Você está na página 1de 3

Timor-Leste, a infância (d)e um país

De Timor-Leste sabia apenas o que me ensinaram nas aulas de História. Mentira. Até isso,
percebo agora, tinha esquecido quando aqui aportei. Em Oé-Cusse, mais de 500 anos após
os primeiros portugueses o terem feito.
Nas aulas de História, Timor-Leste perde-se no mar dos mares que integraram as rotas dos
Descobrimentos (ou Achamentos ou o que quer que o politicamente correto imponha
agora), nas listas das mercadorias levadas e trazidas e nos nomes dos que superintendiam
os territórios conquistados. Das aulas de História, Timor-Leste era o equivalente a um
qualquer enigmático conjunto de letras da tabela periódica, provavelmente TL.

Depois veio o Massacre de Santa Cruz, que emocionou o nosso país e, com ele, o
mundo.Vestimo-nos de branco e acompanhámos, de longe, a simbólica viagem do Lusitânia
Expresso. Finalmente, soubemos da independência e do nascimento de um Timor-Leste
livre para crescer. Era basicamente isto que sabia de Timor-Leste quando desembarquei no
Aeroporto Nicolau Lobato, em Díli.

Ninguém nos prepara para a beleza natural do país. As cores terra nas coisas da terra, a
abundância publicitária nas ruas, as construções incipientes, inacabadas, com cimento à
vista e chapas de zinco, as motas, motas por todo o lado, como o verde, abundante,
desordenado, exuberante e, estranhamente, pouco entrecortado por flores. Talvez a
natureza saiba que, aqui, fazem mais falta as frutas e os frutos.

N​inguém nos prepara para um país em que, apesar da longa colonização portuguesa​, ​a Língua
de Camões é falada por poucos e dominada por mesmo muito poucos. E sim, é língua oficial do
país, juntamente com o tétum, mas os anos da ocupação indonésia ceifaram aos timorenses
mais velhos - que ainda hoje a falam com indisfarçável orgulho, por ter sido a língua da
resistência - a possibilidade de a passarem aos filhos. Falar português podia significar a morte -
eu sei, é difícil acreditar. Mas a Babel que é este país não começa nem acaba na Língua
Portuguesa. O próprio tétum existe em duas ‘versões’, o tétum-prasa, que incorpora muitas
palavras portuguesas com uma grafia de base obviamente fonética (por exemplo, constituição é
konstituisaun, ou seja, é impossível a um português não entender o básico deste tétum mais
urbano), e o tétum-terike, anterior à chegada dos portugueses. Para ajudar ao que nos soa
como uma cacofonia, há ainda mais de duas dezenas de línguas locais - ataurense, baiqueno,
becais, búnaque, cauaimina, fataluco, galóli, habo, idalaca, lovaia, macalero, macassai, mambai,
quémaque, tocodede…

E as pessoas? E a cultura?

É difícil falar sobre os timorenses e a cultura timorense. É difícil resistir à tentação de descrever
tudo sob um ponto de vista ocidental - e isso seria errado. Mas, aparentemente, ​podemos tirar
a Mulher do Ocidente mas não conseguimos tirar o Ocidente da Mulher​. Ainda que ela se
esforce. E eu faço-o. Mas é realmente tudo muito diferente. A relação com a morte e a sua
vivência dariam para cem crónicas. A vida familiar. As relações de poder e de afeto, com o
barlaque à cabeça, uma espécie de dote que submete o amor à capacidade económica do noivo
mas, fui percebendo, tem as suas razões, discutíveis, mas tem. O trabalho, muito mais moldado
à natureza do que ao capitalismo. O tempo, idem. A religião, o animismo, a convivência com os
animais, os hábitos de consumo, as ambições, a cozinha, a moda, a noção de habitabilidade, o
escrutínio público, ainda muito frágil, da vida política, a política, a cidadania, os direitos das
mulheres, das crianças. É tudo muito diferente, não sei como explicar melhor.

Foco-me por isso, no melhor do mundo e, sem dúvida, no melhor de Timor-Leste: as suas
crianças. Foram elas que me fizeram engolir quase todas as ideias-feitas que trazia de Portugal,
e repensar até convicções íntimas. Timor-Leste é uma das mais jovens nações do mundo e uma
das nações do mundo com mais crianças e jovens, representando mais de dois terços da sua
população. Há crianças por todo o lado, muitas. Se as observamos julgo que conseguimos
saber quase tudo o que verdadeiramente importa sobre Timor-Leste - e até sobre nós
.
As crianças de Timor-Leste sorriem mais do que as nossas, brincam mais do que as nossas e,
arrisco, são mais felizes do que as nossas. E vivem, na sua maioria, abaixo do limiar da
pobreza. Não estou, calma, a fazer o elogio da pobreza. Estas crianças, com acesso a água
potável, boa nutrição, casas minimamente mobiladas e equipadas, protegidas de insetos, com
mais vacinação, melhores cuidados de saúde e uma educação forte seriam, obviamente, ainda
mais felizes. Mas, com tudo o que está por fazer aqui, são-no. Os sorrisos National Geographic?
São reais. Estão por todo o lado. As roupas gastas, que ainda ou já não servem, em
combinações de cor discutíveis? É o que se espera de um país ainda com trocas comerciais
limitadas, rendimentos familiares muito baixos e uma convicção generalizada de que as roupas
boas estão reservadas - e aí sim, sem ponta de desleixo, embora com mais rendas e cetins do
que é moda, hoje, no Ocidente - para as missas dominicais. Acima de tudo, nas crianças, são
roupas para que estejam confortáveis e brinquem e ajudem nas tarefas familiares. E fazem-no.
Há as que vendem, pelas ruas, peixe a baloiçar nas pontas do pau que carregam atravessado
sobre as costas, gritando ‘Ican, Ican’. Há as que que equilibram sobre a cabeça cestos de
verdura, há as que transportam garrafões de água potável mais pesados do que elas próprias.
Pelo meio, brincam. Param para conversar, roer uma fruta, comer uma qualquer guloseima
insuportavelmente, para nós, açucarada. E todas, mas todas, cuidam dos mais novos,
levam-nos ao colo para todo o lado, são como apêndices de si próprias. Às vezes é vê-los,
grupos de dez, doze crianças, entre irmãos e primos e vizinhos, os mais velhos com sete, oito
anitos, e os mais novos com meses, e nunca uma criança, por mais pequena, deixa um dos
ainda mais pequenitos cair ou correr para a estrada, nunca um dos mais velhos grita aos mais
pequenos, nunca os mais pequenos choram pelos pais ou em protesto pelo colo periclitante.
Impressiona.

As crianças de Timor-Leste não têm tudo mas têm a inocência de não saber o que lhes
falta​. Há problemas de má nutrição mas não há fome, ou pelo menos eu não a vi em Oé-Cusse.
Também não há pedintes, eventualmente porque também não há muito a quem pedir: o salário
mínimo ronda os 115 dólares e muitos não o ganham. Aqui as crianças tomam banhos nuas,
barcos de pesca como trampolins e cascas de árvores arrastadas pelas chuvas e garrafões de
óleo vazios como bóias. Rebolam-se na areia e fazem de quase tudo brinquedos. Usam catanas
para cortar ramos e folhagens que levam para a casa e para escola, onde servem para construir
sebes ou vassouras. Limpam as escolas aos sábados de manhã. Os adultos não se preocupam
em brincar com as crianças, mas levam-nas para todo o lado. Aqui, são menos crianças, como
categoria à parte, e mais parte da família e do dia-a-dia, pelo menos é assim que o entendo.

As crianças de Timor-Leste são de uma generosidade infinita nos sorrisos e na atenção que nos
dispensam, desde logo, no ‘bodia’, ‘tardiii’ e ‘bonoite’ com que nos saúdam sempre, mesmo que
passemos por elas 30 vezes num só dia. Chamam-nos ‘malai’, estrangeiro, mas sem ponta de
hostilidade.

As crianças de Timor-Leste aguentam, quietas e bem-comportadas, cerimónias religiosas longas


e que dariam connosco em loucos, pelo tempo e ritmo a que já não estamos, ateus praticantes
que quase todos somos no Ocidente, habituados. Usam uniformes nas escolas, sempre
impecavelmente limpos, engomados e em boas condições, com o orgulho de quem confia na
instituição Escola.

As crianças de Timor-Leste têm normalmente umas 10 avós, 100 tios e três ou quatro pais e
mães: será um exagero mas a verdade é que as famílias são grandes e o conceito distinto do
nosso - há o pai boot (grande) e o pai kik (pequeno) e os outros de permeio, porque vêem como
pais os tios, como mães as tias e como avós praticamente todos os mais velhos da comunidade
que integram.

As crianças de Timor-Leste gostam de livros - a biblioteca itinerante faz um sucesso que devia
fazer as crianças portuguesas corar de vergonha pelos livros com pó que têm nas estantes dos
seus quartos -, de música (adoram!) e de desenhar. Parecem ter um talento natural para tudo o
que seja artístico - ou ainda não o perderam com a santa tecnologia, talvez seja isso.

As crianças de Timor-Leste cantam em português, num português com um sotaque adocicado


que nos derrete. Mas também cantam em tétum, inglês e bahasa, ​parecem fadadas para o
poliglotismo, se tivessem acesso a um bom ensino das línguas podiam ser as tradutoras
do mundo inteiro, filhos de Babel a desbabelizar tudo, a unir-nos naqueles sorrisos
gigantes que não precisam de tradução.

As crianças de Timor-Leste já nasceram num país livre e herdaram dos pais um impressionante
desapego do passado colonial e de ocupação: não encontrei vestígio de aversão aos
portugueses e muito menos de ódio aos indonésios. Eventualmente alguma desconfiança, nos
adultos, é tudo - e muito porque, compreensivelmente, nem todos vêem com bons olhos os
salários que os malais (malai sira) vêm receber num país que, aos seus, paga tão pouco. Mas,
não vale a pena ter ilusões: só com uma forte e consistente aposta na educação destas crianças
é que Timor-Leste se libertará, a prazo, da dependência dos recursos humanos estrangeiros
que, para abdicarem de conforto e da proximidade da família, requerem bons vencimentos.

As crianças de Timor-Leste, bem alimentadas de corpo e espírito, são o futuro deste país e têm
um desafio gigante, mas exequível, pela frente. É isto, para mim, Timor-Leste - e se pensarmos
bem, apesar de tantas diferenças, não é assim tão distinto de qualquer outro país.

Você também pode gostar