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Escravos: Fugas e Fugas* RESUMO ‘As fugas de escravos tiveram um sentido diferente em momentos di- ferentes. Durante 0 século XIX, os escravos fugitivos buscavam, funda- mentalmente, viver nas cidades, por- tanto a primeira grande barreira pa- ra impedir as fugas era a propria comunidade que os cercava, com seus valores, perspectivas e limita- gOes que, antes de tudo, permitiu aos escravos a percepcfo de um wni- verso em rdpida mudanga na diregao do mercado de trabalho livre. ‘As fugas deyem ser estudadas © analisadas em sua especificidade, di- ferente portanto de outras manifes- tacdes de inconformismo e resistén- cia. Ademir Gebara (Depto. de Histéria da UNICAMP) ABSTRACT Runaways had different meanings at different moments. During the XIXth century, the principal des- tination of fugitive slaves was the cities and the first great barrier against runaways was the surroun- ding community with its values, perspectives and limitations, which above all gave slaves the per ception of a new world changing rapidly toward that of a free labour market. Running away needs to be cate- gorized and analysed separately. It is a distinct form of protest which differs form other manifestations of slave resistance to the prevailing social order. O estudo da resisténcia do escravo no Brasil tem j4 um pon- deravel volume de trabalhos publicados.' Nao obstante, o termo resisténcia é freqiientemente usado de maneira pouco sistematica: * © presente artigo ¢ parte de um dos capftulos da tese de PhD apresentada na LSE, Universidade de Londres, em janeiro de 1984. A tese em questio, “The transition from Slavery to Free Labour Market in Brazil: 1871/1888. Slave Legislation and the Organization of the Labour Market”, esti sendo revista e preparada para publicagéo gragas a0 apoio do CNPq. [ Rev. Bras. de Hist. |S. Paulo [ v. 6 n® 12 | pp. 89-100 | mar.lago. 1986 | intimeras formas ¢ tipos de protestos de escravos so agrupados sem a necesséria critica ¢ andlise de suas significagdes e caracteristicas, muitas vezes distintas. E necessério, de inicio, observar que uma fuga, 0 assassinato de um feitor, um suicidio e um roubo — quando cometidos pelo escravo — tém uma conotacio comum dada pela evidéncia de um comportamento desajustado; contudo, cada uma dessas diferentes manifestages de inconformismo tem uma signi. ficagio politica diferenciada. Com relagdo ao problema especifico das fugas, é necessério um enfoque que coloque essa questfio para além do Ambito mais geral da temética da resisténcia e do protesto, pois, com relacdo as fugas existem particularidades e implicagdes que as distinguem das outras possibilidades de resisténcia, Entre os trabalhos que se ocuparam da temética mais geral do protesto ¢ da resisténcia, Goulart, Queiroz e Marcos dos Santos? apresentam maiores detalhes na discusso da questo das fugas. Para Goulart, os “maus tratos e excessivos trabalhos foram, com efeito, as principais causas e razées mais comuns para as fugas de escra~ vos”.> Suas afirmagées derivam do estudo do fendmeno da rebeldia em todo o Brasil, apoiado basicamente em testemunhos de viajantes, telatétios de presidentes de provincia e de chefes de policia. Seu ar- gumento se desenvolve e conclui afirmando que a fuga, além de causar prejuizos econémicos, necessitava ser combatida porque cons- tituia um mau exemplo para os escravos néo fugitives. A repressdo as fugas, por sua vez, provocava a delingiiéncia e a marginalidade, forgando o foragido ao roubo e a vida “fora da lei” As conclusées do autor, ao nivel das generalidades, sao corre- tas, embora quando se trate de explicar o fenémeno em dimensdes diferenciadas, assim como de integrar essa explicagio em uma rea- lidade social especffica, a generalizaco revela-se insuficiente, pois todas as fugas em todas as épocas se explicam da mesma forma. Goulart utiliza a documentagio sobrepondo casos ocorridos no infcio do século XVIII com outros em fins do XIX, retornando a meados do século XVIII. Isso sem considerar a especificidade nordestina e as particularidades paulistas. Em resumo, sua postura impossibilita uma visio mais integrada do fendmeno, seu trabalho torna-se mais crénica do que uma anélise histérica. Queiroz, por outro lado, trabalha com o relatério do presidente da Provincia de Sio Paulo de 1872, onde sao apontadas 349 prisdes de escravos foragidos, e indicados os seguintes municipios com maior incidéncia de fugas: Sao Paulo — 69 —, Campinas — 59 — e Santos — 29.5 A autora, baseada nesses dados, atribui o alto indice de fugas em Campinas como sendo “explicadas pela crueldade que 90 14 imperava”; somando aos némeros de Campinas os nimeros veri- ficados em S40 Paulo e Santos, Queiroz formula um ponto de vista mais geral sobre o problema. Ela argumenta que os altos indices de incidéncia de fugas nas fazendas, durante o periodo, demonstram a rejeicio do negro ao sistema e representam evidéncia de uma agéo permanente que refuta a argumentacdo segundo a qual a escravidio brasileira era mais humana e branda.’ Como af se evidencia, a tese de Queiroz est4 vinculada ao debate suscitado pelas conhecidas teses de Freire, Tannenbaun e Elkins, Tomando as fugas como exemplo, Queiroz mostra que nao existia aqui a passividade dos escravos e que a escravidao no Brasil era também violenta, A concluséo de seu trabalho, como também no caso do de Goulart, é de que as fugas, na medida em que se avolumam, contribufram para inviabilizar a escravidao. O problema é que o conjunto de conclusdes que é possivel ex- trair destes trabalhos nfo permite especificar o que diferencia a fuga das outras formas de protesto; nem tampouco permite com- preender estas fugas em conjunturas especfficas, onde muitas vezes fugir, que é um ato isolado de protesto, pode transformar-se em um ato politico com conseqiiéncias mais complexas. Marcos dos Santos elabora mais cuidadosamente a questo da resistencia do escravo, Sua argumentacio inicia-se com o pressuposto de que os africanos deveriam ser ajustados ao comportamento escravo. Esse ajustamento se processaria de duas maneiras. De um lado, pelo uso explicito ou difuso da violéncia contra os escravos; de outro lado, pelo uso de mecanismos de controle social mais sofisticados: o clero e a Igreja, na medida que veiculavam um conjunto de valores que induzia a obediéncia, respeito, docilidade e conformismo, Para o autor, os escrayos responderam a esses mecanismos ou se adaptando ou se rebelando. A partir da supresstio do tréfico, o nivel da violéncia contra os escravos sofreu mudangas sensfveis. O escravo passaria a ser mais bem tratado e o Estado viria a assumir boa parte dessa violéncia. Com estas premissas, Marcos dos Santos desenvolve seu argumento para analisar as diferentes modalidades assumidas pelo protesto do escravo: quilombos, revoltas coletivas e protestos individuais, dos quais a forma mais comum foi a fuga. Ele afirma, a esse respeito, que o motivo mais freqiiente para as fugas eram os maus tratamen- tos ou ainda a ameaca de venda a um novo senhor, com a inevitdvel conseqiiéncia de transferéncia para uma nova fazenda.’ As conclus6es de Marcos dos Santos trazem uma contribui¢ao nova & questo da resistencia do negro: a impoténcia do escravo diante da organizagéio social escravista: 91

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