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4° Tempo A Funcdo Social do Historiador* Enrique Florescano** A Octavio Paz A histéria é a disciplina do “autoconhecimento humano (...) conhecerse a si mesmo significa conhecer 0 que se pode fazer, c posto que ninguém sabe 0 que pode fazer até que o tenta, a tinica forma para que 0 homem saiba o que pode fazer é averiguar 0 que ele j4 tem feito. O valor da histéria, por conseguinte, consiste naquilo que nos ensina sobre o que o homem tem feito e, nesse sentido, sobre o que € 0 homem”. R. G. Collingwood Diferentemente do cientista, que no século XTX foi ungido com a auréola do génio solitario, o historiador considerou-se, desde os tempos mais antigos, um devedor de seu grupo social. Ele conhece 0 offcio através dos ensinamentos que recebe de seus mestres. Aprende a arquitecura de sua disciplina desmontando e refazendo os modelos herdados de seus antepas- sados. Descobre os segredos da arte através da andlise que faz das variadas técnicas desenvolvidas por seus colegas. Seus livros de cabeccira stio obras escritas em linguas alheias A sua € nutridas por culturas as mais diversas Os desafios que Ihe impdem seus companheiros de geragio ¢ a ine- xorivel competigao a que é submetido em nossos dias so 0s incentivos que * A primeira versio deste ensaio foi publicada em francés ¢ em inglés na revista Diagene, Paris, Gallimard, 1994, n®. 168, pp. 43-51. O texto em espanhol apareceu na revista Vuelta, janeiro de 1995 (pp.15-20). Nos anos seguintes encontrei textos ¢ idéias que complemen- tavam ou enriqueciam minhas concepgSes acerca da fungio social do historiador. A versio atual incorpora essas descobertas. ** Estudou no Colégio do México € na Universidade de Paris-Sorbonne. Dirigiu o Institu- to Nacional de Antropologia ¢ Histéria do México. Para muitos, € 0 mais importante histo- riador mexicano vivo. Entre suas obras, destaca-se Meméria mexicana, Fondo de Cultura Econémica, 1994. Tempo, Rio de Janeiro, Vol. 4, 1997, p. 65-79 Oo Artigos 0 induzem a se superar. De fato, desde 6 momento em que escolhe a sua vocagiio até que aprende a processé-la, o historiador esta rodeado de condi- cionantes sociais inevitaveis. De um lado, é um produto social, um resulta- do de diversas correntes coletivas; de outro, um individuo premido pelo desejo de superar herangas do passado e renovar seu oficio a partir dos de- safios que Ihe impde o presente. iF Quando o tapete magico da historia nos transporta a tempos ja trans- corridos € nos aproxima das tarefas que nossos antecessores atribufram ao resgate do passado, percebemos que as fungoes da histéria tem sido varia- das. Observamos, também, que boa parte dessa tarefa tem-se concentrado no objetivo de prover os grupos humanos de identidade, coesao ¢ sentido coletivo. Desde os tempos mais antigos, os povos que habitaram 0 territério que hoje chamamos de México apelaram & recordagio do passado para com- bater a caminhada destrutiva do tempo sobre as fundages humanas, para tecer solidariedades assentadas em origens comuns, para legitimar a posse de um tertitério, para afirmar identidades enraizadas em tradigées remo- tas, para sancionar o poder estabelecido, para respaldar — embasados no prestigio do passado —reivindicagées do presente, para fundamentar num passado compartilhado a aspiragdo de construir uma nacao ou, ainda, para dar sustento a projetos atirados a incerteza do futuro.? Em todos esses casos, a fungito da historia é dotar de identidade a diversidade de seres humanos que formavam a tribo, 0 povo, a patria ou a nagao. A recuperagao do passado tinha por fim criar valores sociais compar- tilhados, incutir a idéia de que o grupo ou a nagao tinham uma origem co- mum, inculear a convicga0 de que a semelhanga de origens constitui um elemento de coesao entre os diversos membros do conjunto social para enfrentar as dificuldades do presente e assumir os desafios do futuro. Dotar um povo ou uma nagao de um passado comum e fundar nessa origem remota uma identidade coletiva é, talvez, a mais antiga © perma- nente fungio social da historia. Foi inventada ha muito tempo ¢ continua vigindo nos tempos atuais. Como disse John Updike, o historiador man- tém-se como 0 especialista da tribo encarregado de relatar aos demais o que *. Enrique Florescano, Memoria mexicana, México, Fondo de Cultura Econémica, 1994. 66 A Fungao Social do Historiador cada grupo precisa saber: “Quem somos? Quais foram nossas origens? Quem foram nossos antepassados? Como chegamos a este ponto ou a esta encru- zilbada da hist6ria?”* Essa fungao primordial explica quao atraentes sio o relato hist6rico © sua vasta audiéncia, continuamente renovada. Atrai as pessoas comuns, bem coma o curioso, porque o relato histérico os transporta ao misterioso lugar de suas origens. Seduzo auditério mais variado, porque o brinda com uma viagem a lugares remotos € se dispde a esclarecer as origens do grupo. Ao criar uma ponte entre o passado distante ¢ 0 presente incerto, 0 relato hist6rico estabelece uma relago de parentesco com os antepassados, pré- ximos ¢ longinquos, € um sentimento de continuidade no interior do gru- po, do povo ou da naga. Ao dar testemunho das épocas infaustas ou dos anos de gl6ria, ou ao rememorar os esforgos realizados pela comunidade para defender 0 tertitério € torné-lo proprio, cria lagos de solidariedade e uma relacdo intima entre 0s membros do grupo e 0 espago por eles habitado. iT Se de um lado, no entanto, a histéria nos introduz na identidade do grupo € na procura daquilo que nos é préprio, de outro nos obriga a regi crar a diversidade do devir humano, nos leva ao reconhecimento do outro e, nesse sentido, nos torna participes de experiéncias no vividas, mas com as quais nos identificamos € forramos a nossa concepgao da pluralidade da aventura humana. Para 0 estudioso da histéria, o mergulho no passado é um encontro sempre passivel de causar confusdo entre formas de vida distintas, marcadas pela influéncia de diversos meios naturais ¢ culeurais. Em virtude desses *, John Updike, “El escritor como conferenciante”, Ler Jornada Semanal, 19 de fevereiro de 1989. Nesse sentido, diz Owen Chadwick (Ze secularization of the European mind in the 19th century, Cambridge, Cambridge University Press, 1995, p. 189 ): “No Auman being is satisfied if he knows nothing of his father or mother. And no human society is content unless it knows how it came to be, and why it adopted the shape and the institutions which it finds. The European mind demands imperiously the perspective which history alonecan give. Nescire autem quid antiquan natus sts acciderit, id est semper esse puerum, (Cicero, Orator, 120) — that is, you cannor even grow up without history.” Ou seja: “Nenhum ser humane fica satisfeito se nada souber de sua mae ou de seu pai. E nenhuma sociedade humana fica contente a ndo ser que saiba coma veio a ser € por que adotou a forma ¢ as instituigées que encontra. A mente curopéia exige imperio- samente a perspectiva que s6a histéria pode dar. Neseire autem quid antiquan natussis acciderit, id est semper esse puerum (Cieeto, Orator, 120) — isto é, no se pode nem mesmo deixar a infaincia sem a historia.” oF

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