicioso e silencioso no âmbito cultural, reiterando a ação da classe sacerdotal e o papel
do asceticismo como fatores primordiais para a formação de rebanho, a consolidação do
comunitarismo religioso.

Palavras-chave: Comunitarismo Religioso. Vida como Efetividade. Classe Sacerdotal.


Formação de Rebanho. Medo.

1
Graduando em Filosofia pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). E-mail:
<andreluizrs88@hotmail.com>.
2
Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos (UFScar). Mestre em Filosofia pela Sofiiski
Universitet Kliment Ohridsky (Bulgária). Licenciado em Filosofia pela mesma instituição. Professor
adjunto da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Autor de “Nietzsche: Pathos Artístico
versus Consciência Moral” (2010). E-mail: <stefanve@terra.com.br>.

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Este texto tem um propósito específico: analisar, no discurso do fi-
lósofo e no decurso da obra em questão, as aflições que o fazem distinguir
dois tipos de homem: o homem seguidor e o homem criador. A identifi-
cação desses dois tipos de homem, extraídos do interior da obra e, sobre-
tudo, a partir do fator interpretativo, permite estabelecer, na medida do
possível, um alinhamento das inquietações do autor com as suas respec-
tivas consequências, sendo que, nessa implicação e diante dessa caracteri-
zação dual, entre o âmbito ético e o estético, cria-se a base que sustenta a
intenção posterior.
Não somente ao alinhamento das aflições de Nietzsche se presta essa
intenção. É possível extrair, nesses momentos aflitivos que abarcam toda
a obra do autor, um mecanismo que oferece uma explicação sobre o pro-
blema da distinção entre esses dois tipos de homem e, especificamente, a
condição mantenedora na qual a estrutura histórica e cultural do homem
seguidor se mantém. A figura desse tipo de homem prescrito, que, aliás, é
intitulado por Nietzsche como o representante da rebelião moral escrava3,
pode ser analisada em sua peculiaridade, sendo fundamentalmente extra-
ída do invólucro fragmentado e múltiplo que compõe a obra, mais ainda,
das aflições e ironias que a constituem, adotadas como comunitarismo
religioso.
Dessa forma,deve ser considerado doravante o comunitarismo reli-
gioso como um termo específico que quer apontar para a estrutura cícli-
co-gregária extraída do interior da obra, mesmo tendo-se atentado que
tal conceito não tenha sido designado propriamente por Nietzsche, como
no modo em que se é proposto aqui. Assim, nesse segundo momento des-
ta investigação que tenta explorar pela via da interpretação as aflições de
Nietsche com relação à condição gregária, parece ser fundamental adotar
tal termo, que, por ora, sustente todos os conceitos que Nietzsche lança
de forma fragmentada na obra, tais como: formação de rebanho, cons-
ciência de culpa, castigo e punição, homem baixo e comum, homem das
comunidades etc.
3
Em vários momentos na obra, Nietzsche usa termos de efeito, que não só fundamentam o seu percurso
genealógico, na sua totalidade, mas exaltam também sua aversão irônica aos elementos atacados.

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Comunitarismo religioso, portanto, não pode ser entendido como
exatamente um conceito nietzschiano, pois sua disposição nessa proble-
mática atua como a compreensão genérica da relação abrangente entre
fator histórico, meios de propagação da necessidade de pertencer e meca-
nismos de atuação da vida comunitária que, de acordo com a perspectiva
de Nietzsche, estão longe de designar a vida em seu modo efetivo: eis a
leitura das aflições de Nietzschena Genealogia4.
Esses dados levantados são, antes de uma explicação teorética sobre
um autor, um ato filosófico que toma a obra como base, mas transcende-
-a em consonância com a própria perspectiva nietzschiana, pois, assim
como afirma a estudiosa brasileira dos escritos de Nietzsche, Vânia Aze-
redo, “[...] toda leitura é já uma interpretação” (AZEREDO, 2003, p. 39)
e, em se tratando da obra específica de Nietzsche (2003, p. 53), “não se
cabe atribuir à Genealogia o preceito de verdade, de certeza ou avaliação
absoluta”. Contudo, à maneira perspectiva do autor é que se conduz esta
exposição, limitando-se especificamente ao tema do comunitarismo, mas
ao mesmo tempo ampliando as visões e as possibilidades contidas na obra
em questão, a Genealogia da moral.
Considera-se, sob a condição interpretativa afirmada, que Nietzsche,
no curso da Genealogia, tem como principal foco a aversão ao aspecto uni-
versalizador das individualidades, logo, à condição de agrupamento dos
indivíduos que, formalizada pela tradição moral religiosa, desencadeia o
que o autor considera como condição doentia de vida: o comunitarismo
religioso como expressão máxima da necessidade de uma verdade tran-
quilizante e sua implicação inerente, a negação da vida como efetividade
e ato criativo.
O homem nietzschiano é, enquanto anterior à moral e posterior ao
dever, um ser hábil que possui a capacidade transformadora do mundo;

4
A Genealogia da Moral de Nietzsche é constituída por três dissertações específicas: a “Primeira dissertação”
trata especificamente sobre “Bom e mau, bom e ruim”;a “Segunda dissertação” desenvolve os temas:
“Culpa, má consciência e coisas afins”; e a “Terceira dissertação”, finaliza com a questão: “O que são ideais
ascéticos?”. Com efeito, é no conjunto dessas três dissertações que se cria, ao menos imaginariamente, uma
linha mestra que sustenta o tema em questão.

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aquele que, anteriormente à consciência moral, se encontra entre as apti-
dões do desvelamento, da interpretação de si e, logo, da capacidade artísti-
co-criadora, da possibilidade nova do conhecimento. Esse homem, como
sendo a expressão de si mesmo diante do mundo, parece ser contrário a
toda sorte de limitação pessoal, o que permite dizer que a postura de Niet-
zsche com relação à moral e ao comportamento ocidental contemporâneo
é resultado de sua inquietação com relação à fixidez, ao normatismo e ao
determinismo, ou seja, ao comunitarismo que funda a nova concepção de
mundo, a do homem religioso, resignado.
A negação do comunitarismo religioso no trabalho genealógico de
Nietzsche5 é a negação da tradição ascético-filosófica em peculiaridade
específica, mas não menos importante que, como se percebe, por muito
tendeu o homem a mentir a si mesmo diante de sua imensidão, de suas
vontades. Assim, pode-se dizer que onde começa a vida, satisfeita por si
em uma possibilidade a partir do indivíduo crente nela, termina a doença
que corroía o homem em suas inculcações mentidas. Entretanto, a doença
ainda é o fato por ser analisado e superado.
A religião e, sobretudo, o propósito cristão presente no papel do sa-
cerdote ante à massa e, inclusive, na tradição filosófica, denunciados por
Nietzsche na Genealogia, atuam nessa tendência ao pertencimento e re-
signação, porque pertencimento e resignação estão para o comunitarismo
religioso assim como a fixidez, a verdade e o valor dos valores, para a mo-
ral. No primeiro caso, com as bases disseminadas pelo comportamento
conservador cristão, caracterizado pelo seu modo reativo; e no segundo,
pela prática cultural baseada num ideal de bondade somente possível pela
ascensão do cristianismo, em que se pode, a partir do trabalho genealógi-
co de Nietzsche, percorrer e entender tal trajeto da tradição, sobretudo
as diferenças entre a tradição filosófica que se manteve tradicionalmente
ascética e a proposta de Nietzsche que resgata da filosofia pré-socrática o
sentido da vida como efetividade.
5
O trabalho genealógico, desenvolvido por Nietzsche, deve ser entendido mais como um impulso
interpretativo por meio de influências marcantes em seu modo de filosofar e intenções a que propriamente
se destina, que um recurso autenticamente histórico, transcrito sobre fatos e totalmente esgotado. O
método genealógico desse filósofo é antes de tudo, um ato interpretativo da própria história.

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Com efeito, a respeito da diferença entre a vida no sentido nietzs-
chiano e a vida de acordo com a concepção cultural, aliás, fator indispen-
sável dessa exposição, o pesquisador Krastanov, na sua obra intitulada Pa-
thos artístico versus consciência moral, ressalta que a vida como efetividade
pode ser mais bemdesignada, de acordo com o pensamento de Nietzsche,
pelo termo alemão “Wirklichkeit”(KRASTANOV, 2011, p. 32), ou seja,
mais próximo a um movimento da realidade que a uma condição fixa da
vida como um substantivo significador de um período de tempo limitado.
E a negação da vida como efetividade caracterizará o homem que se sus-
pendeu do devir e das suas múltiplas possibilidades em prol de um único
propósito: a resignação, a negação dos instintos humanos em prol da pu-
reza do coração6.
É sob esse solo carregado de dualidades, onde o comunitarismo
religioso se abstém da vida como aspecto trágico, que Nietzsche parece
oferecer as bases para se pensar o problema da formação das comunidades
religiosas, o porquê do seu surgimento e o modo como atua para a sua
sustentação e alastramento. Dessa maneira, esboçando esse plano que
servirá para se construir a problemática da formação e consequente
necessidade de comunidades, ao mesmo tempo em que se mostram as
aflições do autor, é que se conduz essa trajetória por questões fundamentais,
como: quais elementos viabilizam, primeiro, uma distinção entre dois
tipos de homem no interior da Genealogia? O que significa para o autor
uma vida enquanto condição doentia? Ademais, estaria a moral e, sobre-
tudo, o comunitarismo religioso, intrinsecamente adversos à arte como
ato e sentimento criador? Qual o motivo central?

6
Assim como em outros momentos da obra, Nietzsche deixa perceber suas aflições ao fazer alusões
pretensiosas a termos e atitudes totalmente opostos à condição da vida enquanto efetividade: “pureza de
coração” e “condição doentia” de vida se mostram, assim, como resultado de um processo de afastamento
do homem de suas múltiplas possibilidades, o que culminará em última instância, no “sofrimento do
homem pelo homem”.

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A questão da inversão dos conceitos de bom e mau em bom e mal7
é o fator decisivo para a estruturação das dissertações subsequentes no
trabalho interpretativo de Nietzsche diante da História e, principalmente,
sobre o foco ético-moral. O problema da ação e da reação como mudança
do comportamento surge como um dos elementos que moldam o homem
do ressentimento e elucida a fantástica formação de rebanho. O ressen-
timento, tão comum no projeto comunitarista, aliás, torna-se a própria
reação depressiva frente à força nobre, à moral nobre que, ironicamente,
por um tempo, afirmara a vida. Com efeito, diz Nietzsche (2009, p. 116,
grifo do autor):

A formação de rebanho é avanço e vitória essencial na luta contra


a depressão. O crescimento da comunidade fortalece também no
indivíduo um novo interesse, que com frequência bastante o eleva
acima do elemento mais pessoal do seu desalento, sua aversão a si
mesmo.

De forma polêmica, Nietzsche apresenta o sujeito seguidor como


aquele que não mais “[...] age e cresce espontaneamente, busca seu opos-
to apenas para dizer Sim a si mesmo com ainda maior júbilo e gratidão”
(NIETZSCHE, 2009, p. 26) – como o fazia o grego antigo analisado por
Nietzsche – e, sim, tem como necessidade esse “[...] dirigir-se para fora,
em vez de voltar-se para si” (NIETZSCHE, 2009, p. 26). E se ainda não
ficou clara essa primeira aflição do autor, que ressalta a passagem de bom e
mau para bom e mal, ele mesmo a diz: “[...] a moral escrava sempre requer,
para nascer, um mundo oposto e exterior, para poder agir em absoluto –
sua ação é no fundo reação” (NIETZSCHE, 2009, p. 26).

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A oposição inicial definida por Nietzsche, entre “bom e mau, bom e mal” parece querer, além de mostrar
o modo e o porquê desta passagem significativa, ressaltar o aspecto ativo e nobre daquele que se lança à vida
como parte integrante e precursora dela, presente somente no primeiro âmbito. Esses aspectos significam,
em última instância, a possibilidade de uma vida estética, autoformuladora e múltipla: dizer sim à vida,
como ato nobre, é o ato daquele que se mostra sadio, o artista.

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Percebe-se que, no interior dessa proposta, trata-se mais especifica-
mente do desencadeamento do que o autor chama de “[...] sofrimento do
homem pelo homem” (NIETZSCHE, 2009, p. 96) pela negação da vida,
como um fator específico, que dos problemas gerais expostos na Genea-
logia. Estando,pois, o tema centralizado na questão da formação e manti-
mento do modelo comunitário e suas consequências inerentes e, mesmo
se sabendo que tal afirmação atinge outros liames, cabe atentar ao fato de
que a especificidade da proposta é construída por dois pilares específicos
e primordiais de fundamentação: a formação de rebanho e o papel da classe
sacerdotal, ou seja, o seu modus operandi.
Sendo o primeiro a irrupção da luta contra a depressão, a doença de-
senvolvida no espírito pelo sentimento de menoridade o que caracteriza o
porquê do ressentimento (NIETZSCHE 2009), e a segunda a atuação in-
tencional de fornecer o fármaco e o alívio da enfermidade, é o ciclo o mais
interessante e silencioso a ser atentado na sua complexidade. Pois, mesmo
estando essas duas disposições fantásticas fortemente relacionadas, não se
pode concluir ligeira e facilmente que a relação entre seguidor e líder seja
uma atuação recíproca de procura da cura e prestação benéfica de algum
tipo de favor ou, se se quiser, uma relação harmoniosa e despretensiosa
entre crença e benefício da crença, como é dito no processo tradicional.
Pelo contrário se atribui a relação: o poder e a constituição da verda-
de, enquanto consolidação da comunidade, subsidiam as potencialidades
individuais ao oferecer, como promessa de força semelhante e de salvação
comum, a ideia de pertencimento como fator de efetivação da vida. Pois,
a classe sacerdotal, enquanto detentora dos “valores naturais”, principia,
favorece e aprova a formação dos grupos, pois se apropria das diferenças
subjetivas e as transforma em meio de dominação da massa e fortaleci-
mento de si.
Aqui já se percebe a existência de um meio para efetivação da vida,
um projeto oposto à perspectiva de Nietzsche sobre a moral grega, encon-
trada pré-rebelião escrava, quando os indivíduos nobres “[...] não tinham
de construir artificialmente a sua felicidade, de persuadir-se dela, menti-la
para si” (NIETZSCHE, 2009, p. 27, grifo do autor) como se é feita, de

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acordo com o autor, pela moral vitoriosa e consequentemente pela prática
comunitário-religiosa.
Entendidos esses elementos destacados, pode-se dizer que a relação
entre a moral num sentido geral e a formação de rebanho num sentido
estrito são, para Nietzsche, um e mesmo problema. Pois, tratando-se da
“[...] vontade que se volta contra a vida” (NIETZSCHE, 2009, p. 11), é
a compaixão o interesse e a ferramenta de ambas: o bem e a honestidade
são reflexo dela na moral, assim como o justo e o sagrado são dela reflexo
na religião cristã. Porém, o que se pode tentar resolver nessa limitação do
problema do comunitarismo religioso é o modo pelo qual atua esse meio
de dominação; pela maneira como ocorre a apropriação das capacidades
humanas para fins de resignação, ou seja, investigar o segundo caso. Afi-
nal, deixa entrever o autor, a resignação não significa outra coisa a não
ser a negação da vida, o que, em sua expressão maior, isto é, comunitária,
significa a aversão do homem a si mesmo. É nesse meio, contudo, ainda
nebuloso e confuso que a relação entre rebanho e classe sacerdotal vai se
constituindo, ao mesmo tempo em que o problema do valor dos valores
vai surgindo.
Nesta altura, a questão dos valores e sua relação com a formação e
desenvolvimento das comunidades religiosas permitem salientar que
a contribuição de Nietzsche merece destaque, principalmente, pela sua
atenção ao valor da compaixão, que, incrivelmente, foi tornado símbolo
máximo do comportamento moral-religioso e, consequentemente, objeto
necessário do tratamento dos valores morais. As palavras do autor alertam
e estabelecem que:

Este problema do valor da compaixão e da moral da compaixão (–


eu sou um adversário do amolecimento moderno dos sentimentos
–) à primeira vista parece ser algo isolado, uma interrogação à parte;
mas quem neste ponto se detém, quem aqui aprende a questionar, a
este sucederá o mesmo que ocorreu a mim – uma perspectiva imensa
se abre para ele, uma nova possibilidade dele se apodera como uma
vertigem, toda espécie de desconfiança, suspeita e temor salta adian-

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te, cambaleia a crença na moral, em toda moral – por fim, uma nova
exigência se faz ouvir. (NIETZSCHE, 2009, p. 11, grifo do autor).
Nietzsche considera que, no âmbito histórico, a classe sacerdotal, o
ápice do ideal de conservação, do asceticismo – que, aliás, significará a
própria qualidade da moral ocidental – desenvolveu e desenvolve um pa-
pel decisivo no processo de valoração e conscientização dos valores, prin-
cipalmente pela sua autenticação de domínio e força, ou seja, pela prática
da compaixão: a formação da consciência de bem e do “[...] novo amor,
o mais profundo e sublime de todos os tipos de amor” (NIETZSCHE,
2009, p. 24, grifo do autor). Entretanto, ainda existe algo a ser descoberto
do interior dessa compaixão.
Domínio e força são termos “traduzidos” pelo filósofo, desmascaran-
do a atuação do ideal religioso (e ascético em geral, como afirma o autor)
que se mostra indubitavelmente como certo, necessário e desprovido de
algum problema antropológico, pois, pelos fins de conservação da vida,
“Tomava-se o valor desses ‘valores’ como dado, como efetivo, como além
de qualquer questionamento; até hoje não houve dúvida ou hesitação em
atribuir ao ‘bom’ valor mais elevado que ao ‘mau’, [...] E se o contrário
fosse verdade?” (NIETZSCHE, 2009, p. 12).
É nesse “[...] processo silencioso e, por isso, tendencioso”
(NIETZSCHE, 2005, p. 878) que o autor parece querer recuperar o sta-
tus humano ao nível da arte, não num sentido estrito de produção de arte,
mas como uma vida artística, pois, sob uma visão estética do mundo em
seu fluxo desinteressado, destaca-se que o ato de conservar a vida pode
ser em si mesmo a sua condição doentia; e o sentido dado a essa doença
pode ser justamente o veneno o qual logrou resultado: tornar fixo o que
é efetivo, consumando o valor moral (e o próprio “valor”) em detrimento
de toda e qualquer particularidade ou diferença pode ter sido a mais ou-
sada e perigosa tentativa de controle no mundo, eis que o comunitarismo
religioso torna-se um grande problema e a compaixão começa a ser posta
em dúvida.
Por sua vez, e por consequência, a formação de rebanho se mostra
como o resultado da prática ascética, inculcada por elementos práticos e

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ordenadores da classe sacerdotal, em que o medo, a consciência de culpa
e o castigo constituem a fórmula da dominação comunitária e ao mesmo
tempo de negação das individualidades. E se se pode montar um esque-
ma que explique a questão do comunitarismo religioso em seu aspecto
problemático, é por esses elementos que se pode erigir tal possível desen-
cadeamento. É preciso, pois, entender melhor que medo é este e como se
desenvolve como um ciclo vicioso, como se forma a consciência de culpa
e qual o significado do castigo, ou melhor, como o castigo se torna um
símbolo.
Nietzsche considera que o poder sacerdotal autentica e promove
uma nova moral, desenvolve um novo comportamento, especificamente,
a partir da nova significação de bom e mau – que outrora se manifestava
como forte e fraco – em bom e mal. Sendo tornado bom o que se entende
por valor “[...] mais elevado no sentido da promoção, utilidade, influência
fecunda para o homem (não esquecendo o futuro do homem)” (NIETZS-
CHE, 2009, p. 12, grifo do autor), tudo o que não lhe convém é contra-
riado como sendo mal, perigoso. A nova moral e o novo comportamento
humano em suas diretas relações são definidos agora, de acordo com o
pensamento do autor, como o despojo: o cenário da simplicidade, da prá-
tica da compaixão e do seguimento.
Agora, sobretudo por “[...] Esse Jesus de Nazaré, evangelho vivo do
amor, esse ‘redentor’ portador da vitória e da bem-aventurança aos po-
bres, aos doentes e aos pecadores” (NIETZSCHE, 2009, p. 24), como
ironicamente afirma o filósofo, é que se passa a designar aquele que se
mostra “puro” e envolvido no ideal de resignação como o homem bom; e,
em contrapartida, mal fica sendoo outro que se contrapõe a tudo o que é
de tal natureza pura. Ademais, é exatamente nesse ponto que a primeira
aflição pode ser percebida: “A rebelião escrava na moral começa quando
o próprio ressentimento se torna criador e gera valores” (NIETZSCHE,
2009, p. 102). Referindo-se à nova classe de homens sobre a terra, o res-
sentimento, grande resultado do poder sacerdotal, consistirá no novo
modo de se pensar e agir, antagonicamente, a partir da descrença no ho-
mem e na vida efetiva, na ação e no ato criador.

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É sob o foco do cumprimento das leis obrigatórias e castradoras
do impulso criador, possíveis pela “[...] vitória do homem comum”
(NIETZSCHE, 2009, p. 25) que se forma a consciência desse novo
homem: ação e criação – que, por ora, são elementos centrais da filosofia
nietzschiana, sobretudo de sua concepção estética do mundo – passam
a ser confundidas, com a mudança no âmbito dos valores, com reação e
negação: a expressão máxima de um comunitarismo religioso qualquer.
A nova tendência, a qual aflige o autor e o impulsiona a superar, res-
significa os conceitos de bom e mau,relação de forças e de poder,em bom e
mal, reação à força e consequente negação. Marcada pela sua característica
peculiar, “[...] a moral escrava diz Não a um ‘fora’, um ‘outro’, um ‘não-eu’ –
e este Não é seu ato criador” (NIETZSCHE, 2009, p. 26, grifo do autor).
É, pois, a partir da inversão exposta por Nietzsche que o novo comporta-
mento pode ser destrinchado e problematizado.
Tendo esses parâmetros em vista, tem-se já a contradição áspera en-
tre esses dois tipos de homem expostos: de um lado está o homem que
integralmente vive e constrói a possibilidade de vida a partir de seu pró-
prio impulso de criação, pois pode interpretá-lo a partir de si mesmo –
dizendo “Sim a si mesmo” (NIETZSCHE, 2009, p. 26) – e, de outro, o
homem que espera, que obedece e é, pelo modelo moral, desvinculado de
seu próprio impulso criador, de sua própria vontade, pois que, paciente
aos sofrimentos, está envolto em um ideal de pureza do coração, como diz
propriamente o autor.
O homem do ressentimento pode, doravante, a partir da crença na
redenção e na fixidez da vida, “[...] graças ao falseamento e à mentira para
si mesmo” (NIETZSCHE, 2009, p. 34), imprimir como força a fraqueza,
como ação no mundo uma simples reação. A fraqueza e a reação são os
novos atributos de valor, duas possibilidades peculiares da compaixão.
Assim delineado, percebe-se que a relação entre a moral, num senti-
do geral, e a formação de rebanho, num sentido estrito, são, para Nietzs-
che, um e mesmo problema. Acontece que, em se tratando da “[...] vonta-
de que se volta contra a vida” (NIETZSCHE, 2009, p. 11), é a compaixão
o interesse e a ferramenta de ambas: na moral agindo pelos costumes, pela

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prática cultural; na formação de rebanho pela prática sacerdotal, força li-
mitada e objetiva em sua forma de conscientização. Porém, como se dis-
se, trata-se de entender, nessa limitação do problema do comunitarismo
religioso, o modo pelo qual atua esse meio de dominação sacerdotal: a
maneira como ocorre a apropriação das capacidades humanas para fins de
resignação.
Que o comunitarismo religioso seja a negação da vida, enquanto efe-
tividade e potencialidade dos sujeitos, já é algo visto. Mas, como se encar-
regam de se manter em um movimento de negação da efetividade em prol
de uma vida resignada? Afinal, seria possível apresentar o início do ciclo
da resignação? E, se o puder, qual o fator determinante?
Assim como a fé na verdade é passada de geração em geração, seja
direta ou indiretamente, o processo de formação de rebanho e seu modo
operante também é resultado da tradição e de alguma necessidade que o
permeia, porque a tradição não é outra coisa a não ser:

Uma autoridade superior à qual se obedece, não porque ordene o


útil, mas porque ordena. Em que esse sentimento da tradição se dis-
tingue de um sentimento geral do medo? É o temor de uma inteli-
gência superior que ordena, de um poder incompreensível e indefi-
nido, de alguma coisa que é mais que pessoal – há superstição nesse
temor. (NIETZSCHE, 2008, p. 30, grifo do autor).

O predomínio das individualidades, da concepção própria do mun-


do, isto é, da vontade subjetiva, como bem se percebe no pensamento
nietzschiano, parece não poder estar em consonância com o homem das
comunidades, visto que, enquanto o primeiro se lança contra e além da
ordenação e do cumprimento, o outro se limita ao ordenado e ao conjunto
constituído. A cultura e os preceitos tradicionais são os dados imediatos a
esse homem das comunidades; seu modelo e sua tendência. Ter-se-ia en-
contrado a chave da problemática, o início do ciclo da resignação e uma
das maiores aflições de Nietzsche na Genealogia?
Nietzsche, principalmente na segunda dissertação, intitulada “[...]

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culpa, má consciência e coisas afins” (NIETZSCHE, 2009, p. 43), per-
mite mais rigorosamente tal investigação, que, aliás, só é possível por
meiodaquela exposição inicial da inversão dos valores, como já foi dito.
Segundo o autor, a crença na comunidade é o resultado da confiança no
líder, cuja maior ação é a compaixão. Mas nem a crença, que se destina ao
aspecto, ao modo, ao local, nem a confiança no líder, propriamente, conso-
lidam ou subsidiam o início do ciclo da resignação; muito menos podem
ser destacados como os fatores determinantes.
O filósofo considera que existe uma prática uniforme da qual se
pode retirar elementos preciosos para a decifração. Como foi mostrado,
culpa, má consciência e a prática do castigo atuam num mecanismo inte-
ressante e problemático, na formação e mantimento de uma consciência
de compaixão, mais precisamente, no mantimento de uma necessidade
de pertencimento: a compaixão é o que se vende, mas sua matéria-prima
está contida na “[...] tarefa de criar um animal capaz de fazer promessas”
(NIETZSCHE, 2009, p. 44). Com essas palavras, diz o autor:

O imenso trabalho daquilo que denominei “moralidade do costu-


me” [...] – o autêntico trabalho do homem em si próprio, durante o
período mais longo de sua existência, todo esse trabalho pré-histórico
encontra nisto seu sentido, sua justificação, não obstante o que nele
também haja de tirania, dureza, estupidez e idiotia: com a ajuda da
moralidade do costume e da camisa de força social, o homem foi
realmente tornado confiável. (NIETZSCHE, 2009, p. 44, grifo do
autor).

O processo pelo qual o homem se torna confiável só é possível pelo
fato da conscientização, contanto que se tenha claro que “algumas ideias
devem se tornar indeléveis, onipresentes, inesquecíveis, ‘fixas’, para que
todo o sistema nervoso e intelectual seja hipnotizado por essas ‘ideias fi-
xas’” (NIETZSCHE, 2009, p. 46). E, sendo a consciência fruto de um
contrato não amigável entre o animal que naturalmente esquece e aquilo
que se deve lembrar, é por meiodos costumes e, em especial, no método

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ascético-religioso de se gravar na memória, que se percebe a eficácia da
dominação sacerdotal por excelência:

Pois os costumes são, enquanto obra dos antepassados, também seus


preceitos e ordens. Esta suspeita permanece e aumenta: de quando
em quando exige um imenso resgate, algo monstruoso como paga-
mento ao “credor”. Segundo esse tipo de lógica, o medo do ancestral
e do seu poder, a consciência de ter dívidas para com ele, cresce ne-
cessariamente na exata medida em que cresce o poder da estirpe, na
medida em que ela mesma se torna mais vitoriosa, independente,
venerada e temida. (NIETZSCHE, 2009, p. 72, grifo do autor).

A tradição, os costumes, o comportamento de um povo carregam


mais que marcas universais e preceitos organizacionais. No caso específico
das comunidades, justifica-se a prática de um determinado comportamen-
to para fortalecimento da própria comunidade, sendo que esta representa-
rá, subliminarmente, a própria força do conjunto e uma tentativa de efeti-
vação da vida sobre o critério seguidor, que, aliás, poderiam ser chamados
de vários nomes, mas não é o caso de pô-los em uma lista.
A força do conjunto e a falsa efetivação, isto é, o poder da comuni-
dade, podem ser considerados, portanto, como o avanço de suas manifes-
tações histórico-culturais pelo constante resgate, pela constante necessi-
dade de uma memória que justifique o próprio poder. Na memória, estão
contidos o símbolo e a prática do castigo, da punição, logo, o temor: “O
sentimento de culpa em relação à divindade não parou de crescer duran-
te milênios, e sempre na mesma razão em que nesse mundo cresceram e
foram levados às alturas o conceito e o sentimento de Deus” (NIETZS-
CHE, 2009, p. 73).
Com esses detalhes apreendidos, dominação e força passam a se apre-
sentar como elementos não tão óbvios, porque, além de estarem envoltos
na caldeirinha problemática onde se guarda a tradição e a promessa de
uma vida melhor, emerge de vez a outra em forma de condição devedora
e assustadora, uma dívida para com o credor, e o susto dele em forma de
castigo. Com efeito, Nietzsche diz que “[...] inquestionavelmente se deve
buscar o genuíno efeito do castigo, antes de tudo, numa intensificação da

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prudência, num alargamento da memória, numa vontade de passar a agir
de maneira mais cauta, desconfiada e sigilosa” (NIETZSCHE, 2009, p.
66, grifo do autor). Poderia estar o medo mediando o público crente e a
classe que faz crer? Nesse sentido, se poderia abstrair algum ato criador de
dentro desse ciclo de resignação regido pela reação e pela receptividade?
Tanto em Aurora8 quanto na Genealogia,Nietzsche parece ressaltar
este fato importante: para que se possa manter uma comunidade, é preci-
so que nela se tenha como temor o principal exercício, a prática da conten-
ção. Tal prática, além de minar ou até mesmo interromper o processo de
irrupção artística, como ato e sentimento criador, conduz os indivíduos a
uma verdade sutil e estéril, onde qualquer manifestação se mostra como
uma reação ao temor e respeito ao poder, algo tão mecânico quanto ina-
propriado a uma vida estética. Assim, nesse processo de castração e expro-
priação das individualidades, encontra-se um fato interessante: “Todos os
instintos que não se descarregam para fora voltam-se para dentro – isto é
o que chamo de interiorização do homem: é assim que no homem cresce
o que depois se denomina sua ‘alma’” (NIETZSCHE, 2009, p. 67, grifo
do autor).
Nietzsche argumenta aludindo que, do mesmo modo que o credor,
aquele que é digno de algum crédito apresenta-se como superior ao de-
vedor; como numa relação de poder econômico, o fiel das comunidades
posiciona-se na condição “natural” de submissão e pagamento, pois que o
líder comunitário, a figura do sacerdote, representa o próprio poder divi-
no em sua manifestação terrena, pois que estes são os escolhidos do divino
para o processo de salvação.
A redenção, a expiação ao nível comunitário e a utilidade no âmbito
pessoal fundem-se pelas duas vias do medo: num primeiro momento, o
medo da morte; num segundo, o medo do ancestral, com quem se percebe
ter dívidas. Contudo, o medo do ancestral, para uma investigação sobre

8
Em Aurora, (2008, p. 29), tópico 9, Nietzsche já aborda o “conceito da moralidade dos costumes”,
ressaltando a força que os costumes aplicam aos indivíduos, finalizando do seguinte modo: “Sob o domínio
da moralidade dos costumes, toda forma de originalidade tinha má consciência; o horizonte dos melhores
tornou-se ainda mais sombrio do que deveria ter sido” (NIETZSCHE, 2008, p. 32).

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o comunitarismo religioso, se sugere como o mais relevante, não por ser
ele a chave para se entender a necessidade de religião em geral, mas por-
que nele está intrínseca a necessidade de recorrer àquele que se apresenta
como o próprio símbolo de desencadeamento do plano divino: o sacerdo-
te, o maior representante do valor do novo bem no mundo.
O fato de se ter duas possíveis causas para o medo, e concomitante
a ele uma única saída possível, a religião, mostra admissível que não só
procuram os homens do ressentimento as comunidades para fins de edu-
cação para redenção individual, confortando-lhes em relaçãoao problema
da finitude humana, mas, tendo-lhes dado a oportunidade da autopromo-
ção para a comunidade, em nível de proximidade com seu antepassado,
ou se se quiser, para com o credor, poder-se-á transferir todas as indivi-
dualidades e perspectivas em prol de uma força maior: a comunidade, o
local onde o poder, culturalmente, se mostra confiável e compartilhado,
logo, verdadeiro e imprescindível. Esse ato de transferir as perspectivas in-
dividuais para o fortalecimento de uma comunidade, que, em última ins-
tância, destina-se à divindade, pode ser a mais inaceitável das ações para
uma concepção efetiva da vida, eis a maior aflição de Nietzsche. Nas suas
palavras:

[...] a convicção prevalece de que a comunidade subsiste apenas gra-


ças aos sacrifícios e às realizações: reconhece-se uma dívida [Schuld],
que cresce permanentemente, pelo fato de que os antepassados não
cessam, em sua sobrevida como espíritos poderosos, de conceder à
estirpe novas vantagens e adiantamentos a partir de sua força. [...] O
que lhes pode dar em troca? Sacrifícios (inicialmente para alimen-
tação, entendida do modo mais grosseiro), festas, música, homena-
gens, sobretudo obediência. (NIETZSCHE, 2009, p. 71, grifo do
autor).

Nietzsche, nesse percurso genealógico que tem como preocupação a


interpretação do mundo e da História, parece não querer deixar separada
a ideia de ancestral, que mais leva à concepção de paganismo e seus rituais,
da figura da classe sacerdotal cristã, a qual também promove os sacrifí-

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cios, festas, música etc. O medo do ancestral é a necessidade de redenção
em sentido prático, enquanto parte do processo civilizador; por isso, a
necessidade de agrupamento e de conformidade, afinal, trata-se de uma
vida preestabelecida e predisposta à verdade, ao bem, ao novo bom. E se
o medo é a causa de um comunitarismo religioso cristão, o sentimento de
culpa lhe serve de ferramenta de condução: “O advento do Deus cristão,
o deus máximo até agora alcançado, trouxe também ao mundo o máximo
de sentimento de culpa” (NIETZSCHE, 2009, p. 73).
Ora, culpa, castigo e um certo pagamento de dívidas consolidam a
fórmula de uma aversão nietzschiana ao comunitarismo religioso, prin-
cipalmente porque contêm em si a propagação do medo, o grande “[...]
sofrimento do homem com o homem” (NIETZSCHE, 2009, p. 68, grifo
do autor). Em suma, a classe sacerdotal desempenha, concretamente, o
papel do credor, pois lhe é concebido tal poder, ao passo que aquele que
não paga ou não aceita o sistema burocrático que funciona para o bem
tem desde já a sua consequência: o castigo.
O castigo, segundo Nietzsche, e, aliás, a sua ideia é o mais impor-
tante, é uma força fundamental para que aqueles que não se envolvem tão
facilmente no plano comunitário da resignação – ou da tradição, como foi
anunciado – sintam-se diante dele como inferiores e culpados: “O castigo
teria o valor de despertar no culpado o sentimento da culpa, nele se vê o
verdadeiro instrumentum dessa reação psíquica chamada ‘má consciência’,
‘remorso’” (NIETZSCHE, 2009, p. 54, grifo do autor).
A culpa é extraída desse modelo como sendo a própria consciência,
a consciência de não-pagamento, logo, a má consciência. A respeito desse
homem que grava na consciência o símbolo da culpa e do castigo, o filó-
sofo diz: “[...] esse homem da má consciência se apoderou da suposição
religiosa para levar seu automartírio à mais horrenda culminância. Uma
dívida para com Deus: este pensamento tornou-se para ele um instrumen-
to de suplício” (NIETZSCHE, 2009, p. 75, grifo do autor). Poderiam ser
medidos os malefícios de um pertencimento? O comunitarismo religioso
seria a máxima expressão da negação da vida para Nietzsche?

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Segundo o filósofo, a classe sacerdotal desenvolveu a sua força e do-
mínio através de um entrelace entre o medo ontológico, da finitude, e o
sistema burocrático de dívidas para com um credor, conquistado no pro-
cesso de internalização cultural, até mesmo em harmonia com a tradição
pagã, que desenvolvera também a prática do medo e do castigo. Quer-se
dizer, portanto, que a condição doentia da vida se mostra como o próprio
ciclo, logo, adversa ao ato e sentimento criador pela negação da intenção a
partir de si, pois, por um fator determinante: “[...] o último terreno con-
quistado pelo espírito da justiça é o sentimento reativo!” (NIETZSCHE,
2009, p. 58, grifo do autor).
A questão dos valores, do processo burocrático da formação da cons-
ciência inversa (a má consciência) e o problema do comunitarismo reli-
gioso estão intrinsecamente interligados, pois que a essa altura em que os
seguidores já pertencem e almejam o propósito anunciado, a comunidade
já se consolidou perante os indivíduos. Num processo lento, misto, mas
muito eficaz, não há mais o que se entrever, o ciclo já está consumado.
Segundo Nietzsche (2009, p. 56):

Aumentando o poder de uma comunidade, ela não mais atribui tanta


importância aos desvios do indivíduo, porque eles já não podem ser
considerados tão subversivos e perigosos para a existência do todo: o
malfeitor não é mais “privado da paz” e expulso, a ira coletiva já não
pode se descarregar livremente sobre ele – pelo contrário, a partir de
então ele é cuidadosamente defendido e abrigado pelo todo, prote-
gido em especial da cólera dos que prejudicou diretamente.

Sem dúvida, para Nietzsche, o asceticismo foi promovido e cons-


cientizado em seu mais alto grau pela classe sacerdotal, símbolo da moral
escrava. A necessidade da verdade e de uma ordem contra a destruição
regeu a vida e formulou toda a cultura ocidental em seu aspecto mais pe-
culiar: pela negação da efetividade, pela abstenção das perspectivas e pelo
desprezo do ato propriamente humano:

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Sob influência dessa idiossincrasia, colocou-se em primeiro plano a
“adaptação”, ou seja, uma atividade de segunda ordem, uma reativi-
dade; chegou-se mesmo a definir a vida como uma adaptação inter-
na, cada vez mais apropriada, a circunstâncias externas [...] Mas com
isso se desconhece a essência da vida, a sua vontade de poder. (NIET-
ZSCHE, 2009, p. 62, grifo do autor).

Sendo a vida essa vontade de poder que se realiza de vários modos,


qualquer castração prática ou teórica a contradiz. E assumi-la sem as ar-
mas da fixidez e da inconstância talvez seja a atitude mais compatível com
o autodesfecho de sua vontade, onde não mais se necessitaria “mentir para
si mesmo”; opor a si mesmo “um não” ou “gravar em si uma memória”
(NIETZSCHE, 2009). Assim, a necessidade de pertencimento, ou me-
lhor, a estrutura comunitarista,a qual se considera como sendo a maior
aflição de Nietzsche, só pode ser considerada como a forma de negação da
vida e do ato criador. E, finalizando à sua maneira, mesmo que o homem
tenha consciência de que sofre de si mesmo, de que se conserva à vida e
se detém dela, mesmo assim, nas últimas palavras do autor na Genealo-
gia da moral, “[...] o homem preferirá ainda querer o nada a nada querer”
(NIETZSCHE, 2009, p. 140, grifo do autor).

REFERÊNCIAS

AZEREDO, V. D. Nietzsche e a dissolução da moral. Ijuí: UNIJUÍ, 2003.

KRASTANOV, S.V. Nietzsche: pathos artístico versus consciência moral.Jundiaí: Paco,


2011.

NIETZSCHE, F. W. Aurora. São Paulo: Escala, 2008.

_______. Genealogia da moral. São Paulo:Companhia das Letras, 2009.

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Title: The Genealogy of Morals as an assumption aversion religiouscommunitarism: a
reading of Nietzsche woes.
Authors: André Luiz Rocha da Silva; Stefan Vassilev Krastanov.

ABSTRACT: This article has as its background the distinction of two types of subject
present in Nietzsche’s Genealogy of Morals, the man follower and the individual artist.
This distinction formulated from the interpretive act wants to show the fundamental
difference of views of life: the life as permission and fulfillment of the divine plan,
adept at Christianity and consolidated the practice of the fear, and life as becoming,
as supported by Nietzsche effectiveness. Built this base, it is possible to set up a scheme
that supports the genealogical work of Nietzsche on the following focus: Nietzsche’s
aversion to religious communitarism, in other words, the negation of life. So, there
isthe intention to show how consciousness of guilt and the need of adequacy to act in
a vicious cycle and silent in the cultural, reiterating the action of the priestly class and
the role of asceticism as primary factors for the formation of flock, the consolidation of
religious communitarism.
Keywords: Religious Communitarism. Life as Effectiveness. Priestly Class. Formation
of Flock. Fear.

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