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Misticismo e ceticismo
Cleantho : Falemos, pois, meu caro Philon, a respeito da aparentemente impossível
convergência entre posturas místicas e céticas, na história do cristianismo, e, muito
embora já me sinta antevendo e me maravilhando a respeito do tema de que vamos
tratar, permito-me conceder-lhe o privilégio de lançar as primeiras idéias, a fim de
que possamos fazer delas uma espécie de leit-motiv de nossa conversação.
Philo : Pois bem, Cleantho, acedo ao seu convite com grande satisfação, embora sabedor
de que estamos penetrando em matéria sutil e sobremodo intrincada. É preciso
iniciar, porém, e, em assim sendo, comecemos por dizer que, no relacionamento
entre misticismo e ceticismo, observamos, por assim dizer, uma estranha
convergência entre a atitude cognoscitiva de um místico radical e a de um cético
radical. Em virtude uma coincidentia oppositorum, o místico e o cético resultam
ser irmãos gêmeos em epistemologia. De acordo com suas premissas, talvez devam
permanecer em silêncio ao invés de tratar de expor suas idéias e, de fato, isto é o
que recomendam com não pouca freqüência. Mas, em ambos os casos, esta
recomendação aparece prenhe de antinomia pragmática: é violada pelo mero fato
de ser pronunciada.
Cleantho : Mas tal antinomia quiçá seja evitada, Philo, se restringimos o sentido do silêncio do
místico e do cético. Um cético não diz que deveria estar completamente calado,
tampouco argüi que nenhum conhecimento é possível. Antes, crê que o que dizemos
na linguagem de cada dia tem um valor prático mais do que cognoscitivo e esta
suposição é perfeitamente suficiente na comunicação normal entre pessoas; não
devemos dotar as nossas palavras com a virtude adicional de serem capazes de
descrever o mundo tal como realmente é e devemos abstermo-nos de fazer
comentários epistemológicos sobre o sentido cognoscitivo dos critérios de validade,
incluídos, presumidamente, nos comentários céticos.
Philo : Mas, se assim é, Cleantho, um cético não seria incoerente pelo mero fato de ser
cético ?
Cleantho : Esta, caro amigo, é, deveras, uma questão intrigante, mas talvez eu devesse dizer-
lhe que um cético não seria incoerente pelo mero fato de ser cético, mas, sim, por
afirmar que o é; não é incoerente quando simplesmente fala, mas suspeita-se que o
é se discute, justifica ou explica sua filosofia cética. Consegues estabelecer algum
paralelo com o místico, Philo ?
Philo : Talvez sim, se admitirmos, por exemplo, que um místico se acha em uma posição
muito similar, pois, de fato, pode muito bem crer que é útil, mais ainda, necessário
falar de Deus, mas só com a condição de que nossa conversação seja prática e não
pretendamos realmente que sabemos o que é Deus. O que sabemos não pode ser
expresso através da linguagem . . . estás de acordo, Cleantho ?
Cleantho : Certamente, só acrescendo ao que dissestes que um cético qua cético pode chegar
até aí, e, que, para ambos, o cético e o místico, resta um modo de escapar quando
tentam, desafiando suas próprias normas, explicar a base epistemológica de sua
negativa em atribuir a suas palavras um valor cognoscitivo[uma explicação
aparentemente impossível sem a admissão de algo cuja inadmissibilidade constitui
o conteúdo de sua explicação].
Philo : A respeito, lembro-me até mesmo de Wittgenstein, em quem o místico e o cético
chegaram, talvez, a um acordo, que sua explicação, com efeito, carece de sentido e
que, portanto, pode e deve ser tirada do muro a escada através da qual já foi
escalado. Os ensinamentos místicos sobre as etapas do avanço espiritual incluem
um preceito similar. E o conceito de Nicolau de Cusa de docta ignorantia combina
ambos os sentidos, o místico e o cético.
Cleantho : Contudo, Philo, sou tentado a persistir argumentando que segue havendo uma
diferença epistemológica crucial entre o cético e o místico, a despeito de todas as
semelhanças: o último obteve uma perfeita certeza, o primeiro não dispõe de
nenhuma, que lhe parece ?

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Philo : Bem, Cleantho, creio que as coisas não se dão necessariamente assim. Um cético
não tem por que viver em um estado psicológico de incerteza:
epistemologicamente, é um asceta, ao invés de alguém que se equilibra sobre uma
corda bamba. O que sabe lhe basta para viver e comunicar-se com os outros e, se é
coerente, simplesmente não se preocupa pela filosofia; tampouco, fá-lo o místico.
Cleantho : Mas, se assim é, não consistirá seu argumento em dizer que o ceticismo e
misticismo sejam a mesma coisa, ou que sejam análogos em todos os seus aspectos
?
Philo : Lamento decepcioná-lo, mas digo-lhe que não. Meu argumento é, primeiro, que o
enfoque epistemológico é similar em ambos, e, em segundo lugar, que não é
incoerente nem monstruoso ser cético e místico ao mesmo tempo.
Cleantho : Sua tese é ousada, Philo, permita-me dizê-lo, pois a história revela que aqueles que
uniram um impulso místico com uma curiosidade metafísica alimentada pela
tradição neoplatônica não encontraram consolo na inexprimível segurança de um
encontro pessoal com Deus. Não queriam evitar o atormentador enigma que Plotino
e Proclus haviam tratado de abordar: Porque havia o Uno gerando aos muitos ? Que
podia haver impulsionado ao absoluto que se autocontém, que não tem desejos nem
necessidades, a dar vida à variedade de seres finitos e corruptíveis, criando o mal e,
com ele, a miséria ?
Philo : Sua objeção procede, Cleantho, pois a resposta tentada por alguns platônicos
cristãos foi de que Deus tinha tido necessidade da criatura, à qual tinha dado vida.
Isto supõe, naturalmente, que Deus não é o ser absoluto, não é no princípio o que
será no final da grande viagem. Gera o mundo para amadurecer seu corpo, por
assim dizer; tem que criar algo alheio a si mesmo e ver-se a si mesmo no espelho
das mentes finitas e, quando reabsorve de novo seus produtos alienados, se
enriquece; a magnífica e terrível história do mundo é a história do próprio Deus,
talvez o Gólgota cósmico de Deus, uma condição prévia à sua glória final. Nesta
explicação sumamente pouco ortodoxa, o mistério do homem e o mistério de Deus
se fundem: ambos têm, por assim dizer, um itinerário comum e um destino comum,
se necessitam mutuamente na viagem em direção da reconciliação última, que só
pode ser lograda como resultado de uma fenda no Ser e sua recomposição posterior.
Assim, o conceito de felix culpa se elevou a uma dimensão ontológica, como se o
pecado original, ou seja, a ruptura com Deus, houvesse sido cometido
primeiramente por Deus, que se rasgou em pedaços ao emanar o universo.
Cleantho : E o interessante, Philo, é que, longe de ter ouvido de você um discurso meramente
retórico, penso que suas teses desfrutam de ampla confirmação na realidade. Vários
elementos desta história, relatados em graus diversos de coerência podem ser
encontrados nas periferias da teologia cristã, entre escritores heréticos ou de
duvidosa ortodoxia: Scoto Erígena, Meister Eckart, Boehme e Angelus Silesius
podem ser mencionados neste contexto. A origem do marco geral da história pode
ser buscado, talvez, nos diversos mitos cosmogônicos da Índia e do Irã. E sua
substância foi adotada no grandioso programa da ontologia histórica de Hegel: o
drama de um Ser Absoluto que, não satisfeito com sua autoidentidade vazia, se
aliena a si mesmo e, por meio das lutas e tragédias da história humana, amadurece
até alcançar uma consciência perfeita de si mesmo, reassimila seus produtos, e,
finalmente, abole a distinção entre sujeito e objeto sem destruir a riqueza de formas
que surgiram durante o caminho. Que lhe parece, Philo ?
Philo : Ignoro se minha interpretação coincidirá ou não com a sua, Cleantho, mas esta
versão do relato pode ser denominada de panteísmo dinâmico, ao supor não só que
um vínculum substantiale une a Deus com o mundo, mas, também, que este
vínculo se forma e se manifesta em uma evolução histórica dotada de finalidade.
Confere sentido ao ato da criação, que, sob o ponto de vista da teologia cristã oficial
ultrapassa o entendimento[o excesso de bondade divina repousando mais além de
si mesma] e também à história humana, incluindo tanto seus aspectos monstruosos
como sublimes: a história se vê agora em termos de crescimento de Deus e do
homem. O preço que se paga por esta maior inteligibilidade, meu caro Cleantho, é
que nos deixa com a imagem de um Deus histórico, com um Deus-em-processo e
isto parece, à primeira vista, em total desacordo com a tradição cristã. Contudo, ao
término desta curta mas densa e difícil explanação, não significa que eu tenha
entendido tudo e que me sinta tranqüilo com o grau de inteligibilidade
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supostamente encontrado. Assim, não posso evitar que me pergunte: É realmente


assim ? Enfrentamo-nos com duas idéias absolutamente irreconciliáveis: Deus-em-
devenir contraposto a Deus como um Absoluto imóvel ?
Cleantho : Quiçá, Philo, a oposição seja menos radical do que parece. Desde logo, o fato de que
alguns escritores cristãos se sentissem fortemente tentados pela teogonia platônica,
sem que, por isso, se considerasse a si mesmos menos cristãos, em si mesmo não é
decisivo, já que poderiam haver errado não precavendo-se com relação à
incompatibilidade, e, na maioria dos casos, foram, com efeito, castigados como
hereges. Sem embargo, pode ser questionada a incompatibilidade em termos
metafísicos, notadamente quando se considera o Deus histórico neoplatônico, assim
não te parece, Philo ?
Philo : Sim, Cleantho, porque o Deus neoplatônico parece ser não-cristão por três razões
principais: [a] antes de mais nada, esta teologia se associava habitualmente com o
chamado “emanacionismo”, uma doutrina que supunha que Deus havia criado um
mundo de Sua própria “substância”, mais do que ex-nihilo ou post-nihilum. Sem
embargo, é passível de argüição - eu o reconheço - que a diferença é mais de
palavras do que de conteúdo. A teologia cristã oficial supõe que ser é participar d
fonte do Ser e que as coisas criadas, sejam corpos ou espíritos, ainda que não sejam
partes de Deus, são d’Ele; sua existência é contingente, mas não independente.
Tampouco viam os platônicos as criaturas como partes de Deus[em seus termos,
isto teria sido, de qualquer maneira, mais disparatado ainda do que na teologia
cristã, considerando a ênfase que punham na absoluta unidade de Deus]. Tampouco
a expressão cristã ex-nihilo sugere que o Nada seja uma substância da qual
moldasse Deus as coisas: não havia outra substância a não ser Deus mesmo.
Cleantho : E além disto, Philo, por que o Deus platônico não parece ser cristão ?
Philo : Bem, em segundo lugar, {b] o conceito “emanacionista’ implicava uma espécie de
necessidade ôntica no processo do descenso gradual do Uno até a matéria, o que
parecia contrariar o livre arbítrio de Deus. Esta questão se mostrou quando se impôs
o argumento - ao qual se cedeu - de que a distinção entre ser livre e necessário não
era aplicável a Deus. E, para adiantar-me à sua curiosidade, Cleantho, digo-lhe que,
em terceiro lugar - e este é o ponto crucial -, o conceito de um Deus histórico
parece ser autocontraditório a partir de um ponto de vista cristão, uma vez que o
Absoluto é, por definição, a plenitude ôntica, que não carece de nada nem deseja
nada, impassível que é; é inconcebível que possa acrescentar-se nada a Deus e
nada poderia fazê-lo mais perfeito do que é.
Cleantho : Aqui, porém, Philo, será necessário afirmar que, sobre este ponto, o Deus cristão
nunca esteve livre de ambigüidade. Ele é, sobretudo, o Deus do amor, e fazem falta
dois para que o amor exista: o amor de si mesmo não é amor como o entendemos
nós. Daí que seja difícil imaginar-se um Deus sem filhos, sem ninguém a quem
amar, e é natural pensar n’ELE em termos de seu encontro com o homem; dito de
outro modo, o crente tende a supor que Deus é o que é - um Pai amante - só em
uma relação Eu-Tu; ou que é necessária, efetivamente, à sua progênese espiritual.
Philo : E a isto pode-se replicar que, segundo os ensinamentos cristãos, o que Deus criou
no tempo[ou melhor, “com tempo”] havia existido n’ELE durante toda a sua
eternidade, dada a intemporalidade de Deus e Sua atualidade. Minha dúvida, meu
caro Cleantho, está em saber se tal explicação eliminou a ambigüidade . . .
Cleantho : Se queres ouvir-me a respeito, Philo, digo-lhe que não, que a ambigüidade não foi
eliminada, tendo sido, ao contrário, posta em relevo de forma ainda mais clara.
Podemos entender nossas existências como sujeitos conscientes só em relação com
o tempo, e o eterno. Agora divino está mais além de nossa experiência normal do
tempo. Daí que, em termos desta experiência, nossa estranha existência metafísica
no útero imutável de Deus não só está fora do alcance de nossa memória, senão
que não encaixa em nossa compreensão do que é ser humano. Este último implica
nosso sentido de identidade própria “subjetiva”. Dizer “tens vivido em Deus desde
sempre sem sabê-lo” significa simplesmente “tens existido desde sempre como um
objeto morto” - não lhe parece, Philo ?
Philo : Sim, pois, com efeito, é impensável que possa “acrescentar-se” nada à imóvel
perfeição do Absoluto de Spinoza e dos Budistas, porque é totalmente indiferente ao

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destino, ao sofrimento e à própria existência das miseráveis criaturas que choram


pelas dores que elas mesmas se infligem, na superfície de um globo minúsculo,
flutuando à deriva no vazio. Sem embargo, ao Deus cristão não lhe somos
indiferentes, nos ensinam; portanto, é inimaginável que nossa existência e nosso
destino não possam afetar-lhe. Uma e outra vez fecha-se sobre nós a mesma
incongruência quando o Deus do mito cristão se enfrenta com o impassível Esse
dos metafísicos. Os neoplatônicos necessitaram de um demiurgo criador que fosse
mediador entre o Uno e o mundo e os cristãos desenvolveram a idéia do eterno
mediador e a doutrina da Trindade; sem embargo, nunca renunciaram à crença de
que Deus é, ao mesmo tempo, o Pai e o Absoluto. Quanto aos místicos . . .
Cleantho : . . .bem, quanto aos místicos, sustentam que venceram esta incongruência; estão
seguros de haver experimentado um Deus que é as duas coisas. Nada mais fácil do
que desprezar suas pretensões, fundando-se em sua incoerência. Os místicos não
fazem caso de tais objeções: viram o que dizem e, se o que viram, quando se
expressa com palavras, parece incorreto logicamente, a eles não lhes importa: pior
para a lógica. Neste ponto, amável Philo, penso que podemos concluir, dizendo . . .
Philo : . . . sim, dizendo que duas certezas irreconciliáveis chocam-se entre si: a certeza
dos filósofos, apoiada em critérios de coerência, e a certeza dos crentes e dos
místicos, que participam de um mito ou da realidade a que o mito faz referência. E
que é bastante sábio e imparcial para decretar, imperiosamente, quais dos dois
critérios deve ter prioridade ? E o que significariam “prioridade” e ‘imparcialidade”
quando se aplicassem a esta colisão ?

[Parei na página 149, segundo §]

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