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\ Vitor Aguiar e Silva A lira dourada e a tuba canora: novos ensaios camonianos Titulo: A lira dourada e a tuba canora: novos ensaios camonianos © Livros Cotovia ¢ Vitor Aguiar e Silva, Lisboa, 2008 Capa ¢ sobrecapa: Patricia Cativo ISBN 978-972-799-234-2 Livros Cotovia 92 ALIRA DOURADA E A TUBA CANORA quando cita 0 tltimo terceto do soneto “Sete anos de pastor Jacob servia”; nnoutros passos da Arte de ingenio, Camies é qualificado como ‘el immor- tal Camoes”, “el célebre Camoes”, “el valeroso Portugués”, “el siempre agudo Camoes”. Na Agudeza, Cam@es 6 exaltado como 0 “conceptuoso ‘Camoes". Na Artede ingenio, o soneto “Alma minha gentil que te partite” é valozado como “Rey de los demds” e a propésito da estrofe I da cangio “Fermosa gentil Dama, quando veo", Gracin sublinha que “[flue tinico en estos encarecimientos el Camoes”, ‘Tera Gracin interpretado Cam@es, como argumenta Kevin Larsen, “more baroque — more rhetorical, more hyperbolic, more paradoxical, and especially more conceptista— than he really is”? Ou teré sido Gracién, pelo contrétio, um sagaz leitor do Camées das redondilhas, que recriam a engenhosidade, a ironia e os chistes equivocos da poesia dos cancioneiros tardo-medievais, e do Camées dos sonetos petrarquizantes, cujo discurso, sem deixar dese inscrever na “preceptiva do coracio” de que fala Luis Ro- sales, €retoricamente urdido com antiteses, paradoxos, oximoros econcei- {os que sio uma “hatménica correlaclo entre os cognosciveis extremos”? Por outras palavras: ndo ter Gracidn lido modernamente algumas facctas do mancirismo de Cambes? Braga, Mao de 2007 AEPOPEIA, OS LUSIADAS E.AS LEITURAS: ANTOLOGICAS (© poema épico, como Aristételes explicou na Podtica, possui uma cs- trurura que se diferencia da estratura da tragédia pelo facto de ser uma es- trutura que se compe de varias hist6rias (systema polymsython), ou sea, ‘uma estrutura que tem a capacidade de acolher diversas partes (meré) que, na sua sucessio ou justaposigo, configuram a narrativa poemética (cf. Pod ica, 36a 12). © argumento (Jogos) da epopeia, como no caso da Odisseia, no é longo em si mesmo, sendo fécil resuni-lo num enunciado pouco ex- ‘tenso, mas este esquema geral, que € 0 “préprio” (to idion) do poema, ‘pode ser alongado através de epis6dios (eneisodia) que devem set apropria- dos (oieia) a0 argumento (op. cit, 55b 14-15) e que nao originem por con- seguinte uma “histéria em episédios” sem verosimilhanca nem necessi- dade, como acontece com os poemas dos maus poctas (op. cit, 51b 333s.) Se, na tragédia, o termo “episédio” tem um significado estritamente téc- ‘nico — é uma parte completa da tragédia entre dois cantos corais comple- tos —, na epopcia os episSdios sfo unidades relativamente auténomas da narrativa que possibilitam slongar, estender ou desenvolver (parateinein, ekteinein) 0 argumento, podendo a sua relaglo com este ser orginica ou apropriada, na acepcio aristotélica da palavra, ou ser facticia, acess6ria ou cocasional. A relagio dos episédios com o argumento esté na origem da aacesa controvérsia que se gerou na poética europeia dos séculos XVI € “XVII sobre a unidade de acco tanto na tragédia como na epopeia. ‘A enorme extensiio material do texto dos poemas épicos — em geral, ‘moles textuais de muitos milhares de versos — e a relativa autonomia e trutural gue neles desempenham os episédios explicam que, desde ham: tos séculos, os Ieitores tenham experimentado dificuldades ou cansago com 2 leitura integral das epopeias e por isso tenham optado com frequéncia por um tipo de leitura antolégica das mesmas, elegendo os episédios mais 94 A LIRA DOURADA E A TUBA CANORA relevantes, mais sugestivos ou 2. Os fi hekttce Caiman © TeSoto or ocne ease ec ses sonst herders — Cale, Prop, To © Ovo ao lxquliicarem o poems longo —“um lio grind ig am srande mal”, na famosa elapidar condenago de Calimaco — cao fazerem loi dopouma cure, ici dln, fomalmene dept c bn tebe ao, ram o Oita dio poco Gu a. no nln mins nent oon aod dias e ban, ema épico, longa e magniloquente fabrica Peers eemna ecw Tm auido, one is secs, aos jos pluses ¢ aoe wormentot do amos como era die. eslin,etinoogcaments um Por ‘eda ou dinnts, o uma cao dos potas note tlexandinos los poetae now latinos ara estabeecer uma expécie de compromisso a tradgo pet: uma eqn epopeia em hexmetos, o mero crac sso do poser, povada de refer eas de ners maleate bem cinzelada e com um tema mitlégic, em geral amoros. Esta tradi poetolgice, host ou refractria wos longos poemas 6p cos, conheceu um elipee mulisecular durante © megaperiodo terdrio que se etende dese o Renacinento até ao fin do Neola C cto, as pvc renasentitase marci, predominantrnente de ma trie aisttdia, aleraram a hirarqua dos génetos potios extabelecid o-—rr—r—rsrsrsr—r—S—s— Aclenda condi soci ds heres — pres _ shores >a evneae a exemple dase epresentadas,a gran- eza dos ideais religosos,éicos, politicos e sociisencarnados nos hers « complexidade da dpositio poemética, iqueza eo splendor da elocr to contin miso de vem gis, losin tien fica, mitolégica, ec, ivestides na construso do univeso o presi compare es mdco pee ntno do nero em cecal Hlomeroe Virgo, a qualidade soca cultural dos destinatcos, ee tes implcitos dos letores reais uo jusicaa a praia abut & pope na hierarqua dos géneroslterdros. ws "Soe eam “ees ir oie Bri «Ba Rane fi date seer nt hing ln 1) See ek Cire rfnom mae no Pe Tn: Mae Nie Vr 198 pri: Kl Cot Varese asd ge ic A EPOPEIA, OS LUSIADAS EAS LEITURAS ANTOLOGICAS 95 (© Romantismo, embora tenba originado o declinio irrecuperivel da cepopeia de genealogia g Renascimento a0 Neoclassicismo: a razdes de ordem poctold rreco-Jatina e canonicamente consagrada desde © .— um declinio que se ficou a dever tanto 1a como a razbes de ordem social e politica, s0- bre as quais Hegel escreveu piginas memoraveis de anise estticn,antro- poldgiea e sociolégica —, continuow a admirer e a cultivar 0 poema tongo, Basse sempre um poema narativ de temética religiosa ilos6ficn, hum sitariota ou histrica, que ocupou no sistema genol6gico o lugar vago da ‘epopeia de ascendéncia clissica. ‘Mencionem-se, como alguns exemplos, Shows de Goethe, Prelude de Wordsworth, Prometheus Unbound de Shel- ley, Don Juan de Byron, Joely de Lamartine, El Estudiante de Salamanca ‘¢E] Diablo Mundo de Expronceda, Camdes de Almeida Garrett. ‘Todavia, no seio do proprio Romantismo, cuja estética, como é sa- bdo, esté atravessada por tensBes © contradiges de varia ordem, consti taiu-ge uma orientacio poetol6gica que condenava radicalmente pocma ia gozar de grande Jongo que i fortuna nas teorias € nas priticas poéticas posteriores, desde Baudelaire a0 Simbolismo ¢ ae Moderismo. Referimo- rive 3 dourina sustentada por Edgar Allan Poe em The Poetic Principle, “im ensaio de poética em que o autor defende a tese segundo a qual, consis- “indo velor de um poema no estimulo sublime que produz no expirite do Ieitor ¢ sendo esta excitacio psiquica, pela sua proptia narareza, passa thdo existe em rigor um poem extenso, pelo ue deve ser conside- vicda como uma contradicZo nos termos a expresso “poem extens0”, {© poema longo que E.A. Poe tem na mira da sua eftca € 0 poema ico, como se tora exidente com 0 exemple citado do Paradise lost de Milton. Adoptando uma posicio poctolégica que hoje caracterizariamos ome relevando de uma concepgio pragmitico-comunicacional do fend. reno literario, Poe sublinha que o poema miltoniano s6 podert ser consi- derado poético quando, pondo de lado 0 requisito vital de todas as obras carte, eunidade, el for lido como uma série de poemas menores, equiva: lentes aos episédios das p icas aristotélicas ou neoaristorélicas. Se algum Ieitorafim de preservaraunidade do poema, empreendera sua leturnse- guida, sem _descontinuidades no fio do tempo eno! fio do texto, o resultado seré uma constantealrernincia de excitacio e depressio, ou seja, uma ex: Daniel Jvite, “Talian epic thoy”, eam NoL 3, The Renaissence, Ca

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