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A ÉTICA SOCIAL DE CALVINO

Prof. Ms. Christian Medeiros

Os bens terrenos à luz de nossa natural


perversidade, tendem a ofuscar nossos olhos
e a levar-nos ao esquecimento de Deus, e
portanto devemos ponderar, atentando-nos
especialmente para esta doutrina: tudo quanto
possuímos, por mais que pareça digno da
maior estima, não devemos permitir que
obscureça o conhecimento do poder e da
graça de Deus.1

Em princípio é necessariamente essencial a explicitação do que entendemos ter sido a


Reforma Protestante do século XVI. Para tanto seguimos a mesma perspectiva do teólogo e
filósofo católico Battista Mondin que destaca a Reforma Protestante como um movimento
eminentemente religioso em seu escopo central de suas ações, no entanto, também não deixando
de perceber o vasto campo de influência produzida por ela, que seja no campo social, político,
econômico, científico etc..., mas a sua origem e agenda são, acima de tudo, eminentemente de
ordem espiritual. Observemos:

A Reforma protestante foi um acontecimento essencialmente religioso,


mas causou ao mesmo tempo profundas transformações políticas, sociais,
econômicas e culturais. Também no desenvolvimento da filosofia a sua
influência foi decisiva, especialmente na filosofia alemã, mas também na
francesa, inglesa, americana, italiana, em uma palavra, em toda a filosofia
moderna. Isto justifica e exige um estudo bastante amplo e aprofundado
sobre as causas, os autores e os ideais da Reforma protestante.2

Também encontramos a mesma perspectiva em outros autores, o que entendemos


corroborar tal posição. Vejamos o que diz o teólogo e economista suíço André Biéler: “A
reforma da Igreja, considerada como um movimento autônomo conduzido pela Palavra do Deus
vivo, é, na origem, do ponto de vista social, uma força espiritual revolucionária. (...). A
Reforma, porém, sendo essencialmente espiritual e, acessoriamente, social, seus efeitos
espirituais levam vantagem sobre seu caráter social; penetra ela indistintamente em todos os
meios, transpondo todas as barreiras sociais; ganha homens de todas as condições, do povo, do
campesinato e da burguesia, assim como os intelectuais, a nobreza, o baixo e o alto clero, o
regular e o secular”. 3 Em outra obra destaca: “Importa, porém, evitar inverter a ordem dos
valores e de ver na Reforma um movimento principal e prioritariamente político ou
socioeconômico. Seria esquecer suas prioridades espirituais. Pois o novo estatuto político,
econômico e social, que ela proporá, será apenas a conseqüência de sua preocupação principal:
1
João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 2, (Sl 48.3), São Paulo, Paracletos, 1999, p. 355-356.
2
Battista Mondin, Curso de Filosofia, vol. 2, São Paulo, Paulus, 1981, p.27.
3
André Biéler, O Pensamento Econômico e Social de Calvino, São Paulo, Casa Editora Presbiteriana, 1990, p. 66,
67.
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redescobrir, na sua pureza original, a vida nova proposta pelo Cristo dos Evangelhos, e viver
retamente, no mundo profano, a fé cristã assim renovada”.4 E ainda: “A Reforma não foi nem
pretendeu ser em primeiro lugar uma reforma da sociedade apenas; nem mesmo unicamente uma
renovação moral, a base indispensável sobre a qual se constroem as relações humanas.
Procurando restaurar um Cristianismo fiel a suas origens, ela pretendia reproporcionar ao mundo
o conhecimento do ser humano, tal qual ele é em sua complexidade, e sobretudo indicar a cada
indivíduo as possibilidades de suas restauração, nas perspectiva de uma vida política co-
participantes e de relações econômicas eqüitativas. Propunha-se dignificar os fundamentos
originais da vida espiritual, donde derivam os valores morais e cívicos imprescindíveis à boa
marcha das sociedades”.5

Todo discurso possui uma dimensão ideológica que relaciona aspectos e características
do texto com o contexto da sua produção e deste modo conduz a uma produção de sentido do
próprio texto. Para Antonio Gramsci (1891-1937) a ideologia é “uma concepção de mundo que
se manifesta implicitamente na arte, no direito, nas atividades econômicas e em todas as
manifestações da vida intelectual e coletiva”.6 Desta feita podemos entender a ideologia como
um “sistema de vida” segundo sugeria Abraham Kuyper (1837-1920) como a melhor descrição
do termo alemão “weltanschauung”, conforme usado primeiramente por Immanuel Kant (1724-
1804) e depois amplamente utilizado pelo idealismo e pelo romantismo alemão. Deste modo
percebemos que a Reforma Protestante do século XVI mesmo sendo essencialmente religiosa
acabou por influenciar em uma diversidade de campos, pois se constitui em uma visão de
mundo.

Outro tópico de suma importância é a ênfase na valorização do ser humano no


pensamento de Calvino, tomando como ponto de partida o fato deste ter sido criado à imagem e
semelhança de Deus, a quem o ser humano deve viver para louvor. Calvino era um homem de
sua época, portanto poderíamos considera-lo um humanista, mas não um humanista “secular” e
sim propositor de um humanismo submisso à Escritura. 7 Observemos em rápidas citações do

4
André Biéler, A Força Oculta dos Protestantes, São Paulo, Cultura Cristã, 1999, p. 49.
5
André Biéler, A Força Oculta dos Protestantes, São Paulo, Cultura Cristã, 1999, p. 50. Cp. “A religião pode ser
tanto benéfica quanto prejudicial, e as melhores intenções podem ser distorcidas. Mas a Reforma é – e a Reforma
foi – um movimento espiritual: espiritual no sentido de construir uma convulsão do espírito humano; espiritual
também no fortalecimento dos vínculos que ligam os indivíduos e a sociedade ao Espírito Divino. A Reforma,
através da renovação da Igreja, é uma tentativa de alertar o mundo”. Felipe Fernández-Armesto, Derek Wilson,
Reforma: o Cristianismo e o mundo 1500-2000, Rio de Janeiro, Record, 1997, p. 11.
6
Antonio Gramsci, Concepção Dialética da História, 9ª. ed., Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1991, p. 16.
7
“É um erro supor que o duradouro interesse de Calvino pelos estudos humanísticos e pelo desenvolvimento
cultural do homem fosse um simples remanescente do tempo que precedeu sua conversão à fé evangélica. Sua
preocupação para com os estudos humanísticos e para com aquilo que diz respeito ao que é humano, está muito
inseparavelmente ligado ao seu modo global de pensar, para permitir uma tal interpretação. De fato num sentido que
precisa ser bem definido e cuidadosamente preservado de má compreensão, Calvino pode ser chamado de
“humanista”. Através de toda a sua vida, ele teve um profundo compromisso para com aquilo que é humano.(....)
Calvino ataca aqueles humanistas que fazem a apoteose do ser humano e pensam que a realização daquilo que é
humano pode ser alcançada somente na presumida independência de Deus e de Sua revelação. Ele mesmo como um
humanista, rejeitou aquilo que era o coração da idéia de personalidade do Renascimento, a idéia de que o homem é a
fonte criadora de seus próprios valores e, portanto, no fundo, incapaz de pecar. Se os estudos humanísticos eram
caros a Calvino pelo fato de favorecerem o desenvolvimento das virtudes humanas, se as ciências devessem ser
cultivadas como dons de Deus, os humanistas deviam opor-se àqueles que pensavam que as artes e as ciências
podiam ser empregadas como se fossem suficientes em si mesmas. (...)
Para Calvino, tornou-se possível relacionar a idéia de humanidade à antítese religiosa retratada na Escritura. O
caminho foi aberto pela idéia de que o homem se torna humano em sua relação com Deus. O homem, em si mesmo,
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tema encontrado nas obras do reformador, a título de ilustração de seu pensamento quanto ao
referido assunto.

No seu comentário do livro de Gênesis assevera:

Se corretamente você pesar todas as circunstâncias, o homem é entre


outras criaturas, uma certa proeminente espécie da Divina sabedoria,
justiça e bondade, que foi merecidamente chamado pelos antigos de
microcosmos, “um mundo em miniatura”.8
Sempre foi uma grande coisa que o principal lugar entre as criaturas fora
dado ao homem.9

Em sua obra de 1537 Instrução na Fé ao comentar sobre o mandamento “Não Matarás”,


afirma:

Aqui somos proibidos de toda violência e injúria e, de modo geral, de


qualquer ofensa que possa ferir o corpo do nosso próximo. Pois se
lembrarmos que o homem foi feito à imagem de Deus, devemos
considerá-lo como santo e sagrado, de tal forma que ele não possa ser
violado sem que também nele seja violada a imagem de Deus.10

Calvino em A Verdadeira Vida Cristã:

A Escritura nos ajuda com um excelente argumento, ensinando-nos a não


pensar no valor real do homem, mas só em sua criação, feita conforme a
imagem de Deus. A Ele devemos toda honra e o amor de nosso ser.11

Calvino em sua obra máxima A Instituição da Religião Cristã é enfático:

É preciso agora falar da criação do homem, não só porque é, entre as


obras de Deus, a espécie mais nobre e mais admirável, tanto de sua
justiça quanto de sua sabedoria e bondade, mas porque, como dissemos
no início, Ele não pode ser apreendido plena e solidamente por nós a não
ser pela apreensão de nós mesmos.12
Quando, pois, Deus decretou criar o homem “à sua imagem”, porque tal
era obscuro, como explicação repetiu a expressão “à semelhança”; como
se dissesse que fazia o homem, no qual se representaria a si mesmo como
à imagem, pelos sinais de semelhança que lhe imprimiria. (...) Então,
mantenho o princípio que há pouco expus: que a imagem de Deus se
estende para toda a excelência em que sobressai a natureza do homem

é verdadeiramente homem quando responde àquilo que constitui o modo de ser de sua natureza, àquilo para o que
foi criado. Deste modo é possível constatar que o humanum é realizado não no isolamento autônomo do homem
em relação a Deus, mas na sua relação com Ele. A autonomia humana pecaminosa, longe de ser o caminho para a
auto-realização humana, é, em si mesma, uma distorção daquilo que é humano. Robert D. Knudsen, O Calvinismo
Como uma Força Cultural, in W. Stanford Reid (ed.), Calvino e sua Influência no Mundo Ocidental, São Paulo,
Casa Editora Presbiteriana, 1990, p. 13-14, 20.
8
John Calvin, Commentaries on The First Book of Moses Called Genesis, Vol. 1, Grand Rapids-MI, Eerdmans
Publishing, 1996, p. 92.
9
John Calvin, Commentaries on The First Book of Moses Called Genesis, Vol. 1, Grand Rapids-MI, Eerdmans
Publishing, 1996, p. 227.
10
João Calvino, Instrução na Fé in Eduardo Galasso Faria (ed.), João Calvino: textos escolhidos, São Paulo, Pendão
Real, 2008, p. 53.
11
João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, São Paulo, Novo Século, 2000, p. 37.
12
João Calvino, A Instituição da Religião Cristã, São Paulo, UNESP, 2008, I.15.1.
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entre todas as espécies animais. (...) É certo que, mesmo em cada uma
das partes do mundo, brilham determinadas mostras da glória de Deus, de
onde se pode perceber que, quando sua imagem foi colocada no homem,
tacitamente se subentende uma antítese que eleva o homem acima de
todas as outras criaturas, tal que o separasse do comum.13

Éric Fuchs ao falar sobre a ética de Calvino, especificamente no sub-tópico “Uma ética
que é uma hermenêutica da Escritura”, atesta o zelo que possuía o reformador pela Palavra de
Deus em sua totalidade, Antigo e Novo Testamento, como fonte única e determinante para
regular a prática moral dos homens:

Trata-se, portanto, de saber o que Deus quer de nós. E, para tanto, é


preciso pôr-se na escola da Bíblia. De toda a Bíblia. Nesse ponto,
Calvino é de um rigor e de uma originalidade notáveis (...). O Antigo
Testamento não é para ele nem desqualificado, como numa tendência
católica dominante que vê nele somente a primeira etapa de um processo
evolutivo, nem reduzido a ser apenas a história de um fracasso, o da lei,
como na interpretação luterana corrente: o Antigo Testamento tem sua
plena validade como substancialmente semelhante ao Novo Testamento.14

Ao expor a respeito do ensino desta Palavra, ambos os Testamentos, afirma Calvino:

Por isso é que Davi, depois de declamar descrevendo como a glória de


Deus é proclamada pelos céus, como se suas mãos são anunciadas pelo
firmamento, e como pela sucessão bem ordenada do dia e da noite a sua
majestade é manifestada, passa ele à celebração da Palavra de Deus. “A
lei do Senhor é perfeita”, diz ele, “e restaura a alma; o testemunho do
Senhor é fiel e dá sabedoria aos símplices. Os preceitos do Senhor são
retos e alegram o coração; o mandamento do Senhor é puro e ilumina os
olhos”. O que significa o seguinte: A doutrina ministrada pelas obras
criadas por Deus é universal, dirigi-se a todos, ao passo que a instrução
dada pela Palavra é a escola particular dos filhos de Deus.
Ora, quando está claro que a palavra que se propõe é de Deus, ninguém
será tão atrevido (a não ser que seja desprovido de bom senso e de
sentimento de humanidade) que ouse descrer dela e rejeitá-la. Mas, como
não é todo dia que vêm novas comunicações do céu, e só temos a
Escritura, na qual Deus quis gravar a sua verdade para ser perpetuamente
lembrada, é preciso verificar, ainda que resumidamente, a razão pela qual
ela tem autoridade para os fiéis, que a recebem como se estivessem
ouvindo a voz do próprio Deus.15

A Bíblia, A Palavra de Deus é viva e eficaz, portanto age não somente em algum tempo
ou período histórico, não está circunscrita ao século XVI, mas é viva e operante sempre e em
todas as épocas. Em nossa época não o é diferente, suas qualidades agem pelos séculos. A
Bíblia apresenta respostas para os dilemas do homem moderno: quem ele é? para onde vai? o
porquê de sua existência, etc... A Bíblia nos ensina sobre a origem, o sentido e o propósito do
homem que foi criado segundo à imagem e semelhança do Criador. Ensina-nos sobre a criação, a
queda e a redenção, quadro este que torna a realidade compreensível. E nos ensina absolutos

13
João Calvino, A Instituição da Religião Cristã, São Paulo, UNESP, 2008, I.15.3.
14
Éric Fuchs, verbete “João Calvino” in Monique Canto-Sperber (org.), Dicionário de Ética e Filosofia Moral, vol.
1, São Leopoldo-RS, Editora Unisinos, 2007, p. 185. Cp. João Calvino, As Institutas II.10.
15
João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo,
Cultura Cristã, 2006, p. 70-71.
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morais verdadeiros. Lembremos da assertiva de Calvino: “Exercitemos com diligência para


alcançarmos uma norma mais alta de santidade, até que tenhamos chegado ao melhor de nossa
qualidade espiritual, na qual devemos persistir ao longo de nossa vida. Somente chegaremos à
perfeição absoluta quando, libertos deste corpo corruptível, formos admitidos por Deus em Sua
presença.”16

Calvino com grande propriedade em A Verdadeira Vida Cristã nos mostra qual deve ser
o alvo que devemos nos concentrar, o dever que precisamos almejar: “A perfeição deve ser a
meta final a qual nos dirigir e o propósito supremo em nossas vidas. Não é justo que atemos um
compromisso com Deus, em que tratemos de cumprir parte de nossas obrigações omitindo
outras, segundo nosso gosto e capricho. Antes de tudo, o Senhor deseja sinceridade em Seu
serviço e simplicidade de coração, sem engano nem falsidade. (...) Não cessemos de fazer todo o
possível para irmos incessantemente mais adiante no caminho do Senhor; e não desesperemos
por causa de nossas escassas conquistas.” 17 Na mesma obra também afirma: “Andando
unicamente na maravilhosa lei de Deus, podemos estar seguros de nossa adoção como filhos de
Deus. (...) Busquemos pois, na Escritura o princípio fundamental para reformar e orientar nossa
vida. (...) O Senhor tem destinado um lugar a cada um de nós, de maneira que não tenhamos
incertezas durante os dias de nossa vida”. Desta feita a Sagrada Escritura é sua fonte por
excelência para a construção de todo o seu arcabouço doutrinário.

Calvino e a responsabilidade ético-social

Nos escritos do reformador do século XVI João Calvino (1509-1564) encontramos alguns
princípios éticos que são essenciais à compreensão do seu pensamento econômico e social que
sejam relacionados à vocação/trabalho, ao uso do dinheiro e poupança, e um conceito muito
característico dele, a frugalidade. Todos estes possuem amplas e importantes implicações sociais
e econômicas, acima de tudo humanas e solidárias, não somente no século de sua existência, mas
produziu grande influência em todo mundo ocidental, e como não poderia deixar ser, atingiu o
Brasil também, mesmo em nosso tempo presente.

Calvino apresenta uma perspectiva muito positiva de apreço pelo trabalho, tomando
como resposta à vocação dada por Deus ao indivíduo, capacitando-o a realizar uma tarefa, um
trabalho digno em resposta à essa dádiva, se constituindo em louvor e adoração a Deus. 18
Calvino mostrando como se deve viver e fazer uso dos recursos que se possui, apresenta a
vocação como uma regra que precisa ser seguida, é necessário ter em mente a vocação como
uma regra de vida ordenada pelo Senhor. Vejamos o que Calvino fala sobre a vocação em um
sentido mais abrangente da vida:

É digno de nota que Deus manda cada um de nós ter presente, em todas
as ações da vida, sua vocação. Pois Ele sabe com quanta inquietude arde
o espírito humano, com quão inconstante leviandade é levado de um lado
para o outro, quão cobiçosa é sua ambição de abraçar coisas diferentes ao

16
João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, São Paulo, Novo Século, 2001, p.77.
17
João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, São Paulo, Novo Século, 2001, p. 77.
18
“É deveras certo que devemos a Deus não somente uma parte, mas tudo o que temos e somos”. João Calvino,
Exposição de 2 Coríntios, (2 Co. 8.13), São Paulo, Paracletos, 1995, p. 175.
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mesmo tempo. Sendo assim, para nós, com nossa loucura e temeridade,
não virássemos tudo do avesso, Ele determinou a cada um seus deveres,
segundo os diferentes modos de vida. E, para que ninguém ultrapassasse
temerariamente seus limites, chamou a tais maneiras de viver “vocações”.
Logo, o Senhor atribuiu a cada um sua maneira de viver, como se fosse o
seu posto, para que não fique dando voltas temerariamente de um lado
para outro por toda a vida. Essa distinção é tão necessária que por ela
todas as nossas obras são avaliadas perante Ele; (...) ...o chamado do
Senhor é o princípio e o fundamento do agir bem em todas as situações, e
que aquele que não se submeter a ele jamais manterá o reto caminho em
seus deveres. Poderá talvez fazer algo elogiável em aparência; mas isso,
seja lá o que for perante o olhar dos homens, diante do trono de Deus será
lançado fora. Assim, não haverá simetria entre as diversas partes de nossa
vida. Por conseguinte, tua vida será ordenada da melhor forma enquanto
estiver direcionada para esse objetivo, porque ninguém, mesmo movido
pela própria temeridade, tentará mais do que sua vocação agüenta, porque
saberá que não é lícito ultrapassar seus limites.19

Como consequência natural da vocação nos mostra qual deve ser a perspectiva correta
diante do trabalho: “Daí nascerá um exímio consolo: que, contanto que obedeças deste modo a
tua vocação, não há nenhuma obra tão humilde e tão baixa que não resplandeça diante de Deus e
que não seja por Ele considerada preciosíssima”. 20 Também afirma em outro lugar: “Se
seguirmos fielmente nosso chamamento divino, receberemos o consolo de saber que não há
trabalho insignificante ou nojento que não seja verdadeiramente respeitado e importante ante os
olhos de Deus”.21

A vocação, ou habilidade para realização de uma obra, e o trabalho e o seu produto


devem ser sempre tomados como uma dádiva divina, o homem não pode jamais julgar-se
autossuficiente, portanto, a dependência de Deus deve permanecer como centro vital o que irá
impedir o homem de agir com avareza diante dos seus ganhos.

Um dos aspectos constantes no pensamento de Calvino diz respeito à moderação como


uma perspectiva com vistas a evitar erros e extremismos. Este também aplicado à liberalidade
em colocar os bens em auxílio aos que necessitam. Comentando 2 Coríntios 8.13 “Pois não digo
isto para que outros sejam aliviados, e vós, sobrecarregados”, assevera:

É deveras certo que devemos a Deus não meramente uma parte, mas tudo
o que temos e somos; porém, em sua condescendência, ele nos poupa na
medida em que ficamos satisfeitos com aquela extensão da participação
que Paulo está delineando aqui, de modo que o seu ensino, aqui, é para
ser entendido como uma renúncia da estrita letra da lei. Mas, ao mesmo
tempo, tem o sentido de incitar-nos, de tempos em tempos, à liberalidade,
já que não devemos ter demasiado receio de ir longe demais; o perigo é,
antes de tudo, fazermos pouco demais. Mas este ensino é necessário para
refutar os fanáticos que acreditam que você não terá feito nada menos do
que despojar-se completamente e depositar tudo num fundo comum. A
única coisa que conseguem com esta demência, é que ninguém chega a
dar esmolas com uma boa consciência. Portanto, notemos
cuidadosamente a evpieikei,a de Paulo, sua brandura e moderação ao dizer
que os nossos donativos agradam a Deus quando aliviamos a necessidade

19
João Calvino, A Instituição da Religião Cristã, III.10.6, São Paulo, UNESP, 2009.
20
João Calvino, A Instituição da Religião Cristã, III.10.6, São Paulo, UNESP, 2009.
21
João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, São Paulo, Novo Século, 2001, p. 77.
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de nossos irmãos, tirando de nossa abundância, de tal forma que o


resultado não é que sejam eles aliviados e nós prejudicados, mas, ao
contrário, que lhes demos algo proporcional com os nossos próprios
recursos, e que demos com um coração disposto”.22

Em seguida, comentando a sequência do texto, “mas para que haja igualdade”, continua
apresentando o seu ensino acerca do uso do dinheiro por parte dos cristãos, afirmando:

Igualdade, aqui, pode ser considerada de duas maneiras, ou significando


a mútua compensação, quando cada parte dá uma quantia equivalente, ou
uma justa proporção. Considero como significando que cada um deve
dar segundo uma justa proporção do que possui. Ele usa o termo com
este significado em Colossenses 4.1, onde exorta os senhores a darem a
seus servos o que é eqüitativo. Certamente, ele não está querendo dizer
que devam ser eqüitativos em condição e status, e, sim, em bondade e
clemência, pois é isto o que os senhores devem a seus servos. Assim
mesmo o Senhor ordena que demos em justa proporção dos recursos que
nos estão disponíveis, tanto quanto nossos fundos permitem, socorrendo
àqueles que se acham em dificuldades, de tal modo que não haja alguns
com extrema abundância e outros com extrema carência.23

Calvino propõe, o que chama de “regra da equidade proporcional”, ou seja, “enquanto os


membros compartilham uns com os outros, em proporção às suas dádivas e necessidades, esta
participação mútua resulta numa justa sistematização, ainda que alguns tenham menos e outros
mais, e as dádivas sejam distribuídas desigualmente”. 24 E ainda: “Todas as pessoas desejam
possuir o bastante que as poupe de depender do auxílio de seus irmãos. Mas quando ninguém
possui o suficiente para suas necessidades pessoais, então surge um vínculo de comunhão e
solidariedade, pois que cada um se vê forçado a buscar empréstimo dos outros. Admito, pois, que
a comunhão dos santos só é possível quando cada um se vê contente com sua própria medida, e
ainda reparte com seus irmãos as dádivas recebidas, e em contrapartida admite ser também
assistido pelas dádivas alheias.”25

Sobre a frugalidade e a avareza, além do enriquecimento ilícito e uso indevido do


dinheiro, novamente apresentando o seu costumeiro equilíbrio, além de comedido e prudente,
continua Calvino. Vejamos:

Moisés admoesta o povo que por algum tempo fora alimentado com o
maná, para que soubesse que o ser humano não é alimentado por meio de
sua própria indústria e labor, senão pela bênção de Deus. Assim, no maná
vemos claramente como se ele fosse, num espelho, a imagem do pão
ordinário que comemos.26 (...) O Senhor não nos prescreveu um ômer ou
qualquer outra medida para o alimento que temos cada dia, mas ele nos

22
João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, (2 Co. 8.13), São Paulo, Paracletos, 1995, p. 175.
23
João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, (2 Co. 8.14), São Paulo, Paracletos, 1995, p. 175.
24
João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, (2 Co. 8.14), São Paulo, Paracletos, 1995, p. 176.
25
João Calvino, Exposição de Romanos, (Rm. 12.6), São Paulo, Paracletos, 1997, p. 430.
26
Eis a parte suprimida: “Agora, aproximemo-nos da passagem citada por Paulo. Quando o maná desceu,
receberam ordem de colhê-lo em porções, tantas quantas cada um pudesse comer; mas, como alguns eram mais
espertos do que outros, eles colhiam mais do que realmente necessitavam para o seu uso diário, e outros menos,
todavia, ninguém tomava mais do que um ômer para o seu próprio uso privativo, porque esta era a quantidade
estabelecida pelo Senhor. Assim sendo, todos tinham o suficiente para suas necessidades, e ninguém tinha carência.
Isto temos em Êxodo 16.18. Apliquemos agora a história à preocupação de Paulo”. João Calvino, Exposição de 2
Coríntios, (2 Co. 8.15), São Paulo, Paracletos, 1995, p. 177.
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recomendou a frugalidade e a temperança, e proibiu que o homem exceda


por causa da sua abundância. Por isso, aqueles que têm riquezas, seja por
herança ou por conquista de sua própria indústria e labor, devem lembrar
que o excedente não deve ser usado para intemperança ou luxúria, mas
para aliviar as necessidades dos irmãos. Tudo o que possuímos é maná,
seja de que fonte venha, desde que seja realmente nosso, já que as
riquezas adquiridas por fraude ou por meios ilícitos não merecem o nome
de maná, senão que, ao contrário, são codornizes enviadas por Deus em
sua ira. E assim como o maná, que era acumulado como excesso de
ganância ou falta de fé, ficava imediatamente putrificado, assim também
não devemos alimentar dúvidas de que as riquezas que são acumuladas à
expensa de nossos irmãos são malditas, e logo perecerão, e seu possuidor
será arruinado juntamente com elas, de modo que não conseguimos
imaginar que a forma de um rico crescer é fazendo provisões para um
futuro distante e defraudando os nossos irmãos pobres daquela ajuda que
a eles é devida. Reconheço, deveras, que não estamos limitados a uma
igualdade tal que seria errado ao rico viver de forma mais elegante do que
o pobre; mas deve haver uma igualdade tal que ninguém morra de fome e
ninguém acumule sua abundancia a expensas de outrem. O ômer do
homem pobre será comida comum e uma dieta frugal, e a porção do
homem rico será mais abundante, segundo suas circunstâncias; todavia,
que seja de tal maneira que viva temperantemente e não prejudique a
outrem.27

Calvino apresenta o auxílio ao próximo como culto a Deus, uma vez que todos os bens
que possuímos são dádivas do Senhor. O faz ao comentar o texto de Hebreus 13.16 “mas não
vos esqueçais de fazer o bem”, ensina que “sejam quais forem os benefícios que façamos pelos
homens, Deus os considera como feitos a ele próprio, e lhes imprime o título de sacrifício”,
continua, “se porventura queremos oferecer sacrifício a Deus, então devemos invocar seu Nome,
fazer conhecida sua munificência através de ações de graças e fazer o bem aos nossos irmãos”, e
por fim, “a esse ensino adiciona-se uma exortação, com o propósito de estimular-nos
sensivelmente à expressão de benevolência para com nosso próximo. Não é uma honra trivial o
fato de Deus considerar o bem que fazemos aos homens como sacrifício oferecido a ele próprio,
e o fato de valorizar tanto nossas obras, as quais não possuem dignidade em si mesmas, que as
denomina de santas. Portanto, onde nosso amor não se manifesta, não só despojamos as pessoas
de seus direitos, mas também a Deus mesmo, o qual solenemente dedicou a si o que ordenou
fosse feito em favor dos homens”.28

Calvino no capítulo dez do terceiro volume de sua obra magna sob o título “Como se
deve usar a vida presente e seus meios”, apresenta alguns tópico importante de serem
considerados com respeito ao presente tema em análise.

Não encontramos ascetismo no reformador, nem, contudo, alguém adepto do hedonismo,


pois, estes ismos refletem posicionamentos extremados diante da realidade da vida, assim, o que
temos em Calvino, é alguém dirigido pela Palavra, propondo uma perspectiva de uso moderado
dos bens. Vejamos:

Se é preciso viver, é preciso também que nos sirvamos dos meios


necessários para isso. E não podemos evitar aquelas coisas que parecem
27
João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, (2 Co. 8.15), São Paulo, Paracletos, 1995, p. 177.
28
João Calvino, Exposição de Hebreus, (Hb. 13.16), São Paulo, Paracletos, 1997, p. 394, 395.
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sujeitas mais ao prazer que à necessidade. Logo, é preciso que tenhamos


uma medida, a fim de usar tais coisas com consciência limpa, seja por
necessidade, seja por prazer. A medida, no-la prescreve o Senhor com
sua Palavra, quando ensina que a vida presente é uma espécie de
peregrinação para os seus, por meio da qual se encaminham ao reino
celestial. Se é preciso ao menos passarmos pela terra, não há dúvida de
que, enquanto isso, devemos usar seus bens, a fim de que mais ajudem do
que retardem nosso percurso. Por isso, Paulo aconselha a nos servimos
deste mundo como se dele não nos servíssemos, e a comprarmos as
posses com a mesma disposição com que as vendemos (1 Co 7, 31).29

Para Calvino, “o uso dos dons de Deus não é desencaminhado quando se atém à
finalidade para a qual seu autor os criou e destinou, já que Ele os criou para nosso bem, não para
nossa destruição. Por essa razão, ninguém se manterá no caminho mais retamente do que aquele
que olhar com diligência para esse fim. Ora, se pensarmos na finalidade para a qual Ele criou os
alimentos, descobriremos que quis atender não somente a nossa necessidade mas o nosso deleite
e satisfação. Da mesma forma as roupas, além da necessidade, atendem ao decoro e à
honestidade. Nas ervas, árvores e frutas, além das várias utilidades, há a graciosidade da
aparência e o prazer do perfume”.30 A finalidade de tudo quanto Deus dá ao homem é a ação de
graças: “Ele criou todas as coisas para nós a fim de que o reconhecêssemos como autor, e que
recompensemos sua indulgência para conosco por meio da ação de graças”.31

Assim, neste contexto, apresenta Calvino sua regra áurea de comportamento e perspectiva
quanto aos bens materiais deste mundo, “aqueles que desfrutam deste mundo, que o façam como
se não desfrutassem”, uma vida com moderação, “usemos este mundo como se não o
usássemos”32:

Mas não há caminho mais seguro e mais curto do que aquele que se faz
pelo desprezo da vida presente e pela meditação da imortalidade celestial.
Pois daí seguem duas regras: que aqueles que desfrutam deste mundo,
que o façam como se não desfrutassem; os que se casam, como se não se
casassem; os que compram, como se não comprassem, como prescreve
Paulo (1 Co 7, 31). Em seguida, que saibam suportar a penúria com não
menor paz e paciência do que se fosse uma abundância moderada.
Aquele que prescreve que desfrutes deste mundo como se não o
desfrutasses, não somente corta toda intemperança da gula, na comida e

29
João Calvino, A Instituição da Religião Cristã, III.10.1, São Paulo, UNESP, 2009. Continua no mesmo
parágrafo: “Pois houve alguns, de resto homens bons e santos, que, como vissem que a intemperança e a luxúria
correm com desenfreada licenciosidade, a menos que sejam mais severamente contidas, e como desejassem corrigir
tão pernicioso mal, ocorreu-lhes, como única saída, permitir ao homem o uso dos bens corpóreos contanto que a
necessidade o exija. É, evidentemente, uma decisão piedosa; mas foram austeros demais. Pois (o que é muito
perigoso) ataram as consciências com nós mais apertados do que aqueles com os quais são ligadas pela Palavra de
Deus. Além disso, para eles, necessidade é te absteres de todas as coisas sem as quais podes passar. Assim, segundo
eles, apenas nos seria lícito acrescentar algo ao pão comum e à água. É ainda maior a austeridade de outros, como
se conta de Crates de Tebas, que jogou suas riquezas no mar, porque pensava que, se elas não se perdessem, ele
haveria de se perder por causa delas. Hoje, porém, muitos, enquanto buscam um pretexto com que justificar sua
intemperança da carne no uso das coisas externas, e no intuito de deixar o caminho aberto para o lascivo, afirmam
como certo, o que de modo algum lhes concedo, que a liberdade não deve ser restrita por nenhuma regra, mas que se
deve permitir à consciência de cada um o servir-se de tudo o que lhes pareça lícito. Admito que, nesse ponto, não
devemos nem podemos obrigar as consciências com fórmulas fixas e rígidas. Mas, como a Escritura nos fornece
regras gerais sobre seu uso legítimo, certamente devemos ser limitados em conformidade com elas”.
30
João Calvino, A Instituição da Religião Cristã, III.10.2, São Paulo, UNESP, 2009.
31
João Calvino, A Instituição da Religião Cristã, III.10.3, São Paulo, UNESP, 2009.
32
João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, São Paulo, Novo Século, 2001, p. 73.
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na bebida, à mesa, nas residências, nas roupas, a vida efeminada, a


ambição, a soberba, a altivez, a morosidade, mas também todo cuidado e
afeto que ou te impeçam ou te afastem da contemplação da vida celestial
e do empenho em cultivar a alma. Com efeito, verdadeiro é este antigo
dito de Catão: “Grande cuidado no vestir, grande descuido na virtude”,
bem como era provérbio comum que “Aqueles que muito se ocupam do
cuidado de seu corpo devem ser negligentes com sua alma”. Logo,
embora a liberdade dos fiéis com respeito às coisas externas não deva ser
obrigada por uma fórmula fixa, é certo, no entanto, que está sujeita a esta
lei: que os fiéis sejam indulgentes consigo o menos possível; ao contrário,
que tenham a intenção constante de inclinar-se a prescindir de toda
ostentação de abundância supérflua, pois não só o luxo deve ser
reprimido, e acautelem-se diligentemente para que não transformem
auxílios em empecilhos.33

Se o cristão deve ser desapegado à coisas materiais, então a usura é condenada:

Neste versículo Davi prescreve aos santos a não oprimirem seu próximo
com usura, nem a forçá-lo a aceitar suborno em favor de causas injustas.
(…) Lembremo-nos, pois, de que toda e qualquer barganha em que uma
parte injustamente se empenha por angariar lucro em prejuízo da outra
parte, seja que nome lhe damos, é aqui condenada. (…) Aconselharia a
meus leitores a ser precaverem de engenhosamente inventar pretextos,
pelos quais tirem proveito de seus semelhantes, e para que não imaginem
que qualquer coisa pode ser-lhes lícita, quando para outros é grave e
prejudicial.
Com respeito à usura, é raríssimo encontrar no mundo um usurário que
não seja ao mesmo tempo um extorquidor e viciado ao lucro ilícito e
desonroso. Conseqüentemente, Cato desde outrora corretamente colocava
a prática da usura e o homicídio na mesma categoria de criminalidade,
pois o objetivo dessa classe de pessoas é sugar o sangue de outras
pessoas. É também algo muito estranho e deprimente que, enquanto todos
os demais homens obtêm sua subsistência por meio do trabalho, enquanto
os cônjuges se fatigam em suas ocupações diárias e os operários servem à

33
João Calvino, A Instituição da Religião Cristã, III.10.4, São Paulo, UNESP, 2009. Em a Verdadeira Vida Cristã,
São Paulo, Novo Século, 2001, p. 73-74, encontramos:
“Não há um caminho mais direto (à gratidão), do que o de tirarmos nossos olhos da vida presente e meditar na
imortalidade do céu.
Disto se deriva dois grandes princípios: O primeiro é “...que os que são casados, sejam como se não o fossem; e os
que choram, como se não chorassem; e os que se alegram, como se não se alegrassem; e os que compram, como se
não possuíssem; e os que desfrutam deste mundo, como se não o desfrutassem...”
O segundo é que devemos aprender a superar a pobreza quieta e pacientemente, e desfrutar da abundância com
moderação.
2. Aquele que nos ordena a que usemos este mundo como se não o usássemos, não somente nos proíbe toda falta de
moderação em comer e beber, nos prazeres indecorosos e excessivos, na ambição, no orgulho e na fastuosidade em
nosso lar, como também em cada cuidado e afeto que faça diminuir nosso nível espiritual ou que ameace destruir
nossa devoção.
Nos tempos antigos, Catão observou que havia uma grande preocupação pela aparência exterior do corpo, porém um
grande descuido na observância das virtudes.
Também há um antigo provérbio que nos recorda que aqueles que põem muita atenção no corpo, geralmente
descuidam da alma.
3. De modo que, ainda que a liberdade dos crentes em relação ao uso das coisas externas não pode ser restringida
por regras rígidas e extremistas, todavia, e para que sejamos o menos indulgentes possível, esta liberdade tem de
estar sujeita à lei de Deus.
Pelo contrário, devemos de forma contínua e com toda resolução, empenhar esforços para sairmos do meio de tudo
aquilo que é supérfluo, e evitar todo desdobramento de uma atitude vã e de luxo.
Cuidemos em converter em pedra de tropeço, tudo que o Senhor nos de [sic] para enriquecer nossa vida (1 Cor.
7.29-31)”.
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comunidade com o suor de sua fronte, e os mercadores não só se


empenham em variados labores, mas também se expõem a muitas
inconveniências e perigos – os agiotas se deixam levar por vida fácil sem
fazer coisa alguma, recebendo tributo do labor de todas as outras pessoas.
Além disso, sabemos que, geralmente, não são os ricos que são
empobrecidos por sua usura, e, sim, os pobres, precisamente quem
deveria ser aliviado.”34

E ainda sobre a cobrança de juros, o que poderia ser realizado, mas com parâmetros
definidos, ou seja, o trabalho é o meio prioritário por excelência concedido por Deus para suprir
as necessidades do homem. Observemos Calvino sobre os juros:

O lucro que obtém alguém que empresta seu dinheiro no interesse lícito,
sem fazer injúria a quem quer que seja, não está incluído sob o epíteto de
usura ilícita. (…) Em suma, uma vez que tenhamos gravada em nossos
corações a regra de eqüidade que Cristo prescreve em Mateus: „Portanto,
tudo quanto quereis que os homens vos façam, fazei-lhes também o
mesmo‟ [7.12], não será necessário entrar em longa controvérsia em
torno da usura.35

Calvino apresenta uma regra não somente para os abastados de bens, mas também uma
que deve ser aplicada por aqueles que estão debilitados financeiramente, desta feita a paciência:

A outra regra será que aqueles para quem as coisas são apertadas e parcas
saibam suportar com paciência sua pobreza, para não se verem
atormentados por uma cobiça imoderada. Aqueles que o conseguem,
aproveitaram não pouco na escola do Senhor. Assim como dificilmente
pode ter com o que provar que é discípulo de Cristo aquele que, nessa
parte, não tenha ao menos aproveitado nada. Pois, a despeito de o apetite
das coisas terrenas vir acompanhado de muitos outros vícios, aquele que
sofre a penúria com impaciência mostra, entretanto, o vício contrário na
abundância. Entendo por isso que quem se envergonha de sua roupa
pobre vangloriar-se-á de uma cara; quem não se contenta com uma
refeição frugal inquietar-se-á com o desejo de outra, mais lauta, e abusará
com intemperança também das iguarias, se as provar; quem com grande
dificuldade e espírito inquieto suporta uma condição humilde, se chegar a
obter honras, de modo algum poderá abster-se de um comportamento
arrogante. Logo, aproximem-se todos aqueles para quem a prática da
piedade não é fingida, para que aprendam, a exemplo do apóstolo, tanto a
estar saciados como a ter fome, a viver na penúria e na abundância (Fp 4,
12).36

34
João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1, São Paulo: Edições Paracletos, 1999, (Sl 15.5), p. 297-298.
35
João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1, São Paulo: Edições Paracletos, 1999, (Sl 15.5), p. 299.
36
João Calvino, A Instituição da Religião Cristã, III.10.5, São Paulo, UNESP, 2009. Em a Verdadeira Vida Cristã,
São Paulo, Novo Século, 2001, p. 74-75, encontramos:
“1. O outro princípio é que o pobre deveria aprender a ser paciente sob as privações, para não se encontrar
atormentado com uma excessiva paixão pelas riquezas.
Aqueles que observam esta moderação, não têm feito pouco progresso na escola do Senhor, e os que não têm
avançado desta forma na vida espiritual, têm dado provas muito escassas de seu discipulado em Cristo.
2. A paixão pelas coisas terrenas não só está acompanhada de outros vícios, como também que aquele que é
impaciente sob a privação manifestará o vício oposto quando estiver no meio do luxo.
Isto significa que aquele homem que se envergonha de um [sic] vestimenta simples, estará orgulhoso quando usar
um [sic] bem cara.
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Há ainda uma terceira regra sobre o uso das coisas terrenas, que possui íntima ligação
com os preceitos da caridade, as quais contas serão prestadas diante de Deus. Vejamos:

Ensina-nos que todas as coisas nos são dadas pela benignidade de Deus e
destinadas a nosso bem-estar, de forma que sejam como um depósito do
qual um dia havemos de prestar contas. Por conseguinte, é preciso
administrá-las como se soasse sempre em nossos ouvidos aquela
sentença: “Presta conta de tua administração” [Lc 16, 2]. E, ao mesmo
tempo, recordemos quem nos exige tal prestação de contas, a saber,
aquele que tanto nos recomendou a abstinência, a sobriedade, a
frugalidade e a modéstia, e que execra o luxo, a soberba, a ostentação e
finalmente a vaidade; que não aprova outra dispensação de bens do que
aquela que está unida à caridade; que por sua própria boca já condenou
todos os deleites que afastam o espírito do homem da castidade e da
pureza, ou que envolvem a mente em trevas.37

Comentando o texto de Paulo a Timóteo, especificamente a expressão “Porque nada


trouxemos para o mundo”, assevera Calvino:

Nossa cobiça é um abismo insaciável, a menos que seja ela restringida; e


a melhor forma de mantê-la sob controle é não desejarmos nada além do
necessário imposto pela presente vida; pois a razão pela qual não
aceitamos esse limite está no fato de nossa ansiedade abarcas mil e uma
existências, as quais debalde sonhamos só para nós. (...) ...cada um de nós
prevê que suas necessidades absorverão vastas fortunas, como se
possuíssemos um estômago bastante grande para comportar metade da
terra. (...) Para assegurarmos que a suficiência [divina] nos satisfaça,
aprendamos a controlar nossos desejos de modo que a não querermos
mais do que é necessário para a manutenção de nossa vida. Ao qualificar
de alimento e cobertura, ele exclui o luxo e a superabundância. Pois a
natureza vive contente com um pouco, e tudo quanto extrapola o uso
natural é supérfluo. Não que algum uso mais liberal de possessões seja

A pessoa que não está contente com uma comida moderada, se sente incomodada porque deseja um manjar
suculento, e quando tiver uma oportunidade, manifestará seu temperamento irascível.
Aquele que estiver inquieto ou insatisfeito por estar vivendo sob privações e humildade, não será capaz de guardar-
se do orgulho e da arrogância quando desfrutar da opulência.
Portanto, aqueles que querem ser sinceros em sua devoção, tratem fervorosamente de seguir o exemplo apostólico:
“Sei o que é passar necessidade e sei o que é ter fartura. Aprendi a adaptar-me a toda e qualquer circunstância.”
(Fil. 4.12)”.
37
João Calvino, A Instituição da Religião Cristã, III.10.5, São Paulo, UNESP, 2009. Em a Verdadeira Vida Cristã,
São Paulo, Novo Século, 2001, p. 75, encontramos:
“3. A escritura também menciona um terceiro princípio mediante o qual, se limita o uso das coisas terrenas, e já o
temos mencionado ao falarmos dos preceitos da autonegação.
Posto que todas as coisas nos são dadas pela divina bondade para nosso benefício, ao mesmo tempo se convertem
em depósitos confiados a nosso cuidado, dos quais um dia teremos que prestar contas.
Devemos então administrá-las de tal maneira como se incessantemente ouvíssemos a seguinte advertência:
“Apresenta as contas de tua administração...”
4. Recordemos também quem é que pede estas contas. É Aquele que nos recomenda de maneira tão especial
guardar a sobriedade, a frugalidade e a modéstia.
É também a quem aborrece os excessos, o orgulho, a arrogância e o exibicionismo.
É Aquele que não aprova a administração que fazemos de Suas bênçãos, a menos que sejamos motivados pelo amor.
É quem, de sua própria boca, condena todos os prazeres que nos separam da castidade e da pureza, e que nos
convertem em pessoas estúpidas e néscias. (Fil. 4.12; Luc. 16.2)”.
Em outro lugar afirma: “Visto que nosso Pai celestial nos concede todas as coisas por sua livre graça, devemos ser
imitadores de sua graciosa benevolência, praticando também atos de bondade em favor de outrem; e em razão de
nossos recursos virem dele, não somos mais que despenseiros dos dons de sua graça”. João Calvino, Exposição de 2
Coríntios, (2 Co. 8.4), São Paulo, Paracletos, 1995, p. 169.
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condenado como um mal em si mesmo, mas a ansiedade em torno delas é


sempre pecaminosa.38

Já na segunda carta de Paulo aos Coríntios afirma: “Os crentes gozam de genuína riqueza
quando confiam na providência divina que os mantém com suficiência e não se desvanecem em
fazer o bem por falta de fé. (...) Ninguém é mais frustrado ou carente do que aquele que vive sem
fé, cuja preocupação com suas posses dilui toda a sua paz”.39

Para Calvino, rico era aquele que não desejava mais do que já possuía, onde diz:
“Confesso, deveras, que não sou pobre; pois não desejo mais além daquilo que possuo”. 40 E
ainda: “Pôr o coração nas riquezas significa mais que simplesmente cobiçar a posse delas.
Implica ser arrebatado por elas a nutrir uma falsa confiança. (...) É invariavelmente observado
que a prosperidade e a abundância engendram um espírito altivo, levando prontamente os
homens a nutrirem presunção em seu procedimento diante de Deus, e a se precipitarem em
lançar injúria contra seus semelhantes. Mas, na verdade o pior efeito a ser temido de um espírito
cego e desgovernado desse gênero é que, na intoxicação da grandeza externa, somos levados a
ignorar quão frágeis somos, e quão soberba e insolentemente nos exaltamos contra Deus”.41 E
mais: “quando depositamos nossa confiança nas riquezas, na verdade estamos transferindo para
elas as prerrogativas que pertencem exclusivamente a Deus”.42

Para Calvino todas as dádivas que o homem recebe de Deus devem ter um uso social em
benefício do próximo. Pois, “temos de compartilhar liberalmente e agradavelmente todos e cada
um dos favores do Senhor com os demais, pois isto é a única coisa que os legitima. Todas as
bênçãos de que gozamos são depósitos divinos que temos recebido com a condição de distribuí-
los aos demais. Não podemos imaginar uma incumbência mais apropriada a uma sugestão mais
poderosa que esta”.43 E ainda:

A Escritura (...) adverte-nos de que todas as graças que obtemos do


Senhor nos foram confiadas por Ele com a condição de que contribuamos
ao bem comum da Igreja; e, portanto, que o uso legítimo de todas essas
graças implica a comunicação liberal e benigna delas aos demais. Para
manter essa comunicação, não se poderia imaginar nenhuma outra regra,
nem mais certa nem mais poderosa, pois nos ensina que todos os bens
que valorizamos nos foram dados por Deus em depósito, e que os passou
para nossas mãos com a condição de que os repartamos em benefício do
próximo. A Escritura vai ainda mais longe quando compara essas graças
às faculdades de que os membros do corpo humano foram dotados.
Nenhum membro tem sua faculdade própria para si nem a aplica para uso
privado, mas a transfere aos outros membros, e não tira daí outro proveito
senão aquele que procede do bem-estar comum do corpo como um todo.
Assim, seja o que for que o homem piedoso possa, deve poder em
benefício de seus irmãos; preocupando-se consigo em particular apenas
na medida em que seu espírito está voltado para a edificação geral da
Igreja. E assim, que isto seja para nós um método para a benignidade e a
beneficência: somos administradores de tudo o que Deus nos conferiu

38
João Calvino, As Pastorais, (1 Tm. 6.7, 8), São Paulo, Paracletos, 1998, p. 168-169.
39
João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, (2 Co. 9.11), São Paulo, Paracletos, 1995, p. 193-194.
40
João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1, São Paulo, Paracletos, 1999, p. 46.
41
João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 2, (Sl. 62.10), São Paulo, Paracletos, 1999, p. 580.
42
João Calvino, As Pastorais, (1Tm. 6.17), São Paulo, Paracletos, 1998, p. 182.
43
João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, São Paulo, Novo Século, 2001, p. 77.
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com que podemos ajudar ao próximo, e estamos obrigados a prestar


contas de nossa administração. Além de tudo, essa é a única dispensação
correta, a exigida pela regra da caridade. Assim, não somente ocorrerá
que uniremos sempre a preocupação com o bem-estar alheio com o
cuidado de nossa própria utilidade, mas até subordinaremos este àquela.44

Calvino ao comentar a segunda carta de Paulo aos Coríntios no capítulo 8 onde este os
encorajava a arrecadarem dinheiro com vistas a auxiliar aos de Jerusalém, pois passavam por
grande fome e dependiam a sua existência da misericórdia externa de outros irmãos, o
reformador apresenta alguns ensinos sobre o tema em questão. Afirma: “Porque, ainda que seja
universalmente consensual que é uma virtude louvável prestar ajuda ao necessitado, todavia nem
todos os homens consideram o dar como sendo uma vantagem, nem tampouco o atribuem à
graça de Deus. Ao contrário disso, acreditam que alguma coisa sua, ao ser doada, perdeu-se”.45
A possibilidade de se ser solicito com relação o dinheiro em favor daqueles que necessitam não é
uma tarefa possível apenas àqueles que estão abastados; “notemos bem como podemos ser
sempre liberais mesmo quando mergulhados na mais terrível pobreza, se suprimos as
deficiências de nossas bolsas pela generosidade de nossos corações”46 e ainda, “os que dão de
seus minguados recursos se mostram condescendentes além de suas possibilidades uma vez que
de seus pobres meios ainda fazem alguma doação a outrem”.47 Ensina a liberalidade e não a
mesquinhez, o seu oposto: “O que nos torna mais avarentos do que deveríamos em relação ao
nosso dinheiro é o fato de sermos tão precavidos e enxergarmos tão longe quanto possível os
supostos perigos que nos podem sobrevir, e assim nos tornamos demasiadamente cautelosos e
ansiosos, e passamos a trabalhar tão freneticamente como se devêssemos suprir de vez as

44
João Calvino, A Instituição da Religião Cristã, III.7.5, São Paulo, UNESP, 2009. À frente, no parágrafo seguinte,
continua Calvino: “Ademais, a fim de não esmorecermos ao fazer o bem (o que de outra forma necessariamente
ocorreria em seguida), convém citar outro trecho do apóstolo: “O amor é paciente, não se irrita” (1 Co 13, 4). O
Senhor prescreve que se faça o bem a todos, sem exceção, ainda que eles sejam, em sua maior parte, completamente
indignos, se são julgados pelos próprios méritos. Mas aqui a Escritura apresenta uma excelente razão, ao ensinar-
nos que não devemos examinar o que os homens mereçam por si, mas sim considerar em todos a imagem de Deus, à
qual devemos toda honra e amor. Ela deve ser observada ainda mais diligentemente naqueles que são “da família da
fé” (Gl 6, 10), enquanto é neles renovada e restaurada pelo Espírito de Cristo. Assim, qualquer um que se apresente
agora e que esteja necessitado da tua ajuda, não tens motivo por que te recusares a dedicares-te a ele. Dize que é um
estranho; mas o Senhor mesmo imprimiu nele uma marca que te deve ser familiar, em virtude da qual proíbe que
menosprezes tua carne (Is 58, 7). Dize que é um homem desprezível e sem valor; mas o Senhor demonstra que ele é
alguém honrado para com ele; mas Deus como que o colocou em seu lugar, a fim de que, diante dele, reconheças os
benefícios com os quais Deus te prendeu a si. Dize que ele é indigno de te dês ao menor trabalho por causa dele;
mas a imagem de Deus, por causa da qual ele te foi recomendado, esta é digna de que te does e a tudo quanto tens.
E se ele não apenas não for merecedor de benefício algum, mas até tiver te provocado com injúrias e malefícios,
nem mesmo isso é razão justa para que deixes de abraçá-lo com amor e prosseguir nos deveres do amor (Mt 6, 14;
18, 35; Lc 17, 3). Dirás que ele é merecedor de algo muito diferente. Mas que merece o Senhor? Ele que, quando
te ordena perdoar a esse homem qualquer pecado que tenha cometido contra ti, certamente quer considerá-lo
cometido contra Ele. Este é, de fato, o único caminho para chegar àquilo que é tão contrário à natureza humana,
além de difícil: amar aos que nos têm ódio, devolver males com bens, oferecer bênçãos aos que nos caluniam (Mt 5,
44); se nos lembrarmos que não devemos pensar na malícia dos homens, mas considerar neles somente a imagem de
Deus, que, com sua beleza e dignidade, nos persuade a amá-los e abraçá-los, uma vez apagados e esquecidos seus
delitos”. João Calvino, A Instituição da Religião Cristã, III.7.6, São Paulo, UNESP, 2009. Também afirma:
“Embora a liberdade dos fiéis com respeito às coisas externas não deva ser obrigada por uma fórmula fixa, é certo,
no entanto, que está sujeita a esta lei: que os fiéis sejam indulgentes consigo o menos possível; ao contrário, que
tenham a intenção constante de inclinar-se a prescindir de toda ostentação de abundancia supérflua, pois não só o
luxo deve ser reprimido, e acautelem-se diligentemente para que não transformem auxílios em empecilhos”. João
Calvino, A Instituição da Religião Cristã, III.10.4, São Paulo, UNESP, 2009.
45
João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, (2 Co. 8.1), São Paulo, Paracletos, 1995, p. 166.
46
João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, (2 Co. 8.2), São Paulo, Paracletos, 1995, p. 167.
47
João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, (2 Co. 8.3), São Paulo, Paracletos, 1995, p. 168.
A ÉTICA SOCIAL DE CALVINO Prof.º Ms. Christian Medeiros 15

necessidades de todo o curso de nossa vida, e afigura-se-nos como grande perda quando uma
mínima parcela nos é tirada. Mas aquele que depende da bênção do Senhor tem o seu espírito
livre dessas preocupações ridículas, enquanto que, ao mesmo tempo, tem suas mãos livres para a
prática da beneficência”.48 O homem é despenseiro das dádivas de Deus: “visto que nosso Pai
celestial nos concede todas as coisas por sua livre graça, devemos ser imitadores de sua graciosa
benevolência, praticando também atos de bondade em favor de outrem; e em razão de nossos
recursos virem dele, não somos mais que despenseiros dos dons de sua graça”. 49 Apresenta a
Cristo como o grande exemplo de solicitude: “ele fez-se pobre porque abriu mão de sua
possessão e por algum tempo deixou de exercer seus direitos. (...) ...ele santificou a pobreza em
sua própria pessoa, para que os crentes não mais retrocedam diante dela, e por meio de sua
pobreza ele nos enriqueceu, para que não mais achemos difícil tomar de nossa abundancia e a
usemos em favor de nossos irmão”. 50 Uma advertência: “o Senhor não deseja que sejamos
influenciados pela esperança de recompensa ou alguma retribuição em troca de nossa doação,
mas ainda que os homens sejam ingratos, de modo que pareça termos perdido o que lhes
doamos, devemos perseverar em fazer o bem”.51 A disposição em dar deve ser tomada como
culto52 a Deus, como uma disposição natural do coração, que tanto ricos como pobres podem e
devem fazê-lo: “a disposição em dar não é avaliada pelo que você não tem, ou, em outras
palavras, Deus jamais exige que você contribua mais do que seus recursos o permitem. Por este
critério, ninguém é deixado com alguma escusa, visto que os ricos devem a Deus um grande
tributo, e os pobres ficam destituídos de razão para se envergonhar se o que dão é muito
pouco”.53

Ainda na segunda carta de Paulo aos Coríntios, desta feita no capítulo nove, afirma
Calvino qual é a finalidade das dádivas que Deus concede aos seus: “Deus não nos faz o bem
com o fim de cada um de nós guardar para si mesmo o que recebe, mas para que haja mútua
participação entre nós, de acordo com os reclamos das necessidades”.54 Ainda expressamente
assevera: “...assim como não nascemos unicamente para nós mesmos, também o cristão não deve
viver unicamente para si mesmo, nem usar o que possui somente para os seus propósitos
particulares ou pessoais. (...) Já que dar assistência às necessidades de nosso próximo é uma
parte da justiça – e de forma alguma é a menor parte –, os que negligenciam esta parte de seu
dever devem ser tidos no conta de injustos”.55

Com qual espírito os cristãos devem ajudar aqueles que necessitam? Calvino responde de
modo claro e direto:

48
João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, (2 Co. 8.2), São Paulo, Paracletos, 1995, p. 167-168.
49
João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, (2 Co. 8.4), São Paulo, Paracletos, 1995, p. 169.
50
João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, (2 Co. 8.9), São Paulo, Paracletos, 1995, p. 172.
51
João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, (2 Co. 8.10), São Paulo, Paracletos, 1995, p. 173.
52
“Cada um deles deve contribuir segundo sua capacidade, e acrescenta, segundo seu modo de raciocinar, que Deus
não considera a quantidade, e, sim, o coração. Pois quando ele diz que um coração disposto é aceitável a Deus
segundo a capacidade de cada homem, ele quer dizer o seguinte: “Se ofereceis uma pequena oferta tirada de vossos
parcos recursos, a vossa intenção é tão valiosa aos olhos de Deus como se fosse um rico a fazer uma grande oferta
tirada da sua abundância.” João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, (2 Co. 8.11), São Paulo, Paracletos, 1995, p.
174.
53
João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, (2 Co. 8.11), São Paulo, Paracletos, 1995, p. 174.
54
João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, (2 Co. 9.8), São Paulo, Paracletos, 1995, p. 191.
55
João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, (2 Co. 9.10), São Paulo, Paracletos, p. 193.
A ÉTICA SOCIAL DE CALVINO Prof.º Ms. Christian Medeiros 16

Ao praticar uma caridade, os cristãos deveriam ter mais do que um rosto


sorridente, uma expressão amável, uma linguagem educada.
Em primeiro lugar, deveriam se colocar no lugar daquela pessoa que
necessita de ajuda, e simpatizarem-se com ela como se fossem eles
mesmo que estivessem sofrendo. Seu dever é mostrar uma verdadeira
humanidade e misericórdia, oferecendo sua ajuda com espontaneidade e
rapidez como se fosse para si mesmos.
A piedade que surge do coração fará com que se desvaneça a arrogância e
o orgulho, e nos prevenirá de termos uma atitude de reprovação ou
desdém para com o pobre e o necessitado.
Quando um membro de nosso corpo físico está enfermo, e todo o
organismo tem que se pôr em ação para restaurá-lo e voltar à saúde, não
temos uma atitude de desprezo em relação a esse membro enfermo, nem
cuidamos ou sustentamo-lo por obrigação, mas com nossa melhor
vontade.
A ajuda mútua que as diferentes partes do corpo oferecem umas às outras,
não é considerada pela lei da natureza como um favor, mas, sim, como
algo lógico e normal, cuja negativa seria cruel. Portanto, se um homem
tem realizado um serviço a outro, não deve considerar-se livre de todas as
suas demais obrigações. Por exemplo, se alguém é rico e tem dado parte
de sua propriedade, porém em troca se nega a ajudar a outros em seus
problemas, não pode considerar-se escusado de haver cumprido com
todas as suas obrigações.
Por mais importante que seja, cada homem deve dar-se conta que é
devedor a seu próximo, e que o amor lhe manda dar até o limite de sua
capacidade.56

O grande fator motivador para auxílio e ajuda ao próximo está no fato de que este foi
criado e é imagem e semelhança do Criador. Uma vez que “o bem que fazermos aos homens”
Deus considera “como sacrifício oferecido a ele próprio”.57

Em A Verdadeira Vida Cristã enfatiza: “A Escritura nos ajuda com um excelente


argumento, ensinando-nos a não pensar no valor real do homem, mas só em sua criação, feita
conforme a imagem de Deus. A Ele devemos toda honra e o amor de nosso ser”.58 Continua
apresentando o fato de o homem ser imagem e semelhança de Deus como o fator de primordial
impulso para fazer-lhe o bem, vejamos:

De modo que se alguém aparece diante de vocês necessitando de seus


amáveis serviços, não há razão alguma em recusar-lhe tal ajuda.
Suponhamos que seja um estranho que necessita de nossa ajuda; mesmo
por ser estranho, o Senhor tem posto nele Seu próprio selo e lhe tem feito
como alguém de tua própria família; portanto, te proíbe de desprezar tua
própria carne e sangue.
Suponhamos que seja vil e indigno; ainda assim, o Senhor lhe destinou
como adorno, Sua própria imagem.
Suponhamos que não tenha nenhuma obrigação de servi-lo; ainda assim,
o Senhor o tem colocado com se fosse Seu próprio substituto, de modo
que nos sintamos obrigados pelos numerosos e incontáveis benefícios
recebidos.

56
João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, São Paulo, Novo Século, 2001, p. 39-40.
57
João Calvino, Exposição de Hebreus, (Hb. 13.16), São Paulo, Paracletos, 1997, p. 394.
58
João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, São Paulo, Novo Século, 2001, p. 37.
A ÉTICA SOCIAL DE CALVINO Prof.º Ms. Christian Medeiros 17

Suponhamos que seja alguém indigno do mais mínimo esforço a seu


favor, porém a imagem de Deus nele é digna de dispormos a nós mesmo
e nossas possas a ele.
Se ele não tem te mostrado amabilidade, mas que, pelo contrário, tem te
maltratado com injúrias e insultos, ainda assim não há razão para não
rodeá-lo com teu afeto e fazê-lo objeto de toda classe de favores.
Você poderia dizer que ele merece um trato muito diferente, porém, o que
é que nos ordena o Senhor, não é que perdoemos as ofensas de todos os
homens e que remetamos a causa a Deus?
Este é o único caminho para obter aquilo que não só é dificultoso, mas
que também é repugnante à natureza humana: amar a quem nos odeia,
corresponder às injúrias com amabilidade e devolver bênçãos por
insultos.
Recordemos sempre que não temos de pensar continuamente nas
maldades do homem, mas, antes, darmos conta de que ele é portador da
imagem de Deus.
Se com nosso amor cubrimos [sic] e fazemos desaparecer as faltas do
próximo, considerando a beleza e a dignidade da imagem de Deus nele,
seremos induzidos a ama-lo [sic] de coração. Ver. Heb. 12.16; Gal. 6.10;
Is. 58.7; Mat. 5.44; Luc. 17.3 e 4.59

Calvino e a Educação: expressão ética60

O ano de 1536 tem grande importância para Genebra no campo da educação 61 , pois
Calvino redige um programa de governo para a cidade onde enfatiza a necessidade do
conhecimento, para tanto solicitava a criação de escolas na cidade. Apresentou um projeto
educacional gratuito para a cidade de Genebra, destinado tanto a meninos quanto a meninas; aqui
encontramos o início da “primeira escola primária, gratuita e obrigatória de toda a Europa”. 62
Dizia Calvino que o saber “era necessidade pública para assegurar boa administração política,
apoiar a igreja indefesa e manter a humanidade entre os homens”.63

A descrição, o testemunho e a conclusão do historiador da educação Lorenzo Luzuriaga é


muito pertinente, pois revela o poder de influência de Calvino no campo cultural e social de
Genebra, e também de outras partes da Europa, observemos com atenção:

Publicou, ainda, em 1558, um sistema de educação elementar no idioma


vernáculo, para todos, e que compreendia o ensino de leitura, escrita,
aritmética, religião e exercícios de gramática. Fundou principalmente
seus famosos collèges, escolas secundárias que chegaram a constituir
modelo para os ulteriores Colégios e Liceus da França. Neles se
deveriam formar os funcionários civis e os eclesiásticos, por meio das
humanidades e da instrução religiosa. Por sua influencia realizaram-se as

59
João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, São Paulo, Novo Século, 2001, p. 37-38.
60
Para maiores informações em um estudo amplamente fundamentado e mais abrangente ver: Hermisten Maia
Pereira da Costa, João Calvino – 500 anos: introdução ao seu pensamento e obra, São Paulo, Cultura Cristã, 2009,
p. 325-346.
61
Para maiores detalhes quanto ao presente assunto ver: Gerald L. Gutek, Historical and Philosophical Foundations
of Education: a biographical introduction, 3.ª ed., New Jersey, 2001, p. 84-97.
62
Hermisten Maia Pereira da Costa, João Calvino – 500 anos: introdução ao seu pensamento e obra, São Paulo,
Cultura Cristã, 2009, p. 334.
63
Lorenzo Luzuriaga, História da Educação e da Pedagogia, 11.ª ed., São Paulo, Editora Nacional, 1979, p. 112.
A ÉTICA SOCIAL DE CALVINO Prof.º Ms. Christian Medeiros 18

reformas pedagógicas de Genebra, que chegou a ser o refúgio dos


perseguidos da Europa toda por questões religiosas e um dos principais
centros de saber do Continente. As idéias calvinistas se estenderam,
assim, aos huguenotes na França, aos valões da Holanda e Bélgica, aos
puritanos na Inglaterra, aos presbiterianos na Escócia e mais tarde às
colônias inglesas da América. Do ponto de vista educacional, o
movimento calvinista foi quiçá mais eficiente que o próprio movimento
luterano.64

O campo de influência do pensamento de João Calvino não restrito ao ambiente


educacional em Genebra e na Europa de um modo geral, ele estende a outras áreas diversas da
intelectualidade humana a partir da Reforma Protestante do século XVI. As ciências de um
modo geral devem muito à teologia de Calvino, vejamos o relato do historiador da ciência, o
holandês Reijer Hooykaas:

O tema central da teologia da Reforma era “a glória de Deus”. Kepler


escreveu, em 1598, que os astrônomos, na qualidade de sacerdotes de
Deus no que diz respeito ao livro da natureza, deviam ter em mente não a
glória de seu próprio intelecto, mas, acima de tudo, a glória de Deus. (...)
A Igreja reformada ensinava que a obrigação de glorificar a Deus por
todas as Suas obras deve ser cumprida por todas as faculdades do homem,
e não somente pelos olhos, mas também pelo intelecto. Calvino era de
opinião que aqueles que negligenciavam o estudo da natureza eram tão
culpados como aqueles que, ao investigarem as obras de Deus, se
esqueciam do Criador. Reprovava veementemente aqueles “fantásticos”
antagonistas da ciência que diziam que o estudo apenas torna os homens
soberbos e que não reconheciam que isto levava ao “conhecimento de
Deus e à orientação da vida”. Reiteradas vezes afirmou que a pesquisa
científica é algo que penetra muito mais profundamente nas maravilhas
da natureza do que a mera contemplação. Ao fazer essa declaração, não
se referia à “física” especulativa de sua época, mas às sólidas disciplinas
empíricas então existentes, ou seja, a astronomia e a anatomia, que
revelavam, segundo ele, os segredos do macrocosmo e do microcosmo.65

A Academia foi inaugurada em 05 de junho de 1559, na igreja de Saint-Pierre, sob a


direção de Beza66, possuía as cadeiras de grego, hebraico e filosofia. Neste ano foi lançada a
última edição das Institutas. Temos também a primeira reunião do sínodo da Igreja Reformada
da França. Diz Giles: “A Academia representa o ápice do sistema. (...) ...o êxito da escola é
imediato, a ponto de atrair alunos da França, da Inglaterra, da Holanda e da Escócia, países em
que serve de modelo”.67 Nas palavra de Pierre Bertrand: “ela será a primeira fonte da Genebra

64
Lorenzo Luzuriaga, História da Educação e da Pedagogia, 11.ª ed., São Paulo, Editora Nacional, 1979, p. 112.
65
R. Hooykaas, A Religião e o Desenvolvimento da Ciência Moderna, Brasília, Editora da Universidade de Brasília,
1988, p. 137-138.
66
“Ao apontar Beza como líder, ele escolheu um humanista conhecido internacionalmente e um homem das letras
que escrevia e amava poesia e já havia publicado uma peça. Beza pronunciou um discurso na cerimônia inaugural
em 5 de junho de 1559, apresentando uma história da educação no passado, referindo-se a como Moisés aprendeu a
sabedoria dos egípcios e congratulando o Concílio por propiciar que Genebra compartilhasse da gloriosa obra de
difusão de um conhecimento que estava livre de superstições”. Ronald Wallace, Calvino, Genebra e a Reforma: um
estudo sobre Calvino como um Reformador Social, Clérigo, Pastor e Teólogo, São Paulo, Cultura Cristã, 2003, p.
89.
67
Thomas Ransom Giles, História da Educação, São Paulo, E.P.U., 1987, p. 126.
A ÉTICA SOCIAL DE CALVINO Prof.º Ms. Christian Medeiros 19

intelectual” 68 ; e ainda afirmou que a própria cidade foi fundada sobre a Palavra de Deus,
grandemente ensinada.

Sobre a estrutura e a frequência da Academia, observa Wallace:

Havia duas seções na instituição como um todo. Normalmente, uma


criança ia primeiro para o colégio ou Schola Privata, com sete séries, que
levava gradualmente o aluno a ganhar habilidade para ler grego e latim e
no estudo da dialética. Entre os autores estudados estavam Virgílio,
Cícero, Ovídio, César, Isócrates, Lívio, Xenofontes, Políbio, Homero e
Demóstenes. Depois vinha a academia ou a Schola Publica, em que
diferentes cursos eletivos poderiam ser escolhidos dentre uma variedade
de assuntos oferecidos – Teologia, Hebraico, Grego, Poesia, Dialética e
Retórica, Física e Matemática.
Quando de sua abertura, a Academia tinha seiscentos alunos. O número
de matriculados aumentou no primeiro ano para novecentos. Eles vinham
de toda a Europa e a lista de professores e alunos famosos é
impressionante. O próprio Calvino escreveu os regulamentos para a
instrução. Os professores tinham de assinar uma confissão de fé que,
entretanto, não incluía a predestinação. Kampschulte, o biógrafo católico
romano de Calvino do século 19, ressalta que poucas décadas depois
disso, quando Acquaviva, o general da ordem jesuíta, estabeleceu seu
currículo educacional, o qual foi extensivamente baseado nos
regulamentos da academia de Genebra, demonstrou sua profunda gratidão
a Calvino por sua visão abrangente sobre questões acadêmicas.69

A preocupação, o zelo e o impulso em labutar no campo educacional por parte de Calvino


estava íntima e intrinsecamente associado ao seu conceito de que o homem fora criado à imagem
e semelhança de Deus, portanto, este deveria ser serviço em todos os âmbitos possíveis. Desta
feita, o homem possui a capacidade essencial de aprender e produzir conhecimento:

Seguem-se as artes, sejam liberais, sejam manuais, pelas quais há de se


aprender. Também nelas aparece a força da sutileza humana, uma vez
que certa aptidão é inerente a todos nós. Ainda que nem todos sejam
capazes para o aprendizado de tudo, há um indício satisfatório de uma
energia comum, pois não se encontra ninguém em que não se descubra
uma perfeita compreensão de alguma arte. E não dispõe da energia e da
facilidade apenas para aprender, mas para imaginar algo novo em alguma
arte, ou para ampliar e lustrar o que alguém tenha antes ensinado. E
Platão, uma vez que disseminou um erro, ao ensinar que tal compreensão
nada mais fosse que a recordação, obriga-nos assim a confessar, por uma
excelente razão, que seu princípio foi inspirado pelo entendimento
humano. Portanto, esses ensinamentos atestam abertamente que a
compreensão universal da razão e da inteligência está incutida de forma
natural nos homens. Assim, entretanto, universal é o bem, dado que nele
cada um deva reconhecer por si a graça peculiar de Deus.70

68
Pierre Bertrand, Survol de L’Histoire de Genève, Genève, Labor et Fides, s/d, p. 62.
69
Ronald Wallace, Calvino, Genebra e a Reforma: um estudo sobre Calvino como um Reformador Social, Clérigo,
Pastor e Teólogo, São Paulo, Cultura Cristã, 2003, p. 88-89.
70
João Calvino, A Instituição da Religião Cristã, São Paulo, UNESP, 2008, II.2.14.
A ÉTICA SOCIAL DE CALVINO Prof.º Ms. Christian Medeiros 20

Palavras Finais

O púlpito foi o instrumento por excelência usado por Calvino. Uma das principais
características da reforma protestante do século XVI está no fato de que durante este período
ocorreu um verdadeiro retorno à fiel pregação da Palavra de Deus. W. Stanford Reid afirma:
“Poder-se-ia quase dizer que a reforma trouxe o renascimento da pregação”.71 Patrick Collinson
diz que: “o sermão era provavelmente o meio mais poderoso de comunicação oral do alto para
baixo”, também faz uma assertiva deveras pertinente em nossos dias ao afirmar que “o púlpito
tinha sido construído para sermões, e não para dança”. 72 Também diz que “a Reforma
prescreveu uma nova primazia dos ouvidos sobre os olhos”. 73 Já John H. Leith afirma: “A
reforma (...) foi o maior reavivamento da pregação na história da igreja. (...) A pregação estava
no próprio centro da reforma em Genebra”. 74 John Stott: “A Reforma deu centralidade ao
sermão”.75 Paulo Anglada: “os reformadores foram principalmente pregadores da Palavra”. 76
Emile Doumergue: “Calvino o pregador de Genebra, moldando por suas palavras o espírito da
Reforma do século XVI”.77

Observemos as palavras do escritor e jurista brasileiro Fábio Konder Comparato,


professor de direito da Universidade de São Paulo-USP: “movido pelo dever de pregar
integralmente a Palavra do Senhor (...) Calvino permaneceu sempre rigidamente apegado à idéia
de que tudo, inclusive a própria fé, nos vem de Deus, pois desde o pecado original nada de bom
nos advém por nosso próprio mérito”.78 Claramente Comparato atesta hoje o zelo que possuía
Calvino pela pregação.

Patrick Collinson nos instiga com duas perguntas: “Como Calvino conseguiu fazer o que
fez? Como foi que por volta de 1553 a magistratura civil já se tornara ainda mais zelosa do que
o próprio Calvino na decisão de “viver segundo o Evangelho?” Eis sua resposta: “A resposta
mais simples é sua capacidade de pregação no púlpito, que fez Genebra submeter-se à vontade
de Deus. Foi um ataque impiedoso aos ouvidos da cidade. Havia sermões diários, e três aos
domingos. A contribuição de Calvino foi de 260 sermões por ano”. 79 Continua ainda Collinson,
diz que: “o sermão era provavelmente o meio mais poderoso de comunicação oral do alto para
baixo”, também faz uma assertiva deveras pertinente em nossos dias ao afirmar que “o púlpito

71
W. Stanford Reid, A Propagação do Calvinismo no Século XVI in: W. Stanford Reid (ed.), Calvino e sua
influência no mundo ocidental, São Paulo, Casa Editora Presbiteriana, 1990, p. 49.
72
Patrick Collinson, A Reforma, Rio de Janeiro, Objetiva, 2006, p. 194.
73
Patrick Collinson, A Reforma, Rio de Janeiro, Objetiva, 2006, p. 50.
74
John H. Leith, A Tradição Reformada: uma maneira de ser a comunidade cristã, São Paulo, Pendão Real, 1996,
p. 125.
75
John Stott, Eu Creio na Pregação, São Paulo, Vida, 2003, p. 24.
76
Paulo Anglada, Introdução à Hermenêutica Reformada: correntes históricas, pressuposições, princípios e
métodos lingüísticos, Ananindeua, Knox Publicações, 2006, p. 20.
77
Leroy Nixon, John Calvin, Expository Preacher, Grand Rapids, Eerdmans, 1950, p. 38 Apud Ronald Hanko,
Calvino o Pregador, in: http://www.cprf.co.uk/languages/portuguese_calvinpreacher.htm.
78
Fábio Konder Comparato, Ética: direito, moral e religião no mundo moderno, São Paulo, Companhia das Letras,
2006, p. 177.
79
Patrick Collinson, A Reforma, Rio de Janeiro, Objetiva, 2006, p. 115.
A ÉTICA SOCIAL DE CALVINO Prof.º Ms. Christian Medeiros 21

tinha sido construído para sermões, e não para dança”. 80 Também diz que “a Reforma
prescreveu uma nova primazia dos ouvidos sobre os olhos”.81

James Montgomery Boice, pastor presbiteriano, ao falar sobre o meio pelo qual é possível
restaurar a vitalidade de igreja em nossa época com doutrinas bíblicas que mudaram o mundo,
cita inevitavelmente o pregador Calvino, enfatizando: “Calvino não tinha outra arma a não ser a
Bíblia. Desde o princípio, sua ênfase tinha sido no ensino da Bíblia... (...). Calvino pregou
biblicamente todos os dias, e sob o poder daquela pregação a cidade começou a ser transformada.
Como as pessoas de Genebra adquiriram conhecimento da Palavra de Deus e foram mudadas por
ela, a cidade se tornou, como John Knox chamou mais tarde, uma Nova Jerusalém de onde o
evangelho se difundiu para o resto da Europa, Inglaterra e o Novo Mundo”.82 E por fim conclui:
“Provavelmente nunca existiu um exemplo mais claro de reforma moral e social extensivas do
que a transformação de Genebra sob o ministério de João Calvino, e isto foi realizado quase
completamente pela pregação da Palavra de Deus”. 83 À frente ao falar sobre o culto ainda
afirma: “Quando a Reforma correu por toda a Europa no século 16, houve uma exaltação
imediata da Palavra de Deus nos cultos protestantes. João Calvino particularmente levou isto a
cabo, com perfeição, ordenando que os altares (centro da missa em latim) fossem removidos das
igrejas e que um púlpito, com uma Bíblia sobre o mesmo, fosse colocado no centro do templo.
Não era para ficar de um lado do cômodo, mas exatamente no centro, onde todas as linhas da
arquitetura levariam os olhares atentos do adorador ao Livro, o qual, sozinho, contém o caminho
da salvação e destaca os princípios sob os quais a igreja do Deus vivo deve ser governada”.84

Um dos principais biógrafos e historiadores de Calvino, o francês Emile Doumergue


(1844-1937), em 1909 quando da comemoração dos quatrocentos anos do nascimento de Calvino
e do mesmo púlpito que pregou o reformador, afirmou: “Para mim, o Calvino verdadeiro, que
explica todas as outras faces de Calvino, é o Calvino pregador de Genebra, que moldou o espírito
dos reformadores do século dezesseis por meio de suas palavras. (...) Embora Calvino seja
lembrado como um teólogo que restabeleceu os marcos doutrinários enterrados sob os
escombros de séculos de confusão, ou como um argumentador inteligente cujo nome os
oponentes tentaram ligar a crenças que consideravam odiosas, a verdade é que Calvino via si
mesmo, antes de tudo, como um pastor da igreja de Cristo e, portanto, como alguém cuja
principal tarefa deve ser pregar a Palavra”.85 Calvino considerava a pregação “o incomparável
tesoura da Igreja”.86

Assim percebemos que Calvino não fora um revolucionário social ou político ao expor
conceitos éticos, mas simplesmente um pastor que prega com fidelidade à Palavra de Deus
percebendo todas as implicações de um viver em obediência à mesma.

80
Patrick Collinson, A Reforma, Rio de Janeiro, Objetiva, 2006, p. 194.
81
Patrick Collinson, A Reforma, Rio de Janeiro, Objetiva, 2006, p. 50.
82
James Montgomery Boice, O Evangelho da Graça, São Paulo, Cultura Cristã, 2003, p. 81.
83
James Montgomery Boice, O Evangelho da Graça, São Paulo, Cultura Cristã, 2003, p. 82.
84
James Montgomery Boice, O Evangelho da Graça, São Paulo, Cultura Cristã, 2003, p. 182.
85
In Steven J. Lawson, A Arte Expositiva de João Calvino, Sao José dos Campos-SP, Editora Fiel, 2008, p. 18; vd.
tb. Leroy Nixon, John Calvin, Expository Preacher, Grand Rapids, Eerdmans, 1950, p. 38 Apud Ronald Hanko,
Calvino o Pregador, in: http://www.cprf.co.uk/languages/portuguese_calvinpreacher.htm.
86
Nicholas Wolterstorff, A Liturgia Reformada, in: Donald K. McKim (ed.), Grandes Temas da Tradição
Reformada, São Paulo, Pendão Real, 1998, p. 250.

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