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7 As terras bantas: Africa Centro-ocidental e Mogambique Ele nao faria a guerra de modo algun, pois era guerra continua que jé havia destrutdo ‘o reino, e também a fé. Os congueses tambér: no queriam mais problemas. Ele jd estavam cansados de ser tratadas como bestas nos campos e deserts: ultrajados, assassinados, roubados e vendidos, e seus parentes, esposas € fihos mortas por todos os lados Pedro IV, rei do Congo, 1710. tréfico atlantico de escravos na Africa Centro-ocidental comegou muito cedo e acabou muito tarde, Estima-se que cerca de 40 a 45% dos africanos escravizados trazidos para as Améri- cas pelo tréfico transatlantico de escravos eram falantes do grupo lingufstico banto da Africa Centro-ocidental! Acosta oeste da Africa se projeta bastante dentro do Oceano Ailintico e segue um curso para o leste através do Delta do Ni- ger. Ela entdo se volta abruptamente para o sul, perto do Equa- dor, e torna-se uma regidio muito mais estreita chamada Africa Central, Gs falantes do grupo lingufstico banto viveram nessa regido por milhares de anos. Neste capitulo nés discutiremos a Africa Centro-ocidental, a regiio que forneceu africanos em néimeros estonteantes durante todo 0 periodo do tréfico transatlntico de escravos, ¢ Mogambique no sudeste da Africa, a0 longo do Oceano Indico, uma regio onde o tréfico atléntico 1, HEYWOOD. Central Africans and Cultural Transformations in the American Diaspora, p. 1-20, de escravos comegou cedo numa scala pequena e cresceu muito durante 0 final do século XVIII e 0 séeulo XIX. Em muitas outras regiées da Africa profundamente afetadas pelo tréfico atlantico de escravos, os europeus frequentemente cstavam confinados a suas fortalezas ou estagGes de comércio a0. longo das costas, ou a distancias curtas acima de rios navegaveis} ou cles eram forgados a negociar em seus navios ancorados ao longo da costa. Em contraste, desde o comego do tréfico atlénti- co de escravos, comerciantes, funciondrios, soldados, missioné- rios e mascates portugueses ¢ alro-portugueses penetraram pro- fundamente no interior do reino do Congo e no interior angolano. alleste de Luanda ¢ Benguela, os dois principais portos que eles estabeleceram na costa de Angola. Durante os muitos séculos antes das caravelas portuguesas chegarem as costas da Africa Centro-ocidental em 1472, a regio estava isolada do comércio transaariano de caravanas de came. Jos ¢ também das rotas comerciais maritimas ao longo da costa leste da Africa®. Quando os portugueses chegaram, eles nao en- contraram sociedades grandes e complexas o bastante para sus- tentar um comércio sistematico — quer dizer, até 1483, quando eles aleangaram o reino do Congo. Sua capital, Banza Congo, estava localizada no interior ao sul do rio Zaire (Congo). rei- no do Congo tinha rotas comerciais, mercados e uma moeda de conchas (zimbo) hé muito tempo. O comércio portugués com 0 reino do Congo envolveu, no comego, a troca de manilhas de co- bre e marfim por mercadorias de luxo portuguesas e os servigos de conselheiros técnicos. Em 1486, os portugueses assentaram a Ilha de So Tomé no Golfo da Guiné e 1é desenvolveram uma inddstria acucareira. Durante a década de 1490, os portugueses comegaram a exigir escravos para enviar para Sao Tomé. Joseph Inikori e Nicolés Ngou-Mve negam que a escravidio existisse na Africa Centro-ocidental antes da chegada dos portu- 2. HARRIS, [.E. Global Dimensions of the African Diaspora, 252 Mapa 7.1 Aiea Centro-oeidentaleorontal: Teas bantas, 1800-1900 Font: Adeplado de um mapa de JE. kor. En OGOT, B.A. (ed). Unesco Histiia Geral da ‘tea - VoL 8 Area do 96 XVI 9 XVI, S80 Pao: Univertade Federal de Sao Cares, ott. (Tasos os oto volumes da cole pxdem ser baba gratuitamente hp: No {noszo ompnenipUbrastaleduoabonincuslve-ducalongonetansion-oFatrca) gueses, Inikori afirma que a escravidao na Africa antes do tréfico atlntico de escravos era mais como o feudalismo na Europa me- dieval do que como a escravidao africana nas Américas — uma opi- nidio exposta anteriormente por John Thornton em relagéo ao reino do Congo’. Jan Vansina explica que, inicialmente, “dependentes” eram vendidos no reino do Congo. Eles eram forasteiros que vi- viam em familias e aldeias onde distingdes sociais claras eram feitas| com base na linhagem e na ascendéncia de acordo com o prin- cipio de que “pessoas que viviam juntas deviam ser aparentadas ‘umas as outras”*, Costa e Silva descreve um grupo servil transit6- rio, pessoas de origem estrangeira capturadas em guerras ou in- 5. INIKORI, “Slavery in America and the Teans-Atlantic Slave Trade”, * NGOU- “MVE, El Africa banti en la colonizaciGn de México. THORNTON. The King- dom of Kongo, p. 22. 4, VANSINA. Paths in the Rainforests, p. 200-201, 253 vvas6es, criminosos alienados ou removidos da sociedade, pessoas que perderam a protegao dos seus. Os descendentes delas estavam | destinados a ser absorvidos pela sociedade?. Portanto, varios his toriadores de prestigio afirmaram que a Africa Centro-ocidental no tinha experiéncia com a escravidéo hereditéria ou com a ex- portacéo de escravos antes da chegada dos portugueses. O trifico, atléntico de escravos da Africa Centro-ocidental cresceu depois de 1500 e aumentou rapidamente entre 1520 e 1560, quando mais de 7.000 escravos por ano eram exportados principalmente para a Costa do Ouro através de So Tomé. Em 1491, o rei do Congo converteu-se ao cristianismo, foi instrufdo na fé, foi batizado e adotou 0 nome portugués Joo I. Seu sucessor, Afonso I (1506-1543), declarou o cristianismo como religigo oficial do reino e mandou alguns de seus séiditos jovens para Portugal a fim de receberem educagao religiosa. Fun- cionérios, comerciantes, clérigos, missionérios ¢ soldados portu- gueses estabeleceram-se na capital, Banza Congo. A capital foi renomeada como So Salvador. Os afticanos centro-ocidentais sofreram profundamente com a presenga antiga, direta e continua de traficantes maritimos de escravos portugueses ¢ brasileiros ¢ dos afro-portugueses vin- dos de Sao Tomé, ¢ da rivalidade entre as poténcias curopeias envolvidas no tréfico atlantico de escravos. As entidades poli- ticas frdgeis e vulnerdveis do reino do Congo foram fraturadas por rivalidades entre funciondrios portugueses, comerciantes, missionérios, frotas, soldados e colonos da Peninsula Ibérica ¢ também de Sdo Tomé e do Brasil, e por comerciantes itinerantes (Pombeiros) que penetravam bastante no interior, Essas facgbes intrusivas promoveram guerras para aumentar a oferta de cativos enviados através do Atlantico como escravos. Elas faziam intrigas 5. COSTAE SILVA. A manila ¢ o libambo, p. 369. 6, MILLER. “Lineages, Ideclogy, and the History of Slavery in Western Central Africa", p. 41. 254 ¢ lutavam entre si, recrutando clientes africanos centro-ociden- tais para servir como aliados umas contra as outras. As varias ordens rivais de missGes catélicas enviadas para catequizar 0 rei- no do Congo, e depois Angola, também tinham intrigas entre si. Alguns desses missionérios fizeram fortunas particulares com 0 tréfico de escravos. Apesar de varios governantes do reino do Congo expressarem oposiges eloquentes ao tréfico de escravos, ‘suas objegées tiveram pouco impacto na Africa Centro-ocidental. John Thornton afirma que no foi a escravidio e 0 tréfico de escravos que provocaram a indignago dos reis do Congo, mas sim o escérnio a suas regras ¢ leis tradicionais que regulavam a escravizago e a escravidao’. * Em 1568, os jagas invadiram o reino do Congo. Os portu- ‘gueses utilizaram ~e alguns académicos dizem que criaram — os jagas* (descritos, talver de forma sensacionalista, como mercené- rios canibais) para atacar o reino do Congo, forgando seus gover- nantes a buscar protecdo portuguesa pagando o prego de retirar sua oposigéo a0 tréfico de escravos. Apesar de vérias entidades ppolitcas africanas terem se aliado aos jagas, i se afirmou que os jagas foram utilizados primariamente pelos portugueses como um. instrumento de controle politico e de expansio de seu tréfico de escravos®. Os jagas aterrorizaram o vale do rio Cuanza entre 1590 e 1640 e acabaram assentando-se em varias regides de Angola, em entidades politicas chamadas de reinos ovimbundos. Governantes posteriores, incluindo alguns na 4rea ovimbundo, reivindicaram essa heranga militarista, que era coberta de crengas mégicas. 7. THORNTON. The Kingdom of Kongo, p. 14-96. * THORNTON. “African Political Ethics anid the Slave Trade”. * Na lingua quicongo (falada no antigo reino do Congo), a palavra jag no se relacionava necessariamente a um povo ou etnia especffica, Fls era usada para se refetir a0 “outro”, ao “estrangeiro", ao “de fora’, ao “birbaro”. A partir do século XVIT passou a significar também “bandido”. 8. NGOU-MVE. El Africa bande la colonizacién en Mético, p. 62-65.

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