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A “VERDADE” DE STANISLAVSKI E O ATOR CRIADOR: ELOS PERDIDOS NA

TRADUÇÃO AO PORTUGUÊS DA OBRA A CONSTRUÇÃO DA PERSONAGEM.


Michel Mauch1
mauch.michel@gmail.com;
Robson Corrêa de Camargo2
robson.correa.camargo@gmail.com

Constantin Stanislavski (1863 – 1938) é um dos grandes teóricos e sistematizadores do


trabalho do ator. Entretanto, as nossas traduções (editora Civilização Brasileira), são frutos
das traduções norte-americanas (editoras Brown and Co. e Theatre Arts Books), que aparecem
com várias omissões em relação aos originais. Este trabalho concentra-se em examinar,
pontuar e sistematizar os “Anexos”’ da obra El Trabajo del Actor sobre Sí Mismo En El
Proceso Creador de la Encanación inexistente no original português e compreender um
pouco mais a importância do desenvolvimento do “sistema” stanislavskiano para o processo
de criação artística concentrando-se no desenvolvimento da musicalidade.
Palavras-Chave: recepção de Stanislavski no Brasil, crítica genética, método das ações físicas.

Constantin Stanislavski (1863 – 1938) is a fundamental writer when we intend to focus on the
work of the actor. Otherwise, the Portuguese translations (editora Civilização Brasileira)
follows the USA translations done by Brown and Co. and Theatre Arts Books. These
translations have many differences from the Russian originals. Our paper focus in the
“Anex”’ studied in the El Trabajo del Actor sobre Sí Mismo En El Proceso Creador de la
Encanación which is not presente in the English or Portuguese versions cited. I intend to
study these pages trying to understand the musical patterns in the process of acting.
Keywords: Stanislavski and his Reception in Brasil, Genetic Criticism, Physical Actions

O que realmente significa, escrever sobre o que é


passado e já foi feito? O sistema vive em mim mas
não tem contorno ou forma. O sistema é criado no ato
de escrevê-lo. Esta é a causa de porque que eu
tenho que ficar trocando o que eu tinha antes escrito
(1936) Stanislavski, uma nota autobiográfica. in
Benedetti, J. Stanislavski and the Actor: The Method
of Physical Action pg 22.).

1. Caminhos
Os diretores, pedagogos e escritores russos Constantin Stanislavski3 (1865 –
1938) e Vladímir Nimirovitch-Dânchenko4 (1858 – 1943), no fim do século XIX, fundaram o

1
Universidade Federal de Goiás. Projeto financiado pelo CNPq.
2
Prof. Dr. do curso de Artes Cênicas da Universidade Federal de Goiás.
3
Seu nome verdadeiro era Constantin Siergueieivitc Alexeiev.
4
Este foi um ficcionista que começou a se destacar na década de 1880 na cena russa. Em 1891 tornou-se
professor da escola de formação de atores, a Filarmônica de Moscou, em que se formaram, entre outros, Olga
Teatro de Arte de Moscou (TAM); cujo objetivo era estabelecer um projeto teatral no qual
nascesse uma renovação cênica, mas que também abrangesse compromissos étnicos, culturais
e nacionais muito bem definidos5.
Entretanto, muito além de um projeto teatral ligado apenas a forma estética,
Stanislavski deve ser apontado pelas suas sistematizações em relação ao trabalho atoral.
Motivado pelo estudo das idéias de Stanislavski, este trabalho pretende examinar o que foi
conhecido como “sistema”, criado por ele, o qual por sua vez, embasa-se estruturalmente nas
ações físicas. Estas, como ele diz em seu livro A Construção da Personagem, possibilitam o
aflorar do “[...] espírito interior do papel que estamos interpretando [...]” (STANISLAVSKI
1986, p. 98). Mas devemos lembrar que elas são “abastecidas”, igualmente, pela vida e/ou
imaginação que o ator empresta à personagem.
Este trabalho pode ser feito graças aos originais do autor em foco, que foram
traduzidas do russo diretamente e sem cortes, pela editora portenha Quetzal, diferentemente
do que ocorreu com a tradução ao inglês, que deu origem a tradução conhecida em nosso país,
cuja derivação segue a versão norte-americana, traduzida por Elizabeth Hapgood.
A constatação de que a obra ao português de A Construção da Personagem,
contém graves omissões aparece em nosso primeiro trabalho, intitulado O Método
Stanislavski: a edição de A Construção da Personagem em português e espanhol, um estudo
comparativo, no qual, através de alguns exemplos, expomos que este livro continha termos,
trechos e capítulos inteiros que a tradução ao português não nos facultou estudar, dificultando
o entendimento desta obra e não apenas ao português, já que a edição de Hapgood orienta a
grande parte das traduções no ocidente.
Stanislavski foi publicado ao português em quatro obras. As edições norte-
americanas que as originaram e em quase todo ocidente, foram assim, até agora motivos do
surgimento de grandes equívocos. Ao final de 2008/2009, a editora Routledge, de Nova York,
está re-publicando em inglês toda a obra de Stanislavski, corrigindo, ao que parece, os
equívocos, em nova tradução de Jean Benedetti, trazendo completamente os originais russos.
No início dos anos 1990 foram resolvidos nos EUA os problemas de direito autoral e assim
foram realizadas as novas traduções ao inglês. Seus dois livros An Actor´s Work on Himself,

Kníper e Vsévolod Emilevitch Meyerhold, que se destacaram no TAM e na cena russa/sovética entre os séculos
XIX e início do XX.
5
Cf. GUINSBURG, Jacó. Stanislávski e o Teatro de Arte de Moscou: do realismo externo ao
tchekhovismo. São Paulo: Perspectiva, 2006.
Parts one and two (Rabota Aktiora nad Soboj) e An Actor´s Work on Role (Rabota Aktiora
nad Rolju), apareceram em inglês, e depois foram vertidas ao português, em três livros que
perderam grandes partes. A Preparação do Ator (An Actor Prepares, 1936) e A Construção
da Personagem (Building a Character, 1950) são a publicação de seu primeiro livro em dois
volumes e depois Criação do Papel (Creating a Role, 1961).
Para que se compreenda alguns dos graves problemas surgidos ainda em vida de
Stanislavski, este havia escrito sua biografia Minha Vida na Arte, para seu editor inglês,
Brown Little em 1924. Diante da quantidade de páginas, o editor norte-americano impôs
cortes e trocas, Stanislavski insatisfeito reeditou depois nova versão para sua publicação na
URSS, totalmente reformulada em 1926.
Para que possamos compreender melhor a temporalidade das traduções e as suas
diferença vejamos alguns pontos no quadro abaixo das obras editadas e as diferentes versões:
País ► Rússia 6 EUA Brasil Argentina 7
(traduzidas (Traduzidas das edições Ed. Quetzal
com alterações e norte-americanas, a (traduzidas do russo)
Obra
omissões do russo até menos que notado)
▼ 2008)

1926 1925 1956 1981


My Life in Art Esther Mesquita
Publicação na Tradução de J.J Anhembi (parcial);
URSS da edição Robbins, pela Little Mi Vida en el Arte, segundo
Minha Vida na reformulada dos Brown (Boston) a reformulação do próprio
Arte originais da autor, pela sua insatisfação
edição norte 2008 1989 com a tradução ao inglês.
americana Nova tradução agora Paulo Bezerra
do original russo de Bertrand Brasil. (do
1926 por Jean original russo)
Benedetti

Rabota Aktiora 1938 1936 1964 1977:


nad Soboj publicada An Actor Prepares A Preparação do
no ano da morte Tradução de Elizabeth Ator El Trabajo del Actor Sobre
do autor Hapgood8 Sí Mismo en el proceso
O Trabalho do apenas metade do Tradução de Pontes de Creador de las Vivencias
Ator sobre si material original foi Paula Lima Civ.
Mesmo traduzido ao inglês. Brasileira
(dividido em duas 2009
publicações em An Actor's Work
inglês e português) a Student”s Diary
Jean Benedetti
unificado a partir do
original russo

6
Para mais detalhes sobre os dados dos livros de Stanislavski na Rússia conferir: RUFFINI,
Franco. Novela Pedagógica: Un Estudio Sobre los Libros de Stanislavski. Tradução de Margherita Pavia. In:
Revista Máscara: Stanislavski, Eso Desconocido. Escenología: México, n. 15. Out/1993.
7
Existem outras traduções ao espanhol que se embasam na versões norte-americanas. Entretanto,
nesta pesquisa utilizo os livros da editora portenha Quetzal, os quais foram traduzidos, ilegalmente, diretamente
do russo por Salomón Merener; a partir de 1970. Existe uma edição da Alba, Barcelona, da
8
As traduções de Hapgood foram editadas inicialmente para a Theatre Arts Books, de Nova York.
1949 1970 1977
Building a A Construção da
Character Personagem El Trabajo del Actor Sobre
Tradução de Tradução de Pontes Sí Mismo en el proceso
Hapgood Lima Creador de la Encarnación
Civ. Brasileira.
2009
An Actor’sWork
a Student”s Diary
Jean Benedetti
unificado a partir do
original russo
unificando os dois
livros

Rabota Aktiora 1951 1961 1972 1977


1948 Creating a Role
nad Rolju preparada por Tradução de Hapgood
Tradução de Pontes El Trabajo del Actor sobre
um comitê Lima, Civ. su Papel Sí Mismo
2009
editorial a partir Brasileira.
An Actor’s Work on
de originais a Role.
que publica Nova tradução
num tomo
único
Preparação e
Construção
Tabela 1.

Por conseguinte, ao encontrar omissões, como já comentado acima, na tradução


ao português, foi possível concluir que a versão portenha de El Trabajo del Actor sobre Sí
Mismo En El Proceso Creador de la Encanación, possui trechos inexistentes na brasileira A
Construção da Personagem, o que levou a interpretações equivocadas dos pensamentos
originais.
Depois do levantamento das diferenças entre as traduções, concentramo-nos em
examinar os Anexos da obra El Trabajo del Actor sobre Sí Mismo En El Proceso Creador de
la Encanación. A importância do desenvolvimento do “sistema” stanislavskiano para o
processo e criação artística do trabalho do ator e para o desenvolvimento da musicalidade a
partir da acentuação, trecho inexistente na versão portuguesa de A Construção da
Personagem.

1. DESENVOLVIMENTO
Nestes Anexos podemos encontrar trechos “inéditos” em português, não
contemplados na versão ao nosso idioma, e outros que aparecem (re)escritos em nossa
variante, porém em ordem de publicação totalmente diferenciada.
Os trechos que vamos aqui examinar são tirados dos I. Materiales Suplementarios
para el Tercer Tomo, dos Anexos. No corpo do texto apresentaremos os escritos de
Stanislavski traduzidos do espanhol, e, em alguns casos, no rodapé, transcreverei as redações
do original espanhol.
Podemos ver, na versão espanhola, um quadro fundamental para o entendimento
do processo que estudava o autor e ausente em nossa versão. Para descrever o que aconteceria
na “alma” do artista durante o processo de criação, Stanislavski apresenta o seguinte
esquema, infelizmente inexistente na obra em português. Este esquema abaixo, fundamental e
impactante, existe na sua versão original russa (1938), conforme nos descreve o psicólogo
Achilles Delari Junior9:

9
DELARI JUNIOR, Achilles. Stanislavski sobre "perejivanie" e "voploshtchenie". Disponível em:
http://vigotskibrasil.blogspot.com/2009/06/stanislavski-sobre-perejivanie-e.html .Acesso em 20 de jul. de 2009.
Gravura 1

Igualmente, Achilles Delari Junior10 traduz, de forma ainda inicial, ao português, a


tabela acima (STANISLAVSKI 1938), que tomamos a liberdade de registrar: Observem-se as
letras em preto a esquerda (experiência, vivência, etc.) e a direita (personificação, encarnação)

10
DELARI JUNIOR, Achilles. Stanislavski sobre "perejivanie" e "voploshtchenie". Disponível em:
http://vigotskibrasil.blogspot.com/2009/06/stanislavski-sobre-perejivanie-e.html .Acesso em 20 de jul. de 2009.
como nos aponta o tradutor11. Mais à frente vamos discutir os termos de cada um dos passos
omitidos, embora sigamos, por coerência, a terminologia da tradução da Quetzal.

Gravura 2.
Na figura da página anterior, como podemos notar, temos uma numeração que vai
construindo um processo, e como uma árvore, brota de baixo para cima, da raiz às folhas, de
1 (um) a 15 (quinze). O autor descreve inicialmente os três primeiros fundamentos da arte da

11
Diponível em: http://az.lib.ru/s/stanislawskij_k_s/text_0050.shtml. Acesso em 20 de jul. De 2009.
interpretação, a qual o ator deve sempre recorrer (itens um a três). Vejamos em suas palavras
trazidas pela edição da Quetzal:

N° 1. A primeira diz: A arte do ator dramático é a arte da ação interna e


externa.

N° 2. A segunda base é a fórmula de Pushkin: A verdade das paixões,


sentimentos que parecem verdadeiros, em circunstâncias dadas […]

N° 3. A terceira base: A criação da própria natureza, através da


psicotécnica consciente do artista (Stanislavski 1997, p. 351 – Grifos do
autor)12

Desta forma percebemos claramente sua visão de que o trabalho do ator não está
somente na construção interna, visão altamente difundida hoje no Brasil, ou somente na
externa, porém ela reside na ligação ou intercomunicação entre as forças externas e internas.
Já quando Stanislavski se refere a “verdade das paixões”, item número dois, Merener, em sua
nota de rodapé (apud Stanislavski 1997, p. 351) aponta que Stanislavski:

[...] expressa aqui a idéia de Pushkin, com suas próprias palavras. No artigo
Sobre el drama popular y el drama “Maria la posadera” escreve Pushkin:
“Paixões verdadeiras, sentimentos verossímeis nas circunstâncias dadas: eis
aquilo que exige nossa mente do autor dramático”. (Grifos em itálicos do
tradutor)13

Dessa maneira, os aforismos de Pushkin14, aplicados ao trabalho do ator, remetem


explicitamente a que o ator não deve criar sentimentos reais, mas deve trabalhar para que sua
técnica desperte a legitimidade interior desses sentimentos.
No terceiro alicerce dos fundamentos da arte do ator, o autor refere-se a uma das
bases do seu “sistema” que é a psicotécnica ou psicofísica. Esta, como Stanislavski (1986)
afirma em A Construção da Personagem, é um processo que desenvolve técnicas psíquicas
atorais conscientes que objetivam a ativar a criação inconsciente ou “subconsciente” da

12
Em espanhol: “ N° 1. La primera dice: El arte del actor dramático es el arte de la acción interna
y externa.N° 2. La segunda base es la fórmula de Pushkin: La verdad de las pasiones, sentimientos que parecen
verdaderos, en circunstancias dadas […] N° 3. La tercera base : La creación de la misma naturaleza, a través de
la psicotécnica consciente del artista”.
13
Ao espanhol: “[…] expresa aquí la idea de Pushkin con sus propias palabras. En el artículo Sobre
el drama popular y el drama “Maria la posadera” escribe Pushkin: “Pasiones verdaderas, sentimientos
verosímiles en las circunstancias dadas: he aquí lo que exige nuestra mente del autor dramático”.
14
O moscovita Aleksandr Sergueievitch Pushkin (1799 – 1837) foi um grande poeta, dramaturgo e
romancista, entre suas obras podemos citar O Cavaleiro de Bronze e O Prisioneiro do Cáucaso.
natureza imaginada, nas circunstâncias dadas pelo autor, pelo texto, diretor, etc. Segundo o
autor a psicotécnica conduz o ator a caminhos verdadeiros. E, pela palavra “verdadeiro”,
entendamos como orgânicos ao processo imaginário e concreto do ator.
Merener comenta em nota que em algumas passagens dos escritos, Stanislavski
acrescenta uma quarta base de seu “sistema”: a arte como criadora da vida do espírito
humano. Uma compreensão abrangente do significado da arte e da arte teatral que facilita o
entendimento de suas técnicas de atuação e direção, no qual o objetivo da arte é criar um
outro universo dentro da vida humana, a vida criadora e imaginária. Por conseguinte, seu
sistema nunca poderia estar limitado apenas a aplicação em um estilo, como o naturalismo,
mas sim, destinado a produzir várias naturezas no imaginário da humanidade.
Como vemos os fundamentos do artista, propostos por Stanislavski, concentram-
se nestes três itens, da ação ao subconsciente, os quais relacionam tanto o interior como o
exterior do ator e da personagem.
Dando prosseguimento aos escritos de Stanislavski em foco, ausentes na versão ao
português, mas fundamentais para a compreensão do “sistema”, o diretor moscovita
prossegue argumentando que essas três bases principais possuem duas grandes e fortes
plataformas de onde se elevam: “N° 4. O processo da vivência [...] N° 5. O processo da
encarnação (STANISLAVSKI 1997, p. 351 – Grifos do autor)”.
No livro El Trabajo del Actor sobre Sí Mismo en El Proceso Creador de las
Vivencias, Stanislavski (1977) assegura que a vivência do papel é o trazer de tudo aquilo que
é mais humano do ator para o palco, mas de forma artística. E é desta maneira que o ator não
deve trazer somente o exterior da personagem para o palco, ele precisa emprestar a sua alma
para a criação de uma outra vida, uma segunda natureza artística, composta, que obedeça as
leis do palco e da beleza.
Stanislavski (1997) continua sua explicação dizendo que são três as grandes
forças motrizes da vida psíquica: intelecto, vontade e sentimento ou dito, de outra forma, a
razão, vontades e o sentimento. Percebe-se que o autor continua seu processo pleno de
relacionamento entre razão, vontade, emoção, o que leva a quilômetros de distância do senso
comum de que o trabalho de ator de Stanislavski é apenas o trabalho emocional. Estes são os
fundamentos do trabalho criador do ator, que relacionam ação, criação, intelecto, vontade;
entre outras. Aliás a razão é um processo inicial neste esquema. Ou ainda, como descreve o
autor os elementos de sua tabela acima:
[...] A principio, estas tendências são fragmentadas, dispersas, desordenadas
e caóticas, porém a medida que se clarifica o objetivo básico da criação se
tornam ininterruptas, diretas e harmônicas [...] A esfera interior de nosso
espírito, nosso aparato de criação com todas suas qualidades, capacidades,
dotes, condições naturais, hábito artístico, procedimentos psicotécnicos, aos
que antes chamamos “elementos”. São necessários para cumprir o processo
da vivência […] 15 (STANISLAVSKI 1997, p. 351-352)

Podemos evidenciar que esse trabalho de ator assim como a edificação da


personagem, proposto pelo diretor moscovita, estão diretamente relacionados aos processos
de experiências pessoais do ator e da criação da vivência. Porém é necessário corroborar que
estes não são expurgações psicológicas de sentimentos interiores, ou seja, não são a simples
revivescência dos sentimentos e emoções que regem a trajetória do ator.
Para afirmar isso, podemos remeter ao relato de Mel Gordon – em sua introdução
do livro Lecciones para el Actor Profesional, de Michael Chejov16 no qual Gordon relata que
Stanislavski, primeiramente, cumprimentou Chejov por uma atuação que este fizera em um
exercício de memória motiva. Entretanto, mais tarde, Stanislavski o repreendera, quando
soube que o pai deste ator se encontrava enfermo e que Chejov utilizara suas emoções
particulares para o exercício.
Portanto, notamos que para Stanislavski o ator deve partir da sua vida para a
criação da personagem. Entretanto, este deve fazê-lo através de analogias e não pela utilização
direta e pura de sua história, como um simples exercício psicodramático que recupera
aspectos da vida do ator. Procura-se sim criar uma outra vida, uma vida simbólica.
Outro ponto importante a ressaltar, tal como expõe Stanislavski (1977), é que as
terminologias utilizadas por ele, como “subconsciente” e “intuição”, não têm relações com os
seus sentidos filosóficos, mas apenas com os jargões teatrais criados pelos atores em seu
ambiente diário de trabalho.
Este esquema acima, fundamental para o entendimento da construção do sistema
stanislavskiano e ausente na publicação ao português, que deveria ser um dos fundamentos
15
Em espanhol: “ […] Al principio, estas tendencias son fragmentadas, dispersas, desordenadas y
caóticas, pero a medida que se aclara el objetivo básico de la creación se vuelven ininterrumpidas, directas y
armónicas. […] La esfera interior de nuestro espíritu, nuestro aparato de creación con todas sus cualidades,
aptitudes, dotes, condiciones naturales, hábito artístico, procedimientos psicotécnicos, a los que antes llamamos
“elementos”. Son necesarios para cumplir el proceso de la vivencia […]”
16
Ao português podemos encontrar o nome deste ator/autor como Mikhail Tchekhov e/ou Michael
Tchekhov. Este foi sobrinho do dramaturgo, Anton Chéjov (1860 – 1904), aluno e mebro da cia de Stanislavski,
o qual aparece como um disseminador de técnicas de interpretação nos EUA.
para o entendimento de seu “sistema”, ainda traz mais dados para seu entendimento do que é a
vida psíquica: “[...] as mesmas linhas, mas já transformadas, das tendências dos motores da
vida psíquica do artista-personagem [...] (STANISLAVSKI 1997, p. 352-353 – Grifos dos
autores)”.
Stanislavski segue falando na adoção dos tons e cores do próprio artista, nos quais
as fronteiras “[...] das tendências do intelecto, a vontade e o sentimento se tornam
irreconhecíveis (N° 12)“ do ator, não sendo, assim, identificáveis; ou seja, no “[...] laço no
que se enlaçam todas as linhas das tendências dos motores da vida psíquica
(STANISLAVSKI 1997, p. 352-353)”, o qual atingirá o estado espiritual que Stanislavski
chama primeiro de “disposição interior na cena” e que depois da transformação e de sua
aproximação ao papel, ele a denomina como “linhas de ação central”.
Dessa forma, se drama é ação, então o trabalho do ator é construir pela ação estas
“linhas da ação central” do drama. Ou ainda como nos recorda o tradutor Merener, em uma
nota de rodapé, de que Stanislavski afirma:

Gravem-se o mais profundo e firmemente que possam a ação central do


papel, a obra ou o ensaio e atravessem com ele, como se fora com uma
agulha com fio, todos os “elementos trabalhados” de sua alma humana, as
unidades e objetivos elaborados da partitura do papel e dirija-os para o
superobjetivo da obra representada. Entrelacem todo o que tem cruzado em
um cordão comum. Em resumo, realizem na prática o que se indica no
desenho17 (STANISLAVSKI 1997, p, 353 – Aspas e grifos dos autores)

Nesta síntese, não obstante, Stanislavski (1997) configura ainda um superobjetivo


ilusório, porém não definido totalmente, pois o teatro é uma obra coletiva onde se entretecem
o público, o ator, o autor, os atores, o texto e toda equipe artística.
Como podemos notar, voltando ao desenho de Stanislavski da página 5, o lado
direito está intrinsecamente conectado ao lado esquerdo. Dessa forma, um não é possível sem
o outro, ao contrário o prédio stanislavskiano ruiria. Não é possível a encarnação sem a
vivência. Stanislavski (1997) arremata afirmando que os pontilhados, na figura, representam a
encarnação externa (lado direito) e a vivência interior (lado esquerdo), no processo do

17
Em espanhol: “[…] Grábense lo más profunda y firmemente que puedan la acción central del
papel, la obra o el ensayo y atraviesen con él, como si fuera con una aguja con hilo, todos los “elementos
trabajados” de su alma humana, las unidades y objetivos elaborados de la partitura del papel y diríjalos hacia el
superobjetivo de la obra representada. Entrelacen todo lo que han cruzado en un condón común. En resumen,
realicen en la práctica lo que se indica en el dibujo”.
trabalho do ator sobre si mesmo. Assim sendo, confirma-se pelas palavras do próprio autor a
necessidade do processo de ensaio ser a construção amalgamada de um ao outro, mas isso é
uma história para outras histórias.
2. BIBLIOGRAFIA

CAMARGO, Robson Corrêa. O espetáculo do melodrama. Tese de Doutorado em Artes


Cênicas. Orientação: Ingrid Dormien Koudela. ECA - Universidade de São Paulo: São
Paulo, 2005.
DEUSELICE, Janaina; CAMARGO, Robson Corrêa de. Razão e Emoção, Entendendo a
Relação Ator-Personagem. In: XVI Seminário de Iniciação Científica 2008,
Goiânia:UFG, 2008. p. 6489-6496.
CHEJOV, Michael. Lecciones para el Actor Profesional. Tradução de David Luque.
Barcelona: Alba, 2006.
GUINSBURG, Jacó. Stanislávski e o Teatro de Arte de Moscou: do realismo externo ao
tchekhovismo. São Paulo: Perspectiva, 2006.
MAUCH, Michel; CAMARGO, Robson Corrêa de. O Método Stanislavski: a edição de A
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XVI Seminário de Iniciação Científica, 2008, Goiânia: UFG, 2008. p. 4411-4425.
RUFFINI, Franco. Novela Pedagógica: Un Estudio Sobre los Libros de Stanislavski.
Tradução de Margherita Pavia. In: Revista Máscara: Stanislavski, Eso Desconocido.
Escenología: México, n. 15. Out/1993.
STANISLAVSKI, Constantin.Mi Vida en el Arte. Tradução de N Caplan. Buenos Aires:
Diáspora, 1954.
______. Minha Vida na Arte. Tradução de Esther Mesquita. São Paulo: Anhembi, 1956.
______. A Preparação do Ator. Tradução de Pontes de Paula Lima. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1968.
______. El Trabajo del Actor Sobre Sí Mismo en el proceso Creador de las Vivencias.
Tradução de Salomón Merener. Buenos Aires: Quetzal,1977. 386 pgs.
______. El Trabajo del Actor Sobre su Papel. Tradução de Salomón Merener. Buenos
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Tradução de Salomón Merener. Buenos Aires: Quetzal, 1983. 454 pgs.
______. A Construção da Personagem. Tradução de Pontes de Paula Lima. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1986.
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