Você está na página 1de 3

HUMILDADE

Compreender é igualar e mais uma vez renunciei às minhas análises.


Não são as figuras fascinantes que iluminaram o gênio de nossos artistas monótonos e
inertes frente às belezas que vem do Céu? A arte é uma alusão à vida, disse um grande
poeta. Sem dúvida, mas uma alusão à vida terrestre. É na vida divina que deveria fazer
sonhar. E por mais vulgar que parecera à primeira vista, o rosto de Andreas me
arrastava sempre irresistivelmente ao inexpressável, ao inacreditável e ao inefável.
Não, a beleza segundo Deus não é uma extensão da beleza segundo os homens. É o
contrário. Vem de dentro. Transfigura inclusive o que os homens chamam de fealdade.
Não, a verdade segundo Deus não é o total, nem o produto das verdades humanas, mas
se situa Nos pontos opostos (antipodal). Não, a bondade segundo Deus não se parece à
bondade humana. A bondade de Deus vê longe, julga do alto, dá sem nenhuma
contraprestação.
Era o que eu pensava.
Tem razão, doutor – disse Andreas saindo de seu mutismo. O que faz o Céu continua
sendo inexplicável para nossa pequena sabedoria. Se julgar ao próximo está proibido,
muito mais proibido ainda é julgar um soldado de Cristo. No entanto, é a ele que todos
condenam. Ele é o inocente. E é bom que assim seja. Quando mais nos aproximamos de
Deus, mais vemos as coisas desde outro ponto de vista. Os que não se preocupam de
Deus não podem compreendê-lo. O que interessa ao soldado de Cristo? Expandir a Luz,
guiar os homens à Luz. Sua vida será uma série de sacrifícios, mas, por outro lado, se
dentro do exército de Cristo tem uma determinada graduação, por menor que seja, terá
duvidoso privilégio, que fazer trabalhar aqueles que lhes foram confiados. Será
necessário que mostre àquele que está orgulhoso de sua virtude, como esse orgulho
torna esta virtude frágil. Deve ser engenhoso para que esta pessoa pague sua dívida o
quanto antes, para que esta não aumente, com o risco aumentado de ter que pagá-la
junto com ele. Colocar o outro diante da insanidade de suas ambições, porque o triunfo
o fará perder-se demasiadamente dentro das trevas. E assim tudo...
- Entendo bem – interrompi – mas não se pode repetir o que você diz por que
onde está o iluminado, onde está o espiritualista que não se acredite um soldado do
Céu? E a que loucura nos conduziria ideias semelhantes?
- O único que tens a fazer é se calar também, querido doutor.
- Então por que me conta estas coisas?
- Para que esqueça. Veja bem, a humildade – enquanto não se é um zero, não se é
um soldado – a humildade não é fazer reverências ou dizer frases de submissão. Nem é
sentir-se menor diante de um chefe, um sábio ou qualquer homem eminente; isso
também não é humildade, mas simples sentido comum, modéstia. Para se tornar
humilde, é necessário que, aos olhos das pessoas, pareça que deliramos. Imagina um
general vitorioso que diga sinceramente ao seu soldado: “Se a batalha for ganha, o
mérito não é meu. Em meu lugar, tu haveria se saído tão bem ou até melhor do que eu”.
É provável que os oficiais do estado maior, ao ouvir tal afirmação, pensassem: “O velho
perdeu a cabeça”. Teriam razão desde o ponto de vista social. Mas do ponto de vista
eterno, seria o velho general, que teria razão.
- Por isso que tenho visto amigos seus se deixarem enganar por camaradas muito
mais fracassados que eles, ou deixar-se mandar por uma mulher autoritária e de pavio
curto. Respondi.
- Claro querido doutor! Esta é a escola da humildade. A retórica deste programa
se realiza quando se ama alguém de todo coração, quando se esgota dando-lhe tudo o
que é possível, quando se lhe professa todo o carinho de que se é capaz e lhe dá provas
disso, e ainda assim essa pessoa te despreza, explora e evita. Quando te rechaça, quando
não quer acreditar em ti, atribuindo tua bondade à consequência de uma paixão. Esta é
uma lição difícil. E mesmo que aprendas a lição, engula todos os sapos, agradeça e
continue amando, acreditando atuar com humildade, ainda assim não possuirás a
humildade.
- O caminho que descreves é um pouco frustrante. Além disso, se faço um
esforço, como posso não saber que o faço? Segundo este raciocínio seria impossível a
conquista da humildade ou de qualquer outra virtude?
- Tem razão – respondeu Andreas – mas o que é impossível para o homem é
possível para Deus.
- Quer dizer que em certo momento, o esforço de suportar as mais duras
humilhações chega a seu limite? Que se compararmos o coração do orgulhoso com um
diamante, a virulência dos ácidos da ingratidão, da injustiça, da inveja é capaz de
transformar esta jóia em um magma inconsistente e que então, esta matéria ablandada
recebe como uma fulguração o fogo divino de uma determinada virtude?
- Como te expressas – disse Andreas sorrindo – Eu comecei a rir também, já que
sabia que não gostava de grandes palavras. Mas tuas comparações esclarecem bem o
que eu não tenho sabido dizer.
- Aí está minha lição – pensei comigo. No entanto, Andreas seguiu com um tom
quase indiferente:
- Sim, saber que somos isso ou aquilo, está é nossa prisão. Esquecer o que somos,
esta é nossa libertação.
- Mas, na prática? Perguntei.
- Na prática, doutor? Repetiu sorrindo. Na prática, é preciso ir à escola e esforçar-
se. Cada um deve fazer o que puder, o que pode de verdade, ou seja, ir ao limite de suas
forças sempre. Sabe, o limite de nossas forças está longe, muitos poucos chegam até ele.
Imagina que tem um colega que busca briga contigo, que joga pesado e te coloca em má
posição. E você se encontra diante de teus colegas, acusado de qualquer coisa. Você não
tem provas, teu adversário as tem. Você é julgado, condenado e desprezado. Imagina
então que o único que podes obter de teu amor próprio ferido é não fazer justiça a ti
mesmo. Fica então tranquilo e volta para casa ouvindo sarcasmos. Bom. No dia
seguinte, você encontra teu inimigo diante das testemunhas da cena do dia anterior. O
que você faz?Irá desafiá-lo se é um homem de honra, segundo este mundo. Mas se
quiser imitar a teu Mestre, irá até teu inimigo e o saudará cordialmente, imaginando se
não irá te indultar por aparente covardia. Com isso, você irá ampliar os limites de teu
pequeno possível. Continua nesta mesma direção. Um dia os insultos não despertam
mais nenhuma reação em ti. Só tuas orelhas os escutam. Escuta os insultos, mas não
pensa: é um coitado. Diga a ti mesmo: Quem sabe ele tenha razão, vou examinar a
questão. Nesse dia, já não terás feito um esforço, mas já será um humilde.
Iniciações – Paul Sédir

Você também pode gostar