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Angela de Randolpho Paiva, Patrícia Mattos

QUESTÕES TEÓRICAS NA DESIGUALDADE

DOSSIÊ
SOCIAL CONTEMPORÂNEA

INTRODUÇÃO

Angela de Randolpho Paiva*


Patrícia Mattos**

Em tempos de profundo mal-estar com importante referência no debate intelectual, ao


as transformações sociais ocorridas nas últi- indicar a concentração cada vez maior de ren-
mas décadas por conta de uma economia de da e riqueza e o perigo iminente do estabeleci-
mercado capitalista desregulada globalmente, mento de “desigualdades insustentáveis e arbi-
o presente dossiê busca problematizar as no- trárias” que ameaçam os valores democráticos.
vas agendas da teoria social contemporânea, Muito além do otimismo em relação à indivi-
para discutir as desigualdades sociais caracte- dualização dos estilos de vida e das inovações
rísticas dessa conjuntura. A proposta parte do tecnológicas incessantes, condição para esse
pressuposto da relevância de trazer novos de- capitalismo globalizado, a teoria social con-
bates sobre o tema, não apenas no que diz res- temporânea cumpre o papel de compreender
peito à validade heurística das teorias sociais as ambiguidades, dilemas e desafios ora postos

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existentes, como também explorar os desafios na atual conjuntura. As mudanças nas condi-
teóricos e políticos postos diante das drásticas ções do trabalho (Gorz, 1988, 1991; Boltanski;
mudanças sociais ocorridas. Chiapello, 2009; Sennett, 2011), a perda de
A literatura acadêmica tem apontado direitos sociais já conquistados (Bourdieu,
o crescimento das desigualdades sociais no 2003; Castel, 1999), a erosão das capacidades
mundo globalizado (Dowbor, 2017; Fraser; Jae- de resolução de conflitos sociais pelo Estado-
ggi, 2018; Lind, 2017; Piketty, 2014; Savage et -Nação, o enfraquecimento da democracia e o
al., 2017; Streeck, 2016). O livro de Thomas questionamento da política partidário-repre-
Piketty, O capital no século XXI, tornou-se uma sentativa (Castells, 2018; Fraser, 2017; Santos,
1998; Streeck, 2016), além do “desapareci-
*
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC- mento de energias utópicas”, para usar a ex-
-Rio). Departamento de Ciências Sociais. Rua Marquês de
São Vicente, 225. Cep: 22.451-900. Gávea – Rio de Janeiro pressão de Axel Honneth (2017), são exemplos
– Brasil. apaiva@puc-rio.br
emblemáticos dessas transformações sociais
**
Universidade Federal de São João Del-Rei (UFSJ). Depar-
tamento de Ciências Sociais em tempos de globalização econômica acele-
Praça Dom Helvécio, 74, Fábricas. Cep: 36301-160. São
João Del-Rei – Minas Gerais – Brasil. pamattos@uol.com.br rada e adoção acirrada de políticas neoliberais.

http://dx.doi.org/10.9771/ccrh.v32i85.27764 9
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Paralelamente, tem-se presenciado um alar- cracias existentes no que se refere à impossibi-


gamento da esfera pública com o advento das lidade de integração de grupos sociais junto à
redes digitais, ainda que essa esfera se torne sistemática exclusão de parcelas significativas
cada vez mais excludente para grupos desfilia- da sociedade, a despeito da constante luta da
dos, estigmatizados e precarizados (Canclini, sociedade civil organizada, especialmente de
2007), sendo a esquerda incapaz de apresentar movimentos sociais. Ao mesmo tempo em que
agendas emancipatórias para o combate das há aprendizados morais coletivos relacionados
crescentes injustiças sociais. Ainda que os mo- à chave dos direitos humanos nas sociedades
vimentos sociais, nas sociedades ocidentais, a ocidentais, uma ideia forte como potencial de
partir da década de 60, tenham ampliado sig- luta, há também o declínio nos níveis de so-
nificativamente as lutas para muito além dos lidariedade social identificado por vários au-
conflitos de classe, incorporando novos grupos tores e autoras, traduzido no crescimento da
sociais ao debate político (Melucci, 2001; Tou- insensibilidade social consubstanciado sob as
raine, 2009), esses movimentos também têm a mais diversas formas de xenofobia, racismo,
limitação de representar apenas uma parte das sexismo, homofobia, dentre outras tantas for-
experiências de exclusão social. mas de intolerância. Além disso, não é por ou-
Nesse contexto, faz-se necessário que a tro motivo que se identifica, tanto no cenário
teoria social contemple inovações conceituais nacional quanto internacional, o crescimento
e novas abordagens para discutir as formas de de uma direita neoliberal regressiva, que colo-
dominação social injustas, adotando a pers- ca em xeque várias conquistas no que se refere
pectiva crítica para a transformação da ordem à fruição de direitos conquistados.
social existente. Seguindo o espírito da teoria Alguns desses temas são tratados no
crítica, nosso objetivo é apontar a tensão per- presente dossiê: a) a persistência do racismo
manente entre a tendência de reprodução das na sociedade americana; b) o debate sobre de-
desigualdades sociais e os potenciais emanci- sigualdade e diferença; c) os dilemas da inte-
patórios em latência para a mudança social. gração de estrangeiros em tempos de migração
As transformações sociais, na era globalizada, transnacional; d) as potencialidades e limites
pedem uma constante revisão teórica sobre o da participação da sociedade civil; e) a relação
alcance e os limites das análises consagradas, entre desigualdade e justiça e a necessidade
para que possam surgir inovações conceituais de a esquerda repensar os fundamentos de sua
e novas abordagens na teoria social. agenda para que possa ser porta-voz das lutas
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Avançar na discussão da importân- por justiça social. Os autores e as autoras con-


cia das teorias sociais que respondem a essas vidados para participar desta discussão são in-
mudanças do nosso tempo, buscando tanto telectuais reconhecidos por suas contribuições
prover diagnósticos sobre os problemas e de- para a teoria social contemporânea, com apor-
safios contemporâneos existentes como revelar tes acadêmicos significativos em cada um de
as potencialidades emancipatórias, é a grande seus campos de atuação. Cada um, à sua ma-
motivação deste dossiê. Nossa preocupação, no neira, traz contribuições originais, relevantes e
sentido macrossociológico, é trazer reflexões diversas para pensar as desigualdades sociais e
teóricas que possam também contribuir para as agendas que se impõem para a teoria social.
análises empíricas do contexto internacional e Abre este dossiê o artigo de Aldon Mor-
da realidade brasileira. No plano microssocio- ris e Vilna Bashi Treitler, cujo título sugestivo
lógico, nosso interesse é atentar para as especi- é “The Racial State of the Union: Understan-
ficidades e dilemas produzidos pela crescente ding Race and Racial Inequality in the United
desigualdade do novo arranjo global, com espe- States of America”, mostrando que, em seus
cial atenção para o enfraquecimento das demo- quase 250 anos de existência como nação, as

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elites brancas americanas deliberadamente (branco-negro, homem-mulher, mestiço-indí-


construíram uma sociedade baseada na supre- gena etc.) que são móveis, repletas de nuan-
macia branca. Os autores trazem a discussão ces e continuamente negociadas. Tais teorias,
sobre a desigualdade racial americana em vá- aponta ele, caem na armadilha das explicações
rias dimensões. Problematizam teoricamente a economicista e culturalista, que não conse-
construção social da raça, pois, apesar de ser guem correlacionar apropriadamente desigual-
consenso a não existência de categorias raciais dade e diferença, isto é, não dão conta de expli-
científicas, elas são organizadas hierarquica- car por que determinadas diferenças emergem
mente e levam a categorias raciais opacas. Para como politicamente relevantes e outras não.
demonstrar tal processo, trazem dados sobre Para além do economicismo e do culturalismo,
as desigualdades raciais persistentes, questio- o autor advoga que a abordagem da articulação
nando as lutas contra a opressão racial desde de Homi Bhabha e Stuart Hall permite pensar
o sistema escravocrata e contra a segregação como as diferenças se tornam politicamente
racial do Jim Crow, ao mostrarem que o siste- relevantes dentro de um contexto histórico e
ma de dominação racial se manteve inalterado de circunstâncias conjunturais, demonstrando
apesar do Movimento dos Diretos Civis e do como “desigualdade e diferença se constituem
movimento black power. Hoje, ele está pre- mutuamente, sem precedência de uma sobre
sente nas práticas sociais do racial profiling, a outra”. Como base empírica de sua reflexão
que são traduzidas pela violência de policiais sobre o caráter contingente da politização das
(brancos) contra negros, cuja face dramática diferenças, o autor analisa o processo de cons-
é difícil de ser denunciada numa sociedade tituição política das populações quilombolas
que procura não ver a questão racial depois de no Brasil.
décadas de ação afirmativa. Os autores ainda Já Emil Sobbotka demonstra, em seu ar-
apostam no ativismo do século XXI, de grupos tigo “Constelações pós-nacionais e a questão
como Dreamers ou Black Lives Matter, que têm da integração social”, a atualidade do debate
o desafio de gerar mudança social em novas entre Charles Taylor e Jürgen Habermas, de-
concertações, e afirmam: “… if the past is pro- senvolvido nos anos 90, para pensar as tensões
logue, American racism will continue to face da integração de estrangeiros em tempos de
vigorous resistance with each victory leading intensas migrações transnacionais. O cresci-
to a more perfect union”. mento do nacionalismo e da preocupação com
Na sequência, Sérgio Costa, no artigo a questão da unidade na comunidade política

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“Inequality, Difference, Articulation”, examina volta ao centro das discussões na arena públi-
as limitações conceituais do paradigma reco- ca nas sociedades europeias, trazendo à tona
nhecimento–redistribuição desenvolvido por a pertinência de repensar e rever as análises
Axel Honneth e Nancy Fraser, a abordagem das feitas por Taylor e Habermas. Em face das me-
desigualdades categoriais de Charles Tilly e a didas adotadas pela União Europeia – fecha-
abordagem das desigualdades horizontais–ver- mento de fronteiras, crescente rigidez na se-
ticais desenvolvida por Frances Stewart, para letividade dos migrantes e patrulhamento do
discutir teórica e politicamente a correlação Mediterrâneo –, bem como do surgimento de
entre diferença e desigualdade sem subsumir partidos nacionalistas fortes nas sociedades
uma categoria na outra. Reconhecendo que a afluentes, o autor examina alguns desafios po-
discussão sobre diferença e desigualdade vem líticos e teóricos que se colocam para a teoria
sendo posta desde os autores clássicos e se sociológica contemporânea.
tornou uma necessidade política, Sérgio Cos- Em seu texto “Teorias sobre a participa-
ta identifica como déficit nessas teorias a ten- ção social: desafios para a compreensão das
dência a tratar como fixas e binárias categorias desigualdades sociais”, Maria da Glória Gohn

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analisa dez abordagens teóricas reconhecidas apesar das políticas de transferência de renda
no que diz respeito à participação social, com adotadas pelos governos do PT, o programa de
o intuito de debater a contribuição dessas te- reformas instituído pelo partido ficou aquém
orias para tratar das desigualdades sociais. A de realizar transformações mais profundas, ca-
autora reconhece que a maioria das aborda- pazes de atacar as persistentes desigualdades
gens subestima a dimensão econômica das sociais no Brasil, sendo muito mais uma “polí-
desigualdades sociais, dando especial ênfase tica de social-liberalismo com viés populista”,
ao plano sociocultural, de inclusão cultural a limitada à “redução de danos”. Para reatualizar
partir das diferenças. Dessa forma, identifica a agenda da esquerda, Josué Pereira da Silva
um déficit nessas abordagens para a reflexão apresenta as características principais de um
mais acurada sobre as mudanças estruturais programa de esquerda, dialogando com auto-
necessárias para se pensar em formas de supe- res que veem a radicalização da democracia,
ração das desigualdades no plano econômico. a crítica ao capitalismo, a defesa da ecologia
Mesmo identificando as limitações dos movi- e da ética como bases desse projeto. Inspirado
mentos sociais para dar conta das variadas ex- no diagnóstico feito por Alain Caillé, que con-
periências de injustiça social, Maria da Glória sidera a desigualdade social e a corrupção en-
Gohn acredita que o movimento feminista e as dêmica como os principais problemas a serem
teorias feministas podem servir de inspiração, tratados por aqueles que “lutam por emanci-
uma vez que as feministas têm logrado êxito pação”, o autor argumenta que a esquerda não
em estabelecer diálogo com diferentes formas deve ter seu foco exclusivamente nas desigual-
– simbólicas e econômicas – de manifestação dades sociais, sendo condescendente com os
das desigualdades sociais. desvios éticos e a corrupção.
Para finalizar, Josué Pereira da Silva em Assim, convidamos os leitores e leito-
seu artigo “What is Left? Nota crítica sobre ras a apreciarem os textos descritos acima. Os
desigualdade e justiça”, recorre, provocativa- artigos apresentados demonstram inquietação
mente, à ambivalência da expressão What is epistemológica e empírica a respeito das novas
Left para discutir, tanto a definição de esquer- agendas para a teoria social contemporânea.
da apresentada na teoria política, quanto o que Tomando emprestada a citação de Isaac New-
se perdeu ou sobrou da agenda política de es- ton usada no final do texto de Maria Glória
querda nos dias de hoje. Seu objetivo é identi- Gohn, reforçamos a convicção da importância
ficar, no debate político e teórico contemporâ- do diálogo acadêmico:
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neo, temas e propostas que possam revigorar a “Se vi mais longe foi por estar de pé so-
agenda da esquerda. Apoiando-se na definição bre ombros de gigantes”.
de Norberto Bobbio de que o fundamento da
esquerda é a luta contra a desigualdade social,
Recebido para publicação em 22 de agosto de 2018
o autor aponta as propostas de combate às de- Aceito em 03 de dezembro de 2018
sigualdades sociais implementadas ao longo
do século XX por governos socialdemocratas
e socialistas, indicando as variações internas REFERÊNCIAS
nos modelos de socialdemocracia e socialis-
BOLTANSKI, L.; CHIAPELLO, È. O novo espírito do
mo, para discutir a crise atual da esquerda capitalismo. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2009.
e os erros da esquerda ortodoxa. Tomando o BOURDIEU, P. A miséria do mundo. 5º edição. Petrópolis:
caso brasileiro como exemplo empírico dessa Vozes, 2003.

crise, o autor analisa o fracasso dos governos CANCLINI, N. G. Diferentes, desiguais e desconectados.
Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2007.
do Partido dos Trabalhadores (PT) na luta pelo
CASTEL, R. As metamorfoses da questão social: uma
combate às desigualdades sociais. Advoga que, crônica do salário. Petrópolis: Vozes, 1999.

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CASTELLS, M. Ruptura. A crise da democracia liberal. Rio LIND, M. The new class war. American Affairs, Denville, v.
de Janeiro: Zahar, 2018. 1, n. 2 (Summer), p. 19-44, 2017.
DOWBOR, L. A era do capital improdutivo. A nova MELUCCI, A. A invenção do presente. Movimentos sociais
arquitetura do poder, sob dominação financeira, sequestro nas sociedades complexas. Petrópolis: Vozes, 2001.
da democracia e destruição do planeta. São Paulo:
Autonomia Literária, 2017. PIKETTY, T. O capital no século XXI. Rio de Janeiro:
Intrínseca, 2014.
FRASER, N.; JAEGGI, R. Capitalism: a conversation in
critical theory. Cambridge: Polity Press, 2018. SANTOS, B. de S. Reinventar a democracia. Lisboa:
Gradiva, 1998.
_________. From progressive neoliberalism to Trump –
and beyond. American Affairs, Denville,v. I, n. 4, p. 46-64, SAVAGE, M et al. New Direction in Elite Studies. Routledge,
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GORZ, A. Métamorphoses du travail: Quête du Sens. SENNETT, R. A cultura do novo capitalismo. Rio de
Critique de la raison économique. Paris: Galilée, 1988. Janeiro/São Paulo: Editora Record, 2011.

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HONNETH, A. A ideia de socialismo. Tentativa de TOURAINE, A. Pensar outramente. O discurso


atualização. Lisboa: Edições 70, 2017. interpretativo dominante. Petrópolis: Vozes, 2009.

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Angela Randolpho Paiva – Doutora em sociologia pelo IUPERJ, com pós-doutorado na UNICAMP.
Professora associada do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais do Departamento de Ciências
Sociais (PPGCIS) da PUC-Rio. Desenvolve pesquisas nas áreas de direitos humanos e cidadania, relações
raciais, ação afirmativa e movimentos sociais. Os resultados de suas pesquisas estão publicados em
artigos em periódicos e livros, dentre esses últimos Juventude, cultura cívica e cidadania (Garamond)
e Ação Afirmativa em questão – Brasil, África do Sul, Estados Unidos e França (Pallas). É também a
coordenadora central de cooperação internacional da PUC–Rio.
Patrícia Mattos – Doutora em sociologia pela Universidade de Brasília, com pós-doutorados na
Fachhoschule Bielefeld (Alemanha) e na PUC-Rio. Professora do Programa de Pós-graduação em História
da UFSJ. Desenvolve pesquisas nas áreas de teoria sociológica, desigualdades sociais e estudos de gênero.
Publicou o livro A sociologia política do reconhecimento (Editora Annablume) e organizou, junto com
Jessé Souza, o livro A teoria crítica no século XXI (Editora Annablume).

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