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Arte, comunicação e o território intermidial do livro de artista

Article · January 2002


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Paulo Silveira
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
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Arte, comunicação e o território intermidial do livro de artista

Paulo Silveira1

Resumo
O livro de artista (em sentido estrito) é uma obra de arte contemporânea que compartilha ou ocupa
territórios da comunicação social e do projeto gráfico, disponibilizando-se como uma mídia
alternativa para ampla circulação entre o grande público ou entre públicos específicos, dentro ou às
vezes fora do mercado de arte.
Palavras-chave: Livro de artista. Livro-objeto. Intermídia. Arte contemporânea. Arte. Comunicação
visual.

Abstract
The artist’s book (in a strict sense) is a work of contemporary art that shares or overlaps the territories
of social communication and graphic design, making itself available as an alternative media for full
circulation among general or specific audiences, inside or sometimes outside the art market.
Keywords: Artist’s book. Book-object. Intermedia. Contemporary art. Art. Visual communication.

A arte (especialmente as artes visuais, como o desenho, a pintura, a escultura etc.) e a


comunicação (jornalismo, publicidade, edição e editoração de livros etc.) operam sobre
discursos éticos e morais diferentes, frequentemente antagônicos, às vezes chegando
a ser conflituosos, outras vezes criando relações da mais íntima dependência. Perverter
as funções de uma dessas atividades pode revelar a eventual necessidade de socorro
por parte da outra. As estratégias de atuação e as particulares concepções do que seja
um empreendimento criam necessidades objetivas específicas, ao mesmo tempo em
que revelam a existência de muitos elos de coabitação. Esses liames de comunhão nem
sempre são óbvios, podendo estar escondidos pelos equívocos a que são propensos
os orgulhos profissionais ou oferecer um espetáculo intencionalmente sutil.

Isso é especialmente observável em uma das mídias mais antigas, o livro, talvez o
suporte de discurso mais universal, sob os pontos de vista geográfico, histórico ou
cultural. Seus fundamentos de ordem e credibilidade (aceitos como imperativos e
inerentes) parecem ter-lhe agregado respeitabilidade do mais alto grau dentre os
veículos de comunicação. A informação agregada à obra (informação direta textual ou
ilustrativa, descritiva ou narrativa, ou reflexões dissertativas) estabeleceu atividades,
normas, gostos e critérios de artesania agrupados nas assim chamadas (por séculos)
“artes do livro”: da caligrafia e da iluminura à encadernação, antes; da concepção ao
acabamento, agora. Hoje a formação profissional organizada especifica as atividades:
edição, projeto gráfico, programação visual, diagramação, ilustração, editoração
eletrônica etc. Ainda que esses detalhes venham a ser comentados adiante, o que de
fato pretende-se nestas reflexões é uma apresentação ao fenômeno de troca acontecido
entre as artes visuais e a publicação de livros, que gerou uma obra de vanguarda
simultaneamente artística e editorial no final do século XX: o livro de artista. Surgido na
arte, ele fundou uma categoria que herdou o seu nome, e que reúne o próprio livro de
artista, o livro-objeto e outras obras assemelhadas, relacionadas ou mesmo
remotamente referentes ao livro.

1 Artigo publicado originalmente pelo Centro de Ciências da Comunicação, Universidade de


Caxias do Sul, na revista Conexão - Comunicação e Cultura, v. 1, n. 2, jul./dez. 2002. Ver:
http://www.ucs.br/etc/revistas/index.php/conexao/article/view/82/0.

1
O conceito de intermídia

Podemos considerar os territórios de ligação, de sobreposição e de interseção (ou


interpenetração) dos mundos da arte e da comunicação como sendo constituídos pelo
tecido de uma relação que não pode ser reduzida a um número finito (mesmo que
enorme) de eventos. Porém, se insistirmos em buscar uma hipotética pureza identitária
nas ocorrências fora do espaço interdisciplinar, ainda assim percorreremos territórios
não-comuns a ambos os campos que, mesmo que pareçam de extrema autonomia, têm
em si um ou outro sinal de um contato remoto. Isso é tão mais verdade quanto mais
perto estivermos do nosso momento histórico presente. É impossível falarmos de
autonomia da comunicação em relação à arte. Os pressupostos estilísticos do trabalho
criador, os legados histórico e cultural, as considerações estéticas, o gosto, as técnicas
e as ferramentas estão no corpo das mídias, construindo-as, dando-lhes forma. O
movimento oposto de influências também ocorre, mas não é tão evidente, já que a
criação artística é inequivocamente mais autônoma, podendo até mesmo reivindicar seu
extremado e controverso direito à incomunicabilidade. De fato, parece ser mais
frequente o discurso estético atacar as patologias da comunicação de massa do que
elogiar suas insuficientemente discutidas virtudes. Não se trata de a arte ser uma
epifania, o que ela não é. Ela pode, de fato, oferecer-se em uma liberdade invejável,
quase sublime, o clássico pelo clássico. Mas o mundo não pertence a semideuses
solitários. E os últimos cento e poucos anos viram surgir um contingente crescente de
artistas que acreditavam ver nessa solidão uma postura onanista quase cega, a ser
evitada, se não combatida, através de ações multiplicadoras e da conquista ou criação
de espaços alternativos.

Embora existam muitos estudos gerais voltados aos problemas formais (especialmente
os da percepção e da comunicação visual), ainda pouco foi aprofundado sobre as novas
mídias ou o reaproveitamento de veículos já existentes, mas utilizados pelos artistas
modernos e contemporâneos, às vezes com propostas transgressivas. Nossa atenção
é despertada, aqui, pelo que é recente, mesmo que já não seja tão novo quanto
pareceria à primeira vista. No espaço comum (ou no “espaço do entre”), além dos bens
e serviços culturais que não são arte, interagem os atores e gestores das artes visuais,
das atitudes performáticas, do teatro, da dança, do cinema, da literatura, da música. É
um grande e multifacetado círculo de ideias, motor da cultura dinâmica típica de nosso
tempo e de nosso espaço urbano, renovador ou criador de linguagens, gerador de
diálogos e encontros, comentarista das contradições entre as artes de ponta e os canais
de vulgarização. Estão nesse fluxo o espetáculo marginal, a poesia concreta, a
performance, o happening, a arte postal, o cinema experimental, a videoarte, a arte
digital, o impresso alternativo. Ali o artista olha um pouco menos para o próprio umbigo,
vê ao redor e redescobre a atenção: ali existe trânsito. Estamos falando do espaço da
intermídia e das manifestações sob sua influência.

O conceito de intermídia (não confundir com multimídia) pode ser procurado num veículo
por excelência para transportá-lo, uma obra gráfica alternativa. Está muito bem-
apresentado pelo inglês Dick Higgins (1938-1998) no seu livro Foew&ombwhnw: a
grammar of the mind and a phenomenology of love and a science of the arts as seem
by a stalker of the wild mushroom, publicado em 1969. Com a aparência de uma
pequena bíblia, a obra é toda dividida em duas colunas descontínuas, com artigos,
experimentos gráficos, poesia visual, desenhos, roteiros para performances e escritos
diversos, numa disposição diferente da esperada pelo leitor comum. O artigo
“Intermídia” (no original, Intermedia), inicia afirmando: “Muito do que de melhor está
sendo produzido hoje parece cair entre mídias. Isso não é acidente.” Foi publicado antes
no primeiro número do boletim de sua editora, The Something Else Newsletter, em
fevereiro de 1966. Higgins foi um dos fundadores do grupo Fluxus, formado por artistas
de diversos países que pregavam a intensa circulação do pensamento artístico através

2
de qualquer meio disponível na sociedade urbana (o uso intenso de correio foi uma de
suas estratégias), utilizando qualquer suporte ágil quanto à difusão (publicações e
múltiplos gráficos, por exemplo). Embora o grupo original esteja hoje extinto, artistas
remanescentes e adeptos mantêm vivo o espírito original. A editora de Higgins,
Something Else Press, com sedes em Londres e em Nova York, publicou importantes
livros de vanguarda elaborados por escritores, artistas plásticos, músicos, dramaturgos
etc., como John Cage, Merce Cunningham, Robert Filliou, Allan Kaprow, Alison
Knowles, Dieter Roth, Daniel Spoerri, Gertrude Stein, Emmett Wiliams e muitos outros,
incluindo, ainda, Marshall McLuhan (Verbi-Voco-Visual Explorations, 1967).

No artigo Intermedia, como em outros textos do período, a palavra “mídia” (em inglês,
media), é utilizada no sentido amplo, “meio” como veículo e não apenas como técnica
ou substrato, dentro da lógica semântica (desde então dominante) dos meios de
comunicação, e hoje integrada no dia-a-dia de muitos idiomas. O próprio livro de Higgins
acima citado é um produto particularmente interessante desse espaço intermidial. É um
livro de artista, uma obra de arte de vanguarda, característica do século XX, mas que
tem suas raízes em um passado bastante remoto. É certamente devedor dos artefatos
de leitura que registravam as primeiras escritas. É também devedor das evoluções
técnicas que permitiram a mobilidade de volumes e a codificação de sinais e caracteres,
possibilitando o estabelecimento do conceito de difusão. Mas também pode ser um
ferrenho preservador de tradições artesanais, como as do desenho, da pintura e da
escultura. Daí uma característica importante: livro de artista é ao mesmo tempo o nome
de uma categoria artística e de um dos produtos dessa categoria. O que surgiu primeiro?
A coisa ou o conceito?

As identidades da categoria artística

Antes de qualquer conclusão apressada (e incorreta), deve ficar claro que um livro de
arte não é um livro de artista. Um livro de arte é não mais que um livro comum que tem
como assunto a arte, ou seus agentes, ou seus produtos, ou sua história. É uma
classificação comercial utilizada pelos mercados editorial e livreiro, e pode até mesmo
ser utilizada para as edições de luxo, os chamados “livros de mesa”, volumes
requintados de temas diversos (com frequência estranhos à arte), de maior valor
decorativo do que intelectual. Esse livro não nos interessa neste instante, já que não se
trata de obra de arte, por mais esplendoroso que possa ser. É apenas suporte de
informação e, como tal, pertence quase exclusivamente ao mundo da comunicação (e,
às vezes, da bibliofilia). Interessa-nos, aqui, o livro de artista, mesmo, livro ou “quase-
livro” concebido pelo artista para ser uma obra de arte inserida no circuito da mídia, e
por si só transgressivo ao mundo da arte por inseminá-la com conceitos da
comunicação, antes tidos como vulgarizantes. Com o entendimento que temos hoje,
essa designação foi registrada em uma de suas primeiras vezes para uma exposição
no College of Art, ocorrida em 1973, na Filadélfia. Era o momento de desenvolvimento
da arte conceitual internacional e de outros movimentos, tendências e escolas que
reposicionaram os papéis e as estratégias dos principais agentes do mercado das artes:
artistas, críticos, estudiosos, galeristas, público etc. Problemas como valor, circulação e
documentação foram muito discutidos, gerando uma produção artística sem
precedentes. Os livros de artista daquele momento podiam ser livros de fato, mas,
muitas vezes, eram livretos de baixíssimo custo, ou simples folhetos, ou peças
impressas sobre os suportes mais variados. Sempre ou quase sempre múltiplos.

Ao mesmo tempo se multiplicavam as experiências bibliomórficas artesanais sem


tiragem, com aparência de estudos ou ensaios plásticos. Era o ressurgimento dos livros-
objetos e dos livros escultóricos, obras de arte com ocorrências apenas eventuais antes
disso, mas que, agora, exigiam seu lugar num espaço valorizado. Com a vantagem de

3
normalmente serem exemplares únicos, e, portanto, de mais baixo custo de produção,
os livros-objetos podiam oferecer ao artista um caminho para a sua inclusão nesses
movimentos, ainda que de uma forma paralela e sem compromisso com a transgressão
de mercado. Livros-objetos, livros escultóricos e não-livros (esculturas e ações que
remetem ao livro, por exemplo) importam muito pouco aos estudos de comunicação por
serem obras muito passivas, que se dão em espetáculo quase que apenas pelos
critérios de um só mercado, o mercado de arte. Já os livros de artista propriamente ditos
são obras ativas, constituídas de um valor político e social mais evidente, agregando
uma, digamos, mundanidade qualificada. Por vezes se intrometem com determinação e
desenvoltura no mercado, mimetizadas com o livro comum. Caso de alguns trabalhos
de Bruno Munari conhecidíssimos de estudantes de comunicação ou de projeto gráfico
(e, claro, de artes), como Design e comunicazione visiva (1968, em português Design e
comunicação visual) ou Disegnare un albero (1978, aqui Desenhar uma árvore), hoje
melhor compreendidos em sua dimensão artística (DEMATTEIS; MAFFEI, 1998, p. 168-
171).

A energia entre esses polos (publicações gráficas de um lado e objetos plásticos de


outro) gerou formas artísticas híbridas, “remoçou” as técnicas de encadernação artística,
gestou muitos periódicos alternativos (jornais, revistas e boletins) e propiciou o
surgimento e a difusão de posturas críticas. E, além disso, como num movimento de
olhar para trás, fez reconhecer as diferentes origens modernas ou pré-modernas desses
produtos. Cito, como exemplo, os então caros (hoje preciosos itens em leilões de arte)
livros artísticos da passagem do século XIX para o XX, chamados pomposamente de
livres de peintres (livros de pintores, aqui no conservador sinônimo de artista, mesmo
em países de línguas não-francesas), designação que realçava sua especificidade
formal e seu valor comercial. Com frequência são parcerias entre pintores e poetas
(como no encontro de Stéphane Mallarmé e Edouard Manet em Le Corbeau, de 1875,
tradução francesa para The Raven, poema de Edgar Allan Poe) ou grandes volumes
ilustrados (como os álbuns editados por Ambroise Vollard). Simultaneamente ou após o
lançamento dessas obras mais convencionais, produtos mais ousados foram
emprestando novos ares a esse mercado específico. É o caso dos livros eslavos (antes
apenas russos e, depois, soviéticos) e de sua influência, com tipografia experimental
(Sobre dois quadrados, de El Lissitzky, 1922, por exemplo); os livros-objetos e os álbuns
dadás e surrealistas (a chamada Caixa verde, 1934, como ficou conhecida La Mariée
mise à nu par ses célibataires, même, de Marcel Duchamp, coletânea de reproduções
de projetos e anotações para a sua obra homônima realizada vinte anos antes); as
diversificadas experiências do futurismo (Parole in libertà futuriste: tattili-termiche
olfative, 1932, de Tullio d’Albisola e Filippo Tommaso Marinetti) e de outros movimentos
(notadamente a arte postal), além das experiências gráficas propiciadas por manifestos,
produtos ou eventos contestatórios ou libertários (o catálogo da exposição surrealista
de 1947 é um exemplo bastante pitoresco, tendo, na capa, um seio de borracha
esponjosa sobre veludo negro e uma etiqueta com os dizeres “favor tocar”).

Essa reavaliação histórica, somada à consciência do momento presente (presente,


esse, que nasce nos anos 60), consumou a constatação de que uma nova categoria
artística estava estabelecida, já tendo produzido uma quantidade significativa de obras
com repertório e público. Com naturalidade, a categoria passou a ser designada pelo
nome de seu mais ativo representante, o livro de artista, uma obra entendida no seu
todo, conteúdo e contenedor (também participam da categoria as inserções em
publicações não-seriadas e em revistas coletivas, formadas por páginas criadas
especialmente, a page art, além de diversas criações mistas). Um pouco de polêmica
ainda restou, mas quase que apenas para aqueles que defendem o livro-objeto como
sendo o verdadeiro livro de artista. Mas são poucos, já que essa ideia não tem
encontrado fundamentação aceitável. Além disso, os conceitos do que cada coisa é, já
estão formalmente registrados. Vejam-se a esse respeito algumas publicações

4
reguladoras, formuladas para serem seguidas por bibliotecas, museus, acervos, centros
de pesquisa e outras instituições culturais. Examine-se, por exemplo, o boletim Art
Documentation de dezembro de 1982 (da Art Libraries Society of North America), ou no
internacional Art Libraries Journal/ Revue de Bibliothèques d’Art/ Zeitschrift für
Kunstbibliotheken/ Revista de Bibliotecas de Arte, número 18, de 1993 (SILVEIRA,
2001, p. 49-51 e bibliografia). A categoria artística do livro de artista engloba o livro de
artista propriamente dito, o livro-objeto e outras obras semelhantes.

A crítica e a avaliação dos papéis simbólicos

Mesmo que a maior parte de seus produtos seja constituída por bens de consumo
autônomos, é necessário lembrar que a categoria do livro de artista pertence sobretudo
ao mundo da arte, abrangendo grande variação de projetos e experimentos múltiplos,
não se restringindo a um suporte específico que seja apenas rotulado como livro. É justo
e necessário que o estudioso examine instalações e performances lado a lado com os
volumes que as acompanham como integrantes de um mesmo empreendimento
artístico. Para um exemplo recente, lembro as salas ocupadas pela artista alemã Hanne
Darboven na Documenta 11, em Kassel, Alemanha, durante o verão europeu de 2002.
Darboven ocupou três andares em mezaninos semicirculares com quase quatro mil
páginas de seus livros dispostas lado a lado nas paredes, livros únicos (em vitrinas) e
vídeos. Complementando a exibição, foi distribuído gratuitamente para o público um
impresso no formato tabloide com oito páginas coloridas, numa apresentação
assemelhada a um encarte de jornal, reproduzindo uma sequência de pares de páginas
(sem texto explicativo). Tanto o todo como os detalhes precisam ser pensados como
interligados, mesmo estando distantes de um livro mesmo (ou o objeto que
denominamos popularmente de livro). Ainda que o livro-objeto e o livro de artista não
compartilhem precisamente o mesmo espaço artístico (definido pelo projeto e pela
estratégia), ou o compartilhem, mas apontando um as contradições do outro, o crítico e
o historiador necessitam estar atentos para o fato de que essas obras, seus efeitos e
seus conflitos interagem entre si numa categoria mais ou menos bipartida, mas com
identidade distinta da escultura ou da pintura, por exemplo. Se por um lado poderá ser
difícil para um estudioso de comunicação aceitar essa dissociação disruptiva da forma
consagrada do livro, para um pesquisador de arte não haverá nenhuma estranheza
maior. A arte, como foi tantas vezes dito, pode quase tudo.

Para uma análise interdisciplinar com a comunicação, toda a categoria poderia ser
considerada. Mas a atenção deve incidir, sobretudo, no conhecimento do livro de artista
no sentido estrito da palavra. O motivo é simples, como já visto: ele é normalmente um
objeto gráfico múltiplo (editado), uma publicação que traz consigo os conceitos de mídia
e de mercado. É verdade que também existem livros-objetos múltiplos, mas são
proporcionalmente poucos. Por exemplo: Poemóbiles, de Augusto de Campos e Julio
Plaza, 1974, é apresentado por Plaza (1982, parte I, não-paginado) como sendo um
livro-objeto, embora tenha tido uma feição integralmente gráfica e uma tiragem
comercial (não é, por isso, incorreto nem excludente designá-lo como livro de artista
“mesmo”, no sentido estrito do termo). Apresenta-se como uma embalagem em caixa
ou pasta cartonada, contendo diversos impressos avulsos. Mas livros-objetos são,
geralmente, peças únicas do agrado das galerias de arte e dos museus, guardando o
apelo fetichista das obras artísticas tradicionais. Sob esse ponto de vista, podemos
dizer, ironicamente, que os grandes livros que fazem parte da produção plástica de
Anselm Kiefer (obras-primas indiscutíveis da arte ocidental contemporânea) têm sua
potencialidade semântica um pouco abafada pelo seu papel social redirecionado pelos
agentes de mercado. São objetos artísticos nobres, apropriados (socialmente
adequados) para eventos expositivos conservadores. Essa é uma característica vista
com reservas por grande parte dos artistas e dos comentaristas das novas mídias. Anne

5
Moeglin-Delcroix, importante pesquisadora do assunto, demonstra esse ponto, mas com
justeza, preservando o imenso brilho de Kiefer. Ela explica ser pouco interessada no
livro-objeto.

[...] e porque os livros-objetos [...] raramente são grandes obras plásticas. É claro que há alguns
êxitos excepcionais, como os livros em chumbo de Kiefer, na Alemanha. Não creio, porém, que o
livro-objeto tenha alguma importância artística atualmente como fenômeno de conjunto (não me
refiro à importância que pode ter na obra de um artista em particular). (SILVEIRA, 2001, p. 287).

Anne Moeglin-Delcroix reconhece outras funções do livro ou do quase-livro que, em


geral, não é múltiplo (e que não atua fora do mercado da arte). Mas suas constatações
estão inseridas apenas (por decisão sua) em problemas das vanguardas artísticas do
livro “de edição”, do livro publicado, que difunde o pensamento artístico e que considera
qualitativa e intelectualmente muito distanciado do livro-objeto. Ela considera a recusa
à multiplicação e à difusão como um despropósito à finalidade básica do livro.

A propósito de outras considerações semelhantes, lembro Alvaro de Sá, um dos


articuladores do movimento poema-processo e teórico das relações entre a poesia
visual brasileira e a comunicação (1977, p. 83): “Uma pintura retratando um operário em
trabalho, embora aparente, não terá vínculo socialista com a realidade. É um produto
artesanal único, para consumo individual ou no máximo museológico, e portanto com a
alienação da aura.” Ainda segundo Sá, o livro de artista (por ele e seus companheiros
chamado de livro-poema) impõe a leitura como processo inseparável da existência do
objeto.

A função do livro é ser gerador de informações através de seu processo. Enquanto numa poesia
simbólica ou em um poema estrutural a leitura esgota a comunicação do poeta com o consumidor,
no livro-poema a comunicação primeira inicia um novo universo para o consumidor, levando-o à
posição de criador e distinguindo radicalmente a “leitura” da “escrita”, ou seja, o ato mental de captar
a intencionalidade do poeta do ato físico exploratório do consumidor. (SÁ, 1977, p. 94).

O livro de artista “mesmo”, repito, tem a consciência de ser veículo. Ou melhor,


“também” veículo, já que antes de mais nada é um projeto artístico inteiro. É uma obra
de arte com a forma direta ou indiretamente inspirada nas conformações do livro (códice,
rolo, sanfona etc.). É quase sempre um produto gráfico, impresso, embora possa se
apresentar também em variações eletrônicas2 e digitais.3 Apresenta-se como um livro
ou livreto de qualquer formato ou número de páginas, mesmo que seja um simples rolo,
ou uma sanfona, ou apenas uma folha de papel com algumas dobras. Possuir textos
não é uma obrigatoriedade e, quando acontece, pode ser de qualquer natureza, mas de
classificação recusada ou ignorada pela literatura (salvo exceções) ou pelo comércio
livreiro. É também usual que o preço de cada exemplar seja equivalente ao dos seus
companheiros de loja ou livraria. Portanto, acessível a qualquer um. Isso cria um espaço
complementar (ou alternativo) ao complexo tradicional de galerias, oferecendo arte a
preços baixos ou baixíssimos, ao mesmo tempo em que impõe conceitos transgressivos

2 Muitos trabalhos projetados para mídias eletrônicas ou digitais permitem a análise e a avaliação por
estudiosos e críticos de arte tendo como parâmetro a bibliomorfia explícita ou o comentário metafórico ao
livro. Será ingenuidade, por exemplo, pensar a instalação Beyond pages, de Masaki Fujihata, apresentada
em Porto Alegre durante a 2ª Bienal do Mercosul, em 1999, como apenas uma obra da informática. Ela é
objetivamente pensada a partir da projeção do livro que é o seu núcleo visual e intelectual. Pressupõe-se
que o crítico seja habilitado para fazer as necessárias ligações entre os campos simbólicos percorridos pelo
artista.
3 Na internet existem endereços com trabalhos específicos para a rede, muitos deles inspirados em

concepções bibliomórficas. Para ir direto a essa produção, procure um sítio de busca e utilize palavras-
chave como livro de artista, artist’s book, artists’ books, livre d’artiste ou suas equivalentes variações nos
diversos idiomas. Para o Brasil a busca poderá revelar poucos resultados. Mas esse quadro está em
mudança. Como bom exemplo de obras brasileiras integralmente digitais, procure endereços com a
participação de Regina Célia Pinto, que não só trabalha como artista, mas também como promotora de
experimentos interdisciplinares das artes visuais com a palavra.

6
a valores tradicionais da arte como qualidade artesanal, nobreza da matéria-prima e
reserva de mercado profissional. Por outro lado, propõe estratégias operativas para sua
existência como objeto artístico que se aceita como mercadoria não-aristocrática, como
peça promocional e como registro documental, recusando alguns cinismos
institucionalizados pelo sistema. Traz para as artes visuais a possibilidade do uso de
fato da palavra escrita, não apenas discreta ou decorativamente, mas oferecendo novos
universos discursivos, emprestados (ou furtados) da literatura e da imprensa. E se
multiplica, e viaja, e entra em lares de todo tipo. O livro de artista é, por isso,
deliciosamente insidioso. Você quer uma obra de arte? Ela pode até mesmo ser
mandada pelo correio.

A ocupação e os usuários do espaço alternativo

Por suas particularidades, além de ser um veículo natural para artistas plásticos, o livro
de artista também ofereceu (e ainda oferece) espaço para um grande contingente de
egressos de outras atividades artísticas e culturais, além de programadores visuais e
projetistas gráficos, que dificilmente encontrariam, na arte, um veículo tão apropriado
para suas expressões, e que são altamente especializados em problemas de percepção
e composição.

Uma ênfase muito particular deve ser dada ao aporte da literatura, principalmente
através da poesia e da prosa formalmente livres. A poesia visual, principalmente, teve
(e continua a ter,4 ainda que mais raramente) um papel importantíssimo na definição de
rumos, sobretudo pelos exercícios textuais e pela revitalização da diagramação de
página, silenciosa desde os experimentos eslavos do pré e entre guerras. O Brasil
ofereceu contribuição importante nesse seguimento, com reconhecimento internacional.
Os experimentos gráficos na publicação de livros formalmente diferenciados tiveram
poucos editores, mas de notável presença, como Alumbramento, Invenção, O Gráfico
Amador e Massao Ohno, ao lado dos consórcios entre interessados e dos
empreendimentos pessoais dos próprios autores ou artistas. Livros de poesia visual em
geral (e concreta, em particular) circularam com certa desenvoltura em mercados
livreiros de outros idiomas e participaram de importantes salões retrospectivos e bienais.
Saliente-se que das experiências formadoras dessa produção foi gerado A ave, 1956
(ano de lançamento, pronto no ano anterior), de Wlademir Dias Pino, um dos mais
relevantes e pouco conhecidos livros de artista editados no país (em Mato Grosso),
anterior a muitas das obras mestras de Edward Ruscha e Dieter Roth, dois dos mais
importantes nomes da categoria. É um volume composto por páginas mais ou menos
transparentes, brancas ou coloridas, que permitem entrever diagramas, letras e
vocábulos, propondo uma leitura dependente do gesto de folhear o livro. Raramente
descrito e com a quase totalidade de seus exemplares desaparecida, A ave sofreu, por
muito tempo, um injusto esquecimento, pouco a pouco em reparação.

O estabelecimento desse espaço alternativo, disponibilizado a todos que de alguma


forma pudessem produzir peças gráficas multiplicáveis, gerou reflexões que
dissolveram a precisão dos limites que demarcam a arte, levantando questões como a
forma de produção e a prioridade dada aos valores comunicativos da expressão
estética. Se as linhas de separação entre gêneros de produtos artísticos são pouco
definidas, há que se ter cuidado redobrado com a aplicação de distinções entre baixa e
alta culturas. Existe a obra a serviço do comércio, sim, como existe a artisticidade do

4
Qualquer pesquisador terá o direito de classificar como livro de artista tanto obras que sequer tenham tido,
originalmente, essa intenção de seus autores, como obras que tenham nascido direcionadas
exclusivamente para o campo literário. Livros com textos ou tipografias experimentais, por exemplo, podem,
perfeitamente, ser sequestrados da literatura e “sofrer” nossa análise crítica a partir de sua construção
verbo-visual e sob o ponto de vista das artes plásticas.

7
projeto. Examine com atenção o pequeno livreto em preto-e-branco The medium is the
massage: an inventory of effects, de Marshall McLuhan e Quentin Fiore, onde a
construção das páginas une a fotografia de estética ora jornalística, ora publicitária, e o
texto objetivo num todo que o habilita a transitar com brilho e independência entre a
comunicação e a arte. O livro seduz pela surpresa de ainda reservar pequenos
exercícios de composição, personalíssimos apesar de parecerem modismos ou
herdados de estéticas antes assimétricas ao gosto. Publicado em 1967, de formato de
bolso, ele herda um passado de livros notáveis (como, por exemplo, Malerei,
Photographie, Film, de László Moholy-Nagy, 1925), ao mesmo tempo em que é
prenúncio da abertura de mercados para os novos agentes produtores. Mercados,
esses, abertos conscientemente através de atitudes objetivas, como manifestadas por
Roth.

EM VEZ DE MOSTRAR QUALIDADE (qualidade que surpreende), NÓS MOSTRAMOS


QUANTIDADE (quantidade que surpreende). Tive essa idéia (Quantidade em vez de Qualidade)
desse modo: QUALIDADE no NEGÓCIO (por exemplo, publicidade) é só uma maneira sutil de ser
propenso à Quantidade: Qualidade na publicidade deseja expansão e (ao final) poder = Quantidade.
Assim, deixe-nos produzir Quantidades desta vez.5

A pesquisadora Lucy Lippard, em um artigo para a revista Art in America, em 1977,


sintetizou com clareza o cenário vislumbrado ao seu redor.

O livro de artista é o produto de vários fenômenos artísticos e não-artísticos da última década, entre
eles uma elevada consciência social, a imensa popularidade dos livros em brochura, uma nova
percepção sobre como a arte (especialmente o dispendioso “objeto precioso”) pode ser usada como
um artigo de conveniência por uma sociedade capitalista, nova preocupação extra-arte e uma
rebelião contra o crescente elitismo do mundo da arte e sua obsolescência dirigida. Não obstante
McLuhan, o livro permanece sendo a mais barata e acessível maneira de transmitir ideias – mesmo
ideias visuais. A adaptação pelo artista do formato do livro para obra de arte constitui uma crítica da
crítica, tanto como da arte como um “grande negócio”. (“The artist’s book goes public”, em LYONS,
1987, p. 45; originalmente publicado em Art in America, jan.-fev. 1997; partes do artigo teriam sido
publicadas antes em Artweek, no artigo “Going over the books”, 30 out. 1976.)

Durante o período citado, o circuito publicador de livros mais ou menos alternativos


estava sendo formado por pequenos editores de vanguarda que reproduziram o tom
renovador característico da época (Kostelanetz, 1993, p. 202, principalmente). Mas
lentamente eles cederam lugar (ou prepararam o terreno) para produtores com
tecnologia e métodos mais requintados, aprendidos, nos anos 80 e 90, do ensino regular
ou oficial. A importância desses recém-chegados tem sofrido um esforço sério de
avaliação pelo meio artístico, sem se cair na facilidade da fábula da volta do filho
pródigo. Foi ressaltada numa exposição interdisciplinar nos Estados Unidos (1998),
envolvendo livros de artistas, projeto gráfico e poesia visual. Para Johanna Drucker,
artista e pesquisadora, curadora da mostra, a arte estaria sendo empurrada para o reino
da atividade industrial, ao mesmo tempo em que os projetistas gráficos e industriais,
com mais e mais frequência, colocam seus talentos em empreendimentos pessoais,
sejam artísticos, sejam sociais.

O trabalho dos projetistas gráficos estabelece as formas que encontramos na nossa experiência
diária com os meios de comunicação de massa, as publicações comerciais e a sinalização do mundo
a nossa volta. Projetistas gráficos trabalham com limitantes muito diferentes daqueles das artes
visuais. Eles precisam atender demandas de mercado e as necessidades de seus clientes, ao
mesmo tempo em que se empenham em produzir uma obra de qualidade estética e estilo
reconhecível sob pressões de prazos e orçamentos. Muitos artistas gráficos estão também
interessados em usar suas habilidades para contribuir para os debates públicos sobre ideias e
problemas políticos. Outros criam trabalhos para sua própria satisfação, explorando as convenções

5Dieter Roth, 1965. Foram mantidas as maiúsculas como na fonte citada (o original foi
datilografado). Poetry Intermedia: Kunstlerbücher nach 1960. Berlin: Staatliche Museen zu Berlin,
2002. p. 26.

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da tipografia, legibilidade e comunicação de uma maneira expressiva normalmente associada com
as artes. (DRUCKER, 1998, p.16).

Na comunicação visual é inquestionável a importância do livro – um dos mais


conservadores e permanentes artefatos projetados pela humanidade – como um dos
caminhos para a obra de arte. Projetistas industriais, ilustradores comerciais,
desenhistas técnicos, diretores de arte, fotógrafos jornalísticos e publicitários, entre
tantos profissionais da mídia e da indústria, têm conseguido aqui um útil canal para suas
aspirações artísticas pessoais, primeiramente através da arte aplicada, agora também
pela arte em si mesma. E como contrapartida ao espaço reivindicado, eles têm
contribuído muito para a evolução do meio, desde o oferecimento de seu conhecimento
tecnológico atualizado, até o seu olhar personalíssimo sobre a sociedade e o mercado,
passando por questionamentos operativos da arte. Isso parece ser tão mais efetivo
quanto mais industrializada e competitiva for a sociedade, ou possua maior oferta de
recursos financeiros para produção e reprodução da obra. Não custa lembrar que, na
contramão dessas constatações, em mercados subdesenvolvidos ou em
desenvolvimento a presença do livro-objeto único e escultórico é proporcionalmente
mais relevante que a peça múltipla e gráfica. O livro de artista será tão mais presente
quanto menos economicamente periférica for uma sociedade ou mais vigorosos forem
os mercados intelectual e artístico.

Para a arte percorrer o caminho rumo à publicação, foi necessário, portanto, agregar
experiência técnica específica. No que diz respeito ao uso das tecnologias gráficas, foi
buscado o equipamento e o conhecimento mais antigo, disponível desde o
Renascimento. Foram muito úteis as velhas máquinas tipográficas, num certo momento,
para a produção de trabalhos com grandes tiragens, sofisticados ou de aparência rude,
ou para impressões complementares às gravuras artesanais (litografia colorida,
especialmente). Nesse caso, são atendidas exigências mais conservadoras e que
envolvem custos médios ou altos. Em oposição a esse acabamento precioso e oneroso,
o final do século XX disponibilizou aos artistas a revolucionária reprodução eletrostática,
com pequenas máquinas concebidas para uso em escritórios. Os agentes culturais as
tornaram em valentes guerrilheiras. No período mais intenso da arte postal, quando as
inserções no mercado precisavam ser ágeis, as fotocopiadoras foram usadas até a
exaustão, embora seu limite de cópias fosse pequeno. Atualmente, a tecnologia das
empresas líderes e a informatização de sistemas disponibiliza tiragens maiores e com
melhor controle de qualidade. Mas para o maior controle do acabamento do projeto, o
conhecimento do uso criativo dos principais programas de editoração eletrônica é
obrigatório. Esse saber é o mesmo utilizado para a produção dos originais para a
impressão ofsete, utilizada em nove entre dez livros de artista contemporâneos.
Criadores das décadas passadas, acostumados às chamadas artes-finais (originais em
papel a partir de montagens com desenhos, fotos e colagens, para a posterior obtenção
de fotolitos), trocaram a habilidade manual pelo saber computacional. E acaba mesmo
sendo curioso notar que relativamente poucos artistas utilizaram diretamente os filmes
e chapas da impressão em ofsete. Dieter Roth foi um dos pioneiros desses primeiros
tempos de ofsete. Seu trabalho é admirado por uma legião de artistas que incrementam
seus talentos com o conhecimento da realidade digital, mas com os pés firmes no legado
cultural. Hoje, também, estamos mais conciliadores. Mas a proposta de Roth (e de
muitos outros) ao mundo da arte ainda está de pé.

Alguns aspectos do momento atual

Hoje o panorama da produção e da circulação de livros de artista demonstra


ajustamentos e acomodações. Um certo desvanecimento afetou as aspirações dos
artistas que promoveram o cruzamento da arte conceitual com a produção de livros.

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Seus volumes, tão neutros e simples quanto era possível, foram decaindo em número
até quase desaparecer. O seu lugar foi sendo ocupado por uma produção menor, mas
não menos interessante, certamente menos inocente e mais pragmática nos seus
objetivos. Os livros mais recentes, conceituais ou não, são em menor quantidade, mas
oferecem novas experiências para o olhar, sendo menos mesquinhos quanto ao uso de
cores e imagens. Muitas tiragens são subvencionadas por instituições públicas, às
vezes mesmo por galerias particulares, projetando o pensamento artístico em territórios
novos ou trazendo-o de volta para lugares que tinham sido inadvertidamente
abandonados. E a circulação ficou mais ágil com a entrada das livrarias e centros
culturais na internet. Por outro lado, certas conformações trazem consigo algumas
soluções que podem ser consideradas renovadoras por alguns comentaristas ou
apenas cacoetes fashion, por outros. 6 Alerta-se, aqui, para a necessidade de
aperfeiçoamento dos críticos de arte.

Por fim, observaremos que outro nicho de mercado ocupado agora com mais decisão
pelo livro de artista é o das obras multiplicadas a partir de um exemplar individual que
passa a assumir, então, o papel de protótipo. Não se trata de conceber desde o princípio
um original múltiplo, mas de produzir a sua cópia, mesmo. Na linguagem editorial, o fac-
símile. Se tínhamos obras majoritariamente concebidas desde a origem para a
multiplicação, especialmente nos anos 70 e 80, a sedimentação de mercado e a
evolução tecnológica propiciaram a prospecção de alguns cadernos, diários e livros,
peças exclusivas e íntimas, agora reproduzidas e multiplicadas posteriormente ao seu
contexto histórico. Além disso, as reimpressões tornaram-se menos onerosas. Que
amante da arte não quer rever os livros publicados por Bruno Munari quando em vida?
Pois basta esperar. Um a um eles estão sendo republicados. E por preços razoáveis,
compatíveis com o comércio livreiro e suas expectativas de consumo (em geral discretas
se comparadas com títulos teóricos e técnicos). À disposição do grande público, para
simples desfrute ou para pesquisa, estão obras tão diferentes e originais quanto as de
Henri Matisse, Frida Kahlo, El Lissitisky ou John Cage. Às vezes, esses livros são
financiados por agentes fomentadores de pesquisa. Outras vezes, o interesse comercial
é a única mola possível. Ao leitor ou ao vedor importará sobretudo a disponibilidade da
obra.

No original ou em fac-símile, o livro de artista instituiu uma das mais interessantes


especializações no mercado de bens culturais. Arte quase sempre barata, quase
sempre múltipla, em todos os lugares. Esse fluxo de mercadorias muito específicas tem
pouco mais de um século, sendo, portanto, recente. Teve expansões e retrações, mas
está consolidado. O produto oferecido é atraente: ler e ver o artista através de seus
próprios sinais, sem tradutores e a qualquer momento.

Os melhores e mais originais artistas do século XX abduziram do mais relevante e


eficiente veículo de informação seus procedimentos, seus preceitos e suas estratégias.
Ao fazer isso, propiciaram uma lufada de ar puro sobre estruturas viciadas por séculos
de devoção ao produto luxuoso. Em retorno, a arte ofereceu para o mundo editorial mais
que simples conhecimento compositivo ou juízos ultrapassados de valor. Ofereceu a
ousadia e novidade que antes só poderia ser encontrada na dimensão da simples leitura

6Veja o confronto de opiniões com relação a novidades ou modismos, lendo o elogio de Cornelia
Lauf (em catálogo para a exposição Artist/Author, 1998, p. 79, com muitas ilustrações) a uma
nova safra de livros de artista com o aporte do projeto de programadores visuais que trabalham
com o gosto contemporâneo. Lauf chega a citar a entrada, no campo do livro de artista, de alguns
catálogos de moda, como os de Romeo Gigli, Karl Lagerfeld, Christian Lacroix e, especialmente,
Donna Karan. Compare com as críticas de Brad Freeman, editor da revista JAB, Journal of
Artists’ Books, feitas à Lauf. Freeman é muito severo com os critérios da curadoria, não aceitando
a amplitude da seleção de obras e abominando a flexibilização excessiva das fronteiras do livro
de artista, alertando para um entendimento que considera distorcido (JAB 11, 1999, p. 27).

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do texto, do assunto. O próprio livro, aqui mais afastado da funcionalidade da
comunicação, mas traficando essa funcionalidade à arte, se pensa, se reconsidera.
Aceitou-se e nega-se como suporte, continuamente, num conflito fértil. E ainda oferece
um pouco mais. Refletir sobre a paisagem do território intermidial deixa ainda um último
e irônico pensamento, por certo impertinente. Não seria despropositado inferir que, ao
buscar a arte em seus modelos mais puros ou sentidos mais elevados, o profissional de
criação reivindique algum tipo de ascensão moral ou espiritual. E que, por sua vez, o
artista, ao buscar a comunicação (através de suas teorias, de suas ferramentas e de
seus procedimentos), almeje algum grau de vulgarização, de mundanismo positivo, aqui
traduzido pela luta contra a alienação social ou política da qual ele é tão frequentemente
acusado. Por que não dizer, situações geradoras de um composto fértil, um verdadeiro
húmus, rico em aspirações. Desse substrato brotam linguagens da mais alta qualidade
e obras de arte da mais absoluta contemporaneidade. Aqui, aí e em qualquer parte,
acessível em todo lugar.

Referências

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