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PRIVACAO CULTURAL E EDUCACAO _ COMPENSATORIA: UMA ANALISE CRITICA® ‘Sonia Kramer a Pontificia Universidade Catblies do Rio de Janeiro, De- partemento de Educaeio ~ BRASIL As idbias apresontadas neste texto encontram-e mais desen- voWvidas em "“A Politica do Pré-Escolar no Brasil; a arte do disfarce”, Ed. Achiomé, 1982, trabalho orig santado como tese de Mestrado na PUCIRS: 54 INTRODUGAO © fracasso escolar de parcelas significativas cas criangas oriundas das camadas populares nos anos ini: Ciais da escolaridade, constitui trago marcante do siste- ma de ensino brasileiro e latinoamericano em geral. No Brasil, a partir da década de 70, a politica educacional tem dado grande destaque a necestidade de oferecer a essas_criangas, experiéncias que as levem a compensar suas "deficiéncias”. O pressuposto dessa politica é 0 de que o fracasso acontece porque as criancas nio es tariam suficientemente preparadas para tirar proveito satisfatério da escola, ‘As experiéncias compensatorias mencionadas deve iam ocorrer na escolarizago formal, mas sobretudo no periodo imediatemente anterior ao ingresso no sistema de ensino regular, ou seja, na pré-escola. Esta altima pas sa ento a ser proclamada como a resposta que ird solu- cionar os problemas da escola de 19 grau. A atual proposta da politica educacional brasileira em relagao as criancas de 0 a 6 anos, encara e defende a educacdo pré-escolar como compensatéria, atribuindo Ihe verdadeira funcio terapéutica para as “caréncias cul turais" das criangas provenientes das classes sociais domi nnadas. Assim compreendida, a educacdo compensatoria deveria corrigir a5 supostas defasagens que provocariam © fracasso das criangas. Por esse motivo, o discurso da Privagdo cultural encontra-se presente, também, nas jus: tificativas oficiais quanto a faléncia da escola de 19 Grau: a evasio e a repeténcia so explicadas como resul tado da “falta de cultura” e de habitos das criangas, ou 8 sfo culpabilizadas pelo fracasso. 0 objetivo desse trabalho é analisar as origens e os fundamentos tedricos dos programas compensatérios, desenvolvendo uma série de criticas as faldcias da abor- ddagem da privaedo cultural, e ao mesmo tempo apontan- do possiveis equivocos aos quais radicalizacéo dessas criticas poderia conduzir... © estudo tem algumas premissas, bésicas, que se interrelacionam: 19) O chamado “problema da crianga’" ndo é en tendido de forma isolada, mas, inversamente, no enfoque adotado, procuramos percebé-lo dentro do contexto de uma sociedade dividida om classes. Nossa concepeao de infancia implica na necessida- de de conhecimento das diferentes formas de inseredo social das criancas e de sua relagéo direta com a produ: cdo da vida material. Nesse sentido, entendemos que ido existe "a crianga, mas sim, pessoas de pouca ids- de afetadas de maneiras diferentes pela sua classe social 29) Reconhecemos a premente necessidade de de mocratizagio da educagio pré-escolar e de 19 grau, con: ccebendo tal democratizagio no somente enquanto aces- 80 escola, mas sobretudo como garantia de que o tra: balho pedagégico nela desenvolvido atue no sentido de efetivamente beneficiar as criancas a que se destina. 39) Concebemos a educacio e sua democratizacao ‘como estreitamente vinculados ao processo pol tico-so- cial © & propria democratizagao da sociedade, a diviséo social do trabalho e, portanto, a distribuigio das riquezas Cad. Pesq. So Paulo (42): 54-62, Agosto 1982 is. Entretanto, se destacamos tais fatores, isso ndo significa que a educagao esteja despoj dda de sua autonomia de ado. Existe, no nosso entender uma atuagio politica ao nivel da prética pedagégica, ¢ tal atuacdo ¢ que pode determinar o seu papel como 0 de contribuigg0 para a conservaggo ou a transformago da realidad ‘Com base nesses premissas e diante da andlise da abordagem da privacéo cultural, nossa maior preocupa 80 6 buscar diretrizes alternativas para o desenvolvimen: to de préticas pedagdgicas drigidas as criancas das classes dominadas, @ que estejam a servigo delas, a0 invés de funcionarem como mecanismos de discriminacdo e ex- clusio, com menor ou maior precocidade, seja na pré escola, eja na escola de 19 grau. AS ORIGENS © Remotas © estabelecimento das origens da educacio com- ensatéria coincide com a da propria pré-escola, jé que & esse nivel de ensino que a tOnica da compensacso de ossiveis caréncias se faz mais explicita, Desde 0 seu surgimento, em meados do Século XIX, a educago pré- escolar foi sempre encarada como uma espécie de antl- doto para a privacdo cultural e como forma de promo- ver a mudanga social". ‘Assim, a8 origens remotas dos programas compen satérios podem ser encontradas em Froebel, e nos pri meiros jardins de infancia fundados nas favelas alemas, em pleno advento da Revolucdo Industrial; em Montes sori e suas “Casa dei Bambini” em favelas italianas; em ‘McMillan ~ contemporénea de Montessori — ¢ na énfase que dava & necessidade no $6 de assisténcia médica © dentétia, mas também de estimulagdo cognitiva, para que as deficiéncias das criangas fossem compensadas”. © Recentes Pordm, apenas depois da 28 Guerra Mundial é que 4 pré-escola, com tals caractersticas, passou a ser valo- rizada nos Estados Unidos ¢ na Europa. Na década de 60, expandem-se programas nitidamente de educaggo compensatéria®. Que fatores teriam determinado 0 reconhecimento e a ampliacio do atendimento pré-esco- lar, naqueles parses, com um enfoque compensat6rio? A literatura apresenta 5 conjuntos de fatores simultaneos: ~ 08 de ordem sanitéria ealimentar (campanhas): ~ fatores relacionados & asssténcia social, jé que a pr escola desempenha papel fundamental na liberacio da mulher para 0 trabalho; ~ a influéncia da teoria psicanalitica © das teorias de desenvolvimento infantil, ressaltando 0 papel do profes sor face &s necessidades afetivas da crianga e face 8 sua evolucdo (dai terem sido redescobertos, nessa época, os trabalhos de Montessori Piaget © Vigotsky); — estudos antropologicos e sociotbgicos que destacavam (0 efeitos da classe social, do background educacional e cultural e da etnia sobre o desenvolvimento da perso nalidade e no auto-conceito da crianga; Privagdo cultural e educag&o compensatéria — pesquisas sobre o pensamento da crianga e sobre a in- terferéncia da linguagem no rendimento escolar. Essas esquisas tiveram papel preponderante nas anélises so- bre o desempenho escolar insuficiente das criancas consideradas “privadas” educacional e culturaimente*. Em nosso entender, porém, existem outros fatores determinantes na expansio e institucionalizagao da edu cago compensatéria tanto 20 nivel pré-escolar como ‘num sentido mais geral, e que no encontramos explici- ‘tados na literatura. Quais seriam esses fatores? Os programas compensatérios derivam da idéia de ‘que 0s pais ndo conseguem dar aos fithos ("“carentes”” culturalmente) a base para que tenham sucesso na escola @ na sociedade. O pré-escolar, neste caso, constituiria uma forma de sobrepor as barreiras existentes entre as classes sociais. Atribui-se, assim, a esse nivel de ensino, a funedo de realizar a mudanca social, sem colocar em discusséo @ necessidade de modificacdo das condicbes de vida que determinam a caréncia material e cultural. A proposta de elaborar programas de educacdo pré-escolar no sentido de transformar a “sociedade no futuro” é uma maneira de responsabilizar 0 passado pela situacSo presente e de alocar no futuro quaisquer possibilidades de mudanea. Fica-se, assim, isento de realizar agées sig- nificativas que visem a solucionar os problemas socials atuais. ‘Além disso, concebe-se a democratizacio da educi 80 exclusivamente enquanto acesso 2 vagas, sem levar em conta o conflito existente entre “igualdade de opor- tunidades e igualdade de condicdes"®. Em sintese, a expanséo da pré-escola compensatéria reflete uma pro: Posta de “mudanga social” que no coloca em questo 2 estrutura social que gera a desigualdade. Cabe, por- tanto, expressar algumas de nossas preocupacdes bési cas: 0$ programas compensat6rios esto contribuindo pa- ra qué? A quem eles beneficiam? ‘A abordagem da privagio cultural possibilita a de- ‘mocratizacao do ensino ou, ao contrério, a dificulta? ais indagardes apontam para a necessidade de analisar os pressupostos da abordagem da privagio cul- tural e as criticas que Ihe sio dirigidas. 1. Ver: Dowiey. — Perspectives on Early Childhood Educs- tion; Shane, H. G, — The Renalszance of Early childhood Education Lazerson, M — Social Reform and childhood Educetion: Some Historical Perspectives, todos in Anderson, FH. @ Shane, H. G, — As the twig is bent: Readings in Early childhood Education, Houghton Mifflin Company, Boston, 1971, 2. Encontramos tais dados em Dowey, E. op. cit. pg: 14,€em Braun, S.J. © Edwards, EP. — History and Theory of Early Education, Wadsworth Publishing Company, Belmont, 1972. 3 0 Head Start surglu nos Estados Unidos em 1965, no governo Johnson, fazendo parte, assim como outros programas com pensatérios “guerra contra a pobreza" 4 Uma sintese dessas pesquises foi encontrada em Dowley.E. 0p. cit. 5 Mello, G.N. Fatores Intra.Escolares como Mecanismo de Sele ‘ividage no Ensino de 19 grau, in Revista EducarSo e Socie dade Cortez @ Moraes, Ano |, n 2, jan 1979, pg. 25, 55 ‘A ABORDAGEM DE PRIVACAO CULTURAL Os programas compensatorios no se apresentam, de forma homogénea, variando na énfase quanto aos fatores que pretendem compensar, na metodologia que adotam @ no perfodo do que privilegiam para atuagio® Da mesma forma, a abordagem da privardo cultural, que 0s fundamenta, no se constitui em um corpo tebrico estruturado, fixo. Podemos, no entanto, detectar clara mente as tendéncias comuns aos diferentes programas ¢ seus pressupostos bisicos. Um primeiro pressuposto consiste na crenca de que as criangas provenientes das classes dominadas fra cassam na escola por apresentarem ““desvantagens sécio- culturais", ou seja, elas detém caréncias de ordem social e cultural. A principal intengo dos programas compen: satbrios € a de, através da intervencdo precoce, reduzir ou eliminar as desvantagens. Nao encontramos uma defini¢éo clara para a “des- vantagem cultural” (caréncia): ora ela é entendida como um atraso intelectual, ora como uma distorgéo emocio- nal, provocados ambos por ambientes privados de est/- mulos ou por ambientes com estimulacgo excessiva © desorganizada. Quando as caracteristicas de tais ambien: tes so muito acentuadas, supde-se que acarretam nas ingas em idade pré-escolar caréncias irreverstveis. importante ressaltar_que a abordagem da priva cdo cultural postula a existéncia de uma relacao direta entre o desenvolvimento da crianca e sua origem sécio: econdmica. Assim, as causas de variaggo no desempe- ‘iho escolar, se encontrariam na propria familia e, con- seqiientemente, no meio social de origem, 0 que nos re- mete ao segundo pressuposto: 0 determinismo sociol6: gico. E inegével que @ abordagem da privago cultural supera o determinismo biolégico, que atributa as diferen- 8 existentes no comportamento e no rendimento esco- lar a defeitos genéticos. N3o obstante, essa abordagem instala um fatalismo de caréter social: 0 desenvolvimento nndo seria mais determinado por aptides inatas, mas por influéncias do ambiente. Se a abordagem da privario cultural teve, entéo, ‘um papel politico positive ao mostrar que o fracasso es colar no se deve a desigualdade biolégica individu ela estabeleceu um fatalismo sociolégico, culpando 0 meio. Serviu as pedagogias da compensagio, que pre- tensamente buscavam (buscam) corrigir a desigualdade social através da a¢do pedagégica, negando, dessa forma, propria desigualdade social. Mas que caréncias estabelecidas pelo meio seriam responséveis pelo insucesso na escola? A resposta se rela- ciona ao terceiro pressuposto: 0 da deficiéncia lingirs- tica. ‘As criangas provenientes das classes dominadas se- riam portadoras de defasagens na linguagem que dificul- ‘tariam sua adaptagao & escola e a assimil dos por ela transmitidos. Como as criangas das classes médias t8m melhor desempenho escolar, seus hébitos de fala so considerados os necessérios para que haja apren- dizagem. Além disso, as diferencas nas formas gramati- 56 cais sdo identificadas a lise légica, 0 que leva os adeptos da abordagem da pri vago cultural a concluirem que, como as criancas das classes dominadas tem aéficit verbais, sua capacidade de pensar logicamente é também deficiente. (© que poderia garantir 0 melhor desempenho des sas criangas? A aprendizagem dos padres formals da fa- la, obtida através da compensacdo de deficiéncias na lin- guagem & no pensamento das criangas “privadas cultural- mente”. Estas soriam, com maior ou menor aquieseéncia, as, tendéncias bésicas da abordagem da privagSo cultural e dos programas compensatérios: a existéncia de caréncias. culturais determinadas pelo meio sécio-cultural e que determinam, por sua vez, efeitos drésticos no que se re- fere & linguagem e ao rendimento escolar das criancas. Retomamos esses pontos, a seguir, apresentando as criticas que Ihe so dirigidas, bem como as contra-cri cas hoje formuladas. ANALISE DOS PRESSUPOSTOS DA ABORDAGEM DAPRIVACAO CULTURAL. AS CRITICAS Modelo abstrato @ tinico de inféncia? Para Lureat’, a pedagogia da compensagio desen- volvida nas pré-escolas parte de um “modelo Gnico de fem funcao do qual o filho do isto como uma crianga burguesa incompleta. Ora, Aries demonstra que a idéia de infancia nfo existiu sempre, e da mesma maneira®. Ao contrério, ela ‘aparece com a sociedade capitalista, urbano-industrial, na medida em que muda a insergo e o papel social de- sempenhado pela crianga. Ao invés de ter um papel pro- dutivo direto, a crianga passa a ser alguém que precisa ser escolarizada e preparada para a atuacdo futura. Este conceito de infancia foi, portanto, determinado Ficamente pela modificagdo das formas de organizac3o da sociedade. ‘A forma de organizagio da sociedade capital instituiu classes sociais diferentes, no interior das quais 0 Papel da crianca é também diferente. A idéia de uma in- 6 Para, uma andlise dos programas preventivos ¢ remediativos ver Patto, MHS. Privecdo Cultural @ Educapdo Pré-Primdria, Ed. José Olympia, RJ, 1873 — A diversidade existonte entre fio do Conseil de Cooperacion Cult Educacion Compensatbria — Seleccion de Estudios. 7 Lurgat, L, — Le Moternelle: une école différente? Des Edi- ‘ions du Gert Pars, 1976. 8 Para um estudo sobre 2 evolueso histérica do Sentimento de Inféneia (da consciéneia da particularidade infantil) ver Aries, P., Historie Social da Crienga e de Familie. Zshar, RJ, 1979. ‘Sobre as diferentes significapSessocais da crianca ver Charlot, B. — A Mistficeréo Pedagdgica, Zahar, RJ, 1980. Com rala- ‘cio a perspectiva histbrica no Brasil ver Costa, J. F. Ordem ‘médica ¢ norma familiar, Ed. Graal, FJ, 1978. Cad, Pesq. (42) Agosto 1982

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