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ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS


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A CABEÇA
dramaturgo: Alcides Nogueira
debatedor: Aimar Labaki

MONTAGEM

direção: Márcia Abujamra


elenco: Débora Duboc, Leopoldo Pacheco e
Marcelo Várzea
cenário: Márcia de Barros
figurino: Leopoldo Pacheco e Sylvia Moreira
trilha sonora: Alcides Nogueira
luz: Negra e Pepe
produção executiva: Jerusa Franco
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A CABEÇA
Alcides Nogueira
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CENA 1

RUBRICA
Um espaço qualquer. É o escritório do Dramaturgo. Uma mesa está ali,
com um computador. Uma luminária. Há um velho tapete caucasiano. É
também uma estação de metrô. Uma praça. Há uma janela que dá para o
mundo. Ou o mundo dá para esse espaço. Luz de serviço. O Dramaturgo
olha pela janela. A Personagem está em um canto, olhando. A Rubrica está
sendo uma rubrica. O Dramaturgo vem para sua mesa. Estende as mãos em
silêncio. Olha para os seus dedos.

DRAMATURGO
Como se eu fosse tocar um Prelúdio de Scriabin.

RUBRICA
Ouve-se um Prelúdio de Scriabin, que ecoa por todo o espaço, furioso,
agitado. A luz cai, ficando apenas focos: sobre o Dramaturgo, que digita;
sobre a Rubrica; sobre a Personagem, que se levanta. Cessa o Prelúdio de
Scriabin.

DRAMATURGO
Acabei de chegar do hospital, aonde fui visitar um amigo doente. Ele vai
morrer dentro de poucas horas. O câncer já tomou conta de tudo. Ele foi
tirado da UTI e levado para o quarto. Não vai viver mesmo... A UTI é para
aqueles que têm chance, e o quase-morto não pode ocupar um leito. Abri
a porta do quarto e fiquei parado. Ele me olhou com ódio. Como se eu es-
tivesse tirando a vida dele. Não senti nada. É um amigo muito querido. Um
amigo da adolescência. Mas não senti nada quando ele disparou aquele
ódio contra mim, como uma bala de revólver. Não nos falamos. O que po-
deria ser dito? Ele nem tem mais pulmão, mas deixei um maço de cigarros
na mesinha ao lado da cama e saí.
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RUBRICA
O Dramaturgo segue para uma estação de metrô. O trem chega, ele
consegue um lugar e começa a ler. É uma matéria dobre Guy Debord. Cai
toda a luz e entra uma projeção na parede dos fundos.

projeção: A Sociedade do Espetáculo

RUBRICA
Foco sobre o Dramaturgo digitando furiosamente.

PERSONAGEM
“Os arabescos formados no ar por esses insetos, traças, notoriamente
cegos, circulando em torno de uma luz de vela à noite...”

DRAMATURGO
Sidonius Appolinarius...

RUBRICA
O Dramaturgo pára de digitar. Sai de sua mesa, agitado.

DRAMATURGO
Eu não sou bom! Por que eu deveria olhar para ele e chorar? Por que eu
deveria passar as mãos em sua cabeça já sem os cabelos derrubados pela
quimioterapia? Eu não sou um inseto cego e ele não é uma luz. Esse instan-
te... Esse pequeno instante que me paralisa... Quando eu não sei o que fa-
zer com a vida, com a morte, com nada... Quando eu não me entendo e
nem entendo o que existe... Quando eu me reduzo a um fio de metal já to-
mado pelo azinhavre... Quando eu me percebo a criança que gira e gira e
gira, olhando para o céu, e parando subitamente, zonza, sem saber onde es-
tá seu apoio. Eu poderia ter sido um inseto cego, uma traça, e ter ido até
ele... Meu amigo era a vela se apagando, mas eu poderia ter inventado a
luz... somente naquele momento... somente para que eu tocasse sua mão...
e, sem palavra alguma, me despedisse dele.

RUBRICA
O telefone toca. O Dramaturgo atende.
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DRAMATURGO
Como? Não, você não pode estar falando sério... Como foi isso? Ele não
tinha força para nada...

PERSONAGEM
Pensei que não conseguiria... Quando a enfermeira passou, eu vi como
ela regulava o oxigênio. Foi difícil, mas estendi o braço e fechei o ar.

RUBRICA
Ouve-se novamente o Prelúdio de Scriabin, muito alto e violento,
enquanto a Personagem se deita sobre o pequeno tapete caucasiano, e o
Dramaturgo se aproxima. A Personagem está de olhos fechados, e o Dra-
maturgo segura as mãos dela. Um longo tempo de espera. Cessa a música.

DRAMATURGO
Por que eu te matei? Não era essa a história.

PERSONAGEM
Obrigado pelos cigarros. Não fumo há quinze dias. Como é que meu
câncer pode sobreviver desse jeito?

RUBRICA
Vou até a Personagem, entrego a ela um cigarro, acendo. A Personagem
dá uma baforada.

PERSONAGEM
Em quê você está pensando?

DRAMATURGO
Não sei...

PERSONAGEM
Mas você é um pensador. Todo dramaturgo é.

DRAMATURGO
Toda pessoa é... E eu não dei essa fala a você.
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PERSONAGEM
Deita aqui e fuma comigo.

RUBRICA
O Dramaturgo hesita um pouco. Acaba se deitando ao lado da Persona-
gem. Pega o cigarro dele e dá uma tragada. Ficam lado a lado. Luz cai e en-
tra projeção.

projeção: Desafiar o Mundo

PERSONAGEM
Você sempre pensa nisso?

DRAMATURGO
Estou pensando no artigo sobre Debord, que li depois que saí do hospital.

PERSONAGEM
Enquanto eu estava morrendo...

DRAMATURGO
Por que eu te matei?

PERSONAGEM
Quem faz as perguntas e sonega as respostas é você. Sou só o seu por-
ta-voz. Talvez fosse melhor se interrogar... Interrogar o mundo... Aí pode-
ria desafiá-lo.

DRAMATURGO
Ou entendê-lo...

PERSONAGEM
A sua cabeça. A sua cabeça. A sua cabeça. A sua cabeça. A sua cabeça.

DRAMATURGO
Pára!! Eu sou uma enxaqueca literária!
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PERSONAGEM
Eu sonhei... Você sonhou... Tantos sonharam... E, hoje, a sociedade ca-
pitalista está em seu mais alto grau de alienação. A relação do homem com
a vida, e consigo mesmo, foi transformada num espetáculo de imagens.

DRAMATURGO
Não estou pensando mais em Guy Debord!

PERSONAGEM
Sua cabeça virou uma máquina complexa, uma engrenagem perfeita,
que produz pensamentos sem que possa escolher. Você quer ser bom. Você
quer escrever o monólogo final de Sonia, do “Tio Vanya”. Escrever só isso,
o tempo todo o tempo todo o tempo todo... Acreditar na generosidade hu-
mana e em um tempo melhor. Mas você está seco.

RUBRICA
O Dramaturgo levanta-se rapidamente. Encara a Personagem com ódio.

PERSONAGEM
Agora quem está expelindo ódio pelos olhos é você.

DRAMATURGO
E nem preciso de câncer para isso!

RUBRICA
O Dramaturgo volta para sua mesa. A Personagem continua fumando
calmamente. Eu acendo uma lanterna, porque o black-out encerra a cena.
(black-out!)

CENA 2

RUBRICA
Foco somente sobre o Dramaturgo olhando por uma janela.

DRAMATURGO
Conheço aquela praça!
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PERSONAGEM
Paris! Você ficava horas nela, em 68. Eu ficava horas nela, em 68. O mundo
era Paris em 68. Talvez o último momento em que o homem conseguiu pensar
a liberdade e só a liberdade, sem nenhum adjetivo. Ou um: a liberdade livre.

RUBRICA
Cai a luz e entra uma projeção.

projeção: A Imaginação no Poder

PERSONAGEM
Como criador, você poderia pleitear qualquer cargo no governo imaginário.

DRAMATURGO
Guardei uma pedra que tirei de uma das barricadas. Uso como peso de pa-
pel.

PERSONAGEM
Romântico idiota!

DRAMATURGO
Você não morreu ainda?

PERSONAGEM
De acordo com a Rubrica

RUBRICA
O Dramaturgo reescreveu a cena e a Personagem não tem mais câncer.

PERSONAGEM
Um alívio! Todas as suas personagens morrem. Cansei disso... Mas entendo.
É a única maneira de você continuar vivo. Um expediente vagabundo que você
criou para se safar.

DRAMATURGO
Ele destilava a maldade...
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PERSONAGEM
Eu me recuso a ser uma Personagem de Lautréamont!... Prefiro conti-
nuar sendo sua.

DRAMATURGO
Morreu com 24 anos...

PERSONAGEM
De novo a morte...

DRAMATURGO
“Que a minha guerra contra o homem se eternize, já que cada um de
nós reconhece no outro sua própria degradação... já que somos ambos ini-
migos mortais. Quer deva eu conseguir uma vitória desastrosa ou sucum-
bir, o combate será belo; eu, sozinho contra a humanidade.”

PERSONAGEM
Devo aplaudir?

DRAMATURGO
Cultivo a maldade, como ele.

PERSONAGEM
Inventa a maldade. É diferente.

DRAMATURGO
Será?

PERSONAGEM
Entendi o meu papel.

RUBRICA
A Personagem vai até outro ponto, de onde, olhando como se fosse a
estátua da maldade, fala friamente.
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PERSONAGEM
“Se a terra tivesse sido recoberta por piolhos, como pelos grãos de areia
à beira-mar, a raça humana seria aniquilada em meio a dores terríveis.
Que espetáculo! E eu, com asas de anjo, imóvel nos ares para contemplá-
lo!”

DRAMATURGO
Entendeu? Somos o resumo desse embate...

PERSONAGEM
Você pode virar o jogo. Eu não.

DRAMATURGO
Eu também não... Penso, logo não existo!... O que eu faria sem você,
por exemplo?

PERSONAGEM
Não poderia inventar um amigo morrendo.

DRAMATURGO
Não saberia o que é a morte. E, não sabendo o que é a morte, não en-
tenderia a vida. Existe um vão em minha cabeça, por onde correm rios fu-
riosos. Tento atravessá-los, mas a água sempre me joga para as margens...
A certeza de que o cais é de pedra e de saudade. Brumas sebastianistas que
me envolvem. Caos feito de lembranças que se apagam. A foto polaroid
que perde a cor aos poucos. Resta um contorno. Já não consigo saber
como eu era e como serei... A criança cruel que cresceu e destilou seus ve-
nenos íntimos. O adolescente enlouquecido que imaginou enfrentar o
mundo, sem saber que armas possuía. O homem que não tem mais a bús-
sola... Restou o mapa do medo. Conheço cada um dos riscados... Decorei
cada um dos limites desse mapa do mundo que invento. Onde me perco,
sem saber mais qual a palavra exata. A palavra é o veneno que tomo dia-
riamente... esperando que o efeito seja devastador. E nunca é! A palavra é
a criança que eu desejo ser, e essa criança foge, assustada, como se eu fos-
se um monstro... Muitas vezes eu sou um monstro... Mas tantas outras eu
sou aquele que colhe o trigo para fazer o antigo pão. Minhas lavouras in-
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teriores... Não tenho mais arados... Você é o corvo que eu crio, e que dila-
cera minha colheita... E eu sou o meu próprio espantalho!

RUBRICA
O Dramaturgo se abate. A Personagem já sabe o que lhe cabe. A luz cai.

projeção: Potlatch

RUBRICA
Luz muito fraca. O Dramaturgo volta à sua mesa. Começa a digitar.
Lentamente. A Personagem se senta ao pé dele.

DRAMATURGO
Você sabe o que significa?

PERSONAGEM
Não.

DRAMATURGO
Um presente que não pode ser retribuído.

PERSONAGEM
Potlatch.

DRAMATURGO
Um presente raro...

PERSONAGEM
A minha morte! Você deve sobreviver.

DRAMATURGO
Senta aqui!

PERSONAGEM
Na sua mesa? Não!!! Isso é impossível.
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DRAMATURGO
Nada é impossível! Não sonhamos todos com isso também? Senta e di-
gita... Você sabe qual é o texto. Não esquece que tem de escrever também a
rubrica. Ou nada acontece...

RUBRICA
A Personagem senta-se à mesa do Dramaturgo. Este se deita sobre o ta-
pete. A Personagem começa a digitar.

DRAMATURGO
Eles me tiraram da UTI porque eu estou ocupando o lugar de alguém
que ainda pode viver... Entendeu?... Ou preciso pensar por você?... Minha
cabeça já não agüenta mais... Por que você está parado aí na porta do quar-
to? Por que não vem até a minha cama e passa a mão na minha cabeça?
Porque eu já perdi os cabelos? Perdi os cabelos mas os pensamentos estão
todos lá dentro... Talvez enrolados como fios... Torcidos... Nós dados como
em um tapete caucasiano... Mas estão lá... E você fica aí, parado... Não, meu
olhar não é de ódio! Não entenda assim... Meu olhar é um silêncio. Qual a
resposta? Você não sabe?... Então, qual a pergunta?... A vida e a arte... Elas
formam o mesmo desenho... O presente que não pode ser retribuído. Es-
tou esperando por ele. Você é o portador. Vem!

RUBRICA
A Personagem sai da mesa. Vai até o Dramaturgo, que está deitado so-
bre o tapete. Passa a mão na cabeça dele. Faz um carinho em seu rosto. Ten-
ta fechar seus olhos.

DRAMATURGO
Não! Eu quero Luz!... Até o final... Luz!

PERSONAGEM
Quando tudo estiver acabado, você perceberá que o presente foi uma
invenção sua. Como eu sou uma invenção sua, não posso mudar as falas,
nem os gestos, nem as intenções... Sua cabeça! Sua cabeça é a caldeira que
move as palavras... Sua cabeça é uma usina... Você entende o mundo...
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DRAMATURGO
Algo precisa mudar! Sei disso! Tire o ar, para que os meus pulmões ar-
rebentem de vez!... Mesmo que o preço seja esse, algo precisa mudar!

RUBRICA
A Personagem estende o braço e fecha o oxigênio. Ao som de Scriabin,
black-out e FIM.

projeção: Transformar a Realidade

São Paulo, setembro de 2001


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ALCIDES NOGUEIRA
nasceu em Botucatu, em 1949. Cursou a Faculdade de Direito do Largo de
São Francisco (USP). Estreou profissionalmente com a A Farsa da Noiva
Bombardeada (direção de Marcio Aurelio), logo proibida pela Ditadura. O
primeiro sucesso nos palcos aconteceu com Lua de Cetim, novamente diri-
gida por Marcio Aurelio, em 1981. Recebeu os principais prêmios do teatro
brasileiro (Molière, Shell, Governador do Estado, APETESP, APCA, Troféu
INACEN), com peças como Feliz Ano Velho (direção de Paulo Betti), Lem-
branças da China (direção de Jorge Takla), Florbela (direção de Cibele For-
jaz), Traças da Paixão, Ópera Joyce, Pólvora e Poesia (direções de Marcio Au-
relio) e Gertrude Stein, Alice Toklas & Pablo Picasso (direção de Antonio
Abujamra e Marcio Aurelio). A Cabeça (direção de Márcia Abujamra),
depois do projeto Ágora Livre Dramaturgias, entrou em carreira.
Para a televisão, além de novelas, escreveu em parceria com Maria Ade-
laide Amaral as minisséries Um Só Coração e JK, ambas para a TV Globo.

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