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Rev Brase Crescimento

Bakhtin os processos Desenvolvimento Hum.


de desenvolvimento 2010; 20(3) 745-756
humano PESQUISA
Rev Bras Crescimento Desenvolvimento Hum. ORIGINAL
2010; 20(3) 745-756
ORIGINAL RESEARCH

BAKHTIN E OS PROCESSOS DE DESENVOLVIMENTO


HUMANO

BAKHTIN AND THE PROCESSES OF HUMAN DEVELOPMENT

Fabio Scorsolini-Comin 1
Manoel Antônio dos Santos 2

Scorsolini-Comin F; Santos MA. Bakhtin e os processos de desenvolvimento humano: um


diálogo de, no mínimo, duas vozes. Rev. Bras. Cresc. e Desenv. Hum. 2010; 20(3) 745-756.

Resumo:
A obra de Bakhtin tem sido apropriada não apenas pela Linguística, como também por
diferentes áreas do conhecimento, como a Psicologia, a Educação e as Artes. Ao
aproximarmos este autor do campo do desenvolvimento humano, podemos compreender
de que modo o dialogismo e a polifonia podem ser evocados no diálogo com os contextos
desenvolvimentais e com as práticas discursivas. Essa aproximação contribui para repensar
o paradigma científico que contempla o desenvolvimento unicamente como uma sequência
linear de estágios e aquisições maturacionais. Para além dessas considerações reducionistas,
Bakhtin provoca o leitor para narrar o seu próprio desenvolvimento, que é sempre relacional,
dialógico e posicionado.

Palavras-chave: dialogismo; polifonia; linguagem; desenvolvimento; Bakhtin.

Abstract
Bakhtin’s work has been appropriated not only for linguistics but also for different areas of
knowledge such as Psychology, Education and Arts. Approximating this author’s work to
the field of human development, it can be understood how dialogism and the Arts. In
approaching this author’s field of language and human development, we can understand
how the dialogism and polyphony can be evoked in dialogue with developmental contexts
and discursive practices. This approximation helps to rethink the scientific paradigm which
views the development as a linear sequence of maturational stages and acquisitions. Beyond
these reductionist considerations, Bakhtin provoques the reader to narrate their own
development, which is always relational, dialogic and positioned.

Key words: dialogic; polyphony; language development; Bakhtin.

1 Psicólogo, Mestre. Professor do Departamento de Psicologia do Desenvolvimento, da Educação e do Trabalho da Universidade


Federal do Triângulo Mineiro (UFTM). E-mail: scorsolini@psicologia.uftm.edu.br
2 Psicólogo, Mestre e Doutor. Professor Doutor do Departamento de Psicologia e Educação da Faculdade de Filosofia, Ciências
e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Bolsista de Produtividade Científica em Pesquisa do CNPq, Nível
1D. E-mail: masantos@ffclrp.usp.br
Endereço para correspondência: Prof. Dr. Manoel Antônio dos Santos. Departamento de Psicologia e Educação da FFCLRP
USP, Avenida Bandeirantes, 3900, Monte Alegre, Ribeirão Preto, SP, CEP: 14040-901, Telefone: (16) 3602 3645

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INTRODUÇÃO compreender de que modo o dialogismo e a


polifonia podem ser evocados no diálogo com
Bakhtin e seus tempos, para iniciar o os contextos desenvolvimentais e com as prá-
diálogo que este estudo pretende instaurar, jul- ticas discursivas. Ao desenvolvermos nossa
ga-se fundamental justificar a escolha do títu- argumentação, procuraremos explicitar de que
lo. Ao afirmar que, em qualquer diálogo, estão modo, com o pensamento de Bakhtin, pode-
presentes, no mínimo, duas vozes, Bakhtin não mos revisar os paradigmas consagrados que
se refere ao fato de que, para travarmos uma informam a Psicologia do Desenvolvimento,
conversa, precisamos estar com (ou nos reme- fundamentando uma concepção alternativa que
termos a) um outro, pelo menos1. O diálogo, convoque o pesquisador a narrar seu próprio
longe de ser constituído por quantidades (de processo a partir de uma perspectiva dialógica
falantes, de ouvintes ou de observadores), ul- que contemple as diferentes vozes, entoações
trapassa tal consideração. O diálogo e visões de mundo.
bakhtiniano contrapõe-se ao discurso Mikhail Bakhtin nasceu em 1895, em
monológico, sendo compreendido como ação Oriol, Rússia, e morreu em 1975, em Moscou.
entre interlocutores1. Mesmo no discurso inte- Como referido por Todorov, em prefácio es-
rior, diferentes vozes são por nós atualizadas, crito para a obra Estética da Criação Verbal1,
de modo que não há um discurso único, isola- esse autor marcou época como uma das figu-
do de um contexto e do qual não participem ras mais importantes do universo intelectual
outras vozes, outros discursos e alteridades. do século XX, sendo considerado por seus pa-
Uma voz não produz diálogo – o que nos res um grande pensador e teórico da língua.
leva à necessidade de um outro que produza Articulador original, inaugurou uma renova-
conosco sentidos e formas de se compreender ção no campo dos estudos linguísticos e literá-
a experiência humana a partir da linguagem. rios do Ocidente, depois que suas ideias ultra-
Assim, uma primeira referência que deve ser passaram as fronteiras da Rússia, a partir da
desenvolvida em relação à concepção de diá- década de 1970.
logo em Bakhtin repousa na busca de sentido Bakhtin foi um linguista na atualmente
como ato de compreensão, que escapa a uma extinta União Soviética, onde viveu e desen-
relação puramente lógica ou factual. É no em- volveu sua obra em um contexto histórico mar-
bate entre as diferentes vozes que podemos cado por intensas transformações sociopolíti-
propiciar a escrita de um novo texto, como o cas. No contexto e circunstância em que viveu,
que será aqui apresentado2. o marxismo exerceu acentuada influência em
Neste estudo discutiremos alguns seu pensamento. Compartilhou com os teóri-
construtos axiais da obra de Bakhtin, cuja re- cos marxistas um interesse pelo mundo histó-
levância tem sido consistentemente reconhe- rico e social, especialmente pelo modo como
cida nas últimas décadas. A importância cres- os seres humanos pensam e agem sob condi-
cente atribuída a este autor pode ser estimada ções concretas e objetivas de existência. Ou
pelo modo reiterado como sua obra tem sido seja, seu interesse centrava-se na língua como
apropriada não apenas pela Linguística, como forma por meio da qual as ideologias se articu-
também por diferentes áreas do conhecimen- lam e mascaram a percepção da realidade. Para
to, como a Psicologia, as Ciências Sociais, a este autor, a língua é portadora de ideologias e
Comunicação, a Educação e as Artes. Preten- uma prática material.
demos colocar em relevo as potencialidades Bakhtin enfatizou a heterogeneidade
criadas ao aproximarmos essa obra do campo concreta da parole, ou seja, a complexidade
do desenvolvimento humano, o que permite multiforme das manifestações de linguagem em

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situações sociais concretas, diferentemente de guística seria o caminho pelo qual a realidade
Saussure e dos estruturalistas, que privilegia- social partilhada pelos indivíduos torna-se con-
ram a langue, isto é, o sistema abstrato da lín- dição essencial para que a língua se una à fala
gua, com suas características formas passíveis e se torne processo de comunicação capaz de
de serem repetidas3. Bakhtin empreendeu uma produzir atos de fala.
crítica aos formalistas, no sentido de que, para A verdadeira substância da língua seria
ele, a doutrina formalista seria uma estética do o ato dialógico em seu acontecimento concre-
material, reduzindo os problemas da criação to, sendo que qualquer diálogo, além de ser ele
poética a questões de linguagem. O fundamento próprio histórica e socialmente determinado,
de sua crítica reside na desnaturalização e ca- evidencia uma outra história: a história da pró-
minha contra a reificação da “linguagem poé- pria linguagem. A língua seria o produto do tra-
tica” e do estudo exaustivo de todos os proces- balho coletivo e ininterrupto de sujeitos social-
sos por parte dos formalistas, que acabaram por mente organizados, cujo processo instaura a
menosprezar os demais ingredientes do ato de construção, também coletiva, de conhecimen-
criação, como o conteúdo, a relação com o tos, práticas e saberes sobre o mundo4,5.
mundo e a forma. Na concepção bakhtiniana, a noção cen-
Mais ainda, Bakhtin propunha examinar tral da pesquisa estética não deve ser a mate-
a língua além daqueles olhares, pois tinha o rial, e sim a arquitetônica – ou a construção
interesse de examinar como os povos a usa- ou, ainda, a estrutura da obra – entendida como
vam. Entendia a língua como uma prática ma- um ponto de encontro e interação entre mate-
terial e sempre constituída na interação social. rial, forma e conteúdo6. O pensamento plural
Assim, enfatizava a necessidade de se pensar de Bakhtin possui uma unidade assegurada pela
a palavra como resultante não apenas de pro- centralidade da linguagem, cujo método de
cessos físicos, mas também fisiológicos e psi- análise é a dialética7. Na multiplicidade de te-
cológicos e, sobretudo, inserido nos interstícios mas investigados em sua obra – a sátira
das relações sociais. menipeia, a cultura popular medieval, o roman-
Como homem de seu tempo, este autor ce moderno ou escritores como Rabelais e
enfrentou problemas com o regime totalitário Dostoievski – é possível identificar uma ques-
soviético, que o levaram a se exilar e a elabo- tão de base denominada dialogismo, conceito
rar muitos de seus trabalhos durante o exílio. que será abordado ao longo deste artigo.
Em razão de seus conflitos políticos com o re-
gime que governava a União Soviética com
mão de ferro, assim como das dificuldades de EM BUSCA DE UM DIÁLOGO COM O
tradução de suas obras do russo para outros DESENVOLVIMENTO HUMANO
idiomas, as culturas ocidentais começaram a
ter acesso aos seus textos tardiamente, somen- Primeiramente, deve-se destacar que
te a partir de 19704. Bakhtin é um teórico que parte da Linguística
e que não apresenta propriamente uma teoria
sobre desenvolvimento. No entanto, tem sido
BAKHTIN EM LINHAS GERAIS eminentemente evocado no sentido de subsi-
diar investigações nos domínios de diferentes
As ideias de Bakhtin focalizam, primei- ciências, entre elas a Psicologia, bem como a
ramente, o conceito de diálogo e a noção de Educação. Estabelecendo uma aproximação
que a língua é sempre um diálogo. Para este com a Psicologia do Desenvolvimento, deve-
pensador, o verdadeiro objeto de estudo da Lin- se pontuar que Vigotski e Bakhtin, para citar-

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mos apenas um dos diálogos possíveis nessa professores, profissionais e coetâneos) tam-
interface, viveram na mesma época e apresen- bém se desenvolvam e se transformem.
taram significativas convergências em suas Alguns estudos, nesse sentido, fazem uso
obras, embora nenhum deles tenha se valido dos pressupostos bakhtinianos para se pensar
do outro na construção de suas teorias em tor- o desenvolvimento humano em contextos di-
no da linguagem e do desenvolvimento huma- versos, como a adoção e as práticas de acolhi-
no. Eles possuíam não apenas formações dife- mento, as identidades de pessoas envolvidas
rentes, como também focos diferentes de com o crime9, a inclusão de crianças na esco-
investigação. Vigotski focalizou a sua obra la4, o desenvolvimento de bebês em espaços
muito mais nas questões desenvolvimentais, coletivos10, bem como a própria construção de
enquanto que Bakhtin estudou mais a lingua- um referencial teórico-metodológico na Psico-
gem a partir da perspectiva da Linguística, o logia do Desenvolvimento11,12. Nesse sentido,
que gerou mudanças importantes no modo uma das noções mais evocadas nessas investi-
como a linguagem era focalizada e concebida gações é a de dialogismo.
na ciência2,8. O dialogismo é um conceito que permeia
Atravessando os campos da Psicolo- toda a obra de Bakhtin. Tal conceito pode ser
gia e também da Educação, a obra de definido como o princípio constitutivo da lin-
Vigotski é mais difundida, juntamente com guagem, o que significa que toda linguagem,
a de Jean Piaget, e está ao alcance da maior em qualquer campo, está impregnada por rela-
parte dos pesquisadores e educadores. No ções dialógicas7. A concepção dialógica con-
caso da obra de Bakhtin, relativamente me- tém a ideia da relatividade da autoria indivi-
nos conhecida, essa situação vem sendo mo- dual e, por conseguinte, o destaque do caráter
dificada nos últimos anos, ainda que as coletivo e social da produção de discursos.
questões relativas à sua tradução do russo De acordo com as proposições
ainda sejam alvo de embates e bakhtinianas, a alteridade marcaria o ser hu-
discordâncias. Ainda assim, alguns pesqui- mano. Nessa vertente, o dialogismo seria o
sadores 2 têm trabalhado com os pontos de confronto das entoações e dos sistemas de va-
intersecção entre esses pensadores. Um lores, que possibilitam as mais variadas visões
exemplo disso é o fato de ambos terem de- de mundo acerca de um tópico específico. O
senvolvido uma visão totalizante, não-frag- ser humano seria considerado um intertexto,
mentada da realidade, compreendendo o ho- na medida que não existe isoladamente, já que
mem como um conjunto de relações sociais. a sua vida se tece, entrecruza-se e interpenetra-
Desse modo, o homem não pode mais ser se com a experiência do outro. Os enunciados
estudado, na Psicologia do Desenvolvimen- de um falante estão, sempre e inevitavelmen-
to Humano, como ser isolado, sob a pers- te, atravessados pelas palavras do outro: o dis-
pectiva de uma postura individualizante que curso elaborado pelo falante constitui e se cons-
não olha para além de uma constituição fí- titui também do discurso do outro que o
sica, como no caso de crianças com defi- atravessa, condicionando o discurso do “eu”.
ciência incluídas na escola 4. A tônica não O conceito de dialogismo assume impor-
deveria ser colocada, portanto, nas capaci- tância capital á medida que entende a palavra
dades ou incapacidades da criança em ter- como portadora de um constante dinamismo e
mos de rendimento escolar, mas no modo o ser humano como agente, isto é, ele não ape-
como ela, naquele ambiente, pode se desen- nas é influenciado pelo meio, como também
volver e oferecer a oportunidade inequívo- age ativamente sobre o mesmo, transforman-
ca de que as pessoas do seu entorno (pais, do-o7. Além disso, do ponto de vista da comu-

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nicação, o dialogismo ratifica o conceito de co- ou escritas, mas também naquelas subentendi-
municação como interação verbal e não-ver- das em nossa comunicação verbal ou não-ver-
bal, não meramente como transmissão da in- bal;
formação. O dialogismo operaria dentro de (c) Dialogismo construído pela emer-
qualquer produção cultural, seja letrada ou gência de várias vozes relacionadas a um tema
analfabeta, verbal ou não verbal, elitista ou específico, dadas pela antecipação da resposta
popular. dos outros e das possíveis respostas imagina-
Em Bakhtin, a noção de dialógico ou de das por ele, em função do interlocutor e do
dialogicidade10 aparece por meio de diversas contexto10. Ainda seguindo o exemplo menci-
vertentes, a saber: onado anteriormente, os modos como os pais e
(a) Dialogismo interno da palavra: no as professoras se posicionam frente à deficiên-
discurso, o objeto está mergulhado em valo- cia e à inclusão acabam sendo regulados por
res, crenças, descrições e definições, o que faz meio das expectativas que criam em torno do
com que o falante se depare com múltiplos ca- olhar do pesquisador. Sendo assim, o que cada
minhos e vozes, que se tecem ao redor desse indivíduo diz, o que expressa e o modo como
objeto – a dialética do objeto está ligada ao atua nesse contexto devem ser balizados pelo
diálogo social que o engloba10; que ele compreende que é mais adequado do
(b) Dialogicidade nos enunciados: mes- ponto de vista psicológico ou pedagógico. As-
mo antes da concretização de um determinado sim, as práticas empregadas com as crianças
enunciado – e também posteriormente, há ou- ditas “especiais” ou “deficientes” são orienta-
tros enunciados, que emanam dos outros, aos das pelos discursos presentes em cursos de for-
quais o próprio enunciado está vinculado por mação para a inclusão, pelo olhar que apregoa
algum tipo de relação. Nesse sentido, o pró- a cidadania e o direito de todos à educação de
prio locutor seria um respondente, visto que qualidade, bem como pela presença do pesqui-
ele não detém o ponto zero do discurso, ou seja, sador no ambiente educacional4,13.
não o enunciou pela primeira vez, dado que o (d) Dialogização das linguagens: uma
discurso não se origina nele. Assim, quando língua nacional é plural, pois abriga um
escolhemos uma palavra, costumamos extraí- compósito de linguagens: oriundas das reuniões
la de outros enunciados, fundamentamo-nos sociais, familiar, cotidiana, sociopolítica; lin-
neles ou polemizamos com eles, os refutamos guagem dos jargões profissionais (advogado,
ou os confirmamos, os completamos ou os su- médico, empresário, político, professor...), lin-
pomos conhecidos, baseamo-nos neles ou con- guagem de geração e de idade, linguagem de
tamos com eles10. Essa seleção de palavras pode autoridade, linguagens ordinárias do dia; lin-
ser expressa, por exemplo, nas práticas educa- guagem oratória, publicitária, científica,
tivas em ambientes educacionais distintos. Por jornalística, literária..., com múltiplas vozes
meio das palavras selecionadas para descrever que estabelecem uma variedade de conexões e
uma determinada realidade (contexto da inclu- inter-relacionamentos10.
são)4 e também das palavras não selecionadas Desse modo, Bakhtin considera que o
(tentando despistar a identificação das deficiên- discurso é vivo e que vive nos modos sociais,
cias), as pessoas acabam expressando em seus devendo ser visto de formas contraditórias e
comportamentos muitas de suas concepções como mundos de múltiplas linguagens que se
acerca do desenvolvimento, da inclusão e da interligam. Assim, essas diferentes linguagens10
educação infantil. É nesse sentido que pode- não se excluem umas às outras, mas
mos compreender que o dialogismo não se ex- dialogicamente intersectam-se de maneiras
pressaria apenas por meio das palavras faladas muito diferentes, com uma interanimação em

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uma variedade de formas. Nesse processo, outro constitui o sujeito ideologicamente e


ocorre a coexistência de contradições so- proporciona-lhe o acabamento3.
cioideológicas entre o presente e o passado; Sob a ótica da antropologia, o pensamen-
entre diferentes épocas do passado; entre di- to bakhtiniano permite uma compreensão ra-
ferentes grupos socioideológicos do presente; dical da alteridade, pois apresenta uma visão
entre tendências, escolas, círculos e assim por multirreferenciada, na qual tempo e espaço
diante, com o encontro e a disputa entre pon- estão em constante interação no processo de
tos de vista sociolinguísticos distintos. Estes construção eu/outro9. Assim, é possível enten-
podem estar justapostos, mutuamente suple- der o outro de uma maneira original, pois ele é
mentando ou contradizendo-se; algumas lin- referido não como alguém que está fora de mim,
guagens falham a se desenvolverem, algumas que é estranho a mim, mas como alguém que
morrem, enquanto que outras florescem em lin- me constitui, que contribui para o processo de
guagens autênticas. Dado o jogo vivo, a lin- construção de um eu que não me pertence in-
guagem se encontra em um histórico e tegralmente e que somente existe a partir do
ininterrupto processo de tornar-se, formando olhar do outro. Assim, eu e outro se constroem
socialmente novas linguagens (p. 17). mutuamente a partir de referenciais temporais
A linguagem, como um dos aspectos e espaciais que os antecedem, são seus con-
mais relacionados ao desenvolvimento huma- temporâneos e, ao mesmo tempo, são seus her-
no, pode ser compreendida, em Bakhtin, como deiros, no bojo de um processo no qual há
relacionada aos contextos que constituem as múltiplas possibilidades de vir a ser8. Essa con-
pessoas. A linguagem como uma relação aca- sideração está fortemente presente em perspec-
ba por se descolar das tradições focadas em tivas desenvolvimentais como as da Rede de
seus aspectos morfológicos. Desse modo, a Significações10,11,16 que, para além de uma com-
ênfase não é dada ao que é adquirido em cada preensão de desenvolvimento como sinônimo
etapa do desenvolvimento, como destacava de crescimento e de superação de fases e perí-
Piaget 14, mas sim ao que é transformado, odos evolutivos, compreende tal processo como
coconstruído, reinterpretado a partir da lin- dialógico, aberto a releituras e sempre atento
guagem em seu acontecimento concreto, em aos sentidos e às relações que se colocam em
sua apropriação como signo, em dado momen- cada momento. O que as pessoas são ou o que
to histórico-cultural, como compartilhado por virão a ser não depende de uma sucessão de
Vigotski2,15. Em Bakhtin, o “sujeito” emerge desenvolvimentos, mas um continuum de rup-
na relação com o outro. É um sujeito dialógico turas, apropriações e transformações que se dão
e seu conhecimento é fundamentado no dis- à medida que nos desenvolvemos e interagimos
curso que ele produz. O sujeito dialógico com nossos múltiplos outros, evocados em
bakhtiniano é solidário das alteridades de seu nossa linguagem, em nosso pensamento e em
discurso ao ser concebido em uma partição nossos comportamentos, ações e práticas.
de vozes concorrentes, posto que a palavra do
outro se transforma, dialogicamente, tendo um
caráter criativo2. Tal sujeito é incompleto, não NOSSA LÍNGUA BAKHTINIANA
está acabado, mas mantém uma busca eterna
de completude que se apresenta como Como processo constituinte do desen-
inconclusiva, de tal modo que se torna impos- volvimento, a linguagem é compreendida para
sível uma formação individual sem alteridade, além de seus aspectos técnicos, morfológicos
pois o outro delimita e constrói o espaço de e sintáticos. Antes, é apreendida como um in-
atuação do sujeito no mundo. No entanto, o dicador de desenvolvimento, estando presente

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não apenas no nível verbal, mas também ope- nômico, histórico e ideológico. Em Bakhtin,
rando no não-verbal. Assim, Bakhtin destaca a toda produção cultural só pode existir no inte-
centralidade da linguagem na vida do homem1. rior da linguagem.
Em sua concepção, a palavra é o material da Assim, tanto a linguagem como a histó-
linguagem interior e da consciência, além de ria constituem pontos nodais na compreensão
ser elemento privilegiado da comunicação na das questões humanas e sociais. Por ser
vida cotidiana, que acompanha toda criação polissêmica e dialógica, a palavra traz marcas
ideológica, estando presente em todos os atos culturais, sociais e históricas – marcas estas
de compreensão e interpretação. Para este au- que estão cravadas em nosso desenvolvimento
tor, a palavra tem sempre um sentido ideológi- psíquico, motor e emocional. Nesse aspecto,
co ou vivencial, relaciona-se totalmente com o Bakhtin estabelece o maior divisor de águas
contexto e carrega um conjunto de significa- na construção de sua noção sobre a língua, pois,
dos que lhe foram socialmente outorgados, ao afirmar que o contexto histórico é parte
negociados, negados e/ou assumidos. A pala- constitutiva da linguagem, ele questiona as
vra é também polissêmica e plural, uma pre- concepções estruturalistas que tomam a pala-
sença viva da história, por conter múltiplos fios vra como parte de um sistema abstrato de for-
ideológicos que a tecem. mas, em que o falante não tem poder de inter-
O produto do ato da fala, a enunciação, venção. O contexto histórico transforma a
é de natureza social, sendo determinada pela palavra fria do dicionário em fios dialógicos
situação mais imediata ou pelo meio social mais vivos, que refletem e refratam a realidade que
amplo. O que torna possível a compreensão de a produziu17-20.
uma palavra é também aquilo que é presumido Por meio da linguagem, são colocadas
pelo ouvinte, porque toda palavra usada na fala em evidência as divergências, a materialização
real possui um acento de valor ou apreciativo, da luta de classes, a disputa pelo poder por gru-
transmitido por meio da entoação expressiva. pos antagônicos, as crenças religiosas e as de-
Por isso, juntamente com a palavra acontecem monstrações de preconceitos. Nesse jogo – da
os gestos, as expressões faciais, a tonalidade e palavra que se liga a uma outra palavra – o su-
as entonações. jeito falante, que apreende o discurso do ou-
As concepções de Bakhtin exigem do tro, não é um ser mudo e passivo. Ao contrá-
leitor um olhar múltiplo sobre o mundo e so- rio, é um ser perpassado pelas suas próprias
bre o outro. Trata-se de um olhar que vê o mun- palavras e pelas de outrem.
do a partir de ruídos, vozes, sentidos8, sons e As palavras refletem e refratam, não de
linguagens que se misturam, (re)constroem-se, modo mecânico, os conflitos, e apontam as
modificam-se e transformam-se continuamen- marcas ideológicas distintas de cada sujeito em
te17-20. Nesse cenário compreensivo, a palavra interação. Nas palavras de Bakhtin19: da mes-
assume papel primordial, pois é a partir dela ma maneira que, se nós perdemos de vista a
que o sujeito constitui e é constituído. A pala- significação da palavra, perdemos a própria
vra não seria apenas um meio de comunica- palavra, que fica, assim, reduzida à sua reali-
ção, mas também conteúdo da própria ativida- dade física, acompanhada do processo fisio-
de psíquica. lógico de sua produção. O que faz da palavra
Essa visão dialógica supera a descrição uma palavra é a sua significação (p. 49).
dos elementos estritamente linguísticos e bus- Nessa visão bakhtiniana não existem
ca incluir também os elementos pensamento e linguagem como atributos hu-
extralinguísticos que, direta ou indiretamente, manos inatos, em uma perspectiva que se dis-
condicionam a interação nos planos social, eco- tancia das tradicionais concepções de lingua-

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gem como atributo exclusivamente biológico se no discurso e não podem ser nem totalmen-
e como faculdade mensurável. A atividade te isoladas nem totalmente separadas dele
mental do sujeito pertence totalmente ao cam- (p. 38).
po social (nesse sentido, ao outro), pois a pala- Como apontado anteriormente, a utili-
vra e o material semiótico, externo aos sujei- zação da palavra na comunicação verbal ativa
tos, são elementos determinantes para a é sempre marcada pela individualidade e pelo
organização do pensamento que, posteriormen- contexto de produção. A palavra do outro e a
te, retornam ao campo social. palavra minha (impregnada por minha
A palavra, em sua condição de signo, é expressividade) possuem uma expressividade
adquirida no meio social e, uma vez que não pertence à própria palavra, mas que
interiorizada pelo sujeito, retorna ao meio so- nasce no contato entre a palavra e a realidade
cial por meio dos processos interacionais, em efetiva, nas circunstâncias de uma situação real,
uma forma diferenciada, o que aproxima que se atualiza por meio de um enunciado in-
Bakhtin das concepções de Vigotski2,15. Ou dividual1.
seja, ela é dialeticamente alterada devido às Ao destacar o caráter social da palavra,
colorações ideológicas que marcam as condi- Bakhtin fez referência ao fato de que o desen-
ções de produção. O sentido da palavra é total- volvimento também não se dá ao acaso e de
mente determinado por seu(s) contexto(s), mas modo individual, como veiculado pelas teori-
esses contextos não se encontram justapostos as desenvolvimentais clássicas. Pelo contrário,
simplesmente, mas em uma situação de intera- a linguagem e o desenvolvimento se dão na
ção e de conflito tenso e ininterrupto17. interação social, no contato da pessoa com seus
A palavra permite a constituição do su- outros e o meio no qual vivem, sendo a pala-
jeito na e por meio da linguagem. Não se tra- vra uma expressão possível dessa relação pes-
ta aqui de lidar com uma palavra enquanto soa-cultura.
unidade da língua, nem com a significação Assim, a palavra pode se apresentar como
dessa palavra, mas com o enunciado acabado um “aglomerado de enunciados1” (p. 313). Es-
e com um sentido concreto, ou seja, seu con- tes enunciados estarão se organizando e se reor-
teúdo. A significação da palavra se refere à ganizando de acordo com a época, o meio so-
realidade efetiva nas condições reais da co- cial, a família, as condições de desenvolvimento
municação verbal. A significação de uma pa- e a sociedade na qual o sujeito está inserido.
lavra só pode ser entendida a partir dos enun- Nas palavras de Bakhtin1, toda época, em cada
ciados, da sua entonação, que vai lhe conferir uma das esferas da vida e da realidade, tem tra-
toda uma expressividade própria. A entona- dições acatadas que se expressam e se preser-
ção expressiva não pertence à palavra, mas vam sob o invólucro das palavras, das obras,
ao enunciado. dos enunciados, das locuções, etc. (p. 313).
Para Bakhtin, a palavra deve ser consi- É especialmente importante acentuar que
derada como um signo social, funcionando a experiência verbal individual do homem evo-
como elemento essencial que acompanha e lui na interação contínua e permanente com os
comenta todo ato ideológico20: os processos de enunciados individuais dos outros. Toda fala
compreensão de todos os fenômenos ideológi- está intimamente vinculada ao seu receptor, aos
cos (um quadro, uma peça musical, um ritual outros que também constituem o falante, na
ou um comportamento humano) não podem dialética dinâmica da vida humana. Os outros,
operar sem a participação do discurso inte- para os quais o pensamento do sujeito se torna
rior. Todas as manifestações da criação ideo- real, não são ouvintes passivos, mas partici-
lógica – todos os signos não-verbais – banham- pantes ativos da comunicação verbal, já que

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toda enunciação é elaborada para ir ao encon- interação viva das forças sociais, do mesmo
tro de uma resposta desse(s) outros(s), em um modo que os gestos e o comportamento não
processo reflexivo. verbal serão também o produto dessa intera-
Nossa fala, isto é, nossos enunciados (que ção. A enunciação também é produto da inte-
incluem as obras literárias), estão repletos de ração social, quer se trate de um ato de fala
palavras dos outros, caracterizadas, em graus determinado pela situação imediata ou pelo
variáveis, pela alteridade ou pela assimilação, contexto mais amplo que constitui o conjunto
caracterizadas, também em grau variáveis, por das condições de vida de uma determinada
um emprego consciente e decalcado. As palavras comunidade linguística. Em Para uma filoso-
dos outros introduzem sua própria fia do ato, Bakhtin21 critica a cisão que se esta-
expressividade, seu tom valorativo, que assimi- belece entre o conteúdo ou o sentido de um
lamos, reestruturamos, modificamos1 (p. 314). dado ato-atividade, e a realidade histórica do
Analisando a fundo a questão dos enun- seu ser, a sua real e única experiência. Propõe
ciados, Bakhtin afirma que em todo enuncia- que se pense a palavra ou o ato como possuin-
do, dadas as condições concretas da comuni- do um contexto histórico e, além disso, uma
cação verbal, pode-se perceber as palavras do experiência concreta, no aqui e agora das si-
outro ocultas ou semiocultas1. O enunciado se tuações. “A palavra está sempre carregada de
coloca como um fenômeno complexo, se ana- um conteúdo ou de um sentido ideológico ou
lisado em sua relação dialógica entre o autor vivencial”19 (p. 95).
(locutor) e os outros enunciados. Os enuncia- O ser humano só poderia ser compreen-
dos conhecem-se uns aos outros, ou seja, são dido no cerne dessa duplicidade conteúdo/rea-
dotados de um caráter recíproco, posto tam- lidade histórica, como parte de um todo, e não
bém que estão repletos de ecos e lembranças como objeto desmembrável e examinado se-
de outros enunciados, aos quais estão vincula- paradamente, em dicotomias que acabam por
dos no interior de uma esfera comum da co- colocar em um segundo plano o caráter
municação verbal. dialógico deste ser inserido e interpenetrado
O enunciado se coloca como uma res- pela história e pelos outros.
posta a enunciados anteriores dentro de uma Na visão bakhtiniana, toda “expressão”
dada esfera, refutando, confirmando, comple- comportaria tanto o seu conteúdo interior quan-
tando, baseando-se nestes outros enunciados to a sua objetivação exterior para outrem (ou
que também o constituem. Todo enunciado re- também para si mesmo). Todo o ato expressi-
mete a outro, em uma cadeia de sentido e de vo mover-se-ia entre as duas facetas, ou seja,
comunicação que está presente na linguagem. entre o conteúdo interior e a objetivação exte-
Não apenas a linguagem verbal é relevan- rior; toda palavra ou ato constituiria o produto
te e portadora de significação19. Todo gesto ou da interação do locutor e do ouvinte – ou, em
processo do organismo, como a respiração, a outras palavras, de um em relação a um outro.
circulação sanguínea, os movimentos do corpo, Extrapolando as considerações em torno da
a articulação, o discurso interior, a mímica, a palavra e concebendo o elemento social das
reação aos estímulos exteriores, enfim, “tudo o proposições bakhtinianas, o desenvolvimento
que ocorre no organismo pode tornar-se mate- também se daria nesse movimento, no relacio-
rial para a expressão da atividade psíquica, pos- namento recíproco de um eu para um outro e
to que tudo pode adquirir um valor semiótico, deste outro para o eu, em um processo dinâmi-
tudo pode tornar-se expressivo” (p. 52). co. Nessa interação, cada pessoa, com suas
A palavra acaba por se revelar, no mo- características conflitantes, traria uma voz in-
mento de sua expressão, como o produto da dependente. Essas vozes diferentes e simultâ-

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neas implicam na concepção de sua coexistên- interesses sociais, em uma comunidade


cia e na possibilidade do diálogo entre elas, semiótica. O signo possui uma dinâmica inter-
em que se abre a perspectiva de na que se revela no exterior, nos conflitos, nas
descontinuidade, diante da multiplicidade de crises, na fala, no discurso, nas práticas, nos
vozes divergentes22,23. gestos4,10,13. Está encarnado, vivo e em cons-
tante transformação, reflexão e refração.
Os signos emergem do processo de inte-
SOB O SIGNO DA MATERIALIDADE ração social (o signo se cria entre indivíduos, no
meio social), tendo uma materialidade social – o
Em seu livro Marxismo e filosofia da lin- gesto significante, a palavra, a imagem, são con-
guagem, Bakhtin sugere que o signo ocupa um siderados signos que se materializam nos corpos,
papel de destaque20. É nesse trabalho que o que se encarnam na fala, na expressão, enfim,
autor desenvolve a noção de que o domínio do em uma realidade material objetiva.
signo é o mesmo domínio do ideológico. O A existência do signo é a materialização
universo dos signos seria um universo particu- dos fenômenos ideológicos juntamente com as
lar, pois o signo não existe apenas como parte condições e as formas da comunicação social.
de uma realidade, mas reflete e refrata uma Nesse sentido, a palavra é vista por Bakhtin
outra realidade. Cada signo não é apenas um como um fenômeno ideológico por excelência,
reflexo ou sombra da realidade, mas também já que a realidade de toda palavra é absorvida
um fragmento material dessa realidade. por sua função de signo. “A palavra é o modo
Todo fenômeno que funciona como um mais puro e sensível da relação social20” (p. 36).
signo possui uma encarnação material, como A palavra ocupa uma posição de signo social.
um som, uma massa física, uma cor, um movi- Todo signo cultural compreendido e do-
mento do corpo. Nas palavras de Bakhtin20: Um tado de sentido torna-se parte de uma unidade
signo é um fenômeno do mundo exterior. O da consciência verbalmente construída, em que
próprio signo e todos os seus efeitos (todas as toda palavra está presente em todos os atos de
ações, reações e novos signos que ele gera no interpretação. O signo, como algo cravado no
meio social circundante) aparecem na expe- ser humano, possui uma realidade não apenas
riência exterior (p. 33). Portanto, o signo pos- objetiva, mas corporificada, em que dinamiza,
suiria uma realidade objetiva, passível de ser problematiza e tenciona o humano em sua ebu-
submetida a um estudo de caráter objetivo. lição de significados.
Para que se compreenda um signo é ne- Desta maneira, ao aproximar Bakhtin do
cessário que haja uma aproximação entre o sig- campo do desenvolvimento humano, fica evi-
no aprendido e outros signos previamente co- dente a desconstrução que ele promove na pró-
nhecidos, ou seja, a compreensão só pode pria definição do que é desenvolvimento. Em-
operar de um signo por meio de outros. Esta bora não tenha se debruçado sobre esse
cadeia formada a partir de um signo para e por delineamento teórico, o autor avança no senti-
outro signo é única e contínua, e, em nenhum do de compreendê-lo como uma realidade di-
momento, pode ser quebrada sem que seja pre- nâmica e aberta a diversas reconstruções.
cedida pela corporificação do signo. Pode-se Ao pensar a linguagem a despeito de seus
dizer que a realidade determina o signo e que elementos fonológicos, morfológicos e sintáti-
o signo reflete e refrata a realidade em trans- cos, passando pela expressividade e pela mate-
formação. rialização do signo, Bakhtin provoca uma rup-
O ser humano se reflete no signo, mas tura na noção de desenvolvimento sequenciado
também se refrata no mesmo, no confronto dos e disposto em períodos. Além disso, sustenta que

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as mudanças se dão em termos dos contextos busca por elementos desenvolvimentais que
que favorecem ou não o desenvolvimento e den- expliquem o dinamismo das relações
tro de determinações culturais que consideram intersubjetivas, sustentando a visão dialógica
a linguagem como um campo de embate, como do desenvolver-se (a si mesmo e ao outro).
um espaço no qual os saberes, concepções e prá- Para Bakhtin, a realidade é essencial-
ticas podem ser dispostos e entrar em diálogo, mente contraditória e em permanente trans-
promovendo o desenvolvimento de pessoas e formação. Nesse sentido, propõe uma dialética
comunidades. Assim, o desenvolvimento não é que, nascendo do diálogo, nele se prolonga,
limitado pelas condições históricas e culturais colocando pessoas e textos em um permanen-
do indivíduo, mas um elemento que dialoga te processo dialógico2. Seu pensamento colo-
constantemente com essa realidade, adequando- ca-se de modo sempre aberto, resistindo à
se ao papel, negando-se ou afirmando-se, o que ideia de acabamento e perfeição, o que pode
conduz à reflexão sobre a ideia de desenvolvi- ser estendido aos sentidos sobre desenvolvi-
mento não necessariamente ligada à melhoria, mento implícitos em sua obra.
mas sim à transformação. Desse modo, podemos afirmar que
Retomando o exemplo mencionado an- Bakhtin concebe o desenvolvimento humano,
teriormente, ao examinar o desenvolvimento tal como apregoa em relação à linguagem, como
de crianças expostas a processos de inclusão, uma malha de discursos circulantes e plurais
precisamos manter o olhar atento para as trans- (discursos cujos sentidos não podemos contro-
formações que vão se processando gradualmen- lar), em contraposição a um discurso
te, nas quais os protagonistas podem ser monológico, que não apenas relativiza os
posicionados de maneiras distintas conforme posicionamentos, mas subsidia saberes e práti-
a situação. Essa concepção nos leva a conside- cas em nosso meio que possuem uma
rar o desenvolvimento como um processo materialidade e concretude que lhe são próprias.
dialógico, que se apresenta sempre em relação Ao desconstruir a noção de sequências desen-
a um outro, que oferece à criança a oportuni- volvimentais ou fases de desenvolvimento quan-
dade de mudança. Sendo assim, as práticas, os do pensa a linguagem, Bakhtin rompe com a
saberes e os demais elementos interativos po- ideia de maturação das estruturas orgânicas e
dem ser recuperados pelas pessoas no aqui-e- promove uma compreensão não apenas mais
agora, modificando-se a depender dos movi- ampla desse processo, como também mais ali-
mentos produzidos, assumidos ou negados nhada aos paradigmas contemporâneos de ciên-
pelos profissionais, pais e crianças que cia e produção do conhecimento16. Por conse-
protagonizam esse cenário. guinte, ao abordar a centralidade da linguagem
Assim como no embate da palavra com na vida humana acaba por endossar uma noção
o meio social, o desenvolvimento dar-se-ia em de desenvolvimento que extrapola um “passo a
um processo tenso, de sucessivas aproximações passo” metodológico, ao apregoar a não-crista-
e distanciamentos entre a pessoa e o meio, e lização das práticas. Nesse posicionamento, abre
não em termos de critérios etários ou de pa- espaço para os movimentos de transformação
drões e capacidades esperadas para cada pe- inerentes à linguagem, à comunicação como do-
ríodo evolutivo. Na perspectiva dialógica de mínio de expressão coletiva e ao próprio desen-
desenvolvimento, há espaço para interação, volvimento como processo ininterrupto.
confronto e também para a convivência entre Agradecimento: à Prof. Dra. Katia de
visões díspares de mundo. Ao assumirmos esse Souza Amorim, pela formação científica pro-
posicionamento, questionamos os conceitos de vida a Fábio Scorsolini-Comim, no período de
evolução, sequência, períodos e fases, em uma 2004 a 2006.

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