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A Ética Social de Calvino PDF
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redescobrir, na sua pureza original, a vida nova proposta pelo Cristo dos Evangelhos, e viver
retamente, no mundo profano, a fé cristã assim renovada”.4 E ainda: “A Reforma não foi nem
pretendeu ser em primeiro lugar uma reforma da sociedade apenas; nem mesmo unicamente uma
renovação moral, a base indispensável sobre a qual se constroem as relações humanas.
Procurando restaurar um Cristianismo fiel a suas origens, ela pretendia reproporcionar ao mundo
o conhecimento do ser humano, tal qual ele é em sua complexidade, e sobretudo indicar a cada
indivíduo as possibilidades de suas restauração, nas perspectiva de uma vida política co-
participantes e de relações econômicas eqüitativas. Propunha-se dignificar os fundamentos
originais da vida espiritual, donde derivam os valores morais e cívicos imprescindíveis à boa
marcha das sociedades”.5
Todo discurso possui uma dimensão ideológica que relaciona aspectos e características
do texto com o contexto da sua produção e deste modo conduz a uma produção de sentido do
próprio texto. Para Antonio Gramsci (1891-1937) a ideologia é “uma concepção de mundo que
se manifesta implicitamente na arte, no direito, nas atividades econômicas e em todas as
manifestações da vida intelectual e coletiva”.6 Desta feita podemos entender a ideologia como
um “sistema de vida” segundo sugeria Abraham Kuyper (1837-1920) como a melhor descrição
do termo alemão “weltanschauung”, conforme usado primeiramente por Immanuel Kant (1724-
1804) e depois amplamente utilizado pelo idealismo e pelo romantismo alemão. Deste modo
percebemos que a Reforma Protestante do século XVI mesmo sendo essencialmente religiosa
acabou por influenciar em uma diversidade de campos, pois se constitui em uma visão de
mundo.
4
André Biéler, A Força Oculta dos Protestantes, São Paulo, Cultura Cristã, 1999, p. 49.
5
André Biéler, A Força Oculta dos Protestantes, São Paulo, Cultura Cristã, 1999, p. 50. Cp. “A religião pode ser
tanto benéfica quanto prejudicial, e as melhores intenções podem ser distorcidas. Mas a Reforma é – e a Reforma
foi – um movimento espiritual: espiritual no sentido de construir uma convulsão do espírito humano; espiritual
também no fortalecimento dos vínculos que ligam os indivíduos e a sociedade ao Espírito Divino. A Reforma,
através da renovação da Igreja, é uma tentativa de alertar o mundo”. Felipe Fernández-Armesto, Derek Wilson,
Reforma: o Cristianismo e o mundo 1500-2000, Rio de Janeiro, Record, 1997, p. 11.
6
Antonio Gramsci, Concepção Dialética da História, 9ª. ed., Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1991, p. 16.
7
“É um erro supor que o duradouro interesse de Calvino pelos estudos humanísticos e pelo desenvolvimento
cultural do homem fosse um simples remanescente do tempo que precedeu sua conversão à fé evangélica. Sua
preocupação para com os estudos humanísticos e para com aquilo que diz respeito ao que é humano, está muito
inseparavelmente ligado ao seu modo global de pensar, para permitir uma tal interpretação. De fato num sentido que
precisa ser bem definido e cuidadosamente preservado de má compreensão, Calvino pode ser chamado de
“humanista”. Através de toda a sua vida, ele teve um profundo compromisso para com aquilo que é humano.(....)
Calvino ataca aqueles humanistas que fazem a apoteose do ser humano e pensam que a realização daquilo que é
humano pode ser alcançada somente na presumida independência de Deus e de Sua revelação. Ele mesmo como um
humanista, rejeitou aquilo que era o coração da idéia de personalidade do Renascimento, a idéia de que o homem é a
fonte criadora de seus próprios valores e, portanto, no fundo, incapaz de pecar. Se os estudos humanísticos eram
caros a Calvino pelo fato de favorecerem o desenvolvimento das virtudes humanas, se as ciências devessem ser
cultivadas como dons de Deus, os humanistas deviam opor-se àqueles que pensavam que as artes e as ciências
podiam ser empregadas como se fossem suficientes em si mesmas. (...)
Para Calvino, tornou-se possível relacionar a idéia de humanidade à antítese religiosa retratada na Escritura. O
caminho foi aberto pela idéia de que o homem se torna humano em sua relação com Deus. O homem, em si mesmo,
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tema encontrado nas obras do reformador, a título de ilustração de seu pensamento quanto ao
referido assunto.
é verdadeiramente homem quando responde àquilo que constitui o modo de ser de sua natureza, àquilo para o que
foi criado. Deste modo é possível constatar que o humanum é realizado não no isolamento autônomo do homem
em relação a Deus, mas na sua relação com Ele. A autonomia humana pecaminosa, longe de ser o caminho para a
auto-realização humana, é, em si mesma, uma distorção daquilo que é humano. Robert D. Knudsen, O Calvinismo
Como uma Força Cultural, in W. Stanford Reid (ed.), Calvino e sua Influência no Mundo Ocidental, São Paulo,
Casa Editora Presbiteriana, 1990, p. 13-14, 20.
8
John Calvin, Commentaries on The First Book of Moses Called Genesis, Vol. 1, Grand Rapids-MI, Eerdmans
Publishing, 1996, p. 92.
9
John Calvin, Commentaries on The First Book of Moses Called Genesis, Vol. 1, Grand Rapids-MI, Eerdmans
Publishing, 1996, p. 227.
10
João Calvino, Instrução na Fé in Eduardo Galasso Faria (ed.), João Calvino: textos escolhidos, São Paulo, Pendão
Real, 2008, p. 53.
11
João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, São Paulo, Novo Século, 2000, p. 37.
12
João Calvino, A Instituição da Religião Cristã, São Paulo, UNESP, 2008, I.15.1.
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entre todas as espécies animais. (...) É certo que, mesmo em cada uma
das partes do mundo, brilham determinadas mostras da glória de Deus, de
onde se pode perceber que, quando sua imagem foi colocada no homem,
tacitamente se subentende uma antítese que eleva o homem acima de
todas as outras criaturas, tal que o separasse do comum.13
Éric Fuchs ao falar sobre a ética de Calvino, especificamente no sub-tópico “Uma ética
que é uma hermenêutica da Escritura”, atesta o zelo que possuía o reformador pela Palavra de
Deus em sua totalidade, Antigo e Novo Testamento, como fonte única e determinante para
regular a prática moral dos homens:
A Bíblia, A Palavra de Deus é viva e eficaz, portanto age não somente em algum tempo
ou período histórico, não está circunscrita ao século XVI, mas é viva e operante sempre e em
todas as épocas. Em nossa época não o é diferente, suas qualidades agem pelos séculos. A
Bíblia apresenta respostas para os dilemas do homem moderno: quem ele é? para onde vai? o
porquê de sua existência, etc... A Bíblia nos ensina sobre a origem, o sentido e o propósito do
homem que foi criado segundo à imagem e semelhança do Criador. Ensina-nos sobre a criação, a
queda e a redenção, quadro este que torna a realidade compreensível. E nos ensina absolutos
13
João Calvino, A Instituição da Religião Cristã, São Paulo, UNESP, 2008, I.15.3.
14
Éric Fuchs, verbete “João Calvino” in Monique Canto-Sperber (org.), Dicionário de Ética e Filosofia Moral, vol.
1, São Leopoldo-RS, Editora Unisinos, 2007, p. 185. Cp. João Calvino, As Institutas II.10.
15
João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo,
Cultura Cristã, 2006, p. 70-71.
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Calvino com grande propriedade em A Verdadeira Vida Cristã nos mostra qual deve ser
o alvo que devemos nos concentrar, o dever que precisamos almejar: “A perfeição deve ser a
meta final a qual nos dirigir e o propósito supremo em nossas vidas. Não é justo que atemos um
compromisso com Deus, em que tratemos de cumprir parte de nossas obrigações omitindo
outras, segundo nosso gosto e capricho. Antes de tudo, o Senhor deseja sinceridade em Seu
serviço e simplicidade de coração, sem engano nem falsidade. (...) Não cessemos de fazer todo o
possível para irmos incessantemente mais adiante no caminho do Senhor; e não desesperemos
por causa de nossas escassas conquistas.” 17 Na mesma obra também afirma: “Andando
unicamente na maravilhosa lei de Deus, podemos estar seguros de nossa adoção como filhos de
Deus. (...) Busquemos pois, na Escritura o princípio fundamental para reformar e orientar nossa
vida. (...) O Senhor tem destinado um lugar a cada um de nós, de maneira que não tenhamos
incertezas durante os dias de nossa vida”. Desta feita a Sagrada Escritura é sua fonte por
excelência para a construção de todo o seu arcabouço doutrinário.
Nos escritos do reformador do século XVI João Calvino (1509-1564) encontramos alguns
princípios éticos que são essenciais à compreensão do seu pensamento econômico e social que
sejam relacionados à vocação/trabalho, ao uso do dinheiro e poupança, e um conceito muito
característico dele, a frugalidade. Todos estes possuem amplas e importantes implicações sociais
e econômicas, acima de tudo humanas e solidárias, não somente no século de sua existência, mas
produziu grande influência em todo mundo ocidental, e como não poderia deixar ser, atingiu o
Brasil também, mesmo em nosso tempo presente.
Calvino apresenta uma perspectiva muito positiva de apreço pelo trabalho, tomando
como resposta à vocação dada por Deus ao indivíduo, capacitando-o a realizar uma tarefa, um
trabalho digno em resposta à essa dádiva, se constituindo em louvor e adoração a Deus. 18
Calvino mostrando como se deve viver e fazer uso dos recursos que se possui, apresenta a
vocação como uma regra que precisa ser seguida, é necessário ter em mente a vocação como
uma regra de vida ordenada pelo Senhor. Vejamos o que Calvino fala sobre a vocação em um
sentido mais abrangente da vida:
É digno de nota que Deus manda cada um de nós ter presente, em todas
as ações da vida, sua vocação. Pois Ele sabe com quanta inquietude arde
o espírito humano, com quão inconstante leviandade é levado de um lado
para o outro, quão cobiçosa é sua ambição de abraçar coisas diferentes ao
16
João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, São Paulo, Novo Século, 2001, p.77.
17
João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, São Paulo, Novo Século, 2001, p. 77.
18
“É deveras certo que devemos a Deus não somente uma parte, mas tudo o que temos e somos”. João Calvino,
Exposição de 2 Coríntios, (2 Co. 8.13), São Paulo, Paracletos, 1995, p. 175.
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mesmo tempo. Sendo assim, para nós, com nossa loucura e temeridade,
não virássemos tudo do avesso, Ele determinou a cada um seus deveres,
segundo os diferentes modos de vida. E, para que ninguém ultrapassasse
temerariamente seus limites, chamou a tais maneiras de viver “vocações”.
Logo, o Senhor atribuiu a cada um sua maneira de viver, como se fosse o
seu posto, para que não fique dando voltas temerariamente de um lado
para outro por toda a vida. Essa distinção é tão necessária que por ela
todas as nossas obras são avaliadas perante Ele; (...) ...o chamado do
Senhor é o princípio e o fundamento do agir bem em todas as situações, e
que aquele que não se submeter a ele jamais manterá o reto caminho em
seus deveres. Poderá talvez fazer algo elogiável em aparência; mas isso,
seja lá o que for perante o olhar dos homens, diante do trono de Deus será
lançado fora. Assim, não haverá simetria entre as diversas partes de nossa
vida. Por conseguinte, tua vida será ordenada da melhor forma enquanto
estiver direcionada para esse objetivo, porque ninguém, mesmo movido
pela própria temeridade, tentará mais do que sua vocação agüenta, porque
saberá que não é lícito ultrapassar seus limites.19
Como consequência natural da vocação nos mostra qual deve ser a perspectiva correta
diante do trabalho: “Daí nascerá um exímio consolo: que, contanto que obedeças deste modo a
tua vocação, não há nenhuma obra tão humilde e tão baixa que não resplandeça diante de Deus e
que não seja por Ele considerada preciosíssima”. 20 Também afirma em outro lugar: “Se
seguirmos fielmente nosso chamamento divino, receberemos o consolo de saber que não há
trabalho insignificante ou nojento que não seja verdadeiramente respeitado e importante ante os
olhos de Deus”.21
É deveras certo que devemos a Deus não meramente uma parte, mas tudo
o que temos e somos; porém, em sua condescendência, ele nos poupa na
medida em que ficamos satisfeitos com aquela extensão da participação
que Paulo está delineando aqui, de modo que o seu ensino, aqui, é para
ser entendido como uma renúncia da estrita letra da lei. Mas, ao mesmo
tempo, tem o sentido de incitar-nos, de tempos em tempos, à liberalidade,
já que não devemos ter demasiado receio de ir longe demais; o perigo é,
antes de tudo, fazermos pouco demais. Mas este ensino é necessário para
refutar os fanáticos que acreditam que você não terá feito nada menos do
que despojar-se completamente e depositar tudo num fundo comum. A
única coisa que conseguem com esta demência, é que ninguém chega a
dar esmolas com uma boa consciência. Portanto, notemos
cuidadosamente a evpieikei,a de Paulo, sua brandura e moderação ao dizer
que os nossos donativos agradam a Deus quando aliviamos a necessidade
19
João Calvino, A Instituição da Religião Cristã, III.10.6, São Paulo, UNESP, 2009.
20
João Calvino, A Instituição da Religião Cristã, III.10.6, São Paulo, UNESP, 2009.
21
João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, São Paulo, Novo Século, 2001, p. 77.
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Em seguida, comentando a sequência do texto, “mas para que haja igualdade”, continua
apresentando o seu ensino acerca do uso do dinheiro por parte dos cristãos, afirmando:
Moisés admoesta o povo que por algum tempo fora alimentado com o
maná, para que soubesse que o ser humano não é alimentado por meio de
sua própria indústria e labor, senão pela bênção de Deus. Assim, no maná
vemos claramente como se ele fosse, num espelho, a imagem do pão
ordinário que comemos.26 (...) O Senhor não nos prescreveu um ômer ou
qualquer outra medida para o alimento que temos cada dia, mas ele nos
22
João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, (2 Co. 8.13), São Paulo, Paracletos, 1995, p. 175.
23
João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, (2 Co. 8.14), São Paulo, Paracletos, 1995, p. 175.
24
João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, (2 Co. 8.14), São Paulo, Paracletos, 1995, p. 176.
25
João Calvino, Exposição de Romanos, (Rm. 12.6), São Paulo, Paracletos, 1997, p. 430.
26
Eis a parte suprimida: “Agora, aproximemo-nos da passagem citada por Paulo. Quando o maná desceu,
receberam ordem de colhê-lo em porções, tantas quantas cada um pudesse comer; mas, como alguns eram mais
espertos do que outros, eles colhiam mais do que realmente necessitavam para o seu uso diário, e outros menos,
todavia, ninguém tomava mais do que um ômer para o seu próprio uso privativo, porque esta era a quantidade
estabelecida pelo Senhor. Assim sendo, todos tinham o suficiente para suas necessidades, e ninguém tinha carência.
Isto temos em Êxodo 16.18. Apliquemos agora a história à preocupação de Paulo”. João Calvino, Exposição de 2
Coríntios, (2 Co. 8.15), São Paulo, Paracletos, 1995, p. 177.
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Calvino apresenta o auxílio ao próximo como culto a Deus, uma vez que todos os bens
que possuímos são dádivas do Senhor. O faz ao comentar o texto de Hebreus 13.16 “mas não
vos esqueçais de fazer o bem”, ensina que “sejam quais forem os benefícios que façamos pelos
homens, Deus os considera como feitos a ele próprio, e lhes imprime o título de sacrifício”,
continua, “se porventura queremos oferecer sacrifício a Deus, então devemos invocar seu Nome,
fazer conhecida sua munificência através de ações de graças e fazer o bem aos nossos irmãos”, e
por fim, “a esse ensino adiciona-se uma exortação, com o propósito de estimular-nos
sensivelmente à expressão de benevolência para com nosso próximo. Não é uma honra trivial o
fato de Deus considerar o bem que fazemos aos homens como sacrifício oferecido a ele próprio,
e o fato de valorizar tanto nossas obras, as quais não possuem dignidade em si mesmas, que as
denomina de santas. Portanto, onde nosso amor não se manifesta, não só despojamos as pessoas
de seus direitos, mas também a Deus mesmo, o qual solenemente dedicou a si o que ordenou
fosse feito em favor dos homens”.28
Calvino no capítulo dez do terceiro volume de sua obra magna sob o título “Como se
deve usar a vida presente e seus meios”, apresenta alguns tópico importante de serem
considerados com respeito ao presente tema em análise.
Para Calvino, “o uso dos dons de Deus não é desencaminhado quando se atém à
finalidade para a qual seu autor os criou e destinou, já que Ele os criou para nosso bem, não para
nossa destruição. Por essa razão, ninguém se manterá no caminho mais retamente do que aquele
que olhar com diligência para esse fim. Ora, se pensarmos na finalidade para a qual Ele criou os
alimentos, descobriremos que quis atender não somente a nossa necessidade mas o nosso deleite
e satisfação. Da mesma forma as roupas, além da necessidade, atendem ao decoro e à
honestidade. Nas ervas, árvores e frutas, além das várias utilidades, há a graciosidade da
aparência e o prazer do perfume”.30 A finalidade de tudo quanto Deus dá ao homem é a ação de
graças: “Ele criou todas as coisas para nós a fim de que o reconhecêssemos como autor, e que
recompensemos sua indulgência para conosco por meio da ação de graças”.31
Assim, neste contexto, apresenta Calvino sua regra áurea de comportamento e perspectiva
quanto aos bens materiais deste mundo, “aqueles que desfrutam deste mundo, que o façam como
se não desfrutassem”, uma vida com moderação, “usemos este mundo como se não o
usássemos”32:
Mas não há caminho mais seguro e mais curto do que aquele que se faz
pelo desprezo da vida presente e pela meditação da imortalidade celestial.
Pois daí seguem duas regras: que aqueles que desfrutam deste mundo,
que o façam como se não desfrutassem; os que se casam, como se não se
casassem; os que compram, como se não comprassem, como prescreve
Paulo (1 Co 7, 31). Em seguida, que saibam suportar a penúria com não
menor paz e paciência do que se fosse uma abundância moderada.
Aquele que prescreve que desfrutes deste mundo como se não o
desfrutasses, não somente corta toda intemperança da gula, na comida e
29
João Calvino, A Instituição da Religião Cristã, III.10.1, São Paulo, UNESP, 2009. Continua no mesmo
parágrafo: “Pois houve alguns, de resto homens bons e santos, que, como vissem que a intemperança e a luxúria
correm com desenfreada licenciosidade, a menos que sejam mais severamente contidas, e como desejassem corrigir
tão pernicioso mal, ocorreu-lhes, como única saída, permitir ao homem o uso dos bens corpóreos contanto que a
necessidade o exija. É, evidentemente, uma decisão piedosa; mas foram austeros demais. Pois (o que é muito
perigoso) ataram as consciências com nós mais apertados do que aqueles com os quais são ligadas pela Palavra de
Deus. Além disso, para eles, necessidade é te absteres de todas as coisas sem as quais podes passar. Assim, segundo
eles, apenas nos seria lícito acrescentar algo ao pão comum e à água. É ainda maior a austeridade de outros, como
se conta de Crates de Tebas, que jogou suas riquezas no mar, porque pensava que, se elas não se perdessem, ele
haveria de se perder por causa delas. Hoje, porém, muitos, enquanto buscam um pretexto com que justificar sua
intemperança da carne no uso das coisas externas, e no intuito de deixar o caminho aberto para o lascivo, afirmam
como certo, o que de modo algum lhes concedo, que a liberdade não deve ser restrita por nenhuma regra, mas que se
deve permitir à consciência de cada um o servir-se de tudo o que lhes pareça lícito. Admito que, nesse ponto, não
devemos nem podemos obrigar as consciências com fórmulas fixas e rígidas. Mas, como a Escritura nos fornece
regras gerais sobre seu uso legítimo, certamente devemos ser limitados em conformidade com elas”.
30
João Calvino, A Instituição da Religião Cristã, III.10.2, São Paulo, UNESP, 2009.
31
João Calvino, A Instituição da Religião Cristã, III.10.3, São Paulo, UNESP, 2009.
32
João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, São Paulo, Novo Século, 2001, p. 73.
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Neste versículo Davi prescreve aos santos a não oprimirem seu próximo
com usura, nem a forçá-lo a aceitar suborno em favor de causas injustas.
(…) Lembremo-nos, pois, de que toda e qualquer barganha em que uma
parte injustamente se empenha por angariar lucro em prejuízo da outra
parte, seja que nome lhe damos, é aqui condenada. (…) Aconselharia a
meus leitores a ser precaverem de engenhosamente inventar pretextos,
pelos quais tirem proveito de seus semelhantes, e para que não imaginem
que qualquer coisa pode ser-lhes lícita, quando para outros é grave e
prejudicial.
Com respeito à usura, é raríssimo encontrar no mundo um usurário que
não seja ao mesmo tempo um extorquidor e viciado ao lucro ilícito e
desonroso. Conseqüentemente, Cato desde outrora corretamente colocava
a prática da usura e o homicídio na mesma categoria de criminalidade,
pois o objetivo dessa classe de pessoas é sugar o sangue de outras
pessoas. É também algo muito estranho e deprimente que, enquanto todos
os demais homens obtêm sua subsistência por meio do trabalho, enquanto
os cônjuges se fatigam em suas ocupações diárias e os operários servem à
33
João Calvino, A Instituição da Religião Cristã, III.10.4, São Paulo, UNESP, 2009. Em a Verdadeira Vida Cristã,
São Paulo, Novo Século, 2001, p. 73-74, encontramos:
“Não há um caminho mais direto (à gratidão), do que o de tirarmos nossos olhos da vida presente e meditar na
imortalidade do céu.
Disto se deriva dois grandes princípios: O primeiro é “...que os que são casados, sejam como se não o fossem; e os
que choram, como se não chorassem; e os que se alegram, como se não se alegrassem; e os que compram, como se
não possuíssem; e os que desfrutam deste mundo, como se não o desfrutassem...”
O segundo é que devemos aprender a superar a pobreza quieta e pacientemente, e desfrutar da abundância com
moderação.
2. Aquele que nos ordena a que usemos este mundo como se não o usássemos, não somente nos proíbe toda falta de
moderação em comer e beber, nos prazeres indecorosos e excessivos, na ambição, no orgulho e na fastuosidade em
nosso lar, como também em cada cuidado e afeto que faça diminuir nosso nível espiritual ou que ameace destruir
nossa devoção.
Nos tempos antigos, Catão observou que havia uma grande preocupação pela aparência exterior do corpo, porém um
grande descuido na observância das virtudes.
Também há um antigo provérbio que nos recorda que aqueles que põem muita atenção no corpo, geralmente
descuidam da alma.
3. De modo que, ainda que a liberdade dos crentes em relação ao uso das coisas externas não pode ser restringida
por regras rígidas e extremistas, todavia, e para que sejamos o menos indulgentes possível, esta liberdade tem de
estar sujeita à lei de Deus.
Pelo contrário, devemos de forma contínua e com toda resolução, empenhar esforços para sairmos do meio de tudo
aquilo que é supérfluo, e evitar todo desdobramento de uma atitude vã e de luxo.
Cuidemos em converter em pedra de tropeço, tudo que o Senhor nos de [sic] para enriquecer nossa vida (1 Cor.
7.29-31)”.
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E ainda sobre a cobrança de juros, o que poderia ser realizado, mas com parâmetros
definidos, ou seja, o trabalho é o meio prioritário por excelência concedido por Deus para suprir
as necessidades do homem. Observemos Calvino sobre os juros:
O lucro que obtém alguém que empresta seu dinheiro no interesse lícito,
sem fazer injúria a quem quer que seja, não está incluído sob o epíteto de
usura ilícita. (…) Em suma, uma vez que tenhamos gravada em nossos
corações a regra de eqüidade que Cristo prescreve em Mateus: „Portanto,
tudo quanto quereis que os homens vos façam, fazei-lhes também o
mesmo‟ [7.12], não será necessário entrar em longa controvérsia em
torno da usura.35
Calvino apresenta uma regra não somente para os abastados de bens, mas também uma
que deve ser aplicada por aqueles que estão debilitados financeiramente, desta feita a paciência:
A outra regra será que aqueles para quem as coisas são apertadas e parcas
saibam suportar com paciência sua pobreza, para não se verem
atormentados por uma cobiça imoderada. Aqueles que o conseguem,
aproveitaram não pouco na escola do Senhor. Assim como dificilmente
pode ter com o que provar que é discípulo de Cristo aquele que, nessa
parte, não tenha ao menos aproveitado nada. Pois, a despeito de o apetite
das coisas terrenas vir acompanhado de muitos outros vícios, aquele que
sofre a penúria com impaciência mostra, entretanto, o vício contrário na
abundância. Entendo por isso que quem se envergonha de sua roupa
pobre vangloriar-se-á de uma cara; quem não se contenta com uma
refeição frugal inquietar-se-á com o desejo de outra, mais lauta, e abusará
com intemperança também das iguarias, se as provar; quem com grande
dificuldade e espírito inquieto suporta uma condição humilde, se chegar a
obter honras, de modo algum poderá abster-se de um comportamento
arrogante. Logo, aproximem-se todos aqueles para quem a prática da
piedade não é fingida, para que aprendam, a exemplo do apóstolo, tanto a
estar saciados como a ter fome, a viver na penúria e na abundância (Fp 4,
12).36
34
João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1, São Paulo: Edições Paracletos, 1999, (Sl 15.5), p. 297-298.
35
João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1, São Paulo: Edições Paracletos, 1999, (Sl 15.5), p. 299.
36
João Calvino, A Instituição da Religião Cristã, III.10.5, São Paulo, UNESP, 2009. Em a Verdadeira Vida Cristã,
São Paulo, Novo Século, 2001, p. 74-75, encontramos:
“1. O outro princípio é que o pobre deveria aprender a ser paciente sob as privações, para não se encontrar
atormentado com uma excessiva paixão pelas riquezas.
Aqueles que observam esta moderação, não têm feito pouco progresso na escola do Senhor, e os que não têm
avançado desta forma na vida espiritual, têm dado provas muito escassas de seu discipulado em Cristo.
2. A paixão pelas coisas terrenas não só está acompanhada de outros vícios, como também que aquele que é
impaciente sob a privação manifestará o vício oposto quando estiver no meio do luxo.
Isto significa que aquele homem que se envergonha de um [sic] vestimenta simples, estará orgulhoso quando usar
um [sic] bem cara.
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Há ainda uma terceira regra sobre o uso das coisas terrenas, que possui íntima ligação
com os preceitos da caridade, as quais contas serão prestadas diante de Deus. Vejamos:
Ensina-nos que todas as coisas nos são dadas pela benignidade de Deus e
destinadas a nosso bem-estar, de forma que sejam como um depósito do
qual um dia havemos de prestar contas. Por conseguinte, é preciso
administrá-las como se soasse sempre em nossos ouvidos aquela
sentença: “Presta conta de tua administração” [Lc 16, 2]. E, ao mesmo
tempo, recordemos quem nos exige tal prestação de contas, a saber,
aquele que tanto nos recomendou a abstinência, a sobriedade, a
frugalidade e a modéstia, e que execra o luxo, a soberba, a ostentação e
finalmente a vaidade; que não aprova outra dispensação de bens do que
aquela que está unida à caridade; que por sua própria boca já condenou
todos os deleites que afastam o espírito do homem da castidade e da
pureza, ou que envolvem a mente em trevas.37
A pessoa que não está contente com uma comida moderada, se sente incomodada porque deseja um manjar
suculento, e quando tiver uma oportunidade, manifestará seu temperamento irascível.
Aquele que estiver inquieto ou insatisfeito por estar vivendo sob privações e humildade, não será capaz de guardar-
se do orgulho e da arrogância quando desfrutar da opulência.
Portanto, aqueles que querem ser sinceros em sua devoção, tratem fervorosamente de seguir o exemplo apostólico:
“Sei o que é passar necessidade e sei o que é ter fartura. Aprendi a adaptar-me a toda e qualquer circunstância.”
(Fil. 4.12)”.
37
João Calvino, A Instituição da Religião Cristã, III.10.5, São Paulo, UNESP, 2009. Em a Verdadeira Vida Cristã,
São Paulo, Novo Século, 2001, p. 75, encontramos:
“3. A escritura também menciona um terceiro princípio mediante o qual, se limita o uso das coisas terrenas, e já o
temos mencionado ao falarmos dos preceitos da autonegação.
Posto que todas as coisas nos são dadas pela divina bondade para nosso benefício, ao mesmo tempo se convertem
em depósitos confiados a nosso cuidado, dos quais um dia teremos que prestar contas.
Devemos então administrá-las de tal maneira como se incessantemente ouvíssemos a seguinte advertência:
“Apresenta as contas de tua administração...”
4. Recordemos também quem é que pede estas contas. É Aquele que nos recomenda de maneira tão especial
guardar a sobriedade, a frugalidade e a modéstia.
É também a quem aborrece os excessos, o orgulho, a arrogância e o exibicionismo.
É Aquele que não aprova a administração que fazemos de Suas bênçãos, a menos que sejamos motivados pelo amor.
É quem, de sua própria boca, condena todos os prazeres que nos separam da castidade e da pureza, e que nos
convertem em pessoas estúpidas e néscias. (Fil. 4.12; Luc. 16.2)”.
Em outro lugar afirma: “Visto que nosso Pai celestial nos concede todas as coisas por sua livre graça, devemos ser
imitadores de sua graciosa benevolência, praticando também atos de bondade em favor de outrem; e em razão de
nossos recursos virem dele, não somos mais que despenseiros dos dons de sua graça”. João Calvino, Exposição de 2
Coríntios, (2 Co. 8.4), São Paulo, Paracletos, 1995, p. 169.
A ÉTICA SOCIAL DE CALVINO Prof.º Ms. Christian Medeiros 13
Já na segunda carta de Paulo aos Coríntios afirma: “Os crentes gozam de genuína riqueza
quando confiam na providência divina que os mantém com suficiência e não se desvanecem em
fazer o bem por falta de fé. (...) Ninguém é mais frustrado ou carente do que aquele que vive sem
fé, cuja preocupação com suas posses dilui toda a sua paz”.39
Para Calvino, rico era aquele que não desejava mais do que já possuía, onde diz:
“Confesso, deveras, que não sou pobre; pois não desejo mais além daquilo que possuo”. 40 E
ainda: “Pôr o coração nas riquezas significa mais que simplesmente cobiçar a posse delas.
Implica ser arrebatado por elas a nutrir uma falsa confiança. (...) É invariavelmente observado
que a prosperidade e a abundância engendram um espírito altivo, levando prontamente os
homens a nutrirem presunção em seu procedimento diante de Deus, e a se precipitarem em
lançar injúria contra seus semelhantes. Mas, na verdade o pior efeito a ser temido de um espírito
cego e desgovernado desse gênero é que, na intoxicação da grandeza externa, somos levados a
ignorar quão frágeis somos, e quão soberba e insolentemente nos exaltamos contra Deus”.41 E
mais: “quando depositamos nossa confiança nas riquezas, na verdade estamos transferindo para
elas as prerrogativas que pertencem exclusivamente a Deus”.42
Para Calvino todas as dádivas que o homem recebe de Deus devem ter um uso social em
benefício do próximo. Pois, “temos de compartilhar liberalmente e agradavelmente todos e cada
um dos favores do Senhor com os demais, pois isto é a única coisa que os legitima. Todas as
bênçãos de que gozamos são depósitos divinos que temos recebido com a condição de distribuí-
los aos demais. Não podemos imaginar uma incumbência mais apropriada a uma sugestão mais
poderosa que esta”.43 E ainda:
38
João Calvino, As Pastorais, (1 Tm. 6.7, 8), São Paulo, Paracletos, 1998, p. 168-169.
39
João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, (2 Co. 9.11), São Paulo, Paracletos, 1995, p. 193-194.
40
João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1, São Paulo, Paracletos, 1999, p. 46.
41
João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 2, (Sl. 62.10), São Paulo, Paracletos, 1999, p. 580.
42
João Calvino, As Pastorais, (1Tm. 6.17), São Paulo, Paracletos, 1998, p. 182.
43
João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, São Paulo, Novo Século, 2001, p. 77.
A ÉTICA SOCIAL DE CALVINO Prof.º Ms. Christian Medeiros 14
Calvino ao comentar a segunda carta de Paulo aos Coríntios no capítulo 8 onde este os
encorajava a arrecadarem dinheiro com vistas a auxiliar aos de Jerusalém, pois passavam por
grande fome e dependiam a sua existência da misericórdia externa de outros irmãos, o
reformador apresenta alguns ensinos sobre o tema em questão. Afirma: “Porque, ainda que seja
universalmente consensual que é uma virtude louvável prestar ajuda ao necessitado, todavia nem
todos os homens consideram o dar como sendo uma vantagem, nem tampouco o atribuem à
graça de Deus. Ao contrário disso, acreditam que alguma coisa sua, ao ser doada, perdeu-se”.45
A possibilidade de se ser solicito com relação o dinheiro em favor daqueles que necessitam não é
uma tarefa possível apenas àqueles que estão abastados; “notemos bem como podemos ser
sempre liberais mesmo quando mergulhados na mais terrível pobreza, se suprimos as
deficiências de nossas bolsas pela generosidade de nossos corações”46 e ainda, “os que dão de
seus minguados recursos se mostram condescendentes além de suas possibilidades uma vez que
de seus pobres meios ainda fazem alguma doação a outrem”.47 Ensina a liberalidade e não a
mesquinhez, o seu oposto: “O que nos torna mais avarentos do que deveríamos em relação ao
nosso dinheiro é o fato de sermos tão precavidos e enxergarmos tão longe quanto possível os
supostos perigos que nos podem sobrevir, e assim nos tornamos demasiadamente cautelosos e
ansiosos, e passamos a trabalhar tão freneticamente como se devêssemos suprir de vez as
44
João Calvino, A Instituição da Religião Cristã, III.7.5, São Paulo, UNESP, 2009. À frente, no parágrafo seguinte,
continua Calvino: “Ademais, a fim de não esmorecermos ao fazer o bem (o que de outra forma necessariamente
ocorreria em seguida), convém citar outro trecho do apóstolo: “O amor é paciente, não se irrita” (1 Co 13, 4). O
Senhor prescreve que se faça o bem a todos, sem exceção, ainda que eles sejam, em sua maior parte, completamente
indignos, se são julgados pelos próprios méritos. Mas aqui a Escritura apresenta uma excelente razão, ao ensinar-
nos que não devemos examinar o que os homens mereçam por si, mas sim considerar em todos a imagem de Deus, à
qual devemos toda honra e amor. Ela deve ser observada ainda mais diligentemente naqueles que são “da família da
fé” (Gl 6, 10), enquanto é neles renovada e restaurada pelo Espírito de Cristo. Assim, qualquer um que se apresente
agora e que esteja necessitado da tua ajuda, não tens motivo por que te recusares a dedicares-te a ele. Dize que é um
estranho; mas o Senhor mesmo imprimiu nele uma marca que te deve ser familiar, em virtude da qual proíbe que
menosprezes tua carne (Is 58, 7). Dize que é um homem desprezível e sem valor; mas o Senhor demonstra que ele é
alguém honrado para com ele; mas Deus como que o colocou em seu lugar, a fim de que, diante dele, reconheças os
benefícios com os quais Deus te prendeu a si. Dize que ele é indigno de te dês ao menor trabalho por causa dele;
mas a imagem de Deus, por causa da qual ele te foi recomendado, esta é digna de que te does e a tudo quanto tens.
E se ele não apenas não for merecedor de benefício algum, mas até tiver te provocado com injúrias e malefícios,
nem mesmo isso é razão justa para que deixes de abraçá-lo com amor e prosseguir nos deveres do amor (Mt 6, 14;
18, 35; Lc 17, 3). Dirás que ele é merecedor de algo muito diferente. Mas que merece o Senhor? Ele que, quando
te ordena perdoar a esse homem qualquer pecado que tenha cometido contra ti, certamente quer considerá-lo
cometido contra Ele. Este é, de fato, o único caminho para chegar àquilo que é tão contrário à natureza humana,
além de difícil: amar aos que nos têm ódio, devolver males com bens, oferecer bênçãos aos que nos caluniam (Mt 5,
44); se nos lembrarmos que não devemos pensar na malícia dos homens, mas considerar neles somente a imagem de
Deus, que, com sua beleza e dignidade, nos persuade a amá-los e abraçá-los, uma vez apagados e esquecidos seus
delitos”. João Calvino, A Instituição da Religião Cristã, III.7.6, São Paulo, UNESP, 2009. Também afirma:
“Embora a liberdade dos fiéis com respeito às coisas externas não deva ser obrigada por uma fórmula fixa, é certo,
no entanto, que está sujeita a esta lei: que os fiéis sejam indulgentes consigo o menos possível; ao contrário, que
tenham a intenção constante de inclinar-se a prescindir de toda ostentação de abundancia supérflua, pois não só o
luxo deve ser reprimido, e acautelem-se diligentemente para que não transformem auxílios em empecilhos”. João
Calvino, A Instituição da Religião Cristã, III.10.4, São Paulo, UNESP, 2009.
45
João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, (2 Co. 8.1), São Paulo, Paracletos, 1995, p. 166.
46
João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, (2 Co. 8.2), São Paulo, Paracletos, 1995, p. 167.
47
João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, (2 Co. 8.3), São Paulo, Paracletos, 1995, p. 168.
A ÉTICA SOCIAL DE CALVINO Prof.º Ms. Christian Medeiros 15
necessidades de todo o curso de nossa vida, e afigura-se-nos como grande perda quando uma
mínima parcela nos é tirada. Mas aquele que depende da bênção do Senhor tem o seu espírito
livre dessas preocupações ridículas, enquanto que, ao mesmo tempo, tem suas mãos livres para a
prática da beneficência”.48 O homem é despenseiro das dádivas de Deus: “visto que nosso Pai
celestial nos concede todas as coisas por sua livre graça, devemos ser imitadores de sua graciosa
benevolência, praticando também atos de bondade em favor de outrem; e em razão de nossos
recursos virem dele, não somos mais que despenseiros dos dons de sua graça”. 49 Apresenta a
Cristo como o grande exemplo de solicitude: “ele fez-se pobre porque abriu mão de sua
possessão e por algum tempo deixou de exercer seus direitos. (...) ...ele santificou a pobreza em
sua própria pessoa, para que os crentes não mais retrocedam diante dela, e por meio de sua
pobreza ele nos enriqueceu, para que não mais achemos difícil tomar de nossa abundancia e a
usemos em favor de nossos irmão”. 50 Uma advertência: “o Senhor não deseja que sejamos
influenciados pela esperança de recompensa ou alguma retribuição em troca de nossa doação,
mas ainda que os homens sejam ingratos, de modo que pareça termos perdido o que lhes
doamos, devemos perseverar em fazer o bem”.51 A disposição em dar deve ser tomada como
culto52 a Deus, como uma disposição natural do coração, que tanto ricos como pobres podem e
devem fazê-lo: “a disposição em dar não é avaliada pelo que você não tem, ou, em outras
palavras, Deus jamais exige que você contribua mais do que seus recursos o permitem. Por este
critério, ninguém é deixado com alguma escusa, visto que os ricos devem a Deus um grande
tributo, e os pobres ficam destituídos de razão para se envergonhar se o que dão é muito
pouco”.53
Ainda na segunda carta de Paulo aos Coríntios, desta feita no capítulo nove, afirma
Calvino qual é a finalidade das dádivas que Deus concede aos seus: “Deus não nos faz o bem
com o fim de cada um de nós guardar para si mesmo o que recebe, mas para que haja mútua
participação entre nós, de acordo com os reclamos das necessidades”.54 Ainda expressamente
assevera: “...assim como não nascemos unicamente para nós mesmos, também o cristão não deve
viver unicamente para si mesmo, nem usar o que possui somente para os seus propósitos
particulares ou pessoais. (...) Já que dar assistência às necessidades de nosso próximo é uma
parte da justiça – e de forma alguma é a menor parte –, os que negligenciam esta parte de seu
dever devem ser tidos no conta de injustos”.55
Com qual espírito os cristãos devem ajudar aqueles que necessitam? Calvino responde de
modo claro e direto:
48
João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, (2 Co. 8.2), São Paulo, Paracletos, 1995, p. 167-168.
49
João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, (2 Co. 8.4), São Paulo, Paracletos, 1995, p. 169.
50
João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, (2 Co. 8.9), São Paulo, Paracletos, 1995, p. 172.
51
João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, (2 Co. 8.10), São Paulo, Paracletos, 1995, p. 173.
52
“Cada um deles deve contribuir segundo sua capacidade, e acrescenta, segundo seu modo de raciocinar, que Deus
não considera a quantidade, e, sim, o coração. Pois quando ele diz que um coração disposto é aceitável a Deus
segundo a capacidade de cada homem, ele quer dizer o seguinte: “Se ofereceis uma pequena oferta tirada de vossos
parcos recursos, a vossa intenção é tão valiosa aos olhos de Deus como se fosse um rico a fazer uma grande oferta
tirada da sua abundância.” João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, (2 Co. 8.11), São Paulo, Paracletos, 1995, p.
174.
53
João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, (2 Co. 8.11), São Paulo, Paracletos, 1995, p. 174.
54
João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, (2 Co. 9.8), São Paulo, Paracletos, 1995, p. 191.
55
João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, (2 Co. 9.10), São Paulo, Paracletos, p. 193.
A ÉTICA SOCIAL DE CALVINO Prof.º Ms. Christian Medeiros 16
O grande fator motivador para auxílio e ajuda ao próximo está no fato de que este foi
criado e é imagem e semelhança do Criador. Uma vez que “o bem que fazermos aos homens”
Deus considera “como sacrifício oferecido a ele próprio”.57
56
João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, São Paulo, Novo Século, 2001, p. 39-40.
57
João Calvino, Exposição de Hebreus, (Hb. 13.16), São Paulo, Paracletos, 1997, p. 394.
58
João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, São Paulo, Novo Século, 2001, p. 37.
A ÉTICA SOCIAL DE CALVINO Prof.º Ms. Christian Medeiros 17
O ano de 1536 tem grande importância para Genebra no campo da educação 61 , pois
Calvino redige um programa de governo para a cidade onde enfatiza a necessidade do
conhecimento, para tanto solicitava a criação de escolas na cidade. Apresentou um projeto
educacional gratuito para a cidade de Genebra, destinado tanto a meninos quanto a meninas; aqui
encontramos o início da “primeira escola primária, gratuita e obrigatória de toda a Europa”. 62
Dizia Calvino que o saber “era necessidade pública para assegurar boa administração política,
apoiar a igreja indefesa e manter a humanidade entre os homens”.63
59
João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, São Paulo, Novo Século, 2001, p. 37-38.
60
Para maiores informações em um estudo amplamente fundamentado e mais abrangente ver: Hermisten Maia
Pereira da Costa, João Calvino – 500 anos: introdução ao seu pensamento e obra, São Paulo, Cultura Cristã, 2009,
p. 325-346.
61
Para maiores detalhes quanto ao presente assunto ver: Gerald L. Gutek, Historical and Philosophical Foundations
of Education: a biographical introduction, 3.ª ed., New Jersey, 2001, p. 84-97.
62
Hermisten Maia Pereira da Costa, João Calvino – 500 anos: introdução ao seu pensamento e obra, São Paulo,
Cultura Cristã, 2009, p. 334.
63
Lorenzo Luzuriaga, História da Educação e da Pedagogia, 11.ª ed., São Paulo, Editora Nacional, 1979, p. 112.
A ÉTICA SOCIAL DE CALVINO Prof.º Ms. Christian Medeiros 18
64
Lorenzo Luzuriaga, História da Educação e da Pedagogia, 11.ª ed., São Paulo, Editora Nacional, 1979, p. 112.
65
R. Hooykaas, A Religião e o Desenvolvimento da Ciência Moderna, Brasília, Editora da Universidade de Brasília,
1988, p. 137-138.
66
“Ao apontar Beza como líder, ele escolheu um humanista conhecido internacionalmente e um homem das letras
que escrevia e amava poesia e já havia publicado uma peça. Beza pronunciou um discurso na cerimônia inaugural
em 5 de junho de 1559, apresentando uma história da educação no passado, referindo-se a como Moisés aprendeu a
sabedoria dos egípcios e congratulando o Concílio por propiciar que Genebra compartilhasse da gloriosa obra de
difusão de um conhecimento que estava livre de superstições”. Ronald Wallace, Calvino, Genebra e a Reforma: um
estudo sobre Calvino como um Reformador Social, Clérigo, Pastor e Teólogo, São Paulo, Cultura Cristã, 2003, p.
89.
67
Thomas Ransom Giles, História da Educação, São Paulo, E.P.U., 1987, p. 126.
A ÉTICA SOCIAL DE CALVINO Prof.º Ms. Christian Medeiros 19
intelectual” 68 ; e ainda afirmou que a própria cidade foi fundada sobre a Palavra de Deus,
grandemente ensinada.
68
Pierre Bertrand, Survol de L’Histoire de Genève, Genève, Labor et Fides, s/d, p. 62.
69
Ronald Wallace, Calvino, Genebra e a Reforma: um estudo sobre Calvino como um Reformador Social, Clérigo,
Pastor e Teólogo, São Paulo, Cultura Cristã, 2003, p. 88-89.
70
João Calvino, A Instituição da Religião Cristã, São Paulo, UNESP, 2008, II.2.14.
A ÉTICA SOCIAL DE CALVINO Prof.º Ms. Christian Medeiros 20
Palavras Finais
O púlpito foi o instrumento por excelência usado por Calvino. Uma das principais
características da reforma protestante do século XVI está no fato de que durante este período
ocorreu um verdadeiro retorno à fiel pregação da Palavra de Deus. W. Stanford Reid afirma:
“Poder-se-ia quase dizer que a reforma trouxe o renascimento da pregação”.71 Patrick Collinson
diz que: “o sermão era provavelmente o meio mais poderoso de comunicação oral do alto para
baixo”, também faz uma assertiva deveras pertinente em nossos dias ao afirmar que “o púlpito
tinha sido construído para sermões, e não para dança”. 72 Também diz que “a Reforma
prescreveu uma nova primazia dos ouvidos sobre os olhos”. 73 Já John H. Leith afirma: “A
reforma (...) foi o maior reavivamento da pregação na história da igreja. (...) A pregação estava
no próprio centro da reforma em Genebra”. 74 John Stott: “A Reforma deu centralidade ao
sermão”.75 Paulo Anglada: “os reformadores foram principalmente pregadores da Palavra”. 76
Emile Doumergue: “Calvino o pregador de Genebra, moldando por suas palavras o espírito da
Reforma do século XVI”.77
Patrick Collinson nos instiga com duas perguntas: “Como Calvino conseguiu fazer o que
fez? Como foi que por volta de 1553 a magistratura civil já se tornara ainda mais zelosa do que
o próprio Calvino na decisão de “viver segundo o Evangelho?” Eis sua resposta: “A resposta
mais simples é sua capacidade de pregação no púlpito, que fez Genebra submeter-se à vontade
de Deus. Foi um ataque impiedoso aos ouvidos da cidade. Havia sermões diários, e três aos
domingos. A contribuição de Calvino foi de 260 sermões por ano”. 79 Continua ainda Collinson,
diz que: “o sermão era provavelmente o meio mais poderoso de comunicação oral do alto para
baixo”, também faz uma assertiva deveras pertinente em nossos dias ao afirmar que “o púlpito
71
W. Stanford Reid, A Propagação do Calvinismo no Século XVI in: W. Stanford Reid (ed.), Calvino e sua
influência no mundo ocidental, São Paulo, Casa Editora Presbiteriana, 1990, p. 49.
72
Patrick Collinson, A Reforma, Rio de Janeiro, Objetiva, 2006, p. 194.
73
Patrick Collinson, A Reforma, Rio de Janeiro, Objetiva, 2006, p. 50.
74
John H. Leith, A Tradição Reformada: uma maneira de ser a comunidade cristã, São Paulo, Pendão Real, 1996,
p. 125.
75
John Stott, Eu Creio na Pregação, São Paulo, Vida, 2003, p. 24.
76
Paulo Anglada, Introdução à Hermenêutica Reformada: correntes históricas, pressuposições, princípios e
métodos lingüísticos, Ananindeua, Knox Publicações, 2006, p. 20.
77
Leroy Nixon, John Calvin, Expository Preacher, Grand Rapids, Eerdmans, 1950, p. 38 Apud Ronald Hanko,
Calvino o Pregador, in: http://www.cprf.co.uk/languages/portuguese_calvinpreacher.htm.
78
Fábio Konder Comparato, Ética: direito, moral e religião no mundo moderno, São Paulo, Companhia das Letras,
2006, p. 177.
79
Patrick Collinson, A Reforma, Rio de Janeiro, Objetiva, 2006, p. 115.
A ÉTICA SOCIAL DE CALVINO Prof.º Ms. Christian Medeiros 21
tinha sido construído para sermões, e não para dança”. 80 Também diz que “a Reforma
prescreveu uma nova primazia dos ouvidos sobre os olhos”.81
James Montgomery Boice, pastor presbiteriano, ao falar sobre o meio pelo qual é possível
restaurar a vitalidade de igreja em nossa época com doutrinas bíblicas que mudaram o mundo,
cita inevitavelmente o pregador Calvino, enfatizando: “Calvino não tinha outra arma a não ser a
Bíblia. Desde o princípio, sua ênfase tinha sido no ensino da Bíblia... (...). Calvino pregou
biblicamente todos os dias, e sob o poder daquela pregação a cidade começou a ser transformada.
Como as pessoas de Genebra adquiriram conhecimento da Palavra de Deus e foram mudadas por
ela, a cidade se tornou, como John Knox chamou mais tarde, uma Nova Jerusalém de onde o
evangelho se difundiu para o resto da Europa, Inglaterra e o Novo Mundo”.82 E por fim conclui:
“Provavelmente nunca existiu um exemplo mais claro de reforma moral e social extensivas do
que a transformação de Genebra sob o ministério de João Calvino, e isto foi realizado quase
completamente pela pregação da Palavra de Deus”. 83 À frente ao falar sobre o culto ainda
afirma: “Quando a Reforma correu por toda a Europa no século 16, houve uma exaltação
imediata da Palavra de Deus nos cultos protestantes. João Calvino particularmente levou isto a
cabo, com perfeição, ordenando que os altares (centro da missa em latim) fossem removidos das
igrejas e que um púlpito, com uma Bíblia sobre o mesmo, fosse colocado no centro do templo.
Não era para ficar de um lado do cômodo, mas exatamente no centro, onde todas as linhas da
arquitetura levariam os olhares atentos do adorador ao Livro, o qual, sozinho, contém o caminho
da salvação e destaca os princípios sob os quais a igreja do Deus vivo deve ser governada”.84
Assim percebemos que Calvino não fora um revolucionário social ou político ao expor
conceitos éticos, mas simplesmente um pastor que prega com fidelidade à Palavra de Deus
percebendo todas as implicações de um viver em obediência à mesma.
80
Patrick Collinson, A Reforma, Rio de Janeiro, Objetiva, 2006, p. 194.
81
Patrick Collinson, A Reforma, Rio de Janeiro, Objetiva, 2006, p. 50.
82
James Montgomery Boice, O Evangelho da Graça, São Paulo, Cultura Cristã, 2003, p. 81.
83
James Montgomery Boice, O Evangelho da Graça, São Paulo, Cultura Cristã, 2003, p. 82.
84
James Montgomery Boice, O Evangelho da Graça, São Paulo, Cultura Cristã, 2003, p. 182.
85
In Steven J. Lawson, A Arte Expositiva de João Calvino, Sao José dos Campos-SP, Editora Fiel, 2008, p. 18; vd.
tb. Leroy Nixon, John Calvin, Expository Preacher, Grand Rapids, Eerdmans, 1950, p. 38 Apud Ronald Hanko,
Calvino o Pregador, in: http://www.cprf.co.uk/languages/portuguese_calvinpreacher.htm.
86
Nicholas Wolterstorff, A Liturgia Reformada, in: Donald K. McKim (ed.), Grandes Temas da Tradição
Reformada, São Paulo, Pendão Real, 1998, p. 250.