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ESCRITOS & ENTREVISTAS, 1967-2013 © INSTITUTO MOREIRA SALLES, 2014 TEXTOS DE RICHARD SERRA © RICHARD SERRA, 2014 ORGANIZACAO HELOISA ESPADA COORDENACAG EDITORIAL SAMUEL TITAN JR. ENTES DE COORDENACAO- FLAVIO CINTRA DO AMARAL GIOVANNA BRAGAGLIA TRADUGAO PALOMA VIDAL PREPARACAD E REVISAO CRISTINA FINO JULIANA MIASSO SANDRA BRAZIL ASSISTENCIA EDITORIAL DENISE PADUA JULIANA MIASSO DESENHO GRAFICO RAUL LOUREIRO CLAUDIA WARRAK PRODUGAO GRAFICA ACASSIA CORREIA TRATAMENTO DE IMAGENS JORGE BASTOS/MOTIVO IMPRESSAO EDIGOES LOYOLA AGRADECIMENTOS RICHARD SERRA CLARA WEYERGRAF-SERRA TRINA MCKEEVER sag7r Serra, Richard Richard Serra: escritos e entrevistas, 4 Richard Serra — So Paulo: MS, 2014. Holoisa Espada (organizadora). 2013 / 368 p. ISBN 978-85-8346-005-3 1. Serra, Richard. 2. Serra, Richard ~ Entrevista, nea. 4. Escultura. 5. Desenho. 11 Espada, Heloisa.tTitulo, Uma das minhas recordacdes mais antigas é a de estar atraves- sando com meu pai a ponte Golden Gate de carro, ao amanhe- cer. famos para o Marine Shipyard, onde ele trabalhava como encanador, para ver a inaugurac4o de um navio. Era 0 outono de 1943, no dia do meu aniversario. Eu tinha quatro anos. Quan- do chegamos, o cargueiro coberto de ago preto, azul e laranja, estava equilibrado num poleiro. Ele era desproporcionalmente horizontal e, para um menino de quatro anos como eu, tinha as laterais grandes como um arranha-céu. Eu me lembro de pas- sear ao redor do casco com meu pai e olhar a enorme hélice de cobre, espiando através dos suportes. Entao, numa Iufada repen- tina de atividade, as estacas, as vigas, as placas, os postes, as barras, os blocos da quilha, toda a protec3o foi removida; os cabos foram cortados, as correntes foram soltas, as travas foram abertas. Houve uma total incongruéncia entre o deslocamento dessa enorme tonelagem e a velocidade e a agilidade com que a tarefa foi executada. A medida que a estrutura de apoio foi des- feita, o navio comecou a se mover para baixo, ao longo da calha, na direc&o do mar. Ouviu-se 0 som da celebracio, os gritos, as buzinas, os berros, os assobios. Livre de suas amarras, com as toras rolando, o navio escorregou do bergo com um movimen- to sempre crescente. Foi um momento de tremenda ansiedade quando o cargueiro chacoalhou, balangou, se inclinou e bateu de encontro ao mar, meio submerso, para ent&o emergir e se levantar e encontrar seu equilibrio. Nao apenas 0 navio havia recobrado o equilibrio, mas a multidao de espectadores também. O navio havia passado por uma transformagao: de um enorme peso morto para uma estrutura brilhante, livre, flutuante e 4 de- riva. O espanto e a admiragao que eu senti naquele momento permaneceram. Toda a matéria-prima de que eu necessitava esta contida no reservatério dessa lembranga, que se tornou um sonho recorrente. O peso é um valor para mim. Nao que ele seja mais expres- sivo que a leveza; mas simplesmente eu sei mais sobre 0 peso do que sobre a leveza, e tenho, portanto, mais a dizer sobre ele, mais a dizer sobre o equilibrio do peso, a diminuigao do peso, a adigdo ea subtracio do peso, a concentracao do peso, a manipulacio do peso, o suporte do peso, a colocacao do peso, o travamento 147 148 do peso, 0 efeito psicolégico do peso, a desorientaciio do peso, 0 desequilibrio do peso, a rotacSo do peso, o movimento do peso, o direcionamento do peso, a forma do peso. Eu tenho mais a dizer sobre os ajustes perpétuos e meticulosos do peso, sobre o prazer que deriva da exatidao das leis da gravidade. Tenho mais a dizer sobre o processamento do peso do ago, sobre as forjas, as usinas de laminaco e as fornalhas. E dificil empregar objetos do dia a dia para expressar ideias de peso, pois a tarefa seria infinita. H4 uma vastidao imponde- ravel no peso. No entanto, eu posso registrar a histéria da arte como uma histéria da particularizaco do peso. Tenho mais a dizer sobre Mantegna, Cézanne e Picasso do que sobre Botticel- li, Renoir e Matisse, ainda que eu admire o que me falta. Tenho mais a dizer sobre a histéria da escultura como uma histéria do peso; mais a dizer sobre os monumentos a morte, sobre 0 peso ea densidade e a concretude de intimeros sarcdfagos, sobre c- maras funerarias; mais a dizer sobre Michelangelo e Donatello; mais a dizer sobre a arquitetura miceniana e inca, sobre 0 peso das cabegas olmecas. Nos somos todos restringidos e condenados pelo peso da gravidade. No entanto, Sisifo empurrando eternamente 0 peso da sua rocha montanha acima nao me impressiona tanto quanto o trabalho incansavel de Vulcano no fundo da cratera fume- gante, martelando a matéria bruta. O processo construtivo, a concentragao e o esforgo didrios me atraem mais que 0 leve e 0 fantastico, mais que a busca pelo etéreo. Tudo que escolhemos na vida pela sua leveza logo revela seu insuportavel peso. Esta- mos diante do medo do peso insuportavel: 0 peso da repressio, © peso da constri¢io, 0 peso do governo, o peso da tolerancia, o peso da resolucao, o peso da responsabilidade, o peso da destrui- go, o peso do suicidio, o peso da hist6ria que dissolve o peso e erode o sentido de uma construc&o calculada de leveza palpavel. O residuo da histéria: a pagina impressa, a cintilag&o da ima- gem, sempre fragmentaria, sempre dizendo algo aquém do peso da experiéncia. E a distingao entre o peso pré-fabricado da histéria e a ex- periéncia direta que evoca em mim a necessidade de fazer coisas que ainda nao foram feitas. Eu tento continuamente confron-

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