Você está na página 1de 226

NOVA HISTÓRIA

Jacques Le Goff
O NASCIMENTO
,
DO PURGATORIO
Jacques Le Goff

o NASCIMENTO
,
DO PURGATORIO
2~ edição

1995
EDITORIAL ESTAMPA
o Purgatório, que grande coisa!'
SANTA CATARINA DE GÉNOVA

o Purgatório ultrapassa em poesia


o céu e o inferno, porquanto representa
um futuro que falta aos dois primeiros.
CHATEAUBRIAND

FICHA TÉCNICA:

Título do original: La Naissance du Purgatoire


Tradução: Maria Fernanda Gonçalves de Azevedo
Capa: José Antunes
Ilustração: A Ascensão para o Paraíso Celestial (pormenor),
de Hieronymus Bosch, Veneza, Palazzo DucaJe.
l~ edição: Editorial Estampa, 1993
Composição: Interouro, Lda,
Impressão e acabamento: Rolo & Filhos - Artes Gráficas, Lda.
Depósito legal n? 64058/93
ISBN 972-33-0884-3
Copyright: © Editions Gallimard, 1981
© Editorial Estampa, Lda., Lisboa,
para a língua portuguesa
ÍNDICE

o terceiro lugar............................................................................ 15
O Purgatório e o que ele põe em jogo..................................... 15
Antes do Purgatório 16
O espaço - é bom pensar nele................................................. 18
Lógica e génese do Purgatório 18
Pensar o intermédio................................................................ 20
As imagens penais: o fogo 21
Solidariedades: os vivos e os mortos 25
O processo do Purgatório............ 26
Teologia e cultura popular...................................... 27
Notas 29

PARTE I
O ALÉM ANTES DO PURGATÓRIO

I - Os imaginários antigos 35
As três vias hindus.................................................................. 36
No Irão: o fogo e a ponte.. 37
No Egipto: o imaginário infernal........ 37
A descida aos infernos na Grécia e em Roma......... 38
Uma filosofia da reencarnação: Platão.................................... 39
Um precursor: Eneias nos Infernos 41
Gilgamesh nos infernos........................................................... 43
Um além neutro e tenebroso: o shéo/ judaico.. 43
As visões apocalípticas judaico-cristãs..................................... 48
Uma fonte: o Apocalipse de Paulo................... 54
Os judeus descobrem um além intermédio............................... 57

9
o Purgatório cristão estará contido em embrião na Sagrada PARTE 11
Escritura? . 60 O SÉCULO XII: O NASCIMENTO DO PURGATÓRIO
A descida do Cristo aos Infernos . 63
Orações pelos mortos . 64 O século da grande explosão . 159
Um lugar de consolo: o «refrigerium» . 65 Notas . 162
A primeira imaginação de um Purgatório: a visão de Perpétua 67 163
IV - O fogo purgatório .
Notas . 70 163
No início do século XII: aquisições e indecisões .
Um testemunho das hesitações: Honorius Augustodunensis . 166
O fogo: no meio monástico . 168
11 - Os pais do Purgatório . 75 170
Entre os teólogos urbanos .
Em -:'.l~xa~dria: d?is gregos «fundadores» do Purgatório . 75
Na literatura vernácula . 171
O cnsnamsmo latino: desenvolvimentos e indecisões do além. 80
Quatro grandes teólogos e o fogo: esboço de um tratado dos
O verdadeiro pai do Purgatório: Agostinho . 84 172
tempos derradeiros .
A morte de Mónica: orai por ela . 86 172
Um cónego parisiense: Hugo de Saint-Victor .
Depois de 413: duras penas purgatórias entre a morte e o Jul- 175
Um cisterciense: S. Bernardo .
gamento para aqueles que não são inteiramente bons . 90 176
Um monge canonista: Graciano de Bolonha .
Agostinho e os espectros . 100 178
Um mestre secular parisiense: o bispo Pedro Lombardo .
O fogo purgatório e a escatologia de Agostinho . 103 180
Testemunhos menores ····· ·..·· ··
Um falso pai do Purgatório: Cesário de Arles . 106 183
Elaborações parisienses .
Hist?~as do .Purgatório neste mundo: Gregório, o Grande, Notas . 184
último paI do Purgatório . 109
Notas . ..................................................... 117 V - «Locus Purgatorius»: um lugar para a purgapão . 187
Entre 1170 e 1180: autores e datas . 187
Um falsário do Purgatório . 192
111 - A.1It~ ~dade Média. Estagnacão doutrinária e empolamento Os primeiros a passarem pelo Purgatório: S. Bernardo . 196
VlSlonarlO . 121 Os primeiros teólogos do Purgatório: Pedro, o Chantre, e
O além agostiniano de três espanhóis . 122 Simão de Tournai . 197
Outros 'além' «bárbaros»
Na Irlanda . . 124 A Primavera parisiense e o Verão cisterciense . 200
......................................................................... 124 O Purgatório e a luta contra a heresia . 201
Na Gália . 126 O atraso dos canonistas . 205
Na Germânia . 127 Cerca de 1200: o Purgatório instala-se . 206
Na Grã-Bretanha . 127 Uma carta e um sermão de Inocêncio Ill . 207
Indiferença e tradicionalismo carolíngios e pós-carolíngios .. 128 Purgatório e confissão: Thomas de Chobham . 208
O além e a heresia . 131 O antigo e o novo vocabulário do além . 209
A série visionária: as viagens pelo além . 132 Notas . 210
Heranças . 132
O «fundador» das visões medievais do além: Bêde . 137 VI - O Purgatório entre a Sicília e a Irlanda . 215
A visão de Drythelm: um lugar reservado à purgação . 138 Visões monásticas: as aparições . 215
Um sonho barroco e delirante com o além: a visão de Wetti .. 141 Quatro viagens monásticas ao outro mundo . 219
Politização do além: a visão de Carlos, o Gordo . 143 1. Uma mulher no além: a mãe de Guibert de Nogent . 219
A liturgia: perto e longe do Purgatório . 146 2. No Monte Cassino: Alberico de Settefrati . 222
A celebração dos mortos: Cluny . 149 3. Na Irlanda: o além sem purgatório de Tnugdal . 226
Notas ..................................................................................... 152 4. Uma descoberta na Irlanda: o «Purgatório de S. Patrick» 229

10 11
A tentativa siciliana . 237 IX - O triunfo social: a pastoral e o Purgatório . 343
A «infernização» do Purgatório e os seus limites . 241 O tempo contado . 344
Notas . 245 Novas viagens pelo além . 349
O Purgatório celebrado: os «exempla» . 351
VII - A lógica do Purgatório . 251 Um precursor: Jacques de Vitry . 352
O além e os progressos da justiça . 252 Dois grandes divulgadores do Purgatório . 354
Novas concepções do pecado e da penitência . 255 1. O cisterciense Cesário de Heisterbach . 354
Uma matéria para o Purgatório: os pecados veniais . 260 O usurário de Liêge: Purgatório e capitalismo . 358
De duas (ou quatro) para três: três categorias de pecadores . 263 O Purgatório é a esperança . 360
Esquema lógico e realidades sociais: um intermédio descen- 2. O dominicano Étienne de Bourbon e a «infernizapâo» do
trado . 267 Purgatório . 364
Mutações nos quadros mentais: o número . 269 Dominicanos no Purgatório . 370
O espaço e o tempo . 271 O Purgatório e as beguinas . 372
A rendição ao mundo e ao momento da morte individual.. . 272 O Purgatório e a política . 374
Notas . 277 O Purgatório na «lenda dourada» . 375
Uma santa do Purgatório: Lutgarda . 378
Os vivos e os mortos: testamentos e obituários . 380
O Purgatório em língua vulgar: o caso francês , . 382
As indulgências para o Purgatório: o Jubileu de 1300 . 384
PARTE III
A persistente hostilidade ao Purgatório . 385
O TRIUNFO DO PURGATÓRIO
Notas . 389
X - O triunfo poético: a «Divina Comédia» . 395
VIII - O ordenamento escolástico . 283 O sistema dantesco do Purgatório . 395
Um triunfo atenuado ; . 283 A montanha da purgação . 400
O Purgatório, continuação da penitência terrena: Guillaume
A lei do progresso . 401
d'Auvergne . 287 O Purgatório e os pecados . 403
O Purgatório e os mestres mendicantes . 292
O antepurgatório . 405
Entre os franciscanos . 292 O fogo . 408
1. Do comentário de Pedro Lombardo a uma ciência do além:
Purgatório e Inferno: o arrependimento . 410
Alexandre de Hales. . 292 A esperança . 413
2B. oaventura e os fi'tns u'I'ttmos ao
do b omem . 296 A ajuda dos vivos . 416
Entre os dominicanos . 302 O tempo do Purgatório . 418
1. A depurapão escolástica do Purgatório: Alberto, o Grande. 302 A caminho da luz . 420
2. Um manual de vulgarização teológica . 310 Notas . 423
3. O Purgatório no centro da intelectualidade: Tomás de
Aquino e o regresso do homem a Deus . 312 A razão do Purgatório . 425
A recusa do Purgatório . 324 Notas . 430
1. Os hereges . 324 Apêndice I: Bibliografia do Purgatório . 431
2. Os Gregos . 326 Apêndice lI: «Purgatorium»: história de uma palavra . 433
A primeira definição pontifical do Purgatório (1254) . 329 Apêndice III: As primeiras imagens . 439
O segundo concílio de Lyon e o Purgatório (1274) . 330 Apêndice IV: Trabalhos recentes . 441
O Purgatório e as mentalidades: Oriente e Ocidente . 332
Notas . 335 Agradecimentos . 447

12 13
o TERCEIRO LUGAR

Nas acesas discussões entre protestantes e católicos do século XVI, os


primeiros reprovam vivamente aos seus adversários a crença no Purgató-
rio, a que Lutero chamava «o terceiro lugar»l. Esse além «inventado» não
estava nas Escrituras.
Proponho-me seguir a formação desse terceiro lugar desde a antiga fé
judaico-cristã, dar a conhecer o seu aparecimento no momento da explo-
são do Ocidente medieval na segunda metade do século XII e o seu rápido
sucesso no decurso do século seguinte. Tentarei por fim explicar por que
razão ele está intimamente ligado a esse grande momento da história da
cristandade e como contribuiu de maneira decisiva para ser aceite - ou,
entre os hereges, recusado - no seio da nova sociedade saída do desen-
volvimento prodigioso dos dois séculos e meio que se seguiram ao ano
mil.

o Purgatório e o que ele põe em jogo

É raro poder seguir-se o desenvolvimento histórico de uma crença


mesmo se - e é o caso do Purgatório - ela inclui elementos emanados
dessa noite dos tempos onde a maioria das crenças parece ter a sua fon-
te. E no entanto, não se trata de um apêndice secundário, de um acres-
cento menor ao edificio primitivo da religião cristã, tal como evoluiu até à
Idade Média e depois sob a sua forma católica. O além é um dos grandes
horizontes das religiões e das sociedades. A vida do crente transforma-se
quando ele pensa que nem tudo fica perdido com a morte.
Esta emergência, esta construção secular da crença no Purgatório su-
põe e provoca uma modificação substancial das perspectivas do espaço-
-tempo do imaginário cristão. Ora essas estruturas mentais do espaço e do
tempo são o esqueleto da maneira de pensar e de viver de uma sociedade.
Quando essa sociedade está totalmente impregnada de religião, como a

15
cristandade da longa Idade Média que se prolongou da Antiguidade tar- direcção ao Céu. O próprio Jesus dera o exemplo: depois de ter descido
dia até à revolução industrial, mudar a geografia do além, do universo aos Infernos subira ao Céu. No sistema de orientação do espaço simbó-
portanto, modificar o tempo do após vida, portanto a ligação entre o lico, lá onde a Antiguidade greco-romana dera um lugar proeminente à
tempo terrestre, histórico e o tempo escatológico, o tempo de existência oposição direita-esquerda, o cristianismo, mesmo conservando um valor
e o tempo de espera, significa operar uma revolução mental lenta mas importante a esse par antinómico presente, aliás, no Antigo e no Novo
essencial. À letra, é mudar a vida. Testamento/, privilegiara desde muito cedo o sistema alto-baixo. Na Ida-
É evidente que o aparecimento de uma tal crença está ligado a altera- de Média, este sistema irá orientar, através da «espacialização: do pen-
ções profundas da sociedade em que se produz. Que relações mantém este samento, a dialéctica essencial dos valores cristãos.
novo imaginário do além com as mudanças sociais, quais as suas funções Subir, elevar-se, ir mais alto, eis o aguilhão da vida espiritual e moral,
ideológicas? O controlo estrito que a Igreja exerce sobre ele, chegando enquanto a norma social é ficar no seu lugar, lá onde Deus nos pôs na
mesmo a uma partilha do poder sobre o além entre ela e Deus, prova terra, sem ambicionar escapar à nossa condição, tendo o cuidado de não
que o que estava em jogo era importante. Porque não deixar os mortos nos diminuirmos, de não descermos:'.
vaguear ou dormir? Quando, entre o segundo e o quarto séculos, o cristianismo, menos
fascinado pelos horizontes escatológicos, se pôs a reflectir na situação
das almas entre a morte individual e o Julgamento Final e quando os
Antes do Purgatório cristãos pensaram - é, com os cambiantes que se verão, a opinião dos
grandes Padres da Igreja do século IV, Ambrósio, Jerónimo e Agostinho
Foi como «terceiro lugar» que o Purgatório se impôs. - que as almas de certos pecadores poderiam talvez ser salvas durante esse
Das religiões e das civilizações anteriores, o cristianismo herdara uma período, sofrendo provavelmente uma provação, a crença que assim sur-
geografia do além; entre as concepções de um mundo dos mortos unifor- gia e faria aparecer o Purgatório no século XII não conseguiu localizar
me - tal o shéo/ judaico - e as noções de um outro universo depois da com precisão essa situação e essa provação. Na Idade Média este sistema
morte, um assustador e o outro venturoso, como o Hades e os Campos irá orientar, através da «espacialização» do pensamento, a dialéctica es-
Elísios dos Romanos, ele escolhera o modelo dualísta. Reforçara-o mes- sencial dos valores cristãos.
mo singularmente. Em vez de relegar para debaixo da terra os dois espa- Até ao fim do século XII, a palavra purgatorium não existe como subs-
ços dos mortos, o mau e o bom, durante o período que se estenderia desde tantivo. O Purgatório não existe".
a Criação ao JuÍZo Final, ele situara no Céu, desde a entrada na morte, o É extraordinário que o aparecimento da palavra purgatorium que ex-
descanso dos justos - pelo menos dos melhores, entre eles, os mártires, e a prime a tomada de consciência do Purgatório como lugar, o acto do
seguir os santos. Localizara mesmo na superficie da terra o Paraíso ter- nascimento do purgatório, para falar com propriedade, tenha sido negli-
restre, dando assim, até à consumação dos séculos, um espaço a essa terra genciado pelos historiadores, e primeiro pelos historiadores da teologia e
da Idade de Ouro à qual os Antigos apenas tinham concedido um tempo, da espiritualidade". Sem dúvida, os historiadores não dão ainda a impor-
horizonte nostálgico da sua memória. Lá o vemos nos mapas medievais, tância suficiente às palavras. Fossem realistas ou nominalistas, os clérigos
no Extremo Oriente, para lá da grande muralha e dos povos inquietantes da Idade Média sabiam bem que entre as palavras e as coisas existe uma
de Gog e Magog, com o seu rio de quatro braços criado por Yahvé «para união tão estreita como entre o corpo e a alma. Para os historiadores das
regar o jardim» (Génesis lI, 10). E sobretudo a oposição Inferno-Paraíso ideias e das mentalidades, as palavras - certas palavras -, fenómenos a
foi levada ao cúmulo, baseada no antagonismo Terra-Céu. Embora sub- longo prazo vindos lentamente das profundezas, têm a vantagem de apa-
terrâneo, o Inferno era a Terra e o mundo infernal opunha-se ao mundo recer, de nascer e de trazer assim elementos cronológicos sem os quais não
celestial como o mundo ctónico se opusera, entre os Gregos, ao mundo há verdadeira história. É verdade que não se data uma crença como um
astral. Apesar das belas aspirações ao Céu, os Antigos - Babilónios e acontecimento, mas devemos afastar a ideia de que a história a longo
Egípcios, Judeus e Gregos, Romanos e Bárbaros pagãos - haviam temi- prazo é uma história sem datas. Um fenómeno lento como a crença no
do as profundezas da terra mais do que ansiado pelos infinitos celestes, Purgatório' estagna, palpita durante séculos, repousa nos ângulos mortos
aliás muitas vezes habitados por deuses coléricos. O cristianismo, pelo da corrente da história e depois, repentinamente ou quase, é arrastado na
menos durante os primeiros séculos e a barbarização medieval, não che- massa da onda não .para nela se perder mas, ao contrário, para emergir e
gou a limitar ao Inferno a sua visão do além. Elevou a sociedade em para dar testemunho. Quem fala do purgatório - nem que seja erudi.a-

16 17
mente - desde o Império Romano até à cristandade do século XIII, de pe~ossu~rágios - a ajuda espiritual - dos vivos. Para se ter chegado aqui
Santo Agostinho a S. Tomás de Aquino, e assim situa o aparecimento f01 preciso um longo passado de ideias e de imagens, de crenças e de
do substantivo entre 1150 e 1200, deixa escapar aspectos capitais dessa actos, de debates teológicos e, provavelmente, de movimentos no interior
história, se não o essencial. Deixa escapar, ao mesmo tempo que a possi- da sociedade, que dificilmente apreendemos.
bilidade de esclarecer uma época decisiva e uma profunda mutação da A primeira parte deste livro será consagrada à formação secular dos
sociedade, a oportunidade para descobrir, a propósito da crença no Pur-. elementos que no século XII se estruturarão para se transformarem no
gatório, um fenómeno de grande importância na história das ideias e das Purgatório. Podemos considerá-Ia uma reflexão sobre a originalidade
mentalidades: o processo de espacializacâo do pensamento. do pensamento religioso da cristandade latina, a partir das heranças,
das rupturas, dos conflitos externos e internos em cujo seio ele se formou.
A crença no Purgatório implica antes de mais a crença na imortalida-
o espaço - é bom pensar nele de e na ressurreição, em que algo de novo para u~ ser humano pode
acontecer entre a sua morte e a sua ressurreição. E um suplemento de
Numerosos estudos acabam de mostrar no campo científico a impor- condições oferecidas a certos homens para que alcancem a vida eterna.
tância da noção de espaço. Ela rejuvenesce a tradição da história geográ- Uma imortalidade que se atinge através de uma única vida. As religiões -
fica, renova a geografia e o urbanismo. É sobretudo no plano simbólico como o hinduísmo ou o «catarismo» - que acreditam em reencarnações
que ela manifesta a sua eficácia, A seguir aos zoólogos, os antropólogos sucessivas, na metempsicose, excluem portanto o Purgatório.
sublinharam o carácter fundamental do fenómeno de terrttôrio". Em La A existência de um Purgatório baseia-se também na concepção de um
Dimension cachée', Edward T. HaU demonstrou que o território é um julgamento dos mortos, ideia esta bastante difundida nos vários sistemas
prolongamento do organismo animal e humano, que essa percepção do religiosos, mas «as modalidades deste julgamento variavam muito de uma
espaço depende muito da cultura (talvez ele seja demasiado culturalista civilização para outras". A variedade de julgamento que compreende a
sobre este ponto) e que o território é uma interiorização do espaço orga- existência de um Purgatório é muito original. Apoia-se, com efeito, na
nizada pelo pensamento. Existe nele uma dimensão fundamental dos in- crença de um julgamento duplo, o primeiro no momento da morte e o
divíduos e das sociedades. A organização dos diferentes espaços: segundo no fim dos tempos. Institui nesse intervalo do destino catológi-
geográfico, económico, político, ideológico, etc., onde se movem as socie- co de cada ser humano um processo judicial complexo de mitigacão das
dades, é um aspecto muito importante da sua história. Organizar o espa- penas, de encurtamento dessas penas em função de factores diversos.
ço do seu além foi uma operação de grande alcance para a sociedade Supõe, pois, a projecção de um pensamento de justiça e de um sistema
cristã. Quando se aguarda a ressurreição dos mortos, a geografia do ou- penal muito sofisticados.
tro mundo não é uma questão secundária. E pode esperar-se que exista Está também ligada à ideia de responsabilidade individual, de livre
uma relação entre a maneira como essa sociedade organiza o seu espaço arbítrio do homem, culpado por natureza por causa do pecado origi-
aqui em baixo e o seu espaço no além, pois os dois espaços estão ligados nal, mas julgado segundo os pecados cometidos sob a sua responsabili-
através das relações que unem a sociedade dos mortos e a sociedade dos dade. Há uma estreita ligação entre o Purgatório, além intermédio, e um
vivos. Entre 1150 e 1300, a cristandade entrega-se a uma grande remode- tipo' de pecado intermédio entre a pureza dos santos e dos justos e a
lação cartográfica, sobre a terra e no além: Para uma sociedade cristã imperdoável culpabilidade dos pecadores criminosos. A ideia durante
como a do Ocidente medieval, as coisas vivem e movem-se ao mesmo muito tempo vaga de pecados «ligeiros», «quotidianos», «habituais»,
tempo - ou quase - sobre a terra como no céu, aqui em baixo como no bem captada por Agostinho e depois por Gregório, o Grande, só a longo
além. prazo conduzirá à categoria de pecado «venial» - quer dizer, perdoável-,
que precedeu de perto o crescimento do Purgatório e foi uma das condi-
ções do seu aparecimento. Mesmo se as coisas foram um pouco mais
Lógica e génese do Purgatório complicadas, como veremos, no essencial o Purgatório surgiu como o
lugar de purgação dos pecados veniais.
Quando o Purgatório se instala na crença da cristandade ocidental, Crer no Purgatório - lugar de punição - supõe esclarecidas as relações
entre 1150 e 1250, mais ou menos, de que se trata? É um além intermédio entre a alma e o corpo. Com efeito, desde muito cedo a doutrina da Igreja
onde certos mortos passam por uma provação que pode ser abreviada disse que, no momento da morte, a alma imortal deixa o corpo e os dois

18 19
só voltam a encontrar-se no fim dos tempos, quando da ressurreição dos rio, efémero não tem a eternidade do Inferno ou do Paraíso. E, no entan-
corpos. Mas a questão da corporalidade ou da incorporalidade da alma to, difere do tempo e do espaço de «cá de baixo», obedecendo a outras
não me parece ter constituído problema a propósito do Purgatório ou dos regras que fazem dele um dos elementos desse imaginário a que na Idade
seus começos. As almas separadas foram dotadas de uma materialidade Média se chamava «maravilhoso».
sui generis e as penas do Purgatório puderam assim atormentá-Ias como O essencial está talvez na ordem da lógica. Para que o Purgatório
que corporalmente", nasça é necessário que a noção de ponto intermédio ganhe consistência,
que os homens da Idade Média passem a gostar de pensar nele. O Pur-
gatório faz parte de um sistema, o dos lugares do além, e não tem exis-
Pensar o intermédio tência nem significado senão em relação a esses outros lugares. Peço ao
leitor que não o esqueça; mas como o Purgatório, entre os três lugares
Lugar intermédio, o Purgatório é-o em muitos aspectos. No tempo, no principais do além, foi o que levou mais tempo a definir-se, e como o seu
intervalo entre a morte individual e o Julgamento Final. O Purgatório papel foi o que pôs mais problemas, pareceu-me possível e desejável tra-
não se fixará neste espaço temporal especial sem longas hesitações. Ape- tar o Purgatório sem entrar no pormenor das coisas do Inferno e do
sar do papel decisivo que foi o seu neste contexto, Santo Agostinho não Paraíso.
amarrará definitivamente o futuro Purgatório a esta fresta do tempo. O Estrutura lógica, matemática, o conceito de ponto intermédio está
Purgatório oscilará entre o tempo terrestre e o tempo escatológico, entre ligado a mutações profundas das realidades sociais e mentais da Idade
um começo de Purgatório aqui em baixo, que seria então preciso definir Média. Não deixar mais sozinhos cara a cara os poderosos e os pobres,
em relação à penitência, e uma espera pela purificação definitiva, a qual os religiosos e os laicos, mas antes procurar uma categoria mediana, clas-
se situaria apenas no momento do Julgamento final. Encurtaria então o ses médias ou ordem terceira, é tudo a mesma tentativa e reporta-se a
tempo escatológico e o Dia do Julgamento passaria a ser não um momen- uma sociedade transformada. Passar de esquemas binários para esque-
to mas um espaço de tempo. mas ternários é dar aquele passo na organização do pensamento da so-
O Purgatório é também um intervalo propriamente espacial que se ciedade, cuja importância Claude Lévi-Strauss sublinhou'".
insinua e se amplia entre o Paraíso e o Inferno. Mas a atracção dos dois
pólos actuou longamente também sobre ele. Para existir, o Purgatório
deverá substituir os pré-paraísos do refrigerium, lugar de refrigério ima- As imagens penais: o fogo
ginado nos primeiros tempos do cristianismo, e do seio de Abraão, repre-
sentado pela história de Lázaro e do mau rico no Novo Testamento Ao contrário do shéo/ judaico - inquietante, triste, mas desprovido de
(Lucas, XVI, 19-26). Deverá sobretudo destacar-se do Inferno do qual castigos - o Purgatório é um lugar onde os mortos sofrem uma (ou algu-
será por muito tempo um departamento pouco diferenciado, o martírio mas) provação(ões). Estas provações, como se verá, podem ser múltiplas
máximo. Neste conflito entre Paraíso e Inferno, adivinha-se que a aposta e assemelhar-se às sofridas pelos condenados, no Inferno. Mas duas delas
do Purgatório não foi pequena para os cristãos. Antes de Dante dar à aparecem mais frequentemente, o ardente e o gelado; e uma delas, a do
geografia dos três reinos do além a sua mais alta expressão, a preparação fogo, desempenhou um papel de primeiro plano na história do Purgató-
do Novo Mundo do além foi longa e dificil. Finalmente, o Purgatório não rio.
será um verdadeiro, um perfeito ponto intermédio. Reservado para a Antropólogos, folcloristas, historiadores das religiões conhecem bem
purificação completa dos futuros eleitos, inclinar-se-á para o Paraíso. o fogo como símbolo sagrado. No Purgatório medieval e nos esboços que
Ponto intermédio deslocado, não se situará no centro mas num interva- o precederam, o fogo surge sob quase todas as formas apontadas pelos
lo, exilado para o alto. Entra assim nesses sistemas de equilíbrio descen- especialistas da antropologia religiosa: círculos de fogo, lagos e mares de
trado tão característicos da mentalidade feudal: desigualdade na fogo, anéis de chamas, muralhas e fossos de fogo, fauces de monstros
igualdade, que se encontra nos modelos contemporâneos da vassalagem lançando chamas, carvões ígneos, almas com forma de labaredas, rios,
e do casamento em que, num universo de iguais, o vassalo está mesmo vales, e montanhas de fogo.
assim submetido ao senhor, a mulher ao marido. Falsa equidistância do O que é, então, este fogo sagrado? «Nos rituais de iniciação», diz G.
Purgatório entre um Inferno a que se escapou e um Céu a que já se está Van der Leeuw, «é o fogo que apaga o periodo da existência já vivida e
amarrado. Falso ponto intermédio, enfim, porque o Purgatório, transitó- que torna possível uma outra» 11. Ritual de mudança, pois, bem colocado

20 21
neste lugar transitório. O Purgatório faz parte daqueles rituais de mar- natural atraiu especialmente a atenção: os vulcões. Tinham estes a vanta-
gem, como lhes chamava Van Gennep, cuja importância escapou por gem de r~unir, como montanhas providas de crateras, quer dizer de poços
vezes aos antropólogos demasiado ocupados com as fases de separação que cuspiam fogo, três elementos essenciais da estrutura fisica e simbólica
e de agregação que abrem e fecham os rituais de transição. do Purgatório. Veremos como os homens que procuravam uma cartogra-
Mas o significado desse fogo é ainda mais rico. Carl-Martin Edsman fia do Purgatório andaram à volta da Sicília, entre o Stromboli e o Etna.
bem mostrou, com contos, lendas e espectáculos populares das épocas Mas não houve na Sicília maneira de aproveitar esta oportunidade como
medievais e modernas, a presença de fogos regeneradores idênticos aos fizeram os Irlandeses, os seus vizinhos ingleses e' os Cistercienses com o
que na Antiguidade se encontram entre os Romanos, os Gregos, e ainda Purgatório de S. Patrick e a peregrinação bem organizada e controlada
entre os Iranianos e os Indianos onde esta concepção de um fogo divino - que rapidamente passou a realizar-se. A Sicília de Frederico 11,entre um
Ignis divinus - parece ter tido origem'f, Assim, o Purgatório manifestar- soberano suspeito de heresia e monges gregos e muçulmanos, não pareceu
-se-ia nesse ressurgimento da base indo-europeia da qual a cristandade dos s~fi~ientemente «católica» para conter o Purgatório; ou um dos seus prin-
séculos XI a XIII parece ter sido o palco. O aparecimento (ou o reapare- cipais acessos, o Etna, não conseguiu desembaraçar-se da sua imagem
cimento?) do esquema trifuncional recentemente assinalado por Georges propriamente infernal.
Duby e por outros investigadores é contemporâneo do nosso fenómeno. A segunda característica é que o fogo expurgatório medieval, mesmo
Fogo do forno, fogo da forja, fogo da pira. Deve colocar-se ao lado tendo ocupado um lugar proeminente e, por fim, exclusivo, fazia, no
destes o fogo do Purgatório do qual, aliás, a cultura popular também entanto, parte de um par: o fogo e a água. Nos textos medievais que se
se assenhoreou. situam na pré-história da Idade Média, este par aparece a maioria das
Este fogo é um fogo que rejuvenesce e imortaliza. A lenda da Fénix é a ve.zessob a forma da justaposição de um lugar ígneo e de um lugar hú-
sua mais célebre encarnação que o cristianismo medieval retomou desde rmdo, de um lugar quente e de um lugar frio, de um elemento ardente e de
Tertuliano. A Fénix torna-se o símbolo da humanidade chamada para a um elemento gelado. E a provação principal sofrida pelos mortos do
ressurreição. Um texto erradamente atribuído a Santo Ambrósio aplica, Purgatório não é a simples passagem pelo fogo, é a passagem alternada
aliás, a essa lenda a frase de S. Paulo «o fogo porá à prova a obra de cada pelo fogo e pela água, uma espécie de «duche escocês» probatório.
um» (Coríntios, IH, 13) que é a base principal das Escrituras onde se Carl-Martin Edsman recordou judiciosamente os textos da Antiguida-
apoiou todo o cristianismo medieval para construir o Purgatório. de romana clássica onde se vêem ascetas do Cáucaso que vivem nus tanto
A luz desta herança ficam esclarecidas, parece-me, três características nas chamas como no gelo. Cícero fala dos «sábios que vivem nus e su-
importantes do fogo expurgador que teve um papel primordial na cons- portam sem dor as neves do Cáucaso e o rigor do Inverno e depois se
trução do Purgatório na Idade Média. lançam no fogo e se deixam queimar sem queixumes»l3. Valere Maxime
A primeira é que o fogo que rejuvenesce e torna imortal é um fogo evoca também «aqueles que passam toda a vida nus, ora exercitando os
«através do qual se passa». São Paulo interpretou bem este ritual quando, corpos no !feIo rigoroso do Cáucaso, ora expondo-os às chamas sem
na mesma passagem famosa da primeira epístola aos Corintios (IH, 15), queixumes» 4.
disse: «Ele será salvo mas através do fogo» (quasi per ignem). O Purga- O par fogo-água (fria) encontra-se num ritual evocado nos primeiros
tório é bem um lugar (ou um estado) transitório e as viagens imaginárias tempos do cristianismo, e que deve ter desempenhado um certo papel na
dentro dele serão, repito-o, percursos simbólicos. Esta passagem pelo pré-história do Purgatório: o baptismo pelo fogo. Para os cristãos este
fogo será tanto mais valorizada pelos homens da Idade Média quanto ritual surge nos evangelhos de Mateus e de Lucas, a propósito de João-
o modelo do Purgatório se desenvolverá como um modelo judicial. A -Baptista. Mateus atribui ao precursor estas palavras: «Por mim, baptizo-
prova do fogo é um ordálio. É-o para as almas do Purgatório e para os -V?S ~om ~gua para que vos arrependais; mas aquele que vem a seguir a
vivos a quem foi permitido percorrer o Purgatório, não como simples m,l~ e mais forte do que eu, que nem sou digno de lhe descalçar as san-
turistas mas com todos os riscos e perigos. Vê-se bem como este ritual dahas; ele baptizar-vos-á no Espírito Santo e com o fogo» (Ma teus, 111,
pôde seduzir homens que às tradições vindas de uma antiguidade longín- 11). Lucas (111, 16) põe o mesmo discurso na boca de João-Baptista.
qua, passando pela Grécia e por Roma, herdeiras do fogo indo-europeu, Esta concepção do baptismo pelo fogo, oriunda das velhas mitologias
juntaram a herança das crenças e das práticas bárbaras. indo-europeias do fogo, concretizou-se na literatura apocalíptica judaico-
Compreende-se também porque, nas tentativas de localização do Pur- -cristã. Os primeiros teólogos cristãos, os gregos sobretudo, foram-lhe
gatório na terra, ou pelo menos dos seus acessos, um elemento geográfico sensíveis. Orígenes, comentando Lucas, 111,16, declara: «Deve-se bapti-

22 23
zar primeiro com água e pelo espírito para que, quando o baptizado dos textos das Escrituras, tinham a garantia necessária e suficiente da
chegar ao rio de fogo, mostre que conservou os recipientes de água e tradição sagrada. Pareceu-me, no entanto, necessário lançar alguma luz
de espírito e que merece receber então também o baptismo de fogo em sobre esta longa herança. Ela esclarece certos aspectos desconcertantes da
Jesus Cristo» (in Lucam, homilia XXIV). Edsman reconhece na pérola história medieval do Purgatório e permite que se compreenda melhor as
evocada por Mateus (XIII, 45-46: «O Reino dos Céus é semelhante a hesitações, os debates, as opções que se manifestaram nessa história, pois
um negociante em busca de pérolas finas; tendo encontrado uma de alto uma herança propõe tanto quanto impõe. Sobretudo ela explica, parece-
preço, foi vender tudo o que possuía e comprou-a») o símbolo do Cristo -me, uma das razões do êxito do Purgatório - o facto de ter retomado
que reuniu a água e o fogo. No cristianismo «ortodoxo» o baptismo pelo certas realidades simbólicas e muito antigas. Aquilo que se apoia numa
fogo foi metafórico. Mas o mesmo não aconteceu em certas seitas (bap- tradição tem mais probabilidades de êxito. O Purgatório é uma ideia nova
tistas, messianistas, certos ascetas egípcios) e até entre os cátaros, a quem do cristianismo que tirou das religiões anteriores uma parte dos seus aces-
um contraditor «ortodoxo» Ecbert reprovará ironicamente, no século sórios principais. No sistema cristão, o fogo divino muda de sentido, e o
XII, não baptizarem verdadeiramente «no fogo» mas «ao lado» do fogo. historiador tem, antes de mais, de ser sensível a essas transformações.
Nas mitologias e religiões antigas, o fogo tem uma natureza múltipla e Mas a permanência de um certo material de longa duração sob a maior
variada. É o que vemos no simbolismo judaico-cristão do fogo, e em ou menor rapidez das mudanças deve também prender a sua atenção.
definitivo nas diferentes funções e significados do fogo do Purgatório. As revoluções raramente são criações, são antes mudanças de sentido.
Nestes diversos aspectos do fogo, «ao mesmo tempo deificado r e vivifi- O cristianismo foi uma revolução ou o motor essencial de uma revolu-
cador, que castiga e destrói», Edsman vê «as diferentes faces do próprio ção. Recolheu o fogo divino que rejuvenesce e imortaliza mas fez dele não
ser da divindade» e reconduz, pois, à unidade na pessoa divina a multi- uma crença ligada a um ritual, mas um atributo de Deus, cujo uso é
plicidade dos rostos do fogo. Este modelo pode servir para explicar a determinado por uma dupla responsabilidade humana: a dos mortos
variedade das interpretações cristãs do fogo expurgatório, desde a Anti- que devem, segundo o seu comportamento na terra, ser-lhe ou não sub-
guidade até ao século XIII. Pode ter-se a impressão de que não se fala do metidos; a dos vivos, cujo maior ou menor zelo pode alterar-lhe a dura-
mesmo fogo mas esta diversidade explica-se pela polissem ia do antigo ção de actividade. O fogo do Purgatório, continuando a ser um símbolo
fogo divino. Ora aparece sobretudo como purificador, ora antes de tudo portador de sentido, o da salvação pela purificação, tomou-se um instru-
como punitivo, ora ainda como probatório; parece por vezes actual e por mento ao serviço de um sistema de justiça complexo, ligado a uma socie-
vezes futuro, a maioria das vezes real mas algumas vezes espiritual, inte- dade completamente diferente daquelas que acreditavam no fogo
ressa a certos homens ou a toda a gente. Mas trata-se de facto sempre do rcgenerador.
mesmo fogo, e o fogo do Purgatório, na sua complexidade, é o herdeiro
dos rostos múltiplos do fogo divino, do fogo sagrado das origens indo-
-europeias. Solidariedades: os vivos e os mortos
Agostinho parece ter captado a continuidade que, apesar das mudan-
ças de sentido fundamentais, liga ce.tas concepções antigas do fogo a O Purgatório é pois um além intermédio ou a provação que se sofre,
concepções cristãs: «Os estóicos, diz de em a Cidade de Deus (VIII, 5), talvez encurtada pelos sufrágios, as intervenções dos vivos. Foi, parece,
acreditavam que o fogo, quer dizer, um corpo, um dos quatro elementos pela crença dos primeiros cristãos na eficácia das suas preces pelos mor-
que compõem este mundo sensível, está vivo, é sábio e criador do próprio tos - como testemunham as inscrições funerárias, as fórmulas litúrgicas, e
mundo e de tudo o que ele contém; que, em resumo, esse fogo é Deus.» depois, no começo do século m, a Paixão de Perpétua, primeira das re-
De facto, no cristianismo, o fogo mais não é do que uma criatura, como presentações espacializadas do futuro Purgatório - que começou um mo-
dirá magnificamente Francisco de Assis. Mas, segundo a fórmula exacta vimento piedoso que deveria conduzir à criação do Purgatório. É
de Edsman, «Toda a complexidade do fogo do além nas suas formas significativo o facto de Agostinho, nas Confissões, esboçar pela primeira
gerais ou essenciais - por exemplo, o rio de fogo - explica-se como sendo vez uma reflexão que o levará ao caminho do Purgatório, quando expe-
representativas das diversas funções de um mesmo fogo divino.» Isto rimentou determinados sentimentos após a morte de sua mãe Mónica.
serve também para o fogo do Purgatório. Mas deste passado pleno de Esta confiança dos cristãos na eficácia dos sufrágios só tardiamente se
sentido do fogo expurgatório, os homens da Idade Média não tinham uniu à crença na existência de uma purificação depois da morte. Joseph
consciência; e nem as massas nem sequer os religiosos, com excepção Ntedika mostrou claramente que, em Agostinho por exemplo, as duas

24 25
crenças se formaram em separado, sem praticamente se encontrarem. Os manidade luta pela sua sobrevivência fisica e espiritual. Entre o Paraíso e
sufrágios pelos mortos supõem a formação de longas solidariedades de o Inferno, na convicção em que se está da iminência do fim do mundo, o
um lado e de outro da morte, relações estreitas entre vivos e defuntos, Purgatório seria quase um luxo que mora nas profundezas. A génese do
a existência, entre uns e outros, de instituições de ligação que pagam os feudalismo deixa em suspenso, num quase imobilismo da teologia e da
sufrágios - como os testamentos - ou fazem deles prática obrigatória - prática religiosa, os esboços de Purgatório entre os séculos VIII e XI;
como as confrarias. Também estes laços levaram tempo a estabelecer-se. mas o imaginário monástico explora, num claro-escuro com clareiras
Que acréscimo de poder para os vivos, este domínio sobre a morte! de luz, os recantos do além. O grande século criador, o século XII, é
Mas também, aqui em baixo, que reforço da coerência das comunidades também o do aparecimento do Purgatório que só se explica no seio do
- famílias carnais, famílias artificiais, religiosas ou confraternais - que sistema feudal então já aperfeiçoado. Depois da época da explosão vem a
extensão, após a morte, de solidariedades eficazes! E para a Igreja, que da ordem. O domínio sobre o além que o Purgatório proporciona acres-
instrumento de poder! Ela afirma o seu direito (parcial) sobre as almas do centa os mortos ao quadro geral da sociedade. O suplemento de possibi-
Purgatório como membros da Igreja militante, pondo à frente o foro lidades oferecido pelo Purgatório à nova sociedade integra-se no sistema
eclesiástico em detrimento do foro de Deus, o detentor da justiça no global.
além. Poder espiritual mas também muito simplesmente, como se verá,
lucro financeiro de que beneficiarão, mais do que os outros, os irmãos
das ordens mendicantes, propagandistas ardentes da nova crença. O Teologia e cultura popular
«infernal» sistema das indulgências encontrará nelas finalmente um ali-
mento revigorante. Devo ainda ao leitor dois esclarecimentos.
O primeiro diz respeito ao lugar dado à teologia neste estudo. Não sou
nem teólogo nem historiador de teologia. E evidente que, tratando-se de
o processo do Purgatório uma crença que se tomou dogma, o papel da elaboração teológica nesta
história é importante. Espero fazer-lhe justiça. Mas penso que o Purga-
Convido o leitor a abrir comigo o processo do Purgatório. Só este tório como crença impôs-se também por outras vias, e essas vias interes-
gesto me parece susceptível de o convencer, pelo contacto com textos sam-me particularmente porque informam mais sobre a relação entre
de grandes teólogos ou de compiladores obscuros, por vezes anónimos, crença e sociedade, sobre as estruturas mentais, sobre o lugar do imagi-
de alto valor literário, ou meros instrumentos de comunicação, mas mui- nário na história. Não ignoro que, para a teologia católica moderna, o
tos deles interpretados pela primeira vez e possuindo quase sempre em Purgatório não é um lugar mas um estado. Os Padres do concílio de
graus diversos o encanto do imaginário, o calor do proselitismo, o frémi- Trento, ansiosos neste ponto como nos restantes, por evitar a contami-
to da descoberta de um mundo interior e exterior. Sobretudo, é a melhor nação da religião pelas «superstições», deixaram de fora do dogma o
maneira de ver construir-se lentamente, nem sempre seguramente mas em conteúdo da ideia de Purgatório. Assim, nem a localização do Purgató-
toda a complexidade da história, a crença num lugar, e esse lugar em si rio nem a natureza das penas que lá se sofrem foram definidas pelo dog-
mesmo. ma e antes foram deixadas à liberdade das opiniões.
Estes textos são frequentemente repetitivos mas assim se constitui um Mas espero mostrar neste livro que a concepção do Purgatório como
corpus, assim se constrói a história. O jogo de ecos que encontraremos lugar e as imagens que lhe estão ligadas desempenharam um papel capital
muitas vezes neste livro é a imagem da realidade. Eliminar essas repeti- no êxito desta crença'". Isto não se aplica somente à massa dos fiéis mas
ções da história seria deformá-Ia, falseá-Ia. também aos teólogos e às autoridades eclesiásticas dos séculos XII e XIII.
Veremos como fica a geografia do além e o que está em jogo nas fases Quando entre os laicos apareceu um homem de génio que era também
principais do dealbar da Idade Média onde foram elaboradas as bases do muito sábio, esse exprimiu melhor do que os outros- a todos os níveis
nosso mundo ocidental moderno. Conhecemos hoje melhor e apreciamos o que foi para os homens da segunda Idade Média, depois de 1150, o
mais justamente a originalidade dessa longa mutação do século III ao VII, Purgatório. O melhor teólogo da história do Purgatório é Dante.
a que se chamava dantes Baixo Império e Alta Idade Média e a que O segundo esclarecimento tem a ver com o lugar da cultura popular
chamamos hoje com mais propriedade Antiguidade tardia: as antigas no aparecimento do Purgatório. Esse lugar é seguramente importante e
heranças aí se decantam, o cristianismo aí modela novos hábitos, a hu- será aqui evocado por várias vezes. Por trás de certos elementos essenciais

26 27
do Purgatório em formação, a tradição popular - não no sentido vulgar NOTAS
de cultura de massas mas no sentido eficaz de cultura folclórica específica
- está presente e actuante. Para dar três exemplos: o fogo expurgatório,
como demonstrou Carl-Martin Edsman, participa dos ritos e das crenças
que os contos, as lendas e os espectáculos populares deixam compreender;
as viagens no além pertencem a um género onde elementos eruditos e
elementos folclóricos estão intimamente misturados'"; os exempla sobre
o Purgatório são muitas vezes provenientes de contos populares ou são
aparentados com eles. Desde há vários anos, com alguns colegas e amigos
dedico-me, no quadro dos meus seminários na Escola dos Altos Estudos
em Ciências Sociais, a investigações sobre a relação entre cultura erudita
e cultura popular na Idade Média. Não procurei, porém, ir muito longe
nessa pista. Sobre um tema como este há demasiadas incertezas para que
se possa precisar, aprofundar e interpretar com facilidade o papel inegá- I Sobre Lutero e o Purgatório ver P. ALTHAUS, «Luthers Gedanken über die
vel da cultura popular. Mas é preciso que se saiba que essa cultura teve a letzten Dinge» in Luther Jahrbuch, XXIII, 1941, pp. 22-28.
sua função no nascimento do Purgatório. O século desse nascimento é 2 M. GOURGUES in À Ia Droite de Dieu - Réssurrection de Jésus et actualisation
du Psaume CX, 1, dans le Nouveau Testament, Paris, 1978, sustenta que os textos do
também aquele em que a pressão do folclore sobre a cultura erudita é
Novo Testamento só manifestam um interesse mínimo ao lugar do Cristo à direita do
mais intensa, em que a Igreja mais se abre a tradições ~ue na Alta Idade Pai.
Média, ela mesma destruíra, escondera ou ignorara 1 • Este empurrão 3 Ver C. GINZBURG, «High and Low: The Theme of forbidden Knowledge in the
também contribuiu para o aparecimento do Purgatório. XVIth and XVIIth c,» in Past and Present, nO73, 1976, pp. 28-41.
4 Os textos que até então evocam as situações que conduzirão à criação do Purga-
tório apenas empregam o adjectivo purgatorius, purgatoria, que expurga, e unicamente
nas expressões consagradas: ignis purgatorius, o fogo purgatório, poena purgatoria, a
pena (o castigo) purgatório ou, no plural, poenae purgatoriae, as penas purgatórias e,
mais raramente,j1amma,forna, locus.flumen (chama, fomo, lugar, rio). No século XII
emprega-se por vezes em subentendido o substantivo, in purgatoriis (poenis), nas penas
purgatórias. Este uso favoreceu provavelmente o emprego da expressão in purgatorio
subentendendo-se igne, no fogo purgatório. É provável que o aparecimento
de purgatorium, substantivo neutro, o purgatório, muitas vezes empregado com a for-
ma in purgatorio, no Purgatório, tenha beneficiado da semelhança com in (igne) pur-
gatorio, No fim do século XII e no começo do século XIII quando se encontra
In purgatorio é por vezes dificil saber se se deve entender no purgatório ou na fogo
(subentendido) purgatório. Mas isso já não tem importãncia, porquanto daí em diante
o substantivo, quer dizer, o lugar, e tanto uma como a outra expressão é a ele que se
reportam.
5 Os raros autores de estudos sobre o Purgatório que se aperceberam do problema
levantam-no em geral em nota, resumidamente e de maneira errada. Joseph Ntedika,
autor de dois excelentes estudos fundamentais, diz de Hildebert du Mans: «Ele é talvez
o primeiro a empregar a palavra purgatorium (A evolupão da doutrina do purgatório em
Santo Agostinho, p. 11, n. 17). O sermão anteriormente atribuído a Hildebert du Mans
foi-lhe retirado há muito (ver Apêndice lI). A. Piolanti em «li dogma del Purgatório»
in Euntes Docete, 6, 1953, 287-311, notável, contenta-se com dizer (p. 300): «Neste
século (o XII) aparecem os primeiros esboços do tratado De purgatorio (daqui em
diante o adjectivo t.anforma-se em substantivo).» Quanto a Erich FLEISCHHAK,
Fegfeuer, Die christlichen Vorstellungen vom Geschick der Verstorbenen geschichtlich
dargestellt, 1969, escreve (p. 64): (<A palavra purgatorium será usada desde a época

28 29
carolingia tanto para a purificação como para o lugar de purificiação» sem dar refe- 13 Tuscu/anes, V, 77.
rências (pudera!. ..). 14 Faetorum et dictorum memorabilium libri novem, IH, 3, ext. 6. Como observou
6 Ver, por exemplo, numa perspectiva geográfica: J. JAKLE e outros, Human Edsman em La Flúte enchantée de Mozart, «Tamino e Pamina passam por duas grutas,
Spatial Behavior. A Social Geography, North Scituate, Mass., 1976. J. KOLARS e J. contendo a primeira uma queda de água e estando a segunda cheia de fogo».
NYSTUEN, Human Geography: Spatial Design in World Society, Nova lorque, 1974; 15 Sobre uma visão teológica «apurada» mas restrita, cf. por exemplo, esta opinião:
numa perspectiva zdológica, H. E. HOWARD, Territory in Bird Life, Londres, 1920; «As necessidades da linguagem popular de Nosso Senhor, ao falar do dedo de Lázaro e
numa perspectiva linguística B. L. WHORF, Language, Thought and Reality, Nova da língua do rico mau, podiam autorizar espíritos habituados a unir alma e corpo
lorque, 1956; de um ponto de vista interdisciplinar e. R. CARPENTER, Territoria- como grupos inseparáveis a dotar as almas separadas com um corpo sui generis, como
lity: a Review ofConcepts and Problems in A. ROE e G. G. SIMPSON, Behavior and a imaginação necessariamente lhas apresenta. Outros tantos obstáculos à verdadeira
Evolution, New Haven, 1958. H. HEDIGER, The Evolution of Territorial Behavior in filosofia do dogma» (1. BAINVEL, artigo «Âme» in Dictionnaire de théologie
S. L. WASHBURN ed. Social Life of Early Man, Nova Iorque, 1961. A. BUTTIMER, catholique, I, Paris, 1909, p. 1001). Argumentar assim é fechar-se à compreensão da
Social Space in lnterdisciplinary Perspective in E. JONES ed. Readings in Social história.
Geography, Oxford, 1975, sem esquecer A. JAMMER, Concepts of Space, Nova Ior- 16 Heinrich GÜNTER escreveu: <<Avisão do além tornou-se um motivo popular
que, 1960, com um prefácio de Albert Einstein. existente em todas as épocas e que é tão velho como a especulação mística» (Die
7 E. T. HALL, The Hidden Dimension, Nova lorque, 1966, trad. francesa La Di- christliche Legende des Abendlandes, Heidelberg, 1910, p. 111).
mension cachée, Paris, 1971. 17Ver J. Le GOFF, «Culture c1éricale et traditions folkloriques dans Ia civilisation
8 Le Jugement des morts (Egipto, Assur, Babilónia, Israel, Irão, Islão, Índia, China mêrovingiennes in Pous WI autre Moyen Âge, Paris, 1977, pp. 223-235, e «Culture
e Jafão). Col. «Sources orientales», IV, Paris, ed. du Seuil, 1961, p. 9. ecclésiastique et culture folklorique au Moyen Âge: Saint Marcel de Paris et ~e dra-
Tomás de Aquino é especialmente sensível à dificuldade de fazer com que as gon», ibid., p. 236-279 e J.-CI. SCHMITT, «Religion populaire et culture folkloriques
almas espirituais sintam o sofrimento de um fogo corporal. Baseia-se sobretudo na in Annales, E.S.e., 1976, pp. 941-953.
autoridade das Escrituras (Mateus, XXV, 41) e na analogia entre almas separadas e
demónios para afirmar que «As almas separadas podem pois sofrer por motivos cor-
porais» (Somme théologique, supl. quest. 70, art. 3). A questão da corporalidade da
alma preocupou talvez João Scot Erígenes no século IX e o seu discípulo Honorius
Augustodunensis no século XII. cr. Cl. CAROZZI, «Estrutura e função da visão de
Tnugdal» in Faire Croire, actas do colóquio da Escola Francesa de Roma (1979).
A. VAUCHEZ, ed. Rome, 1980. Aqui não seguirei Claude Carozzi a quem agradeço
pela comunicação antecipada do seu texto.
10 Cl. LÉVI-STRAUSS, «Les organisations dualistes existent-elles?» in Anthropo-
logie structurale, I, Paris, especialmente p. 168.
11 G. VAN DER LEEUW, La religion dons son essence et ses manifestations, trad.
franc., Paris, p. 53.
12 e.-M. EDSMANN, Ignis Divinus. Le feu comme moyen de rajeunissement et
d'immortalité: contes, légendes, mythes et rites, Lund, 1949. Recordemos o estudo já
ultrapassado mas pioneiro e clássico de J. G. FRAZER, Myths of the Origin of Fire,
Londres, 1930, o belo ensaio de Gaston BACHELARD, Psychana/yse dufeu. Sobre o
fogo sagrado iraniano, K. ERDMANN, Das iranisehe Feuerheiligtum, Leipzig, 1941.
Os artigos «Feuer» (A. CLOSS) no Lexiconfür Theologie und Kirche, 4, 1960, 106-107
e sobretudo os artigos «Feu de l'Enfer», «Feu du Jugement» e «Feu du Purgatoire»
(A. MICHEL in Dictionnaire de théologie catholique, Vf2, Paris, 1939) e «Feu» de
J. GAILLARD in Dictionnaire de spiritualité, V, Paris, 1964, pouco elucidam sobre
as formas arcaicas da religião do fogo. Nos Evangelhos apócrifos encontra-se o bap-
tismo pelo fogo sob diversas formas. Em Deux livres du jeu proveniente de um original
grego (do Egipto) da primeira metade do século Hl, Jesus, depois da ressurreição, dá
aos seus apóstolos um baptismo triplo, pela água, pelo fogo e pelo Espírito Santo
(E. HENNECKE-W. SCHNEEMELCHER, Neutestamentliche Apokryphen, 3" ed.,
I, Tübingen, 1959, p. 185). Em L'Évangile de Philippe, que foi utilizado pelos gnósti-
cos e pelos maniqueístas e que é provavelmente originário do Egipto e do século Il,
encontra-se o baptismo pela água e pelo fogo (ibid., p. 198).

30 31
PARTE I

O ALÉM ANTES DO PURGATÓRIO


I - OS IMAGINÁRIOS ANTIGOS

O Purgatório medieval volta a utilizar motivos postos a circular


em tempos muito antigos: trevas, fogo, torturas, ponte da provação e
da passagem, montanha, rio, etc., e recusou finalmente elementos que
quase acolheu: pastos, vagabundagem; ou rejeitou logo de início: reen-
carnações, metempsicose. Referirei, pois, primeiro esses farrapos vindos
de outro lugar e de longe, por vezes de muito longe no espaço e no
tempo.
Trazer estas religiões antigas para o processo do Purgatório é também
reintegrá-lo num conjunto de soluções para um mesmo problema: a es-
trutura do outro mundo, o imaginário do além como demonstração da
sua função. Em certos casos esta referência a outras religiões porá em
presença heranças reais, históricas: da Índia antiga ao Ocidente cristão
o fogo, por exemplo, bem circulou; mas o fogo do Purgatório reuniu
múltiplos fogos acendidos aqui e ali no decorrer dos tempos. O modelo
egípcio parece ter pesado muito na «infernização» dos outros mundos
posteriores. Por vezes também a comparação com outros «além» religio-
sos apenas terá um valor lógico e será somente uma manifestação dos
sistemas do além e das suas diversas soluções para o problema comum.
Quando se dá um encontro entre estas soluções e a solução cristã do
Purgatório, não será por identidade de resposta sem certeza de influên-
cia? A angústia essencial do tempo do Inferno entre os gnósticos e a
atenção inquieta mas finalmente raiada de esperança dos cristãos no tem-
po do Purgatório não virão de uma sensibilidade ao tempo, incluída nos
dois pensamentos mas de maneira independente?
Enfim, lançar luz sobre essas heranças e essas opções é mostrar que as
relações entre o Purgatório cristão e os anteriores imaginários do além
são as de uma história, não de uma genealogia. O Purgatório não foi
engendrado automaticamente por uma série de crenças e de imagens -
mesmo diacrónica -, é ainda o resultado de uma história onde se mistu-
ram a necessidade e os acasos.

35
As três vias hiodus
No Irão: o fogo e a ponte
Na antiga Índia, no fim dos tempos védicos quando aparecem os
No Irão, o que mais surpreende nas doutrinas e nas imagens do além é
primeiros Upanixades (século VI a.C.), os mortos têm três vias à sua
a omnipresença do fogo. Mas certos aspectos da escatologia zoroástrica
frente conforme o seu mérito mas sem que haja julgamento. A entrada
apresentam características que, não tendo decerto tido qualquer influên-
numa' destas vias faz-se através do fogo, pois os mortos são queimados
cia directa nas concepções cristãs que conduziram ao Purgatório, evo-
na pira. Os justos passam «das chamas para o dia, do dia para .a
cam-uas '. É em primeiro lugar a hesitação entre uma interpretação
quinzena luminosa (do mês lunar), da quinzena luminosa para os seis
«paradisíaca» e "uma interpretação «infernal» da morada dos mortos an-
meses do ano em que o sol sobe, desses meses para o mundo dos deuses,
tes do julgamento. No Veda, essa morada, o reino de Yama, é ora um
do mundo dos deuses para o sol, do sol para o mundo do resplendor.
paraíso de luz ora um sinistro mundo .subterrâneo, um abismo para onde
Deste mundo do resplendor, aqueles (que o merecem) são conduzidos
se desce por um caminho em declive. E também a presença de uma ponte
para os mundos do brâmane por um ser espiritual vindo (lá buscá-los),
- como se encontra na Índia - que liga a terra ao céu e na qual o morto
Nestes mundos do brâmane eles habitam lonjuras insondáveis. Para eles
entra para uma prova de força e de agilidade que também tem um certo
não há regresso».
valor moral".
Aqueles que têm méritos suficientes «entram no fumo, do fumo pas-
Enfim, para as almas, cujas acções boas têm o mesmo peso que as
sam para a noite, da noite para a quinzena sombria (do mês lunar), da
más, existe um lugar intermédio; mas os especialistas avisam que não se
quinzena sombria para os seis meses em que o sol desce, desses meses
deve pensar que se trata de uma espécie de Purgatório, pois é antes o
para o mundo dos manes, do mundo dos manes para a lua». Aí são
inferno de Masda, que pode comparar-se com o Purgatório cristão, sen-
comidos pelos deuses, voltam à terra e inauguram um ciclo de reencarna- ' . 5.
do como eIe temporano
ções e de renascimentos de perfeições, cada um dos quais é uma etapa
para o Paraíso. " N

Os irremediavelmente maus sofrem renascnnentos de pumçao,


No Egipto: o imaginário infernal
sob a forma de «vermes, de insectos, de animais», até caírem no
inferno'.
A longa história do antigo Egipto também não permite resumir em
A Isha Upanishad evoca esta estada infernal: «Esses mundos a que ~e
algumas ideias simples as crenças sobre o julgamento dos mortos e o
chama sem sol por estarem cobertos de negras trevas: entram neles depo~s
além, que evoluíram no decorrer dos séculos e parecem não ter sido idên:
da morte aqueles que mataram a própria alma.» Mas outros textos dei-
ricas segundo os meios sociais. A ideia de um julgamento dos mortos fOI
xam supor que a sorte desses mortos não é decidida logo de início. E
muito antiga no Egipto. Como escreveu Jean Yoyotte: «invenções dos
conforme eles tenham ou não transposto o limiar da porta guardada
antigos Egípcios, a ideia, o temor, a esperança do Julgamento iriam co-
por dois cães. Se o transpuserem serão acolhidos num lugar agradável,
nhecer depois deles um longo destino'».
próximo dos Campos Elísios dos Romanos e do Wal~alla~germamc?, «os
O inferno egípcio era especialmente impressionante e sofisticado. Era
pastos que não mais lhes serão tirados», onde partilharão do festim de
uma região imensa com muralhas e pórticos, pântanos lamacentos e lagos
Yama, o primeiro homem, o Adão da tradição indo-iraniana, trasforma-
de fogo rodeando salões misteriosos. Maspero fez notar que o morto
do em rei dos Infernos. Se forem rejeitados, ou irão para as trevas do
egípcio tinha de escalar uma montanha de vertentes escarpadas. A ~eo-
Inferno , ou voltarão a errar miseravelmente pela terra, vagueando como
2 grafia imaginária do além egípcio foi tão longe que, em alguns sarcofa-
uma alma penada, sob a forma de fantasmas.
gos, foram encontradas cartas do outro mundo. E os castigos eram
Estas diversas tradições apresentam elementos que iremos reencontrar
muitos e muito severos. Estas penas atingiam tanto o corpo como a al-
no Purgatório: a ideia de uma via intermédia de salvação~ a passagem
ma. Eram tanto fisicas como morais, marcadas pelo distanciamento dos
através do fogo, a dialéctica entre as trevas e a luz, melhonas de e~tado
deuses. Uma sensação essencial era a de encerramento e de prisão. Lá as
entre a morte e a salvação definitiva, a função do além como receptaculo
penas eram sangrentas e os castigos pelo fogo numerosos e terríveis. Mas,
de almas que de outro modo ficariam votadas ao vaguear dos fantasmas.
mesmo nas suas versões mais infernais, o Purgatório cristão não se apro-
Mas a ausência de julgamento e o lugar especial da metempsicose estão
ximará de certas torturas do inferno egípcio, como a perda dos órgãos
muito longe do sistema do além cristão.
dos sentidos e os atentados contra a unidade da pessoa. A imaginação

36 37
topográfica foi levada muito longe pelos Egípcios nas suas visões do in- aos infernos orientais. Podemos reter alguns dos seus elementos geográ-
ferno. Os «receptáculos» - casas, salas, alcovas, locais diversos - forma- ficos gerais, que iremos encontrar na génese do Purgatório: uma ilha (a de
vam um complexo sistema de alojamentos", Mas para os antigos Egípcios Circe), uma montanha a pique sobre o mar, crivada de grutas, um episó-
não havia Purgatório. Erik Hornung faz notar claramente que, apesar da dio de descida ao Averne numa atmosfera verdadeiramente infernal, a
riqueza da terminologia egípcia para designar os humanos no além, ela evocação dos mortos que não encontraremos no cristianismo oficial,
limita-se a duas categorias rigorosamente opostas: os «bem-aventurados» uma vez que só Deus fará eventualmente aparecer certos mortos do Pur-
e os «malditos». Não há nem «estados ou fases intermédios nem proces- gatório a certos vivos!". Por sua vez, a evocação do Tártaro por Hesíodo
sos de purificação no além». é rápida (Teogonia, 695-700, 726-733).
É preciso esperar por um relato demótico (em língua vulgar), a viagem A contribuição da Grécia antiga para a ideia do além a longo prazo
de Osíris para o além escrito entre o século I a.c. e o século II da nossa parece residir sobretudo em duas construções intelectuais cuja influência
era, para encontrar uma tripartição dos mortos: os que estão sobrecarre- no pensamento cristão é dificil de avaliar.
gados de más acções, os que o estão, mas de boas acções, e aqueles em
que as boas e as más acções se equilibram mas continua a haver qualquer
processo de purificação. As ligeiras diferenças dos destinos individuais Uma mosofia da reencarnação: Platão
que se anunciam, como veremos, nos apocalipses cópticos - como os
de Pedro e de Paulo - desde o segundo século da era cristã, não têm Constitui uma aposta tentar resumir, na perspectiva de um além in-
precedente no Egípto". termédio, o pensamento de PIatão sobre a sorte das almas após a morte.
Era preciso, porém, evocar este plano de fundo egípcio, porque o Victor Goldschmidt vai ser o meu guía!'. A doutrina platónica é domi-
Egipto, anterior e posterior à era cristã foi, sobretudo em Alexandria nada pela convicção de que existe na culpa uma parte de vontade, por-
nos mosteiros cristãos, o local de elaboração de numerosos textos judai- tanto de responsabilidade, e uma parte de ignorância que só pode ser
cos, gregos e captas que desempenharam um grande papel no conjunto de anulada por um processo complexo. A sorte das almas depende, pois,
imagens do além, principalmente do inferno. E. A. W. Budge realçou as simultaneamente da sua própria opção e de um julgamento dos deuses.
características desta herança infernal: «Em todos os livros sobre o Outro O destino dos mortos toma normalmente a forma de reencarnações
Mundo encontramos poços de fogo, abismos de trevas, machados assas- escolhidas mais ou menos livremente pelo defunto, mas pode ser alterado
sinos, correntes de água a ferver, exalações fétidas, serpentes de fogo, ou interrompido por intervenções dos deuses. Os maus podem sofrer me-
monstros horríveis e criaturas com cabeças de animais, seres cruéis e as- tamorfoses degradantes, passando para o corpo de homens de vil condi-
sassinos com aspectos diversos ... parecidos com os que nos são familiares ção social ou para o de animais repugnantes, ou serem submetidos pelos
na antiga literatura medieval, e é quase indiscutível que as nações moder- deuses aos castigos do inferno. Esses castigos são evocados no décimo
nas devem ao Egipto muitas das suas concepções do inferno".» O Purga- livro da República (615 e) onde vemos homens de fogo acorrentarem as
tório «infernizado» que iremos encontrar com frequência na cristandade mãos, os pés e a cabeça dos tiranos, deitá-Ias por terra, esfolá-los e ar-
medieval sem dúvida alimentou-se em parte desta herança egípcia. rastá-Ias de lado ao longo do caminho, o que evoca uma passagem do
apocalipse de Pedro (V, 30). Quanto aos que atingiram o ideal platóni-
co, quer dizer, a filosofia, e a praticaram «na pureza e na justiça», alcan-
A descida aos infernos na Grécia e em Roma çam a contemplação perfeita, a maioria das vezes nas «ilhas dos bem-
-aventurados», porque sempre esta necessidade de localização, de
Somente através do tema da descida aos infernos é que a Antiguidade «espacialização» do destino no além, se impõe.
grega e romana trouxe alguma coisa às imagens cristãs do além. Este Considerações diversas levaram Pia tão a procurar vias de estatutos
tema - que encontraremos com Cristo - é frequente na Antiguidade gre- intermédios depois da morte, de acordo com a ideia de que a pena devia
ga: Orfeu, Pólux, Teseu e HéracIes desceram à morada das trevas. Uma ser proporcionada ao crime, conforme o exprime com vigor a República
das mais célebres destas descidas é a de Ulisses no livro XI da Odisseia. (X, 615 a-b). Mas também a concepção de um destino especial para os
Mas sabe-se que numerosas interpolações vieram acrescentar-se ao texto virtuosos medianos: continuam a atravessar o cicIo das reencarnações
primitivo que não incluía julgamento dos mortos, nem sanções morais, mas nos intervalos saboreiam recompensas não especificadas «numa mo-
nem tormentos punitivos. O inferno homérico parece nobre em relação rada pura e situada nas alturas da terra» (Fédon, 114 c, 1-2).

38 39
Tal como o Antigo Testamento, o pensamento platónico no que toca helenismo pagão e particularmente das doutrinas órficas 13. Se essa in-
ao além é fundamentalmente dualista. Na metempsicose as almas passam fluência existiu, impregnou primeiro, parece-me, os meios judaicos. É
quer para almas piores, quer para almas melhores. A sentença dos deuses nos escritos apocalípticos judaicos e sobretudo, próximo da era cristã,
não esquecerá homem algum e previne o seu semelhante: «Ela nunca te nos ensinamentos dos rabinos, que se irá encontrar um verdadeiro esbo-
esquecerá, nem que sejas suficientemente pequeno para mergulhares nas ço do futuro Purgatório cristão. Mas, na Palestina e no Egipto, esses
profundezas da terra ou suficientemente grande para voares até ao céu» meios judeus e depois cristãos mergulham com efeito num ambiente gre-
(Leis, X, 905 a), o que evoca o Salmo CXXXIX, 9: go onde as religiões de mistérios tiveram grande desenvolvimento.
Considera-se um testemunho dessa tendência Píndaro que, num frag-
mento citado por Platão (Ménon, 81 b), avalia em oito anos a duração da
Se subo aos céus, tu lá estás,
Se me deito no shêol, lá estás tu. purificação no Inferno e que, numa ode onde se trata de uma religião de
mistérios siciliana do começo do século VI a.C., sem dúvida própria da
crença órfica, diz:
«Tu pagarás aos deuses, acrescenta Platão, a pena que deves, quer
fiques aqui mesmo, quer vás para o Hades ou te transportem .para qual- Ela (a opulência adornada de méritos) é o astro cintilante, o esplendor
quer lugar ainda mais inacessível» (Leis, X, 905 a). No célebre mito de Er autêntico de uma vida humana. Ah! sobretudo se aquele que a possui sabe
só existem, para aqueles que se encontram num prado maravilhoso, dúas ver o futuro! se sabe que, quando a morte aqui os fere, os espíritos dos
direcções possíveis. Uns vêm do céu e os outros elevam-se do seio da terra culpados logo sofrem a sua pena; sob a terra, um juiz pronuncia, contra os
após uma viagem de mil anos. No entanto, movido pela ideia da propor- crimes neste reino de Zeus, sentenças ínexoráveis'".
cionalidade das penas sem dúvida ligada à sua filosofia mas também ao
sistema judicial ateniense (encontra-se em todas as religiões em que existe
um julgamento dos mortos uma certa relação entre a justiça terrestre e a
justiça divina no além), Platão imagina para as almas dos homens um l Jm precursor: Eneias nos Infernos
destino móvel que pode comportar diversas situações: «Aqueles cujos
costumes apenas sofrem raras e ligeiras modificações só se deslocam ho- É necessário agora prestar uma especial atenção à descida de Eneias
rizontalmente no espaço; se caem mais frequente e profundamente na aos Infernos, na Eneida de Virgílio.
injustiça, são levados para as profundezas e para os lugares chamados Há neste episódio uma evocação topográfica do além que pretende
inferiores que, sob a designação de Hades, e outras semelhantes, povoam conseguir uma precisão maior do que a maioria das antigas evocações
os seus terrores e os seus pesadelos ... Quando a alma sofre modificações dos infernos - se exceptuarmos algumas dos Egipcios. Brooks Otis, mui-
mais profundas em vícios ou em virtudes ... se é à virtude divina que ela se to recentemente, desenhou mesmo o respectivo mapa esquemático. Lá se
liga até se impregnar de divino, sofre então uma deslocação notável, sen- encontra a descida por um vestíbulo que iremos encontrar muitas vezes,
do transportada por um caminho santo para um lugar novo e melhor. Se [untamente com o poço, no inferno-purgatório. Depois o campo dos
é ao contrário, então é para lugares opostos que ela transporta o centro mortos sem sepultura, o rio Estige, os campos de prantos e as últimas
da sua vida ...» (Leis, 904 c-90S a). pradarias antes da bifurcação que, pelo caminho da esquerda, conduz
É sobretudo a crença na metempsicose que permite escalonamentos ao Tártaro (Inferno) e pelo da direita e após se ter transposto as mura-
das penas, castigos intermédios. Reencontrar-se-á esta tendência na cren- lhas de Dis (Plutão, rei dos Infernos), leva aos Campos Elíseos, morada
ça órfica «que, desde a origem, parece ter admitido que as existências vagamente paradisíaca, atrás da qual há o bosque sagrado cercado por
terrestres sucessivas são separadas por expiações no Hades'?», A influên- muros e por fim o rio do Esquecimento, o Letes+'.
cia da crença órfica no cristianismo tem sido frequentemente sublinhada. Num comentário célebre, Eduard Norden'? chamou a atenção não só
Como no judaísmo antigo, não se encontra a crença num estado intermé- para as reminiscências que encontraremos na Divina Comédia, tanto mais
dio entre a felicidade celestial e os tormentos infernais, e como a prefigu- normais quanto Dante, guiado por Virgílio, também o tomou por modelo
ração do Purgatório surgiu no cristianismo grego, avançou-se que a ideia poético, mas também para os elementos presentes nas visões medievais
cristã de um «Purgatório», onde as almas que não são suficientemente que demarcam o caminho do Purgatório em formação. Por exemplo,
culpadas para merecer penas eternas acabam de se purificar, viria do quando Eneias está no vestíbulo:

40 41
De lá vem o som de gemidos e o som de cruéis
suplícios esses males inveterados. Umas, suspensas no ar, ficam expostas
golpes de chicote: foi quando o ranger de correntes de ferro arrastadas
ao sopro ligeiro do ventos; outras, no fundo de um grande abismo, lavam
fizeram Eneias parar ficando aterrorizado com o barulho (versos 557-559)17,
as suas nódoas; outras purificam-se no fogo» (versos 733-743)20.
Todo um conjunto de temas que terão um papel na formação do Pur-
o que irá reencontrar principalmente na Visio Wettino (século IX), na gatório aí está: a mistura de dor e alegria, a apreensão velada da luz
Visio Tnugdali (meio do século XII, onde o Purgatório ainda não surge celestial, o contexto prisional, a exposição a penas, a expiação misturada
nítido), mas também no Purgatório de S. Patrick (fim do século XII) onde com a purificação, purificação pelo fogo. Eis, em compensação, uma
nasceu o Purgatório e, bem entendido, em Dante, em que o eco de Virgí- sequência historicamente afirmada: da Babilónia ao judaico-cristianismo.
lio se reencontra no Inferno (111,22-30), enquanto no Purgatório ainda se
suspira:
Gilgamesh nos infernos
Oh! como estes caminhos por onde se vem são diferentes
dos do inferno, pois aqui é entre cânticos que
Entre os Babilónios a paisagem do além é mais movimentada, mais
se entra, e lá é entre terríveis lamentos'",
obcecante, e aparece em relatos espantosos de viagens aos infernos. A
descida aos infernos de Ur-Nammu, príncipe de Ur, é o texto mais anti-
Também Eneias, tendo descido aos Infernos, mostra de lá de baixo os go deste género no domínio dó Médio Oriente europeu (século VIII a.Ci),
campos brilhantes de luz, em cimal". Atitude típica do olhar e do gesto Apenas um relato egípcio lhe é anterior. O herói é julgado pelo rei dos
lançados das profundezas para a luz do alto, que encontraremos nos infernos, Nergal, faz-se alusão a um fogo, há um rio perto de uma mon-
apocalipses (Apocalipse de João XXI, 10, Apocalipse (apócrifo) de Pe- tanha e o outro mundo está coberto de «trevass ".
dro, V, 4 e sgs.), nas visões medievais do prê-purgatório (Visto Fursei, Principalmente a célebre epopeia de Gilgamesh oferece-nos uma du-
Visio Wettini, Visio Tnugdali) e sobretudo no episódio evangélico de Lá- pla evocação dos infernos. A menos concisa é a que diz respeito ao
zaro e do mau rico ou «no Hades, presa de torturas, ergue os olhos e vê próprio Gilgamesh. Como o herói não obteve a imortalidade, os deuses
ao longe Abraão, e Lázaro no seu seio» (Lucas, XVI, 23), texto este que concedem-lhe um lugar especial no inferno, mas este favor não parece
terá um papel importante na pré-história cristã do Purgatório. resultar dos seus méritos, antes está ligado à sua condição social e apenas
Eduard Norden também observa judiciosamente que, se as notas so- depende de uma decisão arbitrária dos deuses+'. Em compensação Enki-
bre o tempo são por vezes caprichosas neste episódio virgiliano como em du, o amigo de Gilgamesh, visita o Inferno antes de morrer e faz dele
Dante, existe no entanto nos dois poetas a ideia de um tempo fixo para as uma descrição mais concisa. E o reino do pó e das trevas, a «imensa
viagens no além, da ordem de um dia (vinte e quatro horas) e sobretudo terra», «a terra sem regresso», «a terra de onde não se volta», uma terra
de uma noite. Na Eneida a subida deve terminar antes da meia-noite.fiora para onde se desce e de onde sobem, quando evocados, certos mortos.
a Que saem as verdadeiras sombras (verso 893 e sgs.); na Divina Comédia Uma terra para onde se vai quando se é apanhado nas redes dos deuses,
a viagem deve durar vinte e quatro horas (Inferno, XXXIV, 68 e sgs.). uma prisão. Talvez o mais inquietante seja o facto de os vivos e os
Nos Apocalipses e nas visões medievais a viagem para o além deve quase mortos «normais» serem atormentados por mortos «exasperados». Es-
sempre terminar antes da madrugada e do primeiro canto do galo. É o tes, os ekimmu, cuja sombra não recebeu sepultura nem cuidados da
caso do Purgatório de S. Patrick onde esta exigência referente ao tempo parte dos vivos (reencontramos este apelo à solicitude dos vivos, cujo
faz parte do sistema do ordálico. papel será tão grande no sistema do Purgatório), regressam como fan-
Para o futuro cristão e medieval a passagem essencial do canto VI da tasmas para visitar os habitantes da terra, ou atormentam os outros
Eneida é esta: «Desde então as almas conhecem os temores, os desejos, as mortos no inferno.
dores e as alegrias e, prisioneiras que são das suas trevas e da sua ceguei-
ra, já não distinguem claramente a luz do céu. E mesmo no dia supremo,
quando a vida as deixou, as infelizes não estão ainda completamente Um além neutro e tenebroso: o shéol judaico
livres de todo o mal e de todas as máculas do corpo; os seus vícios, for-
talecidos pelos anos, devem ter-se enraizado até uma profundidade im- Realçou-se o parentesco entre algumas destas crenças e crenças judai-
pressionante. E pois necessário submetê-Ias ao castigo, e que expiem em cas testemunhadas pelo Antigo Testamento, o que nada tem de surpreen-

42 43
dente se pensarmos nas relações ~ue uniram os Babilónios e os Hebreus vem todo o mundo subterrâneo dos mortos. Este tema é particularmente
especialmente quando do Exílio/ . ' obsessivo no livro de Job:
O arallü, o inferno assírio, está próximo do shéol hebreu, do Hades
g~~go, embora estes dois últimos pareçam mais simples. O parentesco é antes que eu me vá para não regressar
visível sobretudo entre os dois primeiros. Assim, para a descida e a subida para o país das trevas e das sombras espessas,
do sh~o/, Jaco!" julgando José morto, declara: «é de luto que quero descer onde reindm a escuridão e o caos
ao sheolparajunto do meu filho» (Génesis, XXXVII, 35). Ana, a mãe de onde a própria claridade parece noite sombria.
Samuel, proclam~ no seu cântico «é Jeová quem faz morrer e viver, quem (Job, X, 21-22i7
faz descer ao sheol e subir nele» (I Samuel, lI, 6). Enfim, quando Saul
pede à feiticeira de En-Dor que evoque Samuel de entre os mortos ela
diz-lhe: «Vejo um espectro que sobe da terra» e ainda «é um velho que Da paisagem do shéol é preciso reter dois elementos importantes que
sobe» (I Samuel, XVIII, l3-14). A imagem da armadilha encontra-se nos reaparecerão no Purgatório como no Inferno cristão: a montanha e o rio.
Salmos XVIII (eas malhas do shéol prendiam-me, as armadilhas da morte Certas interpretações do Salmo XLII, 7, falam da «montanha dos tor-
esperavam-me», XVIII, 6) e CXVI S«as armadilhas da morte apanham- mentes» e o livro de Job evoca por duas vezes o rio que se atravessa à
-me, ~s mat.has do sh~ol, CXVI, 3)2 . O mesmo com a imagem do poro: entrada do shéol:
«Jeová, tu tiraste a nunha alma do shéol, reanimando-me de entre aqueles
que descem à fossa (poço)» (Salmo XXX, 3), «puseste-me nas profunde- Assim ele preserva a sua alma do fosso,
zas da fossa (poço), nas trevas, nos abismos» (Salmo LXXXVIII, 7). No e a sua vida da passagem pelo Canal
Salmo XL (3), a imagem do pélago está associada à da lama: «Ele tirou- (Job, XXXIII, 18).
-me do pélago tumultuoso, do lodo do lamaçal.» Segundo Nicholas J.
Tromp, a palavra bôr foi sucessivamente associada ao sentido de
cisterna, depois de prisão, por fim e simultaneamente a túmulo e a poro Se não, eles passam pelo Canal
do mundo subterrâneo, evolução semântica sugestiva. O poro do abismo E morrem como loucos
evocado pelo Salmo L V (24), foi equiparado ao poço, entrada do outro (lob, XXXVI, 12).
~und~ no conto de Grimm: Frau Hõlle (Dame Baile, Hõlle) querendo
dizer !nferno e~ alemão). O pó, em geral associado aos vermes, aparece
também no Antigo Testamento. «Irão eles descer a meu lado até ao shéol Tromp sustenta de modo convincente, e contra os exageros do Antigo
perder-se no mesmo pó?» (Job, XVII, 16) e ainda «Juntos eles deitam-se Testamento, que os termos que descrevem o shéol se aplicam bem a um
no pó e os vermes cobrem-nos» (Job, XXI, 26). local e não são metafóricos, mas pensa também que há uma evolução no
A referência ao outro mundo infernal, o shéol, palavra especificamen- sentido de um emprego «literário» e «ético» do shéol, e que o Hades do
t~ hebraic~, é freq':lente no Antigo Testamento'P. Alguns dos seus traços Novo Testamento que se lhe seguiu avançou nesse sentido.
sao propnamente infernais e não aparecerão no Purgatório cristão; por Em todo o caso, o shéol do Velho Testamento surge essencialmente
ex~m~loi: equiparação com um monstro devorador, que vem talvez dos num sistema dualista que opõe fortemente o Céu e o Inferno. Por exem-
Egípcios ,e a unagem do outro mundo como cidade, já apresentada nos plo, o salmista do Salmo CXXXIX, 8, diz a Jeová:
documentos da cidade de Ugarite, e que anuncia a «cidade triste» de
Dant~ (Inferno, III, I) .. Outros são muito característicos do pensamento Se subo aos céus, tu lá estás,
hebraico, como a estreita ligação entre a ideia do shéol e a simbólica do Se me deito no shéol, lá estás tu.
caos, encarnado por um lado no oceano e por outro no deserto. Em todo
o cas?, talvez devês~emos investigar mais atentamente os laços eventuais, E Isaías (XLIV, 24) põe Jeová a dizer:
na cnstandade medieval, entre o Purgatório e certos santos ou eremitas
vagabundos dos mares ou da solidão da floresta-deserto. Fui eu, Jeová, quem fez todas as coisas,
Ao Purgatório - como ao Inferno - o shéollegará a noção de trevas quem, sozinho, estendeu os céus,
(de onde as almas do Purgatório emergirão para a luz), trevas que envol- consolidou a terra, sem ninguém ajudar.

44 45
A terra é, na verdade, o conjunto do mundo dos vivos e do mundo dos Mas há esperança para aquele que está ligado
mortos misturados, e mais a morada subterrânea do que a estada à super- a todos os vivos,
ficie. e um cão vivo vale mais do que um leão morto.
Muito raramente é evocado um sistema tripartido (como o que, para o
além, e por-exemplo em Dante, agrupará o Inferno subterrâneo, o Pur- o que Jesus dirá novamente de maneira esclarecedora:«Quanto à
gatório terrestre e o Paraíso celeste). No entanto Jeremias, recordando ressurreição dos mortos, não lestes o oráculo no qual Deus vos diz: 'Eu
aos Hebreus do Exílio o poder de Jeová, diz: sou o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacob'?» Não é dos
mortos mas dos vivos que ele é Deusl» (Mateus, XXII, 31-32). Jeová, cujo
Os deuses que não fizeram o céu e a terra serão enorme poder sobre o shéo/ é muitas vezes afirmado no Antigo Testamen-
exterminados da terra e de debaixo do céu; to, nunca manifesta a intenção de fazer sair de lá um morto prematura-
Ele fez a terra com o seu poder mente, de lhe perdoar após a sua descida ao shéo/ ou de lhe encurtar a
ordenou o'mundo com a sua sabedoria permanência.
e com a sua inteligência estendeu os céus. Além das imagens infernais que também são válidas para o Purgató-
rio, não existe pois grande coisa no Antigo Testamento (se excluirmos
o profeta distingue, pois, o céu, o mundo debaixo do céu e a terra uma passagem muito especial do livro dos Macabeus de que falarei adian-
(debaixo do mundo) como dirá S. Paulo (Filipenses, 11, 10): te) que anuncie o Purgatório cristão.
Somente sob dois pontos de vista o Antigo Testamento deixa supor
para que tudo, em nome de Jesus, que poderá haver diferenças de lugar no shéol e que de lá se possa ser
se ajoelhe, no mais alto dos céus, tirado por Deus.
sobre a terra e nos infernos. Primeiro, o Antigo Testamento distingue no shéol as suas profundezas
máximas reservadas a mortos especialmente vergonhosos: os homens não
Sendo o shéol temível, não aparece no entanto como lugar de tortu- circuncisados, as vítimas de assassínios, os mortos por execução e os
ras: Em todo o caso, encontramos nele três tipos de castigos especiais: o mortos sem sepultura, mas trata-se mais de mortos impuros do que de
leito de vermes, que não encontraremos no Inferno e no Purgatório cris- mortos culpados.
tãos a menos que se queira ver nele os antepassados das serpentes infer- Certos textos dos Salmos, principalmente, sugerem uma possibilidade
nais, o que não me parece ser o caso, a sede e o fogo. Voltarei a referir- de libertação.
-me ao fogo que já evoquei. A sede, de que fala, por exemplo, Jeremias
(XVII, 13): Volta, Jeová, liberta a minha alma,
Salva-me, pelo teu amor.
aqueles que se afastam de ti serão acusados na terra Pois, na morte, não há memória de ti:
porque abandonaram a fonte de águas vivas, Jeová... No shéol, quem te louvará?
(Salmo VI, 5-6).
encontra-se pelo menos em dois textos cristãos importantes para a pré-
-história do Purgatório. Primeiro a história do pobre Lázaro e do rico mau
que, do fundo do Hades, pede que Lázaro vá molhar na água a ponta do Rebanho preso no shéol,
dedo para lhe refrescar a língua (Lucas, XVI, 24). É sobretudo à primeira a Morte leva-os a pastar,
e os homens justos dominá-tos-ão.
visão que se pode de facto chamar visão de um lugar expurgatório, a de
Perpétua na Paixão de Perpétua (começo do século III), onde a sede será
um elemento essencial da visão. De manhã a sua imagem desvanece-se,
o shéol, eis a sua residência!
Notou-se que, sendo o shéo/ evocado frequentemente no Antigo
Mas Deus resgatará a minha alma
Testamento, não são dados quaisquer pormenores precisos a seu respei-
das garras do shéol e levar-me-á consigo,
to. E porque, disse-se, Jeová é o Deus dos vivos, lembrando o Eclesiastes
(IX, 4): (Salmo XLIX, 15-16).

46 47
Porque Tu não podes abandonar a minha alma ao shêol, to desempenhou um papel importante - foi a crença numa descida de
não podes deixar o teu amigo ver o fosso Jesus aos Infernos, cujo brilho como que se reflectiu no conjunto apoca-
Tu me ensinarás o caminho da vida, líptico. É notável que a maioria destes apocalipses relatem mais uma
perante o Teu rosto, plenitude de alegria, viagem ao céu do que uma descida aos infernos, traço característico do
à tua direita, delícias eternas.
clima de expectativa e de esperança dos séculos próximos do aparecimen-
(Salmo XVI, 10-11). to do cristianismo.
Dos apocalipses judaicos referirei o Livro de Henoch e o quarto Livro
de Esdras; dos cristãos o Apocalipse de Pedro, o Apocalipse de Esdras e
sobretudo o Apocalipse de Paulo.
As visões apocalípticas judaico-cristãs Do Livro de Henoch apenas resta um pequeno fragmento na versão
latina abreviada por um único manuscrito do século VIII conservou. A
Entre o século II a.C. e o século III da nossa era (e ainda durante versão mais completa que se conhece é uma versão etíope feita a partir
muito tempo, pois as versões gregas e sobretudo latinas de textos hebrai- do grego". O original foi escrito numa língua semítica,provavelmente 9
cos, sírios, captas, etíopes e árabes só viram a luz do dia mais tarde), um hebreu, foi composto do século 11 ao I a.C. e sofreu a influência egípcia. E
conjunto de textos elaborados no Médio Oriente, principalmente na Pa- um texto heterogéneo, cuja parte mais antiga remonta sem dúvida à épo-
lestina e no Egipto, vieram enriquecer de maneira decisiva as concepções ca do aparecimento da literatura apocalíptica, um pouco antes de 170
e as representações do além. A maioria destes textos não foi incluída pelas a.C .. É pois um dos testemunhos mais antigos dessa literatura.
diversas igrejas oficiais entre os documentos ditos autênticos da doutrina Referências ao além encontram-se principalmente na primeira parte, o
e da fé. Fazem parte desse conjunto de textos chamados apócrifos pela Livro da Assunção de Henoch. Henoch, guiado por anjos, é levado para
Igreja cristã latina (os protestantes apelidarão de pseudo-epigráficos os «um lugar (uma casa) cujos habitantes são como fogo ardente» depois
textos não canónicos do Antigo Testamento). Este carácter apócrifo, para a morada das tempestades, do trovão e das águas da vida. «E che-
aliás, só tardiamente foi imposto a alguns deles pelo concílio dominado guei a um rio de fogo do qual o fogo corre como água e se derrama no
por Santo Agostinho em 397 e mesmo pelo concílio de Trento no século alto mar e atingi uma grande escuridão ... vi as montanhas de trevas do
XVI, no que respeita ao catolicismo. Assim, muitos deles tiveram durante Inverno e a boca do abismo» (Cap. XVII). Depois ele chega ao poço do
a Idade Média alguma influência, ou porque ainda não eram considera- Inferno: «Depois vi um abismo profundo junto das colunas de fogo do
dos apócrifos e a sua utilização não provocava a reprovação da Igreja, ou céu, e vi entre elas colunas de fogo que desciam e cuja altura e profundi-
porque, afastados dos textos «canónicos», circulavam no entanto mais ou dade eram incomensuráveis» (Cap. XVIII). Henoch pergunta então ao
menos clandestinamente por diversos canais. Um caso extraordinário foi IlOjORafael que o acompanha onde é a morada das almas dos mortos
o do Apocalipse atribuído ao apóstolo João e que, após complicadas untes do julgamento. É o capítulo XXII, onde aparece a ideia dos
discussões, foi aceite na Bíblia cristã latina canónica, quando não difere lugares do além e das categorias de mortos que estão à espera. Contra-
substancialmente dos outros textos do mesmo género. riamente aos Babilónios e aos Hebreus que localizavam o arallü e o shéol
Desta literatura apócrifa judaico-cristã, o que me interessa são os tex- no mundo subterrâneo, mas como quase sempre fizeram os Egípcios, o
tos que, pelas versões latinas ou pela sua influência no cristianismo latino, uutor do livro parece situar esse além da espera num recanto distante da
actuaram sobre as representações do além da cristandade latina medieval. superficie da terra. «De lá fui para uni outro lugar, e ele mostrou-me a
Mais do que os evangelhos apócrifos, foram os relatos de visões ou de ocidente uma montanha grande e alta e rochedos duros. Havia neles qua-
viagens imaginárias no além com ou sem o título de apocalipse - quer tro cavidades muito profundas, muito largas e muito lisas, sendo três
dizer, de revelação - que tiveram um papel na génese do Purgatório. delas escuras e uma luminosa, e no meio estava uma fonte de água ...»
Não irei aqui indagar em que contexto histórico geral, e social em parti- Rafael explica a Henoch: «Estas cavidades são (feitas) para nelas se reu-
cular, eles foram elaborados e circularam. Não vou fazer uma análise nirem os filhos das almas dos mortos ... para os deixar lá morar até ao dia
sociológica e histórica propriamente dita senão em relação às épocas do seu julgamento e até ao momento que lhes foi fixado; e esse longo
em que irá nascer e se propagará a concepção nítida de purgatório, quer tempo (durará) até ao grande julgamento (que Ihes farão).» Henoch
dizer, os séculos XII e XIII. Antes destes, contento-me com referenciar olha: «Vi os espíritos dos filhos dos homens que estavam mortos, e a
heranças de ideias e de imagens. Nesta literatura apocalíptica, um elemen- V01. deles chegava ao céu e lamentava-se.» As quatro cavidades abrigam

48 49
quatro categorias de mortos classificados segundo a inocência ou a culpa também ao teu servo se depois da morte ou agora, quando cada um de
das respectivas almas e segundo os sofrimentos que suportaram ou não nós entrega a alma, seremos deixados em repouso até que chegue o dia em
sobre a terra. A primeira acolhe os mártires justos, é a cavidade clara, que ressuscitarás a criatura ou se em seguida (depois da morte) seremos
junto da fonte de água luminosa. A segunda recebe os outros justos castigados'".» É-lhe respondido que «aqueles que desprezaram o caminho
que ficam na sombra, mas que no julgamento fmal receberão as recom- do Altíssimo, os que desprezaram a sua lei ou odiaram aqueles que te-
pensas eternas. A terceira abriga os pecadores que não sofreram qualquer mem a Deus não entrarão nos habitáculos mas antes vaguearão e serão
castigo nem provação sobre a terra e que no julgamento serão condena- em seguida castigados, sofredores e tristes segundo sete "vias" diferen-
dos às penas eternas. Há por fim uma quarta categoria: a dos pecadores t08»31.A quinta destas «vias» consistirá na «visão dos outros (mortos)
que foram perseguidos cá em baixo e, em especial, os que foram assassi- que serão mantidos pelos anjos nos habitáculos onde reinará um grande
nados por outros pecadores. Esses serão menos castigados. !lilêncio»32.Reencontra-se aqui a ideia presente na quinta parte do Livro
Continuando a sua viagem, Henoch encontra mais uma vez o Inferno, de Henoch.
mas sob outro aspecto: «Então eu disse: "Porque é esta terra abençoada e Em compensação, há sete «ordens» (ordines) prometidas aos habitá-
está cheia de árvores enquanto esta garganta no meio (das montanhas) é culos da Salvação (da saúde e da tranquilidader' . Depois de terem sido
maldita?"» Uriel, que desta vez é o guia de Henoch, responde-lhe: «Este separadas dos seus corpos, estas almas «terão durante sete dias a liberda-
vale maldito é (destinado) aos malditos para toda a eternidade» (Cap. de de ver a realidade que lhes foi profetizada e depois serão reunidas nos
XXVII). Meusbabitáculosa". Só existem aqui, pois, dois grupos em tempo de es-
Encontramos pois no Livro de Henoch as imagens de um inferno pera; os que são castigados e os que são deixados em paz.
abismo ou vale estreito, de uma montanha terrestre como morada no O que é interessante é a evocação dos receptáculos do além chamados
intervalo entre a morte e o julgamento, de uma gradação das penas, habitationes ou habitacu/a. Concepção espacial que se encontra ainda re-
que só parcialmente dependem do mérito dos homens. forçada e alargada pela passagem que se segue. A «ordem» dos que res-
Sendo a obra composta de pedaços provenientes de diversas épocas, peitaram as vias do Altíssimo repousará segundo sete «ordens»
apresenta contradições principalmente a respeito do além. No capítulo diferentes. A quinta consistirá em «exultar ao ver que se retiraram do
XXII da primeira parte, as almas dos mártires justos gritam vingança (corpo) corruptível e que possuirão a herança que há-de vir, ao verem
enquanto na quinta parte todas as almas dos justos dormem um longo também o mundo "fechado" e cheio de sofrimento de onde foram liber-
sono veladas por anjos, à espera do julgamento final. Na segunda parte tados, e ao começarem a receber o universo cheio de espaço, felizes e
(O Livro das Parábolas), Henoch tem uma visão completamente diferente imortais» 35.
do lugar de espera: vê leitos para repouso dos justos na extremidade dos Assim se exprime esse sentimento de libertação espacial, essa preocu-
céus, e mesmo, parece, no céu, no meio dos anjos e ao lado do Messias pação com o espaço nas coisas do além que me parece fundamental no
(Cap. XXXV). Esta imagem da espera na posição de deitado encontrar- nascimento do Purgatório. O Purgatório será um habitáculo ou um con-
-se-á em certas prefigurações do Purgatório medieval, por exemplo a pro- Junto de habitáculos, um lugar de reclusão; mas também entre o Inferno e
pósito de Artur no Etna. Enfim, no capítulo XXXIX vêem-se as almas () Purgatório, entre o Purgatório e o Paraíso, o território cresce, o espaço
dos mortos intervir junto dos deuses a favor dos vivos: «Eles pedem, eles dilata-se. Dante saberá exprimi-lo maravilhosamente.
intercedem, eles rezam pelos filhos dos homens.» Esta ideia da reversibi- O quarto Livro de Esdras despertou a atenção dos antigos autores
lidade dos méritos no além demorará muito tempo a impor-se na Idade cristãos. É verdade que a primeira citação indubitável se encontra em
Média. Somente no fun desse período às almas do Purgatório será reco- Clemente de Alexandria (Stromata, III, 16), um dos «pais» do Purgató-
nhecido definitivamente este privilégio. rio, mas a passagem que acabo de citar foi objecto de um comentário de
O quarto Livro de Esdras também é feito de vários pedaços cosidos Santo Ambrósio no século IV.
uns aos outros provavelmente por um judeu zelote cerca do ano 120 da No seu tratado De bono mortis (Do bem da morte), Ambrósio quer
nossa era, quer dizer pelo fim do período do apocalipse judaico. Possuí- provar a imortalidade da alma e combater a pompa funerária dos Roma-
mos versões dele em sírio, árabe e arménio. A versão grega original per- nos. «A nossa alma, diz ele, não fica fechada no túmulo com o corpo ... É
deu-se. Vários manuscritos, dos quais os mais antigos remontam ao uma pura perda que os homens construam túmnlos sumptuosos como se
,
seculo IX, conservaram uma versao -1' atma, aque Ia que aqui. re fi29E
tro . s- eles fossem os receptáculos (receptacula) da alma e não apenas do cor-
dras pergunta ao Senhor: «Se em ti encontrei a graça, Senhor, mostra po.» E acrescenta: «As almas, essas, têm receptáculos lá em cima ".» Cita

50 51
então demoradamente o quarto Livro de Esdras e os seus habitacu/a que calipse de Pedro: são engolidos por um lago de pus e de sangue em
são, diz ele, a mesma coisa que as habitações (habitationes) de que falou o ebulição.
Senhor quando disse «na casa de meu pai há muitas moradas (mansio- Os temas são os da evocação tradicional dos infernos, da obscuridade
nes)» (João, XIV, 2). Pede desculpa por citar Esdras, que inclui no nú- (cap. XXI): «Vi um outro lugar, completamente escuro e era o lugar do
mero dos filósofos pagãos, mas pensa que isso impressionará talvez os castigo»; da omnipresença do fogo (cap. XXII): «E alguns estavam pen-
pagãos. Depois de se deter nos habitáculos das almas, e sempre citando durados pela língua, eram os caluniadores, e por baixo deles havia fogo
Esdras, retoma também a classificação das sete «ordens» de almas dos que flamejava e os torturava»; capo XXVII: «E outros homens e mulheres
justos. Misturando, por assim dizer, as «vias» e as «ordens», alude aos estavam em pé, com chamas até ao meio do corpo»; capo XXIX: «E à
habitáculos onde reina uma grande tranquilidade (in habitaculis suis cum frente deles havia homens e mulheres que mordiam a língua e tinham
magna tranquil/itate). Faz notar que Esdras referiu que as almas dos jus- fogo na boca. Eram as falsas testemunhas ...))
tos começam a entrar no espaço, na bem-aventurança e na imortali- O Apocalipse de Pedro apoia-se firmemente numa visão dualista e
dade37• E Ambrósio conclui este longo comentário à passagem do quarto compraz-se com a sua faceta infernal. Esta visão encontra-se em antigos
Livro de Esdras, congratulando-se por este ter terminado evocando as textos cristãos que influenciou como o De /aude martyrii (O Louvor do
almas dos justos que, ao fim de sete dias, irão para os seus habitáculos, Mártir) que foi atribuído a S. Cipriano e é provavelmente de Novaciano.
porque mais vale falar mais demoradamente da bem-aventurança dos ((O lugar cruel a que chamamos geena ressoa com um grande gemido de
justos do que da desgraça dos ímpios. queixumes, no meio de línguas de chamas, numa noite horrível de fumo
Os apocalipses cristãos situam-se ao mesmo tempo em continuidade e espesso vindo dos caminhos ardentes que emitem incêndios sempre reno-
em ruptura com os apocalipses judaicos. Em continuidade, porque se vados, onde uma compacta bola de fogo forma a porta de saída e espa-
inserem no mesmo contexto e porque, durante os dois primeiros séculos lha-se em diversas formas de tormentos ... Os que recusaram a voz do
da era cristã, é por vezes mais exacto falar de judaico-cristianismo do que Senhor e desprezaram as suas ordens são castigados com penas propor-
de duas religiões separadas. Mas também em ruptura porque a ausência cionais; e, segundo o mérito, Ele dá a salvação ou julga o crime ... Aqueles
ou a presença de Jesus, as atitudes opostas em relação ao Messias, a que sempre procuraram e conheceram Deus recebem o lugar do Cristo,
crescente diferencia~ão dos meios e das doutrinas acentuam progressiva- onde habita a Graça, onde a terra luxuriante está coberta de relva em
mente as diferenças 8. pastos floridos'" ...))
Aqui, eu opto pelo Apocalipse de Pedro, o mais antigo e, sem dúvida, Deste dualismo e destas cores sombrias emerge, no entanto, um apelo
o que conheceu maior êxito nos primeiros séculos, pelo Apocalipse de II justiça:
Esdras porque dele possuímos interessantes versões medievais, e pelo
Apocalipse de Paulo, enfim, porque foi o que teve maior influência du- Justa é a justiça de Deus
rante a Idade Média e constitui a referência fundamental do Purgatório Boa é a sua justipa.
de S. Patrick, texto decisivo, no fim do século XII, para o nascimento do
Purgatório e para Dante. Em contraste, o Apocalipse de Esdras, texto muito lido e citado na
O Apocalipse de Pedro foi sem dúvida composto no fim do século I ou Idade Média, não apresenta qualquer prefiguração do Purgatório mas
no princípio do século II na comunidade cristã de Alexandre .por ~m oferece-nos alguns dos seus elementos. Lá encontramos o fogo e a pon-
judeu convertido e influenciado ao mesmo tempo pelos apocahpses JU- te; o acesso é por degraus. Lá encontramos principalmente os grandes
daicos e pela escatologia popular grega.39 No século lI, ele figura no deste mundo, tal como os veremos no Purgatório nos textos da polémica
catálogo das obras canónicas adaptadas pela Igreja de Rom~, mas foi política que Dante evocará.
excluído do cânone fixado pelo concílio de Cartago em 397. Insiste sobre- O Apocalipse de Esdras apresenta-se em três versões: o Apocalipse de
tudo nos castigos infernais que retrata com grande vigor, valendo-se de Esdras propriamente dito, o Apocalipse de Sedrach e a Visão do Bem-
imagens vindas, na sua maioria, através do judaísmo e do helenis,mo, do -Aventurado Esdras. Esta última é a mais antiga; é a versão latina de um
masdeismo iraniano. A literatura medieval do além conservara a sua original hebreu e foi conservada em dois manuscritos, um dos séculos X-
classificação das penas do inferno segundo as categorias de pecados e XI, outro do século xrr".
de pecadores. Como, no século XIII, os usurários estão entre os primeiros Esdras, guiado por sete anjos infernais, desce ao Inferno por setenta
a beneficiar do Purgatório, contentar-me-ei com o seu exemplo no Apo- degraus. Vê então portas de fogo em frente das quais estão sentados dois

52 53
leões que deitam pela boca, pelas narinas e pelos olhos chamas potentís- É extraordinário que o Apocalipse de Paulo tenha conhecido um tal
simas. Vê passar homens vigorosos que atravessam as chamas sem que êxito na Idade Média, quando fora severamente condenado por Santo
elas lhes toquem. Os anjos explicam a Esdras que aqueles são os justos Agostinho. A razão, além da sua repugnância pelas ideias apocalípti-
cuja fama chegou ao céu. Outros vêm para passar as portas mas os cães cas, é, sem dúvida, o facto de a obra concretizar a segunda epístola de
devoram-nos e o fogo consome-os. Esdras pede ao Senhor que perdoe os S. Paulo aos Corintios, na qual, no entanto, se baseia. Com efeito, Paulo
pecadores, mas não é ouvido. Os anjos dizem-lhe que aqueles infelizes diz: «Conheço um homem em Cristo que, há catorze anos - seria no seu
renegaram Deus e pecaram com as suas mulheres ao domingo antes da corpo? não sei; seria fora do seu corpo? não sei; Deus sabe - ... esse
missa. Continuam a descer os degraus e ele vê homens de pé sofrendo homem foi transportado até ao terceiro céu. E esse homem - seria no
tormentos. Há uma marmita gigante cheia de um fogo sobre cujas laba- seu corpo? seria sem o seu corpo? não sei, Deus sabe -, sei que ele foi
redas os justos passam sem dificuldade enquanto os pecadores, empurra- transportado até ao Paraíso e que ouviu palavras inefáveis que nenhum
dos por diabos, caem dentro dela. Vê a seguir um rio de fogo com uma homem está autorizado a repetir» (lI Coríntios, XII, 2-4). De onde o co-
grande ponte de onde tombam os pecadores. Encontra Herodes sentado mentário de Agostinho: «Gente presunçosa, na sua grande insensatez,
num trono de fogo, cercado por conselheiros que estão de pé junto dele. inventou o Apocalipse de Paulo que, a justo título, a Igreja não aceita,
Apercebe-se de um grande caminho de fogo a oriente, para onde são e que está cheio nem sei de que fábulas. Dizem que é o relato do seu rapto
enviados muitos reis e príncipes deste mundo. Passa a seguir pelo Paraí- para o terceiro céu e a revelação das palavras inefáveis que ele escutou e
so, onde tudo é «Luz, alegria e salvação». Faz mais uma prece pelos que não é permitido a qualquer homem repetir. Poder-se-á tolerar a sua
condenados mas o Senhor diz-lhe: «Esdras, modelei o homem à minha audácia? então se ele disse ter escutado o que nenhum homem é autori-
imagem e ordenei-lhes que não pecassem e eles pecaram; é por isso que zado a repetir, repetiu-o ele, aquilo que não é permitido a qualquer ho-
são atormentados.» mem repetir? Quem são então os que ousam referi-Ias com tamanho
descaramento e indecoro't3»
Evoco aqui a redacção V. Após uma breve introdução em que se trata
Uma fonte: o Apocalipse de Paulo de dois infernos a que voltarei, S. Paulo alcança o Inferno superior, o
futuro Purgatório, do qual apenas diz que «lá viu as almas daqueles
De todos estes apocalipses aquele que teve maior influência na litera- que aguardavam a misericórdia de Deus».
tura medieval do além em geral, e do Purgatório em particular, foi o A parte mais longa do breve relato é dedicada à descrição das penas
Apocalipse de Paulo. É um dos textos mais tardios deste conjunto do Inferno e é dominada por duas preocupações: fornecer pormenores
apocalíptico, pois foi sem dúvida elaborado em grego pelos meados do mais precisos e identificar e classificar os condenados. S. Paulo vê árvo-
século III da era cristã, no Egipto. O Apocalipse de Paulo, de que existem res de fogo de onde pendem os pecadores e depois um fomo ardente com
versões em arménio, copta, grego, eslavo e sírio, conheceu oito redacções chamas de sete cores onde outros são torturados. Vê os sete castigos que
diferentes em latim. A mais antiga data talvez do fim do século IV, de as almas dos condenados ali suportam diariamente, sem contar as inúme-
qualquer modo do século VI ou mais tarde. É a mais longa. No século IX ras penas específicas suplementares: a fome, a sede, o frio, o calor, os
fizeram-se redacções curtas. Delas, a chamada redacção IV, obterá o vermes, o mau cheiro e o fumo. Vê (conservo a palavra latina vidit que
maior êxito. Desta, conhecem-se trinta e sete manuscritos. Entre as novi- surge constantemente e exprime o próprio estilo do apocalipse, onde se
dades que ela introduz na obra encontra-se a imagem da ponte que vem revela o que se viu e que é normalmente invisível) a roda de fogo onde
de Gregório, o Grande, e a roda de fogo que vem do Apocalipse de Pedra ardem ao mesmo tempo mil almas. Vê um rio horrível com a ponte onde
e dos oráculos sibilinos. De uma maneira geral é esta versão que na Baixa passam todas as almas e onde as dos condenados estão mergulhadas até
Idade Média será traduzida para diversas línguas vulgares. A versão V 110 joelho, ou até ao umbigo, ou aos lábios, ou às sobrancelhas. Vê um
é a mais interessante para a história do Purgatório, pois é a primeira lugar tenebroso onde os usurários (homens e mulheres) comem as pró-
a acolher a distinção entre um inferno superior e um inferno infe- prias línguas. Vê um lugar onde, todas de negro, as raparigas que peca-
rior, introduzida por Santo Agostinho, retomada por Gregório, o ram contra a castidade e mataram os filhos são oferecidas a dragões e a
Grande, e que, entre os séculos VI e XII se tornou a base da localização serpentes. Vê mulheres e homens nus, os perseguidores de viúvas e de
por cima do Inferno daquilo que será, no fim do século XII, o Purga- órfãos, num lugar gelado onde metade deles arde e a outra metade ge-
tóri042. IH. Finalmente (abrevio), as almas dos condenados, ao verem passar a

54 55
alma de um justo levada pelo arcanjo Miguel para o Paraíso, suplicam- Esta viagem ao mesmo tempo longa e sumária aos antigos «além» não
-lhe que interceda por elas junto do Senhor. O arcanjo convida-as, junta- era uma procura das origens. Os fenómenos históricos não saem do pas-
mente com Paulo e os anjos que o acompanham, a suplicar a Deus, sado como uma criança do ventre da mãe.
chorando, que lhes conceda um refrigério (refrigerium). O imenso coro Nas suas heranças, as sociedades e as épocas fazem opções. Pretendi
de prantos que se desencadeia faz descer do Céu o Filho de Deus que simplesmente explicar a opção feita pelo cristianismo latino em dois pe-
recorda a sua Paixão e os pecados delas. Mas deixa-se comover pelos ríodos, entre os séculos III e VII primeiro, mas sem ir até ao fim da lógica
rogos de S. Miguel e de S. Paulo e concede-lhes o repouso (requies ) des- do sistema; entre meados dos séculos XII e XIII depois, de maneira deci-
de sábado à noite até segunda-feira de manhã (ab hora nona sabbati usque siva, a favor de um além intermédio entre o Inferno e o Paraíso durante o
in prima secunde ferie). O autor do Apocalipse faz o elogio do domingo. período compreendido entre a morte individual e o julgamento geral.
Paulo pergunta ao anjo quantas penas' do Inferno existem e o anjo res- Um olhar sobre o passado proporciona um duplo esclarecimento.
ponde-lhe: cento e quarenta e quatro mil; e acrescenta que, se desde a Permite descobrir certos elementos, certas imagens que os cristãos esco-
criação do mundo cem homens com sete línguas de ferro cada um tives- lherão para os incluir no seu Purgatório; com eles, este adquirirá certos
sem falado sem parar, nem sequer teriam ainda chegado ao fim da enu- traços, certas cores que se compreendem melhor - se bem que inseridos
meração das penas do Inferno. O autor da Visão (Vision} convida os num sistema novo e tendo mudado de sentido - quando se sabe de onde,
ouvintes desta revelação a entoarem o Veni creator. provavelmente, vêm. Por outro lado, esses esboços antigos de crenças e de
Tal é a estrutura, numa versão do século XII, da visão do além que imagens, que poderiam transformar-se numa espécie de purgatórios, for-
conheceu maior êxito na Idade Média, antes da existência do Purgatório. necem informações sobre as condições históricas e lógicas que podem
Nela se encontra uma descrição das penas do Inferno que reaparecerá em conduzir à noção de Purgatório e que podem também abortar nestas
grande parte no Purgatório, quando este tiver sido definido como um evoluções. A noção de justiça e de responsabilidade subjacente a todas
inferno temporário. Nela se sente, sobretudo pela distinção entre os dois estas tentativas não chega a desenvolver-se - em relação às estruturas
infernos e pela ideia de um repouso sabático no inferno'", a necessidade sociais e mentais - numa escala de castigos que só a metempsicose parece
de mitigação das penas no além, de uma justiça mais discreta e mais ter então satisfeito. Os deuses reservavam para outros problemas - por
clemente. exemplo, o dos sacrificios - a subtileza que não lhes faltava. Debruçar-se
Não vou deter-me no maniqueísmo e na gnose que, apesar das com- sobre a sorte dos mais ou menos bons, dos mais ou menos maus, teria
plexas conexões que tiveram com o cristianismo, me parecem ser religiões sido um luxo numa época em que o essencial era proceder a triagens
e filosofias muito diferentes. Só os contactos entre religiões e povos que grosseiras, em que o cambiante pertencia frequentemente ao domínio
existiram no Médio Oriente dos primeiros séculos da era cristã obrigam, do supérfluo. Tanto mais que os conceitos de tempo de que dispunham
parece-me, à evocação das doutrinas que puderam ter alguma influência essas sociedades - mesmo que, como demonstrou Pierre Vidal-Naquet, se
no cristianismo grego em larga medida, e eventualmente latino. tenha exagerado a ideia de um tempo circular e de um regresso eterno -
Se na gnose se encontram concepções do Inferno como prisão, noite, permitiam mal situar esse tempo incerto entre a morte e o destino eterno
c/oaca, deserto, a tendência para a identificação do mundo com o Inferno do homem. E também, como inserir um terceiro além entre o céu e a
limita as semelhanças com o cristianismo onde, mesmo nos melhores terra, entendida como o mundo subterrâneo dos infernos, entre aquilo
tempos do desprezo do mundo (contemptus mundi) no Ocidente medie- que os Gregos chamavam o celeste e o ctónico? Em todo o caso, não
val, essa identificação não existiu. Também não me parece que a divisão nesta terra, para sempre abandonada pelo imaginário da felicidade eter-
do Inferno por cinco religiões sobrepostas, perfilhada pelos mandeístas e na desde o fim da idade de ouro.
pelos maniqueístas, tenha ligações com a geografia cristã do além. Resta
a obsessão das trevas que pôde estender-se tanto num sentido infernal
como num sentido místico positivo. Mas essa constitui um aspecto tão Os judeus descobrem um além intermédio
geral do sagrado que a aproximação entre maniqueístas, gnósticos e cris-
tãos à volta desta concepção não me parece significativa. Quanto à an- Nesta reviravolta da era cristã, rica em mudanças, parece-me ter sido
gústia do tempo, encarada como um mal essencial que faz do tempo do decisiva para o desenvolvimento da ideia de purgatório a evolução do
inferno uma encarnação aterradora do tempo genuíno, creio aue ela afas- pensamento religioso judaico. Encontramo-Ia nos textos rabínicos dos
ta do cristianismo tanto os maniqueístas como os gnósticos" . dois primeiros séculos da era cristã.

56 57
Manifesta-se primeiro por uma maior precisão da geografia do além. tende para a misericórdia, e é desses que fala David (Salmo CXVI, 1) ao
Quanto ao fundo - na maioria dos textos - não há grandes modificações. afirmar que Deus escuta e pronuncia em relação a eles todo este trecho ...
Depois da morte, as almas vão sempre ou para um lugar intermédio, o oecadores israelítas e estrangeiros que pecaram no seu corpo, punidos com
shéol, ou directamente para o lugar do castigo eterno, a geena, ou de a geena durante doze meses e depois aniquilados ...
recompensas, também eternas, o Eden. Os céus são essencialmente a mo-
rada de Deus, mas certos rabinos situam neles também a morada das O segundo é um tratado sobre os tribunais (Sanhedrin). Diz mais ou
almas dos justos. Neste caso, elas estão no sétimo céu, no mais alto menos a mesma coisa:
dos sete firmamentos. Mas interrogamo-nos sobre as dimensões do além
e sobre a sua localização em relação à terra. O shéol é sempre subterrâneo Os da escola de Sammay dizem: há três grupos, um para a vida do século,
e escuro, é o conjunto das covas e dos túmulos, o mundo dos mortos e da o outro para a vergonha e o desprezo eternos; são os ímpios perfeitos, dos
morte. quais os casos menos graves descem à geena para lá serem punidos e voltam
A geena situa-se sob o abismo ou debaixo da terra que lhe serve de a subir curados, segundo Zacarias, XIII, 9; é deles que se diz (I Samuel, Il, 6):
Deus dá a morte e vivifica. Os hilelitas dizem (Êxodo, XXXIV, 6) que Deus
tampão. É possível ir até lá pelo fundo do mar, e cavando o deserto, ou
abunda em misericórdia; tende para a misericórdia e deles David diz todo o
por trás. de sombrias montanhas. Comunica com a terra por um pequeno
trecho do Salmo CXVI, I.
buraco por onde passa o fogo (da geena) que a aquece. Alguns imaginam Os pecadores de Israel, culpados no seu corpo, e os pecadores das nações
esse buraco próximo de Jerusalém, no vale de Hinnom, para onde dão as do século, culpados no seu corpo, descem à geena para lá serem punidos
respectivas portas - três ou sete - entre duas palmeiras. durante doze meses, depois as suas almas são destruídas e os seus corpos
É imensa, sessenta vezes maior do que o Éden, e para alguns é mesmo queimados e a geena vomita-os, tomam-se cinza e o vento dispersa-os sob
incomensurável; pois, feita para receber duzentas a trezentas miríades de os pés dos justos (Malaquias, 4, 3, 3, 21).
ímpios, aumenta todos os dias para poder acolher novos hóspedes.
O jardim do Éden é o da criação; não existe diferença entre o paraíso Enfim, o rabino Aqiba, um dos maiores doutores da Michna que
terrestre de Adão e o paraíso celeste dos justos. Fica em frente ou ao lado morreu ao ser torturado após o revés da revolta de Bar Kochba (135),
da geena, muito próximo para uns, mais distante para outros, de qual- ensinava a mesma doutrina.
quer modo separado dela por um fosso intransponível. Alguns atribuem- «Dizia também que cinco coisas duram doze meses; o julgamento da
-lhe uma extensão sessenta vezes maior do que a do mundo, mas outros geração do dilúvio, o julgamento de Job, o julgamento dos Egípcios, o
declaram-no incomensurável. Tem portas, geralmente três. Certos rabi- julgamento de Gog e Magog no futuro, e o julgamento dos ímpios na
nos foram lá, mas Alexandre tentou em vão transpor uma das suas por- geena, segundo o que é dito (Isaías, LXVI, 23): de mês a mês'".»
tas. Entre os justos que lá se encontram está Abraão que recebe os seus Existe, pois, uma categoria intermédia composta por homens nem
fílhos'". totalmente bons nem totalmente maus, que sofrerão um castigo tempo-
Uma outra concepção, tripartida, do destino no além é a que aparece rário após a morte e em seguida irão para o Éden. Mas esta expiação far-
principalmente em certas escolas rabínicas. Dois tratados do período en- -se-á depois do Julgamento Final e terá lugar não num sítio especial mas
tre a destruição do segundo Templo (70) e a revolta de Bar. Kochba (132- na geena. Esta concepção levará, todavia, a diferenciar na geena uma
-135) atestam em especial este novo ensinamento. parte superior onde acontecerão estes castigos temporários.
O primeiro é um tratado sobre o começo do ano (Rãs Ha-Sana). Nele Há, pois, uma tendência para acentuar a «espacialização» do além e
se lê: para criar uma categoria intermédia de condenados temporários. Pode-
remos pensar que, assim como no século XII o aparecimento de uma nova
Ensina-se, segundo a escola de Sammay: no julgamento haverá três espécie de intelectuais, os mestres das escolas urbanas inventores da
grupos: o dos justos perfeitos, o dos ímpios perfeitos e o dos intermédios. escolástica, foi um dos elementos decisivos para o nascimento do
Os justos perfeitos são logo lançados e confirmados para a vida do século; Purgatório propriamente dito, também nos dois primeiros séculos da
os ímpios perfeitos são logo lançados e confirmados para a geena, segundo era cristã e ligado à estrutura sociale à evolução dos quadros mentais das
o que é dito (Daniel, XII, 2). Quanto aos intermédios, descem à geena, ficam comunidades judaicas, o desenvolvimento dos ensinamentos dos rabinos,
enc1ausurados e voltam a subir, segundo o que é dito (Zacarias, XIII, 9 e I, da exegese rabínica, levou os judeus à beira da concepção do purga-
Samuel, 11, 6). Mas os hilelitas dizem: aquele que abunda em misericórdia, t6ri048•

58 59
o Purgatório cristão estará contido em embrião na Sagrada Escritura? Novo Testamento corresponde um trecho do Antigo Testamento que a
anuncia.
O que se passa então no Novo Testamento quanto a isto? Três textos
A doutrina cristã relativa ao Purgatório só foi aperfeiçoada - na sua
desempenharam um papel especial.
forma católica, visto que os protestantes a recusaram - no século XVI,
O primeiro está no Evangelho de Mateus (XII, 31-32-):
pelo concílio de Trento. Depois deste, os doutrinadores católicos do Pur-
gatório, Bellarmin e Suarez, puseram em relevo vários textos da Escritu-
ra. Referir-me-ei aqui apenas àqueles que desempenharam efectivamente Digo-vos que todo o pecado e blasfémia serão remidos aos homens, mas a
um papel no nascimento do Purgatório. blasfémia contra o Espírito Santo não será remida. E se alguém disser uma
palavra contra o Filho do Homem isso ser-Ihe-á remido; mas se falar contra o
Apenas um texto do Antigo Testamento, tirado do Livro 11 dos Ma-
Espírito Santo, isso não lhe será remido, nem neste mundo nem no outro.
cabeus - que os protestantes não consideram canónico - foi aproveitado
pela teologia cristã antiga e medieval, de Santo Agostinho a S. Tomás de
Aquino, como prova da existência de uma crença no Purgatório. Nesse É capital. Indirectamente - mas a exegese, pondo em evidência pres-
texto, após uma batalha onde os combatentes judeus que nela foram supostos, foi habitual no cristianismo e parece-me ter fundamento lógico
mortos teriam cometido um misterioso delito, Judas Macabeu ordena . supõe e portanto afirma a possibilidade de remissão dos pecados no
que se reze por eles. outro mundo.
Um segundo texto é a história49 do pobre Lázaro e do rico mau, que
nos conta o Evangelho de Lucas:
Assim, tendo bendito a conduta do Senhor, juiz imparcial que torna
manifestas as coisas escondidas, todos se puseram a orar para pedir que o
pecado cometido fosse inteiramente apagado, depois o valoroso Judas Havia um homem rico que se vestia de púrpura e de linho fino e todos os
exortou a multidão a permanecer pura de todo o pecado, atentando no que dias oferecia belas refeições. E um pobre, chamado Lázaro, jazia perto do seu
acontecera por causa do pecado daqueles que tinham tombado. Depois, tendo portal, todo coberto de feridas. Bem queria ele poder matar a fome com o que
feito uma colecta de cerca de dois mil dracmas, mandou-os para Jerusalém caía da mesa do rico. Ainda por cima, os próprios cães vinham lamber-lhe as
para que fosse oferecido um sacrificio pelo pecado, agindo muito bem e feridas. Ora aconteceu o pobre morrer e ser levado pelos anjos para o seio de
com nobreza com o pensamento na ressurreição. Como não esperava que Abraão. O rico também morreu e sepultaram-no.
os soldados caídos tivessem de ressuscitar, era supérfluo e tolo rezar pelos No Hades, sofrendo torturas, ele ergue os olhos e vê ao longe Abraão, e
mortos e, se pensava que uma belíssima recompensa estava reservada àqueles Lázaro no seu seio. Então gritou: «Pai Abraão, tem piedade de mim e manda
que se vão em graça, esse era um pensamento santo e piedoso. Eis porque ele Lázaro molhar em água a ponta do seu dedo para me refrescar a língua, pois
mandou fazer aquele sacrificio expiatório pelos mortos, a fim de que ficassem estou aflito nestas chamas.» Mas Abraão diz: «Meu filho, lembra-te de que
livres do seu pecado (11 Macabeus, XII, 41-46). recebeste os teus bens durante a vida, e Lázaro os seus males. Agora aqui ele é
confortado e tu és atormentado. E não é tudo: entre nós e vós foi cavado um
grande abismo, para que aqueles que quiserem passar daí para aqui não
Tanto os especialistas do judaísmo antigo como os exegetas da Bíblia possam, nem também daqui para aí» (Lucas, XVI, 19-26).
não estão de acordo sobre a interpretação deste texto dificil que faz alu-
são a crenças e a práticas que não são mencionadas em qualquer outro Texto este que, no ponto de vista do além, precisa três pontos: o In-
documento. Não me vou meter nessas discussões. Para o meu objectivo, lemo (Hades) e o lugar de espera dos justos (seio de Abraão) são vizi-
o essencial é que, segundo os Pais da Igreja, os cristãos da Idade Média nhos, uma vez que se pode ver de um para o outro, mas estão separados
viram neste texto a afirmação de dois elementos fundamentais do futuro ror um abismo intransponível; no Inferno reina aquela sede caracteristica
Purgatório: a possibilidade de um resgate dos pecados depois da morte e li que Mircea Eliade chamou «a sede do morto» e que encontraremos na
a eficácia das orações dos vivos pelos mortos remíveis. Eu acrescentarei: base da ideia de rejrigerium50; enfim, o lugar de espera dos justos é de-
texto necessário para os cristãos da Idade Média porque, para eles, toda Idgnado como o seio de Abraão. O seio de Abraão foi a primeira encar-
a realidade e, por maioria de razão, toda a verdade de fé, devia ter uma nação cristã do I urgatório.
base dupla nas Escrituras, conforme a doutrina do simbolismo tipo lógico O último texto foi o que suscitou mais comentários. É uma passagem
que descobre na Bíblia uma estrutura em eco: a cada verdade do da primeira epístola de S. Paulo aos Coríntios:

60 61
Na verdade, como alicerce ninguém pode colocar outro senão aquele que com o carácter ambivalente do fogo indo-europeu bem posto em evidên-
lá se encontra, isto é, Jesus Cristo. Pois se sobre este alicerce se construir com cia por C.-M. Edsman.
ouro, com prata, com pedras preciosas, com madeira, com feno, com palha, a Também do Novo Testamento foi tirado um episódio que desempe-
obra de cada um tornar-se-á evidente. O Dia dá-la-á a conhecer, pois ele deve nhou um papel importante se não na história do Purgatório, pelo menos
revelar-se no fogo, e é esse fogo que porá à prova a qualidade da obra de cada indirectamente na concepção geral do além cristão: é a descida do Cristo
um. Se a obrá construída sobre o alicerce resistir, o seu autor receberá uma
aos Infernos. Baseia-se ela em três textos do Novo Testamento. Primeiro,
recompensa; se a sua obra for consumida, ele sofrerá a sua perda; quanto a
ele, será salvo, mas como através do fogo (I Coríntios, lU, 11-15).
no Evangelho de Mateus (XII, 40). «Com efeito, tal como Jonas esteve no
ventre do monstro marinho durante três dias e três noites, assim o Filho
do Homem estará no seio da terra durante três dias e três noites.» Os
Actos dos Apóstolos (11, 31) reportam o acontecimento ao passado:
Texto muito difícil, é evidente, mas que foi essencial para a génese «Ele (David) viu de antemão e anunciou a ressurreição do Cristo que,
do Purgatório na Idade Média - que quase ~odemos seguir exclusiva- na verdade, não foi abandonado no Hades e cuja carne não se corrom-
mente através da exegese deste texto de Paulo 1. Porém, rapidamente se peu.» Enfim, na Epístola aos Romanos (X, 7) Paulo, ao opor a justiça
destacou de maneira geral a ideia essencial de que a sorte no além é nascida da fé à justiça nascida da antiga lei, faz falar assim a justiça
diferente segundo a qualidade de cada homem, e de que existe uma nascida da fé: «Não digas no teu coração: Quem subirá ao céu? ouve:
certa proporcionalidade entre os méritos e os pecados por um lado, para lá fazer descer o Cristo, ou então: Quem descerá ao abismo? ouve:
as recompensas e os castigos por outro, e que a prova decisiva para o para fazer subir o Cristo de entre os mortos.»
destino último de cada um terá lugar no além. Mas o momento dessa
prova parece situar-se fora do Julgamento Final. O pensamento de Pau-
lo está aqui muito perto do judaísmo. O outro elemento do texto de A descida do Cristo aos Infernos
Paulo que terá uma influência considerável é a evocação do fogo. A
expressão como através do fogo legitimará certas interpretações metafó- Este episódio - para além, evidentemente, do seu sentido propriamen-
ricas do fogo de Paulo mas no todo esta passagem autenticará a crença te cristão: prova da divindade do Cristo e promessa da ressurreição que
num fogo real. há-de vir - situa-se numa velha tradição oriental bem estudada por Jo-
O papel do fogo toma a encontrar-se aqui: o Purgatório, antes de ser seph Kro1l52. É o tema do combate de Deus-sol com as trevas, no qual o
considerado um lugar foi primeiro concebido como um fogo, dificil de reino onde o sol deve combater as forças hostis é equiparado ao mundo
localizar, mas que concentrou em si a doutrina de onde iria sair o Purga- dos mortos. Este tema conhecerá grande êxito na liturgia medieval: nas
tório e contribuiu muito para esse nascimento. É pois necessário dizer fôrmulas de exorcismo, nos hinos, nas laudes, nos tropos, e finalmente
mais uma palavra a esse respeito. Desde a época da patrística, opiniões nos jogos dramáticos do fim da Idade Média. Mas é através dos esclare-
diversas interrogam-se sobre a natureza deste fogo: é punitivo, purifica- cimentos dados por um evangelho apócrifo, o Evangelho de Nicodemo,
dor ou probatório? A teologia católica moderna distingue um fogo do que o episódio se vulgariza na Idade Média. O Cristo, quando da sua
Inferno, punitivo, um fogo do Purgatório, expiatório e purificador e descida aos infernos, tira de lá uma parte daqueles que lá estavam enclau-
um fogo de julgamento, probatório. É uma racionalização tardia. Na surados, os justos não baptizados por serem anteriores à sua vinda à
Idade Média todos estes fogos se confundem mais ou menos: primeiro lerra, quer dizer, essencialmente os patriarcas e os profetas. Mas aqueles
o fogo do Purgatório é irmão do do Inferno, um irmão que não está que ele lá deixou continuarão enclausurados até ao fim dos tempos. Por-
destinado a ser eterno mas que não é por isso menos ardente durante o que selou o Inferno para sempre com sete selos. Na perspectiva do Pur-
seu período de actividade; depois, como o fogo do julgamento se situa no aatório, este episódio tem uma importância tripla: mostra que existe,
julgamento individual logo a seguir à morte, fogo do Purgatório e fogo mesmo que só excepcionalmente, uma possibilidade de suavizar a situa-
do julgamento serão praticamente confundidos a maioria das vezes. Os çlo de certos homens depois da morte, mas afasta o Inferno dessa possi-
teólogos insistem principalmente neste ou naquele aspecto do Purgatório, bilidade, visto que foi fechado até ao fim dos tempos; enfim.cria um novo
os pregadores medievais fizeram o mesmo, e os simples fiéis tiveram de, à lugar do além, os limbos, cujo aparecimento será mais ou menos contem-
sua maneira, assumir a mesma atitude. O fogo do Purgatório foi ao mes- porâneo do do Purgatório, no seio da grande remodelação geográfica do
mo tempo um castigo, uma purificação e um ordálio, o que está conforme além no século XII.

62 63
Orações pelos mortos (ou princípio do VI) para encontrar uma inscrição que fale da redenção da
alma de um defunto. Trata-se de uma inscrição galo-romana de Briord,
o mais importante é que os cristãos adquiriram, parece que muito cujo epitáfio contém a fórmula pro redemptionem animae suae", Por ou-
cedo, o hábito de rezar pelos seus mortos. Em relação à Antiguidade esta tro lado, nestas inscrições e nestas preces, não se trata de um lugar de
atitude era uma novidade. Segundo uma fórmula feliz de Salomon Rei- redenção ou de espera que não o tradicional segundo o Evangelho, o
nach, «os pagãos pediam aos mortos, enquanto os cristãos pedem pelos «seio de Abraão», Mas é essencial para a constituição do terreno onde
mortoss-", É claro que, como os fenómenos de crenças e mentalidades se desenvolverá mais tarde a crença no Purgatório que os vivos se preo-
não aparecem subitamente, a intervenção dos vivos a favor dos seus mor- cupem com a sorte dos mortos, que para além da sepultura mantenham
tos que sofrem no além encontra-se em certos meios pagãos, sobretudo ao com eles laços que não sejam os da invocação da protecção dos defuntos
nível popular. Tal foi o caso do orfismo: mas da utilidade das preces feitas em sua intenção.

Orfeu diz: Os homens ... praticam acpões sagradas para obter a salvapâo dos
antepassados impios; tu, que tens poder sobre eles ... tu liberta-Ios das grandes Um lugar de consolo: o «refrígeruaa»
penas e da imensa torturà",
Alguns destes textos evocam, enfim, um lugar que, embora muito pró-
Estas práticas desenvolveram-se cerca da era cristã e mais uma vez se ximo do seio de Abraão, nem sempre se confunde com ele: o refrigerium.
trata de um fenómeno de época, particularmente sensível no Egipto, local Várias inscrições funerárias contêm as palavras refrigerium ou
de encontro por excelência das nações e das religiões. Diodoro da Sicília, refrigerare, conforto, confortar, sozinhas ou associadas à pax (paz): in
que viajou para lá cerca de 50 a.C., ficou espantado com os costumes pace et refrigerium, esto in refrigerio (que ele esteja no refrigerium), in
fúnebres dos Egípcios: «No momento em que a caixa que contém o mor- refrigerio anima tua (que a tua alma esteja no refri1erium), deus refrigeret
to é colocada sobre a barca, os sobreviventes invocam os deuses dos in- spiritum tuum (que Deus conforte o teu espíritor' .
fernos e suplicam-lhes que o admitam na morada reservada aos homens Um excelente estudo filológico de Christine Mohrmann definiu bem a
piedosos. A multidão acrescenta a isto as suas aclamações acompanhadas evolução semântica de refrigerium do latim clássico para o latim cristão.
de votos ~or que o defunto goze no Hades da vida eterna, em companhia «Ao lado destes sentidos um tanto vagos e vacilantes, refrigerare e
dos bons 5.» refrigerium assumiram, no idioma dos cristãos, um sentido técnico bem
Deve-se, sem dúvida, recolocar neste contexto a passagem do Segundo definido, a saber, o da bem-aventurança celestial. Este refrigerium encon-
Livro dos Macabeus feito por um judeu de Alexandria durante o meio Ira-se já em Tertuliano, onde designa tanto a felicidade provisória das
século que precedeu a viagem de Diodoro ", Testemunha ele da ausência almas que aguardam, segundo uma concepção pessoal de Tertuliano, o
do hábito de rezar pelos mortos na época de Judas Macabeu (cerca de regresso do Cristo ao seio de Abraão, como a felicidade definitiva no
170 a.C.), cujas inovações surpeendem, e da realidade desta prática entre Paraiso, de que gozam, depois da morte, os mártires, e que é prometida
certos judeus um século depois. Devemos, sem dúvida, ligar a crenças deste 1I0S eleitos após o veredicto divino último ... Entre os autores cristãos
género o estranho costume de que fala S. Paulo em I Coríntios (XV, 29-30) posteriores, refrigerium exprime de uma maneira Jeral as alegrias do
onde'afírma a realidade da ressurreição: «Se assim não fosse, o que ganha- ulém-túmulo, prometidas por Deus aos seus eleitos .»
riam aqueles que se fazem baptizar em vez dos mortos? Se os mortos não Na pré-história do Purgatório o refrigerium só ocupa um lugar espe-
ressuscitam mesmo, porquê então fazerem-se baptizar em vez deles?» Este cial por causa da concepção pessoal de Tertuliano a que alude Christine
baptismo para os mortos não era o baptismo cristão mas o baptismo que Mohrmann. Com efeito, o refrigerium designa, como se viu, um estado de
recebiam os prosélitos gregos que se convertessem ao judaísmo. felicidade quase paradisíaca e não representa um lugar. Mas Tertuliano
O enorme processo epigráfico e litúrgico sobre as orações pelos mor- imaginou uma variedade especial de refrigerium, o refrigerium interim,
tos foi muitas vezes explorado para provar a antiguidade da crença cristã conforto intermédio destinado aos mortos que, entre a morte individual
no Purgatório:". Estas interpretações parecem-me abusivas. As graças c () julgamento definitivo, são julgados por Deus dignos de um tratamen-
que se suplica a Deus sejam concedidas aos mortos invocam essencial- 10 de espera privilegiado.
mente a bem-aventurança paradisíaca, em todo o caso um estado defini- O africano Tertuliano (que morreu depois de 220) escrevera um pe-
do pela paz (pax) e pela luz (/ux). É preciso esperar pelo fim do século V queno tratado hoje perdido onde sustentava que «toda a alma estava

64 65
fechada nos Infernos até ao dia (do julgamento) do Senhor» (De anima, resumiu assim as suas objecções: «Segundo esta teoria ... o que teria sido
LV, 5). Era o retomar da concepção do Antigo Testamento sobre o shéo/. deterrninante na escolha e elaboração dos temas da arte sepulcral primi-
Estes infernos são subterrâneos e foi lá que Cristo desceu durante três tiva seriam as incertezas que alimentariam as primeiras gerações cristãs
dias (De anima, LIV, 4). sobre a sorte imediata das almas dos seus parentes mortos, obrigadas a
Na sua obra Contra Marcion e no seu tratado Sobre a Monogamia, esperar a ressurreição final na solução provisória e incerta do Hades sub-
Tertuliano precisou o seu pensamento sobre o além e exprimiu a sua terrâneo. Não há ninguém que não veja o que existe de inverosímil em
concepção do refrigerium. Pretendia Marcion que não só os mártires semelhante pretensão, desde que a iluminemos com o optimismo e a ale-
mas também os simples justos eram admitidos no céu, no paraíso, logo gria que constituem uma das tendências mais fundamentais da arte das
após a morte. Tertuliano, baseando-se na história do pobre Lázaro e do catacumbas'".»
rico mau, pensa que a residência dos justos enquanto esperam a ressur- Claro que se deve desculpar a frase «não há ninguém que não veja o
reição não é o céu mas um refrigerium interim, um consolo intermédio, o que existe de inverosimil..», que exprime a ingenuidade do especialista ao
seio de Abraão: «Esse lugar, quero dizer o seio de Abraão, ainda que não ulargar ao conjunto dos seus leitores a posição supostamente comum a
seja celestial, mas superior aos infernos, oferece às almas dos justos um um pequeno grupo de peritos; e que, sobretudo, substitui por uma afir-
refrigério intermédio até que a consumação das coisas suscite a ressurrei- mação de evidência gratuita a demonstração desejável.
ção geral e a concretização da recompensa ...» (Adversus Marcionem, IV, Mas se procurarmos entendê-Ia, parece-me que L. de Bruyne tem ra-
34)61. Até lá, o seio de Abraão será «o receptáculo temporário das almas I.tIoem dois pontos importantes: a análise da maioria das obras de arte
fiéis62». funerária em que se baseia Alfred Stuiber não permite que se afirme uma
De facto, o pensamento de Tertuliano é ainda muito dualista. Para ele crença incerta num refrigerium interim porque, como pensa com toda a
existem dois destinos opostos, um de castigo expresso pelos termos de sua competência L. de Bruyne, a arte das catacumbas exprime mais cer-
tormento (tormentum), suplício (supplicium) e tortura (cruciatus), o ou- tezas do que inquietações, e sem dúvida também porque - conforme se
tro de recompensa, designada pela palavra refrigério (refrigerium ), Dois reencontrará na Idade Média em relação ao Purgatório - a representação
textos precisam mesmo que cada um destes destinos é eterno'". figurada de uma ideia subtil como o refrigerium interim foi muito difícil
Em compensação, Tertuliano insiste muito nas oferendas pelos defun- de materializar. Mas em compensação esse «optimismo», sem dúvida re-
tos, feitas no aniversário da sua morte, e sublinha que uma prática pie- forçado, se é que não imposto por autoridades eclesiásticas, já então mui-
dosa pode basear-se na tradição e na fé sem ter base nas Escrituras, o que to autoritárias, não deve disfarçar a incerteza muito provavelmente
será (sob reserva de Mateus, XII, 32, e de Paulo, 1 Coríntios III; 10-15), ••limentada pela maioria dos cristãos sobre a sorte no além, antes do
mais ou menos o caso do Purgatório: «As oblações pelos defuntos, faze- julgamento e da ressurreição. Incerteza que tinha, pelo menos, um duplo
mo-Ias no dia do aniversário da morte ... Se procurares nas Escrituras Iundamento: um, doutrinal, porque as Escrituras e a teologia cristãs es-
uma lei formal destas práticas e de outras semelhantes, não a encontra- tuvam então bem longe de possuirem concepções claras neste domínio; o
rás. É a tradição que as assegura, o costume que as confirma e a fé que as nutro, existencialista, porque, perante o optimismo militante, existia entre
cumpre (De corona militis, 111,2_3)64. IIH cristãos, como entre os pagãos da Antiguidade tardia, essa «ansiedade
A inovação do Tertuliano, se é que alguma existe, no que respeita à profunda que Dodds tão bem analisou67.
pré-história do Purgatório, é o facto de os justos passarem por um refri-
gério intermédio antes de conhecerem o refrigério eterno. Mas esse lugar
de refrigério não é verdadeiramente novo, é o seio de Abraão. Entre o A primeira imaginação de um Purgatório: a visão de Perpétua
refrigerium interim de Tertuliano e o Purgatório existe uma diferença
não só de natureza - aqui uma espera repousante, ali uma provação pu- Resta dizer que a ideia e a imagem do refrigério inspiraram - no meio
rificadora porque punitiva e expiatória - mas também de duração: o 0111que vivia Tertuliano - o mais antigo texto onde se perfila o imaginário
refrigerium acolhe as almas até à ressurreição, o Purgatório apenas até do Purgatório.
ao fim da expiação. Trata-se de um texto extraordinário pela natureza e pelo conteúdo: é a
O refrigerium interim tem feito correr muita tinta. O debate mais es- Paixâo de Perpétua e de Felícidade68. Quando da perseguição dos cristãos
clarecedor foi o que opôs o historiador da arte paleocristã, Alfred Stui- .fricanos por Sétimo Severo em 203, um grupo de cinco cristãos, duas
ber, a diversos críticos dos quais o principal é L. de Bruyne'". Este mulheres, Perpétua e Felicidade, e três homens, Saturo, Saturnino e Re-

66 67
vocato foram condenados à morte próximo de Cartago. Durante a sua A palavra importante é refrigerantem. É mais do que evidente que ela
permanência na prisão, nos dias que precederam o martírio, Perpétua, nos reconduz à noção de refrigerium.
ajudada por Saturo, escreveu ou conseguiu transmitir oralmente as suas Este texto excepcional não é absolutamente novo nem está completa-
recordações a outros cristãos. Um destes redigiu o texto e acrescentou-lhe mente isolado no começo do século III. Uma obra grega apócrifa que se
um epílogo em que narra a morte dos mártires. Os críticos mais severos Julga datar do fim do século lI, os Actos de Paulo e de Tecla7l, fala de
não duvidam da autenticidade do texto quanto ao essencial da forma e do preces por uma jovem morta. A rainha pagã Trifena pede nesse documen-
conteúdo. As circunstâncias da elaboração deste opúsculo, a simplicidade to à filha adoptiva, a virgem cristã Tecla, que reze pela sua filha carnal
e a sinceridade do seu tom, fazem dele um dos mais como ventes testemu- Falconila, que morrera. Tecla pede a Deus a salvação eterna para Palco-
nhos da literatura cristã e da literatura simplesmente. No decurso da sua nila.
detenção, Perpétua teve um sonho e viu o seu pequeno irmão Dinócrates Tertuliano, em quem por vezes se quis ver - o que é certamente falso -
morto. o redactor da Paixão de Perpétua e de Felicidade mas que vivia em Car-
tugo na época do seu martírio, conhecia os Actos de Paulo e de Tecla, que
Alguns dias depois, quando estávamos todos em oração, chegou-me cita na sua obra De baptismo (XVII, 5), e afirma noutra obra que uma
subitamente aos ouvidos uma voz, e o nome de Dinócrates escapou-me. viúva cristã deve rezar pelo seu esposo morto e pedir para ele o refrige-
Fiquei estupefacta porque nunca pensara nele antes desse momento; r/um interim, o refrigério intermédio 72.
penalizada, recordei a sua morte. Logo compreendi que era digna de pedir
Não se deve exagerar nem minimizar a importância da Paixão de Per-
qualquer coisa para ele e que devia fazâ-lo. Comecei uma longa prece,
"flua e de Felicidade para a pré-história do Purgatório.
dirigindo ao Senhor os meus lamentos. Na noite seguinte, eis o que me
apareceu: vejo Dinócrates a sair de um lugar de trevas onde se encontrava Não se trata aqui propriamente de Purgatório, e nenhuma das ima-
com muitos outros, todo em brasa e cheio de sede, sujo e andrajoso, tendo Mensnem dos mortos destas duas visões estarão presentes no Purgatório
na face a chaga que tinha quando morreu. Dinócrates era o meu próprio medieval. O jardim onde se encontra Dinócrates é quase paradisíaco, pois
irmão; morreu de doença com a idade de sete anos, com o rosto devorado 1140 é um vale, nem uma planície, nem uma montanha. A sede e a inca-
por um cancro maligno e a sua morte revoltou toda a gente. Eu rezara por pacidade de que sofre são referidas como um mal mais psicológico do que
ele: e entre mim e ele a distância era tão grande que não podíamos juntar-nos. moral. Trata-se de tormento psicofisiológico, labor, e não tormento-pu-
No local onde se encontrava Dinócrates havia um recipiente cheio de água, nição, poena, como em todos os textos respeitantes às prefigurações do
com a parte de cima alta de mais para o tamanho de uma criança. E Purgatório e ao Purgatório em si mesmo. Aqui não existe julgamento
Dinócrates punha-se na ponta dos pés como se quisesse beber. Eu sofria nem castigo.
por ver que havia água no recipiente, mas que ele não poderia beber por A partir de Santo Agostinho, este texto será no entanto utilizado e
causa da sua altura. Acordei e compreendi que o meu irmão estava a ser
eomentado na perspectiva do pensamento que conduzirá ao Purgatório.
posto à prova; mas não duvidei de que poderia socorrê-Io na sua provação.
Rezei por ele todos os dias até irmos para a prisão do Palácio imperial; com Truta-se primeiro de um lugar que não é o shéol, nem o Hades nem o seio
efeito, tínhamos de ir combater nos jogos oferecidos pelo Palácio pelo de Abraão. Nesse lugar um ser que, apesar da sua pouca idade devia ser
aniversário do César Geta. E eu rezava por ele noite e dia, lamentando-me pecador, pois a chaga, o cancro (vulnus, facie cancerata) que tem no
e chorando para ser ouvida." mito quando da primeira visão e que desaparece na segunda, não pode
IIr, segundo o sistema cristão, senão o final visível do pecado, sofre de
Alguns dias depois Perpétua tem uma nova visão: lide, sofrimento característico dos castigados no além 73. E salvo graças às
preces de alguém que é digno de obter o seu perdão. Primeiro pelos laços
No dia em que nos puseram a ferros, eis o que me apareceu: vi o local que oarnais: Perpétua é a irmã carnal; mas também e sobretudo pelos seus
já vira antes, e Dinócrates com o corpo limpo, bem vestido e confortado méritos: mártir num futuro próximo, alcançou o direito de intercessão
(refrigerantem] e no sítio da chaga vi uma cicatriz; e o recipiente que eu vira pelos seus parentes junto de Deus?'.
estava agora à altura do umbigo da criança; e a água corria sem parar. E por Não vou brincar aos fazedores de patronos numa altura em que a
cima do recipiente havia uma taça de ouro cheia de água. Dinócrates I,reja católica revê tão severamente o seu calendário hagiográfico. Mas
aproximou-se e começou a beber, e a taça não ficava vazia. Depois, • Impressionante que o Purgatório já balbucie neste texto admirável, sob
dessedentado, começou a brincar alegremente com a água, como fazem as 111 auspícios duma santa tão comovente.
crianças. Acordei e compreendi então que ele estava livre do seu tormento.I''

68 69
16E. NORDEN, P. Virgilius Maro, AEneis Buch VI, 4" ed., Darmstadt, 1957, pp.
NOTAS
207-349. Sobre as reacções cristãs ver P. COURCELLE, «Les Pêres de l'Église devant
lcs enfers virgiliens» in Archives d'histoire doctrinale e/ /ittéraire du Moyen Âge, 22,
1955.
11 Hinc exaudiri gemitus, e/ saeva sonare

verbere, tam stridor ferri tractae catenae


constitit AEneas, strepituque exterritus haesit (versos 557-9).
18Ahi quanto son diverse quelle foei
dall'infernali! ché quivi per canti
s'entra, e là giu per lamenti feroce (Purgatório, XII, 112-114).
19 .•. camposque nitentis

desuper ostentat ... (Eneida, VI, 677-678).


20Trad. A. Bellessort. Col. Budé, pp. 191-192.
21Cf. E. EBELING, Tod und Leben nach den Vorstellungen der Babylonier, Berlim-
-Leipzig, 1931. Sobre o valor «sagrado», ambíguo, das trevas entre os antigos gregos,
1 Estes excertos são tirados do Chandogya Upanishad e são citados e interpretados ver Maja REEMDA SVILAR, Denn das Dunkel ist heilig. Ein Streifzug duch die
por Jean VARENNE, «Le jugement des morts dans l'Inde» in Le Jugement des morts l'syche der archaischen Griechen, Berna-Francfort, 1976.
(Sources orientales, IV), Paris, 1961, pp. 225-226. 22Cf. J.-M. AYNARD, «Le Jugement des morts chez les Assyro-Babyloniens» in
2 lbid. pp. 215-216. Ver também L. SCHERMANN, «Eine Art Visionãrer Hõltens- IA! Jugement des morts (Soursces orientales, IV), pp. 83-102.

chílderung aus dem indischen Mittelalter. Nebst einigen Bemerkungen über die ãlteren 23 Cf. P. DHORME, «Le Séjour des mots chez les Babyloniens et les Hêbreux» in
Vorstellungen der Inder von einer strafenden Vergeltung nach dem Tode» in Revue Biblique, 1907, pp. 59-78.
Festschrift Konrad HOFFMANN Romanische Forschungen, 5, 1890, pp. 539-582. 24Os meandros do shéol encontram-se em II Samuel, XXII, 6; Job, XVIII, 710; o
3 Cf. J. D. C. PAVRY, The Zoroastrian doctrine of a future life, Nova Iorque, 1926; lema encontra-se também entre os Egípcios. Cf. M. ELIADE, Images et Symboles.
J. DUCHESNE-GUILLEMIN, La Reiigion de l'Iran ancien, Paris, 1962. Essai sur le symbolisme magico-religieux, Paris, 1952, pp. 124, 152.
4 Ver. o artigo «Bridge» de G. A. Frank KNIGHT em «ERE», t. 2. 25Além da leitura do Antigo Testamento consultei J. PEDERSEN, Israel, its life
S J. DUCHESNE-GUILLEMIN, La Religion de l'Iran ancien, p. 335. und culture, I-lI, Londres-Copenhague, 1926, p. 460 e ss.; R. MARTIN-ACHARD, De
6 J. YOYOITE, «Le Jugemnet des morts dans I'«Egypte ancien» in Le Jugement ItI mort à Ia Réssurrection d'aprês l'Ancien Testament, Neuchâte1-Paris, 1956; N. J.
des morts, p. 69. . TROMP, Primitive Conceptions of Death and the Other World in the Old Testament
1 E. HORNUNG, Alãtãgyptische Hõllenvorstellungen. Anhandlungen der SChS1S- (Bíblia e Orientalia, 21), Roma, 1969. Este último estudo explica o Antigo Testamento
chen Akademie der Wissenschaften zu Leipzig, Philologish-historische Klasse, Fig. 59, pelos textos ugariticos encontrados em Ras Shamra.
26 Cf. ZNADEE, Death as an Enemy according to Ancient Egyptian Conceptions,
T. 3, Berlim, 1968.
8 Ibid.; pp. 9-10. . J.eyde, 1960.
9 E. A. W. BUDGE, The Egyptian Heaven and Hell, t. III, Londres, 1906, introd, p. 27 E ainda Job, XII, 22; XV, 22; XVII, 13; XVIII, 18; XIX, 8; XXVIII, 3;
XII, citado e traduzido por C. M. EDSMAN, Le Baptême de feu, p. 73. XXXVIII, 16-17.
\O Ver, por exemplo, Victor BÉRARD, Les Navigations d'Ulysse, IV, Circé et les 28 Sigo esta versão na tradução e o comentário de François MARTIN Le Livre
morts, Paris" 1929, pp. 281-372, que põe demasiado empenho na procura de lugares d'lténocn traduit sur le texte éthiopien, Paris, 1906.
geográficos reais. Este realismo geográfico mascara por vezes o essencial que é a com- 29 The Fourth Book of Esra. The latin version. Ed. R. L. Bensly com uma introdu-
binação de uma estrutura do imaginário com uma tradição cultural. Pois não se pre- <"110 de M. R. James, Cambridge, 1895.
tendeu repartir as evocações do quente e do frio nas visões do Purgatório entre autores 30 Si inveni gratiam coram te, domine, demonstra et hoc servo tuo, si post mortem vel

mediterrânicos e autores nórdicos? Na origem está um binário frio-quente como se viu, nunc quando reddimus unusquisque animam suam, si conservati conservabimur in requie,
e a sua origem é provavelmente indo-europeia. Não é razão para nele ver o reflexo do donec veniant tempora iIla in quibus incipies creaturam renovare aut amodo crueiamur
clima do Tibete ou do Cáucaso. (VII, 75).
li V. GOLDSHMIDT, La Re/igion de Platon, Paris, 1949, em especial o capitulo 31 ... in habitationes non ingredientur, sed vagantes errent amodo in cruciamentis,

«Châtiments et rêcornpenses», pp. 75-84. dolentes semper et tristes per septem vias (VII, 79-80).
12A. BOULANGER, Orphée. Rapports de l'orphisme et du çhristianisme, Paris, 1925. 12 Quinta via, videntes aliorum habitacula ab angelis conservari cum silentio mango

\3 Ibid., p. 128.
I VII, 82).
14PÍNDARO, t. I, Col. G. Budé, Les Belles Lettres, trad. Aimé Puech, Paris, 1922, 33 Habitacula sanita tis et securitatis (VII, 121).

34 Septem diebus erit libertas earum ut videant septem diebus qui predicti sunt ser-
p.45.
15Brooks, OTIS, Virgil. A Study in Civilized Poetry, Oxford, 1964. mimes, et postea conjugabuntur in habitaculis suis (VII, 199-201).

70 71
3S Quintus ordo, exultantes quomodo eorruptibile effugerint nunc etfuturum quomo- 49 Emprego este termo e não parábola intencionalmente, seguindo nisto Pierre le
do hereditatem possidebunt, adhue autem videntes et (labore ) plenum, a quo liberati sunt, Man~eur que explica no século XII que não se trata de parábola mas de um exemplum.
et spatiosum incipient recipere, fruniscentes et immortales (VII, 96). 5 M. ELIADE, Traité d'histoire des religions, Paris, 1953, pp. 175-177.
se Animarum autem superiora esse habitacula (De bono mortis, X, 44, MIGNE, 51 Os comentários patrísticos e medievais deste texto foram excelentemente anali-
Patrologie latine, t. 14, col. 560). sados em dois estudos. A. LANDGRAF, «I Cor. III, 10-17, hei den lateinischen Vã-
37 Eo quod spatium, inquit (Esdras ) incipiunt recipere fruentes et immortales (Ibid., tem und in der Frühscholastik» in Biblica, 5, 1924, pp. 140-172 e J. GNILKA, 1st 1
col. 562). Kor, 3, 10-15 ein Schriftzeugnis für das Fegfeuer? Eine exegetisch-historische Untersu-
38 Sobre o apocalipse judaico-cristão ver J. DANIÉLOU, Théologie du judéo- chung, Dusseldorf, 1955. C.-D. EDSMAN, Ignis Divinus, citado p. 19, nO2.
-christianisme, I, Paris-Tournai, 1958, pp. 131-164. 52 J. KROLL, Gott und H61le. Der Mythos vom Descensuskampfe, Leipzig-Berlin,
39 Existe um texto etíope e um texto grego. Foram objecto de uma excelente tra- 1932. W. BIEDER, Die Vorstel/ung von der Hõllenfahrt Jesu Christi, Zurich, 1949.
dução para alemão: E. HENNECKE-W. SCHNEEMELCHER Neutestamentliche 53 S. REINACH, «De l'origine des priêres pour les morts» in Revue des Études
Apokryphen in deutscher Ubersetzung, 3° vol., lI, Tübingen, 1964, pp. 468-483. luives, 41 (1900), p. 164.
40 A. HARNACK, «Die Petrusapokalypse in der alten abendlãndischen Kirche» in 54 Orphicorum Fragmenta, ed. O. Kern, Berlim, 1922, p. 245, citado por J. NTE-
Texte und Untersuchungen zur Gesehiehte der altehristliehen Literatur, XIII, 1895, pp. D1KA, L'Évoeation de l'au-delà dons Ia priêre pour les morts. Étude de patristique et de
71-73. litur~ie Iatines (IV- VIII' siêcles) Louvain-Paris, 1971, p. 11.
41 Ver Apoealypsis Esdrae. Apoealypsis Sedraeh. Visio Beati Esdrae, ed. O. Wahl, 5 DIODORO DE SICILIA, 1,91, citado por S. Reinach, p. 169.
Leyde, 1977. 56 Ver supra, p. 64.

42 A redacção longa foi publicada por M. R. JAMES in Apoerypha anecdota 57 Por exemplo, H. LECLERCQ, artigo «Défunts», in Dictionnaire d'Histoire et
(Texts and Studies, 11, 3, 1893, pp. 11-42). A redacção curta mais conhecida, a redac- d'Archéologie eec/ésiastiques, t. IV, col. 427-456 e artigo «Purgatoire», ibid., t. XIVj2,
ção IV, foi publicada por H. BRANDES in Visio S. Pauli: Ein Beitrag zur Visionlitte- 1948, col. 1978-1981. F. BRACHA, De existentia Purgatorii in antiquitate christiana,
ratur, mit einem deutschen und zwei lateinischen Texten, Halle, 1885, pp. 75-80. Foi Cracóvia, 1946.
publicada uma versão em francês antigo por P. MEYER, «La descente de saint Paul 58 Dictionnaire d'Histoire et d'Archéologie ecclésiastiques, t. XIVj2, col. 1980-1981.
en Enfer» in Romania, XXIV (1895), pp. 365-375. As outras versões curtas foram 59 lbid., t. IV, 447.
publicadas por Theodore SILVERSTEIN, Visio Saneti Pau/i. The History ofthe Apo- 60 C. MOHRMANN, Locus refrigerii in B. BOTTE-C. MOHRMANN,
ealypse in Latin together with nine Texts, Londres, 1935, com uma notável introdução l.Urdinaire de Ia messe. Texte critique, traduction et études, Paris-Louvain, 1953, p.
fundamental. 127. De C. MOHRMANN também, «Locus refrigerii, lucis et pacis» in Questions
43 AGOSTINHO, Traetatus in Joannem, XCVIII, 8. fltur~iques et paroissiales, 39 (1958), pp. 196-214.
44 A ideia do repouso sabático foi tirada dos judeus, entre os quais fazia parte das I «Eam itaque regionem, sinum dico Abrahae, etsi non caelestem, sub/imiorem tamen
crenças populares. Cf. Israel LEVI, «Le repos sabbatique des ãmes damnêes», in Revue inferis, interim refrigerium praebere animabus iustorum, donec consummatio rerum res-
des Études juives l892, pp. I a 13. Ver também a introdução de Theodore SIL VERS- surrectionem omnium plenitudine mereedis expungat ...»
TEIN, Visio Sane ti Pau/i, pp. 79-81: «The sunday Respite». 62 « ... Temporale a/iquos animarum fide/ium receptaculum ...»
45 Li sobretudo as obras de H.-Ch. PUECH, «La Ténêbre mystique chez le pseudo- 63 «Herodis tormenta et Iohannis refrigeria: mercedem ... sive tormenti sive refrigerii
-Denys l'Aréopagite et dans Ia tradition patristique» (1938), retomadas em En quête de i Adv, Mare., 34), per sententiam aeternam tam sup/icii quam refrigerii (De anima,
Ia Gnose, I, Paris, 1978, pp. 119-141 e «Le Prince des Ténêbres en son royaume» in XXXIII, 11); supp/icia iam illic et refrigeria (De anima, LVIII, 1); metu aetemi suppli-
Études carmélitaines, 1948, pp. 136-174 (volume consagrado a Satanás). Sobre a an- di et spe aetemi refrigerii (Apologeticum, XLIX, 2); aut cruciatui destinari aut refrige-
gústia do tempo do Inferno ver En quête de Ia Gnose, I, p. 247 e ss. rio, utroque sempiterno. Cf. H. FINE, Die Terminologie der Jenseitsvorstellungen bis
46 Ver J. BONSIRVEN, Esehatologie rabbinique d'aprés les Targums, Talmuds, Tenullian, Bona, 1958.
Midrasehs. Les éléments communs avec le Nouveau Testament, Roma, 1910. 64 Trad. de J. GOUBERT e L. CRISTIANI: Les plus beaux textes sur l'au-delà,
47 J. BONSIRVEN, Textes Rabbiniques des deux premiers siêcles chrétiens pour Paris, 1950, p. 183 e ss.
servir à l'intelligence du Nouveau Testament, Roma, 1955, pp. 272 e 524. René Gutman 65 A. STUIBER, Refrigerium interim. Die Vorstellungen vom Zwischenzustand UM
faz-me notar que «o tratado talmúdico, "Principes de Rabbi Nathan", afirma que as di.' frühchristliche Grabekunst, Bona, 1957. De BRUYNE, «Refrigerium interim» in
almas dos ímpios erram pelo mundo, murmurando sem descanso. Um anjo está numa Rivista di archeologia cristiana, 34, 1958, p. 87-118 e ibid., 35, 1959, pp. 183-186.
extremidade do mundo e outro na outra extremidade e juntos lançam as almas para a 66 De BRUYNE, 1959, p. 183.
frente e para trás. Os rabinos imaginavam um verdadeiro Purgatório aéreo onde as 67 E. R. DODDS, Pagan and Christian in an Age of Anxiety, Cambridge, 1965.
almas pecadoras eram lançadas e reboladas em turbilhões fortíssimos que tinham por 68 Passio sanctarum Perpetuae et Fe/icitatis, ed. C. van Beek, Nimêgue, 1936. O
missão purificá-Ias e permitir-Ihes o acesso ao céu». nrtigo de F. J. DOLGER «Antike Parallelen zum leidenden Dinocrates in der Passio
48 Sobre o contexto destes textos rabínicos ver o livro clássico de P. VOLZ, l'erpetuae» in Antike und Christentum, 2, 1930, 1974, pp. 1-40, sublinhando um clima
Die Eschatologie der jüdisches Gemeinde im neutestamentlicher Zeitalter, Tübingen, Kcral à volta deste texto, não acrescenta grande coisa ao seu significado que continua a
1934. Hcr profundamente original. E. R. OODDS, Pagan and Christian in an Age of Anxiety,

72 73
pp. 47-53, faz um comentário interessante à Passio Perpetuae, mas numa perspectiva
diferente da da prefiguração do Purgatório.
11- OS PAIS DO PURGATÓRIO
69 Ed. Van Beek, p. 20.
70 lbid., p. 22.

71 L. VOUAUX, Les Apocryphes du Nouveau Testament, Les Actes de Paul et ses


lettres apocryphes, Paris, 1913.
72 Enimvero et pro anima eius orat, et refrigerium interim adpostulat ei (De mono-
gamia, X, 4).
73 Sobre «a sede do morto» ver Mircea ELIADE, Traité d'Histoire des religions,
Paris, 1953, pp. 175-177. Não acredito numa correlação «climática» entre sede e fogo
por um lado e as concepções «asiáticas» do Inferno e «temperatura diminuída» (frio,
gelo, e pântanos gelados e as concepções «nórdicas» por outro lado. E. R. DODDS
(Pagan and Christian in an Age of Anxiety, pp. 47-53) faz notar a justo título que a
piscina da Paixão de Perpétua evoca o baptismo. O problema de saber se Dinócrates
era ou não baptizado interessou os autores cristãos antigos, especialmente Santo Agos-
tinho. Em Alexandria: dois gregos «fundadores» do Purgatório
74H .-1. M AR' ROU, citando P.-A. FEVRIER
' (cl,e culte des martyrs en Afrique et
ses plus anciens monuments», in Corsi di cultura sull'arte ravennate e bizantina, Rave-
na, 1970, p. 199), chamou a atenção, pouco antes da sua morte, para uma inscrição
A verdadeira história do Purgatório começa por um paradoxo, um
africana, interessante para a noção de refrigerium: «Um detalhe curioso - e novo _ duplo paradoxo.
encontra-se nos túmulos de Tipasa: é a presença destas cisternas e poços e a impor- Aqueles a quem se chamou, a justo título, os «fundadores» da doutri-
tância atribuída à água. Esta não surge apenas como um dos elementos da refeição na do Purgatório são os teólogos gregos. Mas se as suas concepções tive-
mas também aspergida sobre o túmulo; podemos perguntar-nos se ela não será neces- rarn repercussões no cristianismo grego, este não chegou à ideia de
sária ao refrigerium de que falam os textos. Sabe-se, com efeito que, a partir da sua Purgatório propriamente dito e o Purgatório foi mesmo, na Idade Mé-
primeira acepção, este termo refrigerium é uma das imagens mais dominantes das que dia, um dos principais pomos de discórdia entre cristãos gregos e cristãos
serviram aos Antigos, pagãos primeiro e depois cristãos (Actos, III; 20) para evocar a
felicidade de além-túmulo. A palavra, por extensão, designava essa refeição fúnebre
latinos. E a teoria de onde sai o esboço do Purgatório que esses teólogos
que um simbolismo mais ou menos directo relacionava com a felicidade esperada. Em llregos elaboraram é francamente herética aos olhos do cristianismo, não
presença de um monumento como o nosso, é lícito imaginar que um lençol de água MÓ latino mas também grego. A doutrina do Purgatório estreia-se, assim,
estendido por cima de um cenário de animais marinhos permitia entender de alguma Nobreuma ironia da história.
maneira concreta essa noção de «refrigério», refrigerium, ligada ao banquete fúnebre.» Não me ocuparei neste livro das concepções gregas do além, a não ser
(<<Uma inscrição cristã de Tipasa e o refrigerium» in Antiquités africaines, t. 14, 1979, para as ver oporem-se às opiniões dos latinos a respeito do Purgatório em
p.269).
1274, no segundo concílio de Lyon, e depois, já fora dos limites cronoló-
gicos deste estudo, no concílio de Florença, em 1438-1439. A divergência
entre as duas Igrejas, entre os dois mundos, anunciada desde a Antigui-
dade tardia, faz da história do Purgatório uma questão ocidental e latina.
Mas importa, no início da génese do Purgatório, caracterizar os dois
«inventores» do Purgatório, Clemente de Alexandria (que morreu antes
de 215) e Origenes (que morreu em 253/254), os dois maiores represen-
tantes da teologia cristã em Alexandria, num momento em que o grande
porto é «o pólo da cultura cristã» (H.-J. Marrou) e, em especial, o cadi-
nho de uma certa fusão entre helenismo e cristianismo.
Os fundamentos da sua doutrina vêm, por um lado, da herança de
certas correntes filosóficas e religiosas gregas pagãs e, por outro, de
uma reflexão original sobre a Bíblia e sobre a escatologia judaico-
-cristã'. Na Grécia antiga os dois teólogos deviam ter a ideia de que os
castigos infligidos pelos deuses não são punições mas meios de educação e

74 75
de salvação, um processo de purificação. Para Platão o castigo é uma palavra e disse a todos: "Por mim, baptizo-vos com água, mas vem um
benesse dos deuses/. Clemente e Orígenes daí extraem a ideia de que mais forte do que eu ...; esse baptizar-vos-á no Espírito Santo e pelo fo-
«punir» e «educar» são sinónimos ' e de que todo o castigo de Deus serve go."» O que Orígenes (na homilia XXIV do seu Comentário sobre Lucas)
para a salvação do homem". comenta assim: «Assim como João, perto do Jordão, de entre os que
A ideia platónica foi vulgarizada pelo orfismo e veiculada pelo pita- vinham para se baptizar, acolhia os que confessavam os seus vícios e os
gorismo, e reencontra-se a noção das penas infernais como purificação no seus pecados e expulsava os outros dizendo-Ihes: "Raça de víboras, etc.",
quarto livro de Eneida, de Virgílio (versos 741-42, 745-47): também o Senhor Jesus Cristo estará no rio de fogo (in igneo flumine)
junto de uma lança de fogo (flammea rompea) para baptizar naquele rio
... Outros, no fundo de um grande abismo, todos aqueles que depois da morte devem ir para o paraíso mas lhes falta
lavam as suas nódoas; outros depuram-se pelo fogo. a purgação (purgatione indiget ), e fazê-Ias passar para os lugares deseja-
... Só passados longos dias o correr dos tempos apagou dos; mas aqueles que não tiverem o sinal do primeiro baptismo, ele não os
os antigos estigmas de vergonha e deixa entregue à sua baptizará no banho de fogo. Com efeito, é preciso ter-se já sido baptizado
pureza o princípio etéreo da alma...5. na água e no espírito para que, ao chegar ao rio de fogo, se possa mostrar
que se conservam os sinais dos banhos de água e de espírito e que se
Da Bíblia, Clemente e Orígenes retêm, do Antigo Testamento, o fogo merece receber então o baptismo de fogo em Jesus Cristo.»
como instrumento divino; e do Novo a concepção evangélica do baptis- Enfim, Orígenes comenta assim, na sua terceira homilia sobre o Salmo
mo pelo fogo e a ideia de Paulo de uma purificação depois da morte. XXXVI que evoca a sorte do ímpio, vítima da cólera de Deus, e ado
A primeira concepção vem da interpretação de textos do Antigo Tes- justo, beneficiário da sua protecção, a passagem da epístola de Paulo
tamento por vezes muito solicitados. A visão platónica que Clemente e aos Coríntios, onde este evoca a purificação final pelo fogo: «Penso
Orígenes têm do cristianismo leva-os a posições tranquilizadoras. Para que devemos todos, necessariamente, passar por esse fogo. Sejamos Pau-
Clemente, por exemplo, Deus não pode ser vingativo: «Deus não exerce lo ou Pedro, passamos por esse fogo ... como diante do Mar Vermelho, se
vingança, pois a vingança é pagar o mal com o mal, e Ele só castiga tendo somos os Egípcios, seremos tragados por esse rio ou esse lago de fogo
em vista o bem» (Stromata, VII, 26). Esta concepção leva os dois teólogos porque terão encontrado em nós pecados ... ou então entraremos tam-
a interpretar num sentido lenitivo passagens do Antigo Testamento onde bém no rio de fogo, mas assim como, para os Hebreus, a água formou
Deus se serve explicitamente do fogo como instrumento da sua cólera. uma parede à direita e à esquerda, assim o fogo formará uma parede para
Por exemplo, quando faz devorar pelo fogo os filhos de Aarão: «os filhos nós... e nós seguiremos a coluna de fogo e a coluna de fumo.»
de Aarão, Nadab e Abihu, tomaram cada um o seu turíbulo. Deitaram- Clemente de Alexandria é o primeiro a distinguir duas categorias de
-lhes fogo, sobre o qual puseram incenso e apresentaram a Jeová um fogo pecadores e duas categorias de castigos nesta vída e na vida futura. Nesta
irregular que ele não lhes havia pedido. De Jeová saiu então uma chama vida, para os pecadores que podem corrigir-se, o castigo é «educativo»
que os devorou, e eles morreram na presença de Jeová» (Levítico, X, 1-2). (ôtôaO'1CaÀtlCóç), para os incorrigíveis é «punitivo» (lCOÀCXO ..ttlCÓÇ)6.Na
Ou ainda esta passagem do Deuteronómio, XXXII, 22: «Sim, um fogo outra vída haverá dois fogos: para os incorrigíveis um fogo «devorador
brotou da minha cólera, e ele queimará até às profundezas do shéol: ele e destruidor», para os outros um fogo que «santifica», que não «consome
devorará a terra e o que ela produz ...» É notório que no seu Comen;ário como o fogo da forja», mas um fogo «prudente», «inteligente»
sobre o Levítico, Orígenes vê nestes textos a imagem da solicitude de Deus (q>PÓVtIlOV) «que penetra a alma e passa através dela'».
que castiga o homem para bem deste. Orígenes interpreta também as As concepções de Orígenes são as mais precisas e vão mais longe. Para
passagens do Antigo Testamento onde Deus se apresenta a si próprio ele, como vimos, todos os homens têm de passar pelo fogo, mesmo os
como um fogo que não é a expressão de um Deus de cólera mas de um justos, porque não há homem absolutamente puro. Pelo simples facto
Deus que se faz a si mesmo purificador, ao devorar e ao consumir. Assim, da sua união com o corpo, toda a alma está manchada. Na homilia
na homilia XVI do seu Comentário sobre Jeremias onde comenta Jere- VIII do seu Comentário sobre o Levítico, Orígenes baseia-se num versícu-
mias, XV, 14: «pois o meu furor ateou um fogo que vai arder sobre 10 do Livro de Job, XIV, 4: «Mas então quem separará o puro do
vós» ou no seu tratado Contra Celso, IV, 13. impuro?» Porém, para os justos, esta passagem pelo fogo é um baptis-
A segunda concepção teve origem numa reflexão sobre o texto de mo. Funde e transforma o chumbo que pesava sobre a alma em ouro
Lucas, 111, 16, respeitante à prédica de João Baptista: «João tomou a puro".

76 77
Para Orígenes como para Clemente, há duas espécies de pecadores ou, No apocalipse judaico o texto mais significativo sobre o fogo do fim
mais exactamente, há os justos que apenas estão carregados das máculas do mundo era a Visão do Velho no Sonho de Daniel (VII, 9-12):
inerentes à natureza humana (pÚ1tOçque se traduzirá em latim por sordes)
e os pecadores propriamente ditos, carregados de pecados, em princípio o seu trono eram chamas de fogo
mortais (xpôç 9wcx'tou cXJ.lcxp'tícx,
ou peccata em latim). com rodas de fogo ardente.
A concepção particular de Orígenes - que faz dele um herético - é que Nascido à sua frente,
não existe pecador tão mau, tão inveterado, tão incorrigível em princípio, corria um rio de fogo
que finalmente não se purifique completamente e não vá para o Paraíso.
Também o Inferno é temporário. Como bem disse G. Anrich: «Orígenes a besta foi morta, o seu corpo destruído e entregue à chama do fogo.
concebe o Inferno como um Purgatório.» Com efeito, Orígenes leva até
ao limite a teoria da purificação, KcXaCXpcrtÇ,que lhe vem de Platão, dos Mas Orígenes tem concepções muito pessoais do tempo escatológico
órficos e dos pitagóricos. Como não pode admitir a ideia grega pagã da do fim do mundo. Por um lado, pensa que os justos, atravessando ins-
metempsicose, de reencarnações sucessivas demasiado incompatíveis com tantaneamente o fogo, alcançarão o paraíso a partir do oitavo dia; no dia
o cristianismo, crê numa variante, que julga poder ser cristã, dessa teoria; do julgamento, em compensação, o fogo dos pecadores queimá-los-á para
a noção de um progresso contínuo, de um aperfeiçoamento ininterrupto além do último dia, e eventualmente durante os séculos dos séculos - o que
da alma depois da morte, que lhe permite, por mais pecadora que tenha não significa a eternidade, visto que, cedo ou tarde, todos irão para o
sido à partida, regressar à eterna contemplação de Deus: é a apocatástase Paraíso, mas uma longa sequência de períodos (In Lucam, homilia 24).
(cX1tOKcx'tcXcncxO"lç). Noutra obra Orígenes precisa, segundo uma curiosa aritmética, que, as-
Às duas categorias de defuntos, aos pecadores simplesmente macula- sim como a vida no mundo dura uma semana antes do oitavo dia, tam-
dos e aos pecadores propriamente ditos, aplicam-se dois tipos diferentes bém a puríficação dos pecadores no fogo de combustão durará uma ou
de fogos purificadores. Para os primeiros, é o espírito de julgamento, que duas semanas, quer dizer, muito tempo, e que só no começo da terceira
apenas atravessam e que só dura um instante. Os segundos, em compen- semana eles serão purificados (homilia VIII do Comentário sobre o
sação, ficam durante mais ou menos tempo no espírito de combustão. Este Levitico). Este cálculo é simbólico visto que, como se verá, no século
castigo é muito penoso mas não é incompatível com o optimismo de XIII os cálculos respeitantes ao Purgatório serão feitos a partir de perío-
Orígenes, pois quanto mais severo é um castigo mais está assegurada a dos de tempo reais. Mas um cômputo do Purgatório está já a esboçar-se.
salvação; há em Orígenes um sentimento do valor redentor do sofrimento Sobre a sorte dos mortos, das almas, entre a morte individual e o
que só no fim, no século xv, a Idade Média reencontrará. Julgamento Final, Orígenes é muito vago. Afirma que os justos vão para
Para Clemente de Alexandria, o fogo «inteligente» que atravessa a () Paraíso logo a seguir à morte, mas esse paraíso é diferente do verdadei-
alma dos pecadores remíveis não é, como bem viu A. Michel, um fogo ro Paraíso de delícias onde a alma só chegará depois do Julgamento Final
material, mas também não é um fogo «metafórico»; é um fogo «espiri- c da prova - curta ou longa - do fogo'". E comparável ao seio de Abraão,
tual» (Stromata, VII, 6 e V, 14). Pretendeu-se opor, em Orígenes, o fogo se bem que, se não me engano, Orígenes nunca alude a ele. Em compen-
de julgamento atravessado pelas almas simplesmente maculadas e que sação, Orígenes não fala da sorte dos pecadores no intervalo entre a mor-
seria um fogo real, ao fogo de combustão que suportariam os pecadores te individual e o Julgamento Final. É que, como muitos dos seus
e que, esse sim, seria um fogo «metafórico», uma vez que os pecadores contemporâneos e sem dúvida ainda mais do que a maioria deles, Oríge-
que por fim devem ser salvos não podem ser por ele consumidos. Os nes acredita na iminência do fim do mundo: «A consumação do mundo
textos invocados (De principiis, 11, 10: Contra Celso, IV, 13, VI, 71, pelo fogo está iminente ... a terra e todos os elementos vão ser consumidos
etc.) não parecem justificar esta interpretação. Nos dois casos, trata-se no ardor do fogo no fim deste século» (homilia VI, do Comentário sobre a
de um fogo purificador que, sem ser material, não é metafórico; é real Génese, PG, 12, 191). E ainda: «O Cristo veio nos últimos tempos, agora
mas espiritual, subtil. Quando têm lugar estas purificações pelo fogo? que o fim do mundo está já próximo» (De principiis, Hl, 5, 6). O tempo
Orígenes é bem claro a esse respeito: após a ressurreição, no momento que medeia entre a morte individual e o Julgamento Final, entre hoje e o
do Julgamento Final", Este fogo mais não é, em definitivo, do que o fogo lim do mundo, é de tal modo breve que não vale a pena pensar nele. A
do fim do mundo, vindo das velhas crenças indo-europeias, iranianas e prova do fogo «é como uma prova que nos espera ao sair da vida» (cf. In
egípcias e que os estóicos haviam retomado com a noção de ÉK1tÚproO"tç. Lucam, homilia 24).

78 79
Assim o futuro Purgatório entrevisto por Origenes desvanece-se, es- coisa ainda é ser mandado para a prisão (in carcere) para só sair depois
magado entre a sua escatologia e a sua concepção de um inferno tempo- de pago o último óbolo, e mais outra coisa é receber imediatamente a
rário. No entanto a ideia, precisa, de uma purificação no além, após a recompensa da fé e da virtude; ainda outra coisa é ser libertado e purifi-
morte, é expressa pela primeira vez. Aparece a distinção entre pecados cado dos pecados por um longo sofrimento no fogo, e mais outra coisa é
ligeiros e pecados mortais. Há mesmo o esboço de três categorias: os ter apagado todas as culpas pelo martírio; outra coisa, enfim, é ficar
justos que só atravessam o fogo de julgamento e vão directamente para suspenso, no dia do julgamento, da senten~a do Senhor, e outra coisa
o Paraíso, os pecadores ligeiros que apenas fazem uma estada no fogo de ainda é ser imediatamente coroado por ele' . Ficou escrito: «Este sofri-
combustão e os pecadores «mortais» que lá ficam durante muito tempo. mento purificador, este fogo de além-túmulo, só podem ser o Purgatório.
De facto, Orígenes desenvolve a metáfora de I Coríntios, Hl, 10-15. Dos Sem atingir a clareza de expressão que encontraremos nas épocas seguin-
materiais citados por S. Paulo faz ele duas categorias: o ouro, a prata, as tes, Cipriano já representa um progresso em relação a Tertuliano".» Esta
pedras preciosas para os justos, a madeira, o feno, a palha para os peca- interpretação significa uma concepção evolucionista do Purgatório, que
dores «leves». Ejuntou-lhes uma terceira categoria: o ferro, o chumbo e o vê na teoria do cristianismo um avanço lento mas seguro no sentido da
bronze para os pecadores «pesados». explicação de uma crença que, desde a origem, teria existido em embrião
Também se esboça uma aritmética da purgação no além. Sublinha-se no dogma cristão. Nada me parece menos conforme com a realidade
um laço estreito entre a penitência e a sorte no além: para Clemente de histórica. Perante os acessos de milenarismo, de crença num apocalipse
Alexandria a categoria dos pecadores corrigíveis era constituída pelos fulminante que salvaria ou destruiria mais ou menos arbitrariamente, a
pecadores que se tinham arrependido, se tinham reconciliado com Deus Igreja, em função das condições históricas, da estrutura da sociedade e de
no momento de morrer, mas que não tinham tido tempo de fazer peni- uma tradição que ela transformaria pouco a pouco em ortodoxia, criou
tência. Para Orígenes a apocatástase é, no fundo, um processo positivo e um certo número de elementos que, no século XII, vieram a resultar num
progressivo de penitência 11. sistema do além de que o Purgatório foi uma peça fundamental; mas que
Mas à concepção de um verdadeiro Purgatório faltam vários elemen- poderia muito bem abortar, que conheceu acelerações no começo do sé-
tos essenciais. O tempo do Purgatório é mal definido visto que se confun- culo v, entre o fim do século VI e o começo do século VIII, e finalmente no
de com o tempo do Julgamento Final, confusão esta tão pouco século XII, mas com grandes paralizações que poderiam ter sido definiti-
satisfatória que Orígenes tem de concentrar e dilatar ao mesmo tempo vas. Considero pertinente a opinião de P. Jay que refutou a pseudodou-
o fim do mundo e de o aproximar ao máximo. Nenhum Purgatório se trina do Purgatório de S. Cipriano. Do que se trata na carta a Antoniano
distingue do Inferno, e o carácter temporário, provisório, que constituirá é de uma comparação entre os cristãos que renegaram durante as perse-
a sua originalidade, não se destaca. Só os mortos, com a sua bagagem de guições (os lapsi e os apóstatas) e os mártires. Não se trata de «purga-
culpas mais ou menos leve ou pesada, e Deus na sua benevolência de jugo tório» no além mas de penitência cá em baixo. A prisão mencionada não
salutar, têm alguma responsabilidade nesta purificação depois da morte. é a de um purgatório, aliás ainda inexistente, mas a disciplina penitencial
Os vivos não intervêm nela. Enfim, não existe lugar purgatório. E ao eclesiástica 14.
fazer do fogo purificador um fogo não só «espiritual» mas também «in- Entre os Padres e outros eclesiásticos do século IV que, apesar da sua
visível», Orígenes bloqueou o imaginário do Purgatório. diversidade, constituem um conjunto bastante coerente, no momento em
que o cristianismo deixa de ser perseguido e depois se torna religião ofi-
cial no mundo romano, a reflexão sobre a sorte dos homens após a morte
o cristianismo latino: desenvolvimentos e indecisões do além desenvolve-se sobretudo a partir do sonho de Daniel (VII, 9, 1), do texto
de Paulo aos Coríntios, III, 10-15, mais raramente da concepção orige-
Foi necessário esperar pelo fim do século IV e princípio do século V niana do fogo purificador ou do refrigerium de Tertuliano. As opiniões de
para que, com Santo Agostinho e portanto entre os cristãos latinos desta Orígenes influenciam notoriamente a parte cristã dos Oráculos sibiltnos
vez, a pré-história do Purgatório se enriquecesse de maneira decisiva. que lhes assegurarão uma certa posteridade.
A S. Cipriano, em meados do século III, creditou-se uma importante Lactâncio (que morreu depois de 317) pensa que todos os mortos,
contribuição para a doutrina do futuro Purgatório. Na sua Carta a incluindo os justos, sofrerão a prova do fogo, mas situa esta prova no
Antoniano, ele estabelece uma distinção entre duas espécies de cristãos: momento do Julgamento Final: «Quando Deus julgar os justos, fá-lo-á
«Uma coisa é aguardar o perdão, outra coisa é alcançar a glória; outra lambém por meio do fogo. Aqueles em que os pecados prevaleçam pelo

80 81
seu número ou o seu peso, serão envolvidos pelo fogo e purificados; pelo to influenciado por Orígenes também hesitou e tergiversou. Em definitivo
contrário, aqueles que uma justiça perfeita ou a maturidade da virtude Ambrósio, ainda mais adepto de Paulo do que de Origenes, pensa que
tenha sublimado não sentirão essa chama; têm de facto em si qualquer todos os pecadores serão salvos através do fogo porque, apesar das suas
coisa que repele e rejeita esse fogos (Institutiones, VII, 21, PL, VI, 8(0). culpas, terão tido fé: «E se o Senhor salva os seus servos, nós seremos
Hilário de Poitiers (que morreu em 367), Ambrósio (em 397), Jeróni- salvos pela fé mas sê-lo-emos como através do fogo!".» Mas Ambrósio
mo (em 419/420) e o desconhecido chamado Ambrosiaster, que viveu na afirmou claramente a possível eficácia das orações dos vivos para alívio
segunda metade do século IV, têm sobre a sorte dos homens depois da dos defuntos após a sua morte, o valor dos sufrágios para a mitigação das
morte ideias que pertencem à linha de Origenes. penas. Em especial a propósito do imperador Teodósio, com quem tivera
Para Hilário de Poitiers, enquanto esperam o Julgamento Final, os as relações estreitas que se sabe: «Concede, Senhor, o repouso ao teu
justos vão repousar no seio de Abraão enquanto que os pecadores são NervoTeodósio, esse repouso que preparaste para os teus santos ... Eu
atormentados pelo fogo. No Julgamento Final os justos vão directamen- amava-o e por isso quero acompanhá-I o ainda em vida minha: não o
te para o Paraíso, os infiéis e os ímpios para o Inferno e todos os outros, o deixarei enquanto, pelas minhas preces e os meus lamentos, ele não for
conjunto dos pecadores, serão julgados e os pecadores impenitentes so- recebido lá no alto, sobre a montanha santa do Senhor, onde o chamam
frerão pesadas penas no Inferno. No seu Comentário do Salmo LIV, aqueles que ele perdeu 18.»
Hilário fala da «purificação que nos queima pelo fogo do julgamen- Quando da morte do seu irmão Sátiro, espera que as lágrimas e as
tO»15,mas esse fogo purifica todos os pecadores ou somente alguns de- preces dos infelizes que ele socorreu em vida lhe valerão o perdão de
les? Hilário não nos dá uma resposta concisa. Deus e a salvação eterna 19.
Santo Ambrósio é ainda mais ambíguo, embora mais preciso sobre Estas duas referências ambrosianas à sorte dos mortos no além são
certos pontos. Primeiro pensa, como se viu, que as almas aguardam o interessantes também por uma outra razão que veremos em acção na
julgamento em habitáculos diferentes segundo a concepção do quarto história do Purgatório. A visão dos grandes laicos - imperadores e reis
Livro de Esdras. Depois imagina que na ressurreição os justos irão direc- . no além foi uma arma política da Igreja. Vê-Io-emos em relação a Teo-
tamente para o Paraíso e os ímpios directamente para o Inferno. Só os dorico, Carlos Martel e Carlos Magno. Dante recordá-lo-á. Que melhor
pecadores serão examinados, julgados. Sê-lo-ão através da passagem pelo meio tinha a Igreja, para tornar receptivos às suas instruções - espirituais
fogo definida como o baptismo de fogo anunciado por João Baptista, e temporais - os soberanos, do que evocar os castigos que os esperam no
segundo o Evangelho de Mateus (11, 11): «Diante dos ressuscitados está ulém em caso de desobediência, e o peso dos sufrágios eclesiásticos para a
um fogo que todos, absolutamente todos, devem atravessar. E o baptismo sua libertação e salvação? Sabendo-se o que foram as relações entre Am-
de fogo anunciado por João Baptista, no Espírito Santo e no fogo, é a brósio e Teodósio, impõe-se a referência a este pano de fundo. No caso de
espada ardente do querubim que guarda o Paraíso e através do qual é NeU irmão Sátiro, vemos perfilar-se um outro aspecto das relações entre os
preciso passar: todos serão experimentados pelo fogo; pois todos aqueles vivos e os mortos. Ambrósio reza por seu irmão: é a rede familiar de
que querem regressar ao Paraíso têm de ser postos à prova pelo fogo!".» salvamento no além. Tornar-se-á ainda mais poderosa na Idade Média
Ambrósio afirma que mesmo Jesus, os apóstolos e os santos só entraram e na perspectiva do Purgatório. Mas Ambrósio fala sobretudo dos sufrá-
no Paraíso depois de terem passado pelo fogo. Como conciliar esta afir- J(iosdaqueles que Sátiro socorreu. Vemos aqui um fenómeno social his-
mação com a outra segundo a qual os justos vão para o Paraíso sem tórico: a clientela romana transposta para o plano cristão. Outras
julgamento? Ambrósio tergiversou mas não tinha ideias muito claras. .olidariedades, aristocráticas, monásticas, laico-monásticas, confrater-
Parece também que para ele havia três espécies de fogo. Para os justos, nais, tomarão o lugar, no tempo do Purgatório, desta assistência recípro-
que são prata pura, esse fogo será um refrigério, como o orvalho que l:1I (mais ou menos obrigatória) post mortem do patrono pelos seus
refresca (reencontra-se aqui a ideia da pérola, síntese do frio e do quente clientes,
e símbolo do Cristo); para os ímpios, os apóstatas, os sacrilegos, que são Enfim, Ambrósio, como adiante se verá, adere à ideia de uma primeira
apenas chumbo, esse fogo será um castigo e uma tortura, para os peca- e de uma segunda ressurreição.
dores que são uma mistura de prata e chumbo será um fogo purificador S. Jerónimo, embora inimigo de Orígenes, é, no que respeita à salva-
cujo efeito doloroso durará um tempo proporcional ao peso das suas '.=110, o mais «origenista». Excepto Satanás, os que negam Deus e os im-
culpas e à quantidade de chumbo que for preciso fundir. E quanto à pios, todos os seres mortais, todos os pecadores serão salvos: «Assim
natureza deste fogo? É «espiritual» ou «real»? Ambrósio, ainda que mui- corno cremos que os tormentos do Diabo, de todos os que negam e de

82 83
-~-~ ._-~-------------------~

todos os ímpios que dizem no seu coração "não há Deus" serão eternos, No seu excelente estudo sobre a Evolução da doutrina do Purgatório
assim, em compensação, pensamos que a sentença do juiz para os peca- em Santo Agostinho (Évoiution de Ia doetrine du Purga to ire ehez saint
dores cristãos, cujas obras são postas à prova e expurgadas no fogo, será Augustin), de 1966, Joseph Ntedika recenseou o conjunto dos numerosos
moderada e impregnada de clemência'?». E ainda: «Aquele que de todo o textos agostinianos que constituem o processo do problema. Destacou, a
coração pôs a sua fé no Cristo, mesmo que morra como homem culpado maioria das vezes com acerto, o lugar de Agostinho na pré-história do
de pecados, pela sua fé terá a vida eterna21.» Purgatório, e mostrou o facto fundamental: a posição de Agostinho
O Ambrosiaster, embora não traga grande coisa de novo em compa- não só evoluiu, o que é normal, mas também se modificou consideravel-
ração com Ambrósio, tem de especial e de importante o facto de ser o mente a partir de determinado momento que Ntedika situa em 413 e a
autor da primeira autêntica exegese do texto de Paulo de I Coríntios, que ele atribui a causa da luta contra os laxistas do além, os «misericor-
IH, 10-15. A este título, teve grande influência nos comentadores medie- diosos» (miserieordes), luta a que Agostinho se entrega apaixonadamente
vais deste texto essencial para a génese do Purgatório, em especial nos a partir dessa data. Contentar-me-ei com citar, situar e comentar os prin-
primeiros escolásticos do século XII. Como Hilário e Ambrósio, ele dis- cipais textos agostinianos respeitantes ao Purgatório. Fá-lo-ei numa du-
tingue três categorias: os santos e os justos que irão directamente para o pla perspectiva: o conjunto do pensamento e da acção agostinianos e a
Paraíso quando da ressurreição; os ímpios, os apóstatas, os infiéis e os génese do Purgatório a longo prazo.
ateus que irão directamente para os tormentos do fogo do Inferno; e os Desejo, já de início, sublinhar um paradoxo. Insistiu-se a justo título
simples cristãos que, embora pecadores, depois de terem sido purificados na importância considerável de Santo Agostinho para a formação da
durante um certo tempo pelo fogo e de terem pago a sua dívida, irão para doutrina do Purgatório. Isto é verdadeiro não só do ponto de vista dos
o Paraíso porque tiveram fé. Comentando S. Paulo, escreve: «Ele (Paulo) historiadores e dos teólogos modernos que reconstituem a história do
disse: "mas como através do fogo" porque esta salvação não existe sem Purgatório, mas também do clero da Idade Média que criou o Purgató-
sofrimento; e não disse: "Será salvo pelo fogo"; mas quando ele disse: rio. E, no entanto, parece-me evidente que esta questão não apaixonou
"como através do fogo" quis mostrar que essa salvação há-de vir, mas Agostinho e que, se ele tantas vezes alude a ela, é porque ela interessava,
que tem de sofrer as penas do fogo; para que, expurgado pelo fogo, seja em compensação, muitos dos seus contemporâneos e porque tocava - ia
salvo, e não como os infiéis (perfidi), atormentados pelo fogo eterno para dizer envenenava aos seus olhos - em problemas que, esses sim, eram
sempre; se, por algum pedaço da sua obra, ele tem algum valor, é porque para ele fundamentais: a fé e as obras, o lugar do homem no plano divi-
acreditou em Crist022.» no, as relações entre os vivos e os mortos, a preocupação com a ordem
Paulino de Nola (que morreu em 431) também fala numa carta do numa série escalonada desde a ordem social terrena até à ordem sobre-
fogo sábio, inteligente (sapiens) pelo qual todos passaremos para sermos natural, a distinção entre o essencial e o acessório, o esforço necessário ao
examinados, e que provém de Orígenes. Numa fórmula sintética onde homem para atingir o progresso espiritual e a salvação eterna.
surgem o calor e o frio, o fogo e a água, e a ideia de refrigerium, escreve Parece-me que as indecisões de Agostinho vêm, em parte, deste rela-
ele: «Passámos através do fogo e da água e ele conduziu-nos ao tivo desinteresse pela sorte dos homens entre a morte e o Julgamento
refrigêrio'".» Num poema evoca ainda o «fogo exterminador» (ignis ar- Final; mas explicam-se também por razões mais profundas.
biter) que percorrerá todas as obras de cada um, «a chama que não quei- As mais importantes são as inerentes à época. A sociedade romana
mará, mas que cada um experimentará», a recompensa eterna, a tinha de fazer face aos enormes problemas da grande crise do mundo
combustão da parte má e a salvação do homem que, com o corpo con- romano, do repto dos bárbaros, do aparecimento de uma nova ideologia
SUmI id o, escapara ao rogo e voara para a VIid a eterna 24 ...
'&' '
predominante, cuja grande afirmação a respeito do além era a ressurrei-
lido e a escolha a fazer entre a condenação e a salvação eternas. Impreg-
nada de milenarismo e pensando mais ou menos confusamente que o
o verdadeiro pai do Purgatório: Agostinho Julgamento Final estava para amanhã, essa sociedade estava pouco incli-
nada a insistir no requinte de pensamento que a reflexão sobre o intervalo
Contribuir para o processo do futuro Purgatório com elementos capi- entre a morte e eternidade pressupõe. Certamente, para esses homens e
tais foi o papel de Agostinho, que deixou uma marca tão profunda no essas mulheres da Antiguidade tardia, cuja esperança no além se baseava,
cristianismo e que foi provavelmente a maior «autoridade» da Idade julgo eu, - porque sempre assim foi, e Paul Veyne bem o demonstrou em
Média. relação aos antigos evérgetas - menos na ideia confusa de salvação do

84 85
que na de uma compensação, numa outra vida, das injustiças do mundo, escreveu em 397-398 nas Confissões, IX, XIII, 34-37, depois da morte
estas reivindicações de equidade podiam achar-se satisfeitas pela sofisti- de sua mãe Mónica.
cação de justiça proporcionada pela redenção após a morte. Mas isso era
um luxo. Foi porque no século XII a sociedade mudou de tal maneira que Quanto a mim, com o coração finalmente curado daquela ferida em que se
esse luxo se tomou necessidade, que o Purgatório pôde aparecer. poderia censurar uma fraqueza da carne, derramo perante ti, ó nosso Deus,
Mas outras razões pessoais parece terem também incitado Agostinho por aquela que foi tua serva, lágrimas de um outro género: elas brotam de um
a manifestar a sua incerteza a respeito de certos aspectos deste problema espírito fortemente abalado perante o espectáculo dos perigos de toda a alma
então marginal. Vê-las-emos nos textos que vou citar. que morre em Adão.
Primeiro, a verificação das imprecisões, até das contradições dos tex- Sem dúvida, uma vez vivificada em Cristo, mesmo antes de ser liberta dos
tos das Escrituras neste domínio. Agostinho é um axegeta admirável mas laços da carne, ela viveu de maneira a fazer louvar o teu nome na sua fé e na
não oculta a falta de clareza, as dificuldades do Livro. Não tem sido. sua conduta; e no entanto, não ouso dizer que a partir do momento em que a
regeneraste pelo baptismo nenhuma palavra contrária aos teus preceitos saiu
suficientemente sublinhado o facto de no século XII Abelardo, no Sic et
da sua boca. Foi dito pela Verdade, pelo teu filho: «Se alguém disser ao seu
Non: ao empregar um método julgado revolucionário, mais não ter feito irmão" Louco", esse será passível da geena do fogo.»
do que regressar a Agostinho. Na sua qualidade de padre, bispo e inte- Pobre da vida do homem, embora ela seja louvável, se ao passá-Ia pelo
lectual cristão, Agostinho está convencido de que o fundamento (palavra crivo, tu pões de parte a tua misericórdia! Mas, porque não procuras as culpas
que tanto lhe agrada e que irá reencontrar em Coríntios Hl, 10-15) da encarniçadamente, é com confiança que esperamos um lugar junto de ti. Aliás,
religião, dos ensinamentos que deve ministrar, é a Escritura. Quando se quem quer que te enumere os seus verdadeiros méritos, o que te enumera ele
tenta esclarecer o mais possível os pontos onde ela não é clara (o que é senão os teus próprios dons? Oh! Se eles se reconhecessem homens, os ho-
também uma das suas tendências profundas), é preciso reconhecer que mens! e se aquele que se glorifica, se glorificasse no Senhor!
nada de preciso se pode afirmar. Tanto mais que - é a sua segunda mo- Pois por mim, oh meu louvado e minha vida, oh Deus do meu coração,
tivação - em questões de salvação, se deve respeitar o segredo, o mistério deixando por um instante de lado as suas boas acções, pelas quais te rendo
que envolve certos aspectos ou, ainda melhor, deixar a Deus o cuidado de graças em alegria, agora é pelos pecados de minha mãe que te imploro.
tomar decisões dentro de um contexto, cujas grandes linhas Ele indicou Atende-me, por aquele que, suspenso do madeiro, foi o remédio para as
nossas feridas e que, sentado à tua direita, intercede por nós!
através da Bíblia e dos ensinamentos de Jesus, mas onde reservou para si
Eu sei que ela praticou a misericórdia e que de todo o coração perdoou as
- mesmo fora do milagre - um espaço de livre decisão. dívidas aos seus devedores. Perdoa-lhe tu também as suas dívidas, que ela
Aqui, a importância de Agostinho reside primeiro no seu vocabulário própria contraiu durante tantos anos depois da ablução da salvação! Per-
que irá impôr-se durante muito tempo na Idade Média. Três palavras são doa, Senhor, perdoa-lhas, suplico-te! Não a julgues! Que a misericórdia passe
essenciais: os adjectivos purgatorius, temporarius ou temporalis e transito- por cima da justiça, pois as tuas palavras são verdadeiras e tu prometeste
rius. Purgatorius, que prefiro traduzir por purgatório (adjectivo) em vez de misericórdia aos misericordiosos! Se eles o foram é a ti que o deveram, a ti
purificador, demasiado preciso para o pensamento de Agostinho, encon- que terás piedade de quem quiseres ter piedade, que concederás misericórdia a
tra-se ligado a poenae purgatoriae: as penas purgatórias (Cidade de Deus, quem quiseres conceder misericórdia.
XXI, XIII e XVI), tormenta purgatoria, tormentos purgatórios (Cidade de Mas, creio, já terás feito o que te peço. No entanto, estes votos espontâneos
Deus, XXI e XVI) e sobretudo ignis purgatorius: fogo purgatório (En- que vêm da minha boca, aceita-os, Senhor! E é verdade que, ao aproximar-se o
chiridion. 69)25. Temporarius encontra-se por exemplo na expressão poe- dia da sua libertação, ela não teve nenhuma ideia de envolver sumptuosamen-
nae temporariae, penas temporárias, opostas às poenae sempiternae, penas te o seu corpo ou de o mandar embalsamar com aromas, nem o desejo de um
monumento especial, nem a preocupação de um túmulo na sua terra. Não,
eternas (Cidade de Deus, XXI, XIII). Poenae temporales encontra-se na
não foi isso que ela nos recomendou, mas apenas que invocássemos a sua
edição de Erasmo da Cidade de Deus (XXI, XXIV)26.
memória no teu altar; foi este o seu desejo. Pois, sem falhar um só dia, ela
serviu esse altar, sabendo que nele se dita a sorte da vítima santa que afastou a
sentença a que fomos condenados e triunfou do inimigo, aquele que avalia os
A morte de MóDica: orai por ela nossos pecados ao procurar com que nos inculpar, mas nada encontra
n'Aquele em quem somos vencedores. Quem lhe resgatará o seu sangue ino-
Agostinho foi o primeiro a afirmar a eficácia dos sufrágios pelos mor- cente? Do preço por que ele nos comprou, quem o reembolsará para nos
tos. Fê-lo pela primeira vez num momento de emoção, na oração que arrancar a ele? A esse mistério do preço da nossa compra, a tua serva ligou

86 87
a sua alma pelo laço da fé. Que ninguém a arranque à tua protecção! Que aristocrata rica, deve-se, sem dúvida, entender a coisa no sentido material
ninguém se interponha nem pela violência nem pelas manhas de Leão e Dra- e no sentido mora~~, a monogamia e a renúncia desta viúva a qualquer
gão! Pois ela não responderá que nada deve, com medo de que o acusador casamento, e sobre~udo a piedade eucarística. Outras garantias sobre o
capcioso a perturbe e a obtenha; mas responderá que as suas dívidas lhe foram além que encontraremos não só na perspectiva do Paraíso mas também
perdoadas por Aquele a quem ninguém restituirá aquilo que, em vez de nós, nos horizontes do Purgatório: as obras de misericórdia, a devoção euca-
ele restituiu sem estar em dívida. rística, o respeito pelo estatuto matrimonial dos laicos, eis o que contará
Que ela esteja, pois, em paz juntamente com o seu marido: antes dele
fortemente para escapar ao Inferno e porá em boa posição se não para o
ninguém e depois dele ninguém a teve como esposa; ela serviu-o oferecen-
do-te o fruto da sua paciência, para o levar para ti, a ele também! ingresso no Paraíso, pelo menos no Purgatório, graças à misericórdia de
E depois inspira, meu Senhor, meu Deus, inspira os teus servos meus Deus e aos sufrágios dos vivos. Estes vivos são aqui o mais próximo da
irmãos, os teus filhos meus pais, a cujo serviço ponho o meu coração, a mi- morta pela carne, o seu filho. Mas também, através deste filho, as duas
nha voz e os meus escritos, todos de entre eles que lerem estas linhas, inspira- comunidades que podem ser incitadas a orar eficazmente pela mãe são a
-os para que no teu altar se recordem de Mônica, tua serva, e de Patricio que do bispo e a do escritor: as suas ovelhas e os seus leitores.
foi seu esposo, aqueles por cuja carne tu me puseste nesta vida, sem que eu Uns anos mais tarde, no seu comentário do Salmo XXXVII, Agosti-
saiba como. Que, num sentimento de piedade, se recordem deles, meus pais nho pede a Deus por si próprio, que o corrija nesta vida para que não
nesta luz passageira, meus irmãos em ti, nosso Pai e na Igreja católica nossa tenha de suportar, depois da morte, o fogo correctivo (ignis emendato-
Mãe, meus concidadãos na Jerusalém eterna pela qual suspira o teu povo em rius}, Trata-se aqui, aliás, não só da sua ideia já evidente na prece por
peregrinação, desde o ponto de partida ao ponto de chegada! Assim, o voto Mónica de que a salvação no além se merece primeiro cá em baixo, mas
supremo que ela me dirigiu será mais abundantemente cumprido pelas preces
também da noção que acalentará até ao fim dos seus dias, parece, segun-
de muitos, graças a estas confissões, do que somente pelas minhas preces.
do a qual as atribulações desta vida serão uma forma de «purgatório».
Enfim, em 426-427 na Cidade de Deus (XXI, XXIV), Agostinho volta
Este texto admirável não é uma exposição doutrinal, mas é possível à eficácia das orações pelos mortos, mas para precisar com mais clareza
extrair dele alguns dados importantes para a eficácia dos sufrágios pelos os seus limites. Os sufrágios são inúteis pelos demónios, pelos infiéis e os
mortos. impios, portanto pelos condenados ao inferno. Só podem ser válidos para
A decisão de colocar ou não Mónica no Paraíso, na Jerusalém eterna, uma certa categoria de pecadores não nitidamente definida mas em todo
só pertence a Deus. Apesar de tudo, Agostinho está convencido de que as o caso caracterizada de maneira especial: aqueles cuja vida não foi muito
suas preces podem comover Deus e influenciar a sua decisão. Mas o jul- boa nem muito má. Agostinho baseia-se no versículo de Mateus, XII, 31-
gamento de Deus não será arbitrário, e a sua prece não será absurda nem -32: «Também vos digo que todo o pecado e blasfémia serão perdoados
absolutamente temerária. É porque Mónica, apesar dos seus pecados - aos homens, mas a blasfémia contra o Espírito não será perdoada. E
pois todo o ser humano é pecador - mereceu em vida a salvação, que a quem disser uma palavra contra o filho do homem, isso ser-lhe-á perdoa-
misericórdia de Deus poderá exercer-se e a prece do seu filho ser eficaz. do, mas quem falar contra o Espírito Santo, isso não lhe será perdoado
Sem que seja dito, o que se pressente é que a misericórdia de Deus e os nem neste mundo nem no outro.» A qualidade daqueles que podem rezar
sufrágios dos vivos podem apressar a entrada dos mortos no Paraíso e com eficácia pelos mortos remíveis também é precisada: é a instituição
não fazê-los transpor as suas portas, se foram grandes pecadores cá em eclesiástica, a própria Igreja, ou «alguns homens piedosos» (guidam pii}.
baixo. O que também não é dito, mas é verosímiI é que, como não existe
Purgatório (nem existe em qualquer texto de Agostinho uma única frase
A razão pela qual não se rezará pelos homens votados ao fogo eterno é a
que estabeleça ligação entre os sufrágios e o fogo purgatório), este em-
mesma razão pela qual, nem agora nem nunca, não se reza pelos maus anjos, e
purrão no sentido da salvação dos mortos pecadores mas merecedores é ainda pela mesma razão que a partir de agora não se reza já pelos infiéis e
terá lugar logo a seguir à morte ou, em todo o caso, sem que tenha de- ímpios defuntos, ainda que se reze pelos homens. Pois, a favor de certos de-
corrido tempo suficiente para ser necessário definir um prazo e ainda funtos, a prece da própria Igreja e de alguns homens piedosos é atendida, mas
menos um lugar onde passar essa espera. por aqueles que estão regenerados em Cristo, e cuja vida no seu corpo não foi
O mérito de Mónica afirmado por Agostinho é significativo: supõe o tão má que sejam julgados indignos de tal misericórdia, nem tão boa que se
baptismo, engloba tanto a fé como as obras. As suas boas acções foram, suponha que uma tal misericórdia não lhes será necessáriaê": também depois
segundo o preceito, o perdão das dívidas aos seus devedores (para esta da ressurreição dos mortos haverá aqueles a quem, após as penas que sofrerão

88 89
as almas dos mortos, será concedida essa misericórdia que lhes evitará serem -se mais precisas e evoluem para posições restritivas. A maioria dos espe-
lançados no fogo eterno. Com efeito, a respeito de alguns não se poderá dizer cialistas do pensamento agostiniano, e especialmente Joseph Ntedika, viu
com verdade que não lhes é perdoado nem no século presente nem no século a justo título neste endurecimento uma reacção às ideias dos laxistas
futuro, pois existem aqueles a quem o perdão, se não Ihes é concedido neste «misericordiosos» que Agostinho considerava muito perigosos, e nele se
século sê-lo-á no século futuro. Mas quando o juiz dos vivos e dos mortos
viu também a influência das concepções milenaristas que teriam movido
disser: Vinde, os abenpoados por meu Pai, possuí o reino que está preparado
para vós desde a criapão do mundo, e aos outros pelo contrário: [de para longe
Agostinho por intermédio dos cristãos espanhóis. Creio que também aí se
de mim, malditos, para o fogo eterno que foi preparado pelo diabo e pelos seus deve ver o reflexo do grande acontecimento do ano de 410: a tomada de
anjos e eles tiverem ido, estes para o suplício eterno, mas os justos para a vida Roma por Alarico e os Ostrogodos que parece marcar o fim não só do
eterna'", é presunção excessiva dizer que o suplício eterno não terá lugar para Império Romano e da invulnerabilidade de Roma, mas também anunciar
algum daqueles a quem Deus declara que irão para o suplício eterno e, graças o fim do mundo para certos cristãos, enquanto grande parte da aristocra-
à convicção de uma tal conjuntura, fazer com que se desespere mesmo desta cia romana culta e ainda pagã acusava os cristãos de terem minado a
vida ou que se duvide da vida eterna. força de Roma e de serem responsáveis por uma catástrofe sentida co-
mo, se não o fim do mundo, pelo menos o fim da ordem e da civiliza-
Até 413, Agostinho contenta-se com acrescentar algumas notas pes- ção. Foi para responder a esta situação, a estas conjecturas e a estas
soais aos ensinamentos dos Padres dos séculos III e IV, sobre o fogo do acusações que Agostinho escreveu a Cidade de Deus.
julgamento e sobre os aceitáveis após a morte, em especial o seio de O que diziam esses tais «misericordiosos» de quem nada sabemos a
Abraão para os justos, essencialmente baseado na exegese da história não ser o que Agostinho•
lhes reprovou 32?. A gostm
. h o ve-os como d escen-
A

do mau rico e do pobre Lázaro (Lucas, XVI, 19-31) e na primeira epís- dentes de Orígenes, que pensava que no fim do processo de
tola de Paulo aos Coríntios (IH, 10, 15). No Comentário ao Génesis contra paracatástase todos seriam salvos, incluindo Satanás e os anjos maus.
os Maniqueistas, de 398, ele distingue o fogo da expurgação do da con- Faz notar, todavia, que os misericordiosos apenas se ocupam do~ ho-
denação eterna: «e depois desta vida haverá ou o fogo da expurgação ou mens. Mas se bem que existam neles certos cambiantes, todos mais ou
da pena eterna.»29 Nas Questões sobre os Evangelhos, em 399, opõe aos menos acreditam que os pecadores inveterados serão salvos na totalida-
mortos irremíveis como o mau rico aqueles que souberam fazer amigos de ou em parte. Segundo Agostinho, professam seis opiniões diversas
com as suas obras de misericórdia, e que, portanto, prepararam os seus mas próximas. De acordo com a primeira, todos os homens serão sal-
sufrágios. Mas confessa não saber se a recepção nos tabernáculos eternos vos, mas depois de uma estada mais ou menos longa no Inferno. De
evocada por Lucas (XVI, 9) se fará imediatamente após esta vida, quer acordo com a segunda, as preces dos santos obterão para todos, no
dizer depois da morte, ou no fim dos séculos, no momento da ressurrei- Julgamento Final, a salvação sem nenhuma passagem pelo Inferno. A
ção e do Julgamento Final3o. terceira consiste em conceder a salvação a todos os cristãos, mesmo os
Nos seus comentários aos Salmos, escritos talvez entre 400 e 414, in- cismáticos ou os heréticos, que tenham recebido a eucaristia. A quarta
siste sobretudo nas dificuldades levantadas pela existência de um fogo restringe esta benesse somente aos católicos, com excepção dos cismáti-
expurgatório depois da morte: é uma «questão obscura» (obscura quaes- cos e dos heréticos. Uma quinta opinião salva aqueles que conservam a
tio), declara ele. No entanto, no seu Comentário ao Salmo XXXVII, avan- fé até ao fim, mesmo que tenham vivido em pecado. A sexta e última
ça com uma afirmação que conhecerá grande repercussão na Idade variedade de misericordiosos é a que crê na salvação daqueles que deram
Média, a propósito do Purgatório: «Se bem que alguns sejam salvos pelo esmolas, ainda que pudessem fazer mais. Sem entrar em pormenores,
fogo, esse fogo será mais terrível do que tudo o que um homem pode contentemo-nos com notar que, se a sua inspiração era mais ou menos
suportar nesta vida!'.» origeniana, estas seitas ou estes cristãos isolados se apoiavam fu~damen-
talmente num texto das Escrituras separado do seu contexto e ínterpre-
tado à letra.
Depois de 413: duras penas purgatórias entre a morte e o Julgamento para Reagindo, Agostinho vai afirmar que existem mesmo dois fogos, um
aqueles que não são inteiramente bons fogo eterno destinado aos condenados para os quais qualquer sufrágio é
inútil, e no qual insiste com veemência; e um fogo purgatório em re~ação
A partir de 413 as convicções de Agostinho sobre a sorte dos mortos e ao qual tem mais hesitações. O que interessa pois a Agostinho, se aSSImse
em particular sobre a possibilidade de redenção depois da morte tornam- pode dizer, não é o futuro Purgatório mas sim o Inferno.

90 91
Foi para instituir o Inferno que ele definiu certas categorias de peca- nem no todo nem nos pormenores, os pecados «intermédios», aqueles que
dores e de pecados. Joseph Ntedika distinguiu três espécies de homens, devem desaparecer no fogo purgatório, e avançou a hipótese de que re-
três espécies de pecados e três espécies de destinos. Parece-me que o pen- ceava que o seu pensamento fosse explorado pelos laxistas «misericor-
samento de Agostinho é mais complexo (a trindade será obra dos clérigos diosos». O que é possível. Mas não se deve esquecer que Agostinho era
dos séculos XII e XIII). Existem quatro espécies de homens: os ímpios mais sensível à globalidade da vida espiritual, à personalidade de conjun-
(infiéis ou autores de pecados criminais) que, sem recurso nem escapató- to dos homens do que a um inventário de objectivos da vida moral que
ria possíveis, vão directamente para o Inferno; no outro extremo, os már- coisificaria a vida da alma. Estes «crimes» são mais hábitos de criminosos
tires, os santos e os justos que, mesmo que tenham cometido pecados do que delitos precisos. Os pecados «quotidianos» são os únicos que po-
«ligeiros», irão para o Paraíso directamente ou muito em breve. Entre dem ser nomeados porque são os «trocos» da existência. Citá-los não é
os dois extremos há aqueles que não são inteiramente bons nem inteira- grave para a qualidade da vida espiritual; são excrescências, escória, ba-
mente maus. Estes últimos são, de facto, destinados ao Inferno; quando gatelas fáceis de fazer desaparecer desde que não se acumulem e não
muito poderão ter esperança, e será talvez possível obter para eles, por invadam o espírito.
meio de sufrágios como adiante se verá, um Inferno «mais tolerável». A oposição de Agostinho aos «misericordiosos» e a evolução do seu
Resta a categoria daqueles que não foram inteiramente bons. Esses po- pensamento sobre a sorte dos mortos surgem no seu tratado Sobre a fé e
dem (talvez) salvar-se por meio de um fogo purgatório. Não é, em defi- as obras (De fide et operibus) de 413, mas exprimem-se sobretudo no seu
nitivo, uma categoria muito numerosa. Mas se este fogo e esta categoria Manual, o Enchiridion, em 421, e no livro XXI da Cidade de Deus, em
existem, Agostinho tem ideias mais precisas sobre determinadas condi- 426-427.
ções da sua existência. Além de ser muito doloroso, este fogo não é eter- Entretanto fizera certas precisões a pedido de amigos. Na Carta a
no, contrariamente ao fogo da geena, e não actuará no momento do Dardanus, em 417, esboçava uma geografia do além na qual não havia
Julgamento Final mas entre a morte e a ressurreição. Por outro lado, é lugar para o Purgatório. Voltando à história do pobre Lázaro e do rico
possível obter uma mitigação das penas graças aos sufrágios dos vivos mau distinguia, com efeito, uma região de tormentos e uma região de
habilitados a intervir junto de Deus e na condição de, finalmente e ape- repouso mas não as situava às duas nos Infernos, como alguns, porque
sar dos pecados, se ter merecido a salvação. Estes méritos adquirem-se a Escritura diz que Jesus desceu aos Infernos mas não que visitou o seio
com uma vida geralmente boa e um esforço constante por a melhorar, de Abraão. Este não é senão o paraíso, nome genérico que não designa o
com a realização de obras de misericórdia e com a prática da Paraíso terrestre onde Deus colocara Adão antes do pecado'".
penitência. Este relacionamento da penitência com o «purgatório», que Em 419, um certo Vincentius Victor de Cesareia, da Mauritânia, in-
será tão importante nos séculos XII e XIII, aparece pela primeira vez ni- terroga Agostinho acerca da necessidade de se baptizar para ser salvo. No
tidamente em Agostinho. Em definitivo, se Agostinho situou explicita- tratado Sobre a natureza e a origem da alma com o qual Agostinho lhe
mente o tempo da purgação do Julgamento Final no período responde e onde toma o exemplo de Dinócrates na Paixão de Perpétua e
intermédio entre a morte e a ressurreição, a sua tendência é para colocar Felicidade, o bispo de Hipona nega que as crianças não baptizadas pos-
ainda mais atrás, quer dizer aqui em baixo, essa purgação. No fundo sam entrar no Paraíso e nem sequer ir, como pensavam os pelagianos,
desta existência existe a ideia de que as «atribuições» terrenas são a prin- para um lugar intermédio de repouso e de felicidade (Agostinho nega
cipal forma de «purgatório». Daí as suas hesitações sobre a natureza do portanto aqui o que será no século XIII o limbo das crianças). Para ir
fogo purgatório. Se ele actua depois da morte, não há objecção a que seja para o Paraíso é preciso ser baptizado: Dinócrates fora-o, mas deve ter
«real»; mas se existe nesta terra, então deve ser essencialmente «moral». pecado depois, talvez apostatado por influência do pai, mas fora salvo
No que toca aos pecados, Agostinho distinguiu pecados muito graves finalmente por intercessão da irmã.
a que, aliás, chama «crimes» (crimina, facinora, flagitia, scelera) em vez Eis os grandes textos do Enchiridion'" e do livro XXI da Cidade de
de pecados, e que conduzem para o Inferno aqueles que os cometem; e Deus.
pecados sem grande importância a que chamou «ligeiros», «miúdos»,
«pequenos» e sobretudo «quotidianos» (levia, minuta, minuttisima, mino- Se é verdade que um homem carregado de crimes será salvo através do
ra, mínima, modica, parva, brevia, quotidiana) dos quais deu como exem- fogo unicamente em nome da sua fé e se é assim que deve entender-se a pala-
plo o apego excessivo à família, o amor conjugal exagerado (Cidade de vra de S. Paulo: «Ele será salvo, mas corno através do fogo» (I Corintios, III,
Deus, XXI, XXVI). Joseph Ntedika fez notar que Agostinho não referiu, 15), segue-se que a fé poderá salvar sem as obras, e que será falso o que disse

92 93
Tiago seu companheiro de apostolado. Falso também o que dizia o próprio S. Que algo semelhante aconteça igualmente depois desta vida, não é impos-
Paulo: «Não vos enganeis: nem os fornicadores, nem os idólatras, nem os sível. Será de facto assim? É lícito investigá-Io, seja ou não para o descobrir.
adúlteros, nem os efeminados, nem os invertidos, nem os ladrões, nem os Alguns fiéis (neste caso) poderiam, mais cedo ou mais tarde, ser salvos por um
avaros, nem os bêbedos, nem os maldizentes, nem os açambarcadores possui- fogo purgatório, conforme tenham amado mais ou menos os bens transitórios.
rão o reino de Deus» (I Corintios, VI, 9-11). Se, com efeito, até aqueles que Porém, nunca o serão aqueles de que se diz que «não possuirão o reino de
persistem nestes crimes serão no entanto salvos mercê da sua fé em Cristo, DeUS»(I Corintios, VI, li) se, por uma penitência adequada, não obtiverem
como não o seriam no reino de Deus! a remissão dos seus pecados (crimina), Adequada, disse eu, que não sejam
Mas, visto que testemunhos apostólicos tão claros e tão evidentes não avaros em esmolas, visto que a Santa Escritura atribui a estas um valor tal,
podem ser falsos, a passagem obscura onde se trata dos que constroem, sobre que o Senhor anuncia (Mateus, XXV, 34-35) dever contentar-se unicamente
o alicerce que é o Cristo, não com ouro, não com prata ou com pedras pre- com esta colheita para colocar (os homens) à sua direita ou unicamente com a
ciosas, mas com madeira, com erva ou com palha - pois é desses que se diz que ausência dela para os pôr à esquerda, e dirá a uns: «Vinde, os abençoados por
serão salvos através do fogo porque não morrerão por causa do alicerce - deve meu Pai, recebei o reinos e aos outros: «Ide para o fogo eterno.»
ser entendida de maneira a não entrar em contradição com os textos com- Livremo-nos de pensar, apesar de tudo, que estes crimes infames de que ele
preensíveis. diz que aqueles que deles são culpados «não possuirão o reino de Deus» po-
Madeira, erva e palha podem efectivamente entender-se como um tal ape- dem ser cometidos todos os dias e todos os dias resgatados por meio de esmo-
go aos bens mais legítimos deste mundo, que não é possível perdê-los sem dor. Ias. O que é preciso é mudar a vida para melhor e, por meio de esmolas,
Quando essa dor acaba por queimar (alguém), se o Cristo desempenha no seu aplacar Deus pelas culpas passadas, e não comprá-lo, por assim dizer, de
coração o papel de alicerce, quer dizer que ninguém é preferido em detrimento maneira a poder sempre cometê-Ias impunemente. «Com efeito, a ninguém
d'Ele, e se, sob o golpe da dor que queima, esse homem prefere ficar privado Deus dá licença de pecar (Eclesiastes, XV, 21), se bem que, na sua misericór-
desses bens caros ao seu coração do que do Cristo, ele é salvo através do fogo. dia, apague os pecados cometidos, se não for negligenciada a satisfação ade-
Mas se, no momento da tentação, lhe acontecesse preferir a posse desses bens quada.
temporais e profanos à posse do Cristo, é porque não o tinha como alicerce,
uma vez que dava àqueles a primazia: pois, num edifício, nada precede o
alicerce. Na passagem precedente, Agostinho sublinhara que, para se ser salvo
Com efeito, o fogo de que falava o Apóstolo nesta passagem deve ser pelo fogo, era preciso ter reunido, na vida terrena, a fé e as obras. Aqui
entendido de tal maneira que os dois devem atravessá-lo: «aquele que sobre (Enchiridton, 69-70) é ainda mais conciso. Não se deve apenas ter dado
este alicerce constrói com ouro, com prata ou com pedras preciosas, e aquele esmolas, é preciso «mudar a vida para melhor» (in me/ius quippe est vila
que constrói com madeira, com erva ou com palha». Dito isto, Paulo acres- mutanda) e, em especial, é preciso entregar-se a uma penitência conve-
centa com efeito: «O que é a obra de cada um, o fogo pô-lo-á à prova. Se a
niente e dar satisfação, isto é, cumprir uma penitência canónica. Neste
obra de um resiste bem, esse receberá a sua recompensa. Mas se ela, pelo
caso a remissão poderá ser conseguida após esta vida (post hanc vitam)
contrário, é consumida, então sossobra; quanto a ele, será salvo, mas como
através do fogo» (I Corintios, m, 13-15). Não é pois só um deles, mas um e graças a «um certo fogo purgatório» (per ignem quemdam purgatorium )
outro, que verão a sua obra posta à prova pelo fogo. sobre o qual Agostinho parece não ter certezas mas que é diferente do
fogo eterno, do fogo do Inferno. Retomará a distinção entre os dois fo-
gos, aquele que atormenta eternamente e aquele que expurga e salva, no
Estes excertos dos capítulos 67 e 68 do Enchiridion testemunham em capítulo XVI do livro XXI da Cidade de Deus. A penitência, em todo o
muitos aspectos o pensamento agostiniano. Primeiro, o seu métouo exe- caso, pode ser tão eficaz que, com excepção dos crimes infames, possa até
gético. Ao texto de S. Paulo (I Coríntios, 111, 13-15), cujo carácter obs- resgatar os pecados que, sem serem infames (infanda), são no entanto
curo reconhece, Agostinho opõe textos claros do mesmo S. Paulo. Deve designados como «crimes» (crimina). O fogo expurgatório é destinado
interpretar-se o texto dificil à luz dos textos exactos. Por outro lado, dis- quer aos fiéis não submetidos à penitência canónica quer àqueles que
tingue cuidadosamente os homens que cometeram crimes (homo scelera- lhe são submetidos mas não a concluíram. Em compensação aqueles
tus, criminat dos que só cometeram delitos muito ligeiros, cujo protótipo que, estando sujeitos à penitência, não lhe foram submetidos, não pode
é sempre, para Agostinho, um apego exagerado aos bens terrenos no ser purificados pelo fogo.
entanto legítimos. Uns e outros, no dia do Julgamento, suportarão a Nos capítulos 109 e 110 do Enchiridion, Agostinho evoca os receptá-
prova do fogo, mas uns perecerão, serão consumidos, enquanto os ou- culos que acolherão as almas entre a morte individual e a ressurreição
tros serão salvos. final. Há lugares de repouso (o seio de Abraão, ainda que não seja refe-

94 95
rido) e os lugares de tormento (a geena igualmente não mencionada) - aliviado os mortos, servem para consolar, mesmo assim, os vivos. O que eles
asseguram àqueles que deles aproveitam é ou a amnistia completa ou, pelo
como no quarto Livro de Esdras, explicitamente citado por Ambrósio.
menos, uma forma mais suportável de condenação aos Infernos.
As almas dos defuntos podem ser ajudadas pelos sufrágios dos vivos:
sacrificio eucarístico, esmolas. É aqui que Agostinho expõe melhor a
sua concepção das quatro espécies de homens. Os bons não têm necessi- O livro XXI da Cidade de Deus (426-427) é de facto consagrado ao
dade de sufrágios que, por sua vez, não podem ser úteis aos maus. Restam Inferno e às suas penas. O objectivo principal de Agostinho é insistir na
os que não são inteiramente bons e os que não são inteiramente maus. eternidade destas. Para além do capítulo XXIV que já citei a propósito da
Esses têm necessidade de sufrágios. Os quase inteiramente bons tirarão categoria de defuntos a quem os sufrágios podem ser úteis, examinarei o
deles beneficios. Quanto aos quase inteiramente maus, parece que o me- capítulo XIII e a maior parte do capítulo XXVI.
lhor que podem esperar é uma «condenação ao Inferno mais suportável» No capítulo XIII, Agostinho reporta-se àqueles que pensam que todas
(to/erabilio damnatio). Agostinho não se explicou a este respeito. Pode as penas desta vida ou do além são expurgatórias, portanto temporárias.
supor-se que sonhava ou com o repouso sabático no Inferno, ou com Retoma a distinção entre penas eternas e penas expurgatórias ou tempo-
tormentos menos cruéis no Inferno também. A ideia de mitigação das rárias, mas desta vez concede mais nitidamente a existência das penas
penas parece aqui exceder o «purgatório». expurgatórias e dá mais pormenores a seu respeito.

No intervalo entre a morte do homem e a ressurreição suprema, as almas XIII. Os platónicos, é evidente, desejariam que nenhum pecado ficasse
são retidas em depósitos secretos onde conhecem ou o repouso ou a pena de impune; pensam, no entanto, que todas as penas são aplicadas com fins cor-
que são dignas, segundo a sorte que talharam para si enquanto viviam na rectivos, sejam elas infligidas pelas leis humanas ou pelas leis divinas, quer
carne. nesta vida quer depois da morte, conforme se foi poupado cá em baixo ou
Não se pode porém negar que as almas dos defuntos sejam aliviadas pelas se foi atingido sem conseguir emenda cá em baixo. Daí este pensamento de
preces dos seus próximos ainda vivos, quando por elas é oferecido o sacrifício Virgilio: depois de ter falado dos corpos terrenos e dos corpos votados à
do Mediador ou na Igreja são distribuídas esmolas. Mas estas obras servem morte, diz ele das almas: «Por isso elas temem e desejam, sofrem e rejubilam
apenas para aqueles que, enquanto viviam, mereceram que elas pudessem e não sentem as brisas, envoltas como estão em trevas e encerradas como estão
servir-lhes mais tarde. na prisão escura.» Prossegue e acrescenta estas palavras: «E mais: quando no
Com efeito, existem homens cuja vida não é sufícientemente boa para não dia supremo a vida as abandona (quer dizer, quando no último dia esta vida
terem necessidade desses sufrágios póstumos, nem suficientemente má para as abandona), todavia o mal não deixa essas infelizes, nem todas as máculas
que eles não possam ajudá-Ios. Ao contrário, há-os que viveram suficiente- corporais as abandonam completamente; é necessário que os numerosos ma-
mente bem para os dispensar e outros suficientemente mal para não poderem les, que com o tempo criaram raízes, se desenvolvam de maneiras espantosas.
tirar deles proveito depois da morte. Pelo que é sempre aqui em baixo que se São, pois, atormentadas com penas e expiam em suplícios os crimes passados;
adquirem os méritos que podem assegurar a cada um, depois desta vida, alívio umas balançam inertes suspensas dos ventos; noutras, a mácula do crime é
ou infortúnio. Aquilo que foi desprezado neste mundo, que ninguém espere lavada no fundo do grande abismo, ou queimada no fogo.» Aqueles que as-
obter de Deus após a morte. sim pensam só admitem penas purgatórias depois da morte: e porque a água,
Assim, as práticas observadas pela Igreja tendo em vista recomendar a o fogo e o ar são elementos superiores à terra, deve-se ser lavado por um deles,
Deus as almas dos defuntos não são contrárias à doutrina do Apóstolo, que por meio de penas expiatórias, de tudo o que o contacto com a terra faz con-
dizia: «Todos nós compareceremos perante o tribunal do Cristo» (Romanos, trair; de facto, o ar é designado pelas palavras «suspensas dos ventos», a água
XIV, 10), para lá recebermos, «cada um segundo o que fez durante a vida, seja por estas: «no grande abismo»; mas o fogo é expresso pelo seu próprio nome,
para o bem, seja para o mal» (11Coríntios, V, 10). Pois é durante a sua vida quando ele diz: «ou queimada no fogo». Quanto a nós, confessamos que,
terrena que cada um se torna merecedor do beneficio eventual das preces em mesmo nesta vida mortal, há penas purgatórias; não são atormentados por elas
questão. Nem todos tiram dele vantagem; e porque será que o proveito que aqueles cuja vida não melhora ou até se torna pior, mas são purgatórias para
dele advém não é o mesmo para todos, se não por causa da vida diferente que aqueles que, castigados por elas, se corrigem. Todas as outras penas, quer
tiveram cá em baixo? temporárias quer eternas, conforme a maneira como cada um deve ser trata-
Os sacrifícios do altar ou da esmola que são oferecidos em intenção de do pela divina Providência, são aplicadas pelos pecados quer passados quer
todos os defuntos baptizados, para aqueles que foram inteiramente bons, actuais, nos quais ainda vive aquele que é por elas atingido, seja para exercer
são acções de graças; para aqueles que não foram inteiramente maus, são ou pôr em evidência as virtudes, e isto por intermédio ou dos homens ou dos
meios de propiciação; para aqueles cuja maldade foi total, por não terem anjos bons e maus. Pois se alguém sofre qualquer mal por maldade ou em de

96 97
------------------------- - -

outrem, este homem peca, na verdade, pois faz mal a outro por ignorância ou Distingue bem duas espécies de salvos através do fogo, prova comum
por injustiça; mas Deus, esse, não peca quando permite isso por um julgamen-
âquelescuja obra resistirá e àqueles cuja obra será consumida. Os primei-
to justo, mesmo que seja secreto. Mas uns sofrem as penas temporárias apenas
nesta vida, outros depois da morte, outro tanto durante como depois desta
ros receberão uma recompensa, quer dizer irão directamente para o Pa-
vida: de qualquer modo, antes desse julgamento muito severo e o último de raíso; os outros começarão por sofrer um desgosto, quer dizer uma
todos. Mas não caem nas penas eternas que virão depois desse julgamento expiação, mas também eles serão finalmente salvos.
aqueles que suportaram as penas depois da morte. Pois para uns aquilo que Agostinho retoma, finalmente, no fim do capítulo XXVI, a exegese do
não é remido neste século será remido o século futuro, quer dizer evitar-lhes-á mesmo texto de S. Paulo e presta dois esclarecimentos. Primeiro, a con-
serem punidos pelo suplício eterno desse século futuro: já o dissemos atrás. lirmação nítida de que o fogo purgatório se exercerá entre a morte cor-
poral e a ressurreição dos corpos «nesse intervalo de tempo» (hoc
temporis interval/o). Depois uma definição das atitudes humanas que le-
Aqui não são visados os cristãos mas os autores pagãos, aqueles que vam ou à condenação aos Infernos ou ao beneficio do fogo purgatório. O
Agostinho chama os «platônicos» e entre os quais inclui Virgílio, reco- critério é a natureza do alicerce sobre o qual o homem construiu a sua
nhecendo assim nos versos do primeiro canto da Eneida que citei uma vida. O único alicerce salutar é o Cristo. Se se preferir para alicerces as
prefiguração do além cristão. Insiste na existência de penas purgatórias volúpias carnais em vez do Cristo, corre-se para a condenação aos Infer-
a que também chama expiatórias. Admite que elas podem ser sofridas nos. Se, pelo contrário, se sacrificou de mais a essas volúpias mas sem as
quer nesta terra quer depois da morte. São temporárias porque acabarão colocar no lugar do Cristo, corno alicerce, ser-se-á salvo «por essa espécie
no dia do Julgamento Final e, nesse momento, os que as tiverem sofrido de fogo».
vão para o Paraíso. Esta última afirmação é muito importante: constitui-
rá um elemento essencial do sistema do Purgatório medieval. Agostinho
Após a morte deste corpo, até que chegue o dia que se seguirá à ressurrei-
repete, enfim, que só poderão beneficiar destas penas purgatórias aqueles ção dos corpos e que será o dia supremo da condenação e da remuneração, se
que se corrigiram durante a vida terrena. se afirma que, neste intervalo de tempo, as almas dos defuntos suportam esta
No capítulo XXVI deste livro XXI da Cidade de Deus, Agostinho espécie de fogo, não o sentem aqueles que nos seus corpos não tiveram du-
retoma, de forma mais aprofundada e subtil, a exegese da primeira epís- rante a vida costumes e amores tais que o seu feno, a sua madeira e a sua palha
tola de Paulo aos Coríntios, III, l3-15. sejam consumidos; mas os outros sentem-no, aqueles que trouxeram consigo
construções de materiais semelhantes; encontram o fogo de uma atribulação
passageira que queimará completamente essas construções que vêm do século,
Vede nas palavras do Apóstolo o homem que constrói sobre o alicerce seja apenas aqui, seja aqui e lá em baixo, ou mesmo lá em baixo e não aqui e
com ouro, prata e pedras preciosas: Aquele que não tem esposa, diz ele, pensa que não são, aliás, passíveis de condenação aos Infernos; pois bem, não repilo
nas coisas de Deus, de que maneira agradar a Deus. Vede o outro que constrói esta opinião, pois talvez seja verdadeira. De facto, dessas atribulações pode
com madeira, com feno, com palha: Mas aquele que está amarrado pelo casa- fazer parte a própria morte da carne, que foi concebida pela perpetração do
mento, pensa nas coisas que são do mundo, de que maneira agradar à sua esposa. primeiro pecado; de tal modo que o tempo que se segue à morte é sentido por
A obra de cada um tornar-se-á manifesta, o dia dá-la-â a conhecer (é o dia da cada um segundo a sua própria construção. Também as perseguições que
atribulação), pois deve revelar-se no fogo, diz ele. (A esta atribulação chama ele coroam todos os mártires e as que sofrem todos os cristãos põem à prova
fogo, como se lerá noutra passagem: O forno põe à prova os vasos do oleiro, os dois géneros de construções, como o fogo; consomem umas juntamente
como a atribulapão faz com os homens justos.) A obra de cada um, o fogo com os construtores, se não encontram nelas o Cristo como alicerce; outras
provará qual é o seu valor. Se a obra de um resiste, (resiste, com efeito, a de sem os construtores se o encontram, pois são salvos mas não sem dor; mas não
quem pensa nas coisas de Deus e como agradar a Deus), pelo que ele tiver consomem outras porque vêem que elas podem subsistir para sempre. Haverá
construído por cima, esse receberá uma recompensa (quer dizer, receberá aqui- também no fim do século, na época do Anticristo, uma atribulação tal que
lo em que pensou); mas aquele cuja obra é consumida sofrerá um desgosto nunca houve outra igual antes. Como serão então numerosas as construções
(porque já não terá o que amou); quanto a ele, será salvo (pois nenhuma quer de ouro quer de feno edificadas sobre o mais sólido alicerce que é Jesus
atribulação o fez desviar-se da estabilidade do alicerce); mas como através Cristo; umas e outras, esse fogo pô-Ias-à à prova, a umas dará alegria, a outras
do fogo (com efeito, aquilo que ele possuiu apenas por amor enganador, prejuízo; não destruirá, no entanto, nem uns nem outros daqueles em que
não o perderá sem dor). E encontrá-mo-lo, parece-me, esse fogo que não encontrar essas construções, em virtude do estável alicerce. Mas quem quer
condenará nenhum dos dois, mas enriquece um, prejudica outro, e põe à que coloque antes do Cristo, já nem digo a esposa com quem estabelece a
prova os dois. união recíproca da carne por causa da volúpia carnal, mas os outros laços

98 99
de afeição habituais entre os homens, mas estranhos àquelas volúpias, aman-
nos é relatado. Pois também os vivos aparecem aos vivos em sonhos, e sem
do-os de uma maneira carnal; esse não tem o Cristo como alicerce; por con-
que o saibam. Vêm a saber pelas pessoas que os viram, enquanto dormiam, o
sequência, não será salvo pelo fogo; não será mesmo salvo simplesmente,
que disseram e fizeram durante a visão. Qualquer um pode, pois, ver-me em
porque não poderá estar com o Salvador que diz muito claramente ao falar
sonhos anunciando-lhe um acontecimento passado ou predizendo-lhe um
nisso: Aquele que ama o seu pai ou sua mãe mais do que a mim, não é digno de
acontecimento futuro. E no entanto eu ignoro totalmente o facto, e nada
mim; e aquele que ama o seu filho ou sua filha de preferência a mim, não é digno
tenho a ver não só com o sonho dele mas também se está acordado quando
de mim. Mas aquele que ama os seus próximos de uma maneira carnal mas
eu durmo, se dorme quando eu estou acordado, se estamos acordados ou
sem no entanto os colocar antes de Cristo Senhor, de modo a preferir ser
dormimos os dois no mesmo momento, quando ele tem o sonho onde me
privado deles a ser privado do Cristo, se a provação o levar a esse extremo,
vê. O que há então de extraordinário no facto de os mortos, sem nada sabe-
esse será salvo pelo fogo, pois é necessário que, pela perda dos seus próximos,
rem nem sentirem, serem vistos em sonhos pelos vivos, dizendo coisas das
a dor o queime em proporção com a força do seu amor. Além disto, aquele
quais, ao acordar, se verifica a veracidade?
que amar o pai, a mãe, o filho ou a filha segundo Cristo, de tal modo que se
Seria levado a crer, em relação a estas aparições, numa intervenção dos
ocupa deles para os fazer atingir o seu reino e ficar unidos a Ele, ou que amar
anjos que, com permissão de Deus e por sua ordem, fazem saber a quem
neles o facto de serem membros do Cristo: queira Deus que esse amor não seja
sonha que tais mortos estão por sepultar, e isto com o desconhecimento dos
de molde a ser classificado entre as tais construções de madeira, de feno e de
próprios mortos.
palha, para ser queimado! então será reconhecido como uma co~strução de
Acontece também de tempos a tempos que visões falsas façam cair em
ouro, de prata e de pedras preciosas. Como pode ele amar mais do que o
erros graves homens que merecem, aliás, cair neles. Alguém, por exemplo,
Cristo aqueles que ama, de facto, em intenção do Cristo?
vê em sonhos o que Eneias viu nos Infernos, como uma ficção poética e fala-
ciosa nos conta (Eneida, VI), quer dizer a imagem de um homem privado de
sepultura. Esse homem diz-lhe as coisas que o poeta põe na boca de Palinuro.
Agostinho e os espectros E eis que ao acordar encontra o corpo do defunto exactamente no local onde
no sonho, com pedidos e rogos para que o sepultasse, soubera que ele jazia.
Não me parece possível abandonar as concepções de Agostinho tão Como a realidade é igual ao sonho, ele será tentado a acreditar que é preciso
importantes para a génese do Purgatório, sem ter mencionado dois pro- inumar os mortos para permitir às almas alcançarem aquelas moradas de
blemas a elas ligados. O primeiro encontra-se no opúsculo Sobre os cui- onde as leis do Inferno as afastam enquanto o corpo não tiver recebido sepul-
tura, conforme lhe fora dito no sonho. Ora, se se tiver esta convicção, não se
dados a ter com os mortos, dedicado a Paulino de Nola entre 421 e 423.
será levado bem longe, para fora do caminho da verdade?
Nele Agostinho retoma um dos seus temas favoritos já evocado na prece
Tal é pois a ignorância humana que, se se vê um morto durante o sono,
por sua mãe Mónica, no livro IX das Confissões. Opõe-se fortemente ao julga-se ver a sua alma, enquanto se sonha com um vivo fica-se perfeitamente
luxo funerário a que cedem certos cristãos, copiando os costumes dos convencido de que não se viu o seu corpo nem a sua alma, mas a sua imagem.
pagãos ricos. Um mínimo de cuidados basta aos mortos, e se Agostinho Como se os mortos não pudessem aparecer da mesma maneira que os vivos,
admite um certo decoro nas exéquias e nos cemitérios, é por mero respeito não sob a forma de uma alma, mas sob uma figura que reproduz os seus
humano. As famílias ficam parcialmente consoladas com isso. Pode-se traços.
deixar-Ihes essa satisfação. Mas na segunda parte do De cura pro mortuis Eis um facto que posso garantir. Estando eu em Milão, ouvi contar que
gerenda Agostinho aborda o problema dos espectros. Afirma primeiro a um credor, para conseguir ser reembolsado de uma dívida, se apresentou ao
sua realidade dando exemplos pessoais. filho do devedor com a promissória assinada por este, que acabava de morrer.
Ora a dívida já fora paga. Mas o filho ignorava-o e ficou numa grande tristeza
Descrevem-se certas aparições que me parecem acrescentar a este debate admirando-se de que o pai, que aliás fizera testamento, nada lhe tivesse dito
um problema não despiciendo. Diz-se que certos mortos se mostraram, quer ao morrer.
durante o sono, quer de outra maneira, a pessoas vivas. Essas pessoas igno- Mas eis que na sua imensa ansiedade vê o pai aparecer-lhe em sonhos e
ravam o local onde o seu cadáver jazia sem sepultura. Eles indicaram-lho e mostrar-lhe o sítio onde se encontra o recibo que anulara aquela promissória.
pediram que lhes arranjassem o túmulo que lhes faltava. Responder que estas Ele encontra-o, mostra-o ao credor e não só nega a sua reclamação mentirosa
visões são falsas é contradizer com atrevimento os testemunhos escritos de mas também entra na posse do papel que não fora restituído ao pai no mo-
autores cristãos e a convicção das pessoas que afirmam tê-Ias tido. A resposta mento do reembolso. Eis, pois, um caso em que a alma do defunto pode
verdadeira é a seguinte. Não se deve pensar que os mortos agem como seres passar por ter tido pena do filho e ter vindo junto dele durante o sono para
conscientes e reais, quando parecem dizer, mostrar ou pedir em sonhos o que o informar do que ele ignorava, e o tirar da sua grande preocupação.

100 101
Mais ou menos na época em que nos relataram este caso e quando eu que as nossas boas obras sejam feitas em vão por aqueles a quem elas não são
ainda estava estabelecido em Milão, aconteceu a Eulogius, professor de elo- úteis nem prejudiciais, do que faltarem aos que podem delas tirar beneficio.
quência em Cartago e meu discípulo nessa arte, como eleme recordou, o facto Todavia, cada um põe mais zelo em fazê-Ias pelos seus parentes, na esperança
seguinte que ele próprio me relatou, quando regressei a Africa: Dizendo o seu de que estes lhes paguem na mesma moeda.
curso respeito às obras de retórica de Cícero, ele preparava a lição para o dia
seguinte; deparou-se-lhe uma passagem obscura que não conseguia compreen- Se citei longamente estes textos espantosos, é porque o Purgatório terá
der. Preocupado, fez todos os esforços para adormecer. E eis que eu lhe apa- grande importância para os espectros: será a sua prisão, mas ser-lhes-á
reci durante o sono e lhe expliquei as frases que haviam resistido à sua permitido escapar dele para as breves aparições aos vivos, cujo zelo em
inteligência. Não era eu, evidentemente, mas a minha imagem, sem eu sa-
seu beneficio seja insuficiente. É importante que também aqui Agostinho
ber. Estava eu então bem longe, do outro lado do mar, ocupado com outro
surja como uma autoridade. Com efeito, este intelectual cristão sempre
trabalho ou sonhando outra coisa, e nada tinha a ver com as suas preocupa-
ções. pronto para denunciar as superstições populares, partilha aqui uma men-
Como se produziram estes dois factores? Ignoro-o. Mas seja como for que talidade comum. Por outro lado, vemo-lo isolado perante a interpretação
eles tenham acontecido, porque não acreditarmos que os mortos nos apare- dos sonhos e das visões. O cristianismo destruiu a sábia oniromancia
cem em sonhos na forma de uma imagem, exactamente como os vivos? Nem antiga e reprime ou recusa as práticas populares de adivinhação. O cami-
uns nem outros sabem disso nem com isso se preocupam. nho dos sonhos está bloqueado, os pesadelos vão nascer. Os homens da
Idade Média levarão muito tempo a recuperar um universo onírico'".
Depois de ter falado das visões que podem surgir durante o delírio ou
em letargia, Agostinho conclui, aconselhando a não se tentar entender
estes mistérios:
() fogo purgatório e a escatologia de Agostinho
Se alguém por acaso me tivesse respondido com estas palavras da Escri-
tura: «Não procures o que está alto de mais para ti, não perscrutes o que é Por outro lado, não se deve separar, mesmo que Agostinho não as
forte de mais para ti, contenta-te com meditar constantemente nos manda- tenha ligado explicitamente, as suas concepções do fogo purgatório e a
mentos do Senhor» (Eclesiastes, IH, 22), eu acolheria este conselho com gra- Nua doutrina escatológica geral, em especial a sua atitude no que respeita
tidão. Não é, com efeito, pequena vantagem, quando se trata de pontos 110 milenarismo ".
obscuros e incertos que escapam à nossa compreensão, ter pelo menos a cer- O milenarismo é a crença de certos cristãos herdada do judaísmo na
teza nítida de que não se deve estudá-los; e, quando queremos instruir-nos na vinda à terra, numa primeira fase do fim dos tempos, de um período de
intenção de saber qualquer coisa de útil, que não é nocivo ignorá-Ia.
felicidade e de paz de mil anos, quer dizer, um tempo muito longo, o
Millenium. Os cristãos milenaristas, numerosos sobretudo entre os gre-
A conclusão geral do opúsculo insiste na utilidade dos sufrágios pelos gos e daí o nome do «chiliasme» - do grego XtÀícx que significa mil -
mortos, com a restrição de que só aqueles que mereceram a salvação que foi a primeira designação da doutrina, baseavam-se sobretudo numa
podem beneficiar com eles. Mas na incerteza da ,sorte que Deus Ihes re- . passagem do Apocalipse de João que certos cristãos que se opunham ao
serva, mais vale fazer de mais do que de menos. E a reafirmação da trio- milenarismo tinham em vão tentado afastar da compilação canónica das
logia auxiliar dos mortos que reencontraremos com o Purgatório: as Escrituras:
missas, as orações, as esmolas:
Depois vi tronos onde eles se sentaram e adiaram-lhes o julgamento; e
Estando o problema no seu conjunto assim resolvido, fiquemos convenci- também as almas dos que foram decapitados pelo testemunho de Jesus e a
dos de que os mortos para os quais vão os nossos cuidados apenas beneficiam Palavra de Deus, e todos aqueles que recusaram adorar a Besta e a sua ima-
das súplicas solenes por eles feitas no sacrificio oferecido no altar e no das gem e deixar-se marcar na testa ou na mão; eles readquiriram vida e reinaram
nossas preces e das nossas esmolas. Façamos todavia a reserva de que essas com o Cristo mil anos. Os outros mortos não puderam retomar vida antes de
súplicas não são úteis a todos, mas só àqueles que durante a vida mereceram terminarem os mil anos. É a primeira ressurreição. Feliz e santo o que parti-
beneficiar delas. Mas como não podemos distinguir aqueles que adquiriram cipa da primeira ressurreição! A segunda morte não tem poder sobre esses, e
este mérito, devemos suplicar por todos os regenerados para não esquecermos eles serão padres de Deus e do Cristo, com quem reinarão mil anos (Apoca-
nenhum dos que podem e devem aproveitar com elas. Mais vale, com efeito, lipse, XX, 4-6).

102 103
A voga do milenarismo entre os cristãos parece ter conhecido o seu Agostinho para a doutrina do futuro Purgatório: «São sobretudo, escre-
apogeu no século lI, e depois ter decrescido. Mas esta crença não desa- veu ele, estas duas vertentes do pensamento agostiniano que a posterida-
parecerá e conhecerá na Idade Média surtos mais ou menos intensos, de vai reter e desenvolver; quer dizer, a tendência para limitar a eficácia
mais ou menos longos, dos quais o principal foi sem dúvida a repercus- do fogo purificador aos pecados ligeiros, e também a transferência desse
são das ideias milenaristas do abade Joachim de Fiore (que morreu em fogo para o período entre a morte e a ressurreição».
1202) na Calábria, no século XIII. São estas, com efeito, as duas principais contribuições de Agostinho.
Agostinho dedicou o livro XX da Cidade de Deus à escatologia dos Por um lado, uma definição muito rigorosa do fogo purgatório num pon-
últimos tempos. Nele apresenta uma crítica vigorosa do milenarismo, to de vista triplo. Aplicar-se-á a um pequeno número de pecadores, será
depois de confessar que foi milenarista durante a juventude. O muito penoso, será uma espécie de inferno temporário (Agostinho é um
Millenium, diz ele, começou com a vinda do Cristo e prosseguiu com o dos grandes responsáveis pela «infernização do Purgatório»); provocará
baptismo que representa para os homens a primeira ressurreição, a das sofrimentos superiores a qualquer dor terrena. Por outro lado, a defini-
almas. Acreditar num Millenium futuro é, no fundo, cometer o mesmo ção do tempo do Purgatório: entre a morte individual e o julgamento
erro que os judeus que continuam à espera do Messias quando ele já geral. Mas Agostinho deixou na sombra dois elementos essenciais do
veio. Do Millenium Agostinho dá, aliás, uma interpretação alegórica. sistema do Purgatório. Primeiro, a definição não só dos pecadores
Mil, que é um número perfeito, dez ao cubo, significa a plenitude dos (nem inteiramente bons nem inteiramente maus) mas também dos
tempos. Por outro lado, Agostinho minimiza um episódio anunciado pe- pecados que conduzem ao Purgatório. Em Agostinho não existe doutrina
lo Apocalipse, o da vinda do Anticristo, personagem demoníaca que deve dos pecados «veniais». Depois a caracterização do Purgatório como
dominar a terra justamente antes do começo do Millenium, quando Sa- lugar. Vemos aqui uma das razões essenciais da recusa de Agostinho de
tanás, ele próprio acorrentado durante mil anos, se tiver libertado. Agos- ir tão longe. Ele define o tempo em oposição aos milenaristas e aos mise-
tinho afirma que o reinado do Anticristo será muito breve e que mesmo ricordiosos. Não define o lugar e conteúdo concreto porque para isso lhe
durante tal reinado nem o Cristo nem a Igreja - que não desaparecerá - seria necessário adoptar algumas das crenças «populares» - trazidas pre-
abandonarão os homens. Esta negação de uma primeira ressurreição dos cisamente pela tradição apocalíptica e apócrifa que ele recusa. A este
justos que virá com o Julgamento Final articula-se com a afirmação de intelectual aristocrata, o «popular» que identifica com o «vulgar- e
um fogo purgatório pelo qual passarão certos defuntos entre a morte e a com o «materialista» causa horror. Quando os Padres conciliares de
ressurreição, sem que possa existir nesse período outro acontecimento l.yon 11 (1274), de Florença (1438) e de Trento (1563) institucionaliza-
escatológico. Pelo contrário, Santo Ambrósio, seguindo Orígenes que ram o Purgatório, a sua tendência foi também para excluir dos dogmas
condenara severamente o «chiliasme» mas que, segundo a sua teoria da c das verdades da fé - num clima visível de desconfiança, pelo menos no
apocatástase, previa para as almas etapas de purificação, afirmara a que toca aos de Trento - todo o imaginário do Purgatório.
existência de várias ressurreições futuras e formulara a hipótese de que Agostinho, apesar das suas incertezas e das suas reticências, admitira
o fogo purgatório se exerceria sobretudo entre a primeira e a segunda o fogo purgatório: o que é também uma das suas contribuições importan-
ressurreição (Comentário ao Salmo I, nl! 54)37. tes para a pré-história do Purgatório, pois esse fogo purgatório constitui,
Nota-se assim, a partir de Agostinho, uma espécie de incompatibili- sob a autoridade de Santo Agostinho, a realidade pré-purgatório até ao
dade entre o milenarismo e o Purgatório. A construção do Purgatório fim do século XII, e continuará a ser um elemento essencial do novo lugar.
poderá mesmo aparecer como resposta da Igreja a surtos de milenaris- Foi porque a desconfiança em relação às crenças e às imagens populares
mo. Mas podemos perguntar-nos se um vestígio, mesmo que residual, regrediu em certa medida entre 1150 e 1250 que o Purgatório pôde nascer
do pensamento milenarista em Santo Agostinho não terá contribuído como lugar. Negativa como positivamente, a posição de Agostinho é
para a imprecisão das suas ideias sobre o fogo purgatório. Como vimos muito esclarecedora para toda esta história ".
no texto do capítulo XXVI do livro XXI da Cidade de Deus, Agostinho, Sobre a doutrina, a teologia cristã começa a afirmar-se: existe a pos-
ao evocar o tempo do Anticristo, vê nele uma recrudescência da activi- sibilidade de resgate, para certos pecadores, depois da morte. Para o tem-
dade do fogo purgatório. A sua concepção do Millenium já existente e das po, a luta contra o milenarismo facilita a individualização de um espaço
atribulações terrenas como início da prova purgatória contribuiu para o de tempo, cujos limites são a morte individual e o julgamento geral.
impedir de conceber um lugar especial para a provação do fogo purgató- Quanto à aplicação, a hierarquia eclesiástica é, no seu conjunto, pruden-
rio. Julgo que Joseph Ntedika caracterizou muito bem a contribuição de te: não se deve alargar a via do além a ponto de se correr o risco de

104 105
esvaziar o Inferno. Mas sobretudo ela sente-se inquieta a respeito da boas obras, teremosde permanecerno fogodo purgatório tanto tempo quan-
materialização desta situação. Procurar localizar com precisão esse Pur- to os nossos pecados insignificantesexigirem,para sermosconsumidos"Como
gatório, definir muito concretamente as provações em que ele consiste é madeira. feno ou palha.
trilhar um caminho perigoso. É verdade que, visto que Paulo falou do Que ninguém diga: Que me importa ficar no purgatório se em seguida
fogo ou da passagem por qualquer coisa que se lhe assemelha (quasi alcanço a vida eterna! Ah! não faleis assim, irmãos carissimos, porque esse
fogo do purgatório será mais penoso do que todas as dores que pudermos
per ignem ), se pode utilizar essa imagem, visto que o fogo pode ser mais
conceber,experimentare sentir neste mundo...
ou menos imaterial e pode eventualmente reduzir-se a uma metáfora. Mas
ceder mais àquela a que Malebranche chamará «a louca da casa» - a
imaginação - seria correr o risco de ser presa do diabo e das suas ilu- Mas o texto latino original de Cesário diz outra coisa. Onde está tra-
sões, e vítima das imaginações pagãs, judaicas, heréticas e, em definiti- duzido fogo do Purgatório, o que está é ignis pur~atorius, fogo purgató-
vo, «populares». E esta mistura de certeza e de desconfiança que rio; e onde se diz «no Purgatório» não está nada 1.
Agostinho propõe e lega à Idade Média. De facto, Cesário reproduz o que foi escrito antes dele pelos Pais da
Atribuía-se a Cesário de Arles (que morreu em 542) uma achega im- Igreja e sobretudo por Santo Agostinho. Em relação a este último está até
portante para a prê-história do Purgatório. Pierre Jay desfez esta má atrasado, pois o fogo purgatório é para ele apenas o fogo do julgamento.
interpretação de dois sermões do bispo de Arles e ajustou com grande Não se trata do intervalo entre a morte e a ressurreição. Como diz judi-
precisão as várias peças nos autos do Purgatório ". ciosamente Pierre Jay: «Não sacrifiquemos, pois, em demasia à ideia de
um progresso contínuo em teologia. Mas Cesário tem sempre o seu lugar
na pré-história do Purgatório, porque os textos mal interpretados têm
Um falso pai do Purgatório: Cesário de Arles tanta importância em história como os outros. Ora os de Cesário retive-
ram tanto mais a atenção do clero da Idade Média quanto foram atribuí-
Cesário de Arles fala do foto purgatório (ignis purgatorius ) em dois dos a Santo Agostinho: autoridades agostinianas, as expressões do bispo
sermões, os sermões 167 e 179. . Deste último, que é o mais importante, de Arles atravessarão os séculos e poderão ser um dia exploradas de ma-
eis a tradução parcial de A. Michel no Dicionário de Teologia Católica neira sistemática por teólogos com preocupações completamente diferen-
(Dictionnaire de théologie catho/ique). É um comentário de S. Paulo, I tes. Nelas se procurará respostas às questões do lugar e da duração do
Coríntios, m, 10-15: purgatório» (P. Jay).
Para bem dizer, Cesárío trazia, em relação aos textos agostinianos
Aqueles que compreendem mal este texto deixam-se enganar por uma autênticos, confirmações sobre dois pontos e sobre um deles uma preci-
falsa segurança.Crêem que, se se construir sobre o alicercedo Cristo crimes são. No seu comentário ao Salmo XXXVII, Agostinho dissera que «o
capitais, essespecados poderão ser purificadospassando através do fogo (per fogo purgatório será mais terrível do que tudo o que um homem possa
ignem transitorium ) e assim alcançar-sea seguir a vida eterna. Corrigi, meus sofrer nesta vida». Cesário, como vimos, repete esta opinião e contribuirá
irmãos, esta maneira de entender:gabar-se de semelhantecoisa é enganar-se para dar aos homens da Idade Média uma imagem aterradora do fogo do
rotundamente. Nesse fogo de passagem (transitorio igne ), de que o Apóstolo Purgatório. Agostinho distinguira pecados muito graves a que chamava
disse: esse mesmo será salvo mas como através do fogo, não são os pecados crimina e que levavam normalmente ao Inferno, e pecados ligeiros, insig-
capitais mas sim os pecados insignificantesque serão purificados... Se bem nificantes, com os quais não eram precisas grandes preocupações. Cesário
que essespecados, segundo a nossa crença, não matem a alma, desfiguram- retoma esta distinção e precisa-a. Chama aos primeiros crimina capitalia:
-na... e não fi deixam unir-se ao esposo celestesenão a troco de uma grande
estamos aqui na fonte dos pecados capitais, cuja doutrina Gregório, o
confusão... E por meio de precesconstantese de jejuns frequentesque conse-
guimosremi-los... e o que não foi remido por nós deveráser purificadonesse Grande, vai consagrar. Em compensação, continua a chamar aos peca-
fogo de que o Apóstolo diz: (a obra de cada um) será revelada pelo fogo; assim dos ligeiros parva (pequenos), quotidiana (quotidianos), minuta (insigni-
ofogo porá à prova a obra de cada um. I Coríntios,III, 13... Por isso,enquanto ficantes), mas sublinha que são eles os que se expiam no fogo purgatório,
vivermosneste mundo, mortifiquemo-nos... e essespecadosserão purificados precisão que não fora feita por Agostinho.
nesta vida de modo que, na outra, essefogo do purgatório ou não encontre Com Cesário, enfim, a atmosfera em que se fala da sorte dos defuntos
nada ou só encontre em nós pouca coisa para devorar. Mas se não dermos e do além muda. O Julgamento Final era um dos temas favoritos das
graças a Deus nas nossas afliçõese se não resgatarmosas nossas culpas com prédicas de Cesário, que dissertava de melhor vontade sobre o Inferno

106 107
do que sobre a ressurreição e o Paraíso. Ele próprio confessa num sermão urbano - que cria sobre o Caelius numa da mansões familiares atribui-
que os seus ouvintes o censuram por falar constantemente de temas as- -se altas funções. É, assim, prefeito da cidade, encarregado dos problemas
sustadores (tam dura). Ainda mais do que em Agostinho, a sua preocu- de abastecimento numa Itália presa dos Bízantinos, dos Godos, dos Lom-
pação é convencer os fiéis da realidade do fogo eterno, e da duração do bardos, da peste; e depois apocrisiário, quer dizer embaixador do Papa
fogo temporário. Está obcecado, escreveu-se, pela «imagem das suas ove- junto do imperador de Constantinopla. Em 590 é chamado ao trono de
lhas perante o juízo eterno». A sua preocupação é essencialmente pasto- S. Pedro em circunstâncias dramáticas: o Tibre está numa das suas terrí-
ral. Pretende munir os fiéis de ideias simples, de receitas, de uma bagagem veis enchentes e inunda a cidade no meio de prodígios angustiantes; prin-
sumária. E assim que organiza listas de pecados «capitais» e «insignifi- cipalmente uma terrível epidemia de peste (um dos surtos mais intensos
cantes», o que Agostinho não tinha feito. Tem-se explicado em larga da grande pandemia, a primeira peste negra, chamada de Justiniano, que
medida esta atitude pela barbarízação da sociedade e da religião. Mas desde há um século devastava o Médio Oriente, o mundo bizantino, a
este fenómeno inegável que marca a entrada na Idade Média propriamen- Africa do Norte, e a Europa mediterrânica) dizimava a população. Co-
te dita é mais complexo do que se tem pensado. mo Cesário e, mais do que ele, dada a sua função, a sua personalidade e o
Primeiro, não se deve atribuir apenas aos «bárbaros» a «responsabi- momento histórico, Gregório vai ser um pastor escatológico. Persuadido
lidade» por esta descida do nível cultural e espiritual. O acesso à religião da proximidade do fim do mundo, lança-se apaixonadamente num gran-
cristã das massas camponesas, dos «bárbaros» do interior, é um fenóme- de empreendimento de salvação do povo cristão do qual deverá dentro
no pelo menos tão importante como o da instalação de invasores e imi- em breve prestar contas diante de Deus. Aos cristãos do interior multi-
grantes vindos do exterior do mundo romano. Uma faceta desta plica as instruções salutares, comentando a Escritura, sobretudo os pro-
«barbarizaçãox é a democratização. Aqui as coisas complicam-se ainda fetas, apoiando os frades com meditações sobre o Livro de Job,
mais. Os chefes da Igreja pregam uma religião igualitária, querem estar ensinando o clero secular por um Manual de pastoral, chamando os lai-
ao alcance das suas ovelhas, fazem um esforço na direcção do «pOVO)). cos a uma vida toda virada para a salvação pelo enquadramento litúrgico
Mas ~les são, em grande maioria, aristocratas urbanos imbuídos dos pre- (é um grande organizador de procissões e de cerimónias) e pelos ensina-
conceitos da sua classe e estreitamente ligados aos seus interesses terre- mentos morais. Aos povos de fora, dá missionários: os Ingleses haviam
nos. O desprezo pelo rústico e o ódio ao paganismo, a sua incompreensão regressado ao paganismo e ele envia para Canterbury uma missão que
perante comportamentos culturais exóticos, rapidamente alcunhados de inicia a reconquista cristã da Grã-Bretanha. Aos italianos dá uma hagio-
superstições, levam-nos a pregar uma religião de terror, que se volta mais grafia e, entre os padres italianos, distingue um monge recentemente de-
facilmente para o Inferno do que para um processo de mitigação das saparecido, Benedito do Monte-Cassino, de quem faz um dos grandes
penas. O fogo purgatório, discretamente aceso pelos Padres, em especial santos da cristandade. Entre aqueles cristãos a salvar, porque não have-
por Agostinho, vai manter-se latente durante muito tempo, sem encon- ria mortos recuperáveis? A paixão escatológica de Gregório vai exercer-se
trar, neste mundo de insegurança, lutas elementares iluminadas pelo fogo para lá da sua morte42•
mais poderoso do julgamento (mais ou menos confundido com o clarão A contribuição de Gregório, o Grande, para a doutrina do Purgatório
sinistro do fogo da geena) que o reacendam. é tripla. Nas Mora/ia in Job, dá alguns esclarecimentos sobre a geografia
do além. Nos Dia/ogi, ao mesmo tempo que fornece algumas indicações
doutrinárias, conta sobretudo pequenas histórias onde põe em cena os
Histórias do Purgatório neste mundo: Gregório, o Grande, último pai do mortos, enquanto expiam os pecados, antes do Julgamento Final. En-
Purgatório fim, a história do rei godo Teodorico levado para o Inferno, se bem
que não refira um lugar «purgatório», poderá ser mais tarde considerada
E, no entanto, é nestas perspectivas escatológicas, movido por um zelo uma peça antiga do processo da localização terrestre do Purgatório. Nas
pastoral ardente num contexto terreno dramático, que um pontífice vai Mora/ia in Job (XII-13), Gregório comenta o versículo do Livro de Job,
reanimar a chama purgatória. Depois de Clemente de Alexandria e de 14-13: Quis mihi tribuat ut in inferno protegas me? (Que a Bíblia de Jeru-
Orígenes, depois de Agostinho, o último «fundador» do Purgatório é salém traduz por Oh! se tu me abrigasses no shéo/ pois é bem deste inferno
Gregório, o Grande. judaico que se trata). Gregório tenta resolver o seguinte problema: antes
Gregório pertence a uma grande família aristocrata romana. Antes da vinda do Cristo era normal que todos os homens caíssem no Inferno,
e depois da sua «conversão», ao tomar o hábíto monástico no mosteiro pois era necessária a vinda do Cristo para reabrir o caminho do Paraíso,

108 109
mas os justos não deviam cair naquela parte do Inferno onde se é tortu- então, também do ponto do alto desta terra, a região do inferno que está por
rado. Com efeito, existem no Inferno duas zonas, uma superior para o cima das outras moradas do inferno pode receber com propriedade o nome de
repouso do justo, outra inferior para os tormento do não justo. profundezas do inferno, pois o que o ar é para o céu e a terra para o ar, esse
lugar superior do inferno também o é para a terra'".

«Quem me conseguirá a graça de que me protejas no Inferno?» Que antes


da vinda do Mediador entre Deus e o homem, todos os homens, por mais Homem do concreto, Gregório interessa-se pela geografia do além. O
puras e seguras que fossem as suas vidas, tenham de descer às masmorras Inferno superior de que fala será o limbo dos Padres; mas no século XIII,
do Inferno, eis o que já não oferece dúvidas, visto que o homem que caiu quando o Purgatório já existe, ao procurar-se referências a ele os textos
por si próprio não poderia voltar ao repouso do Paraíso se não tivesse vindo do Antigo Testamento falando de profundezas do Inferno serão interpre-
aquele que, pelo mistério da sua encarnação, iria também abrir-nos o caminho tados à luz da exegese de Gregório, o Grande.
do Paraíso. Eis porque, depois do pecado do primeiro homem, segundo as No livro IV dos Diálogos, Gregório, o Grande, ensina algumas verda-
palavras da Escritura, uma espada fulgurante foi colocada à porta do Paraí- des fundamentais do cristianismo e, em especial, a eternidade da alma, a
so; mas também ficou dito que essa espada era rodopiante, porque viria o dia sorte no além, a eucaristia, com a ajuda de historietas - muitas vezes
em que também ela podia ser afastada de nós. Porém, não queremos dizer com visões - a que chama exempla e que anunciam os exempla do século
isto que as almas dos justos tenham descido aos infernos para ficarem retidas
XIII que vulgarizarão a crença no Purgatório. A sorte de certos defuntos
nos campos de suplício. Existe no Inferno um campo superior e há também
depois da morte é evocada com o auxílio de três histórias repartidas por
um campo inferior, assim deve ser a nossa fé; o campo do alto está prometido
ao repouso do justo e o de baixo aos tormentos do não justo. De lá vêm dois capítulos. Estas histórias são respostas a duas questões doutrinárias,
também estas palavras do salmista quando a graça de Deus surge na sua uma respeitante ao fogo purgatório e outra à eficácia dos sufrágios pelos
frente: «Tu arrancaste a minha alma ao Inferno inferior.» Assim, sabendo mortos.
que antes da vinda do Mediador, desceria aos Infernos, o bem-aventurado O diácono Pedro, interlocutor e admirador de Gregório, pergunta-lhe:
Job espera encontrar lá a protecção do seu criador para se manter estranho «Quero saber se devo acreditar que depois da morte existe um fogo
ao campo dos suplícios, num lugar onde, no caminho do repouso, a vista dos purgatório'".» Gregório responde em primeiro lugar com uma exposição
suplícios lhe fosse poupada 43. dogmática baseada em textos das Escrituras'", dos quais o mais impor-
lante é a passagem da primeira epístola de Paulo aos Corintios sobre a
Um pouco mais adiante (Moralia in Job, XIII, 53) Gregório retoma e sorte dos diferentes materiais das obras humanas. As primeiras referên-
aprofunda o problema a propósito de um outro versículo do Livro de cias parecem provar que os homens se reencontrarão no Julgamento Fi-
Job, 17-16: In profundissimum infernum descendent omnia mea: nal no estado em que estavam no momento da morte. Mas o texto de
Paulo parece significar «que se deve acreditar que para certos pecados
«Tudo o que é meu descera às profundezas do Inferno.» É certo que nos ligeiros haverá um fogo purgatório antes do julgamento». E Gregório
Infernos os justos ficavam retidos não nos campos dos suplícios mas no lugar dá exemplos desta categoria dos «pecados pequenos e mínimos»: a taga-
superior do repouso: assim nos surge um grande problema sobre o sentido relice constante, o riso excessivo, o apego aos bens particulares, todos
desta afirmação de Job: «Tudo o que é meu descerá às profundezas do Infer- pecados que, cometidos consciente ou inconscientemente pelos seus auto-
no.» Pois, se antes da vinda do Mediador entre Deus e os homens ele tinha de res, embora ligeiros, pesam sobre eles depois da morte, se não foram
descer ao Inferno, é no entanto evidente que não teria de descer às profunde- expurgados nesta vida47• Quanto ao que Paulo quis dizer, é que se se
zas do Inferno. Não será o caso de ele dar justamente à zona superior o nome construiu com ferro, com bronze ou com chumbo, quer dizer, se se co-
de profundeza do Inferno? Pois, bem o sabemos, do ponto de vista das abó- meteram «os pecados máximos e portanto mais duros», esses pecados não
badas do céu, a região da nossa atmosfera pode ser correctamente chamada podem ser desfeitos pelo fogo; mas sê-lo-ão em compensação aqueles que
um inferno. Daí que, quando os anjos apóstatas foram precipitados da mo-
são de madeira, ou de palha, quer dizer «os pecados mínimos e muito
rada celestial para esta atmosfera sombria, o apóstolo Pedro diga: «Ele não
poupou os anjos que haviam pecado; levou-os acorrentados com as grilhetas
ligeiros». Mas esta destruição pelo fogo dos pecados pequenos só poderá
do Inferno para os entregar ao Tártaro e os reservar para os suplícios do ser obtida depois da morte se foi merecida, durante esta vida, por meio de
julgamento.» Se, pois, do ponto de vista do cimo do céu, essa atmosfera som- boas acções.
bria é um inferno, também do ponto de vista dessa atmosfera, a terra, que é Gregório opta, pois, por uma concepção muito agostiniana, mas põe
para o céu uma zona inferior, pode ser chamada um inferno profundo; mas em evidência os pecados «ligeiros, pequenos, mínimos» que define, e situa

110 111
a acção do fogo nitidamente depois da morte, não incluindo nela as atri- do-lhe que aceitasse o que lhe oferecia com afecto. Mas este respondeu
bulações terrenas como Agostinho tinha tendência para fazer. ltistemente: "Pai, porque me dás isto? Este pão é santo e eu não posso
A novidade vem sobretudo da ilustração pela anedota. «Quando eu comer dele. Tal como me vês, fui outrora o dono deste lugar, mas por
era ainda muito jovem e no estado laico ouvi contar (uma história) por Ccusa dos meus pecados fui mandado para aqui depois de morrer. Se
pessoas mais velhas e mais entendidas.» Pascase, diácono do tribunal quiseres ser-me útil, oferece este pão a Deus Todo-Poderoso, para inter-
apostólico, autor de uma bela obra sobre o Espírito Santo, foi um ho- ceder pelos meus pecados. Saberás que foste atendido quando já não me
mem com uma vida santa que gostava de dar esmolas e tinha desprezo encontrares aqui." Com estas palavras desapareceu, revelando assim que
por si mesmo. Mas no cisma que opôs durante dez anos e mais a partir de eta na realidade um espírito sob aparência humana. Durante toda a se-
498, dois papas, Símaco e Lourenço, Pascase foi obstinadamente partidá- mana o padre verteu lágrimas por aquele homem, todos os dias ofereceu a
rio do «falso» papa Lourenço: Quando Pascase morreu, um exorcista hóstia salutar; depois voltou aos banhos e já não o encontrou. Eis bem a
tocou a sua dalmática colocada sobre o caixão e ele imediatamente foi prova da utilidade para as almas do sacrifício da oferenda sagrada» 48,
salvo. Bastante tempo depois da sua morte, Germano, bispo de Cápua pois os próprios espíritos dos mortos o pedem aos vivos e indicam com
provavelmente entre 515 e 541, foi tratar-se com as águas dumas termas que sinais se reconhecerá que foram absolvidos.
nos Abruzos, próximo da actual Città San Angelo. Qual não foi a sua A esta história Gregório acrescenta logo outra. Aconteceu no seu pró-
surpresa ao encontrar ali Pascase como empregado dos banhos. Pergun- prio mosteiro três anos antes. Vivia lá um monge chamado Justo, espe-
tou-lhe o que fazia ali e Pascase respondeu: «A única razão por que fui citalista em medicina. Justo caiu doente sem esperança de cura e foi
mandado para este lugar de punição (in hoc poena/o loco) foi ter tomado a~sistido pelo seu irmão carnal Copioso, também ele médico. Justo con-
o partido de Lourenço contra Símaco, mas peço-te que rogues ao Senhor t~ssou ao irmão que escondera três moedas de ouro e este mais não pôde
por mim e saberás que foste atendido se ao voltares aqui já não me en- ti\zer do que informar os monges.
contrares.» Germano fez ardentes preces e alguns dias depois voltou lá e Encontraram as moedas de ouro escondidas com os medicamentos.
não encontrou Pascase. Mas Gregório acrescenta que se Pascase foi ex- Contaram isto a Gregório que reagiu vivamente, pois a regra do mos-
purgado do seu pecado depois da morte, foi porque só pecara por igno- te:iro estipulava que os monges tivessem tudo em comum. Gregório,
rância e porque as grandes esmolas que fizera enquanto vivia lhe pcerturbado, perguntou-se o que poderia fazer de útil ao mesmo tempo
mereceram o perdão. plitra a «purgação» do moribundo e para edificação dos monges. Proibiu
A segunda questão teórica que Pedro põe a Gregório diz respeito aos IICtlsmonges que respondessem aos apelos do moribundo se este os
sufrágios pelos mortos: deesejasse junto de si e ordenou a Copioso que dissesse ao irmão que
«PEDRO: Qual é a maneira de ajudar as almas dos mortos? 0% monges, sabendo do seu acto, sentiam por ele repulsa, até que se
GREGÓRIO: Se os pecados não são irremíveis depois da morte, a IIl'rrependesse no momento de morrer. E quando o seu corpo estivesse
oferenda sagrada da hóstia salutar é geralmente de grande ajuda para mrorto não seria enterrado no cemitério dos monges mas lançado para
as almas, mesmo depois da morte, e por vezes vêem-se almas de defuntos urm buraco do lixo e os monges atirariam para sobre o seu corpo as três
que as reclamam. mioedas de ouro, gritando: «Que o teu dinheiro fique contigo, para tua
Eis o que o bispo Felix me afirmou saber dum padre que morreu há ~rdição.»
dois anos, depois de uma vida santa. Habitava ele na diocese de Centum Tudo se passou e foi feito como previsto. Os monges, aterrados, evi-
Cellae e ministrava a igreja de São João em Taurina. Este padre tinha o tll.ram todos os actos repreensíveis. Trinta dias depois da morte de Justo,
hábito de se lavar, sempre que o corpo lho exigia, naquele local onde o,regório pôs-se a pensar com tristeza nos suplícios que devia estar a
abundantes vapores emanam das fontes quentes e era ajudado nisto l'ÜI)frero monge defunto e ordenou que, durante os trinta dias seguintes,
com grande cuidado. Como tal se repetisse com frequência, o padre, ao fOlsse celebrada diariamente uma missa em sua intenção. Ao fim de trinta
voltar aos banhos, disse um dia para consigo: "Não devo parecer ingrato dil.as, o morto apareceu ao irmão, de noite, e disse-lhe que até àquele dia
para com aquele homem que me ajuda a lavar com tanta dedicação; te- tirnha sofrido, mas que acabava de ser admitido à comunhão (dos eleitos).
nho de lhe dar um presente." E trouxe duas coroas de presente. Logo que F<oi evidente que o morto escapara aos tormentos graças à hóstia
chegou, encontrou o homem que lhe prestou todos os serviços, como era IIUI(utar49.
costume. O padre lavou-se e, já vestido e pronto para se ir embora, à No seu zelo de pastor, Gregório, o Grande, compreendeu duas exigên-
guisa de bênção, ofereceu o que trouxera ao homem que o servia, pedin- ci~usda psicologia colectiva dos fiéis: a necessidade de testemunhos autên-

112 113
ticos, prestados por testemunhas dignas de crédito; a necessidade de ter espaço especial, uma região do além. Quanto aos mortos do Purgató-
indicações sobre a localização das penas purgatórias. rio, já não Ihes será permitido virem solicitar os vivos mesmo que por
Sobre o primeiro ponto as histórias de Gregório são tanto mais im- alguns instantes. Ter uma actividade cá em baixo ser-lhes-á severamente
portantes quanto virão a ser o modelo das histórias com cuja ajuda a recusado. O Purgatório ter-se-á transformado num lugar de detenção dos
Igreja difundirá, no século XIII, a crença no Purgatório finalmente criado espectros.
em definitivo. Implicam elas a possibilidade de controlo da verdade da Último fundador do Purgatório, Gregório, no entanto, apenas consa-
história: a designação de um informador digno de crédito, as precisões gra a essa crença um interesse muito secundário. O essencial, para ele,
de tempo e lugar. Comportam também um esquema susceptível de levar continua a ser o facto de no dia do Julgamento só existirem duas catego-
a crença para dois outros planos: os atractivos de um relato com as se- rias: os eleitos e os condenados. Cada categoria abordará de duas manei-
duções da narração, uma intriga, pormenores picantes, um «suspense», ras possíveis a sua sorte eterna, directa ou indirectamente após o
um desenlace surpreendente; as evidências de um sobrenatural palpável: Julgamento, no momento da ressurreição. «Uns são julgados e pere-
visionamento e verificação da realização da acção eficaz dos vivos. Tudo cem, os outros não são julgados mas perecem (também imediatamente).
isto se encontrará na crença do verdadeiro Purgatório, incluindo a natu- Uns são julgados e reinam, os outros não são julgados mas reinam (tam-
reza dos laços entre vivos e mortos que funciona na subtracção dos de- hém imediatamente).»
funtos às provações purgatórias. Os vivos solicitados e eficazes devem ser Num grande capítulo, o XXXVII do livro IV dos Diálogos, Gregório,
parentes, por parentesco carnal ou espiritual, dos defuntos a expurgar. o Grande, faz uma descrição já não do Purgatório terreno mas do além.
Enfim, a trilogia dos sufrágios é afirmada nestas anedotas: preces, esmo- Um certo Estêvão morre inopinadamente em Constantinopla e, à espera
las e, acima de todos, o sacrificio eucarístico. de ser embalsamado, o seu corpo fica sem sepultura durante uma noite e a
A segunda originalidade de Gregório é, em duas das suas três histó- Nua alma será levada para os Infernos onde visita numerosos lugares;
rias, ter situado cá em baixo o local de expiação. Lugar espantoso, na mas, quando a apresentam a Satanás, este diz que se enganaram no mor-
verdade. Trata-se de termas. Por um golpe de génio, Gregório designa to. E um outro Estêvão, o ferreiro, que ele espera, e o primeiro Estêvão
um lugar particularmente digno da sua escolha: este aristocrata romano volta à vida enquanto o ferreiro morre. Estêvão morreu durante a epide-
escolheu um dos edificios mais essenciais à civilização romana sobrevi- mia de peste, em 590. Um soldado ferido que esteve morto durante um
vente, o lugar por excelência da higiene e da sociabilidade antigas. Este instante e depois se reanimou visita, por seu lado, os Infernos durante
pontífice cristão escolhe a seguir um lugar onde a alternância dos cuida- esse breve instante e faz deles uma descrição pormenorizada que foi trans-
dos quentes e dos cuidados frios corresponde à estrutura dos lugares mitida a Gregório. Viu «uma ponte por baixo da qual corria um rio negro
purgatórios desde as mais antigas religiões de que o cristianismo her- c sombrio que exalava vapores com um cheiro insuportável»; depois de se
dou; enfim, nesta mistura de sobrenatural e de quotidiano onde os em- utravessar a ponte encontravam-se prados encantadores, flores e homens
pregados dos banhos são espectros e os vapores termais eflúvios do além, vestidos de branco deambulando por entre odores suaves, casas cheias de
um grande temperamento imaginativo se revela. luz, algumas de ouro. Nas margens do rio havia alguns habitáculos, uns
Paradoxalmente, a contribuição mais importante de Gregório para a envoltos numa nuvem fétida, outros ao abrigo do mau cheiro. A ponte
génese do Purgatório será, no século XIII, a mais sacrificada pela nova era uma provação: se um não justo queria atravessá-Ia, caía no rio tene-
crença. Gregório perfilhou a ideia de que o Purgatório podia ser sofrido broso e fétido, mas os justos passavam-se sem entraves e alcançavam
cá nesta terra, em locais onde se tinham cometido pecados e que se tor- aqueles lugares amenos. Estêvão também falara desta ponte e contara
navam locais de punição: era-se punido lá onde se havia pecado, como o que, quando quisera atravessá-Ia, escorregou-lhe um pé e ele ficou caído
director das termas surgido em espectro no local não dos seus crimes, mas por metade. Horríveis homens negros que saíram do rio puxavam-no
dos seus pecadilhos, transformado em «lugar penal» (in hoc loco poenali). para baixo pelas coxas, enquanto de cima homens brancos muito belos
A autoridade de Gregório fará com que a ideia de um Purgatório na terra o puxavam pelos braços. Durante esta luta, acordou. Compreendeu o
seja ainda evocada após o nascimento do «verdadeiro» Purgatório, mas sentido da sua visão, pois de um lado sucumbia às tentações da carne,
como uma hipótese pouco verosímil, como uma espécie de curiosidade do mas do outro dava grandes esmolas; a lascívia atraía-o para baixo, a
passado. Tomás de Aquino ou Jacopo da Varazze na Lenda dourada caridade para cima. Depois ele corrigiu perfeitamente a sua vida.
ainda a mencionam. Mas no século XIII os dados do Purgatório estão Ultima peça do processo (ou quase, como veremos ... ), Gregório, no
lançados e não têm por palco os lugares quotidianos da terra mas um capitulo XXXI do livro IV dos Diálogos, conta uma história que tem a
11

114 115
li
I'

:i
ver com o Inferno mas que mais tarde desempenhará um papel na história NOTAS
do Purgatório. Conta-nos ele o que lhe foi relatado por um certo Julião,
benévolo «defensor» da Igreja Romana que morreu sete anos antes. Na
época do rei Teodorico (que morreu em 526), um parente de Julião que
tinha ido à Sicília recolher os impostos, naufragou no regresso junto da
ilha Lipari e foi recomendar-se às preces de um eremita famoso que lá
vivia. Este disse ao náufrago: «Sabeis que o rei Teodorico morreu?» e,
perante a incredulidade do outro, acrescentou: «Ontem, às três horas
da tarde, em camisa e descalço, com as mãos atadas e entre o Papa João
e o patrício Símaco, ele foi levado para a vizinha ilha de Vulcano e foi
lançado na boca da sua cratera.» De volta a Itália, o parente de Julião
soube da morte de Teodorico e, como ele tinha injustamente condenado à
morte o Papa João e o patrício Símaco, pareceu-lhe normal que tivesse
sido enviado para o fogo (eterno) por aqueles que perseguira. I Sobre Clemente de Alexandria e Origenes na perspectiva da génese do Purgató-
O castigo lendário de Teodorico é uma das peças a incluir no processo rio, o estudo essencial continua a ser G. ANRICH, «Clemens und Origines ais Begrün-
da utilização política do além. der der Lehre vom Fegfeuer» in Theologische Abhandlungen, Festgabe für H. H.
Ameaçar com as penas do além um dirigente laico tem sido um ins- Holtzmann, Tübingen, Leipzig, 1902, pp. 95-120. Boa exposição, de um ponto de
trumento poderoso nas mãos da Igreja. Mostrar no fogo do castigo um vista católico, por A. MICHEL «Origêne et le dogme du Purgatoire» in Questions
rcclésiastiques, Lille, 1913, resumido pelo autor no seu artigo «Purgatoire» do Dic-
morto ilustre confere a essa ameaça um valor de prova e um relevo in- tlonnaire de Théologie catholique, col. 1192-1196. Observações breves mas judiciosas,
comparável. O imaginário do além foi uma arma política. Mas Gregório, do ponto de vista da pré-história do Purgatório, mas de A. PIOLANTI, «Il Dogma dei
o Grande, só ainda dispõe do Inferno. Recorrer a esta arma suprema só Purgatório» in Euntes Docete, 6, 1953; do ponto de vista do baptismo pelo fogo, de c.-
pode fazer-se em casos extremos. O Purgatório permitirá modular a M. EDSMAN, Le Baptême de feu, pp.3-4; do ponto de vista da exegese da primeira
ameaça. epístola de Paulo aos Corintios, in J. GNILKA, 1st 1 Kor. 3, 10-15, ein Schrlftzeugnis
Outro sinal precursor nesta visão: aquela entrega do rei perseguidor fur das Fegfeuer? especialmente p. 115.
2 Os principais textos citados por G. ANRICH, p. 99, n. 7 e p. 100, n. 1, são
de cristãos ao fogo do Inferno faz-se num vulcão e na Sicília. A Idade
(tI/tas 34, 478 e 81, 525, Phédon, 62, l13d, Protagoras, 13, 324b, Lois, V, 728c.
Média lembrar-se-á desta boca de fogo em que procurará ver uma das CLEMENTE DE ALEXANDRIA, Stromata, V, 14 e VII, 12.
bocas do Purgatório. 4 ORÍGENES, De principiis, lI, 10, 6 e De oratione, 29.
5 aliis sub gurgite vasto

infectum eluitur scelus, aut exuritur igni

donec longa dies perfecto temporis orbe


concretam exemit labem, purumque relinquit
aetherium sensum ...
6 CLEMENTE DE ALEXANDRIA, Stromata, IV, 24.
7 Id., Stromata, VII, 6.

8 ORÍGENES, In Exodum, homilia 6, in Patrologie Grecque, XIII, 334-335; In


l eviticum, homilia 9, PG, 12,519.
Y Por exemplo, In Jeremiam, homilia 2; In Leviticum, homilia 8; In Exodum, ho-
milia 6; In Lucam, homilia 14, ete.
10 De principiis, lI, n. 6; In Ezechielem, homilia 13, n. 2; In Numeros, homilia 26.
11 Cf. K. RAHNER, «La doctrine d'Origêne sur Ia pénitence» in Recherches de
."dence religieuse, 37, 1950.
12 «Aliud pro peccatis longo dolore cruciatum emundari et purgari diu igne, aliud

",ccala omnia passione purgase, aliud denique pendere in die judicii ad sententiam Do-
m/n/, aliud statim a Domino coronari.»

116 117
13 A. MICHEL, artigo «Purgatoire» in Diclionnaire de théologie catholique, col. 1214. animae il/o die dignatus est polliceri. Quae si ita sunt, genera/e paradisi nomen est, ubi
14 P. JA Y, «Saint Cyprien et Ia doctrine du Purgatoire» in Recherches de théologie [cliciter vivitur. Negue enim quia paradisus est appelatus, ubi Adam fuit ante peccatum,
ancienne et médiévale, 27, 1960, pp. 133-6. propterea scriptura prohilita est etiam ecc/esiam vocare paradisum cum fructu pomo-
15 «emundatio puritatis ... qua iudicii igni nos decoquat» (PL, IX, 519 A).
rum.»
34 Palavra grega que significa «manual», termo que, a partir do século XVI, terá a
16 In In Psalmum CXVIII, sermo 20, PL, 15, 1487-1488. Ver também sobre a prova

do fogo In Psalmum CXVIII, sermo 3, PL, 15, 1227-1228 e In Psalmum XXVI, 26, PL, voga que se conhece.
14, 980-981. 35 Esbocei as linhas de uma pesquisa sobre os sonhos e sua interpretação no oci-
17 «et si salvos faciet Dominus servos suos, salvi erimus per fidem, sic tamen salvi dente medieval em «Les rêves dans Ia culture et Ia psychologie collective de I'Occident
quasi per ignum» (Explanatio -Psalmi XXXVI, n. 26, Corpus Scriptorum Ecclesiastico- médiêval» in Scolies, 1,1971, pp. 123-130, retomadas em Pour un autre Moyen Âge, pp.
J.1J9-306.
rum Latinorum, 64, p. 92).
36 S b
18 De obitu Theodosi, 25, CSEL. 73, 383-384. o re o rm'1enansmo
. ver a nota de G. BARDY em Santo Agostinho, a Cidade de
19 De excessu Satyri, I, 29, CSEL. 73, 225. Deus, XIX-XXII, Bibliothêque augustintenne. t. 37, Paris, 1960, pp. 768-771 e J. Le
20 «Et sicut diaboli et omnium negatorum atque temptorum qui dixerunt in corde suo: (iOft, artigo «Milena~i~mo» in Encyclopaedia Universalis, vol. n, 1971, pp. 30-32.
Non est Deus, credimus aeterna tormenta; sic peccatorum el tamen christianorum, quo- . O texto de Ambrósio encontra-se em Patrologie latine, t. 14, col. 950-951. Et ideo
rum opera in igne probanda sunt atque purganda, moderatam arbitramur et mixtam quoniam et Savaltor duo genera resurrectionis posuit, et Joannes in Apoca/ypsi dixit:
c1ementiae sententiam sudicis» (In Isaiam, LXVI, 24, PL, L4, 704 B). lIeatus qui habet partem in prima resurrectione (Apocalypse, XX, 6) isti enim sine
21 «Qui enim tota mente in Christo confidit, etiam si ut homo lapsus mortuusfuerit in judicia veniunt ad gratiam, qui autem non veniunt ad primam resurrectionem, sed ad
peccato, fide sua vivit in perpetuum.» secundam reservantur, isti urentur, donec impleant tempora inter primam et secundam
22 «Ideo autem dixit: sic tamen quasi per ignem, ut salus haec non sine poena sit; quia rrsurrectionem, aut si non impleverint , diutius in supplicio permanebunt. Ideo ergo roge-
non dixit: sa/vus erit per ignem; sed cum dicit: sic tamen quasi per ignem, ostendit salvum mus ut in prima resurrectione partem habere mereamur.
illum quidem futurum, sed poenas ignis passurum; ut per ignem purgatus fiat salvus, et 38 As traduções das Confissões, do Enchiridion, da Cidade de Deus e do De cura
non sicut perfidi aeterno igne in perpetuum torqueati ut ex aliqua parte operae pretium /l1'rendapro mortuis são tiradas dos respectivos volumes da Bibliothéque augustinienne.
sit, credidisse in Christum» (PL, 17,211). l.imitei-me a corrigir alguns termos que me pareceram mal traduzidos: por exemplo,
23 «Transivimus per ignem et aquam et induxisti nos in refrigerium.» purgatário em vez de purificador na expressão ignis purgatorius; e temporárias em vez
24 Epist., 28 (CSEL, 29, 242-244) e Carmen, 7, 32-43 (CSEL, 30, 19-20). de temporais na expressão poenae temporariae.
25 Encontra-se também ignis purgationis, o fogo da purgação (De Genesi contra W P. JAY, «Le Purgatoire dans Ia prédication de saint Césaire d'Arles» in Recher-

Manicheos, Il, XX, 30) e ignis emendatorius fogo corrector (Enarrationes in Psa/mos rhes40de théologie

ancienne et médiévale " 24 (1957) ,. pp 5-14 .
XXXVII, 3). Na passagem da Cidade de Deus, XXI, XIII, onde se encontra por três CESARIO DE ARLES, Sermones, ed. G. Morin e C. Lambot, Corpus Christia-
veres em doze linhas a expressão poenae purgatoriae, Agostinho emprega também norum, Turnhout, 1953, t. 104, pp. 682-687 e 723-729.
como sinónimo a expressão poenae expiatoriae, penas expurgatórias, o que, entre ou- 41 «non pertinet ad me quamdiu moras habeam, si tamen ad vitam aeternam perre-

tras razões, leva a que não se traduza purgatoriae por purificadoras. vrro»: «pouco me importa o tempo que esperarei se depois alcançar a vida eterna.» O
26 Ver Bibliothéque augustinienne, t. 37, pp. 817-818. texto não diz onde se esperará mas é evidente, segundo a frase precedente, que se trata
27 «nec usque adeo vista in corpore male gesta est, ut tali misericordia iudicentur digni do fogo purgatório (in i/Io purgatorio igne). Pierre Jay faz notar judiciosamente que
non esse, nec usque adeo bene, ut talem misericordiam reperiantur necessariam non ha- Tomás de Aquino, retomando também ele o comentário ao salmo 37 de Santo Agosti-
"bere.» nho, escreve iIIe ignis purgatorii, este fogo do purgatório. Mas está-se no século XIII!
28 Mateus, XXV, 34; XXV, 41-46. 42 Sobre Gregório, o Grande, C. DAGENS, Saint Grégoire /e Grand. Cu/ture et
29 «et post hanc vitam habebit ve/ ignem purgationis vel poenam aeternam.» rxpérience chrétiennes, Paris, 1977, 3" parte, «Eschatologie», pp. 345-429. Sobre a
30 «Quanquam ilIa receptio, utrum statim post istam vitam fiat, an in fine saeculi in escatologia de Gregório ver também N. HILL, Die Eschatologie Gregors des Gros-
ressurrectione mortuorum atque ultima retributtone judicii, non mínima quaestio est sed I/'n, Fribourg-en-Brisgau, 1942. R. MANSELLI, «L'eschatologia di S. Gregorio Mag-
quandolibet fiat, certe de talibus qualis ille dives insinuatur, nulla scriptura fieri pollice- no» in Ricerche di storia religiosa, I, 1954, pp. 72-83.
tur.» 43 GREGóRIO, O GRANDE, Moralia in Job, ed. A. Bocognano, 3" parte, Paris,
31 «Ira plane quamuis salui per ignem, gravior tamen erit iIIe ignis, quam quidquid Sources chrétiennes, 1974, p.167.
potest homo pati in hac vita» (Enarratio in Ps. XXXVII, 3 CCL, 38, p. 384). 44 Ibid., pp. 315-317.

32 Ver a nota 45 «Les misêricordieux» de G. Bardy em Bibliothéque augustinienne, 45 «Discere vellim, si post mortem purgatorius ignis esse credendus est» Neste estudo

vol. 37, pp. 806-809. servi-me da edição de U. Moricca. GREGÓRIO, O GRANDE, Dia/ogi. Roma, 1924,
33 «Porro si utraque regia et dolentium et requiscentium, id est et ubi dives ilIe tor- r Iraduzi os textos citados. Depois apareceu o tomo 111 da excelente edição e tradução
quebatur et ubi pauper ilIe laetabatur, in inferno esse credenda est, quis audeat dicere de A. de Vogüé, P. Autin, Paris, ed. du Cerf, Sources chrétiennes, 1980. A passagem
dominum Iesum ad poenales inferni partes venisse tantum modo nec fuisse apud eos qui IIqlll comentada (IV, 41) encontra-se nas páginas 146 a 151. A história de Paschase (IV,
in Abrahae sinum requiescunt? ubi si fuit, ipse est intellegendus paradisus, quem /atronis 42) encontra-se ibid., nas páginas 150 a 155.

118 119
46 João, XII, 55; Isaías, XLIX, 8; Paulo, 11 Coríntios VI, 2; Eclesiastes, IX, 10; III - A ALTA IDADE MÉDIA. ESTAGNAÇÃO DOUTRINÁRIA
Salmo CXVII, 1; Mateus, XII, 32. E EMPOLAMENTO VISIONÁRIO
47 «sed tamen de quibusdam levis culpis esse ante judicium purgatorius ignis creden-
bus est», «hoc de parvis minimisque peccatis fieri posse credendum est, sicut est assiduus
otiosus sermo, immoderatus risu, vel peccatum curae rei familiaris,» No fim do capítulo
Gregório fala do fogo da futura purgação «de igne futurae purgationis», da possibili-
dade de se ser salvo pelo fogo «per ignem posse salvari» e de novo dos «peccata minima

°
atque levissima quae ignis facile consumat»
48 GREGÓRIO,
(Dialogt, IV, 41).
GRANDE, Dialogi, IV, 57, 1-7, de Vogüé-Antin, t. III, p. 184-
-189.
49 GREGÓRIO, ° GRANDE, Dialogi, IV, 57, 8, 17, de Vogüé-Antin,
-195. Nesta história o fogo não é mencionado.
pp. 188-

Entre Gregório, o Grande, e o século XII - ou seja, durante cinco


séculos - o projecto do Purgatório não avança nada. Mas o fogo lá con-
tinua e se, no plano teórico, não existe qualquer novidade teológica, no
quadro das visões e das viagens imaginárias no além, no domínio litúrgi-
co, esboça-se um espaço para o fogo purgatório e as relações entre os
vivos e os mortos tornam-se mais estreitas.
Porquê, então, interessarmo-nos por esta época onde não se passa
grande coisa em relação às concepções do além?
Não é para sacrificar à tradição da exposição cronológica. Pelo con-
trário, desejaria mostrar aqui que o tempo da história não é nem unifor-
memente acelerado nem programado. Estes cinco séculos são, no nosso
domínio, um longo período de aparente estagnação da reflexão sobre o
nlém.
Daqui podem resultar para o leitor dois mal-entendidos.
O primeiro poderia surgir da aparente desordem dos textos citados.
Evocarei também alguns grandes nomes do pensamento cristão de então
Alcuíno, João Escoto, Raban Maur, Rathier de Verona, Lanfranco --
que não disseram grande coisa sobre o nosso tema mas cujo laconismo
é significativo; e textos de segunda ou terceira ordem que, esses sim, evi-
denciarão melhor o que continua a viver e que, por vezes, até se anima e
agita um pouco. Uns e outros testemunham à sua maneira o estado do
pensamento do além.
O leitor poderá assim ter a impressão de que sacrifico a um defeito que
denuncio: reter, deste conjunto heterogéneo de textos, apenas o que pa-
rece prefigurar o Purgatório, como se a sua génese estivesse irrevoga vel-
mente em actividade debaixo dessa aparência de imobilismo. Não é
porque não julguei dever deter-me nesses textos, salvo qualquer excepção
sem grande importância; é porque era preciso fazer notar aquilo que evo-
cava o futuro Purgatório - fosse para lhe voltar as coisas fosse para o
anunciar -: que os «além» deste período seriam somente os precursores

J20 J21
do Purgatório. Quando um texto espantoso como a visão de Wetti faz No capítulo XXI do livro V das suas Sententiae (PL, 80, 975), Tajon
surgir um outro mundo cheio de furor e de ruído mas onde o futuro de Saragoça ao comentar o texto de Paulo da primeira epístola aos Co-
Purgatório não se anuncia, não deixei de o relatar com alguns pormeno- ríntios retoma em algumas linhas, sem os referir, os ensinamentos de
res pois se trata, antes de mais, de ver como funcionava o imaginário do Agostinho e de Gregório, o Grande: «Se bem que se possa compreender
além na Alta Idade Média. o que escreveu o grande pregador ao referir-se ao fogo das atribulações
E, para servir o meu propósito, este grande episódio não tem apenas nesta vida, é no entanto possível aplicá-lo ao fogo da futura expurgação,
virtudes negativas. reflectindo bem no facto de ele ter dito que se podia ser salvo pelo fogo,
Nele se pode seguir a constituição de um material imaginário, vê-lo não se sobre este alicerce se construiu com ferro, com bronze e com chum-
enriquecer-se ou decantar-se. Mesmo num texto de algumas linhas como bo, quer dizer com pecados máximos (peccata majora), mas sim com
a visão de Sunniulf em Gregório de Tours, vemos incrustar-se na memó- madeiras, com feno ou com palha, quer dizer com pecados mínimos
ria a imagem da imersão dos mortos postos à prova até diversas alturas (mínima) e muito leves (Ievissima) que o fogo consome facilmente.
do corpo, a da ponte estreita. Em compensação surge uma imagem que Mas é preciso que se saiba que, mesmo para os pecados mínimos, não
não terá êxito: a de um além-colmeia - onde as almas dos mortos rodo- se obterá a expurgação se ela não foi merecida nesta vida por meio de
piam e comprimem-se como abelhas. boas acções.»
Também nele se nota a promessa da constituição de um sistema entre Isidoro de Sevilha abordou o problema sobretudo no tratado Dos
as unidades imaginárias. Segundo Bede, Fursy traz da sua viagem ao além oficios eclesiásticos (De ecclesiasticis officiis ) a propósito dos sufrágios.
marcas fisicas que serão mais tarde a prova da existência de um Purgatório Citando o versículo de Mateus sobre a remissão dos pecados no século
de onde é possível voltar - crença que presidiu à reunião, no fim do século futuro (Mateus, XII, 32) e o texto de Santo Agostinho sobre os quatro
XIX, dos objectos que ainda hoje podem ser vistos no Museo dei destinos dos homens (Cidade de Deus, XXI, 24) afirma que, para alguns,
Purgatorio em Roma. Também segundo Bede, na visão de Drythelm os os respectivos pecados ser-lhes-ão remidos e «purgados por um fogo pur-
elementos da geografia do além organizam-se num itinerário, uma sequên- gatório» 1•
cia de lugares logicamente orientada, uma passagem construída. Julião de Toledo é o mais interessante destes três prelados para o
Enfim, as pré-definições teológicas ou morais aparecem aqui e ali, por nosso objectivo. Primeiro, é um verdadeiro teólogo; depois, o seu
exemplo no que diz respeito à tipologia dos pecados. Prognosticon é um autêntico e pormenorizado tratado de escatologia.
Sobretudo, desenvolve-se de maneira quase ininterrupta uma série, Todo o segundo livro é consagrado ao estado das almas dos defuntos
alimentada por reminiscências apocalípticas, mas marcada pelo selo mo- antes da ressurreição dos corpos. Todavia, o seu pensamento não é de
nástico, destinada a um novo auditório com mais apetência por pitoresco lodo inovador. Baseia-se essencialmente em Agostinho.
do que por esclarecimentos, por visões e por viagens ao além. É no meio Distingue dois paraísos e dois infernos. Os dois paraísos são o terres-
destas paisagens que se imprimem na memória dos clérigos e dos fiéis, que tre e o celeste e este último, tal como pensaram Ambrósio, Agostinho e
o Purgatório terá de criar o seu lugar. Gregório, é a mesma coisa que o seio de Abraão. Há também dois infer-
O período carolíngio, no sentido lato, é também o momento de uma nos, como ensinou Santo Agostinho, mas este hesitou na sua doutrina
grande renovação litúrgica. Será que a liturgia dos mortos sofre, durante (Julião revela o seu sentído crítíco e histórico). Primeiro pensou que ha-
ele, transformações ligadas a novas concepções do além e da sorte dos via um inferno sobre a terra e um interno debaixo da terra e depois, ao
defuntos? comentar a história do pobre Lázaro e do mau rico, apercebeu-se de que
os dois infernos eram debaixo da terra, um por cima do outro. «Portanto,
conclui Julião, há talvez dois infernos; num repousam as almas dos san-
o além agostiniano de três espanhóis tos, no outro são torturadas as almas dos impios.» Depois, sempre com a
ajuda de Santo Agostinho, explica mesmo por razões filológicas porque
Nas obras exegéticas e dogmáticas onde as alusões ao futuro Purga- se supõe que os infernos são subterrâneos.
tório surgem quer a propósito dos últimos tempos e do fogo purgatório Expõe depois diversas opiniões sobre a questão de saber se, depois da
quer a propósito dos sufrágios pelos mortos, apontarei primeiro três bis- morte, as almas dos santos (justos perfeitos) vão directamente para o céu
pos espanhóis dos séculos VI-VII: Tajon de Saragoça, o célebre Isidoro de ou se ficam em certos «receptáculos». Desde a descida do Cristo aos
Sevilha, um dos pais da cultura medieval, e Julião de Toledo. Infernos, estes foram fechados e os justos vão imediatamente para o

122 123
céu. Da mesma maneira as almas dos iníquos vão logo para o Inferno, e de Deus, das criaturas espirituais e das criaturas corporais. Os quatro
do Inferno não se sai nunca. Indo mais longe, precisa que, depois da últimos capítulos são dedicados à natureza dos homens (cap. XII), à di-
morte do corpo, a alma não fica privada de sentidos e, ainda com a ajuda versidade dos pecadores e lugar das penas (cap. XIII), ao fogo purgatório
de Santo Agostinho (De Genesi ad litteram, XII, 33), Julião afirma que a (cap. XIV) e à vida futura (cap. XV).
alma tem uma «imitação de corpo» (similitudo corpo ris) que lhe permite Pode parecer que o autor do tratado tem uma perspectiva tripla do
sentir o repotls~ ou os tormentos. Assim, a alma pode ser torturada pelo além: inferno, «purgatório», paraíso. Mas esta divisão não existe senão
fogo corporal. E o que se passa no Inferno, mas nem todos os condena- em certos manuscritos, e na continuidade do texto a divisão não é tão
dos sofrem da mesma maneira: o seu tormento é proporcional à gravida- marcada '. Sobretudo, a concepção arcaica do autor do tratado exclui
de do pecado, assim como nesta terra os vivos sofrem mais ou menos com praticamente a ideia de um além triplo. Desde o começo do capítulo
o ardor do sol. Enfim, deve-se acreditar, como ensinaram Paulo, Agosti- sobre as diferenças das condições dos pecadores, ele expõe as suas
nho e Gregório, que existe um fogo purgatório depois da morte. Reto- ideias. Há duas grandes categorias de pecadores; aqueles cujos pecados
mando as palavras de Gregório, o Grande, Julião explica que esse fogo (crimina) podem ser expurgados pelo fogo do julgamento e aqueles que
expurga os pecados pequenos e mínimos como a tagarelice constante, o serão atingidos pela pena do fogo eterno. Entre estes últimos alguns serão
riso excessivo, o apego imoderado aos bens pessoais. Este fogo é mais condenados imediatamente e sem julgamento, outros após o julgamento.
terrível do que qualquer dor terrena e não se pode beneficiar dele a O fogo é pois o do julgamento, não tem lugar antes do julgamento. Esta
não ser que tenha sido merecedor por meio de boas acções. Este fogo opinião é confirmada no capítulo XIV.
expurgatório é diferente do fogo eterno da geena e actua antes do Julga- Aqueles que terão o «refrigério eterno» (refrigerium aeternum) depois
mento Final e não depois - e Agostinho pensa mesmo que ele começa da expurgação são os que tiverem realizado aquilo a que se chamará mais
com as atribulações terrenas. Tal como os condenados são torturados tarde obras de misericórdia. Serão baptizados pelo fogo, enquanto os
proporcionalmente à gravidade dos seus pecados, também os expurga- outros serão consumidos pelo fogo inextinguível. A exegese da primeira
dos apenas se demoram no fogo o tempo correspondente à importância epístola de Paulo aos Coríntios leva o autor do Liber a indicar o género
da sua imperfeição. A escala de equivalência exprime-se aqui não em de pecados que apenas menciona negativamente «os que não são muito
intensidade mas em duração de pena «segundo eles tenham amado mais prejudiciais, ainda que não construam grande coisa»: «o uso inútil do
ou menos os bens perecíveis, serão salvos com maior ou menor rapidez». casamento legítimo, o excesso de comida, o prazer exagerado com futili-
Na base dos textos das Escrituras - sobretudo o Novo Testamento - e dades, a cólera levada aos excessos de linguagem, o interesse exagerado
patrísticos, é a exposição mais clara e mais completa da Alta Idade Média pelas coisas pessoais, a assistência negligente às orações, o levantar tarde,
sobre o futuro Purgatôrio/. 115 gargalhadas exageradas, o excessivo abandono ao sono, a retenção da
verdade, a tagarelice, a obstinação no erro, tomar o falso por verdadeiro
em coisas que não dizem respeito à fé, esquecer o dever a cumprir, ter as
Outros «além» «bárbaros» roupas em desordemx", pecados de que não se pode negar a possibilidade
de serem expurgados pelo fogo. Última observação: este fogo purgatório
Testemunhos vindos das diversas regiões cristãs «bárbaras» e prove- e mais duradouro e terrível do que qualquer tormento imaginável cá deste
nientes tanto da hierarquia episcopal como do mundo monástico mani- mundo.
festam o interesse das novas cristandades pelo além sem nada lhe No começo do século VII o irlandês S. Columbano (que morreu em
acrescentarem de original. 615), missionário do monaquismo no continente, compusera uma descri-
ção resumida da existência humana desde o nascimento até à eternidade
onde atribuía um lugar ao fogo mas um fogo que, sem ser mencionado,
Na Irlanda era um fogo se não purgatório pelo menos probatório pois situava-se
antes do julgamento, parece que entre a ressurreição e o julgamento.
Pensou-se durante muito tempo que o autor do Livro sobre a ordem «Eis o desenrolar desta miserável vida humana: da terra, sobre a terra,
das criaturas (Liber de ordine creaturarum) era Isidoro de Sevilha. Ma- para a terra, da te rra para o fogo, do fogo para o julgamento, do julgamen-
nuel Diaz y Diaz mostrou recentemente que se trata de um anónimo to ou para a geena ou para a vida (eterna); com efeito, foste criado a
irlandês do século VII. É um tratado que se baseia no Génesis e que fala partir da terra, pisas a terra, irás para a terra, erguer-te-ás da terra, serás

124 125
posto à prova no fogo, esperarás o julgamento e em seguida terás ou o do. cada um segundo os seus méritos será ou condenado ou coroado. É
suplício eterno ou o reino etemo.» E fala ainda de nós, os homens, que, pois nesse dia, caríssimos irmãos, que devemos pensar intensamente" ...»
«criados da terra, passando brevemente por ela, reentrando nela quase Texto notável pela divisão que faz da humanidade em três categorias
imediatamente, e depois uma segunda vez, a uma ordem de Deus, entre- não em quatro, na tradição agostiniana. Mas o texto retém principalmen-
gues e projectados por ela, seremos, no fim dos tempos, postos à prova te a nossa atenção quando exprime uma concepção «arcaica» do fogo
através do fogo que de certa maneira dissolverá a terra e a sujidade; e, se purgatório que situa na época do Julgamento Final, prolongado por
houver ouro ou prata ou outro material terrestre útil, depois da moeda um longo dia. Mais ainda, Eloi parece deixar ao fogo o cuidado de fazer
falsa ter sido fundida ele o mostrará".» 1\ triagem entre santos, ímpios e justos e a esta última categoria não ga-
rante o Paraíso depois de ter sido posto à prova. O «suspense» durará até
110 fim.
Na Gália

Numa homilia, o famoso Santo Eloi, bispo de Noyon (que morreu em Na Germânia
659), depois de ter relembrado a diferença entre pecados mortais (crimina
capitalia) e pecados insignificantes (minuta peccata) e calculado que É interessante ver as instruções dadas, por volta de 732, pelo Papa
existem poucas probabilidades de as esmolas, mesmo grandes, mesmo Gregório Hl a S. Bonifácio que o interrogava sobre a conduta a seguir
diárias, serem suficientes para resgatar os pecados mortais, recorda os em relação aos Germanos ainda pagãos ou recentemente convertidos:
dois julgamentos e o fogo purgatório: «Perguntas-me também se se podem fazer oferendas pelos mortos. Eis
«Lê-se, com efeito, na Sagrada Escritura, que há dois julgamentos: um 1\ posição da Santa Igreja: cada um pode fazer oferendas pelos seus mor-
pela água do dilúvio (Génesis, VII) que prefigurou o baptismo pelo qual tos se são verdadeiros cristãos e o padre pode celebrar em sua memória. E
fomos lavados de todos os pecados (I Pedro, Ill); e o outro, que há-de vir, embora estejamos todos sujeitos ao passado, convém que o padre só ce-
pelo fogo, quando Deus vier para o Julgamento, do qual o salmista diz: Ichre e só interceda pelos mortos católicos, pois pelos impios, mesmo se
"Ele vem, o nosso Deus, e não se calará. A sua frente um fogo devora, à foram cristãos, não será permitido agir assim 7.»
sua volta, borrasca violenta" (Salmo L, 3); é como uma borrasca que ele Se bem que não se trate aqui explicitamente dos sufrágios e que não
julga aqueles que o fogo consome. Lavemo-nos de todas as máculas da seja feita alusão ao fogo purgatório, é significativo ver afirmada com
carne e do espírito, e que não sejamos queimados pelo fogo eterno nem veemência no coração de um país e dum período de missão, a distinção
por este fogo transitório; deste fogo do julgamento de Deus, o Apóstolo entre a utilidade (e portanto o dever) das oferendas pelos mortos «ver-
diz: "É este fogo que porá à prova a obra de cada um" (I Coríntios, lU, dadeiros cristãos» e a inutilidade (e portanto a proibição) das oferendas
13). Não há dúvida de que ele falou aqui do fogo purgatório. Esse fogo, pelos mortos «ímpios», mesmo cristãos.
os ímpios, os santos e os justos senti-lo-ão de maneira diferente. Do tor-
mento deste fogo os ímpios serão precipitados nas chamas do fogo per-
pétuo; os santos que ressuscitarão no seu corpo sem terem marca de Na Grã-Bretanha
nenhum pecado porque terão construído sobre o alicerce que é o Cris-
to, com ouro, com prata e com pedras preciosas, quer dizer o sentido Na mesma época na Grã-Bretanha um monge célebre, Bede que, co-
fulgurante da fé, a palavra esplendorosa da salvação e as obras precio- mo veremos, ocupa um lugar fundamental na elaboração da geografia do
sas, triunfarão deste fogo com tanta facilidade como a que puseram, nes- ulém, através de visões e de viagens imaginárias, sublinha nas suas
sa vida de pureza, na fé e no amor com que observaram os mandamentos Homilias (entre 730 e 735) a importância das dores pelos mortos e men-
do Cristo. Restarão então os justos culpados de pecados ínfimos que ciona, este explicitamente, o fogo purgatório. Os apóstolos, os mártires,
construíram sobre o alicerce que é o Cristo com feno, com madeira e os confessores, ete., vão, diz ele, entre a morte e a ressurreição para o
com palha, o que designa a diversidade dos pecados Ínfimos de que seio do Pai, que devemos entender como o «segredo do Pai» (secretum
não estarão ainda dignamente expurgados e não serão portanto conside- Patris }, esse sinus Patris que equipara à casa do Pai (domus Patris )
rados dignos da glória da cidade celestial. Depois de ter passado por este do Evangelho de João (XIV, 2) , sem aludir ao seio de Abraão. E pros-
fogo, quando o dia do Julgamento Final tiver sido inteiramente cumpri- segue:

126 127
«Também os numerosos justos que pertencem à Igreja, depois da des- Outra grande figura da Igreja e da cultura carolíngias, Raban Maur,
truição da carne são imediatamente recebidos no repouso bem-aventura- abade de Fulda e arcebispo de Mainz (que morreu em 856), e chefe inte-
do do Paraíso onde esperam com grande alegria, em grandes coros de lectual da Germânia, entrega-se, no seu comentário às epístolas de Paulo,
almas jubilosas, o momento em que recuperarão o corpo e aparecerão u uma grande reflexão teológica sobre o fogo. Também para ele o fogo
diante da face de Deus. Mas alguns que, por causa das suas boas que é tratado na primeira epístola aos Corintios é o fogo do julgamento.
obras, estão predestinados para a sorte dos eleitos, por causa de certas Faz desaparecer as fugas à regra (illicita, coisas ilícitas) que se podem
obras más de que saíram com o corpo conspurcado, são apanhados de- cometer sem deixar de tomar o Cristo como alicerce, por exemplo, a
pois da morte pelas chamas do fogo purgatório para serem severamente complacência para com as delícias deste mundo, os amores terrenos
castigados. Ou, até ao dia do Julgamento, eles são limpos da mácula dos que, no caso das relações conjugais, não são condenáveis. Tudo isto o
seus vícios pela longa provação (longa examinatione) desse fogo ou en- fogo das atribulações (tribulationis ignis) faz desaparecer queimando-o.
tão, graças às preces, às esmolas, aos jejuns, aos prantos, às oferendas Mas para aqueles que construíram com madeira, feno e palha, «não é
eucarísticas dos seus amigos fiéis, são libertos das penas e, também impossível que isso se passe depois desta vida e podemos perguntar-nos
eles, alcançam o repouso dos bem-aventurados".» Menão será o caso; de maneira aberta ou escondida, certos fiéis podem ser
Bede define bem, pois, os condenados ao fogo purgatório, afirma com salvos através de um fogo purgatório com maior ou menor rapidez, con-
veemência o poder dos sufrágios dos vivos e da rede de amigos fiéis, mas .
forme tiverem ama doo mai
mais ou menos os bens oerecí . 10».
ns perecrveis
sobretudo mostra claramente o mecanismo do tempo do «Purgatório»: Aparece aqui, como em Bede, um elemento importante do sistema do
dentro de um intervalo máximo entre a morte e a ressurreição, a possibi- futuro Purgatório: a situação da expurgação entre a morte e o julgamen-
lidade de reduções devidas aos sufrágios. Em compensação, não mencio- to, e a possibilidade de uma maior ou menor duração dessa expurgação
na a localização do fogo e das penas purgatórias. que não durará obrigatoriamente todo o tempo do intervalo.
Paschase Radbert, abade de Corbie (que morreu em 860), partindo da
passagem do Evangelho de Mateus sobre o baptismo pelo fogo, expõe
Indiferença e tradicionalismo carolíngios e pós-carolíngios uma teoria do fogo ainda mais desenvolvida; examina os seus diferentes
aspectos e funções e culmina numa evocação do fogo do amor (ignis cha-
A Igreja carolíngia interessa-se pouco pelo fogo purgatório e não faz ritatis), do fogo do amor divino (ignis divini amoris). Admite vários signi-
inovações. ficados possíveis desse fogo:
Alcuíno (que morreu em 804), o grande mestre anglo-saxónico inspi- «Talvez se deva, como querem alguns, compreender (a frase): ele pró-
rador da política cultural de Carlos Magno, no seu tratado Sobre a Fé na prio vos baptizará no Espírito Santo e no fogo como representando a iden-
Santa Trindade (De fide Sanctae Trinitatis ), ao comentar a primeira epís- tidade do Espírito Santo e do fogo, o que nós reconhecemos, pois Deus é
tola de Paulo aos Coríntios (Hl, 13), equipara o fogo do julgamento um fogo que consome. Mas como há uma conjunção coordenada não me
(ignis diei judicii ) ao fogo purgatório (ignis purgatorius ), Este fogo, se- parece que se fale de uma mesma e única coisa. Daí a opinião de alguns
gundo ele, é sentido de maneira diferente pelos ímpios, pelos santos e de que se trata do fogo purgatório que agora nos purifica pelo Espírito
pelos justos. Os ímpios serão eternamente queimados pelo fogo; os san- Santo e depois, se alguma mancha pecaminosa ainda resiste, nos torna
tos, os que construíram com ouro, prata e pedras preciosas, passarão sem puros por combustão através do fogo da conflagração (quer dizer, do
danos através do fogo como os três jovens hebreus (Daniel, lU). Há por julgamento). Mas se assim é, deve acreditar-se que se trata de pecados
fim «certos justos culpados de certos pecados mínimos que, sobre o ali- mais leves e mínimos, pois é impensável que todos escapem aos casti-
cerce que é o Cristo, construíram com feno, com madeira e com palha; gos. De onde a frase do apóstolo: «o que é a obra de cada um, o fogo
esses serão expurgados pelo ardor desse fogo e, purificados daqueles pe- o porá à prova 11.»
cados, tornar-se-ão dignos da glória da felicidade eterna». Tendo todos Atribuiu-se a Haymon de Halberstadt (que morreu em 853) o discurso
passado por esse fogo transitório (ignis transitorius ), uns irão para a mais articulado sobre o fogo purgatório na época carolíngia. Abordou ele
condenação outros para a coroação, e os primeiros serão mais ou menos () assunto por duas vezes, no tratado Sobre a Diversidade dos Livros (Sur
atormentados segundo o seu grau de malvadez, enquanto os segundos Ia diversité des livres - De varietate librorum) e num comentário às epís-
serão mais ou menos recompensados segundo o seu grau de santidade. tolas de S. Paulo que alguns atribuem a Remi d' Auxerre. As opiniões de
Sobre este último ponto Alcuíno é vago e parece embaraçado". Haymon são de facto uma mistura ecléctica do que foi escrito antes dele,

128 129
são muito marcadas pelas ideias de Agostinho e de Gregório, o Grande fogo do julgamento durará até estarem expurgados aqueles que devem ser
(que nunca são referidas) - e retomam, muitas vezes palavra por palavra, salvos",
a síntese de Julião de Toledo, dois séculos antes. Deve acreditar-se, segun- Apesar das suas funções oficiais na escola do palácio no reinado de
do Haymon, num fogo purgatório antes do julgamento, que actua sobre Carlos o Calvo, o irlandês João Escoto Erígenes foi um espírito isolado
os pecados leves, pequenos ou mínimos. Há dois fogos, um purgatório (e quase ignorado pelos teólogos medievais, mesmo antes de ter sido conde-
temporário) o outro eterno (e punitivo). A duração da expiação pelo fogo nado, mais de dois séculos depois de ter morrido, pelo concílio de Paris
pode ser maior ou menor em proporção com a importância do apego aos (1210). Hoje é muito considerado pelos historiadores de teologia e de
laços transitórios. Alguns sofrem as penas purgatórias depois da morte, filosofia. Também ele não se detém no fogo purgatório. A história do
outros nesta vida. É falso que possamos salvar-nos através do fogo pur- pobre Lázaro e do mau rico inspira-lhe a reflexão de que essa história
gatório se nesta vida apenas tivemos fé sem realizarmos boas obras. A leva a crer que as almas, não só quando vivem num corpo mas também
Igreja pode suplicar eficazmente por aqueles que sofrem as penas purga- quando estão privadas da carne, podem pedir o auxílio dos santos, quer
tórias. Há duas categorias de justos, os que gozam imediatamente depois para ficarem totalmente libertas de penas, quer para serem menos
da morte do repouso paradisíaco e os que devem ser castigados pelas utormentadas'". Noutro local diz do fogo eterno do Inferno que ele é
chamas do fogo purgatório e lá ficam até ao dia do julgamento ou que corporal se bem que, por causa da subtileza da sua natureza, se diga
podem ser de lá tirados mais cedo pelas preces, as esmolas, os jejuns, as que é incorporal'",
lágrimas e as oferendas de missas dos fiéis seus amígos'ê. Esta nota de
solidariedade entre mortos e vivos, herdada sem dúvida de Bede, é a
única originalidade - quanto à forma, não no fundo, que é tradicional () além e a heresia
- de Haymon de Halberstadt.
Atton de Verceil (que morreu em 961) dá, no seu comentário às epís- Dou um lugar especial a dois textos do século XI, não porque em si
tolas de S. Paulo, uma interpretação muito tradicional, muito agostiniana mesmos tragam quaisquer novidades mas porque foram produzidos em
(cita, aliás, Agostinho por várias vezes), da primeira epístola aos Corín- contextos ricos de significado para o futuro.
tios. Mas nele há uma particularidade e uma novidade. A particularidade O primeiro é uma longa passagem do que se chama o Decreto (Dé-
é supor que o que será posto à prova e julgado (pelo fogo purgatório e, rret ) de Burchard de Worms (que morreu em 1025). E uma recolha de
mais genericamente, quando do julgamento) é essencialmente a ortodoxia textos que faz lei sobre questões de dogma e de disciplina - uma norma
doutrinária, a doctrina, mais do que os costumes e os sentimentos. Por Nobrea via do Corpus de Direito canónico. Burchard contenta-se com
outro lado, o epíteto venialia, veniais, aparece ao lado dos pecados leves e reproduzir passagens dos Diálogos de Gregório, o Grande, e uma passa-
opõe-se aos pecados capitais, mas faz parte de um conjunto; e o sistema gernde Santo Agostinho (Enchiridion 110) respeitante aos sufrágios pelos
de oposição pecados veniais-pecados mortais (ou capitais) só será elabo- mortos. Faz preceder o texto agostiniano da frase «há quatro espécies de
rado no século X1I13• oferendas» (quator genera sunt oblationis ); o texto será retomado um
Mesmo o original Rathier de Verona, imbuído de cultura clássica e seculo depois no Decreto de Graciano e o seu carácter quadripartido
formado nas escolas de Lorena, não teve grande coisa a dizer sobre o levantará problemas aos escolásticos. Uma autoridade sobre as Escritu-
fogo purgatório. O pouco que disse é uma mensagem de rigor: depois ras ali citada conhecerá, em parte graças a este reforço, um grande êxito.
da morte já não se pode adquirir mérito. Quanto à existência de penas i~o versículo de João, XIV, 2: «Na casa de meu Pai há muitas moradas'".»
purgatórias depois da morte, ninguém deve iludir-se com elas, pois não Em 1025, o bispo Gérard de Cambrai, num sínodo em Arras, recon-
valem para os pecados criminosos mas apenas para os pecados mais leves, ciliou com a Igreja os heréticos que, entre outros «erros», negavam a
aqueles que são designados como madeira, feno e palha'", eficácia dos sufrágios pelos mortos. O bispo impõe-Ihes que reconhe-
Mesmo o grande Lanfranc que confere um brilho incomparável ao çam, a este respeito, as verdades seguintes:
fim do século XI na escola da abadia de Bec-Hellouin na Normandia, «É verdade, para que ninguém julgue que a penitência não é útil senão
de que é abade, antes de se tornar arcebispo de Canterbury, não se mos- nos vivos e não aos mortos, que muitos defuntos foram arrancados às
tra inspirado no seu comentário sobre a primeira epístola aos Coríntios penas pela piedade dos vivos, segundo testemunho da Escritura, por
na passagem respeitante à prova pelo fogo. Para ele o fogo purgatório é meio da oferenda do sacrificio do Mediador (a missa), ou de esmolas,
de facto o fogo do julgamento e dá a entender que, nessas condições, o ou pela penitência assumida por um vivo em favor de um amigo defun-

130 131
to, no caso de o doente, ultrapassado pela morte, não ter podido assumi- .rudita - os seus testemunhos antigos, gregos especialmente. Plutarco,
-Ia, ou quando um amigo vivo suplica por ele. Vós não sais, ao contrário n08 se~s Moralia, conta a visão de Tespêsio, Este, depois de ter levado
do que afirmais, verdadeiros seguidores do Evangelho. Pois a Verdade uma VIdade deboche, segundo todas as aparências, morre e quando pas-
nele diz: Se alguém proferiu uma blasfémia contra o Espírito Santo, ela ~dos três dias. volta à vida, leva daí em diante uma vida perfeitamente
não lhe será perdoada nem neste século nem no século futuro (Mateus, virtuosa. Pressionado com perguntas, revela que o seu espírito deixou o
12). Nesta frase, como disse S. Gregório no seu Diálogo, deve entender- corpo e viajou no espaço entre as almas que andavam pelo ar das quais
-se que certas faltas podem ser apagadas neste mundo e outras no mundo conh~u algumas, que emitiam terríveis lamentos, enquanto outras, mais
futuro ... E é preciso acreditar nisto a propósito de pecados pequenos e em ctma,. pareciam tranquilas e felizes. Algumas destas almas são pura-
mínimos como a tagarelice contínua, o riso imoderado, a preocupação mente bnlhantes, outras têm manchas e outras são completamente escu-
exagerada com o património, etc., coisas inevitáveis em vida mas que ras. As que estão carregadas com poucos pecados só sofrem um castigo
pesam depois da morte se não foram apagadas durante esta vida; estes lileiro, mas as ímpias são entregues à Justiça que, se as acha incuráveis as
pecados, como ele diz, podem ser expurgados depois da morte pelo fogo .ban~ona às Fúrias que as lançam num abismo sem fundo. Tespêsio é
I,lUrgatório, se durante esta vida se mereceu isso por meio de boas acções. depol~ le~ado para uma grande planície cheia de flores e de perfumes
E, pois, lícito que os santos doutores digam que existe um fogo purgató- ',Iradavels onde algumas almas voam alegremente como pássaros. E vi-
rio pelo qual alguns pecados são expurgados, desde que os vivos obte- .Ua por fim o lugar dos condenados onde assiste às suas torturas. Há
nham esse direito por meio de esmolas, de missas ou, como já disse, notoriamente três lagos, um de ouro fervente, outro de chumbo gelado
CI u~ terceiro de ferro agitado por ondas. Demónios mergulham e tomam
por uma penitência de substituição. E evidente que, pelo preço destas
obras, os mortos podem ser absolvidos dos pecados, senão não se com- • tirar as almas de um lago para outro. Por fim, noutro local, ferreiros
preenderia o apóstolo Paulo (sobre o qual vós mentistes ao dizer que sois modelam sem cerimónias as almas chamadas a uma segunda exístência'"
seus seguidores) que diz que os pecados mínimos e muitos leves são fa- dando-lhes as mais diversas formas. '
cilmente consumidos pelo fogo purgatório, enquanto acarretariam suplí- As descrições do Purgatório conservarão desta visão as diferenças de
cios não purgatórios mas eternos se, por essas oferendas da hóstia, não cor das almas e a passagem de um lago para outro.
tivessem merecido ser apagados pelo fogo purgatório!".» Plutarco descreve também a visão de Timarco. Este desceu a uma
Nada de novo neste concentrado doutrinário. No entanto, este texto ,ruta dedicada a Trofónio e aí celebrou as cerimónias necessárias para
terá, juntamente com o Decreto de Burchard, um sucesso singular: cons- conseguir um oráculo. Lá ficou duas noites e um dia numa escuridão
tituem o processo a partir do qual se criará no século XII a noção de Impenetrável, sem saber se estava acordado ou se sonhava. Recebeu
Purgatório, em oposição àqueles que o negam. Nesses tempos de here- um golpe na cabeça e a sua alma voou. Toda feliz no ar, avistou ilhas
sia, como são os séculos XII e XIII, S. Bernardo, depois outros clérigos Ilrdendo com um fogo agradável e que mudavam de cor. As ilhas eram
ortodoxos, prepararão o Purgatório que será assim parcialmente o fruto banhadas por um mar multicolor onde flutuavam as almas. No mar lan-
da resistência à contestação herética que começa cerca do ano mil. çavam-se dois rios e por baixo havia um precipício redondo e sombrio de
onde saíam gemidos. Algumas almas eram aspiradas pelo buraco outras
eram para lá lançadas, Também aqui a descrição anuncia a da obra onde
A série visionária: as viagens pelo além lerá criada a verdadeira visão do Purgatório, o Purgatório de S. Patrick,
tio fim do século XII.
A par com este imobilismo doutrinário uma outra série, sem ser revo- ,Esta,lite~atura. visionária é muito influenciada pelos tratados do Apo-
lucionária, prepara com mais segurança o futuro Purgatório: são as vi- caíipse JUd~lco-cnstão de que falei, em especial pelo Apocalipse de Pedro
sões do além, as viagens imaginárias ao outro mundo. CI () ~pocahpse de Paulo, mas tem também a marca de duas tradições que
'UIU1 apenas evocarei: as viagens pelo além das velhas culturas pagãs celta
CI germânica'". '
Heranças
Se em grande parte deixo de lado estas duas componentes da cultura
o género é tradicional. Explodiu, como vimos, no quadro da literatu- medieval que certamente desempenharam um papel no imaginário do
ra apocalíptica judaico-cristã que o marca fortemente. Tem - se bem que Purgatório, é porque a importância das pesquisas a empreender, para
NC poder falar delas com pertinência, não me parece proporcionada
se trate de um filão menor que dificilmente encontrou saída na literatura

132 133
com o fruto que delas se pode esperar. A apreciação da contribuição Entre os escandinavos e os germanos, a mitologia do além, quando
destas culturas - apesar de estudos de grande qualidade - supõe resolvi- começamos a apreendê-Ia, parece mais coerente. Depois da morte exis-
dos problemas muito dificeis. Em primeiro lugar, problemas de datação. tem essencialmente dois lugares: um mundo subterrâneo onde reina a
Como é normal, os textos escritos datam da época em que as línguas deusa HeI, bastante próxima do shéol judeu, sombrio, angustiante mas
dessas culturas são passadas à escrita, o mais cedo no século XII. O Nemtorturas, cercado por um rio que se atravessa por uma ponte; e do
que as primeiras obras escritas nessas línguas exprimem é certamente e outro lado um lugar celestial de repouso e de descontracção, o Valhalla,
em grande parte anterior a elas, mas de quanto tempo? reservado aos mortos merecedores, e em especial aos heróis mortos no
Mais importante ainda a meus olhos é o facto de esta literatura antiga campo de batalha. É possível que, antes de se situar no céu, o Valhalla
ser um produto complexo, dificil de caracterizar. A distinção entre eru- também tenha sido subterrâneo e comparável aos Campos EJísios roma-
dito e popular não tem aqui grande sentido. As fontes orais próximas nos. Enquanto o além céltico só excepcionalmente comporta uma monta-
parecem-me essencialmente «eruditas». A oralidade não se confunde nha (elemento geográfico que será essencial para o Purgatório), a
com o popular. As obras escritas a partir do século XII são elaborações mitologia germânica inclui o monte Hecla na Islândia, montanha vulcâ-
de artistas orais eruditos. Na época em que se recita, se canta e se escreve nica penetrada por um poço e que contém um reino de tortura='.
as obras «vulgares», as culturas «bárbaras» já estão há mais ou menos Talvez ainda mais do que o céltico, o além imaginário germânico,
tempo em contacto com a cultura eclesiástica, erudita, cristã, de expres- quando começamos a apreendê-lo, surge já fortemente imbuído da in-
são latina. A contaminação vem juntar-se à dificuldade de distinguir a fluência cristã erudita e latina. É o caso das viagens pelo além que, no
verdadeira herança «bárbara». Longe de mim rejeitar essa herança: século XII, Saxo Grammaticus relata na sua História dos Dinamarqueses.
creio, pelo contrário, que ela muito pesou na cultura medieval mas não Os Diálogos de Gregório, o Grande, foram bem cedo traduzidos para
me parece que já estejamos suficientemente preparados para a isolar, a escandinavo antigo e legaram talvez o tema da ponte à mitologia escan-
caracterizar, a avaliar. Penso em compensação que nas regiões onde o dinava, se bem que ele talvez já ali tivesse chegado antes, vindo do oriente.
latim se impusera há muito tempo como língua erudita, a cultura latina O mais importante sem dúvida é que, sob a influência cristã, o além
erudita acolheu, de melhor ou pior vontade, mais ou menos consciente- risonho das mitologias céltica e germânica primitivas toma-se sombrio,
mente, elementos mais ou menos importantes de cultura tradicional «po- subterrâneo, «inferniza-se», No momento em que nasce o Purgatório,
pular», quer dizer, no que respeita a esta época, em grande parte rural e ver-se-á a concepção céltica (e talvez germânica) optimista de um lugar
quase bem definida pelo termo folclórica - o que a Igreja classificou de de espera e de purificação já próximo do Paraíso apagar-se perante a
«pagão» pré-cristã e rural ao mesmo tempo. Para referenciar esta he- imagem de um Purgatório temporariamente cruel como o Inferno, vindo
rança dispomos de um método decerto delicado de manejar: fazer remon- da apocalíptica oriental e da tradição cristã oficial. Essa imagem não
tar pelo método regressivo, com prudência e confrontando-o com os desaparecerá completamente e será recuperada nas visões do Paraíso.
documentos medievais datados ou datáveis, o corpus estabelecido pelos Esses «além» «folclóricos» ambivalentes ficarão divididos entre um pólo
folcloristas dos séculos XIX e XX. Apesar das suas incertezas, sinto-me positivo e um pólo negativo e o Purgatório hesitará à volta da linha de
mais seguro utilizando os dados recolhidos pelos irmãos Grimm, Pitre, separação,
Frazer, Van Gennep, para explicar o imaginário medieval, do que espe- Da literatura latina cristã das visões do além, do começo do século
culando sobre os imrama (relatos de viagens pelas ilhas do além) célticos VIII até ao fim do século X, destacam-se três textos. O primeiro é de
ou as sagas escandinavas. um dos grandes espíritos da alta Idade Média, o monge anglo-saxão
Dessas culturas «bárbaras» presentes e dificeis de enquadrar, apenas 8ede. E a Visão de Drythelm. Distingue pela primeira vez um lugar de
reterei, para as épocas anteriores ao século XII, alguns traços significati- expurgação no outro mundo que o herói percorre. A Visão de Wetti,
vos para a génese do Purgatório. monge do Sul da Germânia, é uma descrição infernal e delirante de um
Entre os Celtas predomina o tema da viagem pelas ilhas venturosas da além em parte utilizado para fins políticos, à custa de Carlos Magno. Este
qual o testemunho mais antigo parece ser a viagem de Bran cuja versão desvio político dos relatos de viagens além-túmulo exprime-se plenamente
primitiva remontaria ao século vnr". numa descrição anónima do fim do século IX, a Visão de Carlos, o Gordo.
O outro mundo está situado numa ilha, muitas vezes acessível por um panfleto ao serviço de um pretendente carolíngio.
poço, mas desprovida de montanha santa. A imagem da ponte depara-se- Estes três textos essenciais serão precedidos por duas breves visões,
-nos frequentemente. uma do fim do século VI e outra do começo do século VIII, relatadas

134 135
por dois grandes personagens da Igreja, os arcebispos Gregório de Tours Deus24• O objectivo é descrever o Paraíso e o Inferno (geena), a om,nipo-
e Bonifácio (em anglo-saxão Winfrith) de Mainz. Evocam o além mais ou tência de Deus e a queda de Adão que leva à morte. Deus conserva em
menos banal dos meios monásticos da época. diversas regiões (diversis partibus] as almas depois da morte, à espera do
Dois poemas influenciados pela tradição literária clássica romana en- Julgamento Final. Vêm a seguir as provas da ressurreição dos mortos, a
quadrá-los-ão nos dois extremos cronológicos do período, o começo do evocação dessa ressurreição e do julgamento de Deus. Uma longa descri-
século VI para o primeiro e o começo do século XI para o segundo. Mos- ção evoca o Paraíso com as suas flores, as suas pedras preciosas, as suas
trarão um imaginário muito tradicional ao qual o Purgatório pouco fica- Árvores, o seu ouro, o mel, o leite, os quatro rios jorrando de uma nas-
rá a dever. cente tranquila, numa eterna Primavera, com uma temperatura amena,
As duas visões que primeiro se nos oferecem têm mais valor pela per- uma luz eterna onde os eleitos não têm preocupações, nem pecados,
sonalidade dos seus autores, poderosas personagens eclesiásticas, do que nem doenças, mas sim a eterna paz. O poema termina com uma breve
pelo conteúdo, pois este é fortemente tributário do Apocalipse de Paulo evocação da destruição do mundo pelo fogo, do rio de fogo, dos lamen-
no que respeita à maioria das imagens e das ideias. tos dos condenados e da necessidade de arrependimento antes da morte,
Na sua História dos Francos (IV, 33), no fim do século VI, Gregório de pois no Inferno já é tarde de mais para o fazer e lá se vêem os condenados
Tours relata a visão de Sunniulf, abade de Randau: «Viu-se transportado chamar por Deus em vão.
para um rio de fogo, sobre cuja margem se aglomeravam pessoas como Deste texto onde, à excepção de uma vaga alusão às diversas moradas
abelhas à volta da colmeia; uns estavam submersos até à cintura, outros dos mortos, nada existe que diga respeito ao futuro Purgatório, podemos
até às axilas, outros até ao queixo e lamentavam-se chorando por serem no entanto reter dois elementos. Primeiro, insiste-se muito mais no Paraí-
tão atrozmente queimados. Por cima do rio havia uma ponte muito es- I() do que no Inferno. O poema voga ainda no optimismo dos séculos IV e

treita, mal medindo a largura de um pé. Na outra margem via-se uma V. Por outro lado, mesmo excluindo a sua eficácia, evocam-se as preces
grande casa toda branca. Os monges que desprezavam a disciplina da dos condenados; mas no fim da Idade Média distinguir-se-ão as almas do
sua comunidade caíam da ponte enquanto os que a respeitavam passa- Purgatório das do Inferno pelo facto de elas ainda se entregarem a ora-
vam e eram recebidos na casa.» ções enquanto as outras já renunciaram às súplicas inúteis.
No início do século VIII S. Bonifácio, o apóstolo dos Germanos, es-
creveu (Epístola 10) a Eadburge, abadessa de Thanet, contando que um
monge de Wenlock tivera uma visão. Foi levado pelos ares por anjos, e () «fundador» das visões medievais do além: Rede
viu o mundo inteiro cercado de fogo. Viu uma multidão de demônios e
um coro de anjos representando os seus vícios e as suas virtudes. Reparou O grande anglo-saxão Bede, pouco antes de morrer em 735 no mos-
em poços de fogo que vomitavam chamas e almas com a forma de pás- teiro de Yarrow onde passou cinquenta anos interrompidos por viagens
saros negros que choravam e gemiam e davam gritos com voz humana. das quais muitas a Roma, relata na História Eclesiástica de Inglaterra
Vil! um rio de fogo fervente por cima do qual havia uma tábua que fazia muitas visões25. Estas descrições têm um fim edificante, pretendem pro-
de ponte. As almas passavam sobre essa ponte mas algumas escorrega- var a realidade do além e inspirar aos vivos temor suficiente para que
vam e caíam no Tártaro. Algumas eram completamente submersas pelas queiram escapar aos tormentos depois da morte e reformar a sua vida.
ondas, outras até aos joelhos, outras até ao meio do corpo e outras ainda Mas não têm um carácter tão didáctico como os exempla de Gregório, o
até aos cotovelos. Todas saíam do fogo brilhantes e limpas. No outro Grande. O seu grande interesse para a nossa história é que numa destas
lado do rio havia grandes muros altos e resplandecentes. Era a Jerusalém visões aparece pela primeira vez, para as almas que sofrem uma expurga-
celeste. Os espíritos maus eram mergulhados nos poços de fogo. ção depois da morte, um lugar especial do além que será mais do que um
Coloco aqui um poema da Antiguidade latina tardia que, ao contrário dos receptáculos evocados até então por referência ao Evangelho de João.
por exemplo dos textos de Plutarco, não tem qualquer parentesco com as Passemos rapidamente pela primeira visão, a de Santo Fursy, monge
visões propriamente apocalípticas e com as viagens mais ou menos «fol- irlandês que veio para o continente e foi enterrado cerca de 650 em Pe-
clóricas» do período posterior mas que, por esta diferença, tem o seu ronne onde Erchinold, administrador do palácio de Clóvis 11, mandou
lugar no processo. construir um santuário sobre o seu túmulo.· Bede retoma uma vida de
O Carmen ad Flavium Felicem foi escrito por volta de 500 por um Fursy escrita em Peronne pouco depois da sua morte. Quando vivia na
cristão de África e trata da ressurreição dos mortos e do julgamento de Ânglia oriental, no mosteiro de Cnoberesborough que fundara, caiu

136 137
doente e teve uma visão pois a sua alma saiu do corpo «desde a noite até bolas de fogo saltando de um grande poço e voltando a cair nele.
ao canto do galo». Do céu viu por baixo de si quatro fogos, o da mentira, Drythelm viu-se sozinho. Naquelas chamas subiam e desciam como faú-
o da cupidez, da dissensão e da impiedade, que logo se juntaram num só. lhas almas humanas. Este espectáculo era acompanhado por choros de-
Através desse fogo voavam demónios que disputavam com os anjos bons sumanos, por risotas e por um cheiro fétido. Drythelm reparou mais nas
as almas dos defuntos. Três anjos protegiam Fursy do fogo e dos demó- iorturas que demónios infligiam a cinco almas, uma de um padre reco-
nios: um abria-lhe passagem e os outros dois guardavam-lhe os flancos. nhecível pela tonsura, outra de um laico, uma terceira de uma mulher
No entanto um demónio conseguiu apanhá-lo e fazê-lo lamber pelo fogo (estamos num grupo de contrastes binários: padre/laico, homem/mu-
antes de os anjos intervirem. Fursy ficou queimado num ombro e no lher, estes três personagens representam o conjunto da sociedade huma-
queixo. Essas queimaduras eram ainda visíveis quando voltou à terra e 11I1, ficando as outras duas numa penumbra misteriosa). Quando, rodeado
ele mostrava-as. Um anjo explicou-lhe: «O que tu acendeste ardeu em ti» por diabos que ameaçam agarrá-l o com pinças de fogo, Drythelm se julga
e fez-lhe uma exposição sobre a penitência e a salvação. A alma de Fursy perdido, aparece de repente uma luz que aumenta como a de uma estrela
voltou à terra e o monge guardou da sua viagem imaginária um tal medo hrilhante, e os diabos dispersam-se e fogem. O companheiro voltou c,
que, quando pensava nela, nos dias glaciais do Inverno, ficava a suar de mudando de direcção, leva-o para lugares luminosos. Chegam 8 um mu-
terror como se estivesse em pleno Verão. ro de um comprimento e de uma altura que os seus olhos não podem
A ideia purgatória é vaga nesta história. A natureza do fogo não é ulcançar , mas atravessam-no de uma maneira incompreensível c
definida e o carácter da queimadura de Fursy mostra-se bastante ambí- I>rythelm vê-se num prado grande e verde, cheio de flores, colorido c
guo: ordálio, punição dos pecados, purificação? Mas esta ambiguidade perfumado. Homens vestidos de branco estavam ali alegremente reuni-
faz parte da definição do fogo purgatório que, todavia, não é aqui dos. Drythelm pensou ter chegado ao reino dos céus, mas o companhei-
mencionado-". ro, lendo-lhe o pensamento, disse-lhe: «Não, não é aqui o reino dos céus,
como tu supões.» Drythelm atravessou o prado, uma luz ainda maior
aumentou pouco a pouco, elevaram-se cânticos muito suaves, envolveu-
A visão de Drytbelm: um lugar reservado à purgação -o um perfume junto do qual o outro que sentira no prado não passava de
um cheirinho, e a luz tornara-se tão brilhante que a do prado já somente
A visão de Drythelm, no capítulo XII do livro V da Historia lhe parecia um pálido clarão. Esperava ele entrar naquele lugar maravi-
ecclesiastica, é muito mais importante para o nosso propósito. Trata-se lhoso quando o seu guia o obrigou a arrepiar caminho. Quando chega-
de um devoto laico, um pai de família, o seu herói. Este habitante da rum ao sítio risonho das almas vestidas de branco, o companheiro de
região de Cunningham (ou Chester-le-Street), próxima da fronteira esco- L>rythelmdisse-lhe: «Sabes o que é tudo o que vimos? _. Não. O vale
cesa ficou gravemente doente e certa noite morreu. Ao amanhecer voltou horrível cheio de chamas ardentes e de frios glaciais é o lugar onde são
à vida afugentando os que velavam o seu cadáver, à excepção da esposa, examinadas e castigadas as almas daqueles que demoraram a confessar e
aterrorizada mas feliz. Drythelm dividiu os seus bens em três partes, um 11 corrigir os pecados criminosos (scelera) que cometeram, que não se
terço para a mulher, um terço para os filhos e um terço para os pobres, e urrependeram senão em artigo de morte e saíram do corpo nesse esta-
retirou-se para um eremitério do isolado mosteiro de Mailros, num recan- do; mas como, pelo menos no momento de morrer, se confessaram c
to do Tweed. Aí viveu em penitência e, quando tinha oportunidade, con- üzeram penitência, todas no dia do Julgamento (final) alcançarão o
tava a sua aventura. reino dos céus. Muitas são ajudadas pelas preces dos vivos, pelas esmo-
Um personagem resplandecente vestido de branco conduzira-o para Ias, pelos jejuns e sobretudo pela celebração de missas a fim de serem
leste, para um vale muito extenso, muito profundo e infinitamente com- libertadas mesmo antes do dia do Julgamento'".» O guia prosseguiu:
prido, cercado à esquerda por chamas medonhas e à direita por terriveis «A seguir, o poço fétido que vomita chamas é a boca da geena de onde
rajadas de granizo e de neve. Estas duas vertentes estavam cheias de al- aquele que lá cair uma vez nunca mais será libertado, por toda a eterni-
mas humanas que o vento fazia passar de um lado para o outro, sem dade. O lugar florido onde viste aquela mocidade encantadora e alegre
cessar. Drythelm pensou que se tratava do Inferno. «Não, disse-lhe o divertindo-se, é onde são acolhidas as almas daqueles que saem do seu
companheiro que adivinhara o seu pensamento, não é aqui o Inferno corpo no meio de boas obras mas que não são suficientemente perfeitas
que tu imaginas.» Passou em seguida para lugares cada vez mais escuros para merecerem ser imediatamente introduzidas no reino dos céus; mas
onde nada via além da mancha clara do seu guia. E, de repente, surgiram lodos no dia do Julgamento entrarão na visão de Cristo e nas alegrias do

138 139
reino celestial. Pois aquelas que foram perfeitas em todas as suas pala-
impenetrável separa um inferno e um inferno temporário de um paraíso
vras as suas obras e os seus pensamentos, logo que saem dos corpos
alcançam o reino celestial; o lugar onde ouviste aquela doce canção por
de eternidade e de um paraíso de espera. Para que nele exista Purgatório
será necessária a instalação de um sistema ternário; e mesmo que o Pur-
entre aquele perfume suave e aquela luz esplêndida já lá está perto. E tu,
gatório fique geograficamente inclinado para o Inferno, será preciso ':1m
que deves agora voltar ao teu corpo e viver de novo entre os homens, se te
sistema melhor de comunicação entre Purgatório e Paraíso. Será preCISO
esforçares por bem reflectir no que fazes e por observar nos teus cost':lmes
abater o muro.
e nas tuas falas a rectidão e a simplicidade, também tu terás depois da
Um século depois, mais ou menos na Germânia Meridional, um mon-
morte uma morada entre esses grupos alegres de espíritos felizes que viste.
ge de Reichenau, Wetti, morre em 4 de Novembro de 824 depois de, na
Pois, durante o espaço de tempo em que te deixei sozinho, fui in~ormar-
vêspera de morrer, ter contado uma visão sua. Mais tarde o relato foi
-me do que te iria acontecer.» Com estas palavras, Drythelm fica tnste por
posto por escrito pelo abade do mosteiro, Heito. Pouco depois, o poeta
ter de regressar ao corpo e contempla avidamente a beleza e o enc~nto do
Walahfrid Strabo, abade de Saint-Gall, comporá uma versão dela em
lugar onde se encontra e das pessoas que lá vê. ~as enquanto se mt~rro- vers029.
gava, sobre como fazer uma pergunta ao seu gula, sem se atrever a ISSO,
viu-se vivo entre os homens/ .
Este texto seria essencial para o caminho do Purgatório se não conti-
l1m sonho barroco e delirante com o além: a visão de Wetti
vesse lacunas fundamentais em relação ao futuro sistema e se não tivesse
sido escrito no dealbar de uma época que irá desviar-se dos problemas da
Doente, Wetti repousava na sua cela, com os olhos fechados m~s não
expurgação no além. ., N'
dormia. Satanás, com aparência de clérigo, com a face negra tão feia que
O que nele está presente é o lugar reservado especla~ent,e a purgaçaoi e
nem se distinguiam os olhos, apareceu-lhe ameaçando-o com instrumen-
a definição rigorosa da natureza desse lugar: nele, nao so as almas sao
tos de tortura; e uma multidão de demónios preparava-se para o prender
torturadas indo do quente para o frio e vice-versa, a ponto de Drythelm
numa espécie de câmara de torturas. Mas a misericórdia divina enviou-
julgar que se trata do Inferno, mas ta~bé~ é ~m lugar. d~ exame e de
-lhe um grupo de homens magnífica e decentemente vestidos com hábitos
castigo, e não, para bem dizer, de punficaçao; e a defiDl~aoNdasc~lpas
monásticos e falando latim, que expulsou os demónios. Um anjo de uma
que a ele conduzem, os pecados graves, scelera; é a caractenzaçao da Situa-
beleza incrível, vestido de púrpura, aproximou-se da sua ca~ceira e ~a-
ção que a ele leva: a confissão e ao arrependiment~ in extremis; é .a afi~a-
lou-lhe afectuosamente. A primeira parte da visão acabou assim. O pnor
ção de que a presença nesse lugar garante a salv.açao~ara a ~termdade; e a
do mosteiro e outro irmão vieram tratar do doente. Este contou-lhes o
indicação do valor dos sufrágios com a sua lista hierarquizada: prec;s,
que acabava de se passar e pediu-Ihes que intercedessem pelos seus peca-
esmolas, jejuns e, sobretudo, sacrificios eucarísticos, com a sua consequen-
dos, enquanto ele próprio, numa atitude de penitência monástica bem
cia eventual: encurtar o tempo de purgação, o que confirma que esse tempo
conhecida, se prostrava com os braços em cruz. Os dois irmãos cant~ram
está situado entre a morte e a ressurreição, durante um período mais ou
os sete salmos da penitência, o doente deitou-se novamente e pediu os
menos longo, sendo o castigo máximo até ao dia do Julgamento Final.
Diálogos de Gregório, o Grande. Depois de ter lido nove ou dez pági-
O que nele falta é a palavra purgação e mais genericamente qualquer
nas, pediu aos visitantes que fossem descansar e preparou-se para fazer
palavra da família de purgar. Bede, sem dúvida, ao sacrific~r .aqui a um
() mesmo. O anjo que já vira vestido de púrpura apareceu de novo, desta
género literário, omite cuidadosamente todos os termos ca~o~cos e me~-
vez todo vestido de branco e resplandecente e felicitou o doente pelo que
mo todas as referências a uma autoridade, se bem que a Bíblia e Agosti-
acabava de fazer. Recomendou-lhe em especial que lesse e relesse o salmo
nho estejam bem perto por trás deste texto. Mas um lugar sem nome não
existe totalmente.
cxvnr=.
O anjo leva-o então por uma caminho agradável até umas montanhas
Sobretudo talvez em conformidade com os pontos de vista agostinia-
imensamente altas e de uma beleza incrível que pareciam feitas de már-
nos acerca dos non v~lde mali e dos non valde boni, os que não são intei-
more e eram cercadas por um grande rio onde uma enorme multidão de
ramente maus e os que não são inteiramente bons, não existe apenas um
condenados estava retida para ser punida. Reconheceu muitos deles.
lugar intermédio mas sim dois, o da correcção dura e o da espera jubilosa,
Noutros locais assistiu a muitas e diversas torturas infligidas a numero-
quase colados um ao Inferno, o outro ao Paraíso. Pois o sistema da visão
NOS padres e às mulheres que eles haviam seduzido e que esta~am ~ergu-
de Drythelm continua a ser um sistema binário; um muro aparentemente
Ihadas no fogo até ao sexo. O anjo disse-lhe que no terceiro dia elas
140
141
seriam chicoteadas sobre o sexo. Numa espécie de castelo de madeira e Dever-se-ia analisar em si mesma esta extraordinária visão. Dela tra-
pedra muito esquisito de onde saía fumo, viu monges que, segundo o que tarei apenas três elementos que interessam ao futuro Purgatório: a insis-
lhe disse o anjo, tinham sido ali reunidos para expurgação (ad purga tio- I~ncia posta na purgação no além, o papel desempenhado por uma
nem suam). Viu também uma montanha em cujo cume estava um abade montanha como local dessas penas temporárias (teremos, no fim da nos-
que morrera há uma dezena de anos e que ali fora colocado não para sua .11 história, a montanha do Purgatório de Dante), a presença, nesses lu-
eterna condenação mas para ser expurgado. Um bispo que deveria ter lures de castigo, de, Carlos Magno sendo punido por ter cedido às
rezado por esse abade sofria penas infernais no outro lado da monta- tentações da carne. E uma das mais antigas aparições desta lenda que
nha. Também lá viu um príncipe que reinara em Itália sobre o povo leve êxito na Idade Média: o imperador teria mantido relações culposas
romano ao qual um animal rasgava as partes sexuais, enquanto o resto com a irmã e seria assim pai de Rolando. Mais tarde ver-se-á por sua vez
do corpo nada sofria. Estupefacto por ver aquela personagem que fora o Carlos Martel, avô de Carlos Magno, torturado no além por ter despo-
defensor da fé católica e da Igreja (trata-se de Carlos Magno, que Walah- [ado a Igreja dos seus bens. Mas Carlos Martel será condenado ao Infer-
frid Strabon refere no seu poema) assim castigado, soube pelo anjo que, no como Teodorico, ao passo que Carlos Magno é «finalmente salvo"'».
apesar de muitas acções louváveis e admiráveis, aquela personagem entre- Se Carlos Magno e o seu pecado aparecem na visão de Wetti, é toda a
gara-se a amores ilícitos. Mas, por fim, estaria entre os eleitos. Viu tam- dinastia carolíngia que iremos encontrar numa outra visão espantosa da-
bém, ora em glória ora em sofrimento, juízes, laicos, monges. Foi em tada do fim do século IX, e que é sem dúvida o melhor testemunho de um
seguida para lugares de uma grande beleza onde se erguiam arcos de omprendimento que teve êxito na Idade Média: a politízação da literatura
ouro e de prata. O Rei dos Reis, o Senhor dos Senhores, avançou com .pocaIíptica32.
uma multidão de santos e os olhos humanos não podiam suportar o seu
esplendor. O anjo convidou os santos a interceder por Wetti, o que eles
fizeram. Uma voz vinda do trono respondeu-Ihes: «Esse deveria ter tido A politização do além: a visão de Carlos, o Gordo
uma conduta exemplar e não teve.» Viu em seguida a glória dos bem-
-aventurados mártires que também pediram a Deus o perdão dos pecados Dou na íntegra o texto desta visão escrito sem dúvida pouco depois da
de Wetti. A voz vinda do trono declarou que ele devia primeiro pedir morte do imperador Carlos, o Gordo (888). É destinada a servir a causa
perdão a todos aqueles que influenciara para o mal pelo seu mau exem- (te Luís, filho de Luís, o Bonacheirão, e de Hermengarda, filha única do
plo. Foram depois para um lugar onde estava uma multidão de virgens Imperador Luís 11, o Jovem, filho de Lotário e sobrinho de Carlos, o
santas que também intercederam por ele e a majestade do Senhor decla- (Inrdo. Luís Hl, chamado o Cego, foi com efeito proclamado rei em
rou que, se ele ensinasse uma boa doutrina, se desse bons exemplos e MI}(). Foi destronado pelo seu concorrente Berengário que, segundo o cos-

corrigisse aqueles que induzira ao mal, então o pedido delas seria atendi- lume bizantino, lhe mandou arrancar os olhos. O texto foi composto
do. O anjo explicou-lhe então que, entre todos os horríveis vícios dos pelos próximos do arcebispo de Reims, e nele se afirma o poder de inter-
homens, havia um que ofendia especialmente a Deus: o pecado contra ressão de S. Remígio patrono da cúria arquiepiscopal.
a natureza, a sodomia. O anjo fez-lhe ainda longos discursos sobre os Relato de uma visão do imperador Carlos feito segundo as suas pró-
vícios a evitar, exortou-o a convidar em especial os germanos e os gaule- prias declarações:
ses a respeitarem a humildade e a pobreza voluntária. Fez uma digressão
sobre os pecados das congregações femininas, voltou ao vício sodomítico Em nome de Deus, soberano rei dos reis, eu Carlos, pela graça de Deus rei
e alargou-se muito sobre este assunto, explicou que as epidemias atingiam dos Germanos, patricio dos Romanos e imperador dos Francos, quando du-
os homens por causa dos seus pecados e recomendou-lhe em particular rante a santa noite de um domingo, depois de ter celebrado o oficio divino
que cumprisse sem desfalecimentos o serviço de Deus, a opus Dei. Fez-lhe noctumo me fui deitar, para repousar e queria dormir, uma voz dirigiu-se a
mim e disse-me num tom terrível: «Carlos, o teu espírito vai deixar-te já e uma
notar de passagem que um certo conde Géraud, que governara a Baviera
visão revelar-te-á o justo julgamento de Deus e alguns presságios a ele respei-
em nome de Carlos Magno e mostrara grande zelo na defesa da Igreja,
lantes; mas o teu espírito regressará em seguida, dentro de uma hora bem
fora admitido na vida eterna. Depois de muitas outras falas, o anjo dei- medida.»
xou Wetti e este acordou com a aproximação da aurora e ditou a sua Logo a seguir fui arrebatado em espírito e aquele que me levava era de
visão. Uma descrição muito realista dos seus últimos momentos finaliza uma grande brancura e tinha na mão um novelo de lã que emitia um raio
este relato. luminoso extremamente brilhante como costumam fazer os cometas quando

142 143
aparecem, depois pôs-se a desenrolar o novelo e disse-me: «Toma um fio do estava .entregue àqueles suplícios, que me infligiam gigantes todos negros que
novelo brilhante, ata-o solidamente ao teu polegar da mão direita porque elo incendiavam o vale com toda a espécie de fogos. E todo trémulo, iluminado
te conduzirá ao labirinto das penas infernais.» Dizendo isto pôs-se rapidamen- pelo fio do novelo, vi sobre a vertente do vale um clarão que me apareceu
te à minha frente, desenrolando o novelo brilhante, e conduziu-me para vales durante um momento, e havia duas fontes que escorriam. Uma fervia mas a
em brasa e profundos, cheios de poços onde ardiam pez, enxofre, chumbo, outra era clara e morna e havia duas taças. Quando eu me dirigia para esta
cera e fuligem. Encontrei ali os prelados de meu pai e dos meus tios. Como guiado pelo fio do novelo, o meu olhar fixou-se na taça onde havia água a
lhes perguntasse aterrorizado porque sofriam aqueles duros tormentos, eles ferver e ali vi Luís, meu pae3, em pé e mergulhado até às coxas.
responderam-me: «Fomos os bispos do teu pai e dos teus tios; mas em vez Sofria dores extremas que agravavam a sua angústia e disse-me: «Monse-
de Ihes darmos, assim como ao seu povo, conselhos de paz e de concórdia, nhor CarIos, não tenhas receio, eu sei que a tua alma voltará ao corpo. Se
semeámos a discórdia e fomos os instigadores de muitos males. É por isso que Deus te permitiu vir aqui foi para veres por que pecados sofro tais tormen-
agora ardemos e sofremos estes suplícios infernais, assim como os outros ~os,assim como todos aqueles que viste. De facto, um dia estou nesta taça de
apreciadores de homicídios e de pilhagens. É para aqui que virão também ag~a a ferver, mas no dia seguinte sou levado para aquela outra onde a água é
os teus bispos e a multidão dos teus satélites que hoje se divertem, agindo muito fresca; devo isso às preces de S. Pedra e de S. Remígio sob cuja égide a
de modo semelhante.» nossa raça real reinou até agora. Mas se vierdes depressa em meu socorro tu e
Enquanto escutava, tremendo, estas palavras, eis que demónios todos ne- os meus fiéis, bispos, abades e membros do clero, por meio de missas, of~ren-
gros que voavam, trataram de apanhar com ganchos de ferro o fio do novelo das, salmo dias, vigílias e esmolas, rapidamente serei liberto desta taça de água
que eu tinha na mão e de me puxar para eles, mas o reverbero dos raios não a ferver, pois o meu irmão Lotário e seu filho Luís já foram subtraídos a esta
lhes permitiu atingir o fio. Depois correram sobre mim e quiseram agarrar-mo pena.graças às preces de S. Pedro e S. Remígio e já foram conduzidos para ~
com o gancho e lançar-me nos poços de enxofre; mas o meu guia que segurava alegna ~o p~ra~so de Deus.» Depois disse-me: «Olha para o lado esquerdo.»
o novelo atirou-me sobre os ombros um fio do novelo e mais outro, depois Eu olhei e Ia VI duas taças muito fundas. «Aquelas, acrescentou ele, foram
puxou-me com força atrás de si e assim trepámos as altas montanhas de fogo preparadas para ti se não te emendares e não fizeres penitência pelos teus .1
de onde corriam pântanos e rios ardentes onde ferviam todas as espécies de crimes abomináveis.» .i

metais. Lá encontrei inúmeras almas de homens e de pessoas importantes do Comecei então a ter terríveis arrepios. Apercebendo-se do terror em que
meu pai e dos meus irmãos que para lá haviam sido lançadas e estavam mer- estava o meu espírito, o meu companheiro disse-me: «Segue-me para a direita
gulhadas umas até aos cabelos, outras até ao queixo, outras até ao umbigo e onde está o vale magnífico do Paraiso.» Avançámos e vi o meu tio Lotário
gritavam-me lamentando-se: «Durante a vida gostámos, contigo e com o teu sentado ao ,l~do de reis gloriosos num grande clarão e sobre uma pedra que
pai, os teus irmãos e os teus tios, de armar lutas e de cometer homicídios e era um topazio de um tamanho extraordinário. Estava coroado com um dia-
fazer pilhagens por cupidez terrena; é por isso que sofremos tormentos nestes dema precioso e tinha junto de si o filho Luís ornado com uma coroa seme-
rios ferventes entre todas as espécies de metais.» lhante. Ao ver-me aproximar dele, interpelou-me amavelmente e disse-me com
Como eu timidamente prestasse atenção às suas palavras, ouvi atrás do voz ,f~rte: «Carlos, meu sucessor, tu que agora reinas em segurança sobre o
mim almas que gritavam: «Os grandes suportam num rio fervente fornalhas irnpeno dos Romanos, vem até mim; sei que chegaste tendo atravessado um
de pez e de enxofre, cheias de enormes dragões, de escorpiões e de serpentes do lugar de ex~iação, onde teu pai que é meu irmão foi posto numa estufa que lhe
diversas espécies»; também lá vi alguns grandes de meu pai, dos meus tios O estava destinada, Mas a misericórdia de Deus depressa o libertou dessas pe-
dos meus irmãos, assim como meus, que me disseram: «Pobres de nós! Carlos, nas, assim como nós fomos libertos pelos méritos de S. Pedro e as preces de S.
bem vês os horríveis tormentos que suportamos pela nossa maldade e o nosso Remígio a quem Deus confiou um apostolado supremo sobre os reis e toda a
orgulho assim como pelos maus conselhos que demos por cupidez ao rei e a ti raça dos Francos. Se este santo não tivesse socorrido e ajudado os sobreviven-
próprio.» Enquanto me faziam, gemendo, estas queixas, dragões correram ao tes da nossa posteridade, a nossa família já teria deixado de reinar e de exercer
meu encontro com as bocarras abertas e cheias de fogo, de enxofre e de pez, e ()poder imperial. Sabe pois que este poder imperial te será em breve arrancado
queriam engolir-me. Mas o meu guia pôs-me por cima um terceiro fio ainda das mãos e que em seguida só viverás muito pouco tempo.» Voltando-se então
com mais empenho, e os seus raios luminosos venceram as goelas em fogo e ele para mim, Luís disse-me: «O império dos Romanos que possuíste até agora a
puxou-me para a frente ainda com mais força. título hereditário, deve caber a Luís, o filho da minha filha.» Com estas pala-
Descemos então para um vale que de um lado era escuro, mas flamejava vras pareceu-me que Luís menino estava na nossa frente.
como o fogo de uma fornalha; do outro lado era de um encanto e de uma paz O avô, olhando-o fixamente, disse-me: «Esta criança é semelhante àquela
inexprimíveis. Voltei-me para o lado que estava nas trevas e que vomitava que o Senhor colocou no meio dos seus discípulos quando disse: "O reino dos
chamas e lá vi vários reis da minha família que sofriam grandes suplícios e céus pertence a esta criança; digo-vos que os seus anjos contemplam sempre a
então fui presa de uma profunda angústia, pois imaginei logo que eu próprio face de me" Pai que está nos céus." Quanto a ti, entrega-lhe o poder por esse

144 145
fio do novelo que tens na mão.» Desatando um fio do polegar da mão direita, dem a estes anseios são as do refrigerium (refrigério) e do seio de Abraão.
dei-lhe, através do dito fio, toda a monarquia imperial. Logo o novelo bri- A fórmula mais corrente será a do «lugar de refrigério, de luz e de paz».
lhante se meteu inteiramente dentro da sua mão como se fosse um sol deslum- Em relação à Alta Idade Média, distinguimos três versões de oração
brante. Foi assim que, depois de ter tido esta visão milagrosa, o meu espírito
relu morte: a oração do «velho gelasiano» (segundo um sacramentário
reentrou no meu corpo, mas eu estava muito fatigado e cheio de terror. Por
fim, saibam todos, quer queiram quer não, que todo o império dos Romanos
dito de Gelásio) ou oração romana, a oração de Alcuíno, que a partir
voltará para a sua mão conforme a vontade de Deus. Mas eu não tenho do século IX será a mais conhecida e que ainda se encontra no pontifical
maneira de agir por ele, impedido como estou pela aproximação do momento romano, e a oração galicana que se encontra num sacramentário de São
em que o Senhor me chamará. Deus que domina os vivos e os mortos levará a I)inis do século IX e da qual existem testemunhos até ao século XVI.
cabo e confirmará esta obra, pois o seu reino eterno e o seu império universal Eis a oração de Alcuíno: «Deus por quem tudo vive e por quem os
durarão sem fim pelos séculos dos séculos". nONSOS corpos não morrem ao morrerem, mas são transformados em algo
de melhor, rogamos-te em súplicas que ordenes que a alma do teu servo
Este texto, que constituirá uma das leituras de Dante, mostra como, leja recolhida pelas mãos dos teus santos anjos para ser conduzida ao seio
sem qualquer reflexão teórica, existe implicitamente a necessidade de dis- do leu amigo e patriarca Abraão e para ser ressuscitada no último dia do
tinguir no Inferno (onde estão em princípio as grandes personagens desta .runde julgamento; e tudo o que ele tenha contraído de vicioso pelas
visão) um lugar de onde se pode sair. Também os elementos de pormenor .rlimanhas do diabo, na tua piedade, na tua misericórdia e na tua indul-
são aqui directivas preciosas. O tema folclórico do novelo brilhante que .~ncia, apaga-o. Pelos séculos dos sêculos'".»
serve de fio de Ariadne encontrar-se-á em Gervásio de Tilbury a propó- De um modo geral, duas características limitam o alcance dos textos
sito de uma história de feitiçaria em Reims, no fim do século XII. OS litúrgicos para o estudo da formação do Purgatório.
temas do quente e do frio, da mitigação das penas, lá estão fortemente A primeira é a ausência deliberada de qualquer alusão a um castigo ou
sublinhados. Lá se vê perfilar um dos usos da evocação dos pecados do 11 lima expiação além-túmulo. Quando se fala de alma expurgada (anima
além: a chantagem sobre os vivos. purgata), como no sacramento de Adriano, trata-se da remissão dos pe-
Remato este exame das visões que entre os séculos VII e XI fornecem eados. A oferta eucarística faz com que se espere «a redenção definitiva e
alguns elementos ao imaginário do Purgatório com um poema de Egbert 11 salvação eterna da alma». Segundo certos sacramentários, «a oferta
de Liêge, a Fecunda Ratis, composto entre lOlO e 1024, que reconduz à 'lIcarística quebra as cadeias do império da morte e conduz a alma à
velha concepção dos dois fogos, o fogo purgatório e o fogo eterno, e à morada da vida e da luz37». A liturgia é deliberadamente eufémica, opti-
forma literária antiga. A propósito do fogo purgatório (versos 231-240) mista. E significativo que um prefácio do Missel de Bobbio, por exemplo,
são mencionados os rios de fogo, os pecados leves; e as fontes são João Il, retome os próprios termos da prece de Agostinho por sua mãe. Joseph
3, Daniel, VII, 10 e Ezequiel, XXIV, 11. Os versos sobre o fogo eterno Ntedika observou judiciosmente que Gregório, o Grande, foi «o primeiro
(241 a 248) evocam o lago, o poço e o abismo infernais ". Il explicar a oração pelos mortos com a doutrina do Purgatório» e foi
seguido por Isidoro de Sevilha, Bede e outros, mas que esta opinião
não teve «qualquer influência sobre os formulários litúrgicos». Esta reia-
A Iiturgia: perto e longe do Purgatório Uvaautonomia dos diferentes domínios da história é um tema de reflexão
para o historiador que tem de se resignar a que, em matéria de história,
A terceira via a explorar do caminho do Purgatório é a da liturgia. É, nem tudo avance ao mesmo ritmo.
ao mesmo tempo, a mais decepcionante e talvez a mais rica de preparação A segunda característica é o conservantismo natural, por função, da
para a nova crença. Por um lado, não há nada ou quase nada que faça liturgia. Por exemplo, a introdução do Memento dos Mortos no cânone da
alusão à remissão dos pecados depois da morte; mas, por outro lado, a missa data sem dúvida pelo menos de Gregório, o Grande, mas o conjun-
evolução do fervor posto pelos vivos nas suas preces pelos mortos cria to em que se inseriu não mais se alterou até ao Vaticano 11: «Desde o
estruturas de acolhimento em relação ao Purgatório. começo do século V a parte do nosso cânone romano que vai do Te
Vimos na epigrafia funerária a preocupação dos cristãos com os seus lgitur às palavras da Instituição era já substancialmente o que é
mortos. Reencontramos esta preocupação na liturgia, mas o que se pede hoje38.» Se esse Memento dos Mortos é omisso no sacramentário grego-
para os defuntos é, se não o Paraíso logo de seguida, pelo menos a espera riano (Hadrianum) enviado por Adriano I a Carlos Magno, isso deve-se
tranquila e a promessa da vida futura. As noções que melhor correspon- .implesmente ao facto de, em Roma, ele ser sempre omisso nas missas de

146 147
domingo e nos oficios solenes. Esta invocação, .consider~da u~ ,si.mpl Parece-me que este lugar intermédio de repouso é bem o seio de
gesto para com os mortos conhecidos, so era f~lta nas ~lssas diárias, Ahraão ou ainda o prado habitado pelas almas vestidas de branco da
Aqui tornam-se necessárias duas observaç.o~s. Convidam-nos elas & JlI.vão de Drythelm de Bede. É também o sabat das almas à espera do
recolocar a génese do Purgatório no clima rel~glOs~geral da Alta Id oitavo dia, ou seja, da ressurreição, evocado especialmente por muitos
Média. A primeira é que, como fez notar I?am!en Slcard: percebe-se documentos monásticos'". Mas assim como a noção de Purgatórío exigi-
certa evolução na época carolíngia. Nos ntual~, «De~s ~ agora volunta ,. o desaparecimento da categoria agostiniana dos não valde boni, os que
riamente representado como o juiz. Apela-se. a s~a Justiça, quase ~nt nlu são completamente bons, para apenas conservar a dos não valde mali
quanto à sua misericórdia». O Julgamento Final e evocado, o monbu ou dos mediocriter boni et mali, os que não são inteiramente maus ou
do «deve ser purificado, lavado dos seus pecados e dos s~us e.rros»'. O medianamente bons e maus, também o lugar purgatório reclamará a eli-
sentimento dos pecados do defunto que não aparecia .na, h.turgla ano minação desse lugar de espera quase paradisíaco, e em definitivo o desa-
exprime-se agora por expressões de temor e por «um .pnn~plo de r;fl~ parecimento do seio de Abraão.
sobre o além». Mas esse além apenas tem duas direcções possiveis:
Inferno ou o Paraíso. O que a liturgia carolíngia introduz ~ão ,é .um
esperança de Purgatório: é, juntamente com a esperança mais frágil
Paraíso, o medo crescente do Inferno. Já no século VIII o Missel A celebração dos mortos: Cluny
Bobbio propõe uma oração por um defunto «p,ara que el~ ~scape a~ lug
do castigo, ao fogo da geena, às chamas do Tartaro e atinja a regiao d A liturgia cristã interessou-se pelos mortos para além do Memento dos
vivos». Um outro ritual diz: «Liberta-o, Senhor, dos pnncipes ~as trev Morlos do cânone da missa e da oração pelos defuntos. Os sacramentá-
e dos lugares do castigo, de todos os perigos dos infernos e das ciladas d rlol romanos atestam o uso de missas pelos defuntos que, em vez de
penas ...» ,. . ., .rem celebradas no dia do funeral, sê-lo-ão num dia qualquer, como
Segunda observação: durante toda a Alta Idade Media a liturgia ••• Itação. Mas sobretudo os obituários nas suas diversas formas são o
siste na ideia de uma primeira ressurreição e coloca portanto as pr. meíhor testemunho desta memória dos mortos. Na época carolíngia, em
pelos mortos num quadro milenarista. Esta id~i~, basead~ n~ Apocalip .rtos mosteiros inscrevia-se nos registos dos vivos e dos mortos quem
de João, XX, 6: «Feliz e santo aquele que participa na primeira ress~rre1 devia ser recomendado no cânone da missa. Ocupavam o lugar dos anti-
ção!» foi propagada principalment~ por Orígenes e por ~a~to Agostinhe 101 dípticos, placas de cera onde figuravam os nomes dos dadores de
A maioria dos rituais apresenta a formula: «Que ele participe na pnme "rertas. São os Livros de Vida (Iibri vitae li. Depois os mortos sepa-
ressurreição» (Habeat partem in prima ressurrectione). . rim-se dos vivos. As comunidades monásticas - desde o século VII na
Damien Sicard baseando-se num estudo de Dom Botte, definiu Irlllnda - anotam sobre rolos o nome dos seus mortos, e fazem-nos circu-
os problemas lev~ntados por esta crença nu~a p~imeira ressurrei~ lar para informar os mosteiros da comunídade'v. Aparecem a seguir os
«Esta velha fórmula litúrgica tem um sabor milenarista e leva a suspei "'crológicos, listas de defuntos na margem de um calendário que se lia
que, nas épocas em que eram utilizados os nossos ~tuais ~a~canos ~ IIrlllmente no oficio de prima, quer no coro quer no capítulo; e os obi-
lasianos, não se estava longe de imaginar um lugar lIlte~edlo ~epo~~ ItMIrios.que não são normalmente destinados à leitura, mas que recordam
morte em relação à primeira ressurreição, onde era desejável e mveja 01 serviços de aniversários fundados por certos defuntos e as obras de
reinar mil anos com o Cristo ... Mas gostaríamos de que os noss~s text Misericórdia (distribuição de esmolas a maioria das vezes) que lhes estão
litúrgicos nos definissem melhor o que entende~ ~?r esse lugar mterm lIaadas. K. Schmid e J. Wollash sublinharam a evolução a que se assistiu,
dio. Tal como os livros de orações romanos pnmttlV~S, designam-D;o di época carolíngia (séculos IX-X) para os tempos da reforma gregoriana
gundo o Evangelho de Lucas, pelas expressões e~ulvalentes de seio (11mdo século XI). Em particular, passou-se das menções globais para as
Abraão de Paraíso ou de Reino. Está-se a caminho da «crença n menções individuais. Os libri memoriales carolíngios contêm de 15 000 a
lugar intermédio de repouso, num paraíso ameno onde,. na doçura . 40 000 nomes. Os necrológicos de Cluny só mencionam entre 50 e 60
luz, a alma resgatada de todos os seus pecados, espera ~ dia ~daressurrei numes por dia de calendário. Daqui em diante «a recordação litúrgica
ção. Mas nada nesta concepção deixa en~rever es~a punfi~aç~o, essa pe
devida aos pecados já perdoados que hgamos a actual ideia do Pur
.t' garantida por muito tempo para os mortos individualmente inseri-
aol». O tempo da morte individual'f impõe-se a partir de então nos re-
tóri039.» alltos mortuários. K. Schmid e J. Wollash insistiram também no papel da

148 149
ordem de Cluny nesta evolução. Como dissera W. Jorden, «existe uma dos defuntos. O santo padre abade propôs a todos os mosteiros que no dia a
originalidade cluniacense no cuidado com os mortos"?». seguir à festa de Todos-os-Santos, no primeiro dia das calendas de Novembro,
Cluny, com efeito, obedecendo ao carácter elitista destas uniões entre se celebrasse por toda a parte a memória de todos os fiéis para assegurar o
mortos e vivos que dizem respeito aos grupos dirigentes, estende ao con- repouso das suas almas; que fossem celebradas missas com salmos e esmolas
em público e em privado; que fossem distribuídas esmolas sem limite a todos
junto dos defuntos, de maneira solene e uma vez por ano, a atenção da
pobres: assim o inimigo diabólico receberia golpes duríssimos e, padecendo
liturgia. De facto, no meio do século XI, provavelmente entre 1024 e 1033,
naquela geena, o cristão acalentaria a esperança da misericórdia divina.
Cluny institui a celebração dos defuntos no dia 2 de ~ovembro, logoa
seguir à festa de Todos-os-Santos que tem lugar na vespera. O presugío
Alguns anos mais tarde o célebre monge e cardeal italiano Pedro Da-
da ordem entre a cristandade é tal que a «festa dos Mortos» em breve'
mião escreveu por sua vez uma vida de Odilon quase inteiramente copia-
celebrada por toda a parte. Este laço suplementar e solene entre os vivos.
da da de Jorsuald, através da qual este episódio se celebrizou+". Jacopo da
os mortos prepara o terreno onde vai nascer o Purgatório. Mas Cluny
Varazze dele se fez eco na Lenda Dourada, no século XIII: «S. Pedro Da-
preparou o Purgatório de maneira ainda mais precisa. Pouco depois da
mião conta que S. Odilon, abade de Cluny, tendo descoberto que junto de
morte do abade Odilon (1049), o monge Jotsuald, na vida do santo abade
um vulcão na Sicília se ouviam frequentemente gritos e lamentos de de-
que escreveu, relata o seguinte facto:
mónios queixando-se de que as almas dos defuntos eram arrancadas das
luas mãos pelas esmolas e as preces, ordenou que nos mosteiros se fizesse,
o senhor abade Ricardo contou-me esta visão de que eu já ouvira fal • seguir à festa de Todos-os-Santos, a celebração dos mortos. O que de-
mas de que não guardei qualquer recordação. Um dia, disse-me ele, um mon pois foi aprovado por toda a Igreja.» Jacopo da Varazze escreveu em
de Rouergue regressava de Jerusalém. Mesmo no meio do mar que se esten meados do século XIII: ele interpreta, pois, a história em função do Pu r-
da Sicília a Tessalonica, deparou com um vento muito violento, que empurro altlório que, daía em diante, já existe. Mas quando Jotsuald e Pedro Da-
o seu barco para um ilhéu rochoso onde vivia um eremita, servo de De.
mião redigem a Vida de Odilon, o Purgatório está ainda para nascer.
Quando o nosso homem viu o mar acalmar-se, conversou com o. ere~
Cluny dá uma indicação essencial; eis um lugar bem definido: uma mon-
sobre isto e aquilo. O homem de Deus perguntou-lhe qual a sua nacionali
de e ele respondeu .que era da Aqunânia. Então o homem de Deus quis sa tanha que cospe fogo, e está criada uma prática litúrgica fundamental: os
se ele conhecia um mosteiro que tinha o nome de Cluny e o abade desse lu mortos, e especialmente aqueles que têm necessidade de sufrágios, passam
chamava-se Odilon. Ele respondeu: «Conheci-o e até muito bem, mas gos •• ler o seu dia no calendário da Igreja.
de saber porque me fazes essa pergunta.» E o outro: «Vou dizer-to e intimo-
a que te recordes do que vais ouvir. Não longe de nós encontram-se luga
que, pela manifesta vontade de Deus, cospem com a maior violência um fo
ardente. As almas dos pecadores ali se purgam em suplícios vários durante
determinado tempo. Uma multidão de demónios está encarregada de renov
incessantemente os seus tormentos: reanimando as penas dia a dia, toman
as dores cada vez mais insuportáveis. Muitas vezes ouvi os lamentos d
homens que se queixam com veemência: a misericórdia de Deus permite,
efeito, que as almas desses condenados sejam libertadas das suas penas pe
preces dos monges e pelas esmolas dadas aos pobres em lugares santos. N
suas lamentações eles dirigem-se, principalmente, à comunidade de Clunye
seu abade. Assim, eu te conjuro por Deus, se tiveres a felicidade de voltar
junto dos teus, a dares a conhecer a essa comunidade tudo o que ouviste
minha boca, e a exortares os monges a multiplicarem as suas preces, as vigi
e as esmolas para o repouso das almas mergulhadas em penas, para que a
haja mais alegria no céu, e o diabo seja vencido e humilhado.»
De regresso ao seu país, o nosso homem transmitiu fielmente a sua m
sagem ao santo padre abade e aos irmãos. Ao ouvi-lo estes, com o cora
transbordante de alegria, deram graças a Deus, juntaram preces a outras
ces, esmolas a outras esmolas e trabalharam obstinadamente para o repo

150 151
NOTAS 13 Expositio in epistolas Pauli, PL, 134,319-321. A passagem que trata dos pecados

opostos é a seguinte: «attamen sciendum quia si per ligna, fenum et stipulam, ut beatus
Augustinus dicit, mundanae cogitationes, et rerum saecularium cupiditates, apte etiam per
uedem designantur levia, et venalia, et quaedam minuta peccata, sine quibus homo in hac
vila esse non potest. Unde notandum quia, cum dixisset aurum, argentem, lapides pretio-
.IfIS, non intulit ferrum, aes et plumbum, per quae capitalía et criminalia peccata
designantur (col. 321).
14 RATHIER DE VÉRONE, Sermo II, De Quadragesima, PL, 136,701-702. Mor-
lu! enim nihil omnino faciemus, sed quodfecimus recipiemus. Quod et si aliquis pro nobis
uliquit fecerit boni, et si non proderit nobis, proderit illi. De ilIis vero purgatoriís post obi
um poenis, nemo sibi blandiatur, monemus, quia non sunt statutae criminibus, sed peccatis
Irvioribus, quae utique per ligna, ferum et stipula indesignatur. Sobre este espantoso
personagem e autor, natural mais de Liêge do que de Verona, ver Raterio di Verona,
tonvegni dei Centro di Studi sulIa spiritualità pedievale, X, Todi, 1973.
1 «et quodam purgatorio igne purganda» (PL, 83, 757). 15 PL, 150, 165-166.

2 JULIÃO DE TOLEDO, Prognosticon, livro 11, PL, 96, 475-498. L'ignis 16 Periphyseon, V, PL, 122,977.

purgatorius ocupa as colunas 483-486. A importância de Julião de Toledo por ter 17 De praedestinatione, capo XIX, De igni aeterno ... , PL, 122,436.
aperfeiçoado a doutrina do Purgatório no século XII, especialmente em Pierre Lom- 18 BURCHARD DE WORMS, Decretorum libri XX, 68-74, PL. 140, 1042-1045.
bard, foi estudada por N. WICKI, Das «Prognosticon futuri saeculi»; Julians VOII 19 Acta synodi Atrebatensis Gerardi I Cameracensis Episcopi, capo IX, PL, 142,
Toledo ais Quellenwerk der Sentenzen des Petrus Lombardus. 1298-1299.
3 Liber de ordine creaturarum. Un anonimo irlandés dei siglo VII. ed. M. C. Diaz y. 20 Resumo a visão de Tespésio segundo E. J. BECKER. A contribution to the
Diaz, S. Tiago de Compostela, 1972. Um único reparo: a excelente edição de Diaz y romparative study of the Medieval Visions 01 Heaven and Hell, with special Reference
Diaz tem tendência para apresentar a obra de uma maneira um pouco anacrónica. No IfI lhe Middle English Versions, Baltimore, 1899, pp. 27-29 e a visão de Timarco segun-

estudo da estrutura, p. 29, é forçar o texto dizer: inflemo (cap. XIII), purgatorio (cap. do H. R. PATCH, The other World according to descriptions in medieval literature,
XIV) y gloria (cap. XV-XVI). Também a tradução do capítulo XIV cujo título nOI, ClImbridge, Mass., 1950, pp. 82-83.
manuscritos que o apresentam é de igne purgatorio, «do fogo purgatório», está tradu- 21 P. DINZELBACHER, «Die Visionen des Mittelalters» in Zeitschrift lür Reli-
zido em espanhol por del purgatorio, do purgatório, título duplamente erróneo, prí- ./ons und Geistesgischichte, 30, 1978, pp. 116-18 (resumo de um Habilitation Schrift
meiro porque será preciso esperar cinco séculos para que o Purgatório exista, e depois IIIMito, Vision und Visionsliteratur im Mittelalter, Estugarda, 1978). Do mesmo autor,
porque este tratado é um nítido retrocesso quanto à evolucação geral da doutrina que wKlassen und Hierarchien irn Jenseits» in Miseellanea Medievalia, vol. 12/1. Soziale
conduzirá ao Purgatório. Urdnungen im Selbsverstãndnis des Mittelalters, Berlim-Nova Iorque, 1979, pp. 20-
4 Como observa judiciosamente Diaz y Diaz estes «pecados» têm sobretudo senti- 040. Claude Carozzi prepara uma tese sobre as «Viagens do Além na Alta Idade Média».
do nos meios monásticos. 12 Ver Kuno MEYER, edição e tradução em inglês. The voyage of Bran son of
5 SÃO COLUMBANO, Instructiones, Instruetio IX. De extremo judicio, PL, 246· ""'/w/ 10 the land of the living ..., 2 vol., Londres, 1895-1897. A obra inclui um estudo
-247. Videte ordinem miseriae humanae vitae de terra, super terram, in ferram, a terra /11 11" Alfred NUTT, The happy other-world in the mythico-romantic literature of lhe Irish.
ignem, de igne injudicium, de judicio aut in geliennam, aut in vitam: de terra enim creatus '1".,. celtie doctrine of re-birth, que mostra as raizes celtas de um eventual purgatório
es, terram calcas, in terram ibis, a terra surges, in igne probaberis, judicium expectabis, Mflllradisíaco».
aeternum autem post haee supplicium aut regnum possidebis, qui de ferra creati, paululum II Cf. MAURER, «Die H61le auf Island» in Zeitschrift des Vereins für Volkskunde,
super eam stantes, in eamdem paulo post intraturi, eadem nos iterum, jussu Dei, reddent IV 1894, p. 256 e ss. Ver também H. R. ELLIS, The Road to Hell. A study of the
ae projiciente, novissime per ignem probabimur, ut quadam arte terram et lutum ignl fI'lIIC'l'ptionof the Dead in Old Norse Literature, Cambridge, 1943. Sobre o «Valhõle»
dissolvat, et si quid auri aut argenti habuerit , aut eaeterorum terrae uti/ium paracarassi« CVlllhalla)ver G. DUMÉZIL, Les Dieux des Germains, n. ed., 1959, p. 45. Do ponto de
mo (paraeaximo) liquefaeto demonstret. vlltu da cultura popular gerrnânica moderna, cf. H. SIUTS, Jenseitsmotive deutschen
6 PL, 87, col. 618-619. Volhmiirchen, Leipzig, 1911.
7 PL, 89, col. 577. 14 Carmen ad Flavium Fe/icem de resurrectione mortuorum et de iudicio Domini, ed.

8 PL, 94, col. 30. J 11. Waszink, Bona, 1937.


9 De fide Sanetae Trinitatis, Ill, PL, 101, 52. l~ Sobre Bede historiador ver os artigos de P. H. BLAIR, «The Historical writings
10 Enarrationes in epistolas Pau/i, PL, 112, 35-39. til Béde» e de Ch. N. L. BROOKE, «Historical Writing in England between 850 e
II Expositio in Mattheum, II, 3, PL, 120, 162-166. 11,o» na compilação La Storiografia altomedievale, Spoleto (1969), 1970, pp. 197-
12 De varietate /ibrorum, Ill, 1-8 in PL, 118, 933-936. O comentário de S. Paulo l, .lll c 224-247. E também J. M. WALLACE-MADRILL, Early Germanic Kingship
Coríntíos, rn, 1013 encontra-se em PL, 117,525-527. //1 ":nJÇ/andand on lhe continent , Oxford, 1971, capo IV, «Bêde», pp. 72-97.

152 153
--------------_ ..~----------_ -._._ _._._.

26 Historia ecc/esiastica gentis Anglorum, 111, 19. A primeira Vila Fursei, quase llichungen des Abt-Herwegen - Instituts der Abtei Maria Laach, vol. 63, Munique,
copiada por Bêde, foi publicada por B. KRUSCH em Monumenta Germaniae Histo- 1978. O texto latino das três orações encontra-se nas páginas 89-91. A oração galicana
rica. Scriptores rerum merowingicarum, t. IV, 1902, pp. 423-451. tala dos três patriarcas e não apenas de Abraão. Ao «Teu amigo Abraham» são acres-
27 «Vallis ilIa quam aspexist! flammis ferventibus et frigoribus horrenda rigidis, ipse centados «o eleito Isaac» e «o teu amado Jacob». Também no sacramentário gelasiano
est locus in quo examinandae et castigandae sunt animae illorum, qui differentes confiten Não referidos nos seios (in sinibus) dos três patriarcas.
et emendare scelera quae fecerunt, in ipso tandem articulo ad poenitentiam confugiunt, et 37 Ver o excelente estudo de J. NTEDIKA, L'Évocation de l'au-delà dans Ia priêre
sic de corpore exeunt: qui tamen quia confessionem et poenitentiam vel in morte haJJue- pour les morts. Étude de patristique et de liturgie latines (IV'- Vlll" siécle), Lovaina-
runt, omnes in die iudicii ahd regnum cae/orum perveniunt. MuItos autem preces viven- -Paris, 1971, principalmente pp. 118-120.
tium et ellemosynae et jejunia et maxime celebratio missarum, ut etiam ante diem judicil 38 São os termos de B. CAPELLE, «L'intercession dans Ia messe romaine» in
liberentur, adjuvant » Revue bénédictine, 1955, pp. 181-191. Retomados in Travaux liturgiques, tomo 2,
28 A visão de Drythelm será retomada nos séculos Xl e XII por autores importan- 1962, pp. 248-257.
tíssimos: Alfric nas suas homilias (ed. B. Thorpe, vol. lI, 1846, p. 348 e ss.), Otloh de 39 D. SICARD, La Liturgie de Ia mort ... , p. 412. Sobre a primeira ressurreição, ver
Saint-Emmeran no seu Liber Visionum (PL, 146,380 e ss.) e o cisterciense Hélinand de D. B. BOTTE, «Prima ressurectio. Un vestige de millénarisme dans le liturgies occi-
Froimont na passagem do século XlI para o século XIII (PL, 212, 1059-1060). dentales» in Recherches de théologie ancienne et médiévale, 15, 1948, pp. 5-17. A noção
29 Visio Guetini in PL" 105, 711-780 e também em Monumenta Germaniae Histo- durará, apoiada no Apocalipse. Encontramo-Ia, por exemplo, num opúsculo sobre a
rica Poetae latini, t. 11. A versão poética de Walahfrid Strabo foi editada, traduzida 11 confissão de Guy de Southwick do fim do século XII publicado por Dom. A. WIL-
comentada num excelente estudo de David A. TRAILL, Walahfrid Strabo's Visto MART in Recherches de Théologie ancienne et médiévale, 7, 1935, p. 343.
Wettini: text, translation and commentary, Francfort si Main, 1974. 40 J. LECLERCQ, «Documents surla mort des moines», in Revue Mabillon, XLV,
30 O Salmo CXVIII na numeração da Bíblia grega e da Vulgata (que era a Bíblia de 1955, p. 167.
que se servia na Idade Média) é, segundo a numeração hebraica hoje habitualmente 41 Cf. N. HUYGHEBAERT, Les documents nécrologiques, in Typologie des Sour-
utilizada, o Salmo CXIX, do qual os editores da Bíblia de Jerusalém dizem: «litanía da ces du Moyen Âge occidental, fase, 4, Turnhout, 1972, J.-L. LEMA~TRE, «Les obi-
realidade, ardente e incansável... todos os anseios do coração dele se exprimem; Deus, tuaires français, Perspectives nouvelles», in Revue d'Histoire de l'Eglise de France,
que fala, que dá a sua lei meditada, amada e guardada, é a fonte da vida, da segurança, I.XIV, 1978, pp. 69-81. Só restam 7 libri vitae. Um deles, o de Remiremont, foi objecto
da felicidade verdadeira e total,» de uma edição exemplar de E. HLADWITSCHKA, K. SCHMID e G. TELLEN-
31 B. de GAIFFIER, «La légende de Charlemagne. Le péché de l'empereur et SOB RACH, Liber Memorialis von Remiremont, Dublin e Zurique, 1970. Cf. G. TELLEN-
pardon» in Études critiques d'hagiographie et d'iconoíogie, Bruxelas, 1967, pp. 260-275 .: DACH «Der liber memorialis von Remiremont. Zur kritischen Erforschung und zum
32 Ver W. LEVISON, «Die Politik in den Jenseitsvisionen des frühen Mittelalters», Quellenwert liturgischer Gedenkbücher» in Deutscher Archiv für Erforschung des Mit-
Aus rheinischer undfrãnkischer Frühzeit, Dusselford, 1948. trlalters, 35, 1969, pp. 64-110.
Este texto foi incluído por Hariulf, cerca de 110, na sua Chronique de saint Riquier 42 Uma bibliografia sobre os rolos dos mortos encontra-se nos artigos de J. DU-
(ed. F. Lot, Paris, 1901, pp. 144-148); por Guilherme de Malmesbury no século XlI no "OUR, «Le rouleau mortuaire de Bosson, abbé de Suse (c. 1130)) in Journal des
seu De Gestis regnum Anglorum (ed. W. Stubbs I, pp. 112-116) e por Vincent de Beau- savants, pp. 237-254, e «Les rouleaux et encycliques mortuaires de Catalogne (1008-
vais no seu Speculum no século XIII. Encontramo-lo isolado em muitos manuscritos. ·1112)>>in Cahiers de civi/isation médiévale, XX, 1977, pp. 13-48.
Os monges de Saint-Denis atribuíram-no ao seu benfeitor Carlos, o Calvo. É uma daa 43 K. SCHMID e J. WOLLASCH, «Die Gemeinschaft des Lebenden und Verstor-
numerosas falsificações executadas naquela abadia. A que diz respeito ao pseudo-Dio- benen in Zeugnissen des Mittelalters» in Frühmittelaltareliche Studien, I, 1967, pp. 365-
nísio, convertido por S. Paulo e suposto fundador do mosteiro, foi denunciada no ·405.
princípio do século XII por Abelardo, o que contribuiu para os seus dissabores. 44 W. JORDEN, Das cluniazensische Totengedâchtniswesen, Munique, 1930. J.-L.
33 O imperador Luís lI, o Germânico. LEMAiTRE, «L'inscription dans les nécrologes clunisiens» in La Mort du Moyen Âge
34 A tradução é a de R. LATOUCHE in Textes d'histoire médiévale du V' ou xr (colóquio da Sociedade dos historiadores medievistas do ensino superior público,
siêcle, Paris, 1951, p. 144 e ss. Sobre Luís, o Cego, consultar R: POUPARDIN, LI 1975), Estrasburgo, 1977, pp. 153-167.
Royaume de Provence sous les Carolingiens, Paris, 1901, Apêndice VI, La Visio /(aroU. 4S O texto de Jotsuald encontra-se em Patrologie latine, tomo 142, colunas 888-891,
Crassi, pp. 324-332. Na «Vision de Rotcharius» que, tal como a «Vision de Wetti», c o de Pedro Damião no tomo 144, colunas 925-944.
data do começo do século IX (ed. W. Wattenbach in Auzeigen für Kundeder deutschen
Vorzeit, XXII, 1875, col. 72-74) e quando os pecadores são expurgados dos seus pe-
cados mergulhando-os no fogo até ao peito enquanto Ihes deitam água a ferver sobre •
cabeça, Carlos Magno está entre os eleitos porque as preces dos fiéis o arrancaram ao
castigo.
3S Fecunda Ratis, de EGBERT DE LlEGE, ed. Voigt, Halle, 1889.
36 Cf. D. SICARD, La Liturgie de Ia mort dans I'Église latine des origines à Ia
réforme carolingienne, Liturgiewissenschaftliche Quellen und Forschungen. Verõffen-

154 155
PARTE 11

O SÉCULO XII: O NASCIMENTO DO PURGATÓRIO


o SÉCULO DA GRANDE EXPLOSÃO

O século XII é o século da explosão da cristandade latina. O sistema


das relações sociais modificou-se, após uma lenta maturação. A escra-
vatura desapareceu definitivamente, o enorme domínio da Antiguidade
tardia e da Alta Idade Média transformou-se profundamente. Instalou-
-IC o sistema senhorial, organizando uma dupla hierarquia, um duplo
domínio. Uma primeira clivagem, fundamental, separa os dominadores,
011 senhores, da massa dos camponeses submetidos ao direito de coman-
do sobre o território senhorial. Em função deste direito, os senhores
retiram aos camponeses uma parte importante do produto do seu tra-
balho, sob a forma de rendas em géneros e, cada vez mais, em dinheiro
(também em prestações de mão-de-obra, mas as corveias começam a
diminuir): é a renda feudal. Dominam a massa dos camponeses (os
aldeões, os que ficam no feudo, os vilões, os homens do antigo domí-
nio. que são também, moralmente, criaturas desprezíveis) por meio de
tudo um conjunto de direitos dos quais os mais significativos, juntamen-
te com as cobranças económicas, decorrem do seu poder de justiça. No
interior da classe dominante estabelece-se uma segunda clivagem.
 aristocracia dos possuidores dos principais castelos subjuga a peque-
nll e média nobreza dos cavaleiros pelos laços de vassalagem. Em troca
de um conjunto de serviços, sobretudo militares mas também de assis-
ltncia e de conselho, o senhor concede ao vassalo a sua protecção e
rurnece-Ihe frequentemente meios de subsistência, no geral uma terra,
n [eudo.
O conjunto deste sistema constitui a feudalidade. Sendo juridicamente
bem definida apenas para a camada superior, feudo-cvassálica»; ela só
IxiKtee funciona através das relações que ligam senhores e camponeses,
prlllmente definidas de uma maneira um tanto vaga como costume.
Esta feudalidade é uma das encarnações históricas de um tipo de sis-
"ma mais vasto, o feudalismo, que existiu (ou ainda existe) em diversas
rtlliões do mundo e em épocas diferentes. Este sistema, muito duro para a

159
massa dos dominados, permitiu no entanto no conjunto da sociedade O Purgatório é um elemento desta expansão no imaginário social, na
uma explosão excepcional. Esta manifesta-se, em primeiro lugar, pelo geografia do além, na certeza religiosa. Uma peça do sistema. É uma
número de pessoas: entre o começo do século XI e meados do século conquista do século XII.
XIII, a população da cristandade latina duplica quase completamente. VOU agora restringir e aprofundar pouco a pouco a minha investiga-
Manifesta-se também no campo: extensão das superficies, melhores ren- ção. Vou examinar de mais perto, e à medida que ela se constitui, a lógica
dimentos ligados à multiplicação dos processos e aos progressos tecnoló- do Purgatório. Adoptarei uma forma sistemática segundo duas orienta-
gicos. É espectacular, com o desenvolvimento urbano apoiado na ções. Uma, teológica, seguirá os desenvolvimentos do sistema da reden-
exploração do excedente agrícola, a mão-de-obra artesanal, a renovação ção e estará estreitamente ligada ao desenvolvimento das concepções do
do comércio com a criação de um meio urbano ligado às estruturas feu- pecado e da penitência, e de uma doutrina articulada dos objectivos últi-
dais e que nelas introduz um elemento novo parcialmente negador: as mos. A outra, imaginária, precisará a natureza e as funções do fogo, e
classes médias livres: artesãos, comerciantes, de onde sai a burguesia depois construirá o lugar da purgação no além.
com um sistema de novos valores ligados ao trabalho, ao planeamento, A minha pesquisa de geografia e de sociologia culturais, que até agora
à paz, a uma certa igualdade, um hierarquia horizontal e não vertical procurou abarcar o conjunto das expressões do além em toda a cristan-
onde os mais poderosos ultrapassam os outros sem os dominar. dade, concentrar-se-á, sem desprezar qualquer testemunho importante,
Surgem novos sistemas descritivos e normativos da sociedade, oriun- nos lugares e nos meios onde se tomará a decisão, onde nascerá o Purga-
dos da velha ideologia tripartida indo-europeia reforçada pela evolução tório. Referenciarei e definirei os centros da elaboração teológica e dou-
histórica. O clero está empenhado nas estruturas feudais como parte in- trinária final, e as regiões onde a geografia imaginária do além se firmará
tegrante do domínio senhorial (os feudos eclesiásticos contam-se entre os nas realidades geográficas cá de baixo. Por fim, como o fenómeno me
mais poderosos) e passa a ser o garante ideológico do sistema social, mas parece exprimir uma grande mutação da sociedade, analisarei a maneira
escapa a ele pela dimensão religiosa. O seu sentimento de superioridade é como o Purgatório acontece, neste parto de uma sociedade nova. Será
exaltado pela reforma gregoriana segundo a qual os clérigos formam uma esta a tentativa quádrupla da parte central deste livro.
sociedade de celibatários que se furtam à mácula sexual, e estão em con-
tacto directo com uma sacralidade que administram de acordo com a
nova teoria dos sete sacramentos. A evocação da igualdade dos fiéis e
da superioridade dos valores éticos e religiosos em relação às formas so-
ciais e laicas também permite ao clero afirmar-se como a primeira ordem,
aquela que ora. Os nobres, cuja função específica é a guerreira num mo-
mento em que o armamento e a arte militar também mudam (armamento
pesado para o homem e para o cavalo, campanhas organizadas à volta da
rede dos castelos fortificados) formam a segunda ordem, aquela que
combate. Enfim, novidade significativa, aparece uma terceira ordem,
aquela que trabalha, quer se trate de uma elite rural cujo papel foi impor-"
tante no arroteamento e conquista do solo, quer da massa laboriosa, rural
e depois também urbana. Reconhece-se aqui o sistema da sociedade tri-
partida definida no começo do século XI e que se desenvolve no século
XII: oratores, bellatores, laboratores1•
Explosão social, pois, sancionada por um novo sistema de representa-
ções. Mas a explosão do século XII é um movimento de expansão geográ-
fica e ideológica: é o grande século das Cruzadas. E é também, dentro da
própria cristandade, espiritual e intelectual, com a renovação monástica
de que foram expressão os cartuxos, os agostinianos e sobretudo os eis-
tercienses, com as escolas urbanas onde nascem simultaneamente uma
nova concepção do saber e novos métodos intelectuais: a escolástica.

160 161
NOTAS IV - O FOGO PURGATÓRIO

1 Ver o grande livro de G. DUBY, Les Trois Ordres ou l'imaginaire du féodalisme, No início do século XII: aquisições e indecisões
Paris, 1979 [tradução portuguesa de Editorial Estampa, Lisboa, 1982]. A ideologia
tripartida indo-europeia foi revelada pela obra magistral de Georges Dumézil. _ . No início do século XII a atitude para com os mortos, tal como po-
Descrição do estado das questões e dos problemas por J. Le GOFF, «Les trois
fonctions indo-europêennes, I'historien et I'Europe fêodale», in Annales, E.S.C.
demos conhecê-Ia através dos documentos emanados do clero, da Igreja,
1970, pp. 1187-1215.
~ a seguinte: depois do Julgamento Final haverá dois grupos de homens
pura a eternidade: os eleitos e os condenados ao Inferno. A sua sorte será
essencialmente determinada pela sua conduta em vida: a fé e as boas
obras decidirão da salvação, a impiedade e os pecados criminais condu-
zirão ao Inferno. Entre a morte e a ressurreição a doutrina não se define
bem. Segundo alguns, depois da morte os defuntos esperam nos túmulos
ou numa região sombria e neutra parecida com o túmulo como o shéo/ do
Antigo Testamento, o Julgamento que decidirá da sua sorte definitiva.
Para outros, mais numerosos, as almas serão recebidas em diversos recep-
táculos. Entre estes receptáculos há um que se distingue: é o seio de
Abraão que recolhe as almas dos justos as quais, enquanto esperam pelo
Paraíso propriamente dito, vão para um lugar de refrigério e de paz. Para
" maioria - e esta opinião parece ter a preferência das autoridades ecle-
.iásticas - existe, imediatamente depois da morte, uma decisão definitiva
para duas categorias de defuntos; os que são inteiramente bons, os már-
tires, os santos, os justos integrais, que vão logo para o Paraíso e gozam
da presença de Deus, recompensa suprema, a visão beatífica; os que são
Inteiramente maus vão logo para o Inferno. Entre os dois, pode haver
uma ou duas categorias intermédias. Segundo Santo Agostinho, aqueles
que não são inteiramente bons serão sujeitos a uma prova antes de irem
para o Paraíso, e os que não são inteiramente maus irão para o Inferno
mas aí beneficiarão talvez de uma condenação mais tolerável. Segundo a
maioria daqueles que acreditam na existência de uma categoria intermê-
dia, esses mortos que aguardam o Paraíso serão submetidos a uma pur-
Illção. Aqui as opiniões divergem. Para uns essa purgação terá lugar no
momento do Julgamento Final. Mas entre os que perfilham esta opinião,

/62 163
as posições são diferentes. Uns acham que todos os mortos - incluindo os prática das orações e, mais ainda, dos sufrágios pelos mortos. O conjunto
justos, os santos, os mártires, os apóstolos e até mesmo Jesus - serão dos fiéis encontra nela com que satisfazer ao mesmo tempo a sua solida-
sujeitos a essa prova. Para os justos será uma formalidade sem conse- riedade para com os parentes e os próximos além da morte e a esperança
quências; para os ímpios será a condenação; para os q~ase perfe~tos, de, por sua vez, beneficiar depois da morte dessa mesma assistência.
uma purgação. Outros pensam que apenas aqueles que nao forem Ime- Agostinho, fino psicólogo e pastor atento, bem o disse em De Cura pro
diatamente para o Paraíso ou para o Inferno sofrerão este exame. mortuis gerenda. Esta fé e estas práticas que exigem a intervenção da
Em que consistirá essa purgação? A imensa maioria calcula que será Igreja no sacrificio eucarístico designadamente - e com a qual ela bene-
uma espécie de fogo - baseando-se sobretudo na primeira epístola de ficia, entre outras coisas, através das esmolas - asseguram-lhe um melhor
Paulo aos Coríntios (lJI, 10-15). Mas alguns pensam que os instrumentos domínio sobre os vivos pelo desvio do seu suposto poder a favor dos
dessa purgação são diversificados e falam de «penas purgatórias» (poenae mortos.
purgatoriae). Quem merecerá submeter-se a este exame que, por muito Como em muitos outros campos, o século XII vai acelerar as coisas; o
penoso que seja, é uma garantia de salvação? A partir de Agostinho e Purgatório como lugar só nascerá no fim. Enquanto se espera, é o fogo
de Gregório, o Grande, sabe-se que só os mortos que apenas têm a ex- purgatório o atiçado.
piar pecados leves ou que antes de morrer se arrependeram sem terem Aqui pode ser necessária uma observação prévia.
tido tempo de fazer penitência na terra e que, de qualquer modo, tiveram A utilização de um conjunto de textos do século XII é coisa delicada.
uma vida bastante digna e suficientemente marcada por boas obras, me- A explosão geral desta época patenteia-se na produção escrita. Os textos
recerão essa «repescagem». Quando terá lugar essa purgação? Segundo multiplicam-se. Desde o século XVI e sobretudo nos séculos XIX e XX, os
Agostinho pensava-se, de um modo geral, que ela terá lugar entre a mor- eruditos esforçaram-se por editar o maior número deles possível. Muitos
te e a ressurreição. Mas o tempo de purgação podia ultrapassar esse tem- continuam inéditos. A esta proliferação vieram acrescentar-se traços ca-
po intermédio a montante ou a jusante. Para o próprio Agostinho, as racterísticos do período. Para assegurar o êxito de uma obra, muitos
provações suportadas cá em baixo, as penas terrenas, podiam ser o co- clérigos dessa época não hesitam em lhe atribuir um autor ilustre ou co-
meço da purgação. Para outros esta purgação continuava a fixar-se no nhecido. A literatura do século XII está inundada de apócrifos. Em mui-
momento do Julgamento Final e, neste caso, calculava-se em geral que o tos casos, os problemas de atribuição e de autenticidade não foram
«dia» do julgamento duraria um certo tempo para permitir que a purga- solucionados. A escolástica incipiente multiplicou, ainda por cima, tex-
ção fosse algo mais do que uma formalidade. 1011 bem difíceis de atribuir a um autor, seé que esta palavra tem aqui
Onde aconteceria essa purgação? Quanto a isto estava-se no vácuo, Illgum sentido: quaestiones, determinationes, reportationes, muitas vezes
mais ainda do que na diversidade de opiniões. A maioria nada precisava oriundas de notas tomadas por um aluno num curso de um mestre.
a este respeito. Alguns supunham que havia um receptáculo das almas Com frequência, o escriba misturou palavras autênticas do mestre com
para esse efeito; Gregório, o Grande, nas suas historietas sugerira que. •• suas próprias formulações ou as de outros autores contemporâneos.
a purgação se fazia nos locais do pecado. Os autores de viagens imaginá- Bnfim, é raro possuirmos o original. Os manuscritos de que dispomos
rias pelo além não sabiam bem onde situar o local onde se sofria esse fogo foram escritos numa época posterior, entre os séculos XIII e XV. Num
purgatório. A sua localização era empurrada, se assim se pode dizer, certo número de casos, os escribas substituíram, inconscientemente ou
entre a concepção de uma parte superior do Inferno, mas no entanto pensando agir bem (pois na Idade Média o que inspira os homens é a
subterrânea, materializada por um vale, e a ideia - lançada por Bede - husca da verdade eterna e não da verdade histórica), determinada pala-
de uma montanha. vrn do texto original por uma outra ou por uma expressão do seu tempo".
Em suma, a maior indecisão reina sobre o caso desta categoria inter- N40 foi possível neste estudo eliminar algumas incertezas que têm a ver
média, e se a noção do fogo - bem distinto do fogo eterno da geena - 6 110m o facto de a ciência da Idade Média estar ainda hoje inacabada, mas
largamente aceite, a localização desse fogo tem sido silenciada ou evocada sobretudo e em definitivo, com a literatura religiosa do século XII, cuja
de maneira muito vaga. Dos Pais da Igreja aos últimos representantes da múltipla expansão continua a ser difícil de apreender nas malhas da ciên-
Igreja carolíngia o problema do além é essencialmente o da escolha entre ol. actual (justamente) obcecada com a identificação de autores e de da-
a salvação que conduzirá ao Paraíso e a condenação que levará ao Infer- 'Ições concisas. A convergência das minhas pesquisas e das minhas
no. Em definitivo, a crença que mais se enraizou entre os séculos IV e XI • In.lises parece-me conclusiva: antes de 1170, no mínimo, não existe Pur-
que criou o terreno mais favorável ao aparecimento do Purgatório, foi a plorio.

164 165
Mas os textos multiplicam-se, o interesse pelo que se passa entre a cara a cara. Então é para lá, perguntam-lhe, que são conduzidas as almas
morte e o Julgamento Final manifesta-se cada vez mais, a desordem dos justos? E para lá que são conduzidas, ao abandonarem os corpos, as
das exposições é também testemunho de pesquisa, a preocupação com almas dos perfeitos, responde ele. E esses perfeitos, o que são? pergunta-
a localização é cada vez mais visível. -se. Aqueles que não se contentaram com fazer durante a vida o que está
prescrito, mas fizeram ainda mais: os mártires, os monges, as virgens, por
exemplo. Os justos estão noutras moradas. E os justos, quem são? Aque-
Um testemunho das hesitações: Honorius Augustodunensis les que simplesmente cumpriram de bom grado o que está prescrito. A
seguir à morte a sua alma é levada pelos anjos para o paraíso terrestre,
Um bom testemunho é o do misterioso Honorius Augustodunensis, ou antes para um júbilo espiritual, pois os espíritos não habitam lugares
provavelmente um irlandês que passou a maior parte da sua vida religio- corporais. Existe ainda outra categoria de justos que se chamam imper-
sa em Ratisbonne. Decerto Honorius, de quem M. Cappuyns disse que feitos, mas que estão inscritos no livro de Deus, como por exemplo os
foi sem dúvida o único discípulo medieval de João Scoto Erigeno, tem esposos que, por causa dos seus méritos, são acolhidos em habitáculos
ideias originais sobre o além. Para ele, os lugares do além não existem muito agradáveis. Muitos deles, graças às preces dos santos e às esmolas
materialmente. São «lugares espirituais». O termo «espiritual» é ambí- dos vivos antes do Dia do Julgamento, são admitidos numa glória maior;
guo, pode ocultar uma certa corporalidade ou designar uma realidade após o Julgamento, todos irão reunir-se aos anjos. Existem também entre
puramente simbólica, metafórica. Honorius hesitou entre duas tendên- (lS eleitos defuntos que estão longe da perfeição e que não chegaram a
cias. Na Scala coeli major, onde parece inclinar-se para o sentido comple- fazer penitência pelos seus pecados; estes, tal como o filho culpado que
tamente imaterial, tempera no entanto esta opinião com uma teoria de é entregue ao escravo para ser chicoteado, são entregues aos demónios,
sete infernos (dos quais o mundo terreno é o segundo), mais ou menos com permissão dos anjos, para serem expurgados. Mas os demónios não
materiais ou imateriais", O que me interessa em Honorius são dois ele- podem atormentá-los mais do que eles merecem ou do que os anjos per-
mentos da sua obra. O primeiro é precisamente a sua viva critica à visão mitem.
espacial da vida espiritual. Em Scala coeli major, interpreta como pura- O problema que se segue diz respeito aos meios de libertação desses
mente metafórica a localização dos infernos debaixo da terra - inter-re- imperfeitos. O mestre, quer dizer Honorius, responde que eles consistem
lacionando a inferioridade, o peso e a tristeza. E conclui: «todos os nas missas, nas esmolas e nas orações e outras obras piedosas sobretudo
lugares têm um comprimento, uma largura e uma altura, mas a alma, Me,em vida, eles as praticaram em intenção de outros. São libertos dessas
como é desprovida de todos estes atributos, não pode ser encerrada em penas uns no sétimo dia, outros no nono, outros passado um ano e outros
lugar algum!». Ideia esta que reaparece no seu Liber de cognitione verae Ilinda mais tarde. Honorius explica então - segundo uma misteriosa arit-
vitae: «Mas parece-me o cúmulo do absurdo fechar em lugares corpóreos mética simbólica - a razão da duração destes periodos.
as almas e os espíritos, uma vez que eles são incorpóreos, sobretudo pelo Fazem-lhe por fim a pergunta que de mais perto toca o nosso estudo:
facto de todo o lugar poder ser medido em altura, comprimento e largura,
enquanto o espírito, é bem sabido, é desprovido de todos estes
atributos?». Pode supor-se que, se um pensamento como o de Honorius o DISCÍPULO: O que é o fogo purgatório?
tivesse triunfado, o Purgatório, essencialmente ligado à sua localização, O MESTRE: Alguns sofrem a purgação nesta vida: ou por dores fisicas
não teria nascido, ou teria permanecido uma crença secundária e atrofia- que os males lhes provocam, ou provações fisicas que impõem a si mesmos por
meio de jejuns, de vigílias ou outras; ou é a perda de pessoas queridas ou de
da. bens a que estão apegados, ou dores e doenças, ou privações de alimento ou de
Mas paradoxalmente, numa outra obra, um tratado das principais
vestuário, ou, enfim, a crueldade da sua morte. Mas depois desta, a purgação
verdades cristãs sumariamente expostas, uma espécie de catecismo, o Elu- torna a forma quer do calor excessivo do fogo quer do grande rigor do frio,
cidarium, Honorius fala do fogo purgatório e essa passagem ocupa um quer de toda a espécie de provações, sendo a mais leve superior à maior que se
lugar importante no processo da gestação do Purgatório. No terceiro possa imaginar nesta vida. Enquanto estão nisto, aparecem-Ihes de vez em
livro do Elucidarium, que é um diálogo, Honorius responde a perguntas quando os anjos ou os santos que eles honraram por alguma acção em vi-
sobre a vida futura. Num interrogatório sobre o Paraíso, ele precisa que da, e estes trazem-lhes ar ou um perfume suave ou outra forma de alívio,
não se trata de um lugar corporal mas da morada espiritual dos bem- até que, libertos, eles entrem nessa corte que não acolhe qualquer mácula.
-aventurados situada no céu intelectual onde podem contemplar Deus O DISCÍPULO: Sob que forma vivem eles lá?

166 167
o MESTRE: Sob a forma dos corpos que tiveram aqui em baixo. E diz-se teológica do início do século XII. No comentário à primeira epístola de
que os demónios lhes dão corpos feitos de ar para que neles sintam os seus Paulo aos Coríntios diz-se, na linha do pensamento agostiniano, que
tormentos. uqueles que amaram o mundo mas sem o preferir a Deus serão salvos,
mas depois de terem sido punidos pelo fogo. Aqueles cuja obra foi de
Após algumas explicações pouco esclarecedoras sobre a relação entre madeira serão punidos durante muito tempo pois a madeira arde lenta-
o corpo e a alma, Honorius fala do Inferno, ou antes, dos infernos, pois mente; aqueles cuja obra foi de feno, que o fogo consome depressa, esca-
segundo ele existem dois. O inferno superior é a parte inferior do mundo parão mais depressa à provação ígnea; por fim, aqueles cuja obra foi de
terrestre que está cheia de penas: um calor insuportável, muito frio, a palha que o fogo consome ainda mais depressa, passarão mais rapida-
fome, a sede, dores diversas, quer corporais, como as que provêm de mente através do fogo".
contusões, quer espirituais, como as que decorrem do medo ou da vergo- Nascido em Tournai cerca de 1187, Guerric, atraído por S. Bernardo,
nha. O inferno inferior é um lugar espiritual onde há um fogo inextinguí- entrou em Clairvaux por volta de 1125 e em 1138 tornou-se o segundo
vel e onde se sofrem nove espécies de penas especiais: um fogo que abade da abadia cisterciense de Igny, fundada em 1128 por S. Bernardo
queima e não alumia e um frio insuportável, vermes imortais, especial- entre Reims e Soissons, e lá morreu «cheio de dias», quer dizer muito
mente serpentes e dragões, um cheiro horrível, ruídos inquietantes como idoso, em 1158. Dele se conservaram 54 sermões" destinados aos mon-
martelos batendo em ferro, trevas espessas, uma mistura confusa de todos Iles. No quarto e quinto sermões, onde trata da purificação da Virgem
os pecadores, a visão horrível dos demónios e dos dragões visíveis por Maria, fala também do fogo purgatório. Guerric, que parece ter sofrido
entre as cintilações do fogo, o clamor lastimoso dos choros e dos insultos 11 influência de Orígenes, pensa que a purificação deve começar cá em
e por fim anéis de fogo apertando os corpos dos condenados '. baixo, e tem tendência para identificar o fogo purgatório do além com
Este texto limita-se a retomar as ideias agostinianas, incluindo o co- li fogo do julgamento. Declara, por exemplo, no quarto sermão para a
meço da purgação ainda na terra, somente com um pouco mais de insis- purificação:
tência no carácter metafórico de um além sobre o qual também «Pois é mais seguro, meus irmãos, e é mais suave ser-se purgado pela
Agostinho se interrogara por vezes se ele não seria mais simbólico do fonte do que pelo fogo! Decerto, aqueles que não foram purgados pela
que material. E no entanto Honorius, alimentado sem dúvida por leitu- fonte deverão sê-lo pelo fogo, se merecerem ser purgados, no dia em que
ras e descrições visionárias, deixa passar uma imaginação que contradiz 11 juiz em pessoa, tal como um fogo pronto a fundir, estará ocupado a
as suas ideias. Mais ainda do que o realismo destas evocações, parece-me fundir e a depurar a prata e purgará os filhos de Levi (Malaquias, III,
que é o papel atribuído aos anjos e aos demónios, mais «medieval» do que 2·3)... O que afirmo sem hesitação é que se o fogo que o Senhor Jesus
agostiniano na linha de Gregório, o Grande, que constitui a eficácia deste enviou à terra vier a arder em nós com o ardor desejado por aquele que o
texto na pré-história do Purgatório. enviou, o fogo purgatório que purgará, quando do julgamento, os filhos
de: Levi não encontrará em nós nem madeira, nem feno, nem palha para
consumir. É certo que cada um deles é fogo purgatório, mas de maneira
o fogo: no meio monástico bem diferente. Um purifica pela sua unção, o outro pela sua queimadura.
Aqui um orvalho refrescante; ali um sopro vingador (spiritus judicii), um
Até ao meio do século XII, e quase sempre a propósito do comentário sopro que queima ... » E ainda: «E se essa caridade não é suficientemente
à primeira epístola de Paulo aos Coríntios, a reflexão sobre a purgação perfeita para cobrir tantos e tais pecados, esse fundidor que purga os
dos pecados limita-se a uma evocação tradicional do fogo purgatório. IlIhos de Levi emprega então o seu fogo: todo o que resta de fuligem é
Temos primeiro Bruno de Chartreux (que morreu em 1101) que alguns consumido pelo fogo da atribulaçâo presente ou futura, para que possam
consideram um dos pais da escolástica, ao lado do grande Anselmo de tlnalmente cantar: "Passámos pela água e pelo fogo e tu conduziste-nos
Canterbury (que morreu em 1109). É o primeiro a ter uma escola propria-
mente dita e a propor um comentário escolar que conhecerá numerosas
.0 refrigério" (Salmo LXV, 12). Assim se passa neste mundo: primeiro
baptizado pela água do dilúvio, purgado a seguir no fogo do julgamento,
alterações, precisamente um Comentário sobre As Epístolas de S. Paulo. ele passará a um novo estado, incorruptivel.»
Alguns atribuem esta obra a um autor próximo de Bruno, geralmente a O tema, com toques agostinianos, reaparece no quinto sermão para a
Roul de Laona (que morreu em 1136), irmão de Anselmo e o mais co- purificação: «Desgraçados de nós se esses dias (cá em baixo) terminarem
nhecido dos representantes da escola de Laona, a mais brilhante escola sem a purgação estar terminada, e se a seguir tivermos de ser purgados

168 169
por esse fogo mais cruel (poenalius), mais vivo e mais violento do que tar o primeiro como o «terror do fogo eterno» e o segundo como «terror
podemos imaginar nesta vida! E quem, ao sair desta vida, é suficiente- I "
{O ,. 11 .
lOgO purgatono»
mente perfeito e suficientemente santo para nada dever a esse fogo? .. É
verdade que existem poucos eleitos, mas entre esses poucos existem mes-
mo poucos, penso eu, suficientemente perfeitos para terem realizado a Na literatura vernácula
purgação de que fala o sábio: "Purga-te da tua negligência para com o
pequeno número"» (Eclesiastes, VII, 34). Percebe-se que as interrogações sobre a sorte dos defuntos depois da
Na linha de Agostinho, Guerric não atribui muitas pessoas ao futuro morte e os problemas do fogo purgatório ultrapassam os limites do meio
purgatório. eclesiástico. Não só são discutidos nas escolas abertas nas periferias ur-
As Deflorationes sanetorum Patrum, a Anthologie des Péres, de Wemer banas, não só se fala deles nas prédicas monásticas, mas também se di-
lI, abade de Saint-Blaise falecido em 1174, muito influenciadas por Hugo funde o seu conhecimento nos sermões dos quais apenas temos, salvo
de Saint-Victor", fazem alusão ao fogo purgatório num sermão sobre a raras excepções, a versão escrita em latim e que eram pronunciados em
queda de Adão: «Também depois da morte, diz-se, há um fogo purgató- linguagem vulgar quando os padres se dirigiam aos laicos'f. E precisa-
rio (ignis quidam purgatorius) onde são purgados e lavados aqueles que mente a dois desses textos em francês antigo que irei buscar dois testemu-
começaram a sê-Ia cá em baixo e não terminaram ... É duro sofrer essas nhos da «popularidade» do fogo purgatório no século XII.
torturas, mesmo se forem num pequeno grau. Assim, mais vale começar e- O primeiro não é senão a tradução dos Diálogos de Gregório, o Gran-
acabar cá em baixo o que devemos fazer. Mas se não se consegue acabá- de. em francês: Li Dialoge Gregoire 10 Pape, escrito no dialecto da região
-Ia, desde que se tenha começado não se deve desesperar pois «tu serás ' de Liêge. Nos capítulos XL e XLI principalmente do livro IV de que falei
salvo mas como através do fogo» (primeira epístola de Paulo aos Corín- 1II rás encontram-se as expressões li fous purgatoires ou /0 fou purgatoire (o
tios, lU, 10-15). O que tens em ti de criminoso arderá até ser consumido. fogo purgatório), (10) fou de Ia tribulation (o fogo da atribulação), (10)
Mas tu serás salvo, pois o amor de Deus ficou em ti como alicerce".» I/lU de Ia purgation (o fogo da purgação). A questão posta por Pedro no
lim do capítulo XL é: Ge voldroie ke l'om moi enseniast, se li fous purga-
toires aprês Ia mort doit estre crue estre (queria que me ensinassem se o
Entre os teólogos urbanos fogo purgatório depois da morte deve ser acreditado, quer dizer se se deve
acreditar que o fogo purgatório depois da morte existe).
Vou falar de novo da escola desse teólogo original que foi Gilberto O título do capítulo XLI em que Gregório responde, é: se li fous pur-
Porreta, dito Gilbert de Ia Porrée, bispo de Poitiers, falecido em 1154 que, Ilfl/oires est aprês Ia mort (se o fogo purgatório existe depois da morte)\3.
como o seu contemporâneo Abelardo, teve contas a ajustar com a Igreja. Numa versão em verso onde aparece a palavra purgatório (purgação,
O seu comentário sobre S. Paulo é inédito, mas um fragmento do comen- purgatório) recorda-se a opinião de Gregório segundo a qual não havia
tário sobre a primeira epístola aos Corintios que interpreta, sem lhe ser «lugar determinado» para a purgação mas todas as almas eram purgadas
sempre fiel, o texto de Gilbert, e que data mais ou menos de 1150, retoma depois da morte nos locais onde havia pecado em vida:
também a ideia de uma purgação aqui em baixo a ser terminada depois
da morte, «pelo fogo». Precisa que esse fogo purgatório deve preceder o Par ces countes de seint Gregorie
Julgamento FinallO• DeU houme entendre qi purgatorie
Também se fala no fogo purgatório na célebre abadia dos cónegos N'est pas en une lieu determinez
regulares de Saint- Victor, às portas de Paris, na base do monte Sainte- Ou les almes seint touz peinez.
-Geneviêve. Além do grande Hugo de Saint- Victor, cuja obra é uma das
mais importantes para a prefiguração do Purgatório em vésperas do seu (Por estas palavras de S. Gregório deve entender-se que a purgação não é
aparecimento, temos também, por exemplo, o testemunho de Achard, um lugar determinado onde todas as almas sofrem as suas penas em
abade de Saint-Victor entre 1115 e 1161, bispo de Avranches desde conjunto 14.)
1161 até à morte em 1170 ou 1I71, no seu segundo sermão para a festa O outro texto é a tradução para francês do começo do século XIII -
da consagração da Igreja. Ao tratar o simbolismo do martelo e do esco- mas reproduzindo o original do século XII - da História dos cruzados na
pro de que se servem para construir a igreja, diz ele que se pode interpre- Terra Santa (Histoire des croisés en Terre sainte - Historia rerum in par-

170 171
tibus transmarinis gestarum)escrita por Guilherme de Tiro, falecido entre observações ou exposições sobre o fim do mundo, a ressurreição dos
1180 e 1184. No capítulo XVI do livro descreve-se como o povo humilde corpos, o Julgamento Final, o destino eterno dos homens. Tem-se natu-
que partiu para a cruzada (Comment li menuz peuples se croisa pour aler ralmente a tendência para ligar a estes o que se passa no além entre a
outremer): «Tant avoit de pecheours el monde qui avoient eslongnie Ia grace morte individual e os derradeiros dias.
de Nostre Seigneur, que bien covenoit que Dex leur mostrat un adrepoer par Hugo de Saint-Victor foi talvez o primeiro a ministrar um curso de
ou il alassent en paradis, et leur donast un travail qui fust aussiut comme teologia sistemática não directamente relacionado com uma lectio da Es-
feus purgatoires devant Ia mort.» Quer dizer: «Havia tantos pecadores no critura, quer dizer, com o comentário sobre as Escrituras'".
mundo que tinham afastado (de si) a graça de Nosso Senhor, que era Duas passagens da sua obra são mais especialmente consagradas ao
conveniente que Deus lhes mostrasse um caminho recto para irem para fogo purgatório. A primeira é uma pergunta «sobre o fogo purgatório
o Paraíso e lhes desse uma provação que fosse como fogo purgatório dos justos» que tem corno ponto de partida a primeira epístola de Paulo
antes da morte.» Este texto faz lembrar a ideia de cruzada como penitên- aos Coríntios. O fogo purgatório, diz Hugo, destina-se àqueles que serão
cia, diferente do espírito inicial da cruzada como expedição escatológica. salvos, aos eleitos. Mesmo os santos, aqueles que constroem com ouro,
Faz também alusão ao conceito de purgação dos pecados sobre a terra, prata e pedras preciosas, terão de passar através do fogo mas sem prejuí-
antes da morte e não depois. Trata-se de «curto-circuitar» um eventual zos, antes pelo contrário. Sairão dele confortados, como a argila que ao
«purgatórios depois da morte quando se merece ir directamente para o passar pelo fogo dele recebe uma grande solidez. Pode dizer-se que para
Paraíso. Além do mais, está-se no caminho da evolução que levará a um eles«a passagem pelo fogo é uma parte de ressurreição». Alguns, segundo
sentido puramente metafórico do «purgatório na terra», como se verá no Hugo, pretendem que esse fogo é um lugar de punição (quemdam poena-
século xm". lem /ocum) onde as almas daqueles que construíram com madeira, feno
ou palha são entregues à morte para acabarem a penitência que começa-
ram cá em baixo. Cumprida a penitência, vão para um lugar de repouso
Quatro grandes teólogos e o fogo: esboço de um tratado dos tempos onde aguardam o dia do Julgamento em que passarão sem dano através
derradeiros do fogo, tanto mais que esse fogo não se chama purgatório em relação
I&OS homens, mas no que toca ao céu e à terra que serão purgados e re-

Desejaria deter-me em quatro grandes clérigos de meados do século novados por um dilúvio de fogo como foram pela água do primeiro di-
XII, cuja obra representa ao mesmo tempo o resultado de uma longa lúvio. Mas Hugo é contrário a esta opinião e pensa que o fogo do
tradição e o ponto de partida para novos desenvolvimentos - e isto tam- Julgamento Final durará o tempo necessário à purgação dos eleitos. Ou-
bém é verdadeiro para o Purgatório. Iros pensam que o fogo purgatório é a atribulação terrena. Quanto ao
fogo do Julgamento, os ímpios não o atravessarão, antes serão arrasta-
dos com ele para o abismo (infernal)!".
Um cónego parisiense: Hugo de Saint-Victor Na sua grande obra, a Súmula sobre Os Sacramentos da Fé Cristã
(Summa de sacramentis christianae fidei), O primeiro grande tratado des-
o primeiro é um cónego parisiense, Hugo de Saint-Victor, falecido em til teologia dos sacramentos elaborada no século XII (trata-se de um con-

1141; o segundo é um monge italiano, sábio canonista em Bolonha onde texto que não deve ser esquecido para o nascimento do Purgatório, como
cOI?pila, cerca de 1140, uma recolha de textos de direito eclesiástico e que IC verá a propósito da penitência), Hugo aborda os problemas do além. A
tera o seu nome, o Decreto de Graciano, que inaugurará o Corpus de ••trutura do De Sacramentis é histórica, no sentido de uma história da
direito canónico medieval. O terceiro é um cisterciense já célebre no seu salvação. A primeira parte vai «do começo do mundo até à Encarnaçâo
tempo, Bernardo de Clairvaux, S. Bernardo, falecido em 1153. O quarto é do Verbo». A segunda estende-se da Encarnação do Verbo até ao fim e
um italiano que veio a ser bispo de Paris, Pedro Lombardo falecido em consumação de tudo. É no capítulo XVI desta segunda parte que Hugo
1159-1160, cujas Máximas serão no século XIII o grande manual univer- fllla das penas purgatórias ao tratar «os moribundos ou o fim do ho-
sitário. mem». Este capítulo situa-se entre um capítulo sobre «a confissão, a pe-
É a época em que, segundo Jean Longêre, «se organiza um primeiro nitência e a remissão dos pecados» e um capítulo muito curto sobre a
esboço do De novissimis» (quer dizer, de um sistema dos tempos derra- .xtrema-unção por um lado, e por outro lado os dois últimos capítulos
deiros) com Hugo de Saint-Victor e Pedro Lombardo. Reagrupam-se as do tratado, o que se refere ao fim do mundo e o que trata «o século que

172 173
há-de vir». É pois no interior de uma história individual e colectiva da ser ajudado depois da morte, o sacrificio eucarístico pode ser de grande
salvação, em estreita ligação com a confissão e a penitência, que surge o ujuda 18.
desenvolvimento sobre as penas purgatórias. No capítulo IV da parte No fundo, Hugo de Saint-Victor não faz avançar o problema em
XVI do segundo livro, Hugo examina os «lugares das penas» (loca poe- relação a Agostinho e a Gregório, o Grande, e insiste como eles na
narum), depois de ter precisado que as almas, após abandonarem os cor- realidade dos espectros. Mas testemunha a forte tendência da sua época
pos, podem muito bem sofrer penas corporais. «Assim como, diz ele, para encontrar um lugar ou lugares (locus ou local) para a pena purga-
Deus preparou penas corporais para os pecadores que devem ser ator- tória. Apesar de expressar a sua ignorância ou o seu cepticismo sobre a
mentados, também separou lugares corporais para essas penas corpo- existência de tais lugares, e de escolher, como Gregório, o Grande, a
rais. O Inferno é o lugar dos tormentos, o Céu é o lugar das alegrias. É solução que não vingará, a de uma purgação nos lugares terrenos onde
justo que o lugar dos tormentos seja em baixo e o lugar das alegrias no Me pecou, Hugo interroga-se e reconhece que outros optaram pela exis-
alto, pois a culpa pesa e leva para baixo enquanto a justiça eleva para o tência de determinados lugares purgatórios no além, entre a morte e o
alto.» Hugo acrescenta que este lugar inferior, o Inferno, se situa por Julgamento.
baixo da terra, mas que não há certezas a esse respeito. No Inferno,
diz-se, reina um fogo inextinguível. Em compensação, aqueles que saem
desta vida purgados vão imediatamente para o Céu. lJm cisterciense: São Bernardo
Hugo aborda então a pena purgatória. «Enfim, há um outro castigo
depois da morte que se chama pena purgatória. Aqueles que deixam esta O problema da purgação dos pecados no além segundo S. Bernardo
vida com alguns pecados, embora sejam justos e destinados à vida eterna, "urge-me de maneira diferente do que se supunha, pois estou convencido
são ali torturados durante algum tempo, a fim de ficarem purgados. O e julgo que este estudo provará o bem-fundado da minha convicção -
lugar onde se sofre esta pena não é determinado, se bem que numerosas que o texto principal que lhe era atribuído sobre este assunto não é dele, e
aparições de almas sujeitas a esta pena façam pensar que ela é sofrida cá c sensivelmente posterior (pelo menos em vinte anos) à sua morte ocorri-
em baixo, provavelmente nos locais onde se pecou, como provaram mui- da em 115319•
tos testemunhos. Se estas penas são aplicadas noutros locais, é dificil de São Bernardo expõe com muita clareza a sua posição, em dois ser-
saber.» mões: existem lugares de purgação dos homens (loca purgatoria) no
Hugo de Saint-Victor interroga-se ainda se, por um lado, os maus nlém.
inferiores em maldade, aos ímpios e aos grandes criminosos, não espera- Num sermão para o dia de Santo André sobre a tripla espécie de bens,
rão em lugares de punição antes de serem enviados para os grandes tor- de declara: «E a justo título que se diz que aquelas almas que sofrem nos
mentos da geena e se, por outro lado, os bons que no entanto estão lugares purgatórios (in locis purgatoriis) vão de cá para lá, atravessando
sobrecarregados com algumas culpas não esperarão em determinadas lugares tenebrosos e lamacentos, visto que nesta vida não receavam ha-
moradas antes de serem promovidos às alegrias do Céu. Hugo calcula IlIliu esses lugares em pensamento.» E ainda: «Confirmamos não só com-
que os bons perfeitos (boni perfecti) vão sem dúvida imediatamente para pudecer-nos dos mortos e rezar por eles mas também felicitá-los em
o Céu e que os muito maus (va/de mali) descem imeditamente aos infer- esperança; pois se devemos afligir-nos com as suas dores nos lugares pur-
nos. Para os bons imperfeitos (boni imperfecti) é certo que no intervalo IIlIlórios (in locis purgatoriis) devemos ainda mais alegrar-nos pela apro-
(entre a morte e o Julgamento) sofrem certas penas antes de conhecerem ximação do momento em que Deus enxugará todas as lágrimas dos olhos
as alegrias que hão-de vir. Quanto aos maus imperfeitos ou menos maus deles; morte, não haverá mais; prantos, gritos c penas, não haverá mais,
(imperfecti sive minus mali) não há certezas quanto ao lugar onde pode- porque o antigo mundo desapareceu» (Apocalipse, XXI, 4)20.
rão estar enquanto esperam pela descida aos tormentos eternos no dia da Noutro sermão pronunciado nas cerimónias fúnebres de Humberto,
ressurreição. monge de Clairvaux, em 1148, menos de cinco anos antes da sua morte e
Existem por fim penas purgatórias neste mundo para os aflitos que onde ele não emprega a palavra purgatório que ainda não existia e que ele
não se tomam piores com as provações mas sim melhores, e que delas Iltllorou, São Bernardo previne: «Sabei, com efeito, que depois desta vida,
tiram proveito para se corrigirem. Quanto aos sufrágios pelos mortos, 11 que se deixou de pagar aqui em baixo terá de ser pago por cem vezes
Hugo supõe, citando Gregório, o Grande, que se as faltas cometidas II1l1is,até ao último tostão (Mateus, V, 26), nos lugares de purgação (in
por um defunto não são indissolúveis e se ele mereceu pela sua vida justa pU1?abilibuslocis /1.»

174 175
Num terceiro sermão, para o Advento, São Bernardo fornece preci- XII: Bolonha, transformada em capital dos estudos jurídicos e onde se
sões algo complicadas sobre «o triplo inferno». Compreendo esse texto desenvolve a primeira corpo ração universitária da Idade Média.
assim: «o primeiro inferno é obrigatório (obligatorius ) porque nele nos é Na perspectiva que nos interessa, são importantes dois capítulos do
exigido até ao último tostão, e assim a pena não tem fim. O segundo é Decreto de Graciano. São os capítulos XXII e XXIII da questão 11 da
purgatório. O terceiro é remissivo, pois, sendo voluntário (volontarius), causa XIII da segunda parte ". O primeiro é constituído pela leitura da
muitas vezes a pena e a culpa (et poena et culpa) lá são ambas remidas. (ou) de uma carta do Papa Gregório 11 a Bonifácio, o apóstolo germânico
No segundo (o purgatório), ainda que a pena nele seja por vezes remida, a (cerca de 732) que já apontei. Retoma ela a lista dos sufrágios estabelecida
culpa nunca o é, mas é purgada. Bem-aventurado inferno, o da pobreza, entre Agostinho e Gregório, o Grande: «As almas dos defuntos são libertas
onde o Cristo nasceu, onde foi criado e onde viveu, enquanto esteve en- de quatro maneiras: pelos sacrifícios dos padres (as missas), pelas preces
carnado! A esse inferno ele não desceu só uma vez para de lá arrancar os dos santos, pelas esmolas dos entes queridos e pelo jejum dos parentes.»
seus, mas também «se entregou a fim de nos arrancar a este mundo pre- Incluído no Decreto, este texto tem muito peso, legitima a acção dos
sente e mau (Epístola aos Gálatas I, 4), para nos afastar da massa dOI. vivos a favor dos mortos, evoca o primado do sacrificio eucarístico, sub-
condenados e nos reunir à espera de nos tirar de lá. Neste inferno há linha a necessidade de passar pelo intermediário da Igreja (os padres),
meninas novas, quer dizer, esboços de almas, adolescentes com timbales ulimenta o culto dos santos, fomenta a circulação dos bens (ou a sua
precedidas de anjos que tocam címbalos e seguidas de outros que tocam drenagem a favor da Igreja) através da esmola, valoriza o papel dos pró-
os címbalos do júbilo. Em dois infernos são os homens que são atormen- ximos - famílias e amigos, carnais ou espirituais.
tados, mas neste são os demónios. Vão para lugares sem água e áridos, O capítulo XXIII reproduz, sob o título «Antes do dia do Julgamento
procurando repouso, mas não o encontram. Giram à volta dos espíritos 08 mortos são ajudados pelos sacrificios (= as missas) e pelas esmolas»,
dos fiéis mas são escorraçados por pensamentos santos e por orações. Po os capítulos CIX e CX (à excepção de uma única passagem sem signifi-
isso gritam com razão: «Jesus, porque vieste atormentar-nos antes do eado para o nosso caso) do Enchiridion de Santo Agostinho. Recordo
tempo?» (Mateus, VIII, 29)22. aqui esse texto essencial:
Parece-me que São Bernardo distingue um inferno (inferior), a gee
propriamente dita, um inferno (intermédio) onde tem lugar a purgação
um (inferno) superior sobre a terra, equivalente aos futuros limbos e a No intervalo que decorre entre a morte do homem e a ressurreição supre-
tradicional seio de Abraão onde as almas inocentes já estão em paz, en- ma, as almas são mantidas em depósitos secretos, onde conhecem quer o
quanto os demónios que esperam uma trégua até ao Julgamento Final já repouso quer a pena de que são dignas, conforme o destino que talharam
são atormentados. para si mesmas enquanto viviam na carne.
Há pois em São Bernardo a busca de uma espacializacão do além e • Não se pode portanto negar que as almas dos defuntos sejam socorridas
afirmação da existência quer de um inferno purgatório quer de lugare pelas preces dos seus próximos ainda vivos, quando em intenção delas é ofe-
recido o sacrificio do Mediador ou são distribuídas esmolas na Igreja. Mas
purgatórios (loca purgatoria ou purgabilia), mas esse espaço não é nomea
estas obras servem unicamente àqueles que, enquanto vivos, mereceram que
do e a geografia do além continua muito vaga. elas pudessem ajudá-Ios mais tarde.
Com efeito, existem homens cuja vida não é suficientemente boa para não
terem necessidade desses sufrágios póstumos, nem suficientemente má para
Um monge canonista: Graciano de Bolonha que eles não possam servir-Ihes. Pelo contrário, há aqueles que viveram sufi-
cientemente bem para poder dispensá-los e outros suficientemente mal para
o caso do Decreto de Graciano (cerca de 1140) é especial. Esta recolh não poder tirar deles beneficio depois da morte. Assim, é sempre cá em baixo
de textos não apresentaria qualquer originalidade se a sua coordenação, que se adquirem os méritos que podem assegurar a cada um, depois desta
escolha dos textos e o seu ajustamento em tratado articulado não cons . vida, conforto ou infortúnio. Quando os sacrificios do altar ou da esmola
tuíssem de facto uma importante novidade. A importância que o direi são oferecidos em intenção de todos os defuntos baptizados, para aqueles
canónico vai assumir no fim do século XII e no século XIII impõe que foram inteiramente bons, eles são acções de graças; para aqueles que
não foram inteiramente maus, são meios de propiciação; para aqueles cuja
qualquer modo que se examine esta peça mestra que inaugura o Corp
maldade foi total, já que não ajudam os mortos, servem para confortar os
de direito canónico da Idade Média, e que se faça pelo menos uma so
vivos. Aquilo que eles asseguram àqueles que deles tiram proveito é ou a
dagem tendo como objectívo esse centro intelectual tão activo no sécul urnnistia completa ou, pelo menos, uma forma mais suportável de condenação.

176 177
Neste texto, como podemos ver, existem dois elementos importantes O destaque XXI insere-se numa exposição sobre os sacramentos. De-
que põem obstáculos ao nascimento do Purgatório. O primeiro é que, se pois do baptismo, da confirmação e da eucaristia, vem um longo desen-
Agostinho fala de lugares para as almas entre a morte e a ressurreição, volvimento sobre a penitência que termina com um capítulo sobre a
esses tais lugares são uma espécie de buracos, de esconderijos, os recep- penitência final e a diferenciação dos «pecados que são remidos depois
táculos (receptacula), e não um espaço autêntico e, além do mais, são desta vidro>.Depois, mesmo no fim da obra, o destaque XLV sobre «os
escondidos (abdita), o que é interpretado em sentido material e espiri- diferentes receptáculos das almas» ocorre no desenrolar dos tempos der-
tual. No sentido material escapam à investigação, são dificeis se não im- radeiros: entre a ressurreição e o Julgamento Final. É quase paradoxal
possíveis de encontrar e, no sentido espiritual, representam um mistério que estes textos, cujo comentário constituirá o essencial da doutrina
que é talvez - é a opinião de alguns - lícito, se não sacrílego, pretender dos grandes escolásticos do século XIII, não formem um conjunto coeren-
penetrar. Estes conceitos constituem pois um obstáculo no caminho da te. O futuro Purgatório está divido entre a penitência e a morte individual
geografia do Purgatório. por um lado e os novissima por outro. O Purgatório irá precisamente
O segundo ponto é a referência às quatro categorias de defuntos se- ocupar, temporal e espacialmente, o intervalo. Lombardo como que sub-
gundo Agostinho: os totalmente bons (valde boni), os totalmente maus linhou pela negativa a localização do futuro Purgatório.
(valde mali), os não totalmente maus (non valde mali) e, implicitamente, No destaque XXI, Pedro Lombardo interroga-se se certos pecados são
os não totalmente bons (non valde boni), Ora o Purgatório ou será desti- remidos depois da morte. Baseando-se em Mateus, XII, 32 e na primeira
nado a esta última categoria que o sistema de Agostinho implica mas que epístola de Paulo aos Corintios, III, 10-15, e depois de ter recordado a
não é explicitamente mencionada neste texto, ou então - e sobretudo - ele opinião hesitante de Agostinho sobre a interpretação do texto de Paulo
exigirá a fusão numa só categoria das duas categorias dos que não são (Cidade de Deus, XXI, XXVI), dá o seu parecer que é claro. A passagem
totalmente maus e dos que não são totalmente bons. de S. Paulo «insinua abertamente que aqueles que constroem com madei-
Assim este texto, que constituirá uma das bases do Purgatório, será ra, feno e palha levam consigo edifícios combustíveis, quer dizer pecados
ainda durante algum tempo um seu retardador. Este «bloqueio autoritá- veniais, que deverão ser consumidos no fogo purgatório». Há uma hie-
rio» é sem dúvida uma das razões do papel insignificante do direito ca- rarquia entre a madeira, o feno e a palha; segundo a importância dos
nónico no nascimento do Purgatório. pecados veniais que representam, as almas dos mortos serão purgadas e
libertadas com maior ou menor rapidez. Sem nada trazer de novo, Lom-
bardo clarifica as coisas: existência de uma purgação de certos pecados
entre a morte e o julgamento, identificação dos pecados purgáveis com os
Um mestre secular parisiense: o bispo Pedro Lombardo pecados veniais, duração mais ou menos longa das penas purgatórias
(fogo).
Sobre o problema do Purgatório como sobre muitos outros, o pensa- O destaque XL V é ainda mais importante. Trata dos receptáculos das
mento de Pedro Lombardo, mestre parisiense de origem italiana que veio almas e dos sufrágios pelos defuntos. Para os receptáculos, contenta-se
a ser bispo de Paris em 1159 e morreu pouco depois, em 1160, é aquele com citações de textos de Agostinho, principalmente do Enchiridion, so-
que, em meados do século, apresenta de maneira mais nítida uma vertente bre os receptáculos escondidos. No que respeita aos sufrágios, retoma
virada para o passado e uma vertente virada para o futuro. Nos seus também as opiniões de Agostinho. As missas e as esmolas da Igreja são
Quatro Livros de Máximas compostos entre 1155 e 1157, Lombardo re- úteis aos defuntos mas estes precisam de ter merecido pela sua vida e as
sume com vivacidade, clareza e espírito sintético as opiniões dos que o luas obras a eficácia destes sufrágios. Retoma as três categorias agosti-
precederam, desde os Pais aos teólogos e canonistas Abelardo, Gilbert nianas dos inteiramente bons (valde boni), dos não inteiramente maus
de Ia Porrée, Graciano, etc. Mas, por outro lado, a obra deste pensador [non valde mali), e dos inteiramente maus (valde mali ) para quem os
sem grande originalidade vai tornar-se «clássica para os séculos seguin- .ufrágios da Igreja correspondem respectivamente a acpões de graças, a
tes». J. de Ghellinck disse também que as Máximas de Pedro Lombardo propiciacões e a simples consolações para os parentes vivos. Mas Lombar-
foram «o centro de perspectiva» do movimento teológico do século XII. do acrescenta e relaciona duas categorias provenientes da classificação
O essencial das suas opiniões sobre a purgação dos pecados no além allostiniana: os medianamente bons (mediocriter boni) para quem os su-
encontra-se em dois sítios diferentes da sua obra, os destaques XXI e [rágios levam à absolvição plena da pena, e os medianamente maus
XLV do Livro IV das Máximas. (mediocriter mali) para quem eles levam a uma mitigação da pena. E,

178 179
pegando em dois casos, Pedro Lombardo escolhe exemplos de «media- almas. Então onde estão aqueles que devem fazer penitência depois da
namente bons» (capítulos IV e V do destaque XLV). Enfim, para os in- morte? - Nos lugares purgatórios. Onde são esses lugares? - Ainda não
teiramente maus Lombardo, tal como sugerira Agostinho, pensa que llei25. Quanto tempo ficam eles nesses lugares? Até à satisfação (a expia-
Deus pode, apesar de tudo, distinguir entre eles graus de malvadez e, ção das suas culpas).»
embora mantendo-os no Inferno por toda a eternidade, pode também Robert Pullus imagina em seguida que, no nosso tempo, as almas
mitigar um pouco a sua pena/". Lombardo operou um movimento signi- expurgadas deixam os lugares purgatórios, que são exteriores ao Infer-
ficativo: os não inteiramente maus foram separados dos inteiramente no, para irem para o Céu, assim como os antigos expurgados deixavam
maus e sem se misturarem com os não inteiramente bons, próximos de- os seus lugares ~urgatórios que eram no Inferno para irem refrescar-se no
les. Esboça, se assim se pode dizer, um reagrupamento ao centro cujo !leiode Abraão 6. E termina com o significado da descida do Cristo aos
alcance em breve se verá. lnfernos/".
Exposição notável que procura estabelecer uma coerência neste siste-
ma geográfico e que introduz uma dimensão histórica e analógica na
escatologia. Exposição obcecada pela preocupação de localizar, introdu-
Testemunhos menores lindo o tema: Ubi sunt? Mas onde são ...? e que tem como resultado a
comprovação da ignorância respeitosa do segredo que rodeia esses luga-
Outras obras, algumas mesmo para além do período entre 1170 e res misteriosos. Mas que destaca e valoriza a expressão in purgatoriis,
1200, onde a palavra purgatório - e portanto o lugar - nasceu, manifes- subeatendendo-se locis: nos (lugares subentendidos) purgatórios. Basta-
tam sem o mencionar, o esforço do pensamento religioso na segunda rA passar do plural para o singular e do adjectivo para o substantivo para
metade do século XII, para atribuir à purgação depois da morte um lo- que o Purgatório apareça.
cal, e individualizar espacialmente o processo de purgação no além. Eis O italiano Hugo Ehterien (Hugo de Pisa), no seu livro Sobre a
alguns exemplos. Álma Saída do Corpo (Liber de anima corpore exuta), pouco depois de
Robert Pullus (ou Pullney), cardeal em 1134 e chanceler da Igreja 1150, não vai tão longe. Cita Gregório, o Grande e a história do bispo
romana em 1145, falecido cerca de 1146, no Livro IV das suas Felix que encontra um espectro nas termas, mas não tira dela conclusões
Máximas interroga-se, também ele, sobre a geografia do além. Depois para a localização da purgação. Numa passagem que lembra muito
de ter afirmado que o Inferno é um lugar (infemus ... locus est), pensa Hugo de Saint-Victor evoca o Julgamento Final e o rio de fogo - compa-
onde terão lugar as penas purgatórias. Os antigos iam expurgar-se rável com a enchente do dilúvio - que irá submergir a terra e o céu e
durante um tempo aos infernos, depois iam para o seio de Abraão, também os homens, dos quais os maus serão consumidos e os bons
«quer dizer para uma região superior onde reinava a tranquilidade», stravessarâo o fogo da purgação sem danos. Testemunho de um pensa-
Na nossa época, isto é depois da vinda de Cristo, os defuntos, nos quais mento arcaico onde vemos também, a propósito dos sufrágios, Hugo
ainda existe algo para queimar, são julgados depois da morte por penas corroborar a ajuda que a oferta da hóstia consagrada traz aos que
purgatórias (purgatoriis poenis ) e a seguir vão para junto de Cristo, ou dormem'".
seja, para o Paraíso. Essas penas consistem especialmente num fogo, O Robert de Melun, falecido em 1167, sucessor de Abelardo na escola de
fogo purgatório (ignis purgatorius), cuja violência é o ponto intermédio a.inte-Genevieve em Paris, nas suas Questões sobre As Epístolas de
entre as atribulações terrenas e os tormentos infernais (inter nostras til ~. Paulo elaboradas entre 1145 e 1155, lembra simplesmente, de acordo
inferorum poenas medias). Mas aqui, a perplexidade de Robert Pullus • GOmAgostinho, que as penas purgatórias serão mais terríveis do que qual-
grande: quer pena deste mundo e sublinha que essas;enas purgatórias acontece-
«Mas essa correcção, onde é feita? Será no Céu? Será no Inferno? Mas rio no futuro, quer dizer depois desta vida2 •
o Céu não parece convir às atribulações, nem a tortura à correcção, so- Pedro de Celle, em compensação, está bem próximo do Purgatório.
bretudo na nossa época. Pois se o Céu não convém senão aos bons, não. Abade de Saint-Pierre de Celle, perto de Troyes, depois de São Remígio
convirá o Inferno apenas aos maus? E se o Céu exclui todo o mal, como' de Reims e por fim, segundo João de Salisbury, bispo de Chartres onde
que o Inferno pode acolher qualquer bem? Assim como Deus destinou O morreu em 1182, compôs em 1179 um tratado sobre a vida monástica,
Céu apenas aos perfeitos, também a geena parece reservada apenas ao, Â Escola do Claustro (De disciplina c/australi J onde põe a questão dos
ímpios, a fim de que esta seja a prisão dos culpados e aquele o reino dai locais de habitação da alma depois da morte. «O alma separada do corpo,

180 181
onde moras tu? É no Céu? É no Paraíso? É no fogo purgatório? ~]aborações parisienses
É no Inferno? Se é no Céu estás na bem-aventurança com os anjos. Se
é no Paraíso estás em segurança, longe das misérias de cá de baixo. Se é Concluamos com dois eminentes mestres e chanceleres parisienses.
no fogo purgatório estás atormentada com penas, mas todavia esperas a Nos Cinco Livros de Máximas escritos antes de 1170, Pedro de Poitiers
libertação. Se é no Inferno, tendo perdido toda a esperança, esperas não a (falecido em 1205) discute uma questão: «Se alguém argumentar assim: de
misericórdia mas a verdade e a severidade '?». Vê-se, neste texto, a evolu- estes dois, um é culpado ao mesmo tempo de um pecado mortal e de um
ção que rapidamente vai conduzir à invenção do Purgatório. O fogo pecado venial, e o outro apenas de um pecado venial igual ao pecado
purgatório é encarado como um lugar, à semelhança do Céu, do Paraíso venial do primeiro; e os dois serão punidos por penas desiguais, porque
e do Inferno. uquele sê-lo-á para sempre e este somente no(s) purgatório(s) (in purga-
Mas a expressão in purgatoriis: nos purgatórios (subentendendo toriis ), e qualquer pena purgatória (pena purgatoria) será inferior a qual-
lugares) reaparece muito frequentemente no fim do século ou talvez até quer pena eterna e este não merece ser mais punido por este pecado venial
mesmo no início do século seguinte para testemunhar desta busca da do que aquele pelo outro: assim, agir-se-á injustamente com este. É falso.
localização que não consegue encontrar a forma e a palavra justa. Estes dois que são culpados de um pecado venial igual merecem ser pu-
Num curioso diálogo de entre 1180 e 1195, o Conflito He/vético sobre o nidos igualmente por esses pecados, mas um será punido nesta vida e o
Limbo dos Pais (Conflictus Helveticus de Iimbo Patrum), uma troca de- outro no fogo purgatório (in igne purgatorio) e qualquer pena aqui em
cartas entre Burchard de Saint-Johann, primeiro abade do mosteiro be- baixo é inferior a qualquer pena do fogo purgatório (ignis purgatorii);
neditino de St. Johann im Thurtale e Hugo, abade do mosteiro (igual- portanto agir-se-á injustamente para com ele33.»
mente beneditino) de Todos-os-Santos em Schaffouse, os dois Análise notável que, em vésperas do aparecimento do Purgatório,
adversários discutem o destino das almas antes da descida do Cristo reúne todo o vocabulário sobre o domínio purgatório, sublinha a ligação
aos infernos. Burchard sustenta que muitas almas foram para o Céu mes- entre purgatório e pecado venial, emprega a expressão «espacializante» in
mo antes da descida do Cristo aos infernos, conforme testemunha a alu- purgatoriis e manifesta aquela preocupação, já então quase maniaca, da
são do Novo Testamento ao seio de Abraão (Lucas, XVI, 22) identificado contabilidade da penitência e da purgação, que irá caracterizar a prática
com a paz (Sabedoria, IH, 3), o repouso (Agostinho) e o repouso secreto do do Purgatório no século XIII.
Pai (Gregôrio, o Grande). Hugo, apoiado pela maioria dos que tomam Num sermão sem data para o dia de finados, Prévostin de Cremona,
parte na discussão, afirma que nenhuma alma pôde ir para o seio de tumbém ele chanceler de Paris falecido em 1210, usa igualmente a expres-
Abraão ou para o Paraíso antes da descida de Cristo aos infernos, por Não in purgatoriis: «Visto que alguns são lavados no(s) purgatório(s), de-
causa do pecado original. vemos então ocupar-nos deles que são mais indignos hoje, rezando por
No decurso do diálogo Burchard dá urna boa definição do Purgatório, eles, fazendo oferendas e dando esmolas ".» Eis fixado o laço entre a
ainda designado pelo plural in purgatoriis: «Há três espécies de Igrejas; comemoração do 2 de Novembro, instituída no século anterior por
uma milita na terra, outra aguarda a recompensa no(s) purgatório(s), ('Iuny, e o Purgatório nascente, a cadeia litúrgica à volta do Purgató-
outra triunfa com os anjos nos céUS31.» Evocação notável, face ao infer- rio, entre os vivos e os mortos.
no esquecido, de uma tripla igreja onde a igreja dos expurgados, definida
como a igreja da espera, está situada entre a terra e o céu. Texto que
apresenta um duplo testemunho: o dos progressos do Purgatório e da
sua concepção espacial, e também a existênca no momento decisivo de
uma concepção diferente da que triunfou, mas que também poderia ter
triunfado: um Purgatório possível, menos infernal. Concepção próxima
da de Raoul Ardent, autor ainda pouco conhecido no século XII e cuja
cronologia é incerta, que nas suas Homilias, sem dúvida do fim do século,
fala assim das almas que estão no(s) purgatório(s): «Se elas são castigadas
durante um tempo limitado no(s) purgatório(s), no entanto descansam jAl
numa esperança segura de repouso ".» Concepção que reencontraremos
do Purgatório como esperança.

182 183
NOTAS texto purgare, purgatio, purgatorius. Com efeito, Guerric emprega também purifica-
re, Mas devemos reconhecer que os dois termos são para ele quase sinónimos. Aliás,
u Escritura convida a isso. O tema do IV Sermão é o versículo de Lucas, 11, 22: Posti-
quam impleti sunt dies purgationis eius (Mariae). Os dois sermões de que extraí os
trechos que cito encontram-se no tomo I das Fontes cristãs (vol. 166), pp. 356-385.
Sobre Guerric d'lgny e o «purgatório» ver D. De WILDE, De beato Guerrico abbate
lgniacensi ejusque doctrina de formatione Christi in nobis, Westmalle, 1935, pp. 117-118.
8 Ver mais adiante, p. 193 e ss.
9 PL, 157, 1035-1036. Ver P. GLORIEUX, «Les Deflorationes de Wemer de Saint-
-Blaise» in Mélanges Joseph de Ghellinck, 11, Gembloux, 1951, pp. 699-721.
IO Editado por A. M. LANDGRAF, Commentarius Porretanus in primam episto-
Iam ad Corinthios (Estudos e Testes, 177), Cidade do Vaticano, 1945.
11 ACHARD DE SAINT-VICTOR, Sermons, Ed. J. Châtillon, Paris, 1970, p. 156.
12 Ver J. LONGERE, Oeuvres oratoires de maitres parisiens au XI!' siêcle, Paris,
1975. Indicações com interesse sobre o mundo do além, t. I, pp. 190-191 e t. lI, 144-145
I Ver o Apêndice II sobre purgatorium. se bem que «o aparecimento do Purgatório não tenha sido mencionado. Sobre os
2 Ver o artigo de Claude CAROZZI, «Structure et Fonction de Ia Vision de Tnug- começos da literatura das homilias em língua francesa ver M. ZINK, La Prédication
dai» no volume colectivo Faire croire, a aparecer brevemente nas publicações da Es- en langue romalle avant 1300, Paris, 1976.
cola francesa de Roma. Parece-me que Claude Carozzi exagerou a importância de uma 13 Li Dialogue Gregoire 10 Pape, «Os diálogos do Papa Gregório» traduzidos para
eventual querela entre «materialistas» e «imaterialistas» no século XII e antecipou a francês do século XII e acompanhados do texto latino ..., ed. W. Foerster, Halle, Paris,
existência do Purgatório, mas o seu texto é muito estimulante. Se, como crê Claude 1876. Notar-se-ão as expressões ofogo purgatório, o fogo da purgacão. Recordo que foi
Carozzi, houve no século XII uma tendência (por exemplo, em Honorius Augustodu- assim que traduzi sistematicamente os textos anteriores, sempre que apareceu o subs-
nensis) para ver nas coisas do além apenas spiritualia, fenómenos espirituais, essa tantivo purgatorium e afastando a palavra purificapâo que não tem exactamente o
tendência não teve qualquer influência sobre a génese do Purgatório, ainda vaga mesmo sentido. Vou assim ao encontro do vocabulário da Idade Média, mas não
mas que ela poderia ter bloqueado. Quando Honorius Augustodunensis é levado, foi por coquetismo arcaizante que empreguei estas expressões, mas por preocupação
no Elucidarium, a evocar os lugares onde se encontram as almas do outro mundo, de exactidão. • .
tem de conceder-Ihes uma certa materialidade, como se verá. O debate sobre o carác- 14 Citado por Ch.-V. LANGLOIS, La vie en France au Moyen Age, 1. IV, Pans,
ter real ou metafórico do fogo que constituía o castigo mais frequentemente indicado 1928, p. 114.
para a purgação dos pecados não durou muito para além dos primeiros séculos do 15 Recuei! des historiens des croisades, 1/1, 1884, p. 44.
cristianismo. A ideia de que as almas não tinham corpo e não podiam, por consequên- 16 Sobre Hugo de Saint-Victor ver R. BARON, Science et sagesse chez Hugues de
cia, encontrar-se em qualquer lugar material, professada por João Scoto Erigeno no Sant-Victor, Paris, 1957, e a bibliografia da edição francesa, revista e completada por
século IX, não teve maior eco do que a maioria das doutrinas deste pensador isolado. A.-M. Landry e P. Boglioni da Introduction à I'histoire de Ia littérature théologique de Ia
Ver M. CAPPUYNS, Jean Scot Érigêne. Sa vie, son oeuvre, sa pensée, Lovaina-Paris, scolastique naissante, de A.-M. LANDGRAF, Montreal-Paris, 1973, pp. 93~.97. Ver
1933. Na primeira metade do século XIII, Alexandre de Halês exprimirá a opinião lambém tbid., pp. 43-44, do ponto de vista da doutrina da salvação, H. KOSTER,
geral dos teólogos que consagra a convicção comum: «O pecado não é remido sem Die Heilslehre des Hugo von St. Victor, Grundlage und Grundzüge, Emsdetten, 1940.
uma dupla pena: a remissão não tem valor se não houver nenhuma pena da parte do 17 O. LOTTIN, «Questions inédites de Hugues Saint-Victor» in Recherches de
corpo» (Non ergo dimittitur peccatum sine duplici poena; non ergo valet relaxati cum théologie ancienne et médiévale, 1960, pp. 59-60.
nu/la sit poena ex parte corporis, Glossa in IV Libros Sententiarum, IV, dist. XX). O 18 PL, 176, 586-596. A passagem citada literalmente em tradução encontra-se na
essencial é sem dúvida darmo-nos conta de que «espiritual» não quer dizer «desen- coluna 586 CD.
camado». 19 Ver o Apêndice lI: Purgatorium.
3 PL, 172, 1237-1238. Claude Carozzi tem sem dúvida razões para desconfiar desta Deixo provisoriamente de lado um texto importante mas que nada acrescenta à
edição. posição de S. Bemardo. Em compensação, como ele expõe a opinião de hereges hostis
4 PL, 40, 1029. li purgação após a morte, falarei desse texto a propósito da relação entre heresia e
5 Ver Y. LEFEVRE, L'Elucidarium et les Lucidaires, Paris, 1954. Pur~atório.
6 PL, 153, 139. oS. BERNARDO, sermão XVI, De diversis: in Opera, ed. J. Lec1ercq e H. Ro-
7 Os Sermões de Guerric d'lgny foram publicados (tomo I) por J. Morson e H. chais, t. VIII, pp. 144 e 147.
Costello, com uma tradução de P. DeseilJe, nas Fontes cristãs (Sources chrétinnes, vol. 21 O sermão in obitu Domni Humberti, monachi Clarae-Vallensis encontra-se na
166, 1970). Dou essa tradução, substituindo simplesmente, conforme meu hábito, pu- edição Lec1ercq-Rochais, t. V, p. 447.
rificar, purificação, purificador, por purgar, purgação, purgatório. onde aparece no 22 Opera, ed, Leclercq-Rochais, t. VIII, pp. 11-12.

184 185
23 Decretum Magistri Gratiani, ed. A. Friedberg, Leipzig, 1879, t. I, col. 728.
24 Ibid., p. 1006 e ss. v- «LOCUS PURGATORIUS»: UM LUGAR PARA A PURGAÇÃO
25 «Ergo ubi sunt poenitentes post mortem? in purgatoriis. Ubi sunt ea? nondum seio.»

26 «Unde peracta purgatione poenitentes, tam nostri, ex purgatoriis (quae extra


infernum ) ad coe/os, quam veteres ex purgatoriis (quae in inferno) ad sinum Abrahae
refrigerandi, jugiter conscendere videntur »
27 Este texto encontra em PL, 186, col. 823-830, os textos citados nas colunas 826 e
827.
28 PL, 202 col. 201-202 e 224-226.

29 R. M. MARTIN, Oeuvres de Robert de Me/un, t. Il, Questiones (theologia) de


Epistolis Pau/i, Lovaina, 1938, pp. 174 e 308.
30 PIERRE DE CELLE, L'École du c1oitre, ed. G. Martel (Fontes cristãs, 240),
1977, pp. 268-269. Na tradução substituí fogo do purgatório por fogo purgatório de
acordo com o texto latino, in igne purgatorio.
31 Conflictus Helveticus De Limbo Patrum, ed. F. Stegmüller in Mélanges Joseph de
Ghellinck, 11, Gembloux, 1951, pp. 723-724. A frase citada está na página 737.
No meio do século XII o fogo tinha tendência não só para evocar um
32 Homiliae de tempore, I, 43, PL, 155, 1484. Em vez de lugares (loca) pode suben-
tender-se penas (poenae). Como a expressão loca purgatoria existe também na mesma
lugar mas também para encarnar espacialmente a fase de purgação
época, prefiro interpretar assim in purgatoriis que, de qualquer modo, exprime uma por que passavam certos defuntos. Era todavia insuficiente para i~divi-
vontade de localização. dualizar um espaço definido do além. E aqui tenho de levar comigo o
33 PL, 21I, 1064. leitor sem no entanto o fatigar com pormenores a mais, a participar
34 «Quia vero sunt quidam qui in purgatoriis poliantur, ideo de eis tanquam de indig- num; pesquisa técnica necessária em virtude da concentraç~o da ~v:sti-
nioribus hodierna die agimus, pro eis orantes, oblationes et elemosinas facientes» (ver gação sobre certos lugares e meios de elaboração da doutnna cnsta no
J. LONGERE, Oeuvres oratoires de maitres parisiens ao XIr siêcle, t. Il, Paris, século XII.
1975, pp. 144, n. 16).
Tendo o substantivo purgatorium (o purgatório) chegado ao momento
em que vai aparecer o Purgatório como lugar determinado e gramatical-
mente, devo evocar um problema de autenticidade de textos! e um pro-
blema de datas.

Entre 1170 e 1180: autores e datas

No passado e por vezes até hoje, os eruditos foram com efeito enga-
nados por textos atribuídos falsamente a autores eclesiásticos falecidos
antes de 1170, o que levou a acreditar num nascimento prematuro do
Purgatório. Mais adiante falarei de dois textos, um atribuído a S. Pedro
Damião falecido em 1072 e outro a S. Bernardo, falecido em 1153. Co-
meçarei 'por um excerto de um sermão que até ao fim do século XIX foi
considerado da autoria de Hildebert de Lavardin, bispo de Mans, um dos
principais representantes do «renascimento poético» das regiões do Loire
no século XII, e que morreu em 1133.
Trata-se de um sermão dedicado à Igreja, sobre o tema de um versi-
culo do Salmo CXXII, 3 (121) «Jerusalém, construída como uma cidade
onde todo o conjunto é homogêneo». Numa comparação onde se sente a
extraordinária explosão da construção arquitectónica nos séculos XI e
XII, o autor do sermão diz:

186 187
«Na edificação de uma cidade, concorrem três elementos; primeiro, Máximas de Lombardo. Deixou obra abundante, e é dificil datar os seus
arranca-se violentamente as pedras da pedreira com martelos e barras sermões. Mas foi possível datar entre 1165 e 1170 um tratado Sobre os
de ferro, com muito trabalho e suor dos homens; a seguir com o buril, Sacramentos (De sacramentis) cujo tema é também o Purgatório.
a bipene e a régua elas são polidas, desbastadas, talhadas a esquadro; em A propósito da penitência, Pedro, o Devorador, nele afirma primeiro
terceiro lugar, são colocadas nos seus lugares pela mão do artista. Da que a purgação dos eleitos se faz no fogo purgatório com maior ou menor
mesma maneira, na construção da Jerusalém celeste devemos distinguir rapidez em função da diferença dos pecados e da penitência, e invoca
três fases: a separação, a limpeza e a «posição». A separação é violenta, a Agostinho (Enchiridion, 69). Responde a seguir à questão de saber se a
limpeza purgatória e a posição eterna. Na primeira fase o homem está na penitência que não pôde ser cumprida nesta vida pode ser completada n?
angústia e na aflição; na segunda, na paciência e na expectativa; na ter- outro mundo. Sendo Deus misericordioso e justo, em virtude da sua rm-
ceira, na glória e na exultação. Na primeira fase o homem é joeirado sericórdia perdoa aos pecadores que não devem ser punidos por uma
como o cereal, na segunda é examinado como a prata, na terceira é co- pena demasiado severa, quer dizer a pena eterna. Mas no que toca à
locado dentro do tesouro/ ...» justiça, não deixa o pecado impune. Este deve ser punido quer pelo ho-
O seguimento do sermão explicita esta imagem, aliás bastante clara, mem quer por Deus. Mas a contrição do coração pode ser tão grande
com a ajuda de um certo número de textos das Escrituras, entre os quais a que, mesmo se a penitência não foi terminada cá em baixo, um morto
primeira epístola de Paulo aos Corintios, lI, 10-15. A primeira fase é a pode ser poupado ao fogo purgatório (immnunis erit ab igne purgato-
morte, a separação da alma do corpo, a segunda é a passagem pelo Pur- ';0). Em compensação, aquele que morre impenitente é punido para a
gatório, a terceira é a entrada no Paraíso. Em relação à segunda fase, ele eternidade. Outra pergunta: se por negligência ou ignorância do padre
precisa que só aqueles que passam com madeira, feno e palha são lavados um homem recebe uma penitência insuficiente em relação à gravidade
no Purgatório (in purgatorio). Desta vez a palavra purgatório como subs- das suas culpas, bastar-Ihe-á cumprir essa penitência ou poderá ser-lhe
tantivo está presente no texto. O purgatório existe, é o primeiro dos lu- infligido, depois da morte, um complemento da pena no fogo purgatório
gares para onde vão (transitoriamente) os eleitos antes do Paraíso, ao (in igne purgatorio)? Segundo o Devorador, isso também depende da
qual estão prometidos. O autor do sermão apenas evoca o trajecto dos contrição. Se esta for suficientemente grande poderá dispensar um suple-
eleitos, e os condenados, que vão directamente para o inferno, são deixa- mento de pena, o que depende da apreciação de Deus. A pergunta segum-
dos de lado. Desenvolve a seguir uma ideia de enorme importância. Se- te diz mais directamente respeito ao Purgatório: «O que é o fogo
gundo ele, o tríduo litúrgico Vigília de Todos-os-Santos, Dia de Todos- purgatório e quem deve passar através dele?» (Quid est ignis purga to-
-os-Santos e Dia dos Mortos, corresponde às três fases do trajecto dos rius, et qui sint transituri per eum?) Pedra, o Devorador, responde que
defuntos eleitos. À custa, para falar verdade, de uma pequena acrobacia alguns dizem que é um fogo «material» e não um fogo «element~n>
cronológica. Na verdade a vigília, dia de jejum, corresponde à primeira nem um fogo a que a madeira sirva de alimento, mas um fogo que existe
fase, a da separação, mas é necessário inverter a ordem dos dois dias no sublunar e que, depois do dia do Julgamento, desaparecerá com as
seguintes para que o simbolismo seja pertinente. É a terceira, o Dia dos coisas transitórias. Para outros, o fogo não é senão a própria pena. Se
Mortos, que corresponde ao Purgatório: «Ao terceiro dia, trata-se do Dia lhe chama fogo é porque é dura e queima, tal como o fogo. E havendo
dos Mortos, para que aqueles que são lavados no Purgatório obtenham uma pena destruidora e eterna, como não se trata dessa, chamou-se a e.sse
ou uma absolvição completa ou uma mitigação da sua pena '.» A expres- fogo purgatório, quer dizer não destruidor mas depurado r por castigo
são surge de novo: no Purgatório (in purgatorio). Enfim, é O segundo dia temporário, sem que se seja punido por toda a eternidade. Em todo o
«o dia solene, símbolo da superplenitude de júbilo». caso, acrescenta Pedro, o Devorador, qualquer que seja esse fogo deve
Este sermão, atribuído a Hildebert de Lavardin, fora em 1888 restituí- acreditar-se que os fiéis, embora nem todos, passam através dele. Tra-
do ao seu verdadeiro autor Pedra, o Devorador, e investigações recentes ta-se daqueles que não concluíram a sua penitência nesta vida. Mas al-
confirmaram esta atribuição", Pedro, o Comestor, ou Manducador, ou guns sofrem mais do que outros e alguns ficam livres desse fogo mais
seja Devorador, porque era um grande devorador de livros segundo os rapidamente do que outros, em função da quantidade de pecados e da
seus contemporâneos, é discípulo de Pedro Lombardo. Sendo chanceler penitência, e segundo a intensidade da contrição. Só os p~rfeit,amente
da Igreja de Paris, ensinou na escola de Notre-Dame depois da elevação hons escapam, suiõe-se, ao fogo da purgação, pois embora mnguem pos-
de Lombardo ao episcopado em 1159 e morreu provavelmente em 1178 Naestar isento de pecados veniais, no entanto o fervor do amor (fervor
ou 1179. É um dos primeiros, se não o primeiro, a glosar ou comentar as caritatis ) pode consumir dentro deles os pecados veniais".

188 189
Perante estes textos, podemos encontrar para eles duas explicações. Definição «histórica» do seio de Abraão, situado entre o tempo dos
Ou o texto do primeiro sermão foi retocado depois da morte do Devora- patriarcas e a descida do Cristo aos infernos. Assim como o Cristo encer-
dor pelos escribas que redigiram os manuscritos, ou o Devorador não rara esses infernos, os homens da Idade Média preparam-se para fechar o
falou de todo do purgatório e terá usado a expressão tradicional no fogo seio de Abraão que sobrevivera ao Novo Testamento. De facto, daí em
purgatório: in igne purgatorio. Bastará acrescentar (e ter suprimido) a diante o espaço e o tempo intermédios vão ser ocupados só pelo Purga-
palavrinha igne (ver o apêndice lI). Neste caso o autor mais não seria tório e, como se sente a necessidade de algo semelhante ao seio de Abraão
do que um testemunho a mais da iminência do aparecimento de um pur- para os justos anteriores ao Cristo e para as crianças mortas sem baptis-
gatório, e restar-lhe-ia a importância de ter posto em relação directa o mo, recorrer-se-á daí em diante a dois lugares anexos ao além: o limbo
purgatório próximo e a liturgia do princípio de Novembro. Mas pare- dos padres e o limbo das criancinhas.
ce-me mais provável que Pedro, o Devorador, tenha realmente usado o O segundo teólogo (ou, por ordem cronológica, talvez o primeiro) a
substantivo purgatorium e tenha sido portanto, se não o inventor, pelo falar do purgatório propriamente dito foi Odon d'Ourscamp (também
menos um dos primeiros utilizadores do neologismo ligado a um desen- chamado Eudes de Soissons)", que foi um dos mestres mais importantes
volvimento da geografia do além que considero revolucionário. Dois ele- desta época. Na senda de Lombardo de quem foi discípulo ou, como
mentos - além da antiguidade dos manuscritos - podem dar crédito a esta julgam outros, adversário, teve uma escola muito activa e que continuou
hipótese. No fim da vida, Pedro, o Devorador, ocupou uma posição pri- a sê-lo depois dele. Deu um impulso decisivo à questão (questio), género
mordial entre os intelectuais parisienses. Ora eu não tenho dúvidas de que escolástico caracteristico que encontra com ele a sua forma definitiva: a
foi nesse meio que nasceu o Purgatório - e mais precisamente na escola de de «uma verdadeira disputa onde os géneros estavam divididos entre dois
Notre-Dame de Paris. Por outro lado, o Comestor foi classificado como personagens distintos» (Landgraf). Odon d'Ourscamp, depois de ter sido
«um dos espíritos mais originais» do seu tempo (Hauréau). Este intelec- professor de teologia na escola de Notre-Dame de Paris, retirou-se no fim
tual pouco estudado e mal conhecido pode ter desempenhado um papel da vida para a abadia cisterciense de Ourscamp (no Aisne) onde morr~u
inovador num domínio onde o seu mestre Pedro Lombardo apresentara em 1171. Os seus alunos publicaram as Questões como obras separadas.
os problemas em termos que permitiam novos desenvolvimentos. Nesta É numa destas recolhas a que foi dado o título de Odon d'Ourscamp
hipótese ele teria, antes de 1170, usado a expressão então corrente de fogo que reencontramos o Purgatório numa questão sobre a Alma no Purga-
purgatório; e, tendo as suas ideias evoluído entre 1170 e a sua morte, teria tório (De anima in Purgatorio).
utilizado cerca de 1178-1179 o neologismo purgatorium cujo aparecimen- «A alma separada do corpo entra logo no purgatório (intrat purgato-
to se poderá situar durante o decênio 1170-1180. O que estaria de acordo rium statim); aí ela é purgada, portanto tira proveito. Opinião contrária:
com outros testemunhos que, sem serem também absolutamente conclu- ela suporta essa pena contra a sua vontade, portanto não tira proveito.»
dentes, apontam no mesmo sentido. Antes de os examinar, gostaria de Segue-se um certo número de argumentos a respeito dos méritos even-
completar o processo das ideias do Comestor sobre o tempo intermédio tualmente adquiridos ao sofrer-se essa pena. Depois vem a solução:
entre a morte e a ressurreição, citando um texto onde se trata, desta vez, «É verdade que certas almas, quando se separam dos corpos, entram
do seio de Abraão. logo num fogo purgatório (statim intrant purgatorium quemdam ignem),
Este texto é extraído da obra mais célebre de Pedro, o Devorador, mas nem todas ali são purgadas, apenas algumas. Todas que lá entram
aquela a que ele deve, em vida sua e durante o resto da Idade Média, a são punidas. Assim, valeria mais chamar esse fogo de punitivo (punito-
celebridade: A História escolásticas. No capítulo cm da Historia Scho- rius) em vez de purgatório (purgatorius); mas recebeu a designação mais
lastica, ele narra e comenta a história do pobre Lázaro e do rico mau nobre. De entre as almas que nele entram, umas serão purgadas e puni-
(Lucas, XVI). «Lázaro, diz ele, foi colocado no seio de Abraão. Estava das, outras somente punidas.
com efeito na zona superior do lugar infernal (in superiori margine infemi São purgadas e punidas aquelas que trouxeram consigo madeira, feno
loeus), onde há um pouco de luz e nenhuma pena material. Era aí que c palha; as outras são as que, voluntária ou involuntariamente, não se
estavam as almas dos predestinados, antes da descida do Cristo aos arrependeram por fim dos seus pecados ou que, surpreendidas pela mor-
infernos. A esse lugar, por causa da tranquilidade que nele reina, cha- te, não se confessaram deles. São apenas punidas aquelas que, depois de
mou-se seio de Abraão, como chamamos o seio materno. Deu-se-lhe o se terem confessado e arrependido de todos os seus pecados, morreram
nome de Abraão porque ele foi a primeira via da fé... (prima credendi sem terem cumprido a penitência que o padre lhes atribuíra; não são
via}".» purgadas porque nenhum pecado lhes é remido, a menos que se tome

190 191
«ser remido» no sentido lato em que «purgado» seja sinónimo de «liber- foi atribuído a S. Bemardo, falecido em 1153, e os recentes editores das
to» da pena devida. No sentido próprio, ser purgado diz-se de alguém a obras completas de S. Bemardo, Dom Jean Leclercq e Henri Rochais,
quem é remido um pecado; portanto, aqueles que são medianamente bons mantiveram esta atribuição, fazendo notar que os problemas levantados
entram imediatamente no Purgatório (hi ergo qui sunt mediocriter boni, pela colecção dos Sermones de diversis, em que aquele se inclui, não per-
statim intrant purgatorium). mitiam afirmar a sua autenticidade com tanta certeza como para as
O interlocutor reacende a discussão ao perguntar: «Se a um moribun- outras colecções dos sermões de S. Bernardo. Eu estou convencido de
do que se arrepende de todos os seus pecados o padre diz: absolvo-te de que esse sermão não é de S. Bernardo!'. Supondo que o fundo é autênti-
todas as penas que te são devidas, até daquela que deverias sofrer no co, então sofreu modificações de forma, sem dúvida muito importantes.
Purgatório (in purgatorio), será ele, mesmo assim, punido nesse Purga- Não só me parece impossível falar de Purgatório como de um lugar
tório?» designado por um substantivo antes de 1153; e também a expressão per-
Resposta do mestre: «Eis o género de pergunta a que Deus melhor vos feita do sistema do além tripartido e espacializado que se encontra neste
responderia (do que eu). Tudo o que posso dizer é que o padre deve agir texto: «Há três lugares que as almas dos mortos, conforme os respectivos
com discernimento.» Mas acrescenta, todavia, uma frase muito revelado- . méritos, recebem como destino: o inferno, o purgatório e o céu»,
ra: «Como esse fogo é uma pena material, está num lugar. Mas onde se me parece ainda mais improvável na primeira metade do século XII
encontra esse lugar, quando a isso deixo a questão em suspensoi.r quando reina, como já se viu, uma enorme incerteza quanto à estrutura
O que impressiona neste texto é o aspecto heteróclito do vocabulário, . do além.
se não das ideias. Ora se refere o purgatório ora o fogo purgatório. Afir- Antes de formularmos hipóteses, vejamos os textos. O tema destes
ma-se o carácter espacial, localizado, do Purgatório, quer mencionando- dois sermões é a existência de cinco regiões no universo natural e sobre-
-o, quer reduzindo-o ao lugar onde deve encontrar-se o fogo. E tudo natural.
termina com uma confissão de ignorância sobre a localização desse lugar. A primeira é a da dissimilitudo, da dissemelhança com Deus que havia
Tudo isto que se verifica confirma bem as opiniões de A. M. Land- feito o homem à sua imagem e semalhança, das quais o homem se afastou
graf: as Questões desta época e especialmente as atribuídas a Odon pelo pecado original. Esta região é o mundo terrestre.
d'Ourscamp reúnem Questões de vários autores «com atribuições geral- A segunda região é o paraíso do claustro. «Na verdade, o claustro é
meD;tefantasistas» e dificilmente verificáveis". um paraíso» é uma das numerosas frases que encontramos textualmente
E possível aceitar como razoável a seguinte explicação: as Questões nos dois sermões. Esta exaltação da vida monástica faz do claustro um
atribuídas a Odon d'Ourscamp foram elaboradas a partir de notas toma- lugar de vida nesta terra.
das nos cursos desse mestre, mas a forma (e o vocabulário) foram revistos A terceira região é a da expiação. Ela mesma comporta três lugares
e algumas ideias que não são de Odon foram introduzi das na redacção diferentes em função dos méritos dos defuntos. A designação desses lu-
que, sem dúvida, foi composta entre 1171, data da morte de Odon, e cerca gares não é a mesma nos dois sermões, se bem que se trata dos mesmos
de 1190, talvez mesmo no decénio 1171-1181. Onde Odon fala ainda de locais. No sermão do pseudo-Pedro Damião, trata-se do céu, dos lugares
fogo purgatório, os seus alunos falam já de Purgatório. O espaço do lugar infernais e dos lugares purgatórios (caelum, loca gehennalia, loca purga-
é tido como facto consumado, mas a localização é incerta. A expressão toria). No sermão do pseudo-Bernardo, como se viu, trata-se do inferno,
mediocriter boni (medianamente bons), oriunda sem dúvida de Pedro do purgatório e do céu (infemus, purgatorium, caelum) mencionados por
Lombardo, deixa transparecer uma outra face do sistema. ordem diferente.
A quarta região é a região da geena. Podemos perguntar-nos em que é
que esta região difere da parte infernal da terceira região, o que não está
Um falsário do Purgatório bem explicado em nenhum dos dois sermões. Parece todavia que a expli-
cação seja inversa num e noutro. No sermão do pseudo-Pedro Damião,
Vamos agora examinar os dois textos que, sem dúvida, mais proble- os lugares infernais da terceira região parecem destinados aos pecadores
mas põem, sobretudo o segundo. O primeiro foi atribuído ao santo Pedro que morreram em pecado mortal e a quarta região infernal é mais a re-
Damião, o célebre eremita e cardeal italiano da primeira metade do século sidência dos ímpios. No sermão do pseudo-Bernardo, pelo contrário, o
XI, mas esta atribuição indefensável foi reconhecida como falsa pelos inferno da terceira região é reservado aos ímpios, o que se afirma com
historiadores recentes de Pedro Damião'". O segundo é um sermão que clareza, enquanto a quarta região infernal se destina ao diabo e aos seus

192 193
anjos (maus) e aos homens que se lhes assemelham, quer dizer aos crimi- eles que rezamos e não por eles. Para -23), mas vasos de misericórdia prepa-
nosos e os viciosos (scelerati et vitiosi ), aqueles que estão no inferno as preces rados para o reino. Levantar-me-ei,
A quinta região, por fim, é a do paraíso supraceleste onde os bem- .ilo inúteis porque a porta da miseri- pois, para os ajudar: interpelarei
-aventurados vêem a Santíssima Trindade cara a cara, como diz o pseu- córdia está fechada para eles e a espe- com os meus lamentos, implorarei
rança de salvação é-lhes interdita. Em com os meus suspiros, intercederei
do-Bernardo; é a cidade do Grande Rei, como diz o pseudo-Pedro
compensação, por aqueles que são com as minhas preces, satisfarei pelo
Damião. sacrificio (da missa) (sacrificio singu-
corrigidos nos lugares purgatórios é
Sobre um fundo com grandes analogias, cada um dos dois textos apre- preciso ter o cuidado de rezar, de os lari) para que, se por acaso o Senhor
senta variantes. Para não fatigar o leitor, apenas recorro ao exemplo de ajudar pelo sacrificio (da missa) (sa- vir e julgar (Êxodo, V, 21), converta
uma única região, a terceira, aquela onde se encontra o nosso Purgatório. crificio singulari ), para que o Pai be- os trabalhos em repouso, a miséria
nevolente transforme depressa a sua em glória, os golpes em coroas. Por
penitência em satisfação, a sua satis- estes deveres e outros semelhantes a
Pseudo-Pedro Damião Pseudo- Bernardo fação em glorificação. Corre por en- sua penitência pode ser abreviada,
tre eles com um íntimo sentimento os seus trabalhos terminados, a sua
Tendo pois deixado o mundo e a A terceira região é a região da ex- de piedade e leva como bagagem a pena eliminada. Percorre pois, alma
forma de vida escolhia (o claustro), piação. Há três lugares por onde as compaixão. fiel, a região da expiação e vê o que
passa à terceira região que é a região almas dos mortos são distribuídas lá se passa e nesta convivência faz
da expiação. Nesta região o Pai bene- em função dos seus diferentes méri- da compaixão a tua bagagem.
volente examina os seus filhos man- tos: o inferno, o purgatório e o céu.
chados de ferrugem, como se Aqueles que estão no inferno não po-
examina a prata; conduz através do dem ser resgatados porque no inferno Apesar das diferenças entre estes dois textos, a analogia de estrutura e
fogo e da água para levar ao refrigé- não existe redenção alguma. Aqueles de pensamento é o que mais impressiona, reforçada por algumas expres-
rio (refrigerium, Salmo LXV). Deve- que estão no purgatório esperam a sões idênticas. Uma das principais diferenças é a utilização de loca
mos distinguir três lugares por onde redenção, mas têm de ser primeiro purg atoria (lugares purgatórios) pelo pseudo-Pedro Damião e de
as almas são distribuídas em função torturados, quer pelo calor do fogo purgatorium pelo pseudo-Bernado.
da diferença dos seus méritos. Para quer pelo rigor do frio ou por qual- Poderia pois pensar-se que estes textos têm dois autores diferentes que
o céu voam imediatamente aquelas quer outra pena severa. Aqueles que ou se inspiraram na mesma fonte ou um deles, provavelmente o pseudo-
que usaram a morada do corpo co- estão no céu rejubilam com a alegria
-Bernardo, conheceu o outro e foi por ele fortemente influenciado. Não é a
mo uma prisão, que conservaram a da visão de Deus, irmãos do Cristo
em sua natureza, co-herdeiros na gló-
hipótese que adoptarei. Os especialistas de Pedro Damião lançaram a
substância humana pura e sem mácu-
las. Pelo contrário aqueles que, até à ria, semelhantes na eterna bem-aven- ideia de que o autor do falso sermão de Pedro Damíão poderia ser Nico-
morte, praticaram actos dignos da turança. Como os primeiros não lau de Clairvaux conhecido como «falsário hábil» (egerissen Fãlscher»,
morte, são enviados para os lugares merecem ser resgatados e os terceiros diz F. Dressler). Ora Nicolau foi secretário de S. Bernardo e sabe-se
infernais sem misericórdia. Aqueles não precisam de redenção, resta-nos que forjou textos falsos de S. Bernardo. Os dezanove sermões falsamente
que não são nem uns nem outros e passar por entre os intermédios por atribuídos a Pedro Damião encontram-se originariamente num manuscri-
estão entre ambos, que cometeram compaixão, depois de termos estado to da Biblioteca do Vaticano onde emparceiram com sermões de S. Ber-
pecados mortais mas que, quando unidos a eles por humanidade. Irei nardo (ou atribuídos a S. Bernardo). E verdade que o sermão 42 não se
da aproximação da morte, fizeram para essa região e terei essa grande encontra lá, mas a coexistência destes dois conjuntos de sermões é pertur-
penitência sem a terminarem, indig- visão (Êxodo, Ill, 3) pela qual o Pai badora, Suspeito de que Nicolau de Clairvaux é o autor dos dois sermões
nos de entrar logo no júbilo mas piedoso, para glorificar os seus filhos, e, com o seu génio de falsário, fez de um uma imitação de Pedro Damião
não dignos de arder eternamente, re- os abandona nas mãos do tentador,
e do outro uma imitação de S. Bemardo'".
cebem por sua vez os lugares purgató- não para serem mortos mas purga-
rios onde são flagelados, mas não até dos; não por cólera mas por miseri-
Se os dois sermões não são obra dos ilustres santos a quem são atri-
à inconsciência (?insipientia) para de córdia; não para sua destruição mas buídos, constituem em compensação testemunhos excelentes - verídicos
lá saírem e serem transferidos para o para sua instrução, para que daí em desta vez - do nascimento do Purgatório e da formação do sistema de um
reino. Por aqueles que estão no céu diante eles não sejam vasos de cólera triplo além: Céu, Purgatório, Inferno. Ou o pseudo-Pedro Damião é an-
não há necessidade de rezar, pois é a bons para perecer (Romanos, IX, 22- terior e a expressão loca purgatoria se explica assim, enquanto o pseudo-

194 195
-Bernardo foi composto quando o Purgatório (purgatorium) já existe: ou
então, se os dois textos são obra de um mesmo falsário que se inspirou século xnr". O capítulo XXXIV é dedicado à ilustração das penas das
decerto em obras autênticas talvez mesmo num esboço bernardino deste almas depois da morte (De penis animarum post mortem} e começa por
11m excerto da visão do santo Fursy, e Bede. Apresenta a seguir várias
sermão, ele atribuiu, consciente ou inconscientemente, a cada pseudo-au-
tor o vocabulário que parecia convir-lhe, ainda que loca purgatoria não se outras visões depois de ter declarado que «penas muito pesadas são in-
encontre na primeira metade do século XI, nem purgatorium na primeira nig~das no Purgatório (in purgatorio) por excessos que consideramos
metade do século XII. Que esse falsário seja Nicolau de Clairvaux é, cro- muito leves». E outro testemunho da existência do Purgatório, palavra
nologicamente, perfeitamente possível. Os dois manuscritos mais antigos c crença. Entre estas visões, uma é apresentada como tendo sido extraída
onde se encontram o sermão do pseudo-Bernardo e a palavra da vida de S. Bernardo. Eis a historieta:
purgatorium foram muito provavelmente copiados no fim do terceiro «Um irmão animado de boas intenções mas tendo para com os outros
quarto do século xn!'. Ora Nicolau de Clairvaux morreu depois de irmãos um comportamento excessivamente severo e menos compassivo
1176. Seríamos assim reconduzidos ao decénio 1170-1180. do que deveria, morreu no mosteiro de Clairvaux. Poucos dias depois
O autor do sermão atribuído a S. Bernardo, mesmo que só tenha sido de ter morrido, apareceu ao homem de Deus (S. Bernardo) com um ar
um retocado r ou um falsário integral, compôs um texto que ia no mesmo lugubre e um aspecto lamentável, mostrando bem que nem tudo se pas-
sentido do grande cisterciense. Este tinha, com efeito, uma percepção do sava segundo os seus desejos. Bernardo perguntou-lhe o que lhe tinha
além muito especial. No quarto sermão para a consagração da Igreja acontecido e ele queixou-se de ter sido entregue às quatro torturas. A
Sobre a Casa Tripla permite-se, a propósito do Paraíso, esta efusão: «Ó estas palavras, foi empurrado por trás e levado precipitadamente perante
Casa maravilhosa, preferível às amadas tendas, aos templos desejáveis!... () olhar do homem de Deus. Este, com grandes lamentos, gritou-lhe nas
Sob as tendas, geme-se em penitência; nos templos, experimenta-se a ale- costas: "Peço-te em nome do Senhor que me dês a conhecer em breve a
gria; em ti saciamo-nos de glória 14.•. » tua situação." Pôs-se a rezar e pediu a alguns irmãos cuja grande santi-
dade bem conhecia que oferecessem por aquele irmão o sacrifício euca-
rlstico e que o ajudassem também eles. E não desistiu até, alguns dias
Os primeiros a passar pelo Purgatório: S. Bernardo depois, ser informado por uma outra revelação, conforme pedira, de
que o irmão merecera alcançar o conforto da libertação.»
Por ironia da história, S. Bemardo, pai putativo do Purgatório mas a Esta pequena história - bem como as outras que lhe fazem companhia
quem devemos renunciar atribuir «essa invenção», aparece como o pri- no manscrito - é o mais antigo testemunho que conheço de histórias de
meiro beneficiário individual conhecido da crença desse novo lugar. Uma aparições de almas do Purgatório expressamente mencionado, as quais
carta de Nicolau de Saint-Alban a Pierre de Celle, portanto anterior à irão popularizar a crença no novo lugar do além do século XIII. Desde
morte deste em 1181 e provavelmente de 1180-1181, afirma que S. Ber- jil faço simplesmente notar que se trata de um espectro muito especial,
nardo fez uma breve passagem pelo Purgatório antes de entrar no Parai- muito vigiado, sujeito a um duplo controlo, o dos seus carrascos no
so. Porquê esta purgação do santo? S. Bernardo era hostil à ideia da além, que limitam ao mínimo as suas aparições, e o dos que o ajudam
lmaculada Conceição da Virgem, ainda que muito devoto de Maria. O. câ em baixo e lhe pedem que Ihes preste contas com exactidão.
partidários desta crença pretenderam, para abalar as imaginações e des- Surge agora um conjunto de testemunhos irrefutáveis sobre a palavra
considerar os seus adversários, que o abade de Clairvaux fora, por este purgatório que provam a sua existência nos últimos anos do século XII e
ligeiro erro, (benignamente) sancionado. O tema da passagem dos ho- nos primeiros do século XIII. Provêm sobretudo de teólogos.
mens célebres pelo Purgatório expandir-se-á no século XIII. Parece que
S. Bernardo terá inaugurado a série. Filipe Augusto, que reinou entre
1180 e 1223, terá sido o primeiro rei de França a passar pelo Purgatório. Os primeiros teólogos do Purgatório: Pedro, o Chantre, e Simão de Tournai
Reencontramos S. Bernardo, decididamente ligado ao nascimento do
Purgatório, num interessante manuscrito cisterciense do fim do século XII Julgo que quem integrou o Purgatório no sistema e no ensino da teo-
que é uma das primeiras recolhas de exempla, essas historietas introduzi- logia foi Pedro, o Chantre, cuja importância na construção da escolástica
das subrepticiamente pelos pregadores nos seus sermões e que desempe- é cada vez mais reconhecida. Este mestre da escola de Notre-Dame de
nharam, como se verá, um grande papel na difusão do Purgatório no Paris, falecido em 1197, foi sem dúvida a pessoa que, lançando o olhar
sobre o mundo que à sua volta se transformava nos comportamentos
196
197
económicos, nas estruturas sociais e políticas, e nas mentalidades, melhor passagem, ele não é um lugar mas sim um estado!". Noutra das suas
teorizou e captou no encadeamento da casuística as novidades de um obras, talvez a mais conhecida, o Verbum abbreviatum, que alguns datam
mundo urbano e monárquico'", de 1192, Pedro, o Chantre, interroga-se sobre qual a quantidade e a in-
É ainda a propósito da penitência que encontramos o purgatório na tensidade de penitência que podem igualar o fogo purgatório. Emprega
sua Súmula sobre os sacramentos e os conselhos da alma (Summa de sa- igualmente os termos fogo purgatório e purgatório, comportamento habi-
cramentis et animae consiliis), Ao falar do pecado venial, Pedro, o Chan- tual nesta época e que voltaremos a encontrar no século xnr".
tre, chega a afirmar que por sua causa é infligida no Purgatório (in Outro célebre professor parisiense falecido em 1201, Simon de Tour-
purgatorio ) uma determinada pena. Ataca em seguida aqueles que jul- nai, aluno de Odon d'Ourscamp, deixou as Disputas (Disputes - Dispu-
gam que os condenados passam também pelo Purgatório (per purgato- tationes), género lançado por Abelardo e que, apesar da hostilidade dos
rium ) antes de irem para o Inferno, e que lá são purgados e perdoados. É conservadores (S. Bernardo, Hugo de Saint- Victor que nem nele fala,
absurdo, argumenta o Chantre, pois nesse caso a situação dos eleitos não João de Salisbury, Estêvão de Tournai), entra no ensino da teologia na
seria melhor do que a dos condenados. Pedro, o Chantre, toca então no segunda metade do século XIII e é introduzido por Pedro, o Chantre, na
ponto essencial: «É preciso distinguir os lugares dos bons e os lugares dos exegese bíblica. Simão de Tournai fala do Purgatório em três disputas'",
maus depois desta vida. Para os bons, é ou o Paraíso (patria) imediata- Na disputa XL, responde à pergunta: é possível adquirir-se ainda méritos
mente se não levam consigo nada para queimar, ou primeiro o Purgatório depois da morte? Alguns avançam que se adquirem méritos pelos sofri-
(purgatorium ) e depois o Paraíso, por exemplo, no caso daqueles que mentos suportados no Purgatório. A expressão usada é not s) purgató-
levam consigo pecados veniais. Para os maus não se refere receptáculo rio(s) (in purgatoriis) que vimos atrás. Mas na sua resposta Simão,
e diz-se que vão imediatamente para o Inferno». O Chantre afirma a que é hostil a esta concepção, depois de ter afirmado que depois desta
seguir que o Purgatório apenas acolhe os predestinados (eleitos) e enume- vida não há qualquer lugar onde se possa adquirir méritos, emprega qua-
ra de novo diversas opiniões. Há, por exemplo, quem diga que os maus tro vezes a palavra purgatório, duas vezes para evocar o sofrimento do
passam realmente pelo Purgatório, mas que este não é para eles um Purgatório (passio purgatorii), uma vez para falar da pena do Purgatório
Purgatório verdadeiro mas simplesmente um veículo que os conduz para (pena purgatorii) e uma vez ao fazer alusão à travessia do Purgatório
o fogo eterno. Outros dizem que o pecado venial é punido pela pena (transeundo purgatorium). Na disputa LV há duas perguntas referentes
eterna por causa da impenitência final no momento da morte. Mas, ao Purgatório. Uma é para saber se o fogo purgatório pode ser uma pena
diz o Chantre, a impenitência é a causa sem a qual não haveria condena- eterna, a outra se graças aos sufrágios da Igreja se pode ser inteiramente
ção eterna mas não é a causa dela. Nestes poucos parágrafos o substan- isento do Purgatório. À primeira pergunta Simão responde um pouco a
tivo purgatorium surge frequentemente, nove vezes exactamente. Em contragosto, sublinhando que o problema não reside em saber se se co-
Paris pelo menos, a palavra e a ideia são já visivelmente correntes no meteu um pecado venial ou mortal, mas sim se se morreu impenitente ou
fim do século e o sistema Inferno-Purgatório-Paraíso parece estar insta- não; à segunda responde pela afirmativa, referindo que um morto pode,
lado' enquanto vivo, ter merecido ser completamente liberto do Purgatório
Numa outra passagem do De sacramentis onde se trata da remissão pelos sufrágios da Igreja, e que pode mesmo ter merecido nem sequer
dos pecados veniais, Pedro, o Chantre, recorda que «os nossos mestres entrar no Purgatório (ne intraret purgatorium). Como se vê nesta dispu-
dizem que o pecado venial é remido pela pena do Purgatório (per penam ta, Simão de Tournai emprega com grande discernimento purgatorium,
purgatorli] e não pela penitência. Mas o Chantre não é dessa o~inião. O subtantivo que designa um lugar, e fogo purgatório (ignis purgatorius)
substantivo Purgatório é usado duas vezes em poucas linhas 8. Numa para descrever a pena que lá se sofre.
terceira parte, recolha de casos de consciência, Pedro, o Chantre, respon- Na disputa LXXIII, enfim, Simão responde à pergunta sobre se as
de à pergunta: poderá a esmola resgatar os pecados veniais? «Há dois almas são punidas por um fogo material no Purgatório ou no Inferno.
purgatórios, um no futuro depois da morte, que pode ser encurtado prin- Designa o Purgatório quer pelo substantivo purgatorium quer pela fórmu-
cipalmente por meio da celebração de missas e secundariamente por ou- la mais antiga in purgatoriis (no(s) purgatório(s), subentendendo-se luga-
tras boas obras. O outro purgatório é a penitência imposta, que pode res). A sua resposta é que no Inferno existirá um fogo corporal mas que
igualmente ser mitigada pelas mesmas coisas.» Vê-se por aqui que o no Purgatório deve tratar-se de um fogo espiritual, metafórico, de uma
Chantre, mesmo considerando o Purgatório um dado adquirido, não pena muito severa, pois o fogo representa a mais severa de todas as penas
tem dele, em todo o caso, uma visão puramente espacial; nesta última corporais.

198 199
Faço ainda notar que um outro professor parisiense célebre, Pedro de -de-obra da praça de Greve - as grandes verdades do cristianismo são
Poitiers falecido em 1205, que num texto das suas Máximas utilizou todo repensadas e remodeladas com fervor e criatividade, Mundo onde as
o arsenal das expressões antigas que precederam a palavra purgatório, ideias fervem, o debate irrompe, as opiniões chocam-se pacificamente.
empregou também o substantivo na mesma obra, se é que o copista Os mestres e os estudantes tomam notas, redigem febrilmente as recolhas
não omitiu a palavra fogo {ignem): «Eles passarão pelo purgatório» de perguntas, de disputas, de referências onde, apesar da autoridade de
(transibunt per purgatorium ) 2. alguns mestres eminentes, já não se sabe bem quem é o autor desta ou
Último testemunho do aparecimento do substantivo purgatorium mes- daquela ideia, e onde se confrontam as posições mais diversas, por vezes
mo no fim do século XII: a sua presença num texto já não teológico mas levadas até ao absurdo: «uns dizem ... », «outros pensam ... », «outros ainda
hagiográfico. Trata-se de uma passagem de uma vida do santo Victor, supõem ... ». É o belo tempo da irrupção escolástica. Mas não vai durar. A
mártir de Mouzon, que define o Purgatório (pur~atorium) como um lu- partir de 1210 o domínio da Igreja e da monarquia afirma-se. Acendem-se
gar de combustão, como a prisão da purgação 3. Antes de apresentar as fogueiras onde se queimam os livros e os homens. Simples aviso. A
alguns textos e alguns problemas que me parecem importantes para es- escolástica vai conhecer grandes dias, as suas maiores glórias, no século
clarecer o significado do nascimento do Purgatório no fim do século XII e XIII. Mas essas catedrais intelectuais, as grandes colectâneas do século de
no princípio do século XIII, pode ser útil fazer agora o ponto da situação s. Luís, são monumentos bem ordenados de que foram banidas as diva-
no que toca a esse nascimento. gações e as efusões. O que, aliás, não será bastante para os censores do
século uma vez que, em 1270 e 1277, o bispo de Paris, Étienne Tempier,
vai virar a sua artilharia para tudo o que parecer original e novo, para um
A Primavera parisiense e o Verão cisterciense Siger de Brabant a quem censuram aquilo que não disse, para um Tomás
de Aquino, menos audacioso do que se julga. O Purgatório nasce com a
Consultei o maior número possível de documentos emanados das di- Primavera da escolástica, nesse momento de criatividade excepcional que
versas regiões da cristandade e estudei especialmente as obras emanadas assiste à confluência efémera do intelectualismo urbano e do ideal monás-
dos principais centros de produção intelectual e cultural na viragem do tico.
século XII para o século XIII. Creio poder afirmar com bases sólidas que O segundo meio de aparecimento do Purgatório é na verdade Cister.
dois meios firmaram a crença e lançaram a palavra de purgatório. O Pouco importa que S. Bernardo não tenha inventado o Purgatório. A
primeiro, o mais activo, foi o meio intelectual parisiense e, em particu- atenção especial que os cistercienses prestam às relações entre os vivos
lar, a escola catedrática, a escola do capítulo de Notre-Dame da qual e os mortos, o novo impulso que depois de Cluny - que discutem mas
nunca se elogiará suficientemente o papel capital que desempenhou antes que continuam - dão à liturgia do princípio de Novembro, associando
da animação intelectual passar para a margem esquerda e para os ensi- os santos e os mortos, leva-os até às fronteiras do Purgatório. Os laços
namentos da nova universidade, especialmente à volta dos mestres men- que mantêm com os meios intelectuais urbanos fizeram, sem dúvida, o
digos, os dominicanos e os franciscanos. resto. Muitos mestres universitários, parisienses principalmente, Odon
Um movimento teológico importante já instalado na margem esquer- d'Ourscamp, Pedro, o Devorador, Pedro, o Chantre, Alain de LiIle, aca-
da precedeu e alimentou no século XII, e principalmente na sua primeira bam os seus dias em mosteiros cistercienses. É na encruzilhada dos dois
metade, este ímpeto. As abadias de Saint-Victor e de Sainte-Geneviêve meios, entre 1170 e 1200, talvez no decénio 1170-1180 mas com certeza
foram as suas principais animadoras. Será necessário relembrar os no- nos dez últimos anos do século, que aparece o Purgatório.
mes e a relevância das escolas de Hugo de Saint-Victor, de Abelardo e
dos seus discípulos?
Mas é a partir da docência e das obras de Pedro Lombardo, ao redor o Purgatório e a luta contra a heresia
dos mestres e chanceleres da escola de Notre-Dame, com especial menção
para Odon d'Ourscamp, Pedro, o Devorador e Pedro, o Chantre, que É preciso ter em conta uma terceira frente: a luta anti-herética. Na
irrompe a explosão intelectual. No coração do Paris de Luís VII e do viragem do século XII para o século XIII, um certo número de autores
jovem Filipe Augusto, no contacto com os cambistas nas cobertas dos eclesiásticos contribuíram grandemente para o nascimento do Purgató-
barcos, com os empresários da navegação no Sena, com os artesãos e rio. Esses autores têm em comum o facto de terem lutado contra os he-
os operários - mercadoria humana já explorada no mercado de mão- reges e terem utilizado de novo o Purgatório como instrumento de

200 201
combate. O Purgatório, como muitas crenças, não nasceu somente de chefe, mas eles não têm chefe e chamam-se a si próprios, frontalmente,
tendências positivas, da reflexão dos intelectuais e da pressão das mas- Apostólicos. São hostis ao matrimónio, ao baptismo, às orações pelos
sas, mas também de anseios negativos, da luta contra os que não acredi- mortos e ao culto dos santos; são vegetarianos (não comem nada que
tavam nele. Esta luta indica que o Purgatório tem então implicações provenha do coito, portanto dos animais). S. Bernardo, apoiando-se
importantes. É contra os hereges nos séculos XII e XIII, contra os gregos em Matias, XII, 32, opõe-lhes a existência não do Purgatório ainda igno-
entre os séculos XIII e XV e contra os protestantes nos séculos XVI e XVII rado, mas do fogo purgatório, e afirma a eficácia dos sufrágios pelos
que a Igreja romana põe em funcionamento a doutrina do Purgatório. A rnortos'".
continuidade dos ataques contra o Purgatório da parte dos adversários A linha de Arras é clara, mesmo sem ter tido continuidade e filiação
da Igreja romana oficial é impressionante. Todos pensam que o destino directa. A recusa do Purgatório vai reencontrar-se no fim do século XII e
dos homens no além só pode depender dos seus méritos e da vontade de no começo do século XIII entre novos hereges: os Valdenses e os Cátaros.
Deus. Tudo é decidido, pois, quando se morre. Os defuntos vão directa- Entre eles a hostilidade ao Purgatório faz parte de sistemas religiosos
mente (ou depois do Julgamento Final) pau o Paraíso ou para o Inferno, diferentes, apesar da presença de elementos heréticos tradicionais.
mas não existe qualquer resgate entre a morte e a ressurreição: portanto Mas sobre este ponto a posição de todos estes novos hereges é pratica-
não existe Purgatório, e é inútil rezar pelos mortos. Para estes hereges que mente a mesma: os vivos nada podem pelos mortos, os sufrágios são
não gostam da Igreja, é também a oportunidade para lhe negar qualquer inúteis. Entre os cátaros, a doutrina da metempsicose exclui sem dúvida
papel depois da morte, para lhe recusar esse prolongamento do seu poder o Purgatório porque tem a mesma função de purificação «temporária».
sobre os homens. O primeiro texto desta querela é certamente o do abade agostiniano Ber-
Já vimos o processo dos hereges de Arras, combatidos por Gerardo de nardo de Fontcaude que entre 1190 e 1192 escreve um Livro Contra os
Cambrai no princípio do século Xl. Reencontramos o problema no prin- Valdenses (Liber contra Waldenses). A palavra purgatório não aparece
cípio do século XII entre os hereges, quer individualizados quer anónimos mas o sistema dos três lugares do além é descrito com um clareza toda
no seio de um grupo. É o caso de Pierre de Bruys, contra quem o célebre nova26•
abade de Cluny, Pedro, o Venerável, escreveu um tratado. E é ainda mais No capítulo X Bemardo de Fontcaude combate os «que negam o fogo
o do seu discípulo mais radical, o monge e depois vagabundo Henrique purgatório e dizem que a alma, ao separar-se do corpo, vai para o Céu ou
que, em Lausanne e em Mans cerca de 1116 e noutros locais desconheci- para o Inferno». Opõe-Ihes três autoridades: a primeira epístola de Paulo
dos, prega ideias na linha das de Arras, o que lhe vale ser preso em 1134 e aos Corintios, Agostinho no Enchiridion e o capítulo XIV de Ezequiel
levado perante o concilio de Pisa. Um tratado anónimo escrito na primei- onde Javé declara que as preces dos justos não poderão libertar o povo
ra metade do século XII esforça-se por refutar Henrique e os seus parti- infiel e que este terá de se libertar a si mesmo. Comenta S. Paulo dizendo
dários. Atribui aos adversários a ideia de que «nada pode ir em socorro que estas palavras aplicam-se «ao fogo da purgação futura»; comenta
dos mortos que, logo que morrem, são condenados ou salvos», o que lhe Agostinho declarando que Deus expurga os pecados quer pelo baptismo
parece «abertamente herético». Baseando-se no conjunto do processo e pelo fogo da atribuI ação temporária (cá em baixo), quer no fogo da
tradicional da Igreja (11Macabeus XII, 41-45 ... , Mateus XII, 31, I Corín- purgação; comenta Ezequiel, concluindo que Javé ordena que o povo
tios, lU, 10-15, o De cura pro mortuis gerenda de Santo Agostinho), afir- infiel seja colocado no fogo purgatório.
ma a existência de dois fogos, o fogo purgatório e o fogo eterno. «Há, É no capítulo XI que se situa a passagem mais interessante. Certos
sustenta ele, pecados que serão apagados no futuro (no além) pelas esmo- hereges pretendem que os espíritos dos defuntos, antes do Julgamento
Ias dos amigos e pelas preces dos fiéis ou pelo fogo purgatório ".» Final, não entram nem no Céu nem no Inferno e são recebidos noutros
Reencontramos aqui S. Bernardo. Num sermão sobre o Cântico dos receptáculos. Bernardo afirma que eles se enganam: «Há de facto três
Cânticos, escrito em 1135 e escrito de novo em 1143-1145, Bernardo ataca lugares que recebem os espíritos libertos da carne. O Paraíso recebe os
os hereges que «não crêem que o fogo purgatório existe depois da morte e espíritos dos perfeitos, o Inferno os inteiramente maus, o fogo purgató-
julgam que a alma, quando se separa do corpo, vai ou para o repouso ou rio aqueles que não são inteiramente bons nem inteiramente maus. Assim
para a condenação». A estes hereges, Bernardo, conforme a atitude ha- um lugar inteiramente bom recebe os inteiramente bons; um lugar extre-
bitual da Igreja, trata-os de animais pérfidos e declara, com o desprezo do mamente mau recebe os inteiramente maus; um lugar medianamente mau
clérigo nobre, que «são boçais, iletrados, totalmente desprezíveis». Tenta recebe os medianamente maus, e é menos duro do que o Inferno mas pior
dar-lhes nomes, segundo o que é hábito, de acordo com o nome do seu do que o mundo''?»,

202 203
31 E
ticos ) «deixou cair a questão do Purgatório» ..
. m compensaçao,-
Bernardo de Fontcaude não conhece pois o Purgatório mas apenas o abordou o problema nos seus tratados sobre a penitência e a prédi~a.
fogo purgatório. Mas este tomou-se um lugar, o além entre a morte e o Jul- Na sua Súmu/a sobre a Arte da Pregação (Summa de arte praedicato-
gamento Final é triplo e, pela primeira, vez o (Purgatório) é definido como ria), declara a propósito da penitência: «Existe um fogo triplo: purgató-
um lugar duplamente intermédio, médio: topográfica e judicialmente. rio, probatório e decisivo. O purgatório é a reparação dos pecados, o
Conhece-se mal Ermangaud de Béziers (também existem vários perso- probatório o exame (tentatio ) e o decisivo a c~ndena?ão eter~a. "», O
nagens com este nome) mas o seu tratado contra os Valdenses (Contra fogo purgatório é duplo: um tem lugar no caminho (ca em baixo), e a
Wa/denses) data muito provavelmente dos últimos anos do século XII ou penitência; outro depois da vida, é a pena purgató~a. Se n~s expurgamos
logo dos primeiros do século XIII. No capítulo XVII ele ataca as opiniões no primeiro, ficamos isentos do segun~o e .do terceiro; s~ ~ao sofr~rmos o
perversas de certos hereges que asseguram que as preces dos santos não primeiro sofreremos o segundo ... O pnmeiro, o Purgatono, exclui os ou-
ajudam os vivos e que os defuntos não são confortados pelas oferendas e tros dois ... o fogo purgatório não é senão a sombra e o retrato do segun-
as orações dos vivos. Contra eles, Ermengaud afirma que há três espécies do e assim como a sombra e o retrato do fogo material não provoca
de defuntos: os inteiramente bons que não precisam de ajuda, os inteira- qualquer dor ... também o fogo penitência não é amargo em comparação
mente maus pelos quais nada se pode fazer porque no Inferno não existe com o segundo fogo purgatório»; e cita Agostinho ". O q~e ~n~eressa p~is
redenção, e uma terceira categoria, os que não são inteiramente bons nem u Alain de Lille é a penitência, e nessa época de extraordinária ~~oluçao
inteiramente maus, que se confessaram mas que não terminaram a sua da penitência, ele identifica o fogo da atribulação terrena admitido por
penitência. Ermengaud não só não pronuncia a palavra purgatório como Agostinho com a penitência cá neste mundo. . .
também não emprega qualquer palavra da família de purgare. Diz ele que No seu tratado sobre a penitência, o Liber poenitentia/is, redigido de-
esses mortos «não são nem condenados nem imediatamente salvos, mas pois de 1191 e de que existem várias versões entre as quai~ uma ~onga
que sao- puni id os enquanto esperam a sa Ivaçao»
- 28 .
escrita entre 1199 e 1203, Alain interroga-se sobre se a Igreja, por mter-
Uma Súmula contra os Hereges, do início do século XIII, erradamente médio do' bispo ou do padre, pode perdoar a penitência na absolvição. ~s
atribuída a Prévostin de Cremona, chanceler de Paris falecido em 1210, ideias de Alain podem parecer desconcertantes: para ele, o fogo purgato-
acusa alguns hereges chamados «Passagins» de se recusarem a orar pelos rio propriamente dito é o da penitência aqui e~ baixo; e li~ita o pod~r Ado
mortos. Depois de ter refutado a interpretação que eles fazem da história bispo ou do padre ao perdão da pe?a purgatona, quer d~zer d~ pemten-
do pobre Lázaro e do mau rico, relegando para o passado, anteriormente cia; mas a Igreja nada pode para alem da morte, o que nao sera o enten-
à descida do Cristo aos infernos, a existência do seio de Abraão ou dimento do clero do século XIII33.
«limbo do inferno» que ocupa o inferno superior em relação ao inferno Nestes textos Alain de Lille, que dispõe de um vocabulário simulta-
médio e ao inferno inferior, o pseudo-Prêvostin apresenta a sua solução neamente tradicional e novo fala tanto do fogo purgatório (ignis purga-
para o problema das preces pelos mortos. Deve-se rezar «pelos mediana- torius) e da pena purgatoria (poena purgatoria ) como do Pu~gatóri?
mente bons que estão no Purgatório, não para que se tornem melhores propriamente dito. Usa notoriamente o substantivo numa questao parti-
mas para que sejam libertados mais cedo, e pelos medianamente maus cularmente interessante que comentarei adiante a propósito do «tempo
não para que sejam salvos mas para que sejam menos punidos.» O pseu- do purgatório»: «Pergunta-se se aquele que d~via cuo:prir (uma penitên-
do-Prêvostin revela-se pois muito agostiniano e distingue entre a purga- cia aqui em baixo) de sete anos e não a cu~pn?, ficar~ ~urante sete anos
ção no Purgatório, que existe, e a «condenação mais tolerável» que tem no Purgatório. Respondemos nós: ele terminara sem dúvida esse dever no
provavelmente lugar no Inferno. A doutrina católica sobre os sufrágios Purgatório, mas ~uanto tempo lá ficará isso só o sabe aquele que pes~ as
apoia-se para ele nas seguintes autoridades: o segundo livro dos Maca- penas na balança 4,» O que significa pôr o pr?~lema da p~oporclOnahda-
beus, 12, o versículo dos Provérbios, XI, 7: «Quando o justo morre, a sua de das penas do Purgatório e abrir a contabilidade do alem.
esperança não morre», comentado por Bede (cf. PL, 91, 971) e sobretudo
Mateus XII 32 «onde se demonstra claramente que certos pecados são
, '.' . 29
remidos na Vida futura». Deve-se pOIS rezar pelos mortos . o atraso dos canonistas
O caso de Alain de Lille é diferente. Trata-se, antes de mais, de um
mestre de primeiro plano?". Professor na incipiente universidade de Contemporâneo da expansão teológica de que Paris é o centro, ou-
Montpellier, falecido em 1203, empenha-se na luta contra os hereges val- Iro movimento intelectual agita a cristandade da segunda metade do
denses e cátaros, mas no seu tratado Contra os Hereges (Contra Haere-
205
204
século XII - a efervescência do direito canónico, cujo centro intelectual, Uma carta e um sermão de Inocência III
institucional e político é Bolonha. Já o mencionei a propósito desse texto
essencial que é o Decreto de Graciano (cerca de 1140). Ora, quando do o primeiro é, aliás, o Papa Inocêncio 111(1198-1216). É notável que o
nascimento do Purgatório, o movimento canonista parece estranhamente pontífice tenha aceitado tão depressa as novas concepções. Numa carta
ausente. Monsenhor Landgraf já o notara de um modo mais genérico: ao arcebispo de Lyon, em 1202, o Papa mostra-se circunspecto. Sobre as
«Não podemos no entanto esconder, escrevia ele em 1948, que em geral conclusões a tirar da diferenciação agostiniana (retomada no Decreto de
os canonistas, longe de promoverem o progresso sistemático em teologia, Graciano) entre as quatro categorias de defuntos: os inteiramente bons,
contentam-se a maior parte das vezes com entravar-lhe o passo ".» Um os inteiramente maus, os medianamente bons e os medianamente maus, e
canonista autor de um dos primeiros comentários ao Decreto de Gracia- da eficácia dos sufrágios dos vivos por intermédio da Igreja, em acções de
no, a Suma cotoniensis, de 1169, ao referir-se aos sufrágios pelos mortos e graça para os inteiramente bons, em consolações para os vivos para os
portanto ao Purgatório, confessa-o: «Não tratei esta questão por ela dizer inteiramente maus, em expiações para os medianamente bons e em pro-
respeito mais aos teólogos do que aos canonistas"'.» Não é pois de estra- piciações para os medianamente maus, ele remete-se ao discernimento do
nhar que o grande canonista do fim do século XII Uguccione (ou Hugu- prelado'". Mas num sermão para o Dia de Todos-os-Santos sobre os dois
cio) de Pisa, na sua Súmu/a dos Decretos (Summa Decretorum) terminada serafins, os três exércitos e os cinco lugares onde estão os espíritos dos
entre 1188 e 1192, afirme que o tempo da purgação vai do momento da mortos, é muito mais conciso.
morte até ao do Julgamento Final; no que toca ao lugar dessa purgação, Os dois serafins são os dois Testamentos. Os três exércitos são a Igreja
recorda que Agostinho falou de lugares secretos, escondidos (é o texto triunfante no Céu, a Igreja militante na terra e a Igreja «que está no
reproduzido no Decreto de Graciano) e confessa que também ele o igno- Purgatório». A primeira age no louvor, a segunda na luta e a terceira
ra «Ignoro et ego ... 37» no fogo. Na primeira epístola aos Coríntios, Paulo faz alusão à tercei-
Todavia este silêncio não durará muito pois os canonistas aperce- ra. E há ainda os cinco lugares onde se encontram os espíritos huma-
bem-se rapidamente de que a questão é actual e importante e também nos. O lugar supremo é o dos supremamente bons, o lugar ínfimo o
lhes diz respeito, Nos primeiros anos do século XIII Sicard de Crémone, dos supremamente maus; o lugar do meio é para os que são bons e
falecido em 1215, escreve ao comentar Graciano (quer dizer Agostinho): maus: entre o lugar supremo e o lugar do meio existe um lugar para os
«É preciso entender que se trata daqueles que estão no Purgatório, mas medianamente bons; entre o lugar dos meio e o lugar ínfimo há um lugar
alguns pensam que se trata dos que são atormentados no Purgatório e para os medianamente maus. O lugar supremo é o Céu, onde estão os
cujas penas podem, todas elas, ser mitigadas".» É interessante notar bem-aventurados. O ínfimo é o Inferno, onde estão os eternamente con-
que, no manuscrito da Summa Coloniensis de que falei atrás, uma denados, o do meio é o mundo onde existem justos e pecadores. Entre o
mão do século XIII anotou o esquema de Sicard de Cremona, corrigin- supremo e o médio está o paraíso (terreno) onde ainda vivem Énoch e
do assim a confissão de indiferença do autor da Summa. O Purgatório e Elias que morrerão. Entre o médio e o Ínfimo (há o Purgatório) onde
respectivo sistema estão também presentes, por exemplo, nas notas ex- Miíocastigados os que não fizeram penitência cá em baixo ou que levaram
plicativas que João, o Teutónico, falecido em 1245, redigiu pouco de- consigo na morte algum pecado venial. Se bem que haja cinco lugares,
pois de 1215 sobre o Decreto de Graciano. João retoma o texto de apenas existem três exércitos. Os que estão no Paraíso, ainda que perten-
Santo Agostinho e do Decreto sobre os lugares secretos que nos são çarn ao exército de Deus, não formam por si só um exército pois são
escondidos, e afirma a utilidade, para os medianamente bons, dos su- apenas dois. O exército do meio rende hoje homenagens ao exército
frágios graças aos quais eles serão libertados mais rapidamente do fogo que triunfa no céu, e amanhã ergue preces pelos que estão no purgató-
do Purgatório'". rio. Inocêncio 111 acrescenta aqui uma observação de ordem psicológica:
«Com efeito, quem não louvará de boa vontade a indivisível Trindade
pelos santos, por meio de preces e dos méritos com que julgamos ser
ajudados para também um dia estarmos lá onde eles estão? Quem não
Cerca de 1200: o Purgatório instala-se elevará de boa vontade preces à indivisível Trindade pelos mortos, quan-
do ele próprio terá de morrer, quem não fará nesta vida por outrem o que
Suponho que três autores resumem, no começo do século XIII, o novo deseja que façam por ele depois de morto?» E o Papa termina exaltando a
sistema do além resultante do aparecimento do Purgatório: solenidade da Festa de Todos-os-Santos".

206 207
Texto admirável onde se fala por várias vezes do Purgatório e onde Vê-se aqui o Purgatório referido como um facto consumado, adquiri-
Inocêncio lU dá, sob uma forma simbólica tradicional, a expressão mais do e aquele Purgatório integrado simultaneamente na liturgia e na disci-
completa, mais clara, mais elaborada - encerrando a humanidade inteira plina penitencial. Os laços entre os vivos e os mortos estreitam-se.
desde o aparecimento até ao fim dos tempos num plano perfeito, cuja
parte terrena se desenrola sob o estrito controlo da Igreja. A Igreja tor-
na-se ela própria tripla. Agostinho distinguira Igreja «peregrinante» e () antigo e o novo vocabulário do além
Igreja «celeste»; o século XII impusera os novos termos de Igreja «mili-
tante» - expressão lançada por Pedro, o Devorador'f - e a Igreja «triun- Finalmente, torna-se necessário adaptar a velha terminologia do além
fante». Inocêncio 11I acrescenta-lhe a Igreja do Purgatório, enunciando ü nova geografia do outro mundo. Alguns interrogam-se sobre o que
um terceiro termo, que sob o nome de Igreja «sofredora» completará significam, em relação ao Purgatório, as expressões bíblicas, «a goela
mais tarde a triade eclesiástica. É o triunfo da racionalização dos cinco do leão», «a mão do inferno», «o lago do inferno», «os lugares das tre-
lugares apontados pelo pseudo-Pedro Damião e pelo pseudo-Bernardo, O vas» e «tártaro». Numa obra composta cerca de 1200 (nela são mencio-
pontífice, de resto, maravilha-se com este belo arranjo: «Oh! como a ins- nados Pedro, o Chantre, e Prévostin), o autor que é talvez Paganus de
tituição desta prática é conveniente e salutar!»43 Corbeil declara que na prece «liberta as suas almas da goela do leão,
da mão do Inferno, do lago do Inferno» deve entender-se que se trata
do fOfO purgatório em sim mesmo, conforme seja mais ou menos
Purgatório e confissão: Thomas de Chobham forte" . Na sua Súmula, Geoffroy de Poitiers, falecido em 1231, dará ou-
tra explicação: «Mais vale dizer, escreve ele, que há diversas moradas no
O segundo texto é extraído da Súmula dos confessores, do inglês Tho- Purgatório: a umas chama-se lugares obscuros das trevas, a outras mãos
mas de Chobham, formado em Paris no círculo de Pedro, o Chantre. do Inferno, a outras ainda goela do leão e finalmente a outras tártaro. E
Terei oportunidade de voltar a referir-me à confissão, à sua ligação destas penas, a Igreja pede que as almas dos mortos sejam libertadas'".»
com o aparecimento do Purgatório, à influência das decisões do quarto Eis o lugar purgatório por sua vez dividido. A frase de João, XIV, 2:
concílio de Latrão (1215) e à redacção daqueles manuais para confessores «Na casa do meu Pai há numerosas moradas», válida para todo o além, é
que testemunham da subversão da vida espiritual, dos novos problemas por sua vez aplicada a este novo espaço do além. Assiste-se já, por assim
das consciências dos homens, da multiplicação das suas dúvidas sobre o dizer, ao loteamento do Purgatório.
mundo cá de baixo e do além, e dos esforços da Igreja para manter o
controlo sobre a nova sociedade.
A Súmula confessorum, de Thomas de Chobham, foi escrita pouco
antes de Latrão IV e terminada a seguir ao concílio. O Purgatório é men-
cionado a propósito das missas pelos defuntos. «A missa, diz a Súmula, é
celebrada pelos vivos e pelos defuntos, mas por estes duplamente, pois os
sacramentos do altar são petições para os vivos, acções de graça para os
santos e propiciações para os que estão no Purgatório, e têm como resul-
tado a remissão da sua pena. E é para simbolizar esta crença que a hóstia
no altar é dividida em três partes, e uma parte é para os santos, outra
parte para os que vão ser santificados. Aquela tem uma acção de gra-
ça, esta é uma súplica'".»
A Súmula responde em seguida à questão de saber se a missa pelos
defuntos tem alguma eficácia para os condenados que estão no Inferno
- baseando-se no capítulo CX do Enchiridion de Agostinho quando fala
de «condenação mais tolerável». Thomas de Chobham é de opinião de
que por «condenação eterna» se deve entender «a pena do Purgatório,
pois nada se pode fazer pelos condenados ao Infernon'".

208 209
NOTAS 6 PL, 198, 1589-1590.
7 O que não contribui para tomar as coisas mais claras é o facto de, na segunda
metade do século XII, haver em Paris vários Odon ou mestre Odon, tendo um deles
sido chanceler de 1164 a 1168. Ver M. M. LEBRETON, «Recherches sur les manus-
crits des sermons de différents personnagens du Xll" siêcle nommés Odon» in Bulletin
rir l'Institut de Recherche et d'Histoire des Textes, 3, 1955, pp. 33-54.
8 IICum materialis poena si/ ille ignis, in loco est. Ubi ergo sit, quaerendum relinquo».

Estas Quaestiones magistri Odonis foram publicadas por J. B. PITRA, Analecta no vis-
sima spieilegíi Solesmensis altera continuatio, t. 11, Tusculum, 1888, pp. 137-138.
9 A. M. LANDGRAF, «Quelques collections de Questiones de Ia seconde moitié
du XIIe siêcle» in Recherches de théologie ancienne et médiévale, 6, 1934, pp. 368-393
e 7, 1935, pp. 113-128. É na página 117 do volume 7 que Landgraf exprime reser-
vas sobre as questões editadas por Pitra e cita os trabalhos de M. CHOSSAT,
«La Somme des Sentences» in Spicilegium Sacrum Lovaniense, 5, Lovaina, 1923,
pp. 49-50 e de J. WARICHEZ, Les disputationes de Simon de Tournai, ibid., 12, to-
I Para pormenores, ver o Apêndice 11: Purgatorium. vaina, 1932.
2 PL, 171, Col. 739 e ss. A parte mais interessante desta passagem lê-se assim no 10 O. J. BLUM, SI. Peter Damien: Bis Teaching on the Spiritual Life, Washington,
original latino: «Ad hunc modum in aedificatione coelestis Jerusalem tria considerantur, 1947. J. RYAN, «Saint Peter Damiani and the sermons of Nicolas of Clairvaux» in
separatio, politio, positio. Separatio est violenta; politio purgatoria, positio aeterna. Medieval Studies, 9, 1947, pp. 151-161 e sobretudo F. DRESSLER, Petrus Damiani.
Primum est in angustia et afflictione; secundum, in patientia et exspectatione; tertium ieben und Werk (Studia Anselmiana, XXXIV), Roma 1954 e especialmente Anihang,
in gloria et exsultatione. Per primum (cribratur) homo sicut triticum; in secundo exami- J. pp. 234-235.
natur homo sicut argentum; in tertio reponitur in thesaurum» (col. 740). I Já a Patrologia latina atribui este sermão a Nicolau de Clairvaux (PL, 184, 1055-
3 «Tertio, memoria mortuorum agitur, ut hi qui in purgatorio poliuntur, plenam -1060), mas encontramo-lo sob o nome de Pedro Damião nesta patrologia, no tomo
consequantur absolutionem, vel poenae mitigationem» (PL, 171, col. 741). 144, 835-840. Este sermão foi para a festa de Saint Nicolas, que foi um dos «patronos
4 HAUREAU, «Notice sur les sermons attribués à Hildebert de Lavardin» in do Purgatório». O sermão atribuído a S. Bemardo encontra-se nas obras completas
Notices et Extraits des manuscrits de Ia Bibliothêque nationale et autres bibliothéques, editadas por J. Leclercq e H. M. Rochais, Opera, VI/I, pp. 255-261. Sobre os sermões
XXXII, 2, 1888, p. 143. R. M. MARTIN, «Notes sur I'oeuvre littéraire de Pierre le De diversis atribuídos a S. Bemardo e especialmente sobre o sermão 42, ver H.-M.
Mangeur» in Recherches dethéologie ancienne et médiévale, Hl, 1932, pp. 54-66. A. ROCHAIS, «Enquête sur les sermons divers et les sentences de saint Bernard» in
LANDGRAF, «Recherches sur les écrits de Pierre le Mangeur» in Recherches de théo- Analecta SOC, 1962, pp. 16-17 e Revue bénédictine, 72, 1962.
logie ancienne et médiévale, IlI, 1932, pp. 292-306 e 341-372. A. WILMART, «Les 12 Sobre Nicolas de Clairvaux, além do artigo de J. Ryan, ver A. STEIGER,
sermons d'Hildebert» in Revue bénédictine, 47, 1935, pp. 12-51. M. M. LEBRE- «Nikolaus Mõnch in Clairvaux, Sekretâr des heiligen Bernhards in Studien und Mit-
TON, «Recherches sur les manuscrits contenant des sermons de Pierre de Mangeur» teilungen zur Geschichte des Benediktinerordens und seiner Zweige, N. F. 7, 1917, pp.
in Bulletin d'information de l'Institut de Recherche et d'Histoire des Textes, 2 (1953), pp. 41-50. J. LECLERCQ, «Les collections de sermons de Nicolas de Clairvaux» in Revue
25-44. J. B. SCHNEYER no tomo IV, p. 641 (1972) do Repertorium der lateinischen bénédictine, 66, 1956 e especialmente p. 275, n. 39.
sermones des Mittelalters flir die Zeit von 1150-1350 aceita a atribuição de Pedro, o 13 Mme M.-C. GARAND examinou dois manuscritos entre os três mais antigos,
Devorador, do sermão 85 (Jesuralem quae aedificatur ) da velha edição de Beaugendre Paris, Biblioteca Nacional, ms.Iatino 2571 e Cambrai 169. Escreve-me ela que «o facto
(1708) - atribuição a Hildebert - retomada por Migne (PL, 171, col. 739 e ss.). F. de a santidade de S. Bemardo não figurar no título e ser objecto de correcção no ex-
Dolbeau fez o favor de examinar por nós os dois mais antigos manuscritos conhecidos -libris situa sem dúvida o manuscrito antes da sua canonização, em 1174. Mas talvez
até hoje. Confirma a atribuição a Pedro, o Devorador, e a lição in purgatorio (Ms. não muito antes, pois a escrita é já bastante perfeita e poderia bem situar-se no terceiro
Angers 312 (303), f. 122 v' e Angers 247 (238) f. 67 v', ambos do fim do século quarto do século XII. Quanto ao manuscrito de Cambraí a sua escrita e as suas ca-
XII). Mas descobriu um manuscrito mais antigo (Valenciennes, Biblioteca municipal racterísticas específicas sugerem, também eles, a segunda metade do século».
227 (218) 9. 49) no qual falta o fragmento da frase in purgatorio poliuntur. É surpreen- 14 S. BERNARDO, Opera, ed. J. Leclercq-H, Rochais, V, 383-388 e especialmente
dente que Joseph Ntedika, geralmente muito bem informado, tenha escrito a respeito 386. O sermão LXXVIII De diversis sobre o mesmo tema parece-me mais um plágio
de Hildebert «ele é provavelmente o primeiro a empregar a palavra purg atorium» forçado e simplificado de S. Bemardo do que um texto totalmente autêntico. ~as é
(L 'Évolution de Ia doctrine du purgatoire chez saint Augustin, Paris, 1966, 11, n' 17). apenas uma impressão. Não fiz qualquer pesquisa a este respeito. Ver B. de VREGIL-
Sobre Pedro, o Devorador, deve também consultar-se I. BRADY, «Peter Manducator LE, «L'attente des saints d'aprês saint Bemard» in Nouvelle Revue théologique, 1948,
and the Oral Teachings of Peter Lombard» in Antonianum, XLI, 1966, pp. 454-490. pp. 225-244.
5 PEDRO, O DEVORADOR, De Sacramentis. De penitentia, capo 25-31 ed. R. M. 15 Trata-se do manuscrito latino 15912 da Biblioteca nacional de París. Mme
Martin in Spicilegium sacrum Lovaniense, XVII, apêndice, Lovaina, 1937, pp. 81-82. Georgette Lagarde transcreveu dele as passagens que resumo aqui. A expressão in

210 211
purgatorio encontra-se no fólio 64b, e o exemplum tirado da vida de S. Bemardo nos utrum per septem annos sit in purgatorio? Respondemus: procu/ dubio implebit illam
fólios 65c-66a. satisfactionem in purgatorio, sed quamdiu ibi sit, il/e novit qui est librator poenarum.»
\6 Ver J. BALDWIN, Masters, Princes and Merchants. The Social Views of Peter 35 A. M. LANDGRAF, Einführung in die Gesehichte der theologischen Literatur der
the Chanter and his Cire/e, 2, vol., Princeton, 1970. Frühscholastik , Ratisbonne, 1948, trad. francesa completa e actualizada, Paris, 1973, p.
\7 PEDRO, O CHANTRE, Summa de Sacramentis et Animae Consiliis, ed. J. A. ~8.
Dugauquier in Analecta Mediaevalia Namurcensia, 7, 1957, pp. 103-104. 36 Citado por A. M. LANDGRAF, Dogmengeschichte der Frühscholastik, IV/2,
\8 Ibid., pp. 125-126. Ratisbonne, 1956, p. 260, n. 3.
\9 PEDRO, O CHANTRE, Summa de Sacramentis ... , 38 parte, Ill, 2 a. Liber 37 Segundo o manuscrito Paris, Biblioteca nacional, ms latino 3891, fól. 183 v·
casuum conscientiae, ed. J. A. Dugauquier ín Ana/eeta Mediaevalia Namurcensia, 16, (informações amavelmente prestadas pelo Padre P. M. Gy).
1963, p. 264. 38 Citado por A. M. LANDGRAF, Dogmengeschichte ... , IVj2, p. 261, n. 6.
20 PL, 205, col. 350-351. A data de 1192 foi proposta por D. VAN DEN EYNDE, 39 Johannes Teutonicus, fól. CCCXXXV V, CCCXXXVI.
«Prêcisions chronologiques sur quelques ouvrages thêologiques du XIIe siêcle» in 40 PL, 214, 001. 1123.

Antonianum, XXVI, 1951, pp. 237-239. 4\ PL, 217, col. 578-590. Eis a passagem essencial:
2\ J. WARlCHEZ, Les Disputationes de Simon de Tournai. Texto inédito, Lovai- Deus enim trinus et unus, tres tribus /ocis habet exercitus. Unum, qui triumphat in
na, 1932. As disputas XL, LVe LXXIII encontram-se nas páginas 118-120, 157-158 e' coe/o; alterum, qui pugnat in mundo; tertium, qui jacet in purgatorio. De his tribus
208-211. rxercitibus inquit Apostolus: «In nomine Jesu omne genu flectatur, coelestium, terres-
22 PL, 211, col. 1054. Ver Ph. S. MOORE, The Works of Peter of Poitiers, Master trlum et infernorum (Filipinas 11).» Hi tres exercitus distincte clamam cum seraphim,
in Theology and Chanceller of Paris (J193-1205), Publicações in Medieval Studies, Sanctus Pater, sanctus Filius, sanctus Spiritus. Patri namque attribuitur potentia, quae
Notre-Dame, (Ind.), I, 1936. convenit exercitui, qui pugnat in via; Filio sapientia, quae competit exercitui, qui triump-
23 «Vie de saint Victor, martyr de Mouzon», ed. F. Dolbeau, Revue historique hat in patria; Spiritui sancto misericordia, quae congruit exercitui, qui jacet in poena.
ardennaise, t. IX, p. 61. Primus exercitus in laude, secundus in agone, tertius autem in igne. De primo /egitur:
24 R. MANSELLI, «Il monaco Enrico e Ia sua eresia» in Bolletino de//'Istituto li Beati qui habitant in domo lua, Domine, in saecula saeculorum laudabunt te (Salmos,
Storico Italiano per iI Medio Evo e Archivio Muratoriano, 65, 1953, pp. 62-63. Sobre LXXXIII);» de secundo dicitur: «Militia est vila hominis super terram; et sicut dies
as heresias do século XII ver a obra fundamental de R. MANSELLI, Studi sul/e eresie mercenarii, -dies ejus (Job, VII).» De ter tio vero inquit Aposto/us: «Uniuscujusque opus
dei secolo Xll, Roma, 1953. quale sit, ignis probabit (I Corintios, III).» Sane quinque loca sunt, in quibus humani
25 S. BERNARDO, Opera, ed. J. Leclercq e H. Rochais, vol. lI, p. 185. Ver a spiritus commorantur. Supremus qui est summe bonorum; infimus, qui est summe malo-
introdução dos editores, vol. I, p. IX. rum; medius, qui est bonorum et maforum; et inter supremum et medium unus, qui est
26 PL, 204, 795-840 (os capítulos 10 e Ii estão nas colunas 833-835). Cf. A. PASo mediocriter bonorum; et inter medium et infimum alter, qui est mediocriter ma/orum.
CHOWSKY e K. V. SELGE, Quellen zur Geschiehte der Waldenses, Gõttingen, 1973 e Supremus, qui est summe bonorum, est coelum, in quo sunt beati. lnfimus, qui est summe
L. VERREES, «Le traité de l'abbê Bemard de Fontcaude contre les vaudois et lee malorum, est infernus, in quo sunt damnati. Medius, qui est bonorum et malorum, est
ariens» in Analecta praemonstratensia, 1955, pp. 5-35. G. GONNET pensa que estas mundus, in quo justi et peccatores. Et inter suprem um et medium, qui est mediocriter
ideias «foram professadas, pelo menos originariamente, mais por outras seitas do que bonorum, est paradisus; in quo sunt Enoch et Elias, vivi quidem, sed adhuc morituri.
pelos valdenses» (xd,e cheminement des vaudois vers le schisme et I'hérésie (1174- 1\1 inter medium et infimum, qui est mediocriter malorum, in quo puniuntur qui poeniten-
-1218)>>in Cahiers de civi/isation médiévale, 1976, pp. 309-345). liam non egerunt in via, vel aliquam maculam venia/em portaverunt in morte.
27 Tria quippe sunt /oea quae spiritus a carne so/utos recipiunt . Paradisus recipit 42 Ch. THOUZELLIER, «Ecclesia milítans» in Études d'histoire du droit canonique
spiritus perfectorum. Infernus valde maios. Ignis purgatorionis eos, qui nec valde bonl dedicados a Gabriel Le Bras, tomo II, Paris, 1965, pp. 1407-1424.
sunt nec valdemali.Elsic.va/de bonos suscepit locus valde bonus; valde maios loCUI 43 «O quam rationabilis et salubris est hujus observantiae institutio», PL, 217, col.
summe malus; mediocriter ma/os loeus mediocriter malus, id est /evior inferno, sec pejor . WO.
mundo» (PL, 204, col. 834-835). 44 THOMAS DE CHOBHAM, Summa Confessorum, ed. F. Broomfield, Lovaina-
28 «Et hi non damnantur, nec statim salvantur, sed puniuntur sub exspectatione per- -Paris, 1968, pp. 125-126.
cipiendae saiu tis» (PL, 204, 1268). 45 Ibid., p. 127.
29 The Summa contra haereticos ascribed to Praepositiuus of Cremona, ed. J. N. 46 Manuscrito Paris, Biblioteca nacional, ms latino 14883, fólio 114, citado por A.
Garvin e J. A. Corbett, Notre-Dame (lnd.), 1958, principalmente pp. 210-211. M. LANDGRAF, Dogmengeschichte ... , IV/2, p. 281, n. 61.
30 Ver o estudo fundamental de M.-T. d'ALVERNY, Alain de Li/le. Textes inédus 47 «Melius eSI, ut dicatur, quod diverse mansiones sunt in purgatorio: alia appelantur
avec une introduction sur sa vie et ses oeuvres, Paris, 1965. obscura tenebrarum Ioga, alia manus inferni, alia os leonis, afia tartarus. E/ ab istis penis
3\ G. GONNET in Cahiers de civilisation médiévale, 1976, p. 323. petit Ecclesia animas mortuorum liberari» (Ibid., p. 281, n. 61).
32 Summa de arte praedicatoria, PL, 210,174-175.

33 Liber poenitentialis, ed. J. Longêre, t. 2, Lovaina- Lille, 1965, pp. 174-177.

34 Ibid., p. 177: «l/em quaeritur si iste debebat implere septem annos et non implevit,

212 213
VI - O PURGATÓRIO ENTRE A SICÍLIA E A IRLANDA

Da visão de Drythelm à de Carlos, o Gordo, as viagens imaginárias


pelo além - consideradas «reais» pelos homens da Idade Média, se bem
que sejam apresentadas como «sonhos» (somnia) - são viagens de vivos
cujo corpo permanece enquanto a alma volta à terra. Estas visões pros-
seguem ao longo do século XIII e a última, o Purgatório de S. Patrick,
marcará uma etapa decisiva no nascimento do Purgatório numa dupla
geografia, a geografia terrena e a geografia do além.
Mas assiste-se também ao esboçar de um outro tipo de narrativa que
no século XIII acolherá - e difundirá - largamente o Purgatório. São os
relatos de aparições a vivos de defuntos que sofrem as penas purgatórias e
vêm pedir os sufrágios desses vivos ou aconselhá-los a emendar-se se
quiserem evitar as penas purgatórias. É no fundo o retomar das histórias
do Livro IV dos Diálogos de Gregório, o Grande, mas esses espectros não
estão na terra a expurgar-se dos seus restantes pecados mas em permissão
excepcional de curta demora, o tempo de um sonho.

Visões monásticas: as aparições

Estas aparições são principalmente notadas no meio monástico, o que


nada tem de espantoso pois a leitura de Gregório, o Grande - nos seus
Moralia mas também nos Diálogos cujo segundo livro «lançou» São Ben-
to - é assídua sobretudo nos mosteiros, e os monges, nesses tempos em
que se desconfia dos sonhos (Gregório, o Grande, dissera-o e Pedro Da-
mião repete-o no século XI), são os seus beneficiários privilegiados, bem
como das visões e das aparições, porque são mais aptos do que os outros
para resistir às ilusões diabólicas como fez Santo Agostinho, e mais dig-
nos de receber as mensagens autênticas e edificantes de Deus.
É assim que no opúsculo XXXIV, segunda parte, Sobre diversas apa-
ricões e milagres (De diversis apparitionibus et miraculis) escrito entre

215
1063 e 1072, Pedro Damião, natural de Ravena e uma das maiores figuras já morrera chamava por ele: "Vem ver um espectáculo que não poderá
de entre os eremitas italianos, que veio a ser cardeal cerca de 1060 e era deixar-te indiferente." E conduziu-o à basilica de Santa Cecília em cujo
muito sensível à recordação dos mortos na devoção dos grupos eremitas átrio viram as santas Inês, Ágata e a própria Cecília, e um coro de muitas
como «comunidades de oração» 1, relata duas aparições de almas que e resplandecentes virgens santas. Preparavam estas um trono magnífico,
sofriam as penas purgatórias/. A primeira história passou-se em Roma, mais alto do que os que o cercavam, e eis que a Santa Virgem Maria, com
segundo o seu informador, o padre João, poucos anos antes de ele escre- Pedro, Paulo e David, veio sentar-se no trono que fora preparado, rodea-
ver. Na noite da Festa da Assunção de Maria, quando os Romanos da por uma multidão luzente de mártires e santos. Quando o silêncio
oravam e cantavam litanias nas igrejas, uma mulher que se encontrava reinava naquela assembleia tão santa e todos estavam respeitosamente
na basílica de Santa Maria in Campitello «viu uma comadre sua que de pé, uma pobre vestindo, no entanto, um casaco de peles, proster-
estava morta havia cerca de um ano. Como não conseguia dirigir-lhe a nou-se aos pés da Virgem Imaculada e implorou-lhe piedade pelo defun-
palavra por causa da multidão que se comprimia, arranjou maneira de a to patrício João. Como repetisse por três vezes a sua prece e não obtivesse
esperar numa esquina de uma ruela, de maneira a não a perder quando resposta, acrescentou: "Sabes, minha senhora, rainha do mundo, eu sou
ela saísse da basílica. Quando ela passou, interrogou-a logo: "Não és a aquela infeliz que jazia nua e trémula no átrio da tua basília principal
minha comadre Marozia, que morreu? .." A outra respondeu: "Sou eu, (Santa Maria Maior). Aquele (o patrício João), logo que me viu teve
sim. - E como podes tu estar aqui?" Ela disse: "Até hoje eu estive retida dó de mim e cobriu-me com esta pele com que estava vestido." Então a
por uma pena que não era leve, porque quando ainda era muito nova bem-aventurada Maria de Deus disse: "O homem por quem imploras foi
entreguei-me à sedução de uma lascívia impudente, pratiquei actos vergo- esmagado por grande quantidade de crimes. Mas teve dois pontos bons: a
nhosos com raparigas da minha idade e, ai de mim!, tendo-me esquecido caridade para com os pobres e devoção, com toda a humildade, nos lu-
disso embora me tivesse confessado a um padre, não o submeti ao julga- gares santos. Com efeito, muitas vezes transportou aos ombros óleo e
mento (da penitência). Mas hoje a rainha do mundo ergueu preces por pedaços de madeira para as luzes da minha Igreja." Os outros santos
nós e libertou-me dos lugares das penas (de /ocis poenalibus), e por sua testemunharam que ele fazia o mesmo para as suas igrejas. A rainha do
intervenção foi hoje arrancada aos tormentos uma multidão tão grande mundo ordenou que o patrício fosse conduzido ao meio da assembleia.
que ultrapassa toda a população de Roma: Assim, visitamos os lugares Logo uma multidão de demónios arrastou João amarrado com
sagrados dedicados à nossa gloriosa senhora para lhe agradecer tão gran- correntes.'. Então Nossa Senhora ordenou que ele fosse liberto e viesse
de benesse." Como a comadre duvidasse da veracidade desta história, ela engrossar as hostes dos santos (eleitos). Mas ordenou também que os
acrescentou: "Para verificares a realidade do que digo, fica sabendo que laços de que ele fora solto ficassem guardados para um outro homem
dentro de um ano, no dia desta mesma festa, tu morrerás sem dúvida ainda vivo.» Após uma cerimónia presidida por S. Pedro na sua igreja,
alguma. Se, o que não acontecerá, viveres mais, poderás estão acusar- «o padre que continuava a ter esta visão acordou e o sonho terminou»,
-me de mentir." E com estas palavras desapareceu. A outra, preocupada Que nesta história como na anterior, os lugares de castigo e os instru-
com a predição da sua morte, levou daí em diante um vida mais prudente. mentos de tortura (loca poenalia, lora poenalia) sejam o futuro Purgató-
Passado um ano, na véspera da festa, caiu doente e, tal como lhe fora rio, visto que do Inferno não se regressa, isso não oferece dúvidas. Mas
predito, morreu. O que se deve reter e é bem assustador é que, pela falta esses lugares e essas penas têm um carácter totalmente infernal sublinha-
de que se esquecera, aquela mulher foi supliciada até à intervenção da do pela presença de demónios e não de anjos.
lmaculada Mãe de Deus.» Numa das suas cartas, Pedro Damião conta esta outra história de
Relato espantoso pelo seu poder evocatório, e que marca a entrada da aparições que lhe foi relatada por um tal Martinho, personagem muito
Virgem Maria nos lugares purgatórios. Naquele fim do século XI, quando religioso retirado no eremitério de Camaldules: havia no mosteiro ad
o culto mariano, que irá conhecer um êxito estrondoso, explode tardia- Pinum, junto do mar, um monge muito carregado de pecados que rece-
mente no Ocidente, a Virgem afirma-se já como principal auxiliar dos bera uma penitência longa e dura. Pediu a um irmão com quem tinha
defuntos do futuro Purgatório. estreitas relações de amizade que o ajudasse, partilhando o seu fardo
A outra história edificante diz Pedro Damião tê-Ia ouvido ao bispo de penitencial. Este, cuja vida era irrepreensível, aceitou e, quando pensava
Cumes, Rainaud que, por sua vez, a recebera do venerando bispo Hurn- ler ainda muito tempo à sua frente para cumprir esta promessa, morreu.
bert de Sainte-Ruffine, então já falecido. Contou ele que «um padre que Alguns dias depois apareceu em sonhos ao monge penitente que se infor-
dormia no silêncio da noite teve uma visão em que um compadre seu que mou do seu estado. O morto disse-lhe que por causa dele a sua sorte era

216 217
má e dura pois, liberto dos seus próprios pecados, estava ainda sobrecar- rentes de fogo, etc.". Mesmo os santos, por algumas faltas aparentemente
regado com os do companheiro. Pediu a ajuda do irmão vivo e de todo o ligeiras, fazem breves estadas no Purgatório. Um dos primeiros a pagar o
convento. Todos os monges se puseram em penitência e o morto reapa- seu ouinhão à nova crença não é outro senão o grande santo cisterciense
receu, exibindo desta vez um ar sereno e mesmo feliz. Declarou ele que, S. Bernardo, que, como já se viu, passa brevemente pelo Purgatório por
graças às preces dos irmãos, não só fora arrancado à pena dos castigos não ter acreditado na Imaculada Conceição",
mas também, por uma maravilhosa decisão da direita do Altíssimo, fora
recentemente levado para entre os eleitos. Pedro Damião conclui que «a
clemência divina ensina os vivos por intermédio dos mortos 4».
Quase um século mais tarde o abade de Cluny Pedro, o Venerável, no Quatro viagens monásticas ao outro mundo
seu tratado De miraculis (entre 1145 e 1156), relata «as visões ou revela-
Dos relatos de viagens ao além do século XII escolhi os quatro que me
ções de defuntos» que recolheu e se esforça por explicar. Supõe que na
sua época há uma recrudescência dessas aparições e, segundo ele, aquilo parecem mais importantes, o primeiro porque se trata de uma visão de
uma mulher laica e de uma experiência muito pessoal- é o sonho da mãe
que elas anunciam, verifica-se. Foi, em todo o caso, o que ouviu dizer a
de Guibert de Nogent -, o segundo e o terceiro, a visão de Alberico de
muitas pessoas dignas de crédito".
Settefrati e a de Tnugdal, porque são os mais ricos de pormenores em
Entre estas aparições que assustam e intrigam há aquela do cavaleiro
vésperas do nascimento do Purgatório, e porque os seus autores perten-
morto que aparece ao padre Estêvão para lhe pedir que repare duas más
ciam a regiões significativas para o imaginário do além: a Itália meridio-
acções que se esquecera de confessar, e que reaparece para agradecer ter
nal e a Irlanda; o quarto, enfim - o Purgatório de S. Patrick - porque
sido assim libertado das penas que estava a sofrer". Pedro, o Venerável,
constitui de certo modo o acto do nascimento literário do Purgatório.
leitor fiel de Gregório, o Grande, não vai procurar localizar num lugar
Para o nosso propósito, o interesse destas visões é mostrar-nos como,
diferente do designado por este a purgação dos pecados depois da morte.
dentro de um género muito tradicional, se esboça por tentativas e depois
É aos lugares do pecado que um morto volta para terminar a sua
existe numa imagem nítida, embora de contornos vagos, um território
penitência enquanto outro, culpado de pecados mais graves, fica no
especial no além, para o Purgatório. Permitem apreciar o papel do ima-
Inferno".
Quando no fim do século o Purgatório passar a existir, estas visões ginário monástico na génese do lugar do Purgatório.
evocarão o novo lugar do além, principalmente no meio cisterciense, o
que nada tem de estranho se pensarmos no papel desempenhado por
Cister no nascimento do Purgatório. Assim, um manuscrito de origem 1. Uma mulher no além: a mãe de Guibert de Nogent
cisterciense, uma das primeiras recolhas dessas historietas edificantes,
os exempla, que em breve se expandirão, relata um certo número de vi- A primeira visão é relatada por um monge que no começo do século
sões referentes às penas sofridas pelas almas depois da morte. Depois da XII deixou uma obra original, principalmente por dois dos seus volumes,
visão do santo Fursy extraída da Historia ecclesiastica Anglorum de Bede, um tratado Das relíquias dos santos (Des reliques des saints - De pignori-
a «visão de um monge» relata o suplício de um cavaleiro que, excessiva- bus sanctorum) onde se tem pretendido ver o despertar do espírito crítico,
mente apaixonado. pelas aves de caça durante a vida, suportara depois da e uma autobiografia, História da sua vida (Histoire de sa vie - De vit~
morte e durante dez anos um suplício terrível: trazia no punho um falcão sua), também ela, sobretudo ela, iniciadora de um género que conhecera
que, sem descanso, o dilacerava com o bico e com as garras. E, no entan- um êxito singular, principalmente depois da Idade Mêdia'". O De vila sua
to, parecia ter levado uma vida muito virtuosa, mas as penas mais duras de Guibert de Nogent forneceu dois tipos de informação que muito inte-
são infligidas no Purgatório (in purgatorio ) por excessos que julgamos ressaram os historiadores. Contém primeiro um relato e uma evocação
como indulgência. O nosso monge vê assim mortos que, em vida, usaram dos acontecimentos políticos e sociais no Nordeste de França, os come-
ervas e bagas não como medicamentos mas como droga e afrodisíacos, ços do movimento comunal, com a descrição dos dramáticos aconteci-
condenados a rolarem na boca sem parar carvões incandescentes, outros mentos da comuna de Laon em 1116. Lá se encontra toda uma série de
que se haviam entregado a excessos de riso serem açoitados por esse mau anotações de natureza psicológica que incitaram os historiadores a vol-
hábito, outros ainda, excessivamente faladores, serem esbofeteados cons- tar-se para o psicanalista ou a tornar-se eles próprios psicanalistas 11.
tantemente e, os culpados de gestos obscenos, serem amarrados com cor- Eis a visão de sua mãe, no relato de Guibert de Nogent:

218 219
Numa noite de Verão, num domingo depois das matinas, quando estava Como a conversa com o meu pai terminasse, ela olhou para o poço que
estendida num banco muito estreito, rapidamente caiu no sono; pareceu-lhe, tinha por cima uma pintura na qual reconheceu Rainaud, um cavaleiro de
sem que perdesse os sentidos, que a alma lhe saía do corpo. Depois de ter sido grande renome entre os seus. Nesse mesmo dia que era, como já disse, um
conduzida como que através de uma galeria, quando dela saiu aproximou-se domingo, este Rainaud foi traiçoeiramente assassinado pelos seus próximos
da boca de um poço. Quando já estava muito perto, eis que homens com em Beauvais, depois de uma refeição. Naquela pintura ele estava ajoelhado
aspecto de fantasmas saem do abismo daquele buraco. Os seus cabelos pare- com a cabeça inclinada e as bochechas inchadas, soprando para acender um
ciam ter sido devorados por vermes e procuravam agarrá-Ia com as mãos e lume. Esta visão aconteceu de manhã e ele morreu ao meio-dia, lançado para
arrastá-Ia para dentro. De repente, nas suas costas, uma voz de mulher ater- esse fogo que ele póprio acendera.
rorizada e arquejante sob aquele ataque, gritou-lhes: «Não me toqueis.» Pe- Na mesma pintura ela viu também uma mulher velha que vivia com ela no
rante a pressão desta defesa, eles voltaram a descer para o poço. Esqueci-me princípio da sua conversão e que, exteriormente, mostrava no corpo numero-
de dizer que quando ela atravessou o pórtico sentindo que saía do seu estado sas feridas das suas mortificações, mas que, na realidade, não se furtara ao
humano, apenas pediu a Deus uma coisa, que lhe permitisse regressar ao seu desejo de vã glória. Viu-a em forma de sombra levada por dois espíritos todos
corpo. Liberta dos habitantes do poço, ela parara à sua beira e de repente viu negros. Quando esta velha ainda vivia e ambas habitavam juntas e falavam do
a seu lado o meu pai, com o aspecto que tinha na juventude. Olhou-o inten- estado das suas almas quando a morte viesse, prometeram-se mutuamente que
samente e perguntou-lhe várias vezes se era ele realmente Evrard (era o seu aquela que morresse primeiro, apareceria, se Deus o permitisse, à sobrevivente
nome). Ele negou. Nada de estranho em que um espírito recusasse ser chama- para lhe explicar o seu estado, bom ou mau ... A velha, no momento de mor-
do pelo nome que usava quando era homem, pois as realidades espirituais só rer, vira-se a si própria numa visão despojada do corpo, dirigindo-se com
podem ser expressas em termos espirituais (I Corintios, 11, 12-15). Acreditar outras semelhantes a ela para um templo, e parecia-lhe que levava uma cruz
que os espíritos se reconhecem pelos homens seria ridículo, senão no outro às costas. Quando chegou ao templo impediram-na de entrar e as portas fe-
mundo só se conheceriam os respectivos parentes. É claro que os espíritos charam-se à sua frente. Enfim, depois de morrer apareceu cercada de mau
não precisam de nomes, pois toda a sua visão, ou antes, o seu conhecimento cheiro a outra pessoa a quem agradeceu vivamente por a ter arrancado ao
da visão, é interno. meu cheiro e à dor com as suas preces. No momento de morrer, vira aos
Se bem que ele negasse chamar-se assim, como ela tinha a certeza de que pés da cama um diabo horrível de olhos negros e enormes. Com os sacramen-
era ele, perguntou-lhe onde morava. Ele dá a entender que é num local situado tos divinos conjurara-o a retirar-se na confusão e a nada reclamar dela, e com
não longe dali. Ela pergunta-lhe então como está. Ele destapa o braço e o este terrivel esconjuro pusera-o em fuga.
fianco e mostra que estão de tal maneira dilacerados e de tal maneira golpea-
dos com inúmeros ferimentos, que à sua vista se fica tomado de horror e de Convenci da da veracidade da sua visão e comparando o que vira com
uma emoção visceral. A isto juntava-se a presença de uma criança que gritava o que sabia, a mãe de Guibert decidiu dedicar-se inteiramente a ajudar o
tanto que, mesmo só por a ver, ela ficou muito incomodada. E disse-lhe: marido. Compreendera de facto que vira os lugares das penas nos infer-
«Senhor como podes suportar os lamentos dessa criança?» «Quer queira quer nos (poenales locos apud inferos) aos quais estava condenado o cavaleiro
não, respondeu ele, tenho de os suportar!» E eis o significado dos choros da
cuja imagem vira pouco antes de ele morrer.
criança e das feridas no braço e no flanco. Quando o meu pai era muito novo
fora desviado da sua relação lícita com a minha mãe por maleficios e maus Adoptou uma criança órfã cujos gritos e choros nocturnos a tortura-
conselheiros que abusavam da sua falta de maturidade de espírito, convencen- ram assim como às suas criadas. Mas resistiu, apesar dos esforços do
do-o maldosamente a tentar ter relações sexuais com outras mulheres. Com Diabo que tornou os gritos da criança insuportáveis e das súplicas dos
um comportamento de jovem, ele deixou-se persuadir e, das suas desprezíveis que a rodeavam e a incitavam a desistir. Sabia que esses sofrimentos eram
relações com uma qualquer má mulher, teve um filho que nasceu morto sem purgatórios dos do marido, os quais vira na sua visão.
ter sido baptizado. A chaga no fianco era a ruptura da fidelidade conjugal, os Deixemos de lado - com pena - os problemas de relações familiares e
gritos daquela voz insuportável eram a condenação ao inferno daquela crian- pessoais, a digressão sobre o nome - esse emblema dos homens da Idade
ça procriada no mal... Média -, a fusão nesta história de vários temas habitualmente distintos: o
A minha mãe perguntou-lhe se as preces, as esmolas e as missas lhe leva- da visão dos lugares das penas no além, do pacto entre dois vivos em que
riam algum socorro (pois ele sabia que ela as fazia por ele frequentemente). se comprometem a que o primeiro a morrer regresse para contar a sua
Ele disse que sim e acrescentou: «Mas entre vós vive uma certa Liégearde» A
experiência ao sobrevivente, o da criança que impede de dormir'", o clima
minha mãe compreendeu porque ele a mencionava e que devia perguntar-lhe
onírico, de pesadelo, muito «moderno», deste relato. Reparemos nos ele-
que recordação guardava dele. Esta Liégearde é uma mulher muito pobre de
espírito que só vivia para Deus, longe dos costumes deste mundo. mentos que se reencontrarão nas relações de viagem ou de permanência
no Purgatório - e que farão parte do «sistema» do Purgatório.

220 221
É antes de mais o carácter infernal do lugar onde se encontra o pai de cscatologia muçulmana reserva o Inferno para os infiéis e politeístas e
Guibert e para o qual a mãe se arriscou - na sua visão - a ser arrastada. parece não conhecer o Purgatório ".
Trata-se de um local situado junto de um popa e, noutra visão, de um S. Pedro acompanhado de dois anjos, Emmanuel e Elói, apareceram
templo de onde saem seres de aspecto diabólico, diabos negros13, larvas ao jovem Alberico elevado nos ares por uma pomba branca, e levaram-no
com cabelos cheios de vermes, monstros de enormes olhos negros, um IIOS lugares das penas e do Inferno (loca paenarum et inferni) para lhos
mundo onde o horror da vista, do ouvido e do olfacto, visões monstruo- mostrarem.
sas, barulhos insuportáveis, odores fétidos, se misturam com dores fisicas. O relato desta visão parece interminável'". Apenas posso resumi-lo e
Mundo de torturas, universo de penas e de castigos onde se distingue o esforcei-me por me manter tão próximo quanto possível do texto original
fogo. Mundo de espíritos despojados de nome mas que expiam em tortu- para conservar a nitidez das imagens que vão ser impressas no nosso
ras do corpo. Mundo de sofrimentos a que os vivos podem arrancar os reservatório do imaginário, e preservar a impressão de passeio vagabun-
seus mortos pela oração, pela esmola, pelo sacrificio da missa, segundo a do que a viagem do monge nos deixa, apesar de ser guiada por S. Pedro.
teoria tradicional dos sufrágios, mas também pela partilha de provações Esta caminhada errática permitirá que se aprecie melhor o contexto em
cuja natureza está ligada à do pecado cometido. E, acima de tudo, dois cujo seio aparecerá dentro em breve o Purgatório.
traços dominantes: a afirmação, a busca de um lugar ainda mal destacado Alberico vê primeiro um lugar incandescente com bolas de fogo e
do conjunto dos infernos (local, poço, templo, lugares penais - poenarum vapores em chamas onde são purgadas as almas das crianças mortas
locos, poenales locos - a visionária pergunta ao espectro do marido ubi no primeiro ano de existência. As suas penas são leves porque não tive-
commaneret, onde morava), a expressão de uma estreita solidariedade ram tempo para pecar muito. A curva dos pecados é, com efeito, à ima-
entre os vivos e os mortos, solidariedade que é primeiro a da família, gem das épocas da vida. Sobe e acumula pecados na juventude e na
família carnal e sobretudo casal conjugal, nesse tempo em que a Igreja maturidade; depois desce, com a velhice. O tempo passado nestes lugares
recorda com veemência a palavra de Paulo, segundo a qual o esposo e a de purgação é proporcional à quantidade de pecados e portanto à idade
esposa mais não são do que uma e mesma carne e depois família espiritual com que morreram os defuntos que sofrem estas penas. As crianças de
como a formada pela convertida e aquela mulher velha que a ajuda na um ano ficam nesses lugares sete dias, as de dois catorze dias e assim por
sua conversação. Enfim, nó do sistema, a expiação comum dos pecados diante (Alberico não precisa mais porque o prosseguimento da progres-
por meio de penas que são simultaneamente castigo e purgação. Estes são proporcional levantaria sem dúvida problemas delicados).
sofrimentos são purgativos dos sofrimentos do homem (mo/estias istas Depois vê um vale de gelo onde são torturados os adúlteros, os in-
mo/estiarum haminis ... purgatrices). cestuosos e outros fornicadores e libidinosos. Segue-se outro vale cheio
As duas visões de Alberico e Tnugdal são mais literárias, mais tradi- de arbustos com espinhos onde estão suspensas pelos seios sugados por
cionais, mais servidas por uma grande força imaginativa. serpentes as mulheres que se recusaram a amamentar os bebés e onde
ardem, suspensas pelos cabelos, as mulheres adúlteras. Vem depois uma
escada de ferro com degraus de fogo ao fundo da qual está um recipien-
2. No Monte Cassino: Alberico de Settefrati tc cheio de pez a ferver: por ela sobem e descem os homens que tiveram
relações sexuais com as suas mulheres durante os dias (festas e domin-
Alberico de Settefrati, nascido cerca de 1100, tivera uma visão durante gos) em que o acto sexual é proibido. Segue-se um forno com chamas
uma doença que o deixara nove dias e nove noites em coma quando tinha sulfurosas onde se consomem os chefes que trataram os seus súbditos
dez anos. Tendo ingressado no célebre mosteiro beneditino quando era não como chefes mas como tiranos, e as mulheres que praticaram o
abade Gerardo (1111-1123), contou a sua visão ao monge Guidone que a infanticídio e o aborto. Depois deste forno surge um lago de fogo seme-
transcreveu. Mas ao passar de mão em mão e de boca em boca esse relato lhante a sangue. Os homicidas que morreram impenitentes são nele pre-
foi alterado e o abade Senioretto (1127-1137) aconselhou Alberico a es- cipitados depois de passarem três anos com a imagem da sua vítima
crevê-lo de novo com a ajuda de Pietro Diacono. Foi este relato que pendurada ao pescoço. Num enorme recipiente ao lado, cheio de bron-
conservamos". Tem a marca das visões que eram conhecidas em Monte ze, estanho, chumbo, enxofre e resina a ferver, ardem por períodos que
Cassino - a Paixão de Perpétua e Felicidade, a Visão de Wetti, a Visão do vão de três a oitenta anos os bispos e outros responsáveis por igrejas que
Santo Fursy, a Vida do Santo Brandan. Pretendeu-se ver nele também deixaram padres perjuros, adúlteros ou excomungados nelas cumprirem
influências muçulmanas mas estas foram com certeza limitadas pois a o seu ministério.

222 223
Alberico é depois levado perto do Inferno, um poço cheio de horríveis
trevas de onde saem odores fétidos, gritos e gemidos. Junto do Inferno
está um dragão enorme e acorrentado, cuja goela de fogo engolia multi-
dões de almas semelhantes a moscas. A espessura das trevas impede que
se distinga se as almas vão para as trevas ou para o próprio Inferno. Os
guias dizem a Alberico que entre aquelas se encontravam as de Judas,
Ana, Caifaz, Herodes e os pecadores condenados sem julgamento.
Noutro vale os sacrílegos são queimados num lago de fogo, os burlões
num poço onde as chamas sobem e descem. Noutro lugar horrível, tene-
broso e fétido, cheio de chamas crepitantes, de serpentes, de dragões, de
gritos estridentes e gemidos terríveis, são purgadas as almas daqueles que
deixaram o estado eclesiástico ou monástico, que não fizeram penitência,
os que cometeram o perjúrio, o adultério, o sacrílego, o falso testemunho
e outros crimes. Aí são purgados na proporção dos seus pecados, como
ouro, chumbo, estanho ou outras matérias, tal como disse Paulo na sua
primeira epístola aos Coríntios.
Num grande lago negro cheio de água sulfurosa, serpentes, dragões e
demónios batiam com serpentes na cara, na boca e na cabeça de uma
multidão de testemunhas falsas. Próximo daqui dois demónios com for-
mas de cão e de leão exalavam das bocarras um sopro ardente que fazia
mergulhar numa espécie de tortura todas as almas que passavam ao seu
alcance.
Surge um grande pássaro levando nas asas um monge velhinho que
deixa cair dentro das trevas do poço do Inferno onde logo é rodeado por
demónios; mas o pássaro volta para o arrancar a eles.
Neste momento S. Pedra anuncia a Alberico que o deixa com os dois
anjos: Alberico, morto de medo, é por sua vez atacado por um demónio
horrível que tenta arrastá-lo para o Inferno, mas S. Pedro vem libertá-lo e
projecta-o para um lugar paradisíaco.
Antes de passar à descrição do Paraíso, Alberico fornece ainda alguns
pormenores sobre o que viu nos lugares do castigo.
Viu ladrões e violadores acorrentados nus e sem poderem pôr-se de pé
com correntes de fogo presas no pescoço, nas mãos e nos pés. Viu um
grande rio de fogo saindo do Inferno, e por cima deste rio uma ponte
de ferro que alargava quando nela passavam, fácil e rapidamente, as al-
mas dos justos, e que encolhia até só ter a largura de um fio quando nela
passavam pecadores que caíam no rio e aí ficavam até poderem atravessar
a ponte, purgados e assados como pedaços de carne. S. Pedro revelou-lhe
que aquele rio e aquela ponte eram qualificados de purgatórios'?
S. Pedro diz a seguir a Alberico que um homem nunca deve desesperar
seja qual for a grandeza dos seus crimes, pois tudo pode ser expiado em 1. Julgamento e salvamento do Purgatório (Breviário de Filipe, o Belo). ye~ o
penitência. Por fim, o apóstolo mostra a Alberico um campo tão extenso Apêndice III. Bibl. Nat., Paris, 10845, Latino 1023, foI. 49. Fotografia © Blbho-
que seriam precisos três dias e três noites para o atravessar; um campo thêque Nationale.

224
~__
MM"~~"
__ •
'.'~~.

t- t
2. O além: sistema dos receptáculos (catedral v I
de Salamanca); saída do receptáculo do Purgatório
o Apêndice Ill. Fotografia © «Los Angeles», Saiam 11
cheio de espinhos tão densos que apenas seria possível caminhar sobre
eles. Neste campo estava um dragão gigantesco montado por um diabo
com aspecto de cavaleiro que segurava na mão uma grande serpente.
Este diabo perseguia todas as almas que caíssem naquele campo e ba-
tia-lhes com a sua serpente. Quando a alma já tinha corrido o suficiente
para ser liberta dos seus pecados, a corrida tornava-se mais fácil e ela
podia fugir.
De lugares purgatórios Alberico passa para lugares risonhos.
As almas tornadas dignas de alcançar o refrigerium entram num cam-
po cheio de encanto e de alegria, com perfume de lírios e de rosas. No
meio deste campo fica o Paraíso onde as almas só entrarão depois do
3. A saída do Pur- Julgamento Final, excepto os anjos e os santos que são recebidos sem
gatório (Breviário dito julgamento no sexto céu. O santo mais glorioso que lá se encontra é S.
de Carlos V). Ver o Bento e os mais gloriosos de todos que se encontram no campo são os
Apêndice IIl. Bibl. monges. Os guias de Alberico fazem o elogio dos monges e descrevem o
" .
~ :~íUtammtftl~ft:A!tJf,Ot " Nat., Paris, 2928, La-
tino 1052, foI. 556v.
programa de vida que eles têm de seguir para merecerem a glória. Devem
conservar sempre o amor de Deus e do próximo, mas o seu programa é
Fotografia © Biblio-
sobretudo negativo: devem suportar as injúrias e as perseguições, resistir
4 thêque Nationale.
às tentações diabólicas, trabalhar com as mãos sem desejar riquezas, re-
sistir aos vícios, guardar sempre temor. A seguir S. Pedro, depois de ter
indicado que os três pecados mais perigosos são a gula (gula), a cupidez
(cupidas ) e o orgulho (superbia), leva Alberico a visitar os sete céus sobre
os quais fornece poucos pormenores, excepto em relação ao sexto que é a
morada dos anjos, dos arcanjos e dos santos, e ao sétimo onde se encon-
tra o trono de Deus. A pomba condu-Io a seguir para um lugar cercado
por uma alta muralha por cima da qual ele pode aperceber-se do que
existe no interior, mas é-lhe interdito, como a qualquer homem, revelar
o que lá viu'".
Deixemos de lado neste relato o mosaico de fontes literárias que o
inspiram e o patriotismo beneditino que o anima. O seu interesse para
a génese do Purgatório é limitado mas não despiciendo, até nos seus
limites e nos seus silêncios.
É verdade que o relato é extremamente confuso e dá da geografia do
além uma imagem ainda mais confusa. Alberico está longe da concepção
de um terceiro reino do além. O seu além é extraordinariamente com par-
timentado e, segundo a vontade de S. Pedro, passa-se dos lugares de
penas para os poços do Inferno ou para o Paraíso, ou ainda para regiões
terrenas. Mas a importância dos «lugares penais» de onde se sai finalmen-
te para a salvação é considerável. Um cálculo aproximativo (pois é gran-
de a confusão do relato) permite-nos reconhecer em cinquenta
«capítulos» dezasseis dedicados ao que será o Purgatório contra doze
4. O Purgatório de S. Patrick nos dias de hoje: crença e peregrinação a longo consagrados ao Paraíso e lugares vizinhos e um só ao Inferno propria-
prazo (Station Island, Lough Derg, condado de Donegal, Eire). mente dito.

225
Sobre a «teoria» dos lugares purgatórios, a visão é praticamente muda laceram os próprios corpos. As vítimas deste animal são os fornicadores
ou não propõe melhor do que uma teologia muito gasta. Todos os peca- e, principalmente, os fornicadores monásticos. Em imagens à Piraneso,
dos conduzem a estes lugares e todos podem lá ser expiados. O papel da Tnugdal vê as almas dos glutões a cozer como pães num fomo enorme
penitência é exaltado mas não se vê bem a parte que cabe à penitência c as que acumularam pecado sobre pecado suportar, num vale cheio de
terrena e à mesma forma de expiação nos lugares das penas. Não se faz forjas ruidosas, os tratos de um ferreiro torcionário chamado Vulcano.
qualquer distinção entre pecados graves e pecados insignificantes (a cli- Assim se põe em evidência, a par com a especificidade dos pecados e dos
vagem entre pecado mortal e pecado venial ainda não existe); e são os vícios, a noção de quantidade de pecado e - sinal dos tempos nesse século
scelera, os crimes (que, segundo Santo Agostinho, levam directamente XII amante de justiça -, o anjo faz notar a Tnugdal horrorizado que Deus
ao Inferno), que aqui parecem de preferência ser expiados com castigos nem por isto é menos misericordioso e sobretudo justo: «Aqui, diz ele,
temporários mas infernais. Enfim, não existe passagem directa, após a cada um sofre em proporção com os seus méritos e segundo o veredicto
expiação, dos lugares penais para o Paraíso, mas uma antecâmara situa- da justiça.»
da num vestíbulo paradisíaco: é o campo da felicidade. A seguir, ao longo de um princípio profundo, é a descida ao Inferno
Todavia, a purgação post mortem ocupa um lugar importante e, a inferior que se anuncia por um horror, um frio, um mau cheiro e trevas
propósito do rio e da ponte, Alberico emprega o termo purgatório de incomparavelmente superiores a tudo o que Tnugdal experimentara até
uma maneira em que o epíteto parece bem próximo do substantivo e, aí. Vê uma fossa rectangular como uma cisterna de onde sai uma chama
embora na confusão de um simbolismo numérico, é nítida a tendência fuliginosa e fétida cheia de demónios, e as almas semelhantes a faúlhas
para uma contabilidade do além e para uma relação proporcional entre que sobem são reduzidas a nada e voltam a cair nas profundezas. Chega
o pecado cometido na terra e o tempo de expiação no outro mundo. mesmo à porta do Inferno e tem o privilégio, estando vivo, de ver o que
Numa palavra, tem-se a impressão de que o ou os autores desta visão os condenados nas trevas não vêem mais do que o vêem a ele próprio. E
pertencem a um meio monástico arcaico que através da sua cultura vê o príncipe das trevas em pessoa, um animal maior do que todos que
tradicional - incluindo a velha noção de refrigerium - não consegue or- tinha avistado.
denar a tendência a favor de um além de purgação que o vai pressionan- Depois o mau cheiro e as trevas desvanecem-se e Tnugdal e o seu anjo
do. descobrem, junto de um grande muro, uma multidão de homens e mu-
Reencontramos a mesma impressão noutro pólo geográfico do mo- lheres tristes, à chuva e ao vento. O anjo explica a Tnugdal que são os não
narquismo beneditino com a visão de Tnugdal'". inteiramente maus que tentaram viver com honra mas não deram aos
pobres bens temporais, e que têm de esperar alguns anos à chuva até
serem conduzidos a um repouso bom (requies bona). Atravessando o
muro por uma porta, Tnugdal e o seu companheiro descobrem um cam-
3. Na Irlanda: o além sem purgatório de Tnugdal po lindo, perfumado, cheio de flores, luminoso e agradável onde folgam
alegremente muitos homens e mulheres. São os não inteiramente bons
O além de Tnugdal - a sua viagem não inclui qualquer episódio ter- que mereceram ser arrancados às torturas do Inferno mas ainda não jun-
reno - é um pouco mais ordenado do que o de Alberico. Como o futuro tar-se à corte dos santos. No meio do campo está a fonte da juventude,
monge de Monte Cassino, Tnugdal passa primeiro por uma série de lu- cuja água dá a vida eterna.
gares onde são atormentados pecadores de diversas categorias: homici- Aqui coloca-se uma evocação muito curiosa de reis irlandeses legen-
das, traidores, avaros, ladrões, raptores, glutões e fornicadores. Os dários - mas, evidentemente, considerados históricos por Tnugdal - dos
lugares onde são punidos têm um tamanho extraordinário: vales profun- quais os maus arrependeram-se e os bons cometeram, apesar de tudo,
dos, uma montanha muito alta, um lago enorme, uma casa imensa. Por alguns pecados. Estão aqui em curso ou em fim de expiação. Exactamen-
intermédio de Dante, a montanha terá um destino especial. Nela as almas te como o patriotismo beneditino inspirou a visão de Alberico, o «na-
são submetidas alternadamente a um calor tórrido e a um frio glacial. As cionalismo» irlandês surge aqui, bem como a tradição da admoestação
trevas e o mau cheiro reinam. Animais monstruosos aumentam o horror. aos reis e a utilização política do além já encontrada na visão de Car-
Um destes animais, sentado sobre um lago gelado, devora com a sua 10s,o Gordo. A existência de um lugar purgatório (a palavra não é aqui
goela de fogo almas que digere e depois vomita (velha herança indo-euro- pronunciada) permite uma crítica moderada à monarquia, ao mesmo
peia) e estas almas reencarnadas têm bicos muito aguçados com que di- tempo venerada e censurada.

226 227
Eis pois os reis Domachus e Conchober, muito cruéis e inimigos fe.ro-
um conjunto de heranças literárias e teológicas que não soube unificar.
zes um do outro, voltando a ser pacíficos e amigos e tendo-se arrependido
Por um lado, a existência de dois infernos; mas ele não conseguiu precisar
antes de morrerem. Dever-se-á ver aqui um apelo à unidade dos clãs
a função do inferno superior. Por outro lado, a teoria agostiniana das
irlandeses? Eis sobretudo o rei Cormarchus sentado num trono num lin-
quatro categorias de homens em relação ao bem e ao mal. Mas não ten-
díssimo palácio com paredes de O\}roe prata, sem portas nem janelas .e
do sabido encaixá-Ias no inferno superior, colocou-as em lugares originais
onde se entra conforme se quiser. E servido pelos pobres e pelos peregn-
inclinando-se para uma quíntupla regionalização do além, o que é uma
nos pelos quais distribuiu os seus bens em vida '.Mas pou~o tempo depois
das soluções esboçadas no século XII para a sua remodelação. O ponto
o palácio escurece, todos os moradores estão tnstes, o rei chora, levanta-
mais fraco desta concepção (permito-me falar em termos de julgamento
-se e sai. Todas as almas erguem as mãos ao céu e suplicam a Deus: «Tem
de valor porque creio que a coerência do sistema do Purgatório foi um
piedade do teu servo.» Com efeito, eis o rei mergulhado n~ ,f~go até ~o
elemento importante do seu êxito junto do clero e das massas numa época
umbigo e com a parte de cima do corpo coberta por um cilicio, O ~nJo
«racionalizante») é o facto de Tnugdal não ter relacionado os lugares de
explica: em cada dia o rei sofre durante três horas e repousa durante v~nte
espera (e de expiação mais ou menos mitigada) dos não inteiramente bons
e uma horas. Sofre até ao umbigo porque foi adúltero, e na parte de cima
e dos não inteiramente maus com os lugares do inferno inferior. Uma
do corpo porque mandou matar um conde amigo de S. Patrick e foi
passagem sucessiva por uns e depois pelos outros teria dado uma solução
perjuro. Todos os seus outros pecados foram-Ih~ perdoa~os: •
concreta às teses agostinianas. Se Tnugdal não o fez foi talvez porque não
Por fim Tnugdal e o anjo chegam ao Paraiso constituído por tres
só a sua concepção do espaço era ainda confusa mas também e sobretudo
lugares rodeados de muralhas. Uma muralha de prata cerca a morada
porque a sua concepção do tempo (inseparável, repito, do espaço) não
dos bons esposos, uma de ouro a dos mártires e dos castos, dos monges
lho permitia. Para ele, o além estava submetido a um tempo escatológico
e das monjas, dos defensores e construtores de igrejas, um~ muralha de
que apenas pode ter vagas semelhanças com o tempo terreno, histórico.
pedras preciosas cerca a das virgens e das nove o~dens d.eanjos, do santo
Vai introduzindo aqui e ali períodos de «alguns anos» no além, mas não
confessor Ruadan, do santo Patrick e de quatro bispos (irlandesesl), Com
existe uma continuidade ordenada. O tempo no além não é uno, e muito
esta visão a alma de Tnugdal regressa ao corpo.
menos o tempo duplo do homem neste e no outro mundo.
A visão de Tnugdal mostra bem que, se a geografia do além é fra~-
mentada e só parece haver Inferno por este ser invisitável, a comparti-
mentação dos lugares purgatórios tende todavia para um ordenamen~o
4. Uma descoberta na Irlanda: o «Purgatório de S. Patrick»
obedecendo a três princípios. O primeiro é geográfico: é a alternância
de lugares constrastantes quanto ao relevo e à .temper~~ra. O seg~nd~
A quarta viagem imaginária, se bem que redigida por um monge -
é moral: é a repartição dos purgados segundo o tipo de VICIOS. O terceiro e
mas um monge cisterciense - acrescenta ao conjunto de traços tradicio-
propriamente religioso, para não dizer teológico: é classificaç~o das pes-
nais novidades importantes. Uma principalmente: o Purgatório é referido
soas em quatro categorias: os inteiramente bons que log~ depois da morte
como um dos três lugares do além. O opúsculo que ocupa na história do
vão para o Paraíso e os inteiramente maus que depois da m~t;e e do
Purgatório um lugar fundamental, porque desempenhou um papel impor-
julgamento individual (Tnugdal sublinha que os condenados _<<.Ia. fo~am
tante, se não decisivo, no seu êxito, é o célebre Purgatório de S. PatricPo.
julgados») são imediatamente enviados para o Inferno; o~ n~o inteira-
O autor é um monge de nome H. (inicial que Matthieu Paris, no século
mente bons e os não inteiramente maus. Mas Tnugdal nao e claro no
XIlI, transforma sem quaisquer provas em Henricus, Henrique), que, no
que lhes diz respeito. A tomá-Io à letra, estas d~as categorias. seriam dis-
momento da redacção, residia no mosteiro cisterciense de Saltrey, no
tintas do conjunto dos pecadores torturados no inferno supenor. Para os
Huntingdonshire. Foi um abade cisterciense, o de Sartis (hoje Wardon
não inteiramente maus Tnugdal não faz qualquer alusão a uma passag~
de Bedfordshire) que lhe pediu que escrevesse esta história que recebera
pelos lugares penais e contenta-se com fazê-los passar <~alg.'-ms. anos» a
de outro monge, Gilbert. Este foi enviado à Irlanda pelo abade do mos-
chuva e ao vento, sofrendo fome e sede. Quanto aos nao ínteiramente
teiro cisterciense de Luda (hoje Louthpark, no Huntingdonshire), Gervá-
bons, o anjo lá diz a Tnugdal que «eles foram arrancad.os aos t?rmentos
sio, para lá procurar um local bom para fundar um mo.steir~. <;omo
do Inferno» mas não merecem ainda ir para o verdadeiro Paraíso.
Gilbert não fala irlandês, faz-se acompanhar, para lhe servir de mterpre-
É de estranhar a ausência nessa data da ideia (e da palavra) de
te e protector, pelo cavaleiro Owein que lhe conta a aventura de que fora
purgacão. Tnugdal tentou desajeitadamente ordenar numa só visão todo
herói no Purgatório de S. Patrick.

228 229
No preâmbulo do seu tratado, H. de Saltrey recorda, ao invocar Santo qual comungava e era exorcizado com água benta. Uma procissão de
Agostinho e sobretudo Gregório, o Grande, como as descrições de visões cânticos conduzia-o ao Purgatório, cuja porta era aberta pelo prior que
e revelações sobre o além podem ser proveitosas para edificações dos alertava para a presença de demónios e lembrava o desaparecimento de
vivos. E o caso, em especial, das diferentes formas da pena a que se cha- muitos visitantes anteriores. Se o candidato insistia, era abençoado por
ma (pena) purgatória (que purgatoria voeatur) na qual aqueles que, mes- todos os padres e entrava fazendo o sinal da cruz. O prior fechava de
mo cometendo alguns pecados durante a vida, se mantiveram justos, são novo a porta. No dia seguinte à mesma hora a procissão voltava ao bu-
purgados e podem assim alcançar a vida eterna para que são predestina- raco. Se o penitente saía, regressava à igreja e lá ficava mais quinze dias
dos. Os castigos são proporcionais à gravidade dos pecados e à natureza em oração. Se a porta continuava fechada, davam-no por morto e a pro-
mais ou menos boa dos pecadores. A esta escala de pecados e de penas cissão retirava-se. Trata-se aqui de uma forma especial de ordálio, de
corresponde um escalonamento dos lugares das penas, do inferno subter- julgamento de Deus de um tipo talvez característico das tradições célticas.
râneo que alguns vêem como uma prisão de trevas. Os locais das torturas H. de Saltrey salta então para a época contemporânea (hiis nostris
maiores situam-se em baixo, os das maiores alegrias no alto, as recom- temporibus) e indica mesmo a época do rei Estêvão (1135-1154). Mat-
pensas ao mesmo tempo medianamente boas e más no meio (media autem -thieu Paris, no século XIII, será ainda mais conciso - sem qualquer prova
bona et mala in medio). Por aqui se vê que H. de Saltrey adoptou a divisão - e situará a aventura do cavaleiro Owein em 1153. O cavaleiro Owein,
em três categorias (em vez das quatro categorias agostinianas) e a ideia de carregadíssimo de pecados que não são mencionados, tendo ultrapassado
intermédio. as etapas preliminares do ordálio, entra no buraco confiante e alegre.
Também na pena purgatória se é mais ou menos torturado em função No fundo considera esta empresa uma aventura cavalheiresca que enfren-
dos méritos; e as almas que, depois de terem tido essa experiência, rece- ta sozinho com intrepidez (novam gitur miliciam aggressus miles noster,
bem de Deus permissão para regressarem aos corpos terrenos, exibem licet solus, intrepidus tamen)23 ... Numa penumbra cada vez mais fraca,
marcas semelhantes a marcas corporais como recordações, provas e chega a uma espécie de mosteiro habitado por doze personagens de ves-
advertências". tes brancas com aspecto de monges. O chefe deles expõe-lhe a regra da
Quando S. Patrick andava evangelizando, sem grande sucesso, os ir- provação. Vai ser cercado por demónios que tentarão assustá-Io com o
landeses recalcitrantes e tentava convertê-I os pelo temor do Inferno e a espectáculo de suplícios terríveis e seduzi-Io com palavras falaciosas. Se
atracção do Paraíso, Jesus mostrou-lhe num local deserto um buraco ele ceder ao medo ou à sedução e arrepiar caminho, está perdido de corpo
(fossa) redondo e escuro e disse-lhe que se alguém animado de um ver- e alma. Quando se sentir a ponto de fraquejar, deverá invocar o nome de
dadeiro espírito de penitência e de fé passasse um dia e uma noite naquele Jesus.
buraco, lá seria purgado de todos os seus pecados e poderia ver as tortu- Vem então a irrupção dos demónios que não mais o deixarão até ao
ras dos maus e as alegrias dos bons. S. Patrick apressou-se a construir fim do seu périplo infernal - no meio de visões horrorosas entrevistas nas
uma igreja ao lado do buraco e a instalar nela religiosos regulares, a trevas iluminadas apenas pelas chamas dos suplícios, por entre odores
cercar o buraco com um muro e a fechá-lo por meio de uma porta cuja fétidos e clamores estridentes. De cada uma das provações que vai so-
chave ficava à guarda do prior da igreja. Muitos penitentes terão feito a frer, ele-sairá vitorioso invocando o nome de Jesus, e após cada provação
experiência deste lugar na época de S. Patrick, que terá ordenado que recusa-se a desistir e a voltar atrás. Passarei pois em silêncio o desenrolar
passassem à escrita as suas descrições. A esse lugar chamou-se purgató- de cada episódio. Primeiro os diabos preparam-lhe, na sala da casa de
rio e, porque S. Patrick foi o primeiro a gozar-se dele, chamou-se depois onde vão partir, uma fogueira para onde tentam lançá-lo. Depois de
Purgatório de S. Patrick (sancti Patricii purgatoriuml2• ter passado por urna região deserta e tenebrosa onde soprava um vento
Queriam as regras que os candidatos à experiência do Purgatório de cortante como uma navalha e penetrante como urna espada, chega a um
S. Patriek fossem autorizados pelo bispo da diocese que deveria primeiro campo de enormes dimensões onde homens e mulheres nus estão deitados
tentar dissuadi-los, Se não pudesse convencê-l os a renunciar, dava-Ihes no chão fixos ao solo por pregos incandescentes que lhes trespassam as
uma autorização que ficava sujeita ao prior da igreja o qual, por sua mãos e os pés. Passa para um segundo campo onde pessoas de todas as
vez, procurava persuadi-Ios a escolher outra penitência, fazendo-Ihes no- idades, sexo e condição, deitadas de costas ou de frente, são presa de
tar que muitos haviam morrido nesta experiência. Se também ele falhava, dragões, de serpentes e de sapos de fogo; depois para um terceiro onde
prescrevia ao candidato que passasse primeiro quinze dias em oração na homens e mulheres trespassados por pregos em fogo cravados por todo o
igreja. No fim desta quinzena o candidato assistia a uma missa durante a corpo são chicoteados por demónios; depois para um quarto campo, ver-

230 231
dadeiro campo de suplícios os mais variados, onde alguns estão suspensos que assim são torturados não podem saber quanto tempo ficarão nos
por ganchos de ferro fixos nos olhos, nas orelhas, no pescoço, nas mãos, lugares penais porque as suas provações podem ser aligeiradas ou abre-
nos seios ou nos sexos e outros são vítimas de uma cozinha infernal, viadas por meio de missas, salmos, preces e esmolas feitos em sua inten-
cozidos no forno e num caldeirão ou assados no espeto, etc. Aparece ção. Também nós, que beneficiamos deste grande repouso e desta alegria
depois uma grande roda de fogo a que estão amarrados homens que mas ainda não fomos dignos de subir ao céu, não ficaremos aqui indefi-
passam a toda a velocidade pelas chamas. A ela segue-se um balneário nidamente; todos os dias alguns de nós passam do Paraíso terrestre para
enorme onde uma multidão de homens, mulheres, crianças e velhos estão o Paraíso celestial.» E mandando-o subir uma montanha, mostram-lhe a
mergulhados em cubas cheias de metais em ebulição, uns completamente porta desse Paraíso celestial. Uma língua de fogo desce dele e enche-os de
imersos, outros até às sobrancelhas, aos lábios, ao pescoço, ao peito, ao uma sensação deliciosa. Mas os «arcebispos» chamam Owein à realidade:
umbigo ou aos joelhos, e ainda outros por um pé ou uma mão. Owein «Viste em parte o que desejavas ver: o repouso dos bem-aventurados e as
chega depois a uma montanha entre cujas vertentes abruptas corre um rio torturas dos pecadores; tens agora de regressar pelo mesmo caminho por
de fogo. No topo da montanha, onde se encontram muitas pessoas, sopra onde vieste. Se de agora em diante te comportares bem no mundo tens a
um vento violento e glacial que faz cair no rio os homens que, se tentam certeza de que virás para junto de nós depois da morte, mas se viveres
escapar escalando a montanha, são rechaçados por demónios munidos de mal, viste as torturas que te esperam. Durante o teu regresso, nada mais
varas de ferro. Surge por fim uma chama horrivelmente nauseabunda e tens a temer dos demónios, porque eles não se atreverão a atacar-te, nem
negra que sai de um poço de onde sobe e onde volta a cair, como faúlhas, dos suplícios, porque eles não te atingirão.» O cavaleiro retoma chorando
uma multidão de almas. Os demónios que o acompanham informam-no: o caminho de regresso e reencontra finalmente as doze personagens do
«Eis a porta do Inferno, a entrada da geena, a via larga que leva à morte; início que o felicitam e lhe anunciam que foi purgado dos seus pecados.
aquele que aqui penetra não volta a sair porque no Inferno não há reden- Sai do Purgatório de S. Patrick quando o prior volta a abrir a porta, e
ção. E o fogo eterno preparado para o diabo e seus subordinados entre os cumpre então a sua segunda quinzena de orações na igreja. A seguir
quais não podes negar que estás.» Quando se sente tragado pelo poço, Owein benze-se e parte em peregrinação para Jerusalém. No regresso
Owein pronuncia de novo o nome de Deus e vê-se longe do poço em vai encontrar-se com o rei seu senhor e pedir-lhe que indique a ordem
frente de um rio de fogo muito largo tendo por cima uma ponte que religiosa onde poderá viver. É então o momento da missão de Gilbert
parecia intransponível pois era tão alta que não se podia evitar a verti- de Luda; o rei convidará Owein a servir de intérprete ao monge. O cava-
gem, tão estreita que não cabia nela um pé e tão escorregadia que era leiro, encantado, vai aceitar «pois no além não vi nenhuma ordem em tão
impossível alguém segurar-se. Lá em baixo no rio, diabos esperavam mu- grande glória como a ordem cisterciense». Construirão uma abadia mas
nidos de um gancho de ferro. Owein invoca outra vez o nome de Jesus e Owein não quererá fazer-se monge nem converso; contentar-se-á com ser
avança pela ponte. À medida que avança a ponte toma-se cada vez mais o servo de Gilbert.
larga e mais estável, e a meio-caminho ele já não vê o rio nem à esquerda O conjunto de imagens do além não é para nós o mais importante
nem à direita. Escapa a um último esforço dos diabos furiosos e, ao des- nesta história - se bem que muito tenha contribuído para o seu êxito.
cer da ponte, vê-se em frente de um muro muito alto e magnificente, com Recolhe a maioria dos elementos tradicionais desde o Apocalipse de Pau-
portas de ouro puro cravejado de pedras preciosas e exalando um odor lo, e anuncia os das visões posteriores - em especial da Divina Comédia.
delicioso. Entra e encontra-se numa cidade maravilhosa. Mas são mais imagens de inferno do que imagens específicas. Todavia
Duas personagens parecidas com arcebispos que conduziam uma pro- certos temas não aparecem e a sua ausência agora irá sem dúvida influen-
cissão dirigem-se a Owein e dizem-lhe: «Vamos explicar-te o sentido ciar o seu quase desaparecimento em seguida. O par formado pelo arden-
(rationem) do que viste.» te e pelo glacial era um elemento típico das imagens do além penal.
«Aqui, prosseguem elas, é o Paraíso terrestre". Voltámos para cá Na visão de Drythelm o visitante do além chega a um vale grande e
porque expiámos os nossos pecados - não tínhamos terminado a nossa profundo, cuja vertente esquerda arde com um fogo terrível, enquanto a
penitência na terra antes da morte - nas torturas que viste de passagem e direita é fustigada por uma brutal tempestade de neve. Também Tnugdal
nas quais nos mantivémos mais ou menos tempo segundo a qualidade das encontra num dos lugares que precedem o inferno inferior «uma grande
nossas culpas. Todos aqueles que viste nos diversos lugares penais, excep- montanha atravessada por um caminho estreito, tendo uma vertente
tuando os que estão por baixo da boca do Inferno, alcançarão o repouso cheia de fogo fétido, sulfuroso e fumarento, enquanto a outra é de gelo
em que nós estamos depois da purgação e, finalmente, serão salvos. Os e açoitada pelo vento».

232 233
No sermão atribuído a S. Bernardo diz-se que «aqueles que estão no Em compensação, é muito importante o facto de uma descrição do
Purgatório esperando a sua redenção devem primeiro ser atormentados Purgatório, expressamente referido por uma boca pertencente à geogra-
quer pelo calor do fogo quer pelo rigor do frio ...» lia terrestre, ter surgido cerca de 1200. A redacção do tratado de H. de
Mas o significado do frio como castigo não era já bem apreendido Saltrey deve ser mais ou menos contemporânea do aparecimento da lenda
havia muito tempo. A ideia de um refrigerium bem-fazejo tinha-o mais e da criação de uma peregrinação. O Purgatório de S. Patrick reaparece -
ou menos ofuscado. sem que a história do cavaleiro Owein seja mencionada - na Topografia
Na Visão do Imperador Carlos, o Gordo, o imperial sonhador, trans- irlandesa (Topographia Hibernica) de Giraud, o Galês ou de Cambrie
portado para um além infernal, ouve seu pai, Luís, o Germânico, mergu- (Giraldus Cambrensis) cuja primeira edição data de 1188, mas não é re-
lhado até às coxas numa bacia de água a ferver, dizer-lhe: «Não tenhas ferido no manuscrito mais antigo e apenas aparece à margem de um ma-
medo, eu sei que a tua alma regressará ao corpo. Se Deus te permitiu vir nuscrito da Topografia da primeira metade do século XIII. Giraud, o
aqui é para que vejas quais os pecados pelos quais sofro semelhantes Galês viajara até à Irlanda em 1185-1186. No capítulo V da segunda
tormentos, assim como todos que viste. Com efeito, num dia estou neste parte da Topographia Hibernica ele descreve um lago no Ulster ~nde
recipiente com água a ferver mas no dia seguinte sou levado para aquele existe uma ilha dividida em duas partes. Uma delas e bela e agradavel,
onde a água é muito fresca ...» Neste texto cujo autor perdeu o significado tem uma igreja oficial e é famosa pela presença frequente de santos. A
original do rito, a passagem pela água fria é apresentada como uma graça outra parte, selvagem e horrível, está abandonada aos demónios. Tem
que o imperador deve à intercessão de S. Pedro e de S. Remígio. nove buracos no chão e se alguém se atreve a passar a noite num deles
No Purgatório de S. Patriek já só se refere o frio a propósito do vento fica possuído dos espíritos malignos e toda a noite sofre suplícios horrí-
g.lacial que sopra sobre o cume da montanha situada no fim do purgató- veis de toda a espécie num fogo indescritível, e de manhã encontram-no
no. O fogo que no século XII representou o próprio local da purgação, quase inanimado. Diz-se que se, para fazer penitência, alguém sofrer uma
dele expulsou o frio. O nascimento do Purgatório dá o golpe de miseri- vez estes suplícios, escapará depois da ~orte (a. não se.r2~ue entretanto
córdia ao refrigerium e anuncia o desaparecimento do seio de Abraã02s. tenha cometido pecados muito graves) as penas infernais .
O êxito do Purgatório de S. Patriek foi imediato e considerável. Shane Esta ilha Station Island, situa-se no Lough Derg (o lago Vermelho),
Leslie escreveu que o tratado fora «um dos best-sellers da Idade Média». no condado 'de Donegal que faz parte do Eire, muito perto da fronteira
A data da sua elaboração não é certa. Situa-se habitualmente cerca de com a Irlanda britânica do Norte. Parece que o Purgatório de S. Patriek
1190 porque a respectiva tradução para francês pela célebre poetisa ingle- foi aqui objecto de peregrinação a partir do fim do sécul~ XII..: O Papa
sa Marie de France parece não poder ser posterior ao último decénio do Alexandre VI condenou-a em 1497, mas a capela e a peregnnaçao ressur-
século XII. Por outro lado, S. Malaquias, citado no Tractatus na sua giram no século XVI e sobreviveram a novas destruiçõe~ e interd~ções em
qualidade de santo, foi canonizado em 1190. Mas outros eruditos fazem 1632, 1704 e 1727. A peregrinação reapareceu de maneira espeClalmente
avançar até 1210 a data da sua redacção'". Se bem que eu tenha procu- intensa após 1790, e foi edificada uma grande capela. Em 1931 foi aca-
rado localizar cronologicamente com tanta precisão quanta possível o bada uma nova e enorme igreja dedicada a S. Patrick e todos os anos uma
aparecimento do termo purgatorium e da evolução decisiva da represen- peregrinação atrai sem~re cerca de 15.000 peregrinos entre os dias 1 de
tação do além que este aparecimento significa, não me parece muito im- Junho e 15 de Agosto" .
portante para o objectivo desta investigação datar de 1210 de preferência Mas no fim do século XII o Purgatorium Saneti Patricii, apesar dos
a 1190 o Purgatório de S. Patriek. O essencial é o facto de o novo lugar do seus laços com o cristianismo irlandês e com o culto de S. Patrick, não
além se materializar a dois tempos, um na literatura teológico-espiritual tem sem dúvida o matiz nacionalista, católico e irlandês que irá adquirir
sob o impulso dos mestres parisienses e do meio cisterciense entre 1170 e na época moderna e contemporânea. Parece que são os regulares ingleses
1180, o outro na literatura das visões entre 1180 e 1215. Com efeito, a que lançam a peregrinação e a controlam.
Vida de S. Patrick de Jocelyn de Furness, escrita entre 1180 e 1183, fala de Depois da tradução de Marie de Prance " haverá muitas redacções do
um Purgatório de S. Patrick mas situado sobre o monte Cruachan Aigle Purgatório de H. de Saltrey em latim e muitas também em língua vulgar,
em Connall:gh27. Os acontecimentos autênticos da história das crenças: principalmente em francês e inglês". A versão latina será retomada por
das mentalidades e da sensibilidade raramente são datáveis em dia e Roger de Wendover, nas suas Flores Historiarum, redigidas. em 1~31.
ano. O nascimento do Purgatório é um fenómeno da época da passagem Matthieu Paris, continuador de Roger, retoma na sua Chronica majora
do século XII para o século XIII. a história, palavra por palavra. Tenha ou não tomado conhecimento

234 235
d.o tratado ~e ~. de Saltr~y, um grande difusor do Purgatório, o cister- Dante contactou de perto com o tratado de H. de Saltrey, cuja fama
crense alemao Cesar de Heisterbach, escreve no seu Dia/ogus miraeu/orum não se extingue com a época a que chamamos tradicionalmente Idade
(XII, 38): «Quem duvide do Purgatório que vá à Irlanda e entre no Pur- Média. Rabelais e Ariosto aludem a ele; Shakespeare acha que esta his-
g~t?rio de ~atrick; daí em diante não duvidará mais das penas do Purga- tória é familiar aos espectadores de Hamler'" e Calderón escreve uma
tono.» Os cinco autores de histórias edificantes mais influentes do século peça sobre este tema ", A voga do Purgatório de S. Patriek nas literatu-
XIII utilizaram o Purgatorium Saneti Patrieii: Jacques de Vitry na sua ras erudita e popular durou até ao século xvnr", pelo menos.
Historia orientalis (cap. XCII), os dominicanos Vincent de Beauvais no Mas o essencial neste culto e neste tratado é que daí em diante existe
Speeu/um historia/e (Livro XX, capo XXIII-XXIV), Étienne de Bourbon com o seu nome uma descrição desse lugar novo do além, o Purgatório, e
no seu Tractatus de diversis materiis praedicabilibus (ver adiante), Hum- que, apesar da ante câmara do Paraíso visitada por Owein, há no
bert de Romans em De dono timoris e Jacques de Voragine (Jacopo da Traetatus três lugares no além: ao lado do Inferno e do Paraíso, onde
":,arazze) n~ sua célebre Lenda dourada onde declara: «E por uma revela- Owein ainda não entrou, há o Purgatório, demoradamente percorrido e
çao S. Patnc~ so~be que aquele ~oço ~o~duzia a um purgatório e que descrito' pelo audaz cavaleiro/penitente. E esta geografia do além insere-se
a~ueles que Ia quisessem descer Ia explanam os seus pecados e seriam na geografia terrestre, não por uma justaposição inábil como indicara
dispensados do Purgatório depois da morte'".» Gossouin de Metz fala Alberico de Settefrati mas pela localização terrestre precisa de uma boca
dele na sua Imagem do Mundo (Image du monde) que conheceu duas do Purgatório. O que poderia haver de mais conforme com as crenças e a
reda~ões. em verso cerca de 1245 e 1248 e uma redacção em prosa em mentalidade daquele tempo, em que a cartografia balbuciante localiza o
1246 . EIS um excerto de uma dessas canções: Paraíso (é certo que terreno) em continuidade com o mundo dos vivos? À
medida que se desenvolve o processo de «espacialização» do Purgatório,
Na Irlanda há um lago os vivos admitidos a visitá-lo têm de encontrar as respectivas bocas e
Que dia e noite arde como fogo, estabelecer vias de comunicação com a terra. Estas bocas são durante
E a que se chama Purgatório de muito tempo mais ou menos confundidas com a do Inferno, e é a ima-
S. Patrick; e ainda hoje, gem do popa que se impõe. A topografia das bocas do Purgatório apro-
Se lá for alguém veitará as grutas e as cavernas. O grande êxito do Purgatório de S.
que não esteja bem arrependido,
Patriek, situado numa caverna de uma ilha irlandesa, reforçará a ima-
E imediatamente arrebatado e perde-se
E não se sabe o que lhe acontecerá.
gem do poço do Purgatório. Um sinal interessante desse êxito é o nome
Mas se ele se confessar e estiver arrependido tradicional de Poços de S. Patriek dado a uma obra de arte excepcional, o
Tem de sofrer muitos tormentos poço de S. Patrizio construído no século XVI em Orvieto.
E purga-se dos seus pecados, Iria o cristianismo anglo-irlandês impor o seu Purgatório à cristanda-
Quantos mais forem mais ele sofre. de, sem concorrência? No outro extremo da cristandade na Itália Meri-
Aquele que regressar deste lugar dional, nas margens não do Oceano mas do Mediterrâneo, outro
Daí em diante nada lhe agradará Purgatório já há muito tempo esboçado ia também afirmar-se: na
Neste mundo, nunca mais. Sicília.
Não rirá e antes viverá chorando
E gemendo pelos males que existem
E pelos pecados que se cometem'", A tentativa siciliana
O douto S. Boaventura leu-a no original ou num resumo e fala dela no
seu comentário às Máximas de Pedro Lombardo ", Froissard pergunta a Ao lado do processo anglo-irlandês que, tanto quanto sabemos, se
um nobre inglês, Sir William Lisle que fez uma viagem à Irlanda em 1394 inicia com Bede no começo do século VIII, o processo siciliano das abor-
se visitou o Purgatório de S. Patriek. Este respondeu-lhe afirmativamente dagens do Purgatório estende-se ainda mais no tempo, do século VII ao
e diz-lhe mesmo que passou uma noite com um companheiro no famoso século XIII. Para o nosso propósito o episódio mais importante teve lugar
buraco a que chama cave. Lá dormiram, tiveram visões em sonhos e Sir no século Xl. Já o vimos; é a visão de um eremita recolhido por um monge
William fica convencido de que «tudo aquilo não passa de fantasmass'", de Cluny nas ilhas Lipari e mencionado por Jotsuald e depois por Pedro
Incredulidade rara para a época. Damião nas suas vidas de S. Odilon, abade de Cluny (994-1049). Ouve-se,

236 237
saindo da cratera de uma montanha, lamentos dos mortos que lá estão a Com efeito, para nada dizer dos que ardem na geena e que são chamados
ser expurgados'", de «étnicos» da palavra Et(h)na, por causa desse fogo eterno, e para os quais
Um século depois, o sermão XXI de Julien de Vézelay sobre o Julga- não há mais repouso, além desses... há certamente outros que, depois da morte
mento Final apresenta para o nosso estudo um duplo interesse. Primeiro, do corpo, conhecem trabalhos muito penosos e muito longos. Enquanto vi-
viam recusaram-se a «praticar os dignos frutos da penitência (Lucas, lI, 8); no
é um testemunho algo extraordinário de uma certa sensibilidade em rela-
momento da morte, porém, confessaram-se e experimentaram sentimentos de
ção à morte. Nele encontramos a dupla inspiração da tradição antiga do penitência»; é por isso que, por decisão do padre «a quem o Pai encarregou de
necessário abandono dos prazeres terrenos e da tradição monástica do todo o julgamento (João, V, 22)>>, poderão cumprir no fogo purgatório a
afastamento das coisas do mundo. Mas ressoa nele o eco de um certo satisfação penitencial que não fizeram cá em baixo. Este fogo que consome
deleite com a passagem pela terra, sobretudo entre as classes dominantes «a madeira, o feno e a palha acumulados sobre o alicerce da fé» queima aque-
da época, entregues ao luxo das propriedades rurais, das habitações pom- les que expurga; «todavia estes serão salvos através do fogo» (I Coríntios, lI,
posas, do vestuário e das peles, dos objectos de arte e dos cavalos, e de um 12-13, 15), pois não passarão com certeza do fogo purgatório para o fogo
gozo corporal, que são o sinal de um estado de espírito novo, de uma eterno: «O Senhor não julga duas vezes a mesma causa» (Job, XXXIII, 14).
psicologia de valorização do mundo cá de baixo que fornece a explicação Um pouco adiante, ao falar do fogo da geena, novamente, dá os seguintes
para o crescente interresse por uma vida longa no mundo, e portanto uma dados precisos: «O fogo adere ao seu alimento sem interrupção e sem o con-
interrogação acrescida sobre o período intermédio entre a morte indivi- sumir. Assim a salamandra, pequeno réptil, caminha sobre carvões incandes-
dual e o fim do mundo. centes sem dano para o seu corpo; assim o amianto, uma vez incandescente,
arde sem cessar sem que o fogo o faça diminuir; assim o Etna não Jiára de
arder talvez desde o começo do mundo, sem perda da matéria ígnea .»
Há três coisas que me aterrorizam, declara Julien de Vézelay, só de evocá-
-Ias todo o meu ser interior treme de medo: a morte, o Inferno e o Julgamento Vê-se bem como, pelo jogo habitual entre o clero da Idade Média,
que há-de vir.
(Isidoro de Sevilha dera o exemplo) das etimologias fantasistas, o Etna
Estou pois assustado com a morte que se aproxima, que me fará passar
é confirmado no seu papel de lugar do além, de ponto de comunicação
não sei para que região reservada aos espíritos fiéis, depois de tirado do meu
corpo, desta luz agradável e comum a todos ... Depois de mim, a história dos entre a terra e a geena, entre os vivos e os mortos. Mas onde é geografi-
homens far-se-á sem mim ... camente o ponto de separação entre o Inferno e o Purgatório?
Adeus, terra acolhedora (hospital) onde durante muito tempo me cansei No começo do século XIII surge no processo uma peça curiosa. Nas
com futilidades, onde habitei uma casa de barro de que saio contrariado suas Otia Imperialia (as Ociosidades Imperiais) redigidas cerca de 1210 e
(invitus) embora ela só seja barro ... E no entanto ... é contra a minha vonta- dedicadas ao imperador Otão IV de Brunswick, o vencido de Bouvines
de, e só se me expulsarem dela, que partirei. A pálida morte entrará no meu (em 1214), um clérigo culto e curioso - um autêntico etnógrafo medieval-
reduto e arrastar-me-á até à porta, apesar da minha resistência ... o inglês Gervásio de Tilbury expõe sobre o além, por um lado, concep-
Ao mesmo tempo que deixamos o mundo, deixamos tudo quanto é do ções tradicionais que ignoram as novidades do Purgatório e, por outro,
mundo. A glória do mundo é abandonada nesse triste dia: adeus honras, uma história singular. No capítulo XVII da terceira parte, Gervásio trata
riquezas, propriedades, vastos prados encantadores, paravimentos de mármo- dos dois paraísos e dos dois infernos. Assim como, diz ele, há um Paraíso
re e tectos decorados das casas luxuosas! E que dizer dos tecidos ricos e das
terrestre e um Paraíso celestial, «há dois infernos: um terrestre que se diz
peles de lontra, dos mantos multicores, das taças de prata e dos belos ('''valos
relinchantes sobre os quais o rico se pavoneia orgulhosamente para se valori- situado num buraco da terra e nesse inferno há um lugar muito distante
zar?! Mas tudo isto é ainda bem pouco: é preciso deixar uma esposa tão doce dos lugares de castigo que, por ser tão calmo e afastado, se chama seio,
de contemplar, deixar os filhos e deixar atrás o próprio corpo ~ue de boa como se fala de um seio (golfo) do mar, e diz-se que é o seio de Abraão por
vontade resgataria a preço de ouro para o libertar deste arresto ... I. causa da parábola do rico e de Lázaro ... Há um outro inferno aéreo e
tenebroso onde foram precipitados para lá serem castigos os anjos
maus, tal como os bons estão no paraíso celeste (CéU)43.) O que interessa
o outro interesse do sermão de Julien de Vézelay é o facto de mencio- Gervásio é que, segundo parece, alguns destes demónios vêm à terra aca-
nar de novo a Sicília como lugar terrestre de acesso ao além. salar com uma mortal para gerar homens excepcionais a que se chama
Eis uma primeira evocação dos que ardem no fogo eterno e dos que «sem pai» ou «filho de virgem», como Merlin o feiticeiro e, no futuro, o
fazem penitência no fogo purgatório: Anticristo.

238 239
Mais adiante Gervásio, ao descrever «maravilhas» geográficas e mais delo infernal do Purgatório foi contaminado e corrifdo por dois outros
particularmente sicilianas, conta a seguinte história recolhida no decurso modelos. Um foi o do Purgatório quase paradisiaco" . O outro nasceu da
de uma viagem que ele próprio fizera (cerca de 1190) à Sicília: vontade de encontrar um lugar verdadeiramente intermédio entre o Infer-
«Existe na Sicília uma montanha, o Etna, ardendo em fogos sulfuro- no e o Paraíso.
sos, perto da cidade de Catânia ... as pessoas do povo chamam a essa A estes problemas vagamente apercebidos foram dadas até ao século
montanha Mondjíbel'i" e os habitantes da região contam que nas verten- XIII soluções diversas, mais ou menos coerentes. Por vezes surge a jus-
tes desertas apareceu na nossa época o grande Artur. Um dia um pala- taposição de dois lugares, um com aspecto infernal outro com aparência
freneiro do bispo de Catânia ficou cheio de preguiça por ter comido de quase paradisíaca. Assim, na confusíssima Visão de Tnugdal duas re-
mais. O cavalo que ele estava a escovar fugiu e desapareceu. O palafre- giões situadas de um e outro lado da mesma muralha e colocadas entre
neiro procurou-o em vão pelas escarpas e precipícios da montanha. Com o Inferno e o Paraíso são uma chuvosa e ventosa enquanto a outra,
crescente inquietação, começou a explorar as cavernas escuras de um risonha, é banhada pela água de uma fonte de vida. A primeira região
monte. Um carreiro muito estreito mas plano levou-o a um enorme pra- contém as almas dos que não são inteiramente maus e a segunda as do
do, encantador e pleno de delícias. que não são inteiramente bons. Por vezes, o lugar de purgação parece
Aí, num palácio construído por encantamento, encontrou Artur dei- situado à superficie da terra, num vale estreito e profundo onde reinam
tado num leito real. O rei, ao saber o motivo da sua vinda, mandou trazer trevas parecidas com as do Inferno. É o caso da região da visão de-
o cavalo e entregou-o ao rapaz para que o restituísse ao bispo. E contou- Drythelm.
-lhe como, tendo outrora sido ferido numa batalha contra seu sobrinho i

Modred e o duque dos saxões Childerico, ficou caído por terra durante
muito tempo, tentando curar os ferimentos que reabriam constantemente.
E, segundo os indígenas que mo revelaram, ele enviou presentes ao bispo A infernização do Purgatório e os seus limites
que os mandou expôr à admiração de uma quantidade de gente confun-
dida com esta história inédita 45.» Nenhum texto evoca melhor do que o de Gervásio de Tilbury um
A este texto e a esta lenda dedicou o grande Arturo Graf um belo equivalente do Purgatório tão próximo de um lugar de repouso como
artigo'". Contentemo-nos em indicar aqui o papel singular que foi o esta descrição da espera num mundo que é decerto o da morte (numa
seu no processo do nascimento do Purgatório. Gervásio de Tilbury igno- montanha cheia de fogo onde se é conduzido por um cavalo negro
ra o Purgatório e, como continua apegado ao seio de Abraão, coloca condutor de almas num estado em que as feridas terrenas não sa-
Artur num lugar mais próximo de um além maravilhoso pagão. Este ram: as de Artur reabrem constantemente), mas onde um herói como
texto é antes de mais o espantoso encontro das tradições meridionais e Artur jaz «sobre um leito real», «num palácio construído por encanta-
setentrionais, célticas e italianas. Encontro da lenda arturiana e da Itália, mento», no meio de um prado enorme, encantador e pleno de todas as
também testemunhado no século XII por uma escultura da catedral de delícias.
Modena'". Encontro que realça também um dos maiores riscos da loca- Parece que neste momento decisivo para o Purgatório em gestação, a
lização do Purgatório. cristandade latina, que hesita em situá-Io na Irlanda ou na Sicília, hesita
Dois pólos atraíam o Purgatório: o Paraíso e o Inferno. O Purgatório também em fazer dele um lugar próximo do Inferno ou próximo do Pa-
podia ser um quase Paraíso ou um quase Inferno. raíso ... De facto, no momento em que Gervásio de Tilbury recolhe histó-
Mas bem cedo o Purgatório (ainda em esboço) se inclinou para o rias que reflectem mais as concepções do passado do que as do presente,
Inferno e levou muito tempo a distinguir-se dele. Até ao século XIII - e os dados estão já lançados. Carregado com o peso da literatura apoca-
por vezes mais tarde - não passou de um inferno menos profundo onde líptica oriental, cheio de fogo, de torturas, de furor e de ruídos, definido
não se era atormentado por toda a eternidade mas sim temporariamente, por Agostinho como o lugar de penas mais dolorosas do que qualquer
a geena superior. dor terrena, posto em funcionamento por uma Igreja que só salva no
O Purgatório formou-se, pois, numa visão quase sempre infernal do temor e no terror, o Purgatório já tombou para o lado do Inferno. A
além. Este além situava-se em geral debaixo da terra durante o longo propósito da lenda de Artur no Etna, Arturo Graf mostrou magistral-
período de incubação do Purgatório, em estreito contacto com o Inferno mente como, desde o relato de Gervásio de Tilbury até ao do dorninica-
- o inferno superior - mas, durante esta fase de geografia confusa, o mo- no Étienne de Bourbon cinquenta anos depois, a infernização , a

240 241
satanização do episódio se consumou. O Purgatório de Artur tornou-se Esta espantosa mistura de lendas pagãs e de cristianismo muito orto-
um Inferno provisório'". doxo, de vulcanologia e de teologia dos fins últimos, não é de estranhar
Também a Sicília (Lipari ou Etna), ao contrário da Irlanda, não será 110 grande Papa escatológico. Conhecemos a segunda história que põe em
uma localização duradoura do Purgatório. Para compreender isto é ne- causa as ilhas vulcânicas sicilianas e os lugares infernais: é a história do
cessário remontar às fontes cristãs do além siciliano. Esse além cristão é castigo de Teodorico lançado num vulcão das Lipari'".
largamente tributário de uma antiga herança rica, da qual a mitologia do A politização das visões do além é o elemento mais notório desta
Etna, morada infernal de Vulcano e das suas forjas, é a expressão mais história que continuará bem viva durante a Idade Média e que anuncia
brilhante. Mas um dos grandes fundadores do Purgatório na Alta Idade IIS visões dos reis punidos no além, cujos exemplos já vimos com os so-
Média, Gregório, o Grande, situa na Sicília as bases do além cristão. beranos carolíngios da Visão de Carlos, o Gordo, e com os reis irlandeses
Duas histórias dos Diálogos são disso testemunho. da Visão de Tnugdal. Mas a localização siciliana dos lugares cristãos dos
No primeiro texto o monge Pedro pergunta a Gregório se os bons se castigos no além é um elemento igualmente significativo. É nesta tradição
reconhecem no Paraíso (in regno) e os maus no Inferno (in supplicio); que se deve, evidentemente, situar o relato de Jotsuald e de Pedro Da-
Gregório responde com a história de Lázaro e do rico mau. Depois passa mião.
a descrições já tradicionais (pense-se, por exemplo, nas visões do São Entre os relatos de Gregório, o Grande, e os textos. dos séculos XI-XIII
Martinho nesse modelo de hagiografia latina que foi a Vila Martini de (vidas de Odilon, de Jotsuald e de Pedro Damião, história de Artur no
Sulpício Severo) de visões de moribundos. Primeiro, a história de um Etna de Gervásio de Tilbury) situa-se uma peça muito interessante do
monge que, no momento da morte, vê Jonas, Ezequiel e Daniel. Depois processo infernal das Lipari. Este texto raro do século VIII dá-nos a co-
vem a história do jovem Eumorfius, que um dia manda um seu escravo nhecer ao mesmo tempo uma erupção vulcânica entre os anos 723 e 726 e
dizer ao seu amigo Estêvão: «Vem depressa porque o navio que vai levar- a continuidade de uma crença ligada a um lugar de excepção. Trata-se do
-nos à Sicílía está pronto.» Enquanto o escravo vai a caminho, os dois relato de uma paragem nestes lugares de um peregrino a caminho de
homens morrem, cada um por seu lado. Este relato espantoso intriga Jerusalém, o santo Willibald.
Pedro que solicita explicações a Gregório:
De lá, chegaram à cidade de Catânia, depois a Reggio, cidade da Calábria.
PEDRO: Mas, pergunto-te, porque apareceu um navio à alma que saía do É aí que fica o inferno de Teodorico. Tendo chegado, saíram do navio para
corpo, e porque disse ele que depois da morte seria levado para a Sicilia? verem como era esse inferno. Willibald, levado pela curiosidade e para ver
GREGÓRIO: A alma não precisa de meio de transporte (vehiculum ) mas como era o interior desse inferno, quis subir ao cume da montanha onde se
não é de estranhar que a um homem ainda fechado no seu corpo apareça o abria o inferno lá em baixo, mas não pôde. Faúlhas vindas do fundo do
que ele tinha o costume de ver por meio do corpo, para que ele possa assim tártaro negro subiam até à borda e aí se espalhavam aglomerando-se. Como
entender onde a sua alma poderá ser conduzida espiritualmente. O facto de ele a neve quando cai do céu se acumula em montículos brancos vindos dos arcos
ter afirmado a esse homem que seria levado para a Sicília só pode ter um aéreos do céu, também as faúlhas acumuladas no cume da montanha impe-
sentido: mais do que em qualquer outro lugar, é nas ilhas dessa terra que diam a subida de Willibald. Mas, cuspida pelo poço, ele viu surgir uma chama
estão abertas as marmitas dos tormentos que cospem fogo. Estas, como afir- negra terrível e horrível, um ruído de trovão. Olhou a grande chama e o vapor
mam os conhecedores, cada dia aumentam mais porque, como se aproxima o do fumo elevando-se mcdonhamente muito alto no céu. Esta lava (pumex ou
fim do mundo e é incerto o número dos que lá serão reunidos para serem fomex), de que falavam os escritores, viu-a ele subir do inferno e ser projec-
queimados, acrescentando-se aos que já lá estão, é necessário que esses luga- tada no mar juntamente com chamas, para depois ser projectada do mar para
res de tormento se abram mais para os recolher. Deus Todo-Poderoso quis terra. Há quem a recolha e a leve consig052.
mostrar esses lugares de correcção aos homens que vivem neste mundo, para
que os espíritos incrédulos (mentes infidelium) que não acreditam que existem
O sentido destes textos é claro. O que existe desde a Antiguidade - e
tormentos infernais vejam os lugares desses tormentos. assim como os que se
recusam a acreditar naquilo de que apenas ouvem falar. também aqui o cristianismo deu um sentido novo às crenças mas mante-
Quanto àqueles, eleitos ou condenados, cuja causa foi comum nas suas ve-as no seu lugar in situ - na Sicília, nos vulcões das Lipari como no
obras, são conduzidos para lugares igualmente comuns; as palavras verdadei- Etna, é o Inferno. É verdade que durante muito tempo os lugares purga-
ras deveriam bastar para nos convencer disto, mesmo que faltassem. os tórios cristãos serão perto do Inferno e mesmo uma parte dele. Mas quan-
exemplos 50. do nasce o Purgatório e embora as penas que lá se sofrem sejam

242 243
-_._--------_ ... _---------------------,

temporárias mas infernais, é necessário assegurar a sua autonomia topo- NOTAS


gráfica no interior do sistema geográfico do além. Na Irlanda o Purgató-
rio - ainda que infernal - de S. Patrick não é ensombrado pelo Inferno.
Na Sicília a grande tradição infernal não permitiu que o Purgatório se
expandisse. O velho Inferno barrou o caminho ao jovem Purgatório.

1 O texto do opúsculo encontra-se em Migne, PL, 145,col. 584-590com títulos de


capítulos acrescentados pelo editor e que são muitas vezes anacrónicos (por exemplo,
liberat a poenis purgatorii). Sobre Pedro Damião e a memória dos mortos, ver
F. DRESSLER, Petrus Damiani. Leben und Werk, Roma, 1954. Sobre a morte no
meio monástico, ver J. LECLERCQ, «Documents sur Ia mort des moines» in Revue
Mabillon, XLV, 1955, pp. 165-180.
2 PL, 145, 186, 188.

3 O texto latino precisa com fundamento e realismo: poena/ibus undique loris os-
trictum et ambientium catenarum squaloribus vehementer attritum.
4 PL, 144, 403.
5 De miraculis, I, IX, PL, 189, 871.
6 De miraculis, I, XXIII, ibid., 891-894.
7 De miraculis, I, XVIII, ibid., 903-908.

8 Trata-se do manuscrito latino 15912 que foi parcialmente transcrito por Geor-

gette Lagarde no contexto da investigação do grupo de antropologia histórica do


Ocidente medieval da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais sobre o
cxemplum. As visões referidas encontram-se no folheto 64.
9 Esta historieta sobre a breve passagem de S. Bemardo pelo Purgatório não foi
aproveitada por Jacopo da Varazze na Lenda Dourada. Recordemos que a lmaculada
Concepção de Maria só se tomou um dogma do catolicismo em 1854.
10 O De vita sua (título original Monodiae: Poemas a uma voz, Memórias) de
Guibert de Nogent encontra-se no tomo 156 da Patrologie {atine de Migne e foi
substituído na história da autobiografia por G. KISCH, Geschichte der Autobiogra-
phie, 1,2, Frankfurt, 1959;ver J. PAUL, «Le dêmoniaque et I'imaginaire dans le De
vila sua de Guibert Nogent» in Le Diable au Moyen Age, Senefiance nO6, Aix-en-
-Provence, Paris, 1979, pp. 371-399.
11 Ver a introdução de John F. BENTON à tradução para inglês da obra: Self and

Society in Medieval France. The Memoirs of Abbot Guibert of Nobent, Nova Iorque,
1970,e o sugestivo artigo de Mary M. McLAUPHLIN, «Survivors and Surrogates:
Children and Parents from the IXth to the XIIIth centuries» in The History of Child-
hood, Lloyd de Mause ed., Nova Iorque, 1975,pp. 105-106.
12 Cf. J.-CI. SCHMITT, Le saint /évrier. Guinefort, guérisseur d'enfant depuis le
XIIr siêcle, Paris, 1979.

244 245
13Sbo re a ligaçao
- entre a cor negra e o diabo na Idade Média ver 1. DEVISSE e histórico. Citemos: Th. WRIGHT, SI. Patrick's Purgatory; an essay on lhe legends of
M. MOLLAT, L 'Image du noir dans /'art occidental, 11. «Des premiers siêcles chrétiens Purgatory, Hell and Paradise, eurrent during the Middle Ages, Londres, 1844. BA-
aux grandes découvertes», 2 vol., Friburgo, 1979. RING-GOULD, Curious Myths of the Middle Ages. 1884, repr. Leyde, 1975; S. Pa-
14 Texto publicado por Dom Mauro INGUANEZ in Miscellanea Cassinese, XI, trick's Purgatory, pp. 230-249. G. Ph. KRAPP, The Legend of St. Patrick's Purgatory,
1932, pp, 83-103, precedido de um estudo de Dom Antonio MIRRA «La visione di its later Iiterary history, Baltimore, 1900. Ph, de FÉLICE, L'autre monde. Mythes et
Alberico», ibid., pp. 34-79. ' légendes: Le Purgatoire de saint Patrice, Paris, 1906. O estudo tido como o mais com-
15 A propósito das influências muçulmanas ver as teses exageradas de M. ASIN pleto, o de Shame LESLIE, SI. Patrick's Purgatory: A reeordfrom History and Lite-
PALACIO, La Escatologia musulmana en Ia "Divina Comédia", Madrid, 1919 e Dante rature , Londres, 1932, não é o mais interessante. V. e E. TURNER deram uma
y el/slam, Madrid, 1929, e as mais moderadas de E. CERULLI, 11"livro della Scala" et interpretação antropológica muito sugestiva à peregrinação de S. Patrick ao Purgató-
Ia questione delle fonti arabo-spagnole della Divina Comedia, Roma, 1949. Sobre a rio nos tempos modernos - que nada acrescenta ao nosso tema: /mage and Pilgrimage
ausência de Purgatório no Islão ver principalmente E. BLOCHET «Étude sur in Christian Culture: capo 11I, St. Patrick's Purgatory: Religion and Nationalism in an
l'histoire religieuse de l'Iran» in Revue de l'histoire des religions, 20: 1. 40, Paris, Archaic Pi/grimage, Oxford, 1978, pp. 104-139.
189,9, p. 12. Ver também M. ARKOUN, 1. Le GOFF, T. FAHD, M. RODINSON, 21 Existe em Roma na igreja do Sacro Cuore deI Suffragio um pequeno «museu do

L'E~~ange et le Merveilleux dans l'Islam médiéval, Paris, 1978, pp. 100-101. Purgatório» onde são conservados uma dúzia de vestígios (geralmente queimaduras
Preenche vinte páginas impressas. feitas com uma mão - em sinal do fogo do Purgatório) de aparições de almas do
l~ O texto editado diz: Hoc autem insinuante apostolo, purgatorii nomen habere Purgatório a vivos. Estes testemunhos vão do fim do século XVIII ao começo do
c0K,novi. Sutx:ntendo fluminis: «Soube que tinha o nome de (rio) purgatório.» Com século XX. Longa duração, a do sistema do Purgatório ...
efeito, a rubnca deste capítulo que, segundo o editor, é transcrita do manuscrito, é 22 Estes dados sobre S. Patrick que viveu no século V são inventados. As antigas

«De .(Iu~ine purgatorio» (edo rio purgatório»). É como adjectivo no genitivo com vidas de S. Patrick nada dizem a este respeito. O Purgatório de S. Patriek é mencio-
referência a esta passagem que purgatorii (purgatorius ) figura no ficheiro do novo nado pela primeira vez, no estado actual da documentação, na nova vida do santo
glossário de Du Cange conforme amavelmente me comunicou A. M. Bautier, escrita por Jocelyn de Furness entre 1180 e 1183. Como o chanceler Owein não é
18 Se bem que a referência não seja mencionada, esta interdição provém evidente- mencionado, considera-se geralmente este período 1180/1183 como o terminus a quo
mente de S. Paulo, II Coríntios, XII, 2-4. Eis o fim'da viagem: S. Pedro leva finalmente para a datação do Tractatus de H. de Saltrey,
Alberico através de cinquenta e uma províncias terrestres - as do antigo Império 23 Ver Erich KÓHLER, L 'Aventure ehevalresque. /déal et réalité dans le roman
Romano - onde lhe mostra santuários de santos e mirabilia edificantes. O relato ter- courtois, Paris, 1974.
mina com um~ descrição de S. Pedro, diversos propósitos do apóstolo, o regresso da 24 Continuo a contar a história por uma paráfrase abreviada. O texto entre aspas
alma .de Albenco ao corpo, a visão de sua mãe, quando rezava a um ícone que repre- não é a tradução integral do discurso dos dois «arcebispos».
sentava S. Paulo pela sua cura, e a sua entrada no mosteiro de Monte Cassino. 25 Noto que se encontram estas imagens do além entre os actuais descendentes dos

19 Visio Tnugdali, ed. Albrecht Wagner, Erlangen, 1882. Recordo o estudo recente Maias, os Lacandons do Sul do México: «O "sábio" Tchank'in Maasch ... não deixava
de Claude CAROZZI citado a p. 16, n. I e p, 185 n. 1. de referir relatos sobre este domínio das sombras onde correm lado a lado regatos
20 O Purgatorium Sancti Patricii foi editado duas vezes no século XVII, por MES- gelados e rios de fogo ...» (1. SOUSTELLE, Les Quatre Soleils, Paris, 1967, p. 52).
SINGHAM no seu Florilegium Insulae Sanctorum, 1624, edição reproduzida na Patro- 26 F. W. LOCKE, «A new date for the composition of the Tractatus de Purgatorio
logie latine, 1. 180, col. 975-1004 e pelo jesuíta John COLGAN na sua Triadis Sancti Patricii» in Speculum, 1965, pp. 641-646 rejeita a data tradicional de cerca de
thaurnaturgae ... acta, Lovaina, 1647. Foram feitas edições modernas por S. ECKLE- 1189 para atribuir ao período 1208-1215 a composição do Tractatus, o que implica que
BEN, Die âltest Schilderung vom Fegfeuer des heiligen Patricius, Halle, 1885; por Ed. a data do Espurgatoire Saint Patriz seja também avançada vinte anos. Richard Baum
MaU que, .perante o texto editado por Colgan, nos dá o texto do manuscrito que se (<<Recherches sur les oeuvres attribuées à Marie de France», in Annales Universitatis
~e considerar co~o o mais próximo do texto original (ms E VII 59 de Bamberg, do Saraviensis, 9, Heidelberg, 1968) afirmou recentemente que não só o Espurgatoire era
sc;culo XIV) e as vanantes de um manuscrito do British Museum, Arundel, 292 (fim do de facto posterior ao último decénio do século XII mas também que não era de Marie
seculo ?GIl), Zur Geschiehte der Legende vom Purgatorium des heiligen Patricius, in de France, Veremos adiante que a Topographia Hibernica de Giraud de Cambrie e a
Romanische Forschungen ed. K. Vollmõller, VI, 1891, pp. 139-197; por U. M. VAN Vida de S. Patrick de Jocelyn de Furness não fornecem qualquer elemento decisivo
DER ZANDEN, Etude sur le Purgatoire de saint Patriee, Amesterdão, 1927, que ditou para a datação do Tractatus.
o. texto de um manuscrito de Utrecht do século XV e, em apêndice, uma versão corri- 27 A Vida de S. Patrick: de JoceIyn de Furness foi editada no século XVII no mesmo

gida do manuscrito Arundel 292; e por Warncke em 1938. Utilizei a edição Mall. O volume do Purgatorium de H. de Saltrey no século XVII por Messigham (Florilegium
Purgatorium .Saneti Patricii suscitou, nas suas formas latinas ou em linguagem vulgar insulae sanctorum ..., Paris, 1624, pp. 1-85) e por Colgan (Triadis thaumaturgae .... Lo-
(francesas e inglesas sobretudo - lugar à parte para a tradução de Marie de France vaina, 1647: a passagem sobre o Purgatório no monte Cruachan Aigle encontra-se na
l'!!spurgatoire. ~aint Patriz), ~uitos estudos entre os quais alguns, ainda que antigos, p. 1027). Foi retomada nos Acta Sanctorum, 17 de Março, 1. lI, pp. 540-580.
sa? sempre vahd~s. ~ maioria deles repõe este texto na história das crenças sobre o 28 GIRALDUS CAMBRENSIS, Opera, 1. V, ed. J. F. Dimock, Londres, 1867
~Iem desde a Antiguidade, e no folclore. Se bem que por vezes insuficientemente crí- (Rerum Brittannicarum medii aevi scriptores ), pp. 82-83. Foi imediatamente a seguir
ticos e ultrapassados, estes estudos continuam a ser um modelo de abertura de espírito a esta passagem que foi acrescentado no manuscrito da primeira metade do século XIII

246 247
«Este lugar foi chamado pelos habitantes Purgatório de Patrick» e diz-se como este Existem .ambém várias versões francesas em prosa. Uma delas foi publicada por
obteve licença para o fundar. Cf. C. M. Van der Zanden. Um capítulo interessante Prosper T ARBÉ. Le Purgatoire de saint Patriee. Légende du xnr siêcle, publiée
da Topographia Hibemica e do Tractatus de purgatorio saneti Patrieii encontra-se em d'aprés un manuscrit de Ia Bibliothéque de Reims, Reims, 1842. As versões inglesas
Neophilologus 1927. Giraud, o Galês parece ter redigido a sua Topographia no momento mais antigas foram publicadas por HORTSMANN in Alten Englische Legenden, Pa-
em que uma peregrinação penitencial - sem dúvida com aspecto de ordálio - foi trans- derborn, 1875, pp. 149-211, KOELBING in Englische Studien, I, pp. 98-121, Breslau,
ferida da maior ilha dos santos (Saints' Island) para a pequena ilha de Station Island a 1876, e L. T. SMITH, Englisehe Studien, IX, pp. 3-12, Breslau, 1886.
noroeste de Lough Derg, e daí a síntese numa só ilha partilhada por santos e demónios. Uma edição em provençal antigo do começo do século XV foi publicada por
29 Além do interessantíssimo estudo de V. e E. Tumer citado no fim da nota 20 A. JEANROY e A. VIGNAUX, Raimon de Perelhos. Voyage au Purgatoire de saint
deste capítulo, pp. 259-260, só existem estudos medíocres ou sumários da peregrina- Patrice, Toulouse, 1903 (textos em languedócio do século XV). Esta edição contém
ção. Cf. John SEYMOUR, St. Patrick's Purgatory. A Mediaeval Pilgrimage in Ireland, também versões em provençal antigo da visão de Tnugdal e da visão de S. Paulo
Dundald, 1918, J. RYAN, New Catholie Encyclopedia, voI. XI, 1967, p. 1039. Philippe que Raymond de Perelhos julga ser a viagem ao Purgatório de S. Patrick. O conjunto
de FELICE (cujo capítulo IV de L'Autre Monde, Mythes et Légendes, Le Purgatoire de destes textos provém do manuscrito 894 da Biblioteca municipal de Toulouse, prova
saint Patrice, Paris, 1906, intitulado «História do Santuário do Lough Derg» não é do gosto pelas visões do além e do Purgatório no século XV. Este pequeno «corpus»
isento de interesse e termina com este judicioso reparo: «A persistência, através dos ucarreta a transformação da visão de Tnugdal em visão do Purgatório. O título é
séculos, do Purgatório de S. Patrick é um facto preciso, indiscutível, cuja importância (f. 48): Ayssi commensa 10 libre de Tindal traetan de Ias p~nas de purgatori. Sobre o
merecia ser assinalada à atenção dos sociólogos») conta (p. 9 e ss.) como, na compa- destino do Purgatório de S. Patrick em Espanha ver J. PEREZ de MONTALBAN,
nhia de um primo, chegou com dificuldade ao Lough Derg e à ilha do Purgatório em Vida y Puragatorio de San Patricio, ed. M. G. Profeti, Pisa, 1972.
1905. Em 1913 o cardeal Logue, primaz da Irlanda, depois de uma visita a Station 32 Légende dorée, tradução francesa. T. de WYZEWA, Paris, 1920, p. 182. Sobre
Island, declarou: «Creio que todos que realizaram a peregrinação tradicional aqui Étienne de Bourbon e Humbert de Romans ver L. FRA TI, «li Purgatorio do S. Pa-
ao Lough Derg, bem como os exercícios penitenciais, o jejum e as preces que valem trizio secondo Stefano di Bourbon e Umberto de Romans» in Giorna/e storieo della
tantas indulgências, e morreram em seguida pouco terão tido que sofrer no outro letteratura italiana, 8, 1886, pp. 140-179.
mundo» (citado por V. e E. Turner, p. 133). Anne Lombard-Jourdan que visitou o 33 A redacção em prosa de Gossouin de Metz foi editada por o. H. PRIOR,
Lough Derg e o Purgatório de S. Patrick em 1972 teve a gentileza de me descrever o L'1mage du monde de maitre Gossouin. Rédaction en prose, Lausanne-Paris, 1913.
programa oficial que tem a aprovação do bispo local, o bispo de Clogher. Na Idade 34 Este extracto da Image du monde de Gossouin de Metz é a versão ligeiramente
Média a duração da penitência passara de 15 para 9 dias, a duração normal das no- modernizada do texto do conde de DOUHET no Dietionnaire des /égendes du
venas para a Igreja. Na época moderna a duração foi encurtada para 3 dias, o que é christianisme, ed. Migne, Paris, 1855, colunas 950-1035.
hoje a prática, mas o centro da peregrinação continua a ser uma provação de 24 horas. 35 Ed. de Quaracchi, t. IV, p. 526. O grande mestre franciscano diz que existiu a
O programa de 1970 diz «a vigília (lhe Vigil) é o principal exercicio espiritual da lenda de que o Purgatório se encontrava nestes lugares (ex quo fabulose ortum est, quod
peregrinação e significa privarmo-nos de dormir de uma maneira completa e contínua ibi esset purgatorium).
durante 24 horas». Bela continuidade das crenças e das práticas! 36 FROISSART, ed. Kervyn de Lettenhove, Chroniques T. XV, Bruxelas, 1871, pp.
30 L 'Espurgatoire de Saint Patriz de MARIE DE FRANCE foi publicado por 145-146.
Thomas Atkinson Jenkins, Filadélfia, 1894. Ver L. FOULET, «Marie de France et 37 SHAKESPEARE, Ham/et. Quando o fantasma do pai aparece a Hamlet (acto I,
Ia Légende du Purgatoire de Saint Patrice» in Romanische Forschungen, XXII, 1908, cena V) revela-lhe que foi condenado por um tempo determinado a errar de noite
pp. 599-627. e a jejuar durante o dia nas chamas até que os seus pecados sejam queimados e pur-
31 Paul Meyer indicava sete versões francesas em verso do Purgatório de S. Patrick gados (dirá pouco depois que o assassínio nele praticado pelo irmão foi tanto mais
(Histoire Iittéraire de Ia France, t. XXXIII, pp. 371-372 e Notiees et Extraits des ma- odioso quanto nem lhe deu tempo para se confessar e fazer penitência antes de
nuscrits de Ia Bibliothéque nationale, t. XXXIV, Paris, 1891): I) a de Marie de France; morrer).
2 a 5) quatro versões anónimas do século XIII; 6) versão de Béroul; 7) versão de
Iam thy father's spirit
GeofTroy de Paris introduzida pelo livro IV da Bible des sept états du diable. Uma
Doom 'd for a certain term to walk the night
delas foi publicada por Johan VISING, Le Purgatoire de saint Patrice des manuscrits
And.for lhe day, confin 'd to fast in fires,
Harléien 273 et Fonds franpais 2198, Gõteborg, 1916. O substantivo purgatório é usado
várias vezes. Por exemplo: Till de foul crimes, done in may days of nature,
Are burnt and purg'd away.
Pela grande vergonha que tinha
Dizia que de boa vontade iria Quando o fantasma desapareceu, Hamlet, sem revelar a Horácio e Marcelo o que
Para o purgatório, para poder ele lhe dissera, invoca S. Patrick:
Expiar bastante os seus pecados (v. 91-94) HORA TIO: There's no offence, my lord,
HAMLET: Yes, by Saint Patrick, but there is, Horatio,
Com aquele que não quer deixar And much offence. 100. Touching this vision
De no purgatório entrar (v. 101-102). It is an honest ghost.

248 249
38 CALDERÓN, Le purgatoire de saint Patrice, trad. francode Léon ROUANET, VII - A LÓGICA DO PURGATÓRIO
Drames religieux de Calderôn, Paris, 1898. A primeira edição do Purgatorio de San
Patricio é de 1636.
~9 O conde de DOUHET no seu interessantíssimo artigo: «Saint Patrice, son pur-
gatoire et son voyage» do Dtctionnaire des légendes du christianisme, ed. Migne, Paris,
1855, col. 950-1035, publicou uma versão ainda muito apreciada no século XVIII.
Escreve,ele(col. 951): «Entre mil outras, escolhemos uma versão recente, ainda popu-
lar no seculo passado e que esclarece completamente as intenções da Idade Mêdia.»
.40 J<?TSUALD (existem também as ortografias Jotsald, Jotsaud e Jotswald), Vita
Odilons m Patrologie Latine, t. 142,col. 926-27. Pedro Damão, Vita Odilonis, também
em PL, t. 144,col. 935-937. Ver atrás, pp. 171-173.
Sobre as crenças populares ligadas aos vulcões das ilhas Lipari e ao culto de S.
Bart,?I0In:e~~cujas relíquias aparecem nas Lipari cerca de 580 e ao de S. Calogero,
eremita siciliano que viveu algum tempo nas ilhas Lipari e que aparece nos odes do
monge de Sergio no século IX (será canonizado no fim do século XVI), ver G. COZZA
LUZI, «Le eruzioni di Lipari e deI Vesuvio nell'anno 787»in Nuovo Giornale Arcadico Os mortos não existem senão pelos e para os vivos. Inocência 111
ter. 111, Milão, 1890 e G. IACOLINO, «Quando le Eolie diventarono coloni~ disse-o: os vivos ocupam-se dos mortos porque são eles próprios futuros
dell'.Infe.rno.Calogero un uomo solo contro mille diavoli» in Arcipelago, ano lI, nO mortos. E numa sociedade cristã, sobretudo na Idade Média, o futuro
4, Lipari, 1977.Bernabo Brea prepara um estudo sobre estas tradições da Antiguidade
não tem apenas um sentido cronológico, mas primeiro e principalmente
aos nossos dias.
41 '
JU.LIEN de VEZELAY, Sermone, ed. D. Vorreux, t. II (colecção Fontes cristãs, um sentido escatológico. Natureza e sobrenatureza, no mundo e no além,
193),Pans, 1972,pp. 450-455.Julien dá a mesma etimologia de ethnici a partir de Etna ontem, hoje, amanhã e sempre, a eternidade, são unos, feitos de uma
no sermão IX, t. I, p. 224. mesma trama, não sem acontecimentos (o nascimento, a morte, a ressur-
42 Ibid., pp. 456-459 e 460-463. reição), não sem saltos qualitativos (conversão) e momentos inesperados
43 GERVASIO de TILBURY, Otia Imperialia in Scriptores Rerum Brunsvicensium, (o milagre). A Igreja está por toda a parte, no seu papel ambíguo: con-
Hanover, 1707, t. I, p. 921 (edição de Leibniz que, num prefácio, mostra a sua pro- trolar e salvar, justificar e contestar a ordem estabelecida. Desde o fim do
fund,! aversão de homem do Século das Luzes pela Idade Média).
século IV até meados do século XII, de Agostinho a Otão de Freising (o
Reconheceu-se a palavra árabe Djebel (montanha), testemunho da presença
muçulmana na Sicília e do prestígio do Etna, chamado a montanha. prelado tio de Frederico Barba Ruiva), a sociedade viveu - mais mal do
45 Otia Imperialia, ed. Leibniz, p. 921. que bem - sobre um modelo ideal, a Cidade de Deus. O essencial era que
46 A. GRAF, «Artú nell'Etna» in Mitti, leggende e superstizioni dei Media Evo, vol. a cidade terrena, apesar das suas imperfeições, não tombasse para o lado
11,Turim, 1893, pp. 303-335. do Diabo, para o lado do mal. O modelo continua válido para além do
47 Ver R. S. LOOMIS, «The oral diffusion of the Arthurian Legend» in Arthurian século XI e Satanás investirá mesmo em ofensivas violentas, angustiantes,
Literature in the Middle Ages. A collaborative History (ed. R. S. Loomis), Oxford, 1959, enquanto durar o mundo feudal dos fortes e dos fracos, dos bons e dos
pp. 61-62 e no mesmo volume A. VISCARDI, «Arthurian intluences in italian litera-
ture from 1200 to 1500»,p. 419. maus, dos brancos e dos negros.
. 48 Ver o ensaio de Alfred NUTT, The happy otherworld in lhe mythico-romantic
Mas na explosão da cristandade, entre o fim do século Xl e meados do
literature of.lhe Irish. The celtic doctrine of re-birth na sequência da edição por Kuno século XIII, digamos, encontrar referências intelectuais, de Anselmo a
Meyer d.a vlage~ de .Bran, saga escrita no século VII, revista no século X e cujos Tomás de Aquino, já não é assim tão simples. Há estados intermédios,
manuscntos mais antigos datam de começo do século XII (The voyage of Bran, Son etapas, transições, as comunicações são mais sofisticadas entre os ho-
of F:tal, 10 lhe. lan~ of lhe Living, An o,ld Irish Saga, Londres, 1895). mens, entre Deus e os homens; o espaço e o tempo fragmentam-se e reor-
~ Falo mais. adiante da versão de Etienne de Bourbon . ganizam-se de outra maneira, as fronteiras entre a vida e a morte, entre o
GREGO RIO, O GRANDE, Dialogi, IV, XXXIII-XXXVII ed. V. Moricca pp. mundo e a eternidade, entre a terra e o céu, deslocam-se. Os instrumentos
278·285. ' ,
51 ' de medição já não são os mesmos, quer se trate da ferramenta intelectual,
52 GREGORIO, O GRANDE, Dialogi, IV, XXX. Ver atrás, p. 116.
Hodoeporicon S. Willibaldi in Itinera hierosolymitana, ed. Tobler e A. Molinier, dos valores, ou das técnicas materiais. A reforma gregoriana entre o meio
Genebra, 1879, pp. 272-273. Devo o conhecimento deste texto à amizade de Anne do século XI e o meio do século XII, resposta da Igreja ao desafio das
Lombard-Jourdan, novas estruturas da cristandade, liquidou uma retórica que ainda faltará
durante algum tempo à boca de cena mas que, cada vez menos, esconde

250 251
as realidades novas do teatro cristão. Retórica do dualismo: as duas ci É, por fim, o julgamento das nações:
dades, os dois poderes, as duas espadas, o clero e os laicos, o Papa e o
imperador; há também dois exércitos, o do Cristo e o de Satanás. Inocên- E eu vi os mortos, grandes e pequenos, de pé perante o trono; abriram-se
cio lU é aqui uma testemunha e um actor irrefutável. É um grande Papa livros e depois um outro livro o da vida; então os mortos foram julgados
segundo o conteúdo dos livros, cada um conforme as suas obras .... Então
não por ter feito triunfar entre a cristandade (como pretendia uma histo-
a Morte e o Hades foram lançados no lago de fogo - é a segunda morte, este
riografia arcaica) um suposto modelo de feudalismo jurídico que nunca lago de fogo - e àquele que não estava inscrito no livro da vida lançaram-no
existiu, mas porque, apesar de alguns erros (quem poderia pensar, cerca no lago de fogo (Apocalipse, XX, 12-15).
de 1200, que os cistercienses seriam incapazes de combater vitoriosamente
os hereges?), restabeleceu o poder da Igreja sobre a nova sociedade, não
opondo-se-lhe mas adaptando-se a ela. Inocêncio 111designa daí em dian- Mas este julgamento futuro, último, geral, comporta apenas duas pos-
te três igrejas: entre o exército de Deus e o exército de Zabulão há «o sibilidades: a vida ou a morte, a luz ou o fogo eterno, o Céu ou o Inferno.
exército que está no Purgatório» I. O Purgatório vai depender de um veredicto menos solene, um julgamento
individual logo a seguir à morte que as imagens cristãs medievais vêem
espontaneamente sob a forma de uma luta pela alma do defunto entre
o além e os progressos da justiça anjos bons e maus, entre anjos propriamente ditos e demónios. Como
as almas do Purgatório são almas eleitas que finalmente serão salvas,
A que responde este aparecimento de uma terceira sociedade no além? libertam-se dos anjos mas são submetidas a um procedimento judicial
Será a uma evolução da ideia de salvação à qual se ligam geralmente as complexo. Podem, com efeito, beneficiar de uma alteração de pena, de
concepções humanas do outro mundo? uma libertação antecipada, não pela sua boa conduta pessoal mas por
A reflexão dos vivos sobre o além parece-me todavia animada mais causa das intervenções exteriores, os sufrágios. A duração da pena depen-
pela necessidade de justiça do que pela aspiração à salvação - excepto, de pois, para além da misericórdia de Deus simbolizada pelo zelo dos
talvez, durante breves períodos de efervescência escatológica. O além de- anjos ao arrancar as almas aos demónios, dos méritos pessoais do defun-
ve corrigir as desigualdades e as injustiças cá de baixo, deste mundo. Mas to adquiridos durante a vida e dos sufrágios da Igreja suscitados pelos
esta função do além de correcção e de compensação não é independente parentes e amigos do defunto.
das realidades judiciais terrenas. Sendo no cristianismo o destino eterno Este processo inspira-se evidentemente nas concepções e nas práticas
dos homens fixado no Julgamento Final, a imagem do julgamento ganha da justiça terrena. Ora o século XII é o século da justiça num duplo sen-
uma importância singular. E certo que o Novo Testamento descreveu a tido: a justiça - como ideal - é um dos grandes valores do século enquan-
cena em que a cortina cai sobre o mundo e se abre sobre a eternidade. É a to a prática judicial se transforma consideravelmente. A noção ambígua
grande separação das ovelhas e dos lobos, dos eleitos à direita e dos con- de justiça evolui entre esse ideal e essa prática. Face aos senhores feudais
denados à esquerda (Mateus, XXV, 31-46). É a vinda do Paracleto. que monopolizam a justiça como direito, instrumento de domínio sobre
os membros do feudo, e como fonte de lucros financeiros, os reis e os
E ele, logo que venha, príncipes territoriais reivindicam o ideal e a realidade da justiça, o clero
estabelecerá a culpabilidade do mundo
reforça o seu ascendente sobre as aspirações colectivas da sociedade apro-
em matéria de pecado
em matéria de justiça
fundando a concepção cristã de justiça, desenvolvendo a actividade nos
e em matéria de julgamento:
tribunais episcopais, os provisorados e, sobretudo, criando um novo tipo
de pecado, de direito, o direito eclesiástico ou direito canónico.
porque eles não crêem em mim; Do lado dos detentores de autoridade pública, o aumento das inter-
de justiça, venções no domínio judicial, a invocação mais instante de um ideal de
porque eu vou para o Pai justiça, caracterizam o século XII. E isto é verdade em relação às grandes
e vós não me vereis mais; monarquias feudais - e principalmente à Inglaterra mas também à França
de julgamento, dos Capetos onde, de Luís VI e Luís VII a Filipe Augusto e de Suger aos
porque o Príncipe deste mundo é julgado. panegiristas de Filipe Augusto, a imagem do rei justo cresce ao mesmo
(João, XVI, 8-11). tempo que a acção da justiça real/. E isto é assim também nos grandes

252 253
principados territoriais. Um episódio sangrento, o assassínio por mem- Refere-se por fim à maneira como um acusado pode justificar-se, pur-
bros de uma família de ministeriais do conde da Flandres, Carlos, o gar-se das suas culpas, reais ou supostas: «Um acusado pode expurgar-se
Bom, na capela de Bruges em 1127, proporciona-nos um relato espanto- (expurgare) de três maneiras: apresentando testemunhas irrefutáveis, en-
so. Tendo como pano de fundo o nascente poder económico da Flandres, tregando-se a um exame profundo ou, antes de qualquer publicidade,
nele encontramos o enunciado, através do retrato um tanto idealizado do confessando e arrependendo-se» (pela confissão e a penitência: confessio-
conde assassinado, do ideal político dos governos do século XII. O autor fie et penitentiat. Enfim, «se um acusado não quis expurgar-se, quer esteja
deste relato, o notário Galbert de Bruges, coloca à frente das virtudes do convencido de que é culpado, quer confesse os seus pecados mais tarde,
príncipe a justiça:'. Este príncipe justo foi cognominado de o Bom. será condenados''.
O grande iniciador do movimento canonista do século XII, o bispo Reencontramos a reflexão sobre o pecado na teologia como no direito
Yves de Chartres, no Prólogo da sua colecção canónica, o Decreto canónico. Crime (crimen), delito (delictum ), culpa (culpa), pecado
(1094), expôs uma teoria da dispensa, a ser concedida pela autoridade (peccatum), estas palavras são, no século XII, comuns aos teólogos e
eclesiástica, para permitir em certos casos a não-aplicação das regras aos canonistas que se esforçam, uns e outros, por as diferenciar.
do direito. Nessa altura ele definiu uma distinção fundamental entre as Num estudo clássico sobre o ensino da culpa em direito canónico, de
regras da justiça: as regras imperativas, as sugestões e as tolerâncias Graciano aos Decretais de Gregório IX7, Stephan Kuttner, depois de no
(praeceptum, consilium, indulgentia) 4. Nos primeiros anos do século seu prefácio ter sublinhado a importância deste grande movimento inte-
XII, inspirando-se em Yves de Chartres, Alger de Liêge, diácono e mestre lectual e social, o começo da ciência do direito canónico e evocado a
de teologia da Igreja de Saint-Lambert e depois cónego da catedral, que produção sempre crescente, na segunda metade do século, da literatura
por fim se retirou em Cluny (não se trata de um tenor da nascente classe canonista: glosas ao Decreto, Súmulas, e, no domínio regularmente ecle-
intelectual mas de um clérigo mediano), faz um Livro da misericórdia e da siástico, decretais que finalmente Gregório IX reunirá e inserirá em 1234
justipa (Liber de misericordia et justitia)", no Corpus de direito canónico que está em curso, começa o seu estudo por
Esta ideologia política situa-se num contexto religioso. Ainda que te- «Abelardo e o conceito de crime».
nha participado nas violências deste século, tanto em cristandade como
nas cruzadas contra os infiéis, a Igreja não separa, segundo o modelo Novas concepções do pecado e da penitência
divino, a misericórdia da justiça.
Alger define as regras da tolerância que consistem essencialmente em As palavras e as ideias de Alger de Liêge levaram-nos bem próximo do
não acusar sem provas jurídicas. Parte da antítese clássica desde Agosti- Purgatório. Alger de Liêge, ao citar os seus inspiradores, colocava-se na
nho, renovada, explicitada, retomada num contexto bem diferente, o da linha dos pais do Purgatório. Agostinho e Gregório, o Grande, a bem
efervescência ideológica e social, na volta do século XI para o século XII, dizer não o Gregório dos Diálogos mas o dos Moralia e do Liber pasto-
entre o direito estrito e a tolerância. Revela os seus objectivos que devem ralis. Chega-se ao Purgatório penetrando no domínio onde, no século XII,
ser, segundo ele, os da justiça: propiciar a reconciliação, procurar escru- se joga o essencial da nova partida que a Igreja e a sociedade disputam no
pulosamente a intenção, definir bem o papel da vontade no delito. ponto de encontro da vida espiritual e da vida material e social: a penitência.
Como farão dentro em breve Abelardo e Graciano, ele evoca os textos Pór um itinerário inverso e complementar do de Stephan Kuttner, um
contraditórios da Bíblia: existe uma tal «diversidade» nas Escrituras! Tan- historiador de teologia, Robert Blomme, reencontra - característica fun-
ta diversitas scripturarum ... É pois possível brincar com as autoridades. damental do século - a noção de justiça ao estudar A Doutrina do pecado
No fim do século, aproveitando o engenho interpretativo dos teólogos nas escolas teológicas da primeira metade do século XI~ (La Doctrine du
e dos canonistas, Alain de Lille dirá que as citações têm nariz de cera ... péché dons les écoles théologiques de Ia premiêre rnoitié du XI~ siécle),
Cabe aos hábeis torcê-Io a seu favor. E cá temos, na segunda metade do século, Pedro, o Devorador, que é
Alger vai muito longe dentro da tolerância. Escreve que «se não po- talvez o «inventon do Purgatório. No Liber Pancrisis ele reuniu citações
demos corrigir os iníquos, devemos tolerá-Ios ...», «que devemos tolerar os dos Pais da Igreja feitas ou comentadas por «mestres modernos» (a mo-
maus para conservar a unidade» - a paz. Acha que «até um condenado, dernis magistris), dando-lhes a forma como estava na moda de «máximas
se estiver verdadeiramente arrependido, pode ser reinvestido nos seus ou questões». Trata-se de teólogos da escola de Laon do princípio do
direitos, pois aquele que exerce a justica não peca» (nan peccat qui exercet século XII, Guillaume de Champeaux, Anselme e Raoul de Laon e
justitiarn) . de Yves de Chartres". Esta escola de Laon desempenhou um papel

254 255
importante na evolução das ideias sobre o pecado e a penitência. Não essencial: o tratado Sobre a verdadeira e a falsa penitência (De vera et
retomarei o estudo muito bem feito'? da grande mutação intelectual e falsa poenitential'Ô, No século XII o seu sucesso é grande. É utilizado,
moral que renovou a noção de pecado e modificou profundamente as citado por Graciano no seu Decreto e por Pedro Lombardo. E certo
práticas da penitência no século XII e no começo do século XIII, ao ligar - que a sua autoridade não advém apenas da novidade - e muitos pontos
o pecado à ignorância e ao procurar descobrir a intenção na conduta do do seu conteúdo: julgavam-no do próprio Santo Agostinho. Só reterei
pecador. dele três ideias que vão passar para a prática da Igreja e que marcarão o
O ponto de partida é, sem dúvida, Anselmo de Cantorbery. O grande sistema do Purgatório.
teólogo insistira na diferença fundamental entre o pecado voluntário e o A primeira é que, em caso de perigo e na ausência de um padre, é
pecado por ignorância. No Cur Deus homo (11, 15, 52, 115) declarara: legítima e útil a confissão a um laico. O laico não absolve, mas o desejo
«Há tamanha diferença entre o pecado cometido conscientemente e aque- de confissão exercido através do laico e que prova a contrição pode con-
le que se pratica por ignorância, que um pecado que nunca se teria co- duzir à absolvição da culpa (culpa). Este recurso extremo não é de reco-
metido se se conhecesse a sua enormidade é apenas venial porque foi mendar senão em casos de perigo de morte; e se se escapar a ela deve ir-se
praticado por ignorância!'.» Todas as grandes escolas da primeira meta- repetir a confissão a um padre que poderá dar a absolvição: se se morrer
de do século XII retomam e desenvolvem esta diferença fundamental que só se terá de executar a pena (poena); quer dizer, esta prática conduz
em seguida se tornará tradicional: a escola de Laon, Abelardo, os adeptos quase sempre ao Purgatório. E eis uma prova:
do Papa Victor. Há duas diferenças que têm especial importância. A di- Mesmo no fim do século XII, o inglês Walter Map conta em De Nugis
ferença entre vício e pecado, implicando este a aquiescência do pecador, o curialium a história de um nobre guerreiro que depois se fez monge o
seu consensus. A diferença entre culpa e pena (culpa et poena) que um qual, em determinada circunstância, é obrigado a bater-se e põe os inimi-
discípulo de Abelardo no Comentário de Cambridge comenta assim: gos em fuga; mas pouco depois, quando só está acompanhado por um
«Primeiro é preciso dizer que o pecado comporta dois aspectos: o que irmão converso (puer), é ferido de morte numa vinha por um inimigo
diz respeito à culpa (culpa) que é a aquiescência (consensus ) ou o despre- que estava emboscado: «Sentindo-se próximo da morte, confessa os seus
zo de Deus (contemptus Dei), como quando se diz que uma criança pe- pecados ao servo que estava sozinho com ele, pedindo-lhe que lhe desse
quena está isenta de pecado, o que diz respeito à pena como quando uma penitência. Este, um laico incompetente, jura que não é capaz. O
dizemos ter pecado em Adão, quer dizer ter incorrido numa penaI2.» O monge, habituado a reagir prontamente em todas as situações, arrepen-
importante para o nosso estudo é que a culpa (culpa), que normalmente dendo-se muito, diz-lhe: "Penitencia-me, pela misericórdia de Deus, meu
leva à condenação, pode ser remida pela contrição e pela confissão, en- filho querido, para que a minha alma faça penitência no Inferno até ao
quanto a pena (poena) ou castigo expiatório é anulada pela satisfação, dia do Julgamento (final), a fim de que então o Senhor tenha piedade de
quer dizer pelo cumprimento da penitência imposta pela Igreja. Se houve mim e eu não veja nunca, na companhia dos ímpios, o rosto do furor e da
contrição e/ou confissão mas a penitência não foi cumprida ou terminada cólera! O servo diz-lhe então em lágrimas: "Senhor, dou-te por penitência
voluntária ou involuntariamente (por exemplo, se a morte sobreveio), a aquilo que os teus lábios aqui pronunciaram diante de Deus." E o outro,
pena (poena) deve ser cumprida no fogo purgatório, quer dizer, a partir concordando por palavras e pela expressão do rosto, acolheu devotamen-
do fim da estada no mundo, no Purgatório+'. te esta penitência e morreu' .» O Inferno aqui referido, do qual se pode
Toda a vida espiritual e moral é daí em diante dirigida para a busca da sair no dia do Julgamento é, está claro, o inferno superior, que é como
intenção, para a pesquisa do voluntário e do involuntário, o acto cons- quem diz o Purgatório que Walter Map, espírito hostil às novidades e
ciente e o acto por ignorância. A noção de responsabilidade pessoal fica inimigo dos cistercienses, ignora.
consideravelmente acrescida e enriquecida. A caça ao pecado inscreve-se A segunda ideia é que não se deve fazer penitência só uma vez na vida,
«numa interiorização e uma personalização» da vida moral que reclama após um pecado muito grande ou em artigo de morte, mas sim muitas
novas práticas penitenciais. Mais do que a prova interna, o que agora se vezes, se possível.
busca é a confissão; mais ainda do que o castigo, o que conta é a A terceira ideia é que «a pecados secretos, penitência secreta», «a pe-
contricão'", Tudo isto leva a que passe para primeiro plano a confissão cados públicos, penitência pública». Assim se acelera o desaparecimento,
ao padre, uma confissão transformada. o declínio da velha penitência pública. A sociedade já não é mais aquele
Na viragem do século XI para o século XII, quando as estruturas os- conjunto de pequenos grupos de fiéis onde a penitência pública tinha
cilam, aparece uma obra anónima, mal datada, mal estudada e, todavia, naturalmente o seu lugar. Mesmo as grandes penitências «políticas» na

256 257
linha de Teodósio, ao submeter-se à penitência imposta por Santo Am- e Deus dará vida a esse irmão.
brósio, solta o seu canto do cisne no cenário do teatro oficial da luta entre Não se trata daqueles que cometem pecados
o Papa e o imperador: Henrique IV em Canossa, Barba Ruiva em Vene- que levam à morte;
za, ou o aparato excepcional da Cruzada dos Albigenses: Raimundo VII pois há um pecado que leva à morte
de Toulouse a Notre-Dame de Paris ... por esse pecado não digo que se deve rezar.
O que resulta de tudo isto é a prática cada vez mais frequente, inte- Toda a iniquidade é pecado,
mas há pecados
grada na vida espiritual normal se não quotidiana, da confissão auricular,
que não levam à morte.
de boca a orelha, de pecador a padre, de pessoa a pessoa. O «segredo do
confessionário» só virá mais tarde, mas o caminho já está traçado. Em
1215 sucede um facto grandioso, um dos grandes acontecimentos da his- Esboçada por Tertuliano, esta noção foi fixada por Agostinho e por
tória medieval. O quarto concílio de Latrão, no seu cânone 21, Omnis Gregório, o Grande. Os termos usados são pecados insignificantes (mi-
utriusque sexus, torna obrigatória, pelo menos uma vez por ano, a con- nuta), pequenos ou mais pequenos (parva, minora), leves ou mais leves
fissão auricular para todos os cristãos e cristãs adultos. Eis entronizado, (levia, /eviora) e, sobretudo, segundo uma expressão feliz, quotidianos
generalizado, aprofundado, o movimento que empurrava a cristandade (quotidiana). O termo venial (veniale, venialia ) só se tornou corrente
no sentido da confissão desde, pelo menos, um século antes. É o exame no século XII e, segundo A. M. Landgraf, o sistema de oposição pecados
de consciência imposto a todos, uma frente pioneira que se abre na cons- mortais/pecados veniais foi instalado na segunda metade do século XII
ciência individual dos cristãos, o alargamento aos laicos de práticas de pelos discípulos do teólogo Gilberto Porre ta (Gilbert de Ia Porrée), fale-
introspecção até aí apenas reservadas ao clero e, sobretudo, aos mon- cido em 1154: grupo que incluiria autores anónimos de Questões, e Simon
ges. A decisão chega, pois, no fim de uma longa evolução; vem sancio- de Tournai, Alain de Lille, etc.". A expressão pecado venial pertence em
nar, como é costume dizer, uma necessidade, mas nem por isso deixou de todo o caso a esse conjunto de noções e de palavras que surgem no século
surpreender muitos, na primeira metade do século XIII. Não é fácil ad- XII com o Purgatório, e que com ele formam um sistema. A palavra tem
quirir o hábito, nem para os laicos nem para os padres. Como confessar- ainda o interesse de significar - sentido este de que o clero do século XII
-se e como confessar, o que confessar e o que perguntar e, finalmente, para estava bem consciente - dignos de venia, de perdão. A ideia adquiriu um
o padre, que penitência infligir pelas coisas confessadas que não consti- sentido jurídico-espiritual.
tuam um pecado enorme e extraordinário mas sejam simplesmente faltas No começo do século XII, um tratado teológico da Escola de Laon, as
quotidianas e modestas? Mas os especialistas vão acudir aos padres em- Máximas de Arras (Sententiae Atrebatenses ) declara: «Tem de haver uma
baraçados, por vezes mesmo assustados com as novas responsabilidades, penitência diferente para um pecado criminal e para um pecado venial.
sobretudo aos menos instruídos. Vão escrever a diversos níveis - de forma Os criminais, quer dizer os passíveis de condenação, são os pecados que
simplificada para os padres «simples» - manuais de confessores - como o se cometem consciente e deliberadamente. Os outros que provêm da in-
de Thomas de Chobham que foi pioneiro 17. Entre as questões postas e vencível fraqueza da carne ou da invencível ignorância são veniais, quer
encarados os horizontes penitenciais, um recém-chegado ocupa um lugar dizer não passíveis de condenação'".» São perdoáveis sem grande custo
importante: o Purgatório. Tanto mais que ele acolhe também pecadores pela confissão, pela esmola ou por acções do mesmo género. Anselmo de
carregados de pecados que podem licitamente escapar ao crivo da confis- Laon, falecido em 1117, é da mesma opinião nas suas Sententiae. Abe1ar-
são: os pecados veniais. do na Ética20 opõe os pecados criminais (criminalia ) aos pecados veniais
Os pecados veniais têm uma longa história que já vimos em parte. A ou leves (venialia aut levia), Com Hugo de Saint- Victor e seus discípulos
sua base nas Escrituras é a primeira epístola de João, I, 8: «Se dissermos: surge uma questão destinada a múltiplos desenvolvimentos: pode um
"não temos pecados" iludimo-nos, a verdade não está em nós»; e, sobre- pecado venial tornar-se mortal? Os discípulos de Saint-Victor respondem
tudo, esta outra passagem da mesma epístola, V, 16-17: que sim, se é baseado no desprezo de Deus. Alain de Lille dá-se a uma
grande discussão sobre a diferença entre pecado mortal e pecado venial
Se alguém vir um seu irmào na qual expõe diversas opiniões e de certo modo resume a doutrina de-
cometer um pecado senvolvida no decurso do século XII21.
que não leve à morte, Não irei entrar nas subtilezas teológicas a que o pecado venial começa
que reze a dar lugar; é certo que essas discussões implicam por vezes o Purgatório.

258 259
Mas aqui, parece-me, atingimos aquele nível de elucubrações em que se nical, pela esmola, eventualmente pela confissão e talvez também, como o
comprazem com excessiva frequência os teólogos do século XIII, para não próprio Agostinho dera a entender, futuramente no Purgatório. S. Ber-
falar nos da escolástica da Baixa Idade Média e da época moderna. O nardo, que não usa a palavra veniais mas sim quotidianos, mais pequenos
Purgatório vai assim ser arrastado no turbilhão pensante de uma escol ás- (minora) ou que não têm a ver com a morte (quae non sunt ad mortem}, e
tica em delírio, inventando as questões mais ociosas, esmerando-se nas que acha que a oração é a melhor maneira de purgar esses pecados, con-
distinções mais sofisticadas, comprazendo-se nas soluções mais rebusca- sidera mesmo que a confissão é inútil para alguns deles. A evolução do
das: poderá um pecado venial tomar-se mortal, uma acumulação de pe- século XII vai reaproximar o pecado venial do Purgatório. Com feito, ao
cados veniais equivalerá a um pecado mortal (questão esta já posta por pecado venial aplica-se mais particularmente o critério da ignorância que
Agostinho mas em termos simples), qual a sorte de um defunto que morre os teólogos acham cada vez mais importante. Excluída pois a culpa
com um pecado mortal e um pecado venial ou somente com o pecado (culpa), resta a pena que se apaga no Purgatório. Por outro lado, a
original e um pecado venial (partindo do princípio de que tal possa acon- exegese da primeira epístola de Paulo aos Coríntios, IH, 10-15 leva a
tecer, do que muitos duvidam), etc. O exame de documentos que falam do assimilar as construções de madeira, de feno e de palha aos pecados ve-
pecado venial e. do Purgatório, tal como foram vividos e discutidos pela niais e, como estas construções são por tradição as que são destruídas
cristandade do século XIII, convenceu-me de que estas discussões alambi- pelo fogo purgatório mas que permitem a quem as construiu salvar-se
cadas de intelectuais desenraizados não tiveram qualquer influência sobre através do fogo, os pecados veniais conduzem ao Purgatório. E o que
as concepções do Purgatório na massa dos fiéis. Quando muito talvez o diz no fim do século XII João de Deus (Johannes de Deo), por exem-
eco destas divagações tenha desviado do Purgatório um certo número de plo, na sua Súmu/a sobre as penitências: «O pecado venial tem três
espíritos simples e sãos que o recusaram, não por oposição doutrinária graus, a saber: a madeira, o feno e a palha. Os pecados veniais são pur-
mas por irritação provocada por UIp certo snobismo intelectual a que ele gados no fog022.» Já Pedro Lombardo nas suas Máximas considera que
dera lugar a partir do fim do século XII. OS teólogos deste século - muito da epístola de Paulo «se conclui que certos pecados veniais são apagados
diversificados e entre os quais não devemos esquecer os teólogos monás- depois desta vida» e também que os pecados veniais «são dissolvidos no
ticos - eram espíritos abstractos porque a ciência é abstracta e a teologia fogO))23. O Purgatório toma-se pois o receptáculo normal dos pecados
passara a ser uma ciência. Mas, mais abertos aos contactos e às trocas veniais e esta opinião será largamente difundida no século XlII. No en-
com. a sociedade à sua volta a partir das suas catedrais, dos seus claustros tanto não se deverá supôr que o Purgatório é reservado aos pecados
e das suas escolas urbanas invadidas pela maré crescente da nova socie- veniais. No fim do século XII ele é o lugar de purgação de dois tipos de
dade, eles sabiam que reflectir sobre o pecado venial ou sobre o Purga- situação pecaminosa: os pecados veniais, os pecados arrependidos, con-
tório era reflectir sobre a própria sociedade. Oriundos de um movimento fessados, mas cuja penitência não foi cumprida. Relembremos a questão
corporativo que fazia deles trabalhadores intelectuais no estaleiro urba- que, segundo A. M. Landgraf, saiu da esfera de Odon d'Ourscamp, e que
no, os teólogos e os canonistas do século XIII iam, pelo contrário, isolar- exprime bem, embora com um vocabulário um tanto arcaico, esse siste-
-se cada vez mais nas suas cátedras universitárias e no seu orgulho de ma: «É verdade que certas almas, quando se separam dos corpos, entram
especialistas do espírito. logo num fogo purgatório. Mas nem todas lá são purgadas, só algumas;
mas todas as que lá entram lá são punidas. Assim, melhor seria chamar a
esse fogo punitivo em vez de purgatório, mas recebeu o termo mais nobre.
Uma matéria para o Purgatório: os pecados veniais De entre as almas que lá entram, umas são purgadas e punidas e outras
somente punidas. São purgadas e punidas as que trouxeram consigo ma-
No século XII ainda não se tinha chegado a isso. A propósito do pe- deira, feno ou palha ... São somente punidas as que, tendo-se arrependido
cado venial surgem duas perguntas que têm a ver de perto com o nosso e confessado de todos os seus pecados, morreram antes de cumprirem a
estudo: como desembaraçarmo-nos dos pecados veniais e - pergunta es- penitência que o padre lhe impusera/".»
treitamente ligada à precedente - que relação existe entre o pecado venial A bem dizer, interrogarmo-nos sobre que género de pecados conduz
e o Purgatório? ao Purgatório não é a pergunta pertinente. Se é verdade que o pecado
Quando o Purgatório não existia realmente e o pecado venial estava venial e o Purgatório nasceram quase ao mesmo tempo e que entre eles
mal definido, a tendência era, como já vimos, para considerar que esses se estabeleceu uma relação estreita, o clero do fim do século XII e do
pecados podiam ser apagados pela oração, em especial pela missa domi- começo do século XIII não tem como principal objecto de reflexão coisas

260 261
abstractas como o crime, o pecado, a culpa, etc. Interessa-se sobretudo De duas (ou quatro) para três: três categorias de pecadores
pelos homens, a sua preocupação é a sociedade. De facto uma sociedade
decomposta e recomposta segundo critérios religiosos; mas o essencial da Neste momento em que nasce o Purgatório, em que ele existe e se
acção ideológica e espiritual da Igreja lá está: da sociedade dos homens, expande, torna-se pois necessário examinar as categorias de homens, de
vivos e mortos, fazer uma sociedade de cristãos. Se ela se preocupa pois cristãos, para saber como povoá-Io. E aqui tocamos num dos mecanismos
com a classificação por categorias, são as categorias de cristãos que lhe essenciais da história, o da transformação dos quadros mentais, da ferra-
interessam. menta lógica. Entre estas operações do pensamento - ao nível da sociedade
Antes de as estudarmos, convém fazer uma observação. A justiça ter- global e dos especialistas intelectuais - uma reveste-se de uma importân-
rena, o aparelho judiciário da sociedade feudal; serve muitas vezes, já o cia toda especial: a classificação e o seu subgénero, a categorização.
disse, se não de modelo, pelo menos de referência aos teólogos do século Convém que nos cinjamos aqui ao esquema lógico, para lá das reali-
XII e do início do século XIII nas suas teorias sobre a justiça no além. À dades sociais concretas. No fim do século XII as coisas são simples mas
luz do que se acaba de dizer sobre o pecado e a penitência, gostaria de dar deparam com uma dificuldade. Por um lado, existem quatro categorias de
dois exemplos. Na sua busca de uma moral de intenção, Abelardo evoca, homens, as definidas por Agostinho no século IV, mas retomadas e como
na primeira metade do século XII, o caso de um criminoso julgado e que relançadas por Graciano cerca de 1140: os inteiramente bons, os
condenado da mesma maneira por dois juízes diferentes. Nos dois ca- inteiramente maus, os não inteiramente bons e os não inteiramente
sos, trata-se de uma decisão honesta e exigida pela justiça, mas um dos maus. Para onde vão eles depois da morte? Três lugares se lhas ofere-
juízes actuou por zelo e o outro por ódio e espírito de vingança. Cerca de cem, se deixarmos de parte o Paraíso terrestre em plena decadência, onde
1200 esta concepção evoluiu em função da evolução das jurisdições ter- já só estão Henoch e Elias, o seio de Abraão que vai, também ele, desa-
renas. parecendo e os dois limbos. Estes não têm o mesmo estatuto. Desde a
Numa questão que será retomada por Guillaume d' Auxerre, falecido descida do Cristo aos Infernos, o limbo dos Patriarcas está vazio e assim
cerca de 1237, e pelo dominicano Hugo de Saint-Cher, o chanceler pa- deverá continuar para todo o sempre. Já não é mais do que uma recor-
risiense Prévostin de Cremona, que morreu cerca de 1210, faz uma des- dação histórica. O limbo das crianças que ainda será objecto de discus-
tas perguntas que parecem ociosas mas que encerram (é por vezes o sões durante séculos não está no mesmo plano dos outros três lugares do
caso) um significado muito preciso. Pergunta-se ele se não haverá o além. Corresponde ao caso dos seres humanos não carregados com qual-
risco de um pecado venial ser punido no Inferno e não na terra em quer pecado pessoal mas apenas com o pecado original; enquanto que o
penitência, ou no Purgatório. E responde que talvez não seja impossí- Inferno, o Purgatório e o Paraíso dizem respeito a três categorias de pe-
vel, pois o pecado não deve ser julgado em si mesmo mas em função das cadores pessoais entre os quais há uma hierarquia de responsabilidade e
diversas justiças - no sentido jurídico de jurisdição - de que pode depen- de destino: os maus que irão para o Inferno, os bons prometidos ao Pa-
der. Do ponto de vista do foro (jurisdicação) do Inferno ele pode mere- raíso, os não inteiramente maus e os não inteiramente bons que terão de
cer uma pena eterna; do ponto de vista do foro da penitência presente ou passar pelo Purgatório antes de irem para o Paraíso. Se bem que encon-
no Purgatório, apenas uma pena temporária. É assim, acrescenta, que tremos no século XIII e até Dante um sistema das «cinco regiões» do além
em Paris um pequeno roubo é castigado só com a mutilação de uma nos escritos teóricos de certos escolásticos, o que se instala no fim do
orelha, mas em Chartres com o corte de um pé. Menos concreto, Hugo século XII é um sistema de três lugares.
de Saint-Cher limita-se a dizer que um mesmo pecado é duramente pu- O problema parece, pois, simples: torna-se necessário fazer correspon-
nido em Paris, mais duramente em Orléans e muito duramente em der um esquema quaternário a uma espacialização ternária. Continuemos
Tours'". Hipótese que faz a reflexão teológica mais abstracta desembo- a raciocinar fora de todo o contexto histórico concreto. Existem duas
car na realidade histórica mais concreta. E se o além não passasse de um soluções, parece, que não transtornam os dois sistemas ao mesmo tem-
reino feudal - com as suas jurisdições divididas, com critérios e penas po. Ou o grupo de três se alarga para quatro, ou o grupo de quatro se
desiguais? Um além da sociedade pré-revolucionária e pré-industrial? Se reduz para três. Aqui intervêm dois elementos. O primeiro é o facto de
este novo reino, o Purgatório, não fosse mais do que um mosaico de Agostinho, criador do grupo de quatro espécies de cristãos, não ter real-
senhorias com fronteiras indecisas, mal protegidas mesmo do lado do mente sabido definir senão a sorte de três deles, deixando o grupo dos não
reino infernal? ... Assim a história tira por vezes a máscara no folhear inteiramente maus entregue a uma muito hipotética «condenação mais
de um documento ... tolerável».

262 263
Penso que Agostinho estava dividido entre duas tendências. Por um ciedade feudal entre os séculos XI e XIV. Vejamos primeiro a passagem
lado, era levado a alinhar, apesar da sua subtileza, com os esquemas formal de quatro para três categorias de pecadores.
binários, cuja influência era cada vez maior na sua época, nessa Antigui- Esta mudança fez-se em duas fases, cronologicamente muito próxi-
dade tardia forçada a submeter-se, para subsistir, a quadros mentais sim- mas. A primeira fase, cujo começo já vimos, consistiu em substituir um
plificados. Sendo um pouco menos vago a respeito dos não inteiramente advérbio na categorização agostiniana. Onde Agostinho falava de intei-
bons e do fogo purgatório que podia fazer deles eleitos, não conseguiu ramente (valde) bons ou maus, passou a falar-se de medianamente (me-
formular com nitidez o caso desse outro grupo intermédio - os não intei- diocriter ) bons ou maus, e as duas categorias intermédias aproximaram-
ramente maus. No fundo, porém, ele inclinava-se para um além triplo: o -se. O momento decisivo foi o da fusão das duas categorias numa só, a dos
Céu, o fogo (purgatório), o Inferno; e foi porque se mantiveram fiéis ao medianamente bons e maus. Esta deslocação suscitou a indignação de
seu espírito mais do que aos seus escritos tomados à letra que os pensa- alguns e com razão. O atrevimento, gramatical e ideológico, era conside-
dores do século XIII, fortemente impregnados da influência de Agostinho, rável. Era nada menos do que reunir dois contrários - e que contrários!
conseguiram enunciar um esquema temário. (os bons e os maus, o bem e o mal!) - numa só categoria. Vibrado este
O segundo elemento a favorecer esta evolução para uma tríade de golpe de força, reduzir (eventualmente) a nova categoria à dos medianos
categorias de pecadores, de acordo com a tríade dos lugares do além, (mediocres) era apenas uma operação de rotina.
foi a transformação de conjunto dos registos lógicos dos homens do sécu- Os teólogos dão o impulso inicial. Pedro Lombardo declara entre
lo XIII - e em primeiro lugar o clero - dentro da grande mutação que 1150 e 1160: «Eis por quem e em quê são benéficas as funções que a
então sofreu a cristandade. Passar de dois para quatro (ou o inverso) Igreja celebra pelos mortos: para os medianamente maus os sufrágios
nada tinha de revolucionário. A verdadeira mudança, conforme com a servem para mitiga~ão da pena; para os medianamente bons servem para
transformação geral das estruturas no século XII, foi a redução para três 11 absolvição plena 7.» Como já vimos, os canonistas estão atrasados.
categorias das quatro categorias agostinianas de homens em relação à Mas, salvo algumas excepções, recuperam e, sendo ainda a categorização
salvação. tarefa mais de juristas do que de teólogos, recuperam depressa.
Agora peço ao leitor que reflicta. Vejo-o divertido ou irritado. Das Graciano reproduzira o texto de Agostinho com as quatro categorias.
duas uma, pensa ele sem dúvida. Ou se trata de um jogo abstracto que Uma das primeiras súmulas que o comentam, a Súmu/a de Leipzig
nada tem a ver com a realidade histórica ou se trata de operações que ( Summa Lipsiensis) de cerca de 1186, dá bem a conhecer a dificil evolu-
falam por si: a humanidade sempre e por toda a parte dividiu e reagru- ção dos espíritos: «Segundo outros, "condenação" emprega-se para a pe-
pou - em dois, três ou quatro. Que haverá de mais «natural»? Mas enga- na que sofrem os medianamente bons ou os medianamente maus no
no-me. O leitor leu Georges Dumézil, Claude Lévi-Strauss, Georges Purgatório, se bem que não haja o hábito de falar de condenação senão
Duby, os lógicos como Theodor Caplow/" e também reflectiu por si pró- para os condenados eternamente. Os medianamente bons são os que mor-
prio. Sabe portanto que a realidade é diferente destas duas hipóteses sim- rem depois de terem recebido uma penitência pelos pecados veniais, mas
plistas que devemos afastar. Por entre os códigos simples de que dispõe, a que ainda não foi cumprida. Os medianamente maus são os que morrem
humanidade opta, segundo tempos e os lugares, em função da cultura e com pecados veniais, ainda que pudéssemos chamar-lhes bons, pois que o
da história. Formar um grupo, um conjunto, um sistema, não é tão sim- pecado venial, segundo parece, não causa mal algum. Há quem entenda
ples como parece. Três pessoas ou três coisas juntas raramente formam que isto de que aqui falamos só se aplica aos medianamente bons, alguns
uma tríade. Passar de dois para três para exprimir uma totalidade, quan- dos quais recebem uma remissão plena; só recebem uma condenação,
do o sistema binário foi um hábito secular, não é fácil. Creio que o que se quer dizer uma pena, mais toleráver".» Cerca de 1188 o célebre Huguc-
passou de essencial para o sistema do além na cristandade do século XII cio de Pisa protesta vivamente contra a evolução em curso, na sua Súmu-
foi o facto de o sistema binário Céu-Inferno (ou Paraíso-Inferno) ter sido Ia: «Certos teólogos, por iniciativa própria, distinguem somente três
substituído por um sistema ternário Céu-Purgatório-Inferno. É verdade géneros de homens (em vez dos quatro de Agostinho e Graciano). Al-
que esta substituição não vale para a eternidade. A sociedade em que vive guns são inteiramente bons, outros inteiramente maus e ainda outros
o cristianismo não está ainda suficientemente madura para alterar a con- medianamente bons e medianamente maus. Dizem eles, com efeito, que
cepção cristã da eternidade. Vale para o período intermédio, o que tam- os medianamente bons e os medianamente maus são os mesmos, quer
bém é fundamental e a que voltarei. Mas esta mudança e a maneira como dizer os que estão no fogo purgatório, e que só eles podem aproveitar
se fez parecem-me relacionadas em profundidade com a mutação da so- os sufrágios para serem libertados mais cedo. A "condenação" significa

264 265
a pena (é mais tolerável) porque lá eles são menos castigados. Mas esta nossas oferendas, somos antes nós que beneficiamos da~ suas. Os _que
opinião parece-me quase herética porque acaba por identificar o bem com são mediana mente bons e se empenham numa verdadeira confissao e
o mal, pois na realidade alguém medianamente bom é bom e alguém ~enitência, como ainda não estão perfeitamente purgados, são purgados
medianamente mau é mau. Do mesmo modo, no fogo purgatório só há nos lugares purgatórios (in pu~g~toriis locis) ,e, .para _ess,es, as preces, ~s
bons, pois ninguém pode estar lá com um pecado mortal. Mas com um esmolas e as missas são sem dúvida alguma úteis. Nao e por novos me-
pecado venial ninguém é mau. Portanto, no fogo purgatório não está ritos depois da morte que eles delas retiram beneficios mas como cons_e-
nenhum mau29.» quência dos seus méritos precedentes (antes da ~orte). Aqueles que sao
A Súmula de Colônia (Summa Coloniensis, 1169) não abordava, como inteiramente condenados não mereceram aproveitar de tais benesses. Mas
já se viu, este assunto que declarava deixar aos teólogos; mas ao manus- nós, irmãos, que ignoramos quem tem necessidade e quem não tem, a
crito de Bamberg consultado por Landgraf uma mão acrescentou o es- quem pode aproveitar e a quem não pode, devemos ~ferecer preces, es-
quema elaborado por Sicard de Cremona, falecido em 1215 e que, ele sim. molas e missas por todos, incluindo aqueles de quem nao ~emos a certeza.
é muito claro, muito definitivo: Pelos inteiramente bons, são acções de graças, pelos medianament.e bons
expiações, pelos réprobos são consolações para osviv,?s. E:nfim, sejam ou
inteiramente bons - Por eles fazem-se acções de graças. não proveitosas estas oferendas àqueles para quem sao felta~ em tod? o
caso podem ser proveitosas aos que as fazem com devoçao ... ASSim,
Defuntos inteiramente maus - Por eles, consolações para os vivos. aquele que reza por outrem trabalha para si próp~o (~L, 155, 14~5).)}.
{ medianos - Para eles, remissão plena ou Se bem que a localização da purgação não esteja umficada, a tríparti-
condenação mais tolerável. ção dos defntos é já um facto.

E Sicard precisava: «Para que a sua condenação se tome mais tolerável,


devemos entender isto dos que estão no Purgatório".» Enfim, uma glosa Esquema lógico e realidades sociais: um intermédio descentrado
das Máximas do século XIII esforça-se por exprimir o pensamento de
Santo Agostinho e de Pedro Lombardo à luz da evolução recente. Na notável construção deste sistema ternário há ainda que notar dois
«Eis o que o Mestre compreendeu com Agostinho: aspectos muito importantes. . ' .
«Certos mortos são inteiramente bons e a Igreja não celebra sufrágios O primeiro, insisto, é a substituição de um slst~~a 9uaternan.o, na
por eles porque eles não precisam ... São sem dúvida alguma glorificados. realidade binário (dois x dois) por um esquema terna~o. E u~ ~oVlIDen-
«Alguns são inteiramente maus e a Igreja também não celebra sufrá- to muito difundido nos quadros mentais da íntelectualidade cnsta desde o
gios por eles porque mereceram o seu destino. São sem dúvida alguma século XI. No geral, substitui o~~sições do tipo ínferior/superior ,co.mo
condenados. Outros são medianos e por eles a Igreja celebra sufrágios poderoso/pobre (potenslpauper] , eclesiástico/laico, monge/ecleslastlco,
porque eles o mereceram. Sobre o seu destino ver ... » (e remete para ou- por triades mais complexas. ,
tro capítulo). Na Alta Idade Média o pensamento ordenava-se espontaneamente a
A Glosa retoma ainda a explicação separando a categoria intermédia volta de esquemas binários. Pense-se nas forças do Universo: Deus .e ~a-
nas suas duas componentes e expressando como que um lamento agosti- tanás, ainda que - correcção muito important~ - ~ pensamento. cnstao,
niano: '«Alguns são medianamente bons e os sufrágios valem-lhes a ab- negando do ponto de vista do dogma o mamquelsmo, s~bordmasse o
solvição plena, e esses estão sem dúvida alguma no Purgatório.» Diabo ao bom Deus. Pense-se na sociedade: o clero e os laicos, os pode-
«Alguns são medianamente maus e os sufrágios valem-lhes a mitiga- rosos e os pobres. Pense-se na vida moral e espiritual: as ,virtude~ e os
ção da pena. E destes podemos hesitar em dizer que estão no Purgatório vícios. Perfis antagónicos que se combatiam com ardor, a ma~elra da
ou que estão no Inferno (condenados) ou em ambos ".» Psychomachie que opunha, segundo o poema de Pruden~, as VIrtudes e
Raoul Ardent, no fim do século XII, distingue também ele três espécies os vícios. A fronteira passava por dentro do homem, dilacerado entre
de defuntos: os inteiramente bons, os medianamente bons e os inteira- Deus e Satanás, o orgulho do poderoso e a inveja do pobre, o ape~o da
mente condenados (vai de boni, mediocriter boni, omnino damnati). virtude e a sedução do vício. Desde o ano mil, os esquemas .plu~ahstas,
Diz ele «que aqueles que são inteiramente bons passam logo depois da muitas vezes herdados da Antiguidade greco-romana e mais ~mda da
morte para o repouso e não têm necessidade das nossas preces e das Antiguidade cristã, pareciam ir ultrapassar os esquemas duahstas. No

266 267
século XII: os modelos ,construidos sobre o número sete conhecem grande inclinações para um outro pólo. Os burgueses usá-las-ão em relação aos
su~esso: sao os septenanos dos sete sacramentos, dos sete pecados capi- pequenos ou aos grandes. Mas, no caso do Purgatório, o seu jogo estará
tais e dos sete dons do Espírito Santo. bloqueado por um lado, o do Paraíso, onde se continua a entrar muito
Mas ~ principal tendência era substituir esquemas binários pot esque- pouco. A fronteira móvel será entre o Purgatório e o Inferno. Meio des-
mas terna nos que, por sua vez, substituíam as oposições brutais, os con- centrado, repito, relegado para a fronteira sombria, vê-los-emos na leitu-
frontos de duas categorias, pelo jogo mais complexo de três elementos. ra das descrições do além que não serão mais claras do que as visões
Um destes esquemas é o das três ordens: os que rezam, os que se negras da Alta Idade Média ". Compreende-se que este modelo - na
batem e os que trabalham (clero, nobres, massa camponesa). Este siste- sua utilização sociológica - não é menos importante do que o das três
ma t~rnário é de tiJ?o especial: opõe dois dos elementos do grupo ao ordens. Este criou o Terceiro Estado, aquele as classes médias.
~erceI;o: ~~ss,a dominada ,m~s que soube abrir caminho à representação Compreendam-me. Seria absurdo dizer que a burguesia criou o Pur-
ideológica . E o modelo lógico estudado por Theodor Caplow: dois con- gatório ou que o Purgatório provém de um modo ou de outro da burgue-
tra um. sia, supondo-se que existia então uma burguesia. O que proponho como
a esquema ternário sobre cujo modelo foi construido o Purgatório hipótese, como interpretação do nascimento do Purgatório, é que ele faz
não conhece êxito menor a partir da segunda metade do século XII e parte de um conjunto ligado à transformação da Cristandade feudal, da
nãc está menos ligado às estruturas em evolução da sociedade feudal. qual a criação de es~uemas lógicos ternários com introdução de uma
Consiste el!l introduzir uma categoria intermédia entre as duas categorias categoria intermêdia ' foi uma expressão essencial. O modelo lança rai-
extremas. E a promoção do meio não pelo aparecimento de uma terceira zes sólidas nas estruturas socioeconómicas, disso tenho a certeza. Mas
categoria depois e abaixo das duas primeiras, mas entre as outras duas ... não me parece menos certo que a mediação das estruturas mentais, ideo-
O Purgatório é um lugar duplamente intermédio: nele não se é nem tão lógicas e religiosas é essencial para o funcionamento do sistema. Deste
feliz como no Paraíso nem tão infeliz como no Inferno, e só durará até ao sistema, o Purgatório não é um produto mas um elemento.
Julgamento Final. Para que seja verdadeiramente intermédio, basta situá- O leitor estará um pouco céptico em relação à importância que dou
-10 entre o Paraíso e o Inferno. nesta história a algumas ligeiras alterações de vocabulário. Purgatório
Também aqui a aplicação essencial do esquema é de ordem sociológi- passa de adjectivo para substantivo, uma locução adverbial (non va/de)
ca. Trata-se de representar - não de descrever - a sociedade saída da é substituída por outra (mediocriter) e nos dois casos eu vejo sinais de
segunda f~se da revolução feudal, a da explosão urbana, como o esque- profunda mudança. Creio, com efeito, que as alterações linguísticas ligei-
ma das tres ordens fizera em relação à primeira fase, a do progresso agrí- ras, se se situam em locais estratégicos do discurso, são sinal de fenóme-
cola. Na s~a .forma mais genérica e mais corrente, o esauema distingue nos importantes. E penso que estes desvios de palavras ou de sentidos são
grandes, me~los e pequenos: maiores, '}"ediocres, minores' . Esquema cuja tanto mais significativos quanto se produzem no seio de sistemas ideoló-
expressao latI~a mostra melhor o.sentido e o funcionamento: designa por gicos rígidos. É verdade que a Cristandade medieval não foi nem imóvel
um comparativo grupos nos dOISextremos dos grupos: maiores (mais nem estéril. Pelo contrário, que criatividade! Mas inova ao nível ideoló-
gra~des), mais pequenos; exprime uma relação, uma proporção, um jogo gico por pequenos passos, por pequenas palavras.
SOCIal.Neste mecanismo, o que pode fazer o grupo intermédio? Crescer à
custa dos vizinhos ou de um só, o ligar-se a um e a outro, alternadamente
a um e depois ao outro dos dois grupos extremos. No começo do século Mutações nos quadros mentais: o número
XIII, Francisco de Assis retirou deste esquema um nome para os irmãos
da ordem que criara: os Menores.". Foi à sociedade feudal modificada a que também muda com o Purgatório, tornando-o possível e aco-
pelo desenvolvimento urbano que mais habitualmente se aplicou o esque- lhendo-o, são os hábitos de pensamento, uma ferramenta intelectual
ma: ~ntre os grandes (laicos e eclesiásticos) e os pequenos (trabalhadores que faz parte da nova paisagem mental. Com o Purgatório aparecem
rurais e urbanos) uma categoria nasceu: os burgueses - muito diversos a novas atitudes em relação ao número, ao tempo e ao espaço.
ponro de eu preferir não falar de burguesia. ' Em relação ao número, porque o Purgatório vai introduzir na escato-
E aqui que aparece a segunda característica do esquema: o seu elemen- logia um cálculo que não é o dos números simbólicos ou o da abolição da
to intermédio não está a igual distância dos dois pólos. Teoricamente a medida na eternidade mas, pelo contrário, um cômputo realista. Esta
sua situação permite à categoria intennédia da tríade fingir alianças ou contagem é a da prática jurídica. O Purgatório é um inferno não eterno

268 269
mas temporário. Já no meio do século Xl, na descrição dos gemidos que da própria alma. Com efeito, assim como o que se sofre (por um lado)
saem da cratera do Stromboli, Jotsuald explicara que as almas dos peca- não é proporcional ao que se sofre (pelo outro), assim estão em relação
dores sofrem ali suplícios diversos ad tempus statutum, pelo tempo que "OS dois sofrimentos. Além de que a pena temporária no mundo é volun-
lhes fora fixado. No fim do século XII, numa questão relatada numa tária no sentido próprio e a pena do Purgatório é voluntária em sentido
recolha da esfera de Odon d'Ourscamp, fala-se daqueles que pensam ligurado.»
que o pecado venial não é punido eternamente «mas no inferno tempo- Texto espantoso que não se contenta com explicar a maior intensidade
rário». das penas do Purgatório em relação às penas terrenas pela maior vulne-
A criação do Purgatório reune um processo de espacialização do uni- rabilidade da alma directamente torturada sem a protecção do corpo, e
verso e de lógica aritmética que, para além do triplo reino do outro mun- introduz também na consideração das penas no além um ponto de vista
do, vai reger as relações entre os comportamentos humanos e as situações matemático, topológico. Existe neste texto uma única citação, uma única
no Purgatório. Medir-se-á proporcionalmente o tempo passado na terra autoridade: «A proporcionalidade é, com efeito, a conformidade das pro-
em pecado e o passado nos tormentos do Purgatório, o tempo dos sufrá- porções.» Esta autoridade não é das Escrituras, nem da patrística nem
gios oferecidos em intenção dos mortos do Purgatório e o tempo da ace- dos eclesiásticos: é uma citação de Euclides, Elementos, V, definição 438•
leração da libertação do Purgatório. Esta contabilidade desenvolver-se-á Um comentário às Máximas do princípio do século XIII em que se põe
no século XIII, século da explosão da cartografia e do desencadear do u questão da eficácia quantitativa dos sufrágios é provavelmente, de acor-
cálculo. E, finalmente, o tempo do Purgatório será arrastado no tempo do com Landgraf, o primeiro texto em que foram usadas as expressões
vertiginoso das indulgências. proporção aritmética, proporção geométrica'". O que se abre com o Pur-
A noção de uma condenação «temporária» inscreve-se numa atitude gatório, bem se vê, é a contabilidade do alêm'". Antes não havia senão a
mental mais ampla que, saída da preocupação de justiça, resulta numa eternidade ou a espera indeterminada. Agora conta-se o tempo do Pur-
autêntica contabilidade do além. A ideia fundamental, vinda dos primei- gatório segundo a importância dos sufrágios, calcula-se a relação entre o
ros Pais, vinda de Agostinho, constantemente substituída no decurso dos tempo vivido cá em baixo no mundo e o tempo sentido lá em baixo no
séculos, é a de uma proporcionalidade das penas, na ocorrência do tempo Purgatório, porque a impressão psicológica da duração (o tempo parece
passado no Purgatório, em função da gravidade dos pecados. Mas só no passar muito lentamente no Purgatório) é também levada em conta. Os
século XIII a ideia de proporcionalidade passa de qualitativa a quantita- textos do século XIII irão familiarizar-nos com estes cálculos. Recordar-
tiva. Está ligada aos progressos da aritmética e das matemáticas. Alexan- -nos-ão que o século XIII é o século do cálculo, como demonstrou Alexan-
dre de Hales, o mestre universitário parisiense que se fez franciscano na dre Murray"' num livro sugestivo, o tempo da contabilidade, o dos
primeira metade do século XIII interroga-se na sua Glosa sobre as Máxi- comerciantes e dos funcionários que elaboram os primeiros orçamen-
mas de Pedro Lombardo se a pena do Purgatório não poderá ser injusta e tos. Aquele a que pudémos chamar (não sem exagero, é verdade) «o pri-
não proporcional (injuste et improportionalis). E responde: «Se bem que a meiro orçamento da monarquia francesa» data do reinado de Filipe
pena do Purgatório (poena purgatorii) não seja proporcional ao prazer Augusto, o rei durante cujo reinado nasceu ou cresceu o Purgatório. En-
que se teve ao pecar, é-lhe' no entanto comparável; e, se bem que não seja tre o tempo na terra e o tempo do Purgatório, a Igreja e os pecadores vão
proporcional segundo a proporção à pena temporária quanto à dureza, é- de agora em diante manter uma contabilidade por partidas dobradas.
-lhe no entanto proporcional segundo a proporcionalidade: "A proporcio- Segundo o Apocalipse, no dia do Julgamento Final abrir-se-ão os livros
nalidade é com efeito a conformidade das proporções." A proporção e os mortos serão julgados de acordo com o conteúdo dos livros, mas de
entre a pena temporária devida no mundo por um pecado e a pena tem- agora em diante outros livros de contas são abertos entretanto, os do
porária devida também no mundo por um pecado maior é equivalente à Purgatório.
proporção da pena do Purgatório devida por um pecado mais pequeno
em relação à pena do Purgatório devida por um pecado maior, mas a
pena do Purgatório não é proporcional à pena temporária no mundo. o espaço e o tempo
A razão pela qual convém que a pena do Purgatório seja mais dura de
maneira não proporcional à pena que purga no mundo, ainda que ambas o Purgatório está também ligado a novas concepções do espaço e do
sejam voluntárias, é que a pena que purga no mundo é a pena da alma tempo. Está associado a uma nova geografia do além que já não é a dos
que sofre com o corpo, enquanto a pena do Purgatório é a pena directa pequenos receptáculos justapostos como as mónadas senhoriais, mas

270 271
----- _---_ .. - -_ ..._._----_._----------._-~

grandes territórios, reinos, como Ihes chamará Dante. Chegou o tempo centa ele, o momento em que, paradoxalmente, no âmago dessa «explo-
em que a Cristandade, ao longo das estradas das cruzadas, das estradas são de vitalidade», nasce o medo da morte e do sofrimento: «A Idade
missionárias e comerciais, explora o mundo. «No fim do século XII, es- Média começa verdadeiramente a sofrer na altura em que é mais feliz,
creve o grande especialista de história de O Mapa das Civilizacões, Geor- em que respira a plenos pulmões, em que parece tomar consciência de
ge Kish, sobreveio uma mudança: o mundo medieval começou a que tem diante de si todo o futuro, em que a história adquire dimensões
movimentar-se; de repente, os viajantes trouxeram uma informação que que nunca tivera?".»
no século XIV transformou os mapas medievais ...» A transformação da Ponhamos de parte o exagero deste texto apaixonado e sensível. O que
cartografia imaginária do além operou-se ao mesmo tempo, e talvez ain- ainda resta é que Gustavo Vinay compreendeu bem esta rendição ao
da mais depressa. A cartografia terrestre, reduzida até então a uma espé- mundo cá de baixo, nascida no século XII e que vai prolongar-se - e na
cie de ideogramas topográficos, ensaia o realismo da representação realidade nunca mais desaparecerá apesar dos tormentos, das dúvidas,
topográfica. A cartografia do além completa esse esforço de exploração das regressões - pelo século seguinte. Também o paradoxo do desenvol-
do espaço, por muito carregado de simbolismo que ele estivesse entã042• vimento simultâneo do medo da morte é apenas aparente. O preço atri-
Também o tempo, o próprio tempo é, na crença no Purgatório, o elemen- buído daí em diante à vida terrena torna mais temível o momento de a
to mais explicitamente susceptível de ser medido. Grande novidade, um deixar. E, ao medo do Inferno, vem acrescentar-se - tende mesmo a subs-
tempo mensurável abre-se no além e pode assim ser objecto de cômputos, tituí-lo - o temor desse momento doloroso: a hora da morte. O Purgató-
de avaliações, de comparações. Encontramo-lo nos novos usos da prêdi- rio, nova esperança para o além e sensibilização para o instante do
ca. O sermão é feito para ensinar e para salvar. A partir do fim do século trespasse, tem o seu papel nesta oscilação dos valores.
XII, o pregador insere na sua prédica historietas para melhor persuadir, A humanidade cristã no seu conjunto já não acredita que o Julgamen-
os exempla. Estas histórias são tomadas como históricas, «verdadeiras». to Final está para amanhã. Sem se ter tornado feliz, fez a experiência do
No tempo escatológico do sermão, tempo da conversão e da salvação desenvolvimento, após séculos de simples reprodução, quando não de
elas introduzem segmentos de tempo histórico, datável, mensurável. ~ recessão. Produz mais «bens», valores até então unicamente situados na
o que faz o Purgatório no tempo do além. O Purgatório será um dos vida futura tomam forma, mais ou menos bem, cá em baixo neste mundo:
temas favoritos dos exempla. a justiça, a paz, a riqueza, a beleza. A Igreja gótica parece ter feito o
paraíso descer à terra, parece um lugar «de refrigério, de luz e de paz».
Não é por mero gosto pela metáfora que reencontro a evocação do
A rendição ao mundo e ao momento da morte individual refrigerium e da liturgia primitiva a propósito da igreja gótica. Meyer
Shapiro e Erwin Panofsky, ao comentarem os escritos de Suger sobre a
Em todas estas transformações, em toda esta agitação, pressentem-se nova arquitectura de Saint-Denis, sublinharam «que a fraseologia de Su-
dois grandes movimentos de fundo que explicam em profundidade o nas- ger lembra os tituli do cristianismo primitivo onde as doutrinas neopla-
cimento do Purgatório. tónicas ... se exprimiam de maneira semelhantes'". A humanidade
O primeiro é o enfraquecimento de um importante lugar-comum da instalou-se na terra. Até aí não valia a pena reflectir demasiado sobre
Alta Idade Média, o contemptus mundi, o desprezo pelo mundo 43. esse curto momento que devia separar a morte da ressurreição. O par
Alimentado sobretudo pela espiritualidade monástica (que o cultiva- Inferno-Paraíso já não é suficiente para responder às interrogações da
rá, como demonstrou Jean Delumeau, ainda em pleno Renascimento), ele sociedade. O periodo intermédio entre a morte individual e o julgamento
recua perante o crescente apego aos valores terrenos ligados ao ímpeto colectivo torna-se objecto de importantes reflexões. Entre os fanáticos da
criador da época. escatologia que recusam esta reflexão e concentram todas as suas aspira-
Gustavo Vinay escreveu algumas linhas inflamadas sobre o optimismo ções no advento do Millenium ou do Último Dia e aqueles que, pelo
do século XII: «Se há um século alegre na Idade Média, é mesmo esse: é o contrário, se instalam nesta terra e se interessam portanto por esse seu
século em que a civilização ocidental explode com uma vitalidade, uma suplemento, o intervalo entre a morte e a ressurreição, a Igreja arbitra
energia, uma vontade de renovação espantosas. O seu clima é o do "op- a favor destes últimos. Se a espera tem de ser longa, devemos interro-
timum" medieval... O século XII é tipicamente o século da libertação pela gar-nos sobre o que acontece aos mortos no intervalo, sobre o que nos
qual os homens rejeitam tudo aquilo que durante mais de um milénio acontecerá a nós amanhã. É verdade que, perante a adesão da maioria
estivera incubado e apodrecendo no seu interior.» E é no entanto, acres- dos cristãos à terra, uma minoria se insurge, reclama mais alto a Pan.sia

272 273
e, enquanto espera, o reino dos justos cá em baixo neste mundo, o Mil- ocidental e natural. Faz o Cristo descer quase ao nível dos fiéis... Sem
lenium. De Joachim de Flore a Celestino V, da cruzada das crianças aos dúvida, ele continua instalado nas alturas, presidindo ao despertar dos
Flagelantes e aos Espirituais, os «fanáticos do Apocalipse» agitam-se mortos e às sanções eternas: mesmo assim, continua a ser o Cristo dos
mais do que nunca. Desconfio mesmo que S. Luís, rei da cruzada peni- Evangelhos e conserva a sua doçura humana".»
tencial, enquanto os seus oficiais se afadigam a calcular e a medir, a fir- Se o Cristo das esculturas góticas é um juiz para a eternidade, a subs-
mar bem o seu reino, sonhava arrastá-l o para a aventura escatológica, tituição dos relâmpagos apocalípticos pela representação realista do Jul-
sonhava ser, como acreditaram certos imperadores alemães, um rei dos gamento e dos grupos humanos ressuscitados permite que surja em pri-
tempos derradeiros. E, todavia, S. Luís dirá: «Ninguém ama tanto a sua meiro plano a justiça a que o nascimento do Purgatório está tão ligado.
vida como eu amo a minha'".» Estes eleitos que o Cristo confia aos anjos que os levam ao Paraíso serão
Com excepção de alguns «loucos», o Apocalipse, a bem dizer, já não cada vez mais «santos» que passaram pelo Purgatório e estão purgados,
convence. No século XI e no começo do século XII foi o livro da Bíblia purificados.
mais comentado'". Passou depois para segundo plano, atrás do Cântico Nesta adesão à terra e neste novo poder sobre o tempo, neste prolon-
dos Cânticos incendiado de um ardor tão terreno quanto celestial. Os gamento da vida no além do Purgatório, existe sobretudo uma preocupa-
Apocalipses retiram-se das esculturas góticas e cedem o seu lugar a julga- ção, a preocupação com os mortos. Não que eu creia - nisto concordo
mentos finais onde o Purgatório não consegue ainda inserir-se mas que com Paul Veyne - que a morte em si mesma seja objecto de interesse, mas
apresentam uma história longínqua, pretexto para representar a socieda- porque através dela e através dos seus mortos os vivos aumentam o seu
de terrena e a morigerar, a fim de que se comporte melhor cá em baixo no poder neste mundo " . O século XII assiste ao enriquecimento da memória.
mundo. Os seus grandes beneficiários são, está claro, as famílias aristocratas que
Este progressivo - e relativo - desaparecimento do Apocalipse perante traçam e prolongam as suas genealogias=. A morte é cada vez menos
o Julgamento Final foi realçado por grandes nomes da iconografia me- uma fronteira. O Purgatório torna-se um anexo da terra e prolonga o
dieval. tempo da vida e da memória. Os sufrágios passam a ser um empreendi-
Assim, Émile Mâle: «A partir do século XII uma nova maneira de mento cada vez mais activo. O reaparecimento dos testamentos - ainda
entender a cena do Julgamento substituiu ... a antiga. Surgem composi- que só tardiamente se mencione o Purgatório - ajuda também a fazer
ções magníficas que não devem quase nada ao Apocalipse e antes se ins- recuar essa fronteira da morte.
piram no Evangelho de S. Mateus ... Não se pode dizer que o Apocalipse Embora estas novas solidariedades entre vivos e mortos - em embrião
seja um livro muito fecundo, no século XII ... OS artistas preferem adoptar na obra de Cluny - reforcem os laços familiares, corporativos e confra-
o quadro do fim do mundo de S. Mateus. O texto do evangelista'f é sem ternais, o Purgatório - encarado como uma personalização da vida espi-
dúvida menos fulgurante mas é mais acessível à arte. Em S. Mateus, Deus ritual - favorece na realidade o individualismo. Concentra o interesse na
já não é a enorme pedra preciosa cujo brilho não se pode suportar: é o morte individual e no julgamento que se lhe segue.
Filho do Homem; aparece no seu trono tal como foi na terra; os povos Colocando-se no ponto de vista das instituições e do direito, Walter
reconhecem o seu rosto. Um capítulo de S. Paulo da primeira epístola aos Ullmann afirmou «que a passagem do século XII para o século XIII foi o
Coríntios sobre a ressurreição dos mortos acrescentou alguns traços ao período em que foram semeados os germes do desenvolvimento institu-
conjunto.» E Emile Mâle indica como principal inovação do tema inspi- cional futuro e da emergência do indivíduo na sociedadew". E demonstra
rado pelo Evangelho de Mateus «a separação dos bons e dos maus». Nas que foi a época da «emergência do cidadão». Este aparecimento do indi-
representações do Apocalipse, Deus era «simultaneamente glorioso como víduo manifesta-se também no rosto da morte e do destino no além. Com
um soberano e ameaçador como um juiz». Nos julgamentos do século o Purgatório nasce o cidadão do além, entre a morte individual e o Jul-
XIII, Deus é «o Filho do Homem» definido «como o redentor, como o gamento Final.
juiz, como o Deus vivo'?». Até a Iiturgia testemunha esta evolução. Sempre muda em relação ao
Henri Focillon retomou esta análise: «A iconografia do século XII ... é Purgatório, ela começa a abrir-se à nova classificação dos defuntos e daí
dominada pelo Apocalipse, do qual retira as suas visões terríveis e a pró- tira consequências sobre o cerimonial em que cada vez mais se afirma a
pría imagem do Cristo juiz, instalado na sua glória, cercado de figuras preocupação com a sorte individual. É o que se vê na Súmula sobre os
não humanas ... A iconografia do século XIII renuncia ao mesmo tempo Ofícios Eclesiásticos, do cónego de Notre-Dame de Paris, Jean Beleth,
às visões, à epopeia, ao Oriente, aos monstros. É evangélica, humana, antes de 1165:

274 275
Da celebração do ofício dos mortos. NOTAS
«Antes de o corpo ser lavado ou envolto num sudário, o padre ou o
seu vigário deve ir até ao local onde ele jaz, levando água benta e, erguen-
do preces a Deus por ele, deve invocar e rezar aos santos para que rece-
bam a sua alma e a transportem para o lugar da bem-aventurança, Com
efeito, há almas que são perfeitas e que, mal saem do corpo, voam ime-
diatamente para os céus. E há outras totalmente más que caem logo no
Inferno. Há outras, medianas (medie ), pelas quais se deve fazer uma
recomendação deste género. Também é bom fazê-Ia pelos maus, mas
ao acaso. O corpo lavado e amortalhado num sudário deve ser levado
para a igreja e então deve ser rezada missa'".» Segue-se o texto de Agosti-
nho retomado pelo Decreto de Graciano sobre as quatro categorias ainda
bloqueadas entre os eleitos e os condenados.
Brandon escreveu que «para preencher o fosso entre os interesses do 1 «pro exercitu qui jacet in purgatorio», PL, 217, col. 590. Ver atrás, pp. 207-208.
indivíduo com a sua trajectória temporal de setenta anos (three-score 2 SUGER, Vie de Louis VI, le Gros, ed. e trad. de H. Waquet. Os clássicos da
years and ten) e os da raça humana estendendo-se por milénios (fosso História de França na Idade Média, Paris, 1964. Suger só escreveu o começo de
que a religião hebraica nunca conseguiu preencher de facto), a Igreja uma vida de Luís VII que ficou por terminar (ed. J. Lair, Bibliothêque de I'École
inventou o Purgatórios ". des chartres, 1875, pp. 583-596). As Gesta Philippi Augusti de Rigord e a Philippis
de Guilherme, o Bretão foram estudadas por F. Delaborde, Sociedade da História
de França, Paris, 1882-1885.
3 Ver Galbert de Bruges. Le meurtre de Charles le Bon, traduzido do latim por J.
GENGOUX, sob a direcção e com uma introdução histórica de R. C. VAN CAE-
NEGHEM, Antuérpia, 1977.
4 IVES DE CHARTRES, Prologus in Decretum in PL, 161,47-60. A propósito dos
sufrágios, Yves de Chartres reproduz os textos de Gregório, o Grande (Dialogues, IV,
)9 e IV, 55), PL, 161, 993-995 e 999-1000.
S G. LE BRAS, «Le Liber de misercordia et justicia de AIger de Liêge» in Nouvelle
Revue historique de droit franpais et étranger, 1921,pp. 80-118. O texto do Liber en-
contra-se em Migne, PL, 180, col. 859-968.
6 Ver os capítulos XXVIII, XLIII-XLIV, LXXXIII, XLIII do Liber. A passagem
sobre a purgação está nos capítulos LXI-LXII(PL, 180, col. 929-930).
7 St. KUTTNER, Kanonistische Schuldlehre von Gratian bis auf die Dekretalen
Gregor IX. Cidade do Vaticano, 1935.
8 R. GLOMME, La Doctrine du péché dans les écoles théologiques de Ia premiére
moitié du Xll" siécle, Lovaina, Gembloux, 1958.
9 O. LOTTIN, «Pour une édition critique du Liber Pancrists» in Recherches de
théologie ancienne et médiévale, XIII (1946), pp, 185-201.
10 Além da obra de R. Blomme, op. cit .. ver Théologie du péché por Ph. DELHA-

YE e outros ..., 1· volume, Paris-Tournai-Nova Iorque-Roma, 1960.


11 ANSELMO DE CANTORBERY, Cur Deus Homo (Porquoi Dieu s'est fait

homme), texto latino, introdução, notas e tradução de R. ROQUES, Paris, 1943.


12 Commentarius Cantabrtgiensis in Epístolas Pau/i e Scho/a Petri Abaelardi 2 In
epistolam ad Corinthias Iam et liam. Ad Gaiatas et Ad Ephesos, ed. A. Landgraf, Notre-
-Dame (Ind.), 1939,p. 429, citado por R. Blomme, La Doctrine du péché ...• p. 250, n. 2.
13 Este ponto foi bem visto e sublinhado por H. Ch. LEA, A History 01 Auricular

Confession and Indulgences in the latin Church, vol, III, Indulgences, Filadélfia, 1896,
pp.313-314.

276 277
. 14 Ver R. BLOMM~, La Doctrine du péché ..., p. 340. A importância da confissão 30 A. M. LANDGRAF, Dogmengeschichte ..., IV/2, p. 261, n. 6.
fOI bem captada por Michel Foucault, Histoire de Ia sexualité I, La volonté de savoir, 31 Id., ibid., IV/2, pp. 270-271.
Paris, 1976, pp. 78 e 55. 32 K. BOSL, «Potens und pauper. BegrifTsgeschichtliche Studien zur gesselschaftli-

. 15 O text~ editado por Migne, PL,40, 1127-1128, não me parece ser o texto ori- eher Differenzierung im frühen Mittelalter und zum Pauperismus des Hochmittelal-
gmal (~er Apendi~ 1I~. Sobre o alcance do tratato, ver A. TEETAERT, La confession ters» in Frühformen der Gesellschaft im mittelalterlichen Europa, Munique-Viena,
~;: laiques dans l Eglise latine depuis le VII/e jusqu 'au XIV" siécle, Paris, 1926, pp. 50- 1964, pp. 106-134.
33 G. DUBY, Les Trois Ordres ou l'imaginaire du féodalisme, Paris, 1978 [edição
16 Walter MAP, De nugis curialium, ed. M. R. James, Oxford, 1914. Texto citado portuguesa da Editorial Estampa, Lisboa, 1982]. J. LE GOFF, «Les trois fonctions
por J.-Ch. PA YEN, Le Motif du repentir dans Ia littérature franpaise médiévale (des indo-européennes, l'historien et I'Europe féodale» in Annales, E.S.C., 1979, pp.
o~i~ines à 1::30): Genebra, 1968, p. 109, que compreende bem que se trata do Purga- 1187-1215.
tono 17 mas nao diz que Walter Map lhe chama Inferno . 34 Sobre os medíocres, ver D. LUSCOMBE, «Conceptions of Hierarchy before the
• Ver C. VOGEL, Les «Libri Paenitentialis», Typologie des sources du Moyen XlIIth. c.» in Miscellanea Mediaevalia, 12/1. Soziale Ordnungen im Selbstverstãndnis
Age occidental, fas. 27, Turnhout, 1978. des Mittelalters, Berlim-Nova Iorque, 1979, pp. 17-18.
3S Ver J. LE GOFF, «Le vocabulaire des catégories sociales chez François d'Assise
• J .. LE ~FF, «Métie: et p~ofession d'aprês les manuels de confesseur du Moyen
Age» m Miscellanea Mediaevalia, vol. IH. Beitrãge zum Berufsbewusstsein des mittelal- ct ses biographes du XIII" siêcle» in Ordres et classes (Colóquo de história social Saint-
terlichen Menschen, Berlim, 1964, pp. 44-60, retomado in Pour un autre Moyen Âge -Cloud, 1967), Paris, Haia, 1973, pp. 93-124.
Paris, 1977, pp, 162-180. ' 36 Em compensação e do ponto de vista escatológico, é deportado para o Paraíso,
_ 18?S trabalhos essenciais são os de A. M. LANDGRAF, Das Wesen der lâsslichen visto que a ele conduz obrigatoriamente.
37 A concepção da desigualdade na igualdade, na equidistância por exemplo, é
S~ In der ~cholastik bis Thomas von Aquin, Bamberg, 1923 e Dogmengeschichte der
Frühschola~tik, 4' parte. o.ie Lehre von der Sünde und ihren Folgen, II Rastibonne, típica da mentalidade «feudal». Cf. J. Le GOFF a propósito das relações senhor/vás-
1~56, especialmente III. DU! Nachlassung der lãsslichen Sünde, pp. 100-202. Ver tam- saIo, Pour un autre Moyen Âge, pp. 365-384.
bém Th. DEMAN, artigo «Péchê» in Dictionnaire de théologie catholique, XlIII, 1933, 38 ALEXANDRE DE HALES, Glossa in IV libros sententiarum Petri Lombardi,
col. 225-255. M. HUFTIER, «Péché mortel et péché véniel», Capo VII de Ph. DELHA- Biblioteca Franciscana scholastica Medii AEvi, t. XV, Quaracchi, 1957, pp. 352-353.
~E e. outros, Théologie du Péché, 1960, pp. 363-451 (infelizmente prejudicado por «Cum enim proportionalis esset poena temporalis culpae temporali poena autem purga-
cltaçoe~ erradas, por exe~~lo, veniali~ ~m vez d~ quotidiana em Santo Agostinho). torii improportionaliter habeat acerbitatem respectu poenae hic temporalis, punit supra
J. J. O BRIEN, The Remission of Venialia, Washmgton, 1959 (tomista abstracto que condignum, non citra. Respondemos quod ... licet autem poena purgatorii non sit propor-
con~gue não falar do Purgatório). F. BLATON, «De peccato veniali. Doctrina sco- tionalis delectationi peccati, est tamen comparabilis; etlicet non sit proportionalis secun-
lastif;>rum ante S. Thomas» in Co/lationes Gandavenses, 1928, pp. 134-142. dum proportionem poenae hic temporali quoad acerbitatem, est tamen proportianalis
,? LOTIIN, «Les Sententiae Atrebatenses», in Recherches de théologie ancienne secundum proportionalitatem. "Est autem proportionalistas similitudo proportionum"
(Euclides, E/ementa, V, def. 4). Quae enim est proportio poenae temporalis hic debitae
et médiévale, t. 10, 1938, p. 344. Citado por R. BLOMME La Doctrine du péché p
61, n. 1. ' ... , . alicui peccato ad poenam temporalem debitam hic maior; peccato, ea est proportio poenae
: ABELARDO, ed. V. Cousin, t. 11, p. 621. purgatorii debitae minori peccato ad poenam purgatorii debitam maiori peccato; non
22 V~r A. M. LANDGRAF, Dogmengeschichte ..., IV/2, p. 102 e ss. tamen est propor tio poenae purgatorii ad poenam hic temporalem. Ratio autem propter
23 Citado por A. M. LANDGRAF; Dogmengeschichte ..., IV/2, p. 116. quam convenit poenam purgatorii esse acerbiorem improportionaliter poena purganti hic,
24 Libri Sententiarum, Quaracchi, t. lI, 1916, pp. 881-882. licet utraque sit voluntaria, est guia poena purgans hic est poena animae per compassio-
A. M ..LANDGRAF, Dogmengeschichte ..., IV/2, p. 165, n. 34. «verum est quod nem ad corpus, poena vero purgatorii est poena ipsius animae immediate. Sicut ergo
quaedam antmae, cum soluuntur a corporibus, statim intrant purgatorium quemdam ig- passiblle improportionale passibili, ita passio passioni. Praetera, poena temporalis hic
nem; '~ quo tamen non omnes purgantur, sed quaedam. Omnes vero quotquot intrant, in simpliciter voluntaria, poena purgatorii voluntaria comparative.»
eo puntuntur ', Unde videretur magis dicendus punitorius quam purgatorius, sed a digniori Agradeço a Georges Guilbaud e ao Padre P. M. Gy que tiveram a amabilidade de
nomen accepit. Earum enim, quae intrant, aliae purgantur et puniuntur, aliae puniuntur me ajudar a ler este texto apaixonante mas dificil, o primeiro com a sua competência de
tant~. l/lae purgantur et puniuntur, quae secum detúlerunt ligna, fenum, stipulam. Illi matemático e de especialista da escolástica, o segundo com os seus conhecimentos de
puntuntur ~a~tum qui confitentes et poenitentes de omnibus peccatis suis decesserunt, teólogo.
antezuam tntunctam a sacerdote poenitentiam peregissent.» 39 A. M. LANDGRAF, Dogmengeschichte ..., IV/2, p. 294, n. 2. Trata-se de um
26 A. M. LANDGRAF, Dogmengeschichte ..., IV(2, p. 234. comentário ás Máximas do começo do século XIII: «sciendum quod seeundum quosdam
Th. CAPLOW, Deux contre uno Les coalitions dans les triades 1968 trad franc suffragia prosunt damnatis (purgatorio) quantum ad proportionem arithmeticam, non
Paris, 1971. ' , . ., geometricam.»
~: Libri IV Sententiarum, Quaracchi, t. li, 1916, pp. 1006-1007. 40 Esta expressão é o título do notável estudo de J. CHIFFOLEAU, La compta-
29 A. M. LANDGRAF, Dogmengeschichte .... IV/2, p. 262, n. 7. bilité de l'au-delá. Les hommes, Ia mort et Ia religion en Comtat Venaissin à ta fin du
Id., ibid., 1"l/2, p. 262, n. 9. Moyen Âge, Escola francesa de Roma, Roma, 1980.

278 279
41 A. MURRA Y, Reason and Society in lhe Middle Ages, Oxford, 1978. J. MUR.
DOCH fala de delírio de medição (frenzy to measure) entre os universitários de Ox-
ford do século XIV in J. E. MURDOCH e E. D. SYLLA, ed. The Cultural Context of
Medieval Learning, Dordrecht, 1975, pp. 287-289 e 340-343. Esse delírio começa pelo
menos um século antes e não só em Oxford.
42 Sobre a cartografia medieval, ver entre outros J. K. WRIGHT, The Geographi-
cal Lore of lhe Times of lhe Crusades, Nova Iorque, 1925. G. H. T. K1MBLE, Geo-
graphy in the Middle Ages, Londres, 1938. L. BAGROW, Die Geschichte der
Kartographie, Berlim, 1951. M. MOLLAT, «Le Moyen Âge» in Histoire Universelle
des explorations, ed. L. H. Parias, t. I, Paris, 1955. G. KISH, La earte, image des
ctvilisanons, Paris, 1980.
43 Sobre o desprezo pelo mundo ver R. BULTOT, La doctrine du mépris du monde
en Occident, de saint Ambroise à Innoeent IlI. Lovaina, 1963.
44 G. VINAY, in li dolore e Ia morte ne//a spiritualità dei seeo/i XII e XIII (1962),
Todi, 1967, pp. 13-14.
45 E. PANOFSKY, citando Meyer SCHAPIRO, Architecture gothique et pensée
PARTE III
scolastique, trad. franco Paris, 1967, p. 42.
46 JOlNVILLE, La Vie de Saint Louis, ed. N. L. Corbett, Sherbrooke, 1977, pp. O TRIUNFO DO PURGATÓRIO
85-86 e p. 214.
47 Ver G. LOBRICHON, L'Apocalypse des théologiens au XII" siécle, tese da Es-
cola dos Altos Estudos em Ciências Sociais defendida em 1979 na Universidade de
Paris X-Nanterre.
48 Mateus, XXV, 31-46 e Paulo, I Coríntios, 15-22.
49 É. MÂLE, L'Art religieux du XIII" siêcle en France, Paris, 9- ed. 1958, pp. 369-
-374.
50 H. FOCILLON, Art d'Occident, t. 2, Le Moyen Âge gothique, Paris, 1965, pp.
164-165.
51Ver os trabalhos dos historiadores alemães de Friburgo e de Munique (G. TEL-
LENBACH, K. SCHMID, J. WOLLASCH) citados por J. WOLLASCH, «Les obi-
tuaires, témoins de Ia vie clunisienne» in Cahiers de Ia Civilisation Médiévale, 1979, pp.
139-171; Paul VEYNE, Le Pain et /e Cirque, Paris, 1976.
52 Ver principalmente G. DUBY, «Remarques sur Ia líttérature généalogique en
France aux XI" et XII" siêcles» in Comptes rendus de l'Académie des Inscriptions et
Belles Lettres, 1967, pp. 335-345 retomado em Hommes et Structures du Moyen Âge,
Paris-Haia, 1973, pp. 287-298.
53 W. ULLMANN, The Individual and Society in lhe Middle Ages, Baltimore, 1966,
p.69.
54JEAN BELETH, Summa de ecclesiasticis ofJiciis, ed . .H. Duteil, Corpus Christia-
norum Continuatio Mediaevalis XLI A, Turnhout, 1971, p. 317 e ss.
55 S. G. F. BRANDON, Man and his Destiny in lhe Great Religions, Manchester
University Press, 1962, p. 234.

280
VIII - O ORDENAMENTO ESCOLÁSTICO

O século XIII é o século da organização. A sociedade cristã está cada


vez mais enquadrada. No domínio económico aparecem os primeiros
tratados de economia rural- desde a Antiguidade - e a regulamentação
urbana tem muitas vezes por destinatário o artesanato, as indústrias in-
cipientes (construção civil e têxteis), o comércio e a banca. A actividade
social é ainda mais controlada, pelas corporações no domínio do traba-
lho, pelas confrarias no da devoção. As instituições políticas são cada vez
mais coactoras ao nível da cidade, ao nível sobretudo do Estado monár-
quico, como se vê em França e na monarquia pontifical, e em menor grau
nos Estados ibéricos e em Inglaterra. Esta organização manifesta-se prin-
cipalmente no mundo intelectual em que as universidades, as escolas das
ordens mendicantes e as escolas urbanas canalizam, fixam e organizam a
efervescência ideológica e escolar do século XII, quando a teologia e o
direito (renovação do direito romano e desenvolvimento do direito canó-
nico) elaboram súmulas, um sistema de debate, de decisão e de aplicação
que ordenam os conhecimentos e a sua utilização.

Um triunfo atenuado

O Purgatório é apanhado neste movimento que ao mesmo tempo o


entroniza e o controla. A escolástica, cuja acção foi decisiva para o seu
aparecimento, assegura-lhe o triunfo, mas um triunfo limitado e atenua-
do.
Não podemos seguir aqui a instalação do Purgatório na e pela esco-
lástica do século XIII até ao segundo concílio de Lyon (1274) que lhe dá
uma formulação oficial dentro da Igreja latina. Examinarei o que dizem
do Purgatório alguns dos maiores teólogos do período 1220-1280 (Guil-
laume d' Auxerre, Guillaume d' Auvergne, Alexandre de Hales, S. Boaven-
tura, S. Tomás de Aquino e Alberto, o Grande) sem procurar (o que não

283
está na minha intenção) repor o tratamento do Purgatório no conjunto ou aquilo a que davam este nome - e em 1277 o aristotelismo, incluindo
do pen~~mento destes mestres, mas clarificando o seu discurso sobre o neste uma parte dos ensinamentos de Tomás de Aquino. E dificil apreciar
Purgatono segundo a maneira como ele surge na sua obra. n alcance das condenações de Étienne Tempier, e tal não está nos meus
Nos ,seus ensinamentos não se encontram, disso não há dúvida, o propósitos. A atmosfera criada por estas censuras brutais não foi favorá-
mesmo impeto, os mesmos debates apaixonados que se sentem entre os vel à investigação teológica em geral, mas as consequências directas para
mestres da seg~nda metade do século XII, de Pedro Lombardo a Pedro o li teologia do Purgatório foram pouco importantes. Primeiro, porque o
Chantre, de Gilbert de Ia Porrée a Prévostin de Cremona. No entanto não problema era marginal em relação aos conflitos parisienses. Somente os
se deve esque~er o a~dor das discussões na Universidade de Paris no sé- dois últimos artigos condenados em 1277 diziam respeito ao além, como
culo :XIII, o clima animado das questões em debate e das quodlibeta' os veremos. Mas o essencial da reflexão teológica latina sobre o Purgatório
conflitos e as audácias manifestados pela grande querela entre os mestres estava terminado em 1274 e, nesse mesmo ano, iria ser oficialmente con-
r~gulares ~ os mestres seculares, a questão do averroísmo e as condena- sagrado pelo segundo concílio de Lyon.
çoes ~o bISpOobscurantista Etienne Tempier em 1270 e 12772. Os debates do século XIII foram talvez ainda mais apaixonados na
. Nao tem ca~lmento desenvolver aqui episódios célebres que, a maio- Faculdade das Artes - diríamos nós, a das letras e das ciências, onde
r~a.das vezes, nao passaram ~e pano de. fundo para a teologia do Purga- os jovens estudantes recebiam a sua formação de base e que conhecemos
tono. As novas ?rdens mendicantes rapidamente se interessaram por este mal- do que na Faculdade de Teologia. Mas o Purgatório é antes de mais
~~v.opoder do seculo XIII: a ciência universitária, os dominicanos logo de - em matéria universitária - tarefa de teólogos. Sobretudo tarefa parisien-
IniCIOe sem grandes problemas, os franciscanos mais dificilmente e não' se. Com efeito, verifica-se que no século XIII e desde longa data, o direito
se~ custo. Mas ~~gu~s dos s;u~ mestres surgem muito depressa na pri- é elaborado sobretudo em Bolonha e a Teologia é ensinada principalmen-
me~ra fila da sapiencia escolástica e atraem os auditórios de estudantes te em Paris, mas num ambiente internacional tanto pelos mestres como
mais ~umerosos, em detrimento dos mestres seculares que lhes reprovam pelos estudantes. A par com os franceses Guillaume d' Auxerre e Guillau-
o seu Ideal de mendicidade, a sua sede de poder, a sua falta de solidarie- me d'Auvergne, são o inglês Alexandre de Hales, o alemão Alberto de
dade corporauva, e que: ~ura e simpíesmente, têm inveja deles. Os gran- Colónia, os italianos Boaventura de Bagnoreggio e Tomás de Aquino
des do~tores do .Purgatono no seculo XIII são mestres mendicantes. que dão prestígio à teologia universitária parisiense",
Os Inte~ectuaIs do século XIII são leitores - na tradução latina - dos Triunfo atenuado, primeiro porque o êxito do Purgatório na teologia
grandes filosofos gre~~s da Antiguidade (Platão e sobretudo Aristóteles) oficial latina não deve fazer esquecer o seu falhanço em zonas importan-
e arabes da Idade Média (Avicena, falecido em 1037, e Averróis falecido tes da cristandade. É a recusa dos hereges, valdenses e cátaros, nesse
em 1198~. A autorid~de eclesiástica não vê com bons olhos este\nteresse século XIII em que o confronto entre o catarismo e a Igreja romana ocu-
pelos filosofos «pagaos». Uma doutrina atribuída a Averróis distingue pa um lugar tão importante. A hostilidade dos Gregos, que por razões
entre as verdades re~e~adas e as v~rdades racionais. Admite que possa políticas haviam sido obrigados a ocultar a sua recusa do Purgatório no
h~ver entr: elas OP?SI.Ç~O e me~~o I~compatibilidade. Neste caso a posi- momento da efémera união das Igrejas concluida no segundo concílio de
çao ave?"?Ista consl.stlTl~em privilegiar a razão contra a fé. Que Averróis Lyon (1274), força os latinos a discutir com eles, que não aceitam esse
obteve eXIt~~a UOlversIdade de Paris no século XIII, é inegável. Que os novo além. Estas discussões vão levar a Igreja latina a definir melhor o
mestre~ pansienses tenham ~e .facto professado a doutrina da dupla ver- Purgatório no século XIII, tal como fora levada pela luta contra os here-
dade, e menos certo. Mas vanos foram acusados disso e contra eles le- ges a confirmar a sua existência no fim do século XII.
vanto~-se acesa p~lémica. Não houve interferência entre a querela Triunfo atenuado, depois, porque os intelectuais latinos, que desem-
ave~01sta e a doutnna do Purgatório, mas os escolásticos dedicaram-se penham um papel crescente na cúria romana e na hierarquia eclesiástica
a dls~ertar sobre ele, n~o só a partir do que diziam os especialistas, mas e, está claro, nas universidades, sentem uma certa desconfiança em rela-
tambem segundo a razao. ção a esta novidade. É dificil detectá-Ia e documentá-Ia, mas sentimo-Ia.
, . Enfim, a grande reacção veio justamente de Paris. Em 1270 o bispo Aflora aqui e ali nas suas obras. Dupla desconfiança que vem, sem dúvi-
EtIe~ne Tempier condenou treze proposições inspiradas na filosofia pagã, da, de um certo mal-estar perante uma crença tão pouco e mal fundamen-
c~~slderadas errada~. Em I~~7.uma nova condenação atingiu 219 propo- tada na Santa Escritura e, sobretudo, do medo de ver essa crença
siçoes. Este duplo silabo dirigia-se a uma série bastante heteróclita de submersa pela piedade vulgar e supersticiosa. Medo perante um além
«erros», mas as correntes mais visadas eram em 1270 o averroísmo _ tão próximo da cultura folclórica e da sensibilidade popular, um além

284 285
tão mais definido pelo imaginário do que pelo teórico, pelo sensível do Ncrá cada vez mais substituído como texto de base pelo segundo texto, o
que pelo espiritual. Sente-se uma vontade de racionalizar, de balizar, de de Lombardo.
controlar, de expurgar o Purgatório. Por outro lado, o ensino universitário ordena-se à volta de um pro-
Eis, por exemplo, como um dos primeiros grandes teólogos parisienses grama metódico, racional, que não deixa sem dúvida de estar ligado às
do século XlII aborda os problemas do Purgatório. preocupações da época e às modas intelectuais, como o aristotelismo ou o
Na sua Summa Aurea (entre 1222 e 1225) Guillaume d'Auxerre, fale- uverroismo. Mas questões, mesmo no sistema dos quolibeta criado em
cido em 1231, um dos introdutores de Aristóteles na teologia escolástica, princípio para ser possível abordar qualquer questão fora dos programas
fala do Purgatório sob dois pontos de vista, o dos sufrágios pelos mortos regulares, dependem da sua inserção numa problemática mais vasta. O
e o do fogo purgatório. Purgatório surge no conjunto dos «fins últimos» no capítulo De
As questões respeitantes aos sufrágios (<<queutilidade têm os sufrágios novisstmis', Para os grandes teólogos do século, ele é um dado adquiri-
para os que estão no Purgatório» e «serão os sufrágios feitos para os que do, professado pela Igreja e proposto pelos programas universitários, mas
estão fora da caridade úteis aos que estão no Purgatório'õ-") são muito que não apaixona.
interessantes do ponto de vista do desenvolvimento da contabilidade do No século XII o além intermédio está estreitamente ligado a alguns
além. grandes problemas comuns aos teólogos, aos místicos e, em formas me-
Guillaume está entre a problemática do fogo purgatório e a do Pur- nos elaboradas, a uma parte pelo menos da sociedade laica: a exegese
gatório em sim mesmo. Sobre a maneira como o fogo purgatório expur- bíblica, a natureza do pecado, as práticas da penitência, o estatuto das
gar as almas, Guillaume d' Auxerre está principalmente interessado num visões e dos sonhos. Na elaboração de soluções para as questões postas, a
problema teórico, o da causa eficiente (causa efficiens purgationis), Neste teologia, a teologia parisiense sobretudo, colaborara grandemente, como
momento adopta uma posição intermédia em relação ao problema de se viu, na segunda metade do século.
saber se existe no além um «lugar de mérito» (locus merendi), Com efei- No século XIII a teologia universitária - sobretudo parisiense de novo
to, parecendo estar de acordo com a opinião, que será a dos grandes _ entroníza o Purgatório, insere-o no sistema do pensamento cristão, mas
escolásticos, segundo a qual já não é possível adquirir méritos depois não parece vivê-lo como problema existencial. Por isso devemos conduzir
da morte, ele combate aqueles que negam a possibilidade de correcção agora o nosso estudo a dois níveis: o dos intelectuais e o dos pastores e
pelo fogo que «expurga as almas agindo nelas sem Ihes imprimir a sua das massas.
qualidade» (ignis purgatorius purga! animas agendo in eas tamen non in-
tendit eis imprimere qualitatem suam). Questão teórica muitíssimo impor-
tante porque autoriza ou não a reversibilidade dos méritos, que só será
reconhecida no século XV. Para já, as almas do Purgatório são as bene- o Purgatório, continuação da penitência terrena: Guillaume d'Auvergne
ficiárias dos sufrágios dos vivos sem que estes recebam alguma coisa em
troca excepto, como se viu, o beneficio de adquirirem para si próprios Um dos melhores historiadores do pensamento medieval, M. de Wulf,
méritos no além, realizando aqui uma obra de misericórdia: rezar pelos escreveu: «A geração dos grandes teólogos especulativos inicia-se com
mortos. Guillaume d' Auvergne, um dos espíritos mais originais da primeira me-
Os textos dos grandes escolásticos respeitantes ao Purgatório trazem tade do século ... Guillaume é o primeiro grande filósofo do século xm".»
em si, de muitas maneiras, a marca dos métodos universitários. Destaca- Tratando-se do Purgatório, direi mesmo; Guillaume d' Auvergne é o últi-
rei dois. O ensino universitário é feito principalmente através do comen- mo grande teórico do século XlI7• Aliás, Etienne Gilso? consi~erara: «Po~
tário de manuais. No século XIII, o mais importante foi a recolha dos todo o seu hábito de pensamento como pelo seu estilo, Guillaume esta
Quatro Livros de Máximas de Pedro Lombardo. Ora, como se viu, no ligado ao fim do século XlI» e destacara que ele era também, depois de
livro IV das Máximas Lombardo trata do fogo purgatório, que no século Abelardo e de Bernardo de Clairvaux, o último grande teólogo francês da
XIII se transformou em Purgatório. No seu comentário a Lombardo, os Idade Média. Pergunto-me se este aspecto um pouco «arcaico» de Guil-
mestres parisienses tratam do Purgatório, se bem que o bispo de Paris, laume d'Auvergne virá ou não (como se disse) da· sua hostilidade ao aris-
falecido em 1160, não tenha ainda este conceito à sua disposição. A pas- totelismo (que não era com certeza tão grande como se pretendeu), mas
sagem da primeira epístola de Paulo aos Corintios será sempre uma das do facto de este secular, este pastor, mesmo sendo um grande teólogo, se
peças importantes do processo e do comentário, mas o texto da Escritura aproximar das preocupações e da mentalidade das suas ovelhas, que não

286 287
----~-----~--~-
--_.-~- ------

estavam igualmente avançadas na nova teologia escolástica, que os nov portanto nenhuma dúvida quanto ao tempo do Purgatório: situa-se entre
intelectuais universitários tinham talvez tendência para encerrar n li morte e a ressurreição dos corpos.
«ghetto» do Quartier Latin em vias de formação. Separa também muito nitidamente Inferno e Purgatório. Mas se não
Nascido cerca de 1180 em Aurillac, mestre regente de teologia e Insiste (como se fará mais tarde, no século XIII) no carácter muito penoso
Paris entre 1222 e 1228, bispo de Paris de 1228 até à sua morte e da purgação depois da morte, nem por isso equipara menos a penitência
1249, Guillaume d'Auvergne compôs entre 1223 e 1240 uma obra imen« do Purgatório a uma expiação, e as provações do Purgatório a penas, a
sa, o Magisterium divinale sive sapientiale, formado por sete tratados, doar, castigos penitenciais (poenae purgatoriae et poenitentiaJes). Com efeito, e
quais o mais importante, o De universo (Sobre o universo das criaturas], c esta a sua grande ideia, «as penas purgatórias são penas que completam
foi feito entre 1231 e 1236. u purgação penitencial iniciada nesta vida». Acrescenta que a frequência
Após ter esboçado uma geografia unindo o além e o mundo cá em . das mortes imprevistas, das penitências inacabadas antes da morte e dos
baixo na qual o lugar de felicidade da alma se situa no cume do univer- casos de morte em estado de pecado ligeiro torna essas penas «necessárias
so, no Empíreo; o lugar da sua desdita no fundo do universo, nas pro- Il numerosas almas» (necessariae sunt multis animabus). O mesmo é dizer
fundezas subterrâneas opostas ao céu do Empíreo; e o lugar de mistura de que o Purgatório tem todas as probabilidades de ser muito povoado. Sem
felicidade e desdita no mundo dos vivos, Guillaume d'Auvergne aborda o que tal seja dito, é evidente que, nesta concepção, o Inferno está mais ou
Purgatório. Considera dois problemas clássicos: a localização e o fogo. O menos deserto em proveito do Purgatório. A existência do Purgatório
bispo de Paris põe logo de entrada o problema do lugar de purgação, não prejudica, aliás, o exercício de uma vida cristã na terra, não é uma
dando como adquirido o termo Purgatório: «Se o lugar de purgação incitação ao relaxamento cá em baixo no mundo, pelo contrário. «Por-
das almas a que se chama Purgatório, é um lugar específico destinado que, com medo da purgação no futuro, à falta de outras motivações, os
à purgação das almas humanas, distinto do Paraíso terrestre, do Inferno homens iniciam mais facilmente e mais cedo a purgação penitencial cá em
e da nossa morada, isso é um problema'o baixo, executam-na com maior zelo e vigor e esforçam-se por a terminar
Que depois da morte do corpo muitas coisas há para expurgar, é para untes de morrerem.»
Guillaume d'Auvergne «uma evidência» (manifestum est). E logo avança A existência do Purgatório é, pois, provada pelo raciocínio e na pers-
a grande ideia da sua concepção do Purgatório: é a continuação da pe- pectiva da penitência. Guillaume d'Auvergne prossegue com outras pro-
nitência terrena. Esta concepção penitencial do Purgatório que ninguém vas. A primeira provém da experiência. Visões e aparições numerosas e
exprimiu melhor do que ele está bem dentro da tradição do século XII, frequentes de almas ou de homens que se encontram nessas purgações
como creio já ter sublinhado. depois da morte atestam a realidade do Purgatório. Consciente da impor-
Para a necessidade evidente de purgação, Guillaume dá uma primeira tância desta literatura do além purgatório de que pretendi aproveitar-me
razão: os defundos mortos de morte súbita ou inesperada, por exemplo, neste livro, ele destaca o interesse das informações concretas prestadas
«pela espada, por sufocação ou por excesso de sofrimento», apanhados peJos escritos e descrições dessas aparições, reclamações, premonições e
pela morte antes de terem podido cumprir a sua penitência, devem ter um relevações que não só são divertidas (quae non soJum auditu jocundae
lugar para terminar essa penitência. Mas existem outras razões para a sunt ) mas também úteis e salutares. Daí a necessidade dos sufrágios pe-
existência do Purgatório, como a diferença entre pecados mortais e peca- los mortos: preces, esmolas, missas e outras obras piedosas.
dos leves. Como os pecados não são todos iguais, a sua expiação obriga- Existe, por fim, uma terceira razão para a existência do Purgatório: é a
tória não pode ser a mesma para os mais graves e os mais leves, para o exigência de justiça. Repete que «aqueles que negaram a existência do
homicídio ou a extorsão, por exemplo, por um lado e o riso excessivo ou Purgatório e das suas purgações das almas ignoraram a penitência».
o prazer da comida e da bebida por outro. Para uns, é a expiação pelo Ora a penitência «é um julgamento espiritual, julgamento onde a alma
castigo (per poenam); para outros ela faz-se pela penitência (per poeni- pecadora se acusa a si própria, testemunha contra si própria e pronuncia
tentiam). uma sentença contra si própria». Mas toda a sentença deve satisfazer a
No que toca aos pecados leves, é evidente que o morto carregado deles justiça. Nem todas as culpas são igualmente graves nem merecem a mes-
não pode nem entrar com eles no Paraíso nem ir por causa deles para o ma punição. Se a justiça humana não tolera esta confusão de penas, por
Inferno. Tem, pois, obrigatoriamente de os expiar antes de ser transpor- maioria de razão a justiça divina, que é tão misericordiosa. Também aqui
tado para a glória celestial. E, por consequência, tem de existir um lugar Guillaume d'Auvergne está bem na linha desse século XII tão sedento de
onde, no futuro, se faça essa expiação. Guillaume d' Auvergne não tem justiça como de penitência, como demonstrei.

288 289
Falta situar este lugar purgatório cuja existência já não oferece dúvi- crível num prelado da primeira metade do século XIII, e não tem em
das. Aqui Guillaume d'Auvergne mostra-se mais embaraçado, pois «ne- conta o texto do De Universo.
nhuma lei, nenhum texto, o define» (nulla lex, ve/ alia scriptura Guillaume d'Auvergne, nesta súmula que, não o esqueçamos, trata do
determinat). Deve pois acreditar-se no que revelam as visões e as apari- universo das criaturas, esboça um inventário e uma fenomenologia do
ções. Mostram elas que essas purgações se fazem em numerosos locais fogo. Há, diz ele, todas as espécies de fogo. Conhecem-se alguns, na Si-
desta terra. Também para isto Guillaume quer dar uma justificação teó- cllia por exemplo, que têm propriedades curiosas que tornam os cabelos
rica, racional. «A coisa não é de espantar, diz ele, porque essas purgações fosforecentes sem os queimar, e há também seres, animais incorruptíveis
são apenas suplementos das satisfações penitenciais e não convém por- pelo fogo, como a salamandra. Tal é a verdade científica terrestre sobre o
tant~ atribuir-lhes outro local diferente do dos penitentes.» E acrescen- fogo. Porque não teria Deus criado uma espécie particular de fogo que
ta: «E o mesmo local que está destinado ao todo e às partes; onde houver fizessedesaparecer os pecados ligeiros e os pecados expiados de maneira
um lugar para o homem, esse lugar é também para os seus pés e as suas incompleta? Há pois em Guillaume, primeiro a preocupação de mostrar
mãos; essas purgações são apenas partes das penitências.» Assim, a sua que o fogo do Purgatório não é um fogo como os outros. E principalmen-
doutrina do purgatório penitencial leva Guillaume a situar o Purgatório te diferente do fogo da geena, do Inferno. O objectivo de Guillaume é
cá em baixo no mundo. Talvez seja simplesmente o leitor de Gregório, o com efeito diferenciar bem o Purgatório do Inferno. E portanto necessá-
Grande, procurando uma explicação racional (apparere etiam potest ex rio que o fogo de um seja diferente do fogo do outro. E todavia, mesmo o
ratione). Depois de ter exprimido a sua concepção geográfica do univer- fogo infernal é diferente do que nós conhecemos na terra, quer dizer do
so, ele não podia, sobretudo, senão chegar a esta conclusão, parece-me. O fogo que consome. O fogo do Inferno queima sem consumir visto que os
Paraíso está no alto, o Inferno está em baixo, a nossa terra ocupa o nível condenados nele serão torturados para sempre. Se há então um fogo que
intermédio. Tinha que ser aí que se colocava esse intermédio por excelên- pode queimar eternamente sem consumir, porque não teria Deus criado
cia, o Purgatório. Quase um século depois, Dante adoptará a linha de também um fogo que queima consumindo apenas os pecados, purifican-
pensamento de Guillaume d' Auvergne sobre o Purgatório; um lugar do o pecador? Mas estes fogos que ardem sem consumir não são menos
mais próximo do Paraíso do que do Inferno, um lugar onde, ao entrar, reais. Por outro lado, Guillaume é sensível à opinião daqueles que fazem
se encontram primeiro as vítimas de morte súbita ou violenta, e até sui- notar que, segundo a ideia que se pode ter do Purgatório, ideia confirma-
cidas, no caso de Catão. Mas graças à sua concepção hemisférica da terra, da pelo que dizem os seus habitantes quando das suas aparições, o fogo
Dante saberá dar à montanha do Purgatório uma localização ao mesmo não é a única forma de expiação que lá se sofre. O fogo não é pois uma
tempo intermédia e específica. metáfora mas o termo genérico que serve para designar o conjunto dos
O segundo problema respeitante ao Purgatório tratado por Guillaume processos de expiação e de purificação que sofrem as almas do Purgatório.
d'Auvergne no De Universo é o do fogo, que é, na sua época, não só um Resta o argumento essencial em que Alan Bernstein se baseia para
acessório essencial e obrigatório do Purgatório mas muitas vezes também defender a hipótese de uma teoria de fogo metafórico em Guillaume
a sua própria encarnação. d' Auvergne. O fogo, diz o teólogo, pode mesmo ser eficaz em imagina-
Alan E. Bernstein julgou ver uma contradição nos capítulos que Guil- ção como, por exemplo, nos pesadelos, em que aterroriza sem ser real.
laume dedica ao fogo do Purgatório. Pareceria que ele se inclina para a Mas assim como já demonstrou que a crença no Purgatório leva a uma
concepção de um fogo imaterial, até mesmo puramente «metafórico», melhor prática penitencial no mundo, Guillaume pretende apenas provar
mesmo que a palavra não seja pronunciada, e depois admitiria finalmen- a eficácia do fogo purgatório para a salvação eterna. O que ele quer dizer,
te a ideia de um fogo material. Bernstein tenta resolver esta contradição, parece-me, é que, como o fogo já é eficaz quando somente existe na ima-
imaginando que Guillaume d'Auvergne elabora uma teoria a dois níveis: ginação dos homens, dos que sonham, por exemplo, sê-lo-á ainda muito
para os seus alunos, para os intelectuais (e para si próprio) apresentaria a mais quando é real. Então como duvidar de que Guillaume d'Auvergne
hipótese de um pseudofogo, numa perspectiva próxima da de Orígenes; crê e professa que o fogo do Purgatório é real, material? O próprio Alan
para a massa dos fiéis, exporia uma concepção material, real, do fogo, Bernstein fez notar que, segundo Guillaume, esse fogo «tortura corporal e
mais acessível a espíritos mais grosseiros. O bispo de Paris é decerto realmente os corpos das almas» (corpora/iter et vere torqueat corpora
um teólogo de alto coturno e, ao mesmo tempo, um pastor muito preo- animarum). Quem melhor e com maior audácia disse que o teatro do
cupado com a cura animarum, com o bem das suas ovelhas. Mas creio que Purgatório não é um teatro de sombras mas um teatro corporal, onde
a duplicidade de ensino que lhe atribui Alan Bernstein não é de todo as almas sofrem nos seus corpos mordeduras de um fogo material?

290 291
o Purgatório e os mestres mendicantes ceDa penitência tardia, da pena do Purgatório e dos relaxamentos'?», e
XXI: «Da remissão e da punição dos pecados veniais, da edificação do
Com os grandes teólogos mendicantes abordamos - apesar da origi- ouro, do feno e da palha das sete maneiras . de remir. o peca do \3 ».
nalidade individual devida à sua personalidade e às características daa Verifica-se que ele retoma o problema do Purgatório especialmente
suas respectivas ordens - um bloco doutrinário. destinado aos pecadores, cuja penitência, tardia, está incompleta, e àque-
A. Piolanti, mau grado alguns erros de perspectiva, definiu bem a les que só levam pecados veniais; e que, por sua vez, utiliza a primeira
posição de conjunto dos grandes escolásticos (Alexandre de Hales, S. epístola de Paulo aos Coríntios.
Boaventura, S. Tomás de Aquino, Alberto, o Grande). «No século XIII, Em Alexandre temos, antes de mais, uma reflexão sobre o fogo. Existe
os grandes escolásticos, glosando o texto de Pedro Lombardo, construí- um fogo que purgará as almas até ao fim do mundo: «Há um duplo fogo,
ram uma síntese mais consistente: ao discutirem pontos secundários como um, purgatório, que purga as, almas agora até ao dia d~ Julgamento
a remissão do pecado venial, a gravidade e a duração da pena, o lugar do (final), um outro que precedera o Julgamento, que consuml~a este mun-
Purgatório", sustentaram como doutrina de fé a existência do Purgatório. do e que purificará aqueles que edificam com ouro, etc., se sao encontra-
o limite da pena no tempo, e estiveram de acordo em considerar o fogo dos com algo de combustível. É preciso notar que há três espécies de fogo:
real'".» 1\ luz, a chama, a brasa (lux .flamma. carbo) e que ele se reparte em três
partes: a superior para os eleitos, a média para os que têm de ser purga-
dos, a última para os condenados.»
Entre os frandscanos Além da referência a Aristóteles, que escreveu que «a brasa, a chama e
il luz se diferenciam umas das outras» (Tópicos, V, 5) e a S. Paulo, vê-se
1. Do comentário de Pedro Lombardo a uma ciência do além: Alexandre de que Alexandre de Hales concilia as opiniões tradicionais acerca do fogo
Hales que, para uns, está activo antes da ressurrei~o e para outros dep~ls ~a
ressurreição, no momento do Julgamento Final, ~~larando que ha ?OlS
Já citei (p. 270) um extracto da glosa de Alexandre de Hales sobre as fogos: um, purgatório, entre a morte e a ressurreiçao; ~u~ro,* dest~d~r
Máximas de Lombardo que aprofundava, do ponto de vista matemático, ou purificador entre a ressurreição e o Julgamento. A distinção anstote-
o problema da proporcionalidade a propósito do Purgatório. Eis a estru- lica dos três fogos permite a Alexandre definir bem a natureza mediana,
tura e o essencial do conteúdo do comentário deste grande mestre intermédia, do Purgatório a que corresponde a chama que expurga, en-
parisiense!'. quanto a luz é reservada aos eleitos, e a brasa,. o carvão ar~e~te, aos
Este inglês nascido cerca de 1185 que veio a ser mestre em artes em condenados. Temos aqui um bom exemplo do instrumento lógico que
Paris antes de 1210, ali ensinou teologia desde 1225 até à sua morte, em Aristóteles forneceu aos escolásticos do século XIII.
1245. Em 1236 ingressou nos Menores e foi titular da primeira cadeira 1) Este fogo do Purgatório purga pecados veniais (purgans a veniali-
franciscana de teologia na Universidade de Paris. É um dos primeiros hus): «0 pecado é remido e purgado nesta vida pelo amor (ch~r~tas)
teólogos parisienses a explicar Aristóteles, apesar das repetidas proibi- de muitas maneiras como uma gota de água no fogo, pela eucanstia, a
ções (o que provoca a sua ineficácia) de ler as obras do «príncipe dos confirmação e a extrema-unção. Depois da morte, é purgado no Purga-
filósofos». A Súmula Teológica que durante muito tempo lhe foi atribuí- tório.»
da não é obra sua mas de universitários franciscanos muito marcados 2) Purga também penas devidas aos pecados mortais ainda não suficien-
pelos seus ensinamentos. É, em compensação, autor da Glosas sobre temente expiadas (et a poenis debitis mortalibus nondum sufficienter satis-
As Máximas de Pedro Lombardo que foi o primeiro a usar como texto factis) .
de base do ensino universitário da teologia (o quarto concílio de Latrão 3) É uma pena maior do que qualquer pena temporal (poena maior omni
em 1215 tinha praticamente consagrado Lombardo como teólogo oficial), temporali); é aqui o retomar do tema agostiniano, na preocupação de
glosa provavelmente redigida entre 1223 e 1229; e de Questões Discutidas, combater a ideia de laxismo que poderia ligar-se a uma concepção que
igualmente redigidas antes do seu ingresso nos franciscanos - de onde o esvazia mais ou menos o Inferno.
título que Ihes foi dado (Questiones disputatae antequam esset frater). 4) Não é uma pena injusta e desproporcionada? (nonne iniusta et im-
Na sua glosa do livro IV das Máximas de Pedro Lombardo, Alexandre proportionalis), é a pergunta cuja importância mostrei no capítulo ante-
trata do Purgatório no destaque XVIII e sobretudo nos destaques XX: rior.

292 293
5) Há nela confiança e esperança, mas ainda não visão (beatífica) (ib! os fiéis! No momento em que o seu poder no mundo é posto em
fides et spes, nondum visio): Alexandre insiste, como muitos outros, no causa simultaneamente pela contestação branda dos convertidos às doçu-
facto de o Purgatório ser a esperança, visto ser a antecâmara do Paraí- ras do mundo terreno (os despreocupados) e pela contestação dura
so, mas sublinha também que ainda não é o Paraíso, e que nele 'se está dos hereges, a Igreja prolonga para além da morte o seu poder sobre os
privado da visão de Deus. fiéis.
6) Aqueles que o evitam ou lhe escapam são pouco numerosos (ilIud Trata-se de doutrina da Igreja no sentido mais pleno e mais lato, e
vitantes seu evolantes pauci). «Na igreja são pouco numerosos aqueles cabe também a Alexandre de Hales dar uma das primeiras expressões
cujos méritos são suficientes e que não precisam de passar pelo Purgató- claras do papel da comunhão dos santos na perspectiva do Purgatório.
rio» (transire per purgatorium). O Purgatório é o além provisório da Aqui a pergunta é: «Os sufrágios da Igreja são úteis aos mortos que estão
maioria dos homens, dos defuntos. A primazia quantitativa do Purgató- no Purgatório?» Resposta: «Assim como a dor específica traz consigo a
rio é aqui afirmada. satisfação do pecado, também a dor comum da Igreja universal, chorando
Alexandre de Hales tratou de outra parte as relações entre a Igreja e o os pecados dos fiéis mortos, orando por eles em lamentos, ajuda à satis-
Purgatório. O primeiro problema é o da jurisdição, do foro (tribunal), de fação mas não cria ela própria satisfação plena; mas com a pena do pe-
que depende a alma do Purgatório. nitente ajuda à satisfação, o que constitui a própria definição do sufrágio.
<<À objecção de que ele não se inclui no poder das chaves (o poder Com efeito, o sufrágio é o mérito da Igreja capaz de diminuir a pena de
perdoar os pecados dado por Jesus a Pedro e, através dele, a todos os um'dos seus membros'".» Começa assim a aparecer em plena luz a noção
bispos e a todos os padres) de perdoar a pena purgatória por comutação de dor, de sofrimento que, de simples expiação, vai tornar-se a fonte dos
em pena temporária, deve responder-se que aqueles que estão no Purga- méritos que permitirão às almas do Purgatório não só terminarem - com
tório (in purgatorio) dependem de certo modo do foro da Igreja militante a ajuda dos vivos - a sua purgação mas também merecerem intervir junto
e também do fogo purgatório, na medida em que ele convier à pena sa- de Deus a favor desses vivos.
tisfatória (que cumpre a penitência). Como os fiéis pertencem ou à Igreja Falta dizer que a Igreja, no sentido eclesiástico, clerical, extrai grande
militante ou à Igreja triunfante, aqueles que estão no meio (in medio) e, poder do novo sistema do além. Administra ou controla as preces, as
como não pertencem inteiramente nem à triunfante nem à militante, po- esmolas, as missas, as oferendas de todos os géneros feitas pelos vivos
dem estar submetidas ao poder do padre (potestati sacerdotis) por causa a favor dos seus mortos, e de tudo tira beneficios. Graças ao Purgató-
do poder das chaves.» rio, desenvolve o sistema das indulgências, fonte de grandes lucros de
Texto capital que, nesta época em que se reorganiza a jurisdição da poder e de dinheiro, antes de se tornar uma arma perigosa que se voltará
Igreja no direito canónico tanto no plano prático como no teórico, faz contra si mesma.
com que ela anexe, pelo menos parcialmente, o novo território aberto no Também aqui Alexandre de Hales é o teórico e a testemunha desta
além. Até então o poder judiciário espiritual, o tribunal da alma, o foro evolução. É prudente: «À objecção de que a Igreja, por causa dos perfei-
estava nitidamente dividido por uma fronteira que passava pela linha da tos, não poderia obter satisfação para os outros, respondi que ela pode
morte. Cá em baixo, no mundo, o homem depende da Igreja, do foro obter uma ajuda, não a satisfação completa. Mas, acrescenta-se, como se
eclesiástico; no além, só depende de Deus, do foro divino. E certo que pode obter um relaxamento desse género para parentes defuntos, quando
a recente legislação sobre a canonização, sobre a reclamação dos san- eles já caíram «nas mãos do Deus vivo e o Senhor diz: "quando tiver
tos, conferia à Igreja poder sobre alguns mortos que ela, logo a seguir decidido sobre o momento, então julgarei."» (Salmo LXXIV, 3)? Nós
à morte, colocava no Paraíso e na fruição da visão beatífica mas, ao respondemos: só aquele que pesa as almas sabe a grandeza da pena de-
fazê-lo, «a Igreja apenas se pronuncia sobre a sorte de um número ínfimo vida por cada pecado, e não convém que o homem tente saber demasiado.
de defuntos'?». Mas o ingresso no Purgatório diz respeito, como já vimos, Mas aqueles que, em amor, vão em socorro da Terra Santa, podem ter tal
à maioria dos fiéis. Sem dúvida que o novo território não é inteiramente devoção e generosidade de esmolas que, libertos eles próprios de todos os
anexado pela Igreja. Na sua situação de intermédio, fica submetido seus pecados, possam libertar os parentes do Purgatório, obtendo para
ao foro comum de Deus e da Igreja. Poder-se-ia afirmar que, à imagem eles a satisfação.»
das cojurisdições que o sistema feudal desenvolveu nessa época, A fonte das indulgências para os mortos só é, pois, aberta a conta-
existe paridade (co-senhoria em termos de direito feudal) de Deus e da -gotas, a favor dessa categoria excepcional de cristãos, cada vez mais ra-
Igreja sobre o Purgatório. Mas como cresceu o poder da Igreja sobre ros no século XIII, os cruzados. Mas o dispositivo está preparado, e

294 295
pronto a funcionar. No fim do século, Bonifácio VIII tirará dele maior ou não da pena do Purgatório, ocupando a vontade nos seus sistemas um
partido por ocasião do Jubileu de 1300. lugar de eleição. É o caso de Boaventura que, no terceiro dos seis graus da
Nas Questões discutidas «Antequam esset frater» entre 1216 e 1236, contemplação definidos pelo Itinerário do espírito em direcção a De~s
Alexandre de Hales faz ainda por várias vezes alusão ao Purgatório. mostra a alma que «vê brilhar em si a imagem de Deus, porque nos tres
Na questão XLVIII e a propósito dos pecados veniais ele distingue a poderes, memória, inteligência e vontade, ela vê Deus por si mesma como
falta, a culpa que é apa1ada pela extrema-unção, enquanto a pena só é na sua imagem» (J.-c. Bougerol).
retirada no Purgatório} . Aliás, recorda o carácter amargo, duro (acer- Todos os grandes escolásticos, sob formulações diversas decorrentes
bitas) da pena do Purgatório!", Ao problema de saber se os que estão no dos seus sistemas particulares, atribuem à pena do Purgatório apenas um
Purgatório têm esperança, ele responde com a bela metáfora dos viajantes carácter voluntário limitado porque, depois da morte, como estabeleceu
num navio. A esperança deles vem não do mérito próprio mas da acção Alexandre de Rales, o livre arbítrio está imóvel e o mérito é impossível.
de outrem. Os viajantes podem avançar ou pelo trabalho dos seus pés ou Para os teólogos, os pecados veniais são remidos no Purgatório quanto ~
por um meio estranho, um cavalo ou um barco, por exemplo. Os defuntos pena (quoad poenam) mas não quanto à culpa (quoad cumpam) que e
no Purgató~i? são «como viajantes num navio: não adquirem para si remida no próprio instante da morte. Tomás de Aquino, que segue
qualquer mento e pagam o seu transporte; assim os mortos no Purgató- Lombardo à letra, ensina no seu Comentário às Máximas que «na outra
no pagam a pena que devem não como o capitão que pode adquirir vida, o pecado venial é remido mesmo quanto à culpa pelo fogo do
méritos no barco, mas simplesmente como transportados} .» Purgatório àquele que morre em estado de graça I?orque essa pena,
sendo de certo modo voluntária, tem a virtude de expiar todas as culpas
compatíveis com a graça santificante». Volta a esta posição .no De mal~
2. Boaventura e os fins últimos do homem onde considera que o pecado venial já não existe no Purgatóno; quanto a
culpa, essa foi apagada por um acto de caridade perfeita no momento da
João Fidanza, nascido cerca de 1217 em Bagnoreggio na fronteira do morte.
Lác~o c?m a Umbria, que tomará o nome de Boaventura, tendo ido para Sobre o problema do carácter voluntário da pena do Purgatório, Bo.a-
Pans ainda Jovem, entrado em 1243 na ordem franciscana, bacharel ventura pensa que ela é minimamente voluntária {minimam habet ratto-
biblico (quer dizer autorizado a explicar a Escritura) em 1248, bacharel nem voluntarii), pois a vontade «tolera-a» mas «deseja o seu opos~o»,
em Máximas (quer dizer habilitado a comentar os Quatro Livros de quer dizer, a sua cessão e a recompens~ .celeste21.,A pergunt~ seguinte
Máximas de Pedro Lombardo) em 1250, passa a mestre de teologia em tem a ver com as relações entre Purgatono e Paraíso: «Haverá na pena
19 do Purgatório menos certeza de glória do que no caminho?22», quer dizer
1253 . Foi no começo da sua carreira universitária, entre 1250 e 1256
que redigiu o seu Comentário a Lombardo antes de se tomar ministro da aqui em baixo, onde o homem é um viato~, ~m peregrino? (\0 que Boa-
Ordem dos Menores em 1257 e cardeal em 1273. Por aqui se vê o peso da ventura responde: «Há mais certeza da glona no Purgatono do que no
inspiração agostiniana, característica do doutor francíscano'". caminho mas menos do que na pátria.» Trata-se aqui do Purgatório co-
No destaque XX do livro IV do Comentário às Máximas, Boaventura mo esperança e Boaventura vai de certa maneira além da esperança, u~a
trata «da pena do Purgatório em si». Afirma primeiro que é depois desta vez que fala de certeza; mas introduz graus na certeza. Segue a concepçao
vida que se deve, sem dúvida, situar essa pena. A questão de saber «se a fundamental do .Purgatório como «~édio», ,in~ermédio, e disti~§~e duas
pena do Purgatório é a maior das penas temporais» (utrum poena purga- fases, se não dois lugares, no Paraíso: a patria (o tet;n? pama. ~ esta
torii sit.maxima poenarum temporalium) responde que ela é «no seu géne- concepção aparecem noutros autores) que parece p~oxlm~ d~ ideia do
ro» mais pesada do que todas as penas temporais que a alma pode sofrer seio de Abraão que se encontra no repouso, e a gloria que e simultanea-
quando está unida ao corpo. Ao afirmar - na tradição agostiniana - a mente a fruição da visão beatífica e, de certa maneira, a «deificação» do
severidade do que se sofre no Purgatório e ao reconhecer a relação que se homem cuja alma recuperou o corpo ressuscitado e agora «glorioso».
pode estabelecer entre essa pena e as de cá de baixo, Boaventura sublinha Boaventura introduz aqui uma questão muito interessante para nós
a especificidade do Purgatório. Há nisto, sem dúvida, o eco das teorias porque o faz entrar no domínio do imaginário, tão importante na histó-
sobre a proporcionalidade da pena purgatória de Alexandre de Hales, ria vivida do Purgatório. Responde à pergunta de saber «se a pena do
que foi na realidade o seu autor. Boaventura trata a seguir de um proble- Purgatório é infligida pelo desempenho (ministerio) dos demônios»: «A
ma que preocupou todos os grandes escolásticos, o do carácter voluntário pena do Purgatório não é infligida pelo ministério dos demónios nem dos

296 297
anjos bons, mas é provável que as almas sejam conduzidas ao Céu pel Ulr da tradição gregoriana da localização da purgação cá em baixo no
anjos bons e ao Inferno pelos maus.» mundo, nos locais do pecado.
Assim Boaventura considera o Purgatório uma espécie de lug Já na sexta questão do destaque XX, Boaventura evocara um outro
neutro, um no man 's land entre o dominio dos anjos e o dos demônioa CIlSO de localização do Purgatório, o do Purga.tório de S. Pat~ick. Des!a
~a~ si~ua-o - ,na perspectiva dessa desigualdade na igualdade, na equl~ visão concluía ele que o lugar de purgação podia depender da ~ntercessao
distância, que e uma estrutura lógica fundamental no espírito dos hom. de um santo, pois, segundo ele, «alguém» obtivera de S. Patnck ser pu-
da sociedade feudal - do lado do Paraíso, na medida em que, para os doll nido em determinado lugar da terra, do que nascera a lenda de que o
rei~o.s~como dirá Dante, os condutores das almas são os anjos bons, Purgatório era aí (in quodam loco in terra, ex quo fabulose ortum est,
Opinião que está portanto em contradição com a maioria das visões do quod ibi esset purgatorium). Mas a sua conclusão m~smo era que, pura
além, com o Purgatório de S. Patrick designadamente. O Purgatório in•• e simplesmente, havia diversos locais de purgação. ASSim,ao ~ar testemu-
tala-se num clima de dramatização das crenças cristãs do século XIII. ESII nho da popularidade do Purgatório de S. Patrick., ele consl~erava que
clima provém sobretudo do conflito entre uma concepção não infernal, li essa localização, talvez verdadeira em casos particulares, nao pa~s~~a
não quase paradisíaca, dominante, pareceu-me, no fim do século XII, de uma fonte de «fábulas». O que não era, como veremos, a opimao
apesar do negrume das visões, e aquilo a que Arturo Graf chamou de um cisterciense como César de Heisterbach. Aqui está a desconfiança
uma «infernização» progressiva do Purgatório no decurso do século. A de um intelectual em relação à literatura folclórica das visões do Purga-
este respeito, Boaventura é tradicional. tório.
E é-o também no que toca à localização propriamente dita do Boaventura retoma o problema da localização do Purgatório na ques-
Purgatório. «O lugar do Purgatório é em cima, em baixo, ou no meio?» tão clássica dos «receptáculos das almas», no artigo I do destaque XLIV
(superi'fS. ~ inferius an in medio). A resposta, original, é: «O lugar do do livro IV25. Distingue cuidadosamente a geografi~ do além ante~ e d~-
Purgatório e ~rovavelmente, segundo a lei comum, em baixo (inferius), pois da vinda do Cristo, a Encarnação. Antes de Cnsto o Inferno I~clwa
mas e no meio (medius) segundo a economia divina (disperuationem dois andares de um lugar em baixo (Iocus tnfimus) onde se sofna ao
divinam} » Notemos primeiro que, tal como na pergunta anterior sobre mesmo tempo a pena dos sentidos (castigos ~at~riais) e a ~na ~a perda
os anj~s e os demónios, se está no campo das opiniões, das probabilida- (a privação da visão beatífica) e um lugar inferior (locus inferior] m~s
des, nao das certezas. Em tudo o que respeita ao imaginário e ao colocado por cima do anterior, onde só se sofria a pena da perda. São
concreto, os grandes escolásticos esquivam-se mais ou menos. Mas a os limbos (limbus, o limbo, dizia-se na Idade Média, fos~e para defi~ir um
opi~ião de Bo~ventura é muito interessante, pois aproxima (mesmo só, fosse para distinguir vários) que compreendem o limbo das crianças
venfica,n~o a dlf~rença, se não a oposição) uma lei comum, que situa o pequenas e o limbo dos patriarcas ou seio de Abraão).
Purgatono debaixo da terra, de um plano divino que o coloca numa Depois da vinda do Cristo há quatro (o sublinhado é m~u).lug~res:.o
posição média, segundo a lógica do novo sistema do além. Funciona Paraíso o Inferno o Limbo e o Purgatório. Se bem que a ideia nao seja
pois, entre dois planos, o da lei comum e o da economia divina dualidade ex.plicit~mente en~nciada, tem-se a impressão de que o Purgat~rio é uma
que. é t~mbém a que existe entre a tradição e a tendência teológica. As consequência de Encarnação ligada à remissão d~s pecados e.instaurada
hesitações de Boaventura em relação à localização do Purgatório encon- pela vinda do Cristo. Por outro lado, só res.ta o limbo das cnanças,. ~as
tram-se em duas outras passagens do Comentário sobre o Livro IV das daí resulta um conjunto de quatro lugares VIStoque Boaventura o distin-
Máximas. gue nitidamente do Inferno (enquanto Alberto, o Grande, por exemplo e
Debruçando-se sobre o fogo do Purgatório e glosando por sua vez a como veremos, articula Inferno e limbo). Boaventura prossegue com a
glosa de Lombardo sobre a primeira epístola de Paulo aos Coríntios, 111, sua exposição cruzando, como gosta de fazer, o sistema dos quatro luga-
24
15 , Boave~tura combate a opinião segundo a qual esse fogo teria um res com outro sistema, este ternário e abstracto, o de um «est~do triplos
valor purgativo espiritual além do seu valor punitivo, e purgaria pois do do lado dos eleitos: estado de remunerapdo (traduza-se: Paraíso}, estado
pecado (venial ou não), quer dizer da culpa, à maneira de um sacramento. de espera no repouso (quietae expectationis, traduza-~e: o seio de Abraão ~
Em defesa da sua recusa de ver no fogo do Purgatório uma força nova e um estado de purgação (traduza-se: o Purgatono). E a~rescent~.
(vis nov~) além da punição, recorre ao testemunho de Gregório, o Gran- «Quanto ao estado de purgação, a ele corresponde um lugar indetermi-
de, ao situar a purgação de muitas almas em lugares diversos (per diversa nado em relação a nós e em si (locus indeterminatus et quoad nos et quoad
loca), dependendo a purificação da culpa apenas da graça. É pois o evo- se), pois nem todos são purgados no mesmo lugar, ainda que provavel-

298 299
mente muitos o sejam num determinado lugar.» E invoca aqui a autori desenvolvimento do salariado). 3) Por fim o argumento psicológico:
dade do seu autor preferido, Agostinho.
.diar indefinidamente a esperança é crueldade; e se mantivesse os santos
Em su~~, Bo~vent~ra não tem uma .ideia precisa sobre a localização .fastados da recompensa até ao dia do Julgamento Final, Deus seria
do Purga tono. Dir-se-is estarmos a OUVIrum teólogo indeciso do século' muito cruel.
XII como Hugo de Saint-Victor, mas com uma consciência mais perfeita
É quase no fim do Comentário às Máximas que Boaventura trata dos
da complexidade do. problema. Boaventura tem, no entanto, de admitir a' sufrágios'". Na linha um pouco modificada de Agostinho, distingue es-
crença cada vez mais firme num único lugar, que para ele é apenas um scncialmente três categorias de defuntos: os bons (bani) que estão no
lugar de um grande .núm~ro, deixando subsistir uma multiplicidade de Paraíso, os medianamente bons (mediocriter bani) e os inteiramente
lugar~s. de purgaçao lOclwn~o este mundo cá em baixo, como pretendia maus. Responde da maneira que virá a ser clássica, que só os m~diana-
Gregório, o Gr~nde. Perplexidade perante autoridades divergentes? Prin- mente bons podem beneficiar dos sufrágios dos vivos, mas precisa que
cípalmente, creio eu, repugnâ~cia de fazer ~o Purgatório mais um lugar eles não estão em estado de merecer (in statu merendi), porque não existe
~o que um estado, estado que e decerto preciso localizar mas numa loca. acréscimo de mérito depois da morte.
li~~ção a~st,r~cta, atomizada numa multiplicidade de lugares materiais Depois de ter comentado, no contexto do seu ensino universitário, os
alias provisonos. •
Quatro Livros das Máximas de Pedro Lombardo, Boaventura sentiu n~-
Perguntando-seê" se é possível beneficiar de «reduções de pena» (re. cessidade de dissertar sobre o conjunto dos problemas, expondo ao teo-
laxationes} quando se está no Purgatório ou somente quando se vive logo as suas ideias de maneira mais pessoal como, por seu lado, fez Santo
neste mundo, Boaventura é levado a insistir, na linha de Alexandre de Agostinho com a Súmula Teológica; o que veio a constituir, ent,re. 1254 e
Hal,e~, no poder d~ Igreja em geral e do Papa em particular sobre o Pur- 1256, o Breviloquium. O lugar modesto que nele ocupa o Purgatono mos-
gat~no. T~xt~ muito Importante sobre o percurso dos desenvolvimentos Ira que Boaventura julgava sem dúvida expressar ou ter expressado (a
~as indulgências e do poder pontifical sobre os mortos que Bonifácio VIII anterioridade entre esta parte das obras é difícil de descortinar) o essen-
maugurara quando do Jubileu de 1300.
cial do que pensava a esse resp<:ito no seu Comentário sobre o Livro IV das
, Boaventura vo!t~ a seguir ao fogo do Purgatório-", Interroga-se se ele Máximas. No Breviloquium' ele esclarece, a propósito da pena do Pur-
e corporal ou espiritual, ou mesmo metafisico, verifica a diversidade de gatório que, como «punitiva», ela se exerce por um fogo material e como
opl,nloes dos doutores, as hesitações do seu mestre Agostinho, mas con- «expurgativa» manifesta-se por um fogo espiritual. .,
clui apesar de tudo (vconcede») que se trata de um fogo «material ou A propósito dos sufrágios=, que não hesita em chamar de «eclesiás-
corporal», ~Este aspecto do problema vai ser retomado nas discussões ticos», manifestando assim o papel dominante da Igreja nest~ campo,
contemporaneas com os gregos, em que os franciscanos e o próprio Boa-
precisa sem rodeios que esses sufrágios são válidos «para os medlana~e~-
ventura largamente participaram28.
te bons isto é, os que estão no Purgatório» mas ineficazes «para os mtei-
Em compe~saç~029, Boaventura toma posição firme e decidida (ao ramente maus, isto é, os que estão no Inferno» e «para os inteiram~nte
trB:tar de !tultl, de imbecis, os que defendem a opinião contrária) sobre bons, isto é, os que estão no Céu», cujos méritos e preces trazem muitas
a libertaçao das almas do Purgatório antes do Julgamento Final. Afirma benesses aos membros da Igreja milítante'".
com vee~ência ~ .sua re~lidade - especialmente contra os Gregos _ na Finalmente Boaventura evoca o Purgatório em dois sermões para o
perspe~ttva. da visao beatifica. Baseia-se nas autoridades e em argumen- Dia dos Defuntos, o «dia das almas», 2 de Novembro. No primeiro ",
tos racionais. De entre as autoridades cita em primeiro lugar a frase de distingue os condenados, os eleitos e os que devem ser purgados (dam-
Jesus na cruz para o bom ladrão: «Hoje tu estarás comigo no Paraíso» nati, beati, purgandi), Fundamenta a existência destes últimos, que inclui
(Lucas, XXIII, 43). Os três arg~mentos são interessantes: I) Não pode entre os «imperfeitos», em diversas citações bíblicas ". No segundo ser-
haver element5' retar~ador d.epOls da purgação no Purgatório; parte-se mão faz sobretudo apelo à oração e refere-se à prece de Judas Macabeu
ma! ~ purgaçao esteja terminada, 2) Recusar a um mercenário o seu válida para aqueles que «sofrem atribui ações por causa dos seu~ pecados
s~lano e cometer um delito de justiça; mas Deus é o justo por excelên- inveterados no Purgatório, de onde serão, no entanto, transfendos para
era, ~ desde que ache o homem em estado de ser retribuído, retribui-lhe as alegrias eternas», e interpreta alegoricamente as personagens de Judas,
ll~edlatamente (referência muito interessante à justiça, na tradição do
Jonathan e Simão como «a oração fiel, ~i~~~es e hu~ilde pela ~ual são
secul? ~II, e ~o problema do salário justo no quadro de uma moral libertados aqueles que estão no Purgatono ». Convinha terminar este
economlCo-soclal que os escolásticos se esforçam por elaborar face ao
rápido exame das posições de Boaventura em relação ao Purgatório

300
301
com esta evocação da prece da qual o ilustre franciscano foi um dos creaturis. Nos manuscritos onde foi conservado apresenta-se inacabado,
maiores doutores ". lerminando no Julgamento Final sem que se trate «da beatitude eterna,
das coroas eternas e da casa e das moradas de Deus» que haviam sido
anunciadas.
Entre os dominicanos Após ter-se debruçado sobre a ressurreição em geral na primeira par-
te e sobre a ressurreição do Cristo na segunda, Alberto aborda na ter-
Continuemos em Paris mas recuemos alguns anos para examinar a ceira a ressurreição dos maus. Os «lugares das penas», declara, são «o
doutrina do Purgatório dos dois maiores mestres dominicanos: Alberto, Inferno, o Purgatório, o limbo das crianças e o limbo dos patriarcas».
o Grande, e Tomás de Aquino. A cronologia não é sem importância neste Sobre a questão de saber se o Inferno é um lugar, Alberto diz que o
meio dos teólogos parisienses, mas mais vale talvez escolher outro con- Inferno é duplo: há um inferno exterior que é um lugar material e um
texto que não o da sucessão dos ensinamentos em Paris. Uma linha dou- inferno interior que é a pena sofrida pelos condenados, onde quer que
trinária dentro de cada uma das duas grandes ordens mendicantes é, sem estejam; o lugar do inferno situa-se «no coração da terra» e lá as penas
dúvida, o melhor fio condutor. Alberto, o Grande, dá o essencial das suas são eternas. As «autoridades» citadas são sempre Agostinho, depois Hu-
ideias sobre o Purgatório entre 1240 e 1248. São vulgarizadas em 1268 go de Saint-Victor e, sobre os problemas do lugar e do fogo, Gregório, o
por um discípulo seu, Hugo Ripelin de Estrasburgo. Marcaram a obra Grande, e o Purgatório de S. Patrick. Sobre questões de lógica é invo-
original de outro discípulo de Alberto, esse um grande espírito, Tomás
cado Aristóteles.
de Aquino, que expõe a primeira vez a sua concepção do Purgatório Segundo o De Resurrectione o Purgatório é mesmo um lugar, situado
nas suas aulas em Paris, entre 1252 e 1256 (comenta as Máximas de Pe- próximo do Inferno. É justamente a parte superior do Inferno. Se Gre-
dro Lombardo quase ao mesmo tempo que Boaventura) e cujas ideias gório e Patrick falam do Purgatório nesta terra é porque há casos de
serão passadas à escrita por um grupo de discípulos, após a sua morte aparições cá em baixo de almas do Purgatório que receberam permissão
em 1274. Este «bloco» dominicano representa o supra-sumo do equilí- especial para fazerem advertências aos humanos. Os textos de Hugo de
brio escolástico entre os métodos aristotélicos e a tradição cristã, o «op- Saint-Victor e de S. Paulo (I, Coríntios, III), este último ilustrado com
timum» da construção «racional» no ensino e no pensamento comentários de Agostinho, afirmam que os pecados veniais são desfeitos
universitários do século XIII. O génio doutrinário de Alberto e de Tomás no Purgatório. Esta demonstração, que permite a Alberto recorrer às
prolonga-se na vulgarização assegurada pelo Compendium de Hugo de subtilezas de uma demonstração lógica baseada em Aristóteles, é bastan-
Estrasburgo e pelo Suplemento à Súmu/a Teológica de Reginaldo de Pi- te longa. A seguir, Alberto trata mais rapidamente da intensidade e da
perno e seus colaboradores. natureza das penas do Purgatório. É de opinião que as almas do Purga-
tório não sofrem penas inferiores porque beneficiam da luz da fé e da luz
1. A depuração escolástica do Purgatório: A/berto, o Grande da graça, e o que lhes falta é, provisoriamente, a visão beatífica; mas esta
privação não deve confundir-se com as trevas interiores. Os demónios
Alberto de Lauingen, nascido cerca de 1207, ingressado nos Pregado- contentam-se com levar ao Purgatório as almas a serem purgadas, mas
res de Pádua em 1223 mas formado em Colónia e noutros conventos não as purgam. Enfim, no Purgatório não existe pena do gelo (gelidi-
alemães e depois em Paris, onde é bacharel em Máximas de 1240 a cium) , pois esta pena castiga a frieza na fé - o que não é o caso das almas
1242 e depois mestre de Teologia, aí ocupa uma das duas catedras domi- que devem ser purgadas. Alberto não menciona a pena principal que é o
nicanas na Universidade, entre 1242 e 124838. É durante este periodo que fogo porque teve ocasião de a assinalar a propósito do Inferno, quando
Alberto, leitor de Aristóteles mas ainda não verdadeiramente aristotélico, fez a distinção entre fogo do Purgatório e fogo do Inferno. Enfim, àqueles
compõe duas grandes obras teológicas, a Súmu/a das Criaturas (Summa que, como Agostinho, pensam que as penas do Purgatório são mais
de creaturis) de que faz talvez parte um tratado, De Resurrectione, que «amargas» (o acerbitas) do que qualquer pena cá em baixo no mundo,
figura como tal nos manuscritos e data de antes de 124639; e um Comen- e a outros que pensam que em relação às penas do Inferno estas penas
tário às Máximas de Pedro Lombardo. Nestas duas obras Alberto trata do não são mais do que é a imagem do fogo em relação ao verdadeiro fogo
Purgatório. ou um ponto em relação à linha, responde fazendo apelo à lógica e ele-
O De Resurrectione é talvez o equivalente de um tratado «De novissi- vando o debate. Chama em seu auxílio Aristóteles (Física, I, 3, c. 6 - 206b
mis», dos «fins últimos», que teria constituído a terminação da Summa de 11-12) que declara que só se pode comparar o que é comparável, ou seja,

302 303
o finito com o finito. Portanto o problema da acerbitas é de excluir. A de racionalização de uma crença que vimos nascer tanto pela imagem
diferença entre o Purgatório e o Inferno não é uma questão de intensida- como pelo raciocínio, pelos textos de autoridades como pelas descrições
de mas de duração. Por outro lado, aquilo a que a alma aspira no Purga. fantásticas, por entre erros, lentidões, hesitações, contradições e que está
tório não é a reencontrar o corpo mas a reunir-se a Deus. Eis como se agora amarrada numa construção bem estreita - mas também porque,
deve entender Agostinho que não pensava no fogo do Purgatório. Esta melhor do que qualquer outro escolástico, a meus olhos Alberto soube
terceira parte do De Resurrectione termina com um tratamento de con- criar a teoria do sistema do Purgatório tal como ele nascera mais ou
junto dos lugares das penas (De locis poenarum simul). Nisto Alberto menos empiricamente meio século antes.
mostra bem a consciência plena da unidade do sistema dos lugares do Este texto apresenta outros interesses. Alberto sabe harmonizar me-
além. Unidade material e espiritual: há uma geografia e uma teologia lhor do que ninguém, dentro do sistema de uma crença como o Purgató-
do além. rio, aquilo que depende da imaginação e aquilo que decorre da lógica, o
Quanto ao problema dos «receptáculos das almas», Alberto conside- que vem das autoridades e o que é trazido pelo raciocínio. Põe os diabos
ra-o sob três pontos de vista. fora do Purgatório mas deixa-os chegar à beira dele. Recusa o frio mas
O primeiro consiste em examinar se o receptáculo é um lugar defini- aceita o quente, o fogo. Distingue um espaço interior e um espaço exte-
tivo ou um lugar de passagem. Se é um lugar definitivo, dois casos há a rior, a reconhece que o além é um sistema de lugares materiais. Refuta as
considerar: a glória e a pena. Se se trata da glória, só existe um lugar, o comparações grosseiras mas faz da comparação um elemento legítimo e
reino dos céus, o Paraíso. Se se trata da pena, devemos distinguir um lugar mesmo necessário à noção do sistema do além. Se existe vontade de de-
onde só existe a pena da perda, e que é o limbo das crianpas, e um lugar purar o imaginário, não é por hostilidade de princípio, mas quando esse
com a pena da perda e a pena dos sentidos e que é a geena, o Inferno. Se o imaginário é contrário à lógica, à verdade, ou ao sentido profundo da
receptáculo é apenas um lugar de passagem, então é preciso distinguir crença.
entre pena da perda sozinha - (é o limbo dos patriarcas) e pena da perda Este texto mostra também que para Alberto é importante, se não
e pena dos sentidos simultaneamente, que é o Purgatório. essencial, distinguir bem o Purgatório do Inferno. Também isto decorre
Um segundo ponto de vista consiste em apreciar a causa do mérito. O para ele do sistema. O Purgatório corresponde a um certo estado de pe-
mérito pode ser bom ou mau ou bom e mau ao mesmo tempo (bonum cado, aquele em que o mal se mistura com o bem. Daí resulta primeiro
conjuctum mala). Se é bom, é o reino dos céus que convirá. Se é mau, é por que o sistema é no fundo tripartido e não «pentapartido» (aut est bonum
causa de um pecado pessoal ou estranho (ex culpa propria aut aliena). Ao aut est ma/um aut bonum coninactum maio: ou o bem, ou o mal, ou o bem
pecado pessoal responde a geena, ao pecado estranho (o pecado original) unido ao mal). De onde resulta, sobretudo, que o Purgatório é um médio
o limbo das crianças. Se é feito de uma mistura de bem e de mal, não pode descentrado, desterrado para o bem, para o alto, para o céu, para Deus,
tratar-se de um mal mortal que seria incompatível com a graça que está porque o mal que ele implica é um mal venial, não mortal, enquanto o
ligada ao bem. É portanto um mal venial que pode provir de uma falta rem é, como todo o bem, o da graça. E pois errado acreditar que toda a
pessoal ou estranha. No primeiro caso ir-se-á para o Purgatório, no se- ideia de Purgatório r.o século XIII foi no sentido da «infernização». Se,
gundo para o limbo dos patriarcas. como se verá, foi mesmo essa tendência que o Purgatório seguiu por fim,
Por fim podemos partir do que há nos lugares. Estes lugares podem é na opção por uma pastoral do medo feita pela Igreja institucional da
ter quatro qualidades: serem aflitivos, tenebrosos, luminosos e letificantes época - onde os inquisidores manipulavam a tortura simultaneamente cá
ou gratificantes (afflictivum, tenebrosum, luminosum, laetificativum), Se o em baixo e no além - que se deve procurar a razão.
lugar é letificante e luminoso, é o reino dos céus. Se é aflitivo e tenebroso No Comentário às Máximas, que deve ter seguido de perto o De
porque não contém a visão beatífica, é o purgatôrio'"; se é directamente Resurrectione, o tratamento dado por Alberto, o Grande, ao Purgatório
tenebroso mas não aflitivo, é o limbo das crianpas; se é indirectamente é mais completo, mais aprofundado e apresenta uma certa evolução. São
tenebroso mas não aflitivo, é o limbo dos patriarcas. Alberto dá-se conta sempre, bem entendido, os destaques XXI e XLV do livro IV que dão
de que não esgotou todas as combinações possíveis entre as quatro qua- lugar à exposição sobre o Purgatório. Resumindo o comentário do mes-
lidades dos lugares, e demonstra <jue os casos de combinações referidos tre dominicano, expo-lo-ei no seu desenvolvimento pois de novo ele va-
são os únicos compatíveis entre si 1. loriza o cunho pessoal de Alberto e revela qual o percurso percorrido até
Descrevi demoradamente esta demonstração de Alberto, o Grande, chegar a posições que nem sempre concordam exactamente com as do De
não só para mostrar o que a escolástica faz do Purgatório, o processo Resurrectione.

304 305
No destaque XXI42 Alberto examina os seguintes pontos: é verdade tório» Retoma o versículo de Mateus, XII, 31-32, o texto de Paulo, I
que há pecados depois da morte como disse Cristo no Evangelho: Corintios, IH, 15, acrescenta-Ihes o testemunho de um narrador grego
«Aquele que pecar contra o Espírito Santo, isso não lhe será remido, anônimo que, num espírito ecuménico, faz contribuir para um acordo
nem neste século nem no século futuro» (Mateus, XII, 32)? Esses peca- sobre a existência do fogo purgatório depois da morte, utiliza também
dos são os pecados veniais a que Agostinho alude ao falar de madeira, de Aristóteles e, feito notável, o santo Anselmo do Cur Deus homo, traçan-
feno e de palha (I Corintios, Hl; 12)?Deve acreditar-se que essa purgação do assim em proveito da existência do Purgatório uma impressionante
será feita por um fogo purgatório e transitório, e que esse fogo será mais linha filosófica e teológica, desde os antigos gregos até ao século XII Ia-
severo do que tudo que o homem possa sofrer nesta vida (Agostinho, tino e grego. Aborda em seguida, como é seu hábito e como fazem geral-
Cidade de Deus, XXI, 26) porque Paulo diz (I Corintios, lU; 15) que se mente os escolásticos, os argumentos racionais, enumerando as vantagens
será salvo como através do fogo (quasi per ignem ), o que deveria levar a de uma purgação depois da morte.
desprezar esse fogo? A todas as objecções Alberto responde misturando habilmente o ad-
Alberto examina estas perguntas e responde-Ihes em doze artigos: jectivo (purgatorius,fogo subentendido) e o substantivo purgatorium: «De
Artigo primeiro: Serão alguns pecados veniais remidos depois desta qualquer maneira é necessário, segundo a razão e a fé, que haja um (fogo)
vida? A resposta é afirmativa e baseia-se nas autoridades, designadamen- purgatório (purgatorius), Estas razões são principalmente morais e delas
te em Gregório, o Grande, no livro IV dos Diálogos, e em argumentos dos resulta, de maneira concordante, que existe um Purgatório (purgato-
quais retenho dois: 1) depois da morte já não é altura para aumentar o rium).»
mérito mas sim para utilizar o mérito (adquirido cá em baixo) nos fins Quanto às hesitações de Agostinho, Alberto afirma que elas não' di-
para os quais ele é pertinente; 2) a própria pena da morte apagaria os ziam respeito à existência do Purgatório mas à interpretação do texto de
pecados se fosse cumprida para esse fim, como sucede com os mártires, S. Paulo. Lembra que, por outro lado, outros santos falaram expressa-
mas não é esse o caso com os moribundos vulgares (in aliis communiter mente do Purgatório e que negar a sua existência é uma heresia. Alberto,
morientibus). O Purgatório está estreitamente ligado à conduta geral cá seguido pelo seu discípulo Tomás de Aquino, vai neste ponto mais longe
em baixo no mundo e é feito para o comum dos mortais. do que qualquer outro teólogo do seu tempo.
Artigo 2: Que significa a edificação da madeira, do feno e da palha No que diz respeito às razões «morais», Alberto não se refere ao fogo
(paulo, I Corintios, lU; 12)? Resposta: as diferentes espécies de pecados e volta aos problemas da purgação. Desfaz as objecções contra o Purga-
veniais. Autoridades invocadas: S. Jerónimo e Aristóteles. tório refutando o paralelismo entre o bem e o mal, acrescentando à ba-
Artigo 3: Qual é o alicerce desses edificios? Parece que não pode ser a lança da justiça o peso do amor e afirmando que Deus «depois da morte
fé, visto que a fé só está virada para as boas obras e os pecados veniais só recompensa o que se lhe assemelha pelo amor e não condena senão os
não são boas obras. Resposta: no fundo, o alicerce é mesmo a fé que que se desviaram dele e o odeiam ... Nenhum dos que são purgados será
conserva em nós a esperança. Os materiais dão ao edifício a sua substân- condenado.»
cia, mas quanto às paredes, é a esperança inclinada para as coisas eternas; O artigo 5 responde a uma pergunta ao mesmo tempo teórica e prá-
e no topo está o amor (charitas) que é o lugar da perfeição. A reflexão tica: «Porque é que as penas do Inferno têm vários nomes e as do Purga-
sobre o Purgatório implanta-se assim sobre uma teologia das virtudes tório só um, que é o fogo?» É que, segundo Alberto, o Inferno é feito para
fundamentais. punir e há muitas maneiras de punir, por exemplo pelo frio assim como
O artigo 4 é crucial para Alberto. Trata-se, com efeito, de responder à pelo calor. O Purgatório, em compensação, que é feito para purgar, não
pergunta: «Há ou não um fogo purgatório depois da morte?» De facto, pode fazê-lo senão com um elemento que tenha força purgativa e con-
como Lombardo não conhecia ainda o Purgatório, responder a esta per- sumptiva. Não é o caso do frio mas é o caso do fogo. Aqui Alberto faz
gunta era comprometer-se, ao mesmo tempo, com a existência do Purga- visivelmente apelo ao seu gosto pelas ciências naturais.
tório e com a do fogo purgatório, tanto mais delicada quanto está no Depois de no artigo 6 ter completado a sua exegese da primeira
centro dos debates contemporâneos sobre o Purgatório com os Gregos, epístola aos Corintios, a propósito do ouro, da prata e das pedras pre-
e quando os «doutores do Purgatórios (a expressão é minha, não de ciosas, e recorrendo também ele à distinção aristotélica entre a luz, a
Alberto), Agostinho e Gregório, o Grande, duvidaram desse fogo. chama e a brasa, Alberto aborda no artigo 7 o problema da purgação
Alberto, depois de examinar um certo número de autoridades e de voluntária e involuntária. Conclui que as almas querem ser purgadas e
objecções racionais, responde repetindo: «É a isso que chamamos Purga- salvas mas que querem ser purgadas no Purgatório só porque não têm

306 307
outra possibilidade de serem salvas e libertas. A sua vontade é condicio- quecer que Deus é supremamente justo. Ser-se-ia tentado a dizer que ele é
nada. () mais justo dos patrões, dos «dadores de trabalho».
O artigo 8 diz respeito aos pecados veniais dos condenados. Parece um Os artigos 11 e 12 tratam da confissão e não falam do Purgatório mas,
exercício escolar: os condenados são-no para todo o sempre não pelos ao evocarem os problemas da culpa (culpa), os pecados mortais e veniais,
seus pecados veniais mas pelos seus pecados mortais. tocam nele indirectamente. Encontramos aqui o contexto penitencial em
O artigo 9 apresenta, como em Boaventura, a questão de saber se as que, de Lombardo a Alberto, o Grande, se desenrolou o debate teológico
almas no Purgatório são punidas pelos demónios. Como o doutor fran- Nobreo novo Purgatório.
ciscano, Alberto pensa que os demónios não são os ministros dos pecados É no artigo 45 da primeira parte do destaque XLIV deste comentário
do Purgatório, mas não tem a certeza. Em compensação, avança uma que Alberto, o Grande, nos dá a melhor exposição, que seja do meu
hipótese interessante para as visões do além: pensa que os demónios se conhecimento, do sistema geográfico do além no século XIII.
deleitam com o espectáculo das penas das almas do Purgatório e que por A questão posta é: «Há cinco receptáculos para as almas depois de
vezes assistem a ele. «E, diz ele, o que se lê às vezes», e explica assim uma ficarem separadas dos corpos?». A solução é a seguinte: «A isso devo
passagem da Vida de S. Martinho. Havia quem sustentasse que, como dizer que os receptáculos das almas são diversos e diversificam-se as-
segundo essa Vida, o diabo ficava muitas vezes à cabeceira do santo, e sim. São um lugar de desfecho ou de passagem. Se se trata de um lugar
sabia, segundo as suas obras, que ele não seria condenado, era por isso de desfecho, são dois: segundo o mau mérito o Inferno, segundo o bom
que esperava poder levá-I o para o Purgatório quando morresse. A hipó- mérito o Reino dos Céus. Mas o desfecho segundo o mau mérito, quer
tese de Alberto destrói esta interpretação. dizer o Inferno, é duplo segundo o mérito próprio e segundo um pacto
O artigo 10 trata longamente - a actualidade obriga ... - do «erro de com a natureza; ao primeiro caso corresponde o inferno inferior dos con-
alguns gregos que dizem que ninguém entre no Céu ou no Inferno antes denados, ao segundo o limbo das crianças, que é o inferno superior ... Se se
do dia do Julgamento, e antes fica em lugares intermédios (in locis me- trata de um lugar de passagem, isso pode resultar da falta de mérito
diis) à espera de ser transferido (após o Julgamento) para um ou para próprio ou da falta de pagamento do preço ... No primeiro caso é o
outro». Purgatório, no segundo o limbo dos patriarcas antes da vinda do
No fim de um debate em que expõe demorada e objectivamente as Cristo'".»
concepções dos gregos, Alberto conclui que sem dúvida alguma se pode Portanto, só há de facto três lugares: o Paraíso, o Inferno, que se
ir para o Céu ou para o Inferno quer logo a seguir à morte quer entre a desdobra em geena e em limbo para as crianças (em vez do antigo infer-
morte e o Julgamento Final - o que legitima o tempo do Purgatório e no superior que prefigurava o Purgatório), e o Purgatório (também ele
permite acreditar que as almas saem de lá mais ou menos depressa, o ligado a uma outra metade, o limbo dos patriarcas; mas este está vazio e
que, por sua vez, justifica os sufrágios. Alberto baseia a sua conclusão, fechado para sempre depois da descida do Cristo).
em que repete que a recusa desta opinião é uma heresia e até uma heresia Solução elegante para o problema dos três e dos cinco lugares, obtida
muito grave (haeresis pessima}, no Evangelho (Lucas, XXV, 43 e XVI, por uma argumentação puramente abstracta, ainda que, evidentemente,
22), no Apocalipse (VI, lI) e nas epístolas de Paulo (Hebreus, Il, 40) e haseada na Escritura e na tradição. Enfim, no artigo 4 do destaque XLV
ainda em argumentos racionais, como de costume. Entre estes argumen- sobre os sufrágios dos defuntos, Alberto reafirma a eficácia dos sufrágios
tos retenho um especialmente interessante para o contexto sócio-ideoló- pelos defuntos do Purgatório, lembra que eles dependem do foro da Igre-
gico da época. Do lado grego argumenta-se que os mortos formam uma ja, sublinha que o amor da Igreja militante (charitas Ecc/esiae militantis)
comunidade e que, à maneira das comunidades urbanas onde se decide é a fonte dos sufrágios e que se os vivos podem fazer com que os mortos
em comum (in urbanitatibus in quibus in communi decertatur'l ), a decisão beneficiem com os sufrágios, a inversa não é verdadeira'". r

para o conjunto dos eleitos e dos condenados tem de ser tomada e execu- Aprecia-se o enriquecimento desde o De Resurrectione. E certo que a
tada no mesmo momento. Alberto, por seu turno, faz notar que não é natureza da obra conduzia Alberto mais ou menos para aí: partir de
justo não dar aos trabalhadores (operarii ) o seu salário logo que tenham Lombardo levava-o a reencontrar o laço com o meio do nascimento do
acabado de trabalhar e recorda que se vê (videmus ) a pessoa que contra- Purgatório, com a teologia dos sacramentos e da penitência, e a evocação
tou trabalhadores agrícolas dar um prémio (consolatio specialis) aos tra- dos sufrágios impunha o tema da solidariedade entre os vivos e os mor-
balhadores melhores'". Ora - é uma ideia cara a Alberto - se se fala de tos. Mas sente-se que o pensamento de Alberto se aprofundou entretanto.
salário justo (problema teórico e prático do seu tempo), não se deve es- A obrigação de produzir provas da existência do Purgatório faz com que

308 309
exponha novos argumentos. O seu processo das «autoridades» enrique- Por cima deste lugar há o Purgatório (Hugo emprega o masculino
purgatorius e não o neutro purgatorium, subentendendo portanto locus, lu-
ceu-se e diversificou-se. A sua exegese dos textos, especialmente da pri-
gar) onde existe a pena dos sentidos e da perda ao mesmo tempo, e há tam-
meira epístola de Paulo aos Corintios, degradou-se. Quando considera o
bém as trevas exteriores mas não as interiores, pois pela graça existe lá a luz
que se passa no Purgatório concentra-se mais no processo da purgação interior porque se vê que se será salvo. O lugar superior é o limbo dos pais
do que nas penas. Trata mais longamente o tempo do Purgatório abor- santos (dos-patriarcas) onde houve a pena da perda mas não a dos sentidos, e
dando a duração das estadas individuais mais ou menos longas, enquanto também lá houve as trevas exteriores, mas não as trevas da privação da graça.
no De Resurrectione se contentara com dizer que o Purgatório duraria até Foi a este lugar que o Cristo desceu e de lá libertou os seus, e assim «mordem)
ao Julgamento Final mas não para além dele. Ao falar dos sufrágios o inferno, pois trouxe uma parte dele e deixou outra, mas no que toca aos
invoca a comunhão dos santos e recorre a comparações que inserem o eleitos Deus destruiu completamente a morte, como diz Oseias, XIII, 14:
texto numa visão aguda das realidades económicas, sociais, políticas e «Eu serei a tua morte, ó morte, serei a tua mordedura, Inferno.» Também
ideológicas do seu tempo. Enfim, reúne numa só exposição o sistema °
se chamava a este lugar seio de Abraão, o céu do empíreo, pois Abraão
dos lugares do além, e ao precisar que o limbo dos patriarcas só existiu está lá daqui em diante. Em nenhum destes lugares existe passagem para ou-
até à vinda do Cristo, reduz o sistema dos cinco lugares a quatro e na tro, excepto outrora do terceiro para o quarto, quer dizer do Purgatório para
o limbo dos pais santos (patriarcasj'".
realidade a três, quer dizer à lógica profunda da geografia do outro mun-
do cristão.
Se este texto lembra as concepções de Alberto, o Grande, nos Comen-
Alberto, o Grande, é, entre os eclesiásticos, aquele que mais clara e
tários às Máximas, deve notar-se que o Purgatório é apresentado num
firmemente tratou o Purgatório e que, talvez à custa de alguns silêncios e
conjunto infernal e não está tão nitidamente separado do limbo das crian-
de algumas habilidades, lhe deu um estatuto teológico, se assim posso
ças, que Alberto colava ao Inferno depois de ter afastado dele o Purga-
dizer, elevado, sem se opor às crenças comuns nem defender teses incom-
tório. A este respeito, Hugo é mais conservador do que Alberto, e a sua
patíveis com elas.
concepção revela o processo de «infernização» do Purgatório. Em com-
pensação, o seu esforço de racionalização coloca-se mais deliberadamente
numa perspectiva histórica, aliás fiel à do espírito de Alberto. O desapa-
2. Um manual de vulgarizacão teológica recimento histórico do seio de Abraão está muito bem realçado, mas
sabemos que não foi a descida do Cristo aos infernos (quer dizer, em
A sua influência prosseguiu através da obra de vulgarização teológica termos históricos positivos, os tempos evangélicos), que fez esbater-se
de um dos seus discípulos que, aliás, foi publicada com as obras comple- ou subir aos céus o seio de Abraão, mas sim o nascimento do Purgatório
tas de Alberto. Refiro-me ao Compendium theologicae veritatis (Com- na viragem do século XII para o século XIII.
pêndio da verdade teológica) elaborado pelo dominicano Hugo Ripelin, No que respeita ao Purgatório, o essencial encontra-se no livro VII
superior do convento dos pregadores de Estrasburgo entre 1268 e 1269, Sobre os últimos tempos (de ultimis temporibus) onde preenche os capitu-
também chamado Hugo de Estrasburgo. Atribui-se-Ihe a data de 126847• los 11 a VI entre o primeiro capítulo dedicado ao fim do mundo e os
No livro IV está explicada com clareza a geografia do além e o desa- capítulos que tratam do Anticristo'". O Compendium começa por afirmar
parecimento do seio de Abraão a propósito da descida do Cristo aos que o Purgatório é a esperança pois os que lá estão «sabem que não estão
infernos. no Inferno». Muitas razões, acrescenta ele, fazem com que tenha de
existir um Purgatório. Primeiro, como disse Agostinho, o facto de haver
Para se saber a que inferno Cristo desceu deve notar-se que inferno tem três espécies de homens: os muito maus, os muito bons e os nem muito
dois sentidos e designa quer a pena quer o lugar da pena. No primeiro sentido maus nem muito bons que têm de se desembaraçar dos seus pecados
diz-se que os demónios trazem sempre o inferno consigo. Se inferno designa o veniais pela pena do Purgatório. As outras seis razões dependem essen-
lugar da pena devem distinguir-se quatro (lugares). Há o inferno dos conde- cialmente da justiça e da necessidade da purificação baptismal antes de se
nados onde se sofre a pena dos sentidos e da perda (privação da presença
fruir a visão beatifica. Mas logo que são purgadas, as almas voam para o
divina) e onde se encontram as trevas interiores e exteriores, quer dizer a
Paraíso, para a glória.
ausência de graça: é um luto eterno. Por cima encontra-se o limbo das crian-
ças onde se sofre a pena da perda mas não a dos sentidos, e lá existem trevas A pena do Purgatório é dupla: pena da perda e pena dos sentidos e é
exteriores e interiores. muito severa (acerba). O fogo do Purgatório é simultaneamente corporal

310 311
e incorporal, não por metáfora mas por imagem, por semelhança «como definir em algumas páginas o lugar do Purgatório na mais completa es-
um leão verdadeiro e um leão pintado» ambos reais mas, como diríamos trutura teológica do século XIII, a de Tomás de Aquino.
hoje, com a diferença que separa um verdadeiro leão de um leão «de Tomás de Aquino tratou do Purgatório por várias vezes na sua
papel». ubra5o•
Sobre a localização do Purgatório, Hugo remete ao que disse a pro- Tomás, filho do conde de Aquino, nascido no castelo de Roccasecca
pósito da descida do Cristo aos infernos e acrescenta que, estando o Pur- na Itália do Sul no fim de 1224 ou no princípio de 1225, ingressado nos
gatório situado, segundo a lei comum, num compartimento do Inferno, dominicanos em Nápoles em 1244, faz os seus estudos em Nápoles, em
certas almas podem, por dispensa especial, purgar-se em certos locais Paris e em Colónia com Alberto, o Grande. E quando é bacharel de
onde pecaram, como revelam algumas aparições. Máximas em Paris, entre 1252 e 1256, que elabora não um verdadeiro
Os sufrágios da Igreja (cap. IV) servem não para se obter a vida eterna comentário aos Quatro Livros de Máximas de Pedro Lombardo mas
mas para se ser libertado da pena, quer se trate de mitigação da pena quer um Escrito (Scriptum ), uma série de perguntas e debates sobre esse tex-
de uma libertação mais rápida. Há quatro tipos de sufrágios: a oração, o to. Nele fala evidentemente do Purgatório nas questões XXI e XLV no
jejum, a esmola e o sacramento do altar (missa). Estes sufrágios só podem livro IV. Definiu-se o plano do Scriptium de Tomás como resultante de
beneficiar aqueles que cá em baixo no mundo mereceram poder tirar uma organização «totalmente centrada em Deus». É composto por três
proveito deles após a morte. De uma maneira original e curiosa, o partes: «Deus no seu ser, as criaturas como vindas de Deus, as criaturas
Compendium acrescenta que os sufrágios podem também aproveitar aos como regressadas a Deus".» A terceira parte, dedicada ao regresso (red-
eleitos e aos condenados. Aos eleitos por acréscimo, pois a multiplicação ditus), desdobra-se. É no segundo painel desta terceira parte que se trata
dos eleitos por adjunção das almas libertadas do Purgatório aumenta a do Purgatório.
glória «acidental» do conjunto dos bem-aventurados. Aos condenados Tomás trata também do Purgatório em vários escritos polémicos con-
por diminuição pois, em sentido inverso, a diminuição do número de tra os Muçulmanos, os Gregos e os Arménios e, de maneira mais gené-
condenados aligeira a pena do seu conjunto. Se esta argumentação é es- rica: os pagãos, incluindo também provavelmente Judeus e hereges. São
peciosa no que toca aos eleitos, parece-me absurda no que aos condena- leitos em Itália, a maioria em Orvieto, em 1263 e 1264: são o Contra
dos diz respeito. Aqui a máquina escolástica, ávida de simetrias, parece- errares Grecorum (Contra os erros dos Gregos) composto a pedido do
-me ter descarrilado. Papa Urbano IV, o De rationibus fidei contra saracenos, Graecos et Arme-
Enfim, como fizera Boaventura, o Compendium declara que os laicos nos ad Cantarem Antiochiae (Das razões de fé contra os Sarracenos, os
não podem fazer os mortos beneficiar de sufrágios senão pela realização Gregos e os Arménios, para o chantre de Antioquia) e o livro IV da Sum-
de boas obras. Os beneficiários de indulgências não podem transferi-Ias ma contra Gentiles (Súmula contra os pagãos). Falarei deles mais adiante
nem para os vivos nem para os mortos. Em compensação, o Papa e só ele ao tratar do Purgatório nas negociações entre Gregos e Latinos.
pode dispensar aos defuntos, ao mesmo tempo, indulgências por autori- O Purgatório aparece ainda no De Maio (Do Mal), debates travados
dade e o sufrágio das boas obras por amor (charitas). Assim a monar- em Roma em 1266-1267. Tomás de Aquino morre a 7 de Março de 1274
quia pontifical estende para fora do domínio do mundo cá em baixo o seu na abadia cisterciense de Fossanova quando ia a caminho do 11concílio
poder sobre o além: passa a enviar - por canonização - santos para o de Lyon. Deixa inacabada a sua grande obra, a Súmula teológica (Summa
Paraíso e a subtrair almas ao Purgatório. theologiae ) onde, à maneira de Boaventura no Breviloquium, mostra a sua
preocupação em retomar numa exposição mais pessoal (e, ao contrário de
Boaventura, muito mais vasta) os problemas abordados no Scriptum so-
3. O Purgatório no centro da intelectualidade: Tomás de Aquino e o regres- bre os Quatro Livros de Máximas de Pedro Lombardo. Um grupo de
so do homem a Deus
discípulos dirigidos por Reginaldo de Piperno termina a Súmula acrescen-
tando-lhe um Suplemento tirado no seu essencial de escritos anteriores de
Esforcei-me por mostrar como alguns grandes escolásticos falaram do S. Tomás e mais especialmente do Scriptum. É esse o caso no que diz
Purgatório, afirmando com veemência a sua existência mas mantendo respeito ao Purgatório que, fazendo parte da exposição sobre «os fins
algumas hesitações quanto à sua localização, mostrando-se discretos so- últimos», aparecia quase no fim da obra.
bre os seus aspectos mais concretos e concedendo-lhe um lugar relativa- Vou concentrar a minha análise no Suplemento reportando-me, quan-
mente insignificante no seu sistema teológico. É ainda hoje delicado c
do ror caso diISSO, ao S'cnptum 52 .

312 313
Compreendo as objecções que esta escolha pode suscitar. O os seus pensadores cristãos preferidos. Aliás, dá dessa loc~lização uma
Suplemento não é um texto autêntico de S. Tomás, mesmo tendo sido definição abstracta: «As almas separadas ... podem .ser.destinados cert?s
redigido por discípulos conscienciosos e respeitadores, desejosos de utili- lugares corpóreos correspondentes ao seu grau de dignidade» e elas estao
zar apenas textos do próprio Tomás. A montagem dos excertos deforma lá «como num lugar» (quasi in loco). Voltam~s a encontrar o fam~so
o pensamento de Tomás e trai-o duplamente: tornando-o mais rigido e ' quasi que recorda o quasi pe~ ignem de Ag~stl~h?, ~m compe~saçao,
empobrecendo-o, fazendo de uma fase relativamente antiga da sua dou- de Aquino faz com que a mais elevada e mais dinanuca concepçao teo-
trina o coroar do seu edificio teológico. Mas o Suplemento não tem ape- lógica e a psicologia comum se encontrem, quando declara que «as almas,
nas a vantagem da citação textual e da coerência; representa aquilo que o pelo facto de saberem que tal ou tal lugar lhes está desti~ad?, ficam por
clero da Baixa Idade Média considerou ser a posição definitiva de Tomás isso alegres ou tristes: é assim que a sua morada contribui para a sua
. 54
sobre os problemas do além. recompensa ou para o seu castigo ». _. _
A questão LXIX do Suplemento diz respeito à ressurreição e, em pri- No artigo 2, ele conclui - baseando-se na comparaçao da graVItaça~
meiro lugar, aos «receptáculos das almas depois da morte» (é a questão I dos corpos: «Como o lugar que é destinado a uma alma corresponde a
do destaque XLV do comentário do livro IV das Máximas). Parece que 01 recompensa ou ao castigo que ela mereceu, logo que essa alma sal do
autores do Suplemento vêem o programa da Súmula duma maneira pre- corpo ou fica submersa no Inferno ou voa. pa~a o ~~u, a menos que,
dominantemente linear, marcada por sinais cronológicos do tipo «antes, neste último
.
caso, uma dívida para
_
com
,.
a Justiça divina retarde o seu
55
durante, depols'?». Na perspectiva do redditus, do regresso da criatura a- voo, obngando-a a uma purgaçao previa .»
Deus, orienta todo o processo a partir desse fim e não de uma trajectória No decorrer da discussão, para justificar a saída das almas do Purga-
histórica. No capítulo seguinte tentarei explicar a ideia do tempo do Pur- tório antes do Julgmento Final onde todos os corpos, cujas almas o tive-
gatório para a massa dos fiéis do século XIII como sendo uma combina- rem merecido se tornarão gloriosos em conjunto, ele declara, em resposta
ção de tempo escatológico e de tempo sucessivo. De todos os grandes aos argumentos dos teóricos da comunidade (os urbanitates de Albert~, o
escolásticos do século XIII, S. Tomás parece-me o mais alheio à experiên- Grande) e dos gregos: «A glorificação simultânea de todas as almas Im-
cia comum dos homens do seu tempo no que respeita aos fins últimos. põe-se menos do que a de todos os corpos.», ., , .
E, na mais forte acepção do termo, um pensamento arrogante. Neste O artigo 3 trata dos espectros, esse grande capitulo do imagmano56
das
pensamento de eternidade, o lugar de uma realidade tão transitória sociedades excessivamente ignorado até agora pelos historiadores . T~-
como o Purgatório não é muito importante, tanto mais que lá a criatura más de Aquino está visivelmente pr~ocupa?o com a nat~r~~ das apan-
já não tem mérito. Tenho a impressão de que Tomás trata do Purgatório ções, visões e sonhos, com a sua mamfestaça? durant~ a ~gíhll; ou o son~,
como de uma questão imposta, uma «questão que está no programa», com o seu carácter aparente ou real. A SOCIedadecnsta medieval domi-
para usar a giria universitária, e não um problema fundamental. Usando nou maios seus sonhos e a respectiva interpretação 57 . Eleitos, condena-
um vocabulário que não é o seu, direi que o Purgatório lhe parece dos e almas do Purgatório podem, segundo Tomás, que tem em conta,
«vulgar». ainda que com relutância visível, a literatura das visões: sair ~os seus
Creio que devo manter na doutrina tomista do Purgatório a relativa respectivos lugares no além e aparecer aos vivos. Deus so permite estas
rigidez que lhe deu o Suplemento. saídas para instrução dos vivos e, no caso dos condenados e em men~r
A questão da morada das almas depois da morte divide-se em sete grau das almas do Purgatório, para os aterrori~ar (ad terr~re?,,), Os elei-
artigos: «I) Há determinadas moradas destinadas às almas depois da tos podem aparecer à sua vontade, os outros 80 com p~r~llss~o de Deus.
morte? 2) Elas vão para lá logo depois da morte? 3) Podem sair de lá? Tanto com os eleitos como com os condenados, as apançoes sao, graças a
4) A expressão "o seio de Abraão" designa um limbo do Inferno? 5) Esse Deus (sou eu que o digo, mas suponho não estar a forçar a opinião de
limbo é o mesmo que o Inferno dos condenados? 6) O limbo das crianças Tomás), raras: «Os mortos, se vão para o Céu, a sua união com a vontade
é o mesmo que o dos patriarcas? 7) Deve distinguir-se um número preciso divina é tal que nada lhes parece permitido que não seja conforme com.as
de receptáculos?» disposições da Providência; se estão no Inferno, sentem-se de tal maneira
À primeira pergunta Tomás responde pela afirmativa mas depois de esmagados pelas suas penas que pensam mai~ em se lame~t~r do que em
ter partido de duas opiniões aparentemente contrárias de Boécio (ea opi- aparecer aos vivos.» Restam aqueles q~e e~tao no Purgatório, como tes-
nião comum dos sábios é que os seres incorpóreos não estão num lugar») temunha Gregório, o Grande. Esses «vem Implorar sufrágios», I?~s tam-
e de Agostinho (XII Super Genesim ad litteram) que são, como é sabido, bém a eles, como se verá, Tomás tem o cuidado de limitar ao mmimo os

314 315
passeios. Em compensação, a partida para o Céu das almas purgadas ne esperam agora a glória do corpo. Assim como esperavam num receptá-
Purgatório é normal. culo especial antes da vinda do Cristo, deveriam agora esperar noutro
Artigo 4: O seio de Abraão era bem um limbo do Inferno mas depois lugar diferente daquele para onde irão após a ressurreição, ou seja, o Céu.
da descida do Cristo aos infernos já não existe. Aqui Tomás segue 01 Depois de percorrer assim as hipóteses, Tomás dá a sua solução: os
ensinamentos do seu mestre Alberto, o Grande. No artigo 5 ele precisa receptáculos das almas são diferentes conforme os seus diferentes estados.
que «o limbo dos patriarcas ocupava provavelmente o mesmo lugar que O Aqui Tomás usa um termo, status, que vai conhecer grande êxito no sé-
Inferno ou um lugar próximo, ainda que superior». O artigo 6 distingue O culo XIII; designa tanto as diversas condições socioprofissionais dos ho-
limbo das crianças e o dos patriarcas. O primeiro ainda existe mas, como mens cá em baixo, como os diferentes estatutos jurídicos, espirituais e
essas crianças apenas são culpadas do pecado original, não são passíveis morais dos indivíduos. A sua principal referência é de natureza jurídi-
senão das punições mais leves e o próprio Tomás interroga-se se, em vez ca. Detecta-se nela a influência do direito sobre a teologia. As almas
de punição, não se tratará de um atraso da glorificação (di/a tio gloriae~. em estado de receber no momento da morte a recompensa final em
No artigo 7 Tomás esboça uma tipologia dos receptáculos do além 8. bem vão para o Paraíso, as almas em estado de a receber em mal vão
Primeira hipótese: «Se os receptáculos correspondem ao mérito ou ao para o Inferno, as que estão carregadas apenas com o pecado original
desmérito» deveria então haver duas moradas no além: o Paraíso para O . vão para o limbo das crianças. A alma cujo estado não lhe permite rece-
mérito e outra morada :para o desmérito. ber a retribuição final vai para o Purgatório, se é por causa da pessoa; se é
Segunda hipótese: «E num mesmo e único lugar que os homens du- .6 por causa da natureza iria para o limbo dos patriarcas, mas este já não
rante a vida merecem ou desmerecem.» É então possível admitir uma existe desde a descida do Cristo aos infernos.
mesma e única morada destinada a todos depois da morte. Tomás justifica então esta solução. Baseando-se no pseudo-Dionísio e
Terceira hipótese: esses lugares devem corresponder aos pecados que em Aristóteles (Ética. 11,8, 14), afirma que «há uma única maneira de ser
podem ser de três espécies: original, venial e mortal. Deveria então haver bom, mas muitas de ser mau». Portanto, só há lugar para a recompensa
três receptáculos. Pode também pensar-se no «ar tenebroso que é repre- do bem, mas vários para os pecados. Como morada, os demónios não
sentado como a prisão dos demónios» e no Paraíso terrestre onde se têm o ar mas o Inferno. O Paraíso Terrestre refere-se ao mundo cá em
encontram Henoch e Elias. Há, portanto, mais de cinco receptáculos. baixo e não faz parte dos receptáculos do além. A punição do pecado
O que não é tudo. Pode ainda pensar-se que é preciso um lugar para a nesta vida está fora de questão, pois não arranca o homem ao estado
alma que deixa o mundo só com o pecado original e pecados veniais. Não de mérito ou de desmérito. Como o mal nunca se apresenta no estado
pode ir para o céu nem para o limbo dos patriarcas visto que não possui a puro e sem mistura de bem e, reciprocamente, para atingir a beatitude,
graça, nem para o limbo das crianças visto que lá não existe pena dos que é o bem soberano, é preciso ser-se purgado de todo o mal, e se não for
sentidos, devido ao pecado original, nem para o Purgatório porque não esse o caso no momento da morte, tem de existir para essa purgação
se fica lá sempre, quando lhe é devida uma pena eterna, nem para o completa um lugar depois da morte. É o Purgatório.
Inferno, visto que só o pecado mortal condena a ele. Curiosa hipótese E Tomás acrescenta que aqueles que estão no Inferno não podem
que leva em conta o limbo dos patriarcas que foi definitivamente fechado estar privados de todo o bem; as boas obras realizadas nesta terra podem
pelo Cristo e que concebe o pecado venial como uma culpa não remível valer aos condenados uma mitigação da pena. Sem o citar, Tomás lem-
depois da morte, não dependendo do Purgatório. bra-se aqui sem dúvida de Agostinho e da sua hipótese de uma «conde-
Mas, como os receptáculos correspondem ao mérito e ao desmérito nação mais tolerável» para os «não inteiramente maus».
dos quais existe um número infinito de graus, pode também distinguir- Existem assim quatro moradas abertas no além: o Céu, o limbo das
-se um número infinito de receptáculos para o mérito ou para o desmérito. crianças, o Purgatório e o Inferno; e uma fechada, o limbo dos patriar-
Também não se pode excluir que as almas sejam punidas cá em baixo nos CIlS. Se bem que a existência de um lugar para a purgação depois da
locais onde pecaram. E assim como as almas em estado de graça mas morte não lhe ofereça qualquer dúvida em si, Tomás não se interessa
carregadas de pecados veniais têm uma morada especial, o Purgatório, pelo seu carácter intermédio mas pela sua existência temporária. Na
distinto do Paraíso, também as almas em estado de pecado mortal mas perspectiva de eternidade em que se coloca, só há três lugares verdadei-
que realizaram algumas obras boas pelas quais deveriam ser recompensa- ros no além: o P .iraiso celestial, o limbo das crianças e o Inferno. De
das, devem ter um receptáculo especial, distinto do Inferno. Enfim, assim lodos os sistemas escolásticos, o sistema tomista é o que tem a visão
como, antes da vinda do Cristo, os Pais esperavam a glória da alma, mais completa e mais rica dos problemas respeitantes aos lugares do

316 317
-.------------11
além, mas é também o mais «intelectual», o mais distante da mentalida- dos santos e as revelações feitas a muitos vivos, é provável que o lugar
de comum da sua época. tio Purgatório seja duplo. De acordo com «a lei comum», o lugar do
A questão LXX trata da condição da alma separada do corpo e da Purgatório é um lugar inferior (subterrâneo) contíguo ao Inferno e é o
pena que lhe é infligida pelo fogo corpóreo. Corresponde a uma parte mesmo fogo que queima os justos no Purgatório e os condenados, que
(questão XXXIII, artigo 3) do Scriptum sobre o destaque XLIV do livro estão, no entanto, num lugar situado por cima. Segundo «a distribuição»
IV das Máximas de Pedra Lombardo. Nela Tomás defende a concepção vê-seque alguns são punidos em diversos lugares cá em baixo «seja para
de um fogo corpóreo. edificação dos vivos, seja para alívio dos mortos, que dão a conhecer aos
O Suplemento apresenta aqui uma questão sobre a pena devida ao vivos a sua pena para que estes a suavizem com os sufrágios da Igreja.
pecado original sozinho, quer dizer o limbo das crianças, e uma questão Todavia, Tomás é hostil à ideia de que se faça o Purgatório no lugar onde
sobre o Purgatório que os editores da edição leonina'" colocam em apên- IIC pecou. E também aqui está visivelmente preocupado em restringir ao

dice. Têm sem dúvida razão, pois o projecto de Tomás não parece dever , .
mmnno a presença de espectros na terra 62 .
inscrever-se nessa altura dos desenvolvimentos que interrompem o movi- Enfim, Tomás recusa a opinião dos que pensam que, segundo a lei
mento da exposição dos fins últimos no plano de conjunto da Súmula. E comum, o Purgatório está situado por cima de nós (ou seja, no céu), pois
sublinham ao mesmo tempo que o Purgatório não era uma peça essencial IlS almas do Purgatório seriam intermediárias entre nós e Deus quanto ao

no sistema da Súmula. Mas vou tratá-lo agora porque o meu propósito, estatuto. Impossível, responde ele, visto que elas são punidas não pelo
esse, centra-se no Purgatório. que têm de superior, mas pelo que têm em si de inferior. Argument~
A questão sobre o Purgatório apresenta oito perguntas'", I) Existe um bem especioso, próximo do jogo de palavras, e que lembra as falsas eti-
Purgatório depois desta vida? 2) As almas são purgadas e os condenados mologias ao gosto do clero medieval. Seja como for, esta observação é
punidos no mesmo lugar? 3) A pena do Purgatório excede qualquer pena interessante porque mostra que Tomás participa na «infemização» do
temporal nesta vida? 4) Essa pena é voluntária? 5) As almas do Purgató- Purgatório no século XIII, mas que havia membros do clero que pensa-
rio são castigadas pelos demónios? 6) O pecado venial é expiado pela vam que o Purgatório não era subterrâneo mas quase celestial. São os
pena do Purgatório quanto à culpa? 7) O fogo purgatório liberta da im- precursores de Dante que fará a montanha do Purgatório erguer-se sobre
putação da pena? 8) Desta pena uns são libertados mais depressa do que u terra, em direcção ao céu.
outros? Quanto à dureza da pena do Purgatório (terceira pergunta), Tomás
A justiça de Deus, responde Tomás à primeira pergunta, exige que acha que tanto na pena da perda como na pena dos sentidos, «o grau
aquele que morreu depois de se ter arrependido dos seus pecados e de mínimo de uma e de outra ultrapassa a maior pena que se possa sofrer
ter recebido a absolvição mas não terminou a sua penitência seja punido cá em baixo». A dureza da pena do Purgatório não provém da quantida-
depois da morte. Portanto «aqueles que negam o Purgatório falam contra de de pecado punido, mas da situação daquele que é punido, porque?
a justiça divina: é um erro que afasta da fé». O apelo aqui feito à auto- pecado é punido mais duramente no Purgatório do que cá em baixo. E
ridade de Gregório da Capadócia surge como uma habilidade na polêmi- visível que Tomás não quer caucionar a ideia de que possa haver uma
ca com os gregos. E Tomás acrescenta que «visto que a Igreja ordena relação quantitativa entre o pecado cometido cá em baixo e as penas
"que se reze pelos defuntos para que eles sejam aliviados dos seus peca- sofridas no Purgatório. Ainda que insista na justiça de Deus nestes pro-
dos", o que não pode visar senão aqueles que estão no Purgatório, quem blemas, não fala de proporcionalidade. Não se compromete seja como for
nega o Purgatório resiste à autoridade da Igreja e é herege». Adere assim na via de uma contabilidade do além.
à opinião de Alberto, o Grande. Pensando, em resposta à quarta pergunta, que a pena do Purgatório é
À segunda pergunta Tomás responde com uma geografia do além um voluntária, não porque as almas a desejam mas porque sabem que é a
tanto diferente da topografia e dos argumentos apresentados na questão maneira de serem salvas, Tomás refuta a opinião dos que julgam que
XLIX que acabámos de ver. Esta diferença não parece ter incomodado os as almas do Purgatório estão de tal modo absorvidas nas suas penas
autores do Suplemento, mas é uma razão mais para rejeitar esta questão que não sabem que estas as purgam e supõem-se condenadas. As almas
em apêndice, como fizeram os editores da edição leonina. Devemos agora do Purgatório sabem que serão salvas.
examinar esta outra hipótese da localização do Purgatório. «A Escritura Como Alberto, o Grande, Tomás pensa que não são os demónios que
nada diz de preciso sobre a localização do Purgatório», nota Tomás, e atormentam as almas do Purgatório, mas que é possível que eles as acom-
não existe argumento racional decisivo'". Mas, segundo as declarações panhem até lá e se deleitem a vê-Ias sofrer. É a resposta à quinta pergun-

318 319
ta. Às sexta e sétima questões Tomás replica que o fogo purgatório purga (charitas) ... Os mortos vivem na memória dos vivos ... e assim os sufrá-
de facto pecados veniais, mas aqui parece considerar esse fogo um fogo gios dos vivos podem ser úteis aos mortos». Ao afirmar isto, Tomás re-
metafórico. Sobre este ponto parece partilhar as hesitações de Santo futa a opinião de Aristóteles segundo o qual (Ética, I, 11) «não há
Agostinho. comunicação possível entre os vivos e os mortos». Mas isto apenas serve
Enfim, se Tomás responde afirmativamente à questão de saber se no para as relações da vida civil, não da vida espiritual, baseada na caridade,
Purgatório alguns são libertados mais depressa do que outros (esboça no amor de Deus «para quem os espíritos dos mortos estão vivos». É a
então um comentário a I Corintios, 111,10-15) e se desta vez emprega a mais bela exposição que encontrei dos laços entre os vivos e os mortos a
palavra «proporção», é para evocar, na apreciação da dureza das penas propósito do Purgatório.
do Purgatório, a intensidade e a duração ao mesmo tempo. Quer decerto 3. Sim, mesmo os sufrágios dos pecadores são úteis aos mortos porque
evitar que se instaure uma aritmética grosseira do tempo do Purgatório. o valor dos sufrágios depende da condição do defunto e não do que está
Retomando o fio da sua exposição sobre os fins últimos, os autores do vivo. Actuam, aliás, à semelhança dos sacramentos que são eficazes por si
Suplemento põem Tomás, na questão LXXI, a tratar do problema dos próprios, independentemente daquele que actua.
sufrágios pelos mortos com a ajuda da segunda questão do destaque qua- 4. Na sua condição de satisfatório (expiatório da pena) o sufrágio
renta e cinco do Scriptum sobre o Livro IV das Máximas de Lombardo. É passa a ser propriedade do defunto que é o único a poder beneficiar de-
o tratamento mais aprofundado que conheço desta questão, antes do le; mas na sua condição de meritório da vida eterna, pela caridade de que
'I o XIX 63 . Tomas
secu ' responde a catorze perguntas: 1) Os sufrágios por provém, pode ser útil àquele que o recebe e àquele que o dá.
um morto podem aproveitar a outro? 2) Os mortos podem ser ajudados 5. Sim, segundo certos textos (designadamente 11 Macabeus, XII, 40)
pelas obras dos vivos? 3) Os sufrágios feitos por pecadores podem apro- os sufrágios podem ser úteis aos condenados, mas Tomás pensa que se
veitar aos mortos? 4) Os sufrágios feitos para os defuntos são úteis àque- deve entender a condenação no sentido mais lato, e que isso vale sobre-
les que os fazem? 5) Os sufrágios são úteis aos condenados? 6) São úteis tudo para a pena do Purgatório. De qualquer maneira, tem a ver com
aos que estão no Purgatório? 7) São úteis às crianças que estão no limbo? milagre e deve acontecer raramente (talvez fosse o caso do imperador
8) São úteis aos bem-aventurados? 9) A prece da Igreja, o sacrificio do Trajano). Tomás aproveita para refutar as opiniões de Corígenes de Prê-
altar e a esmola são úteis aos defuntos? 10) As indulgências concedidas vostin, dos discípulos de Gilbert de Ia Porrée e de Guillaume d' Auxerre. E
pela Igreja são-lhes úteis? 11) As cerimónias das exéquias são-lhes úteis? refuta de novo, desta vez muito explicitamente, toda a ideia de propor-
12) Os sufrágios são mais úteis àqueles a quem se destinam do que aos cionalidade, mesmo que apoiada por uma citação de Gregório, o Grande.
outros defuntos? 13) Os sufrágios feitos para muitos ao mesmo tempo são 6. Os sufrágios são úteis aos que estão no Purgatório e são-lhes mesmo
tão úteis a cada um como se lhe fossem unicamente destinados? 14) Os especialmente destinados, pois Agostinho disse que os sufrágios se diri-
sufrágios comuns são tão úteis aos que não têm outros como os sufrágios gem aos que não são nem inteiramente bons nem inteiramente maus. E a
especiais e os sufrágios comuns aos que beneficiam de uns e de outros? multiplicação dos sufrágios pode até anular a pena do Purgatório.
Eis o essencial das respostas de Aquino, sobretudo na perspectiva do 7. Estes sufrágios são inúteis às crianças mortas sem baptismo, que
Purgatório, pela ordem que julgo não dever alterar com receio de me não estão em estado de graça, pois não podem mudar o estado dos de-
afastar mais do pensamento de Tomás: funtos.
1. Os nossos actos podem ter dois efeitos: adquirir um estado, adquirir 8. São também inúteis aos bem-aventurados visto que o sufrágio é
um bem consecutivo a um estado, como uma recompensa acidental ou a uma ajuda que não convém, portanto, àquele a quem nada falta.
remissão de uma pena. A aquisição de um estado só pode conseguir-se 9. A condição da utilidade dos sufrágios é a união no amor (charitas)
por mérito próprio. Assim é quanto à vida eterna. Em compensação, por entre «os vivos e os mortos». Os três sufrágios mais eficazes são a esmola,
causa da «comunhão dos santos» (sanctorum communio), é possível ofe- como principal efeito da caridade, a oração, o melhor sufrágio segundo a
recer boas obras a outrem por uma espécie de doação: as preces conse- intenção, e a missa, pois a eucaristia é a fonte de caridade e é o único
guem-lhes a graça, cujo bom uso pode dar a vida eterna com a condição sacramento cuja eficácia é comunicável. As missas mais eficazes são as
de que a tenham merecido por si mesmos. Equilíbrio admirável entre o que incluem preces especiais pelos defuntos, mas a intensidade da devo-
mérito individual e a solidariedade, a caridade colectiva. ção de quem a celebra ou a manda celebrar é essencial. O jejum também é
2. «O laço de amor que une os membros da Igreja não vale só para os útil, mas menos, porque é mais exterior. O mesmo acontece com a obla-
vivos mas também para os defuntos que morreram em estado de amor ção de velas ou de óleo enaltecida por S. João Damasceno.

320 321
10. Sim, a indulgência é aplicável aos mortos pois «não há razão para Será necessário dizer que o seu pensamento continua sempre fundamen-
que a Igreja possa transferir os méritos comuns, fonte das indulgências, talmente religioso? Continua a preocupar-se mais com estados do que
para os,vivos e não para os mortos». Sobre este ponto a cautela de Tomás com coisas, com condições do que com lugares, com ser do que com ter.
falha. E demasiado «homem de Igreja». Falta completar ou matizar a exposição do Suplemento com a ajuda de
11. Tomás é ainda mais liberal do que Agostinho de quem se reclama, duas passagens das obras autênticas de S. Tomás que permitem também
no que respeita à utilidade das pompas fúnebres. Agostinho dizia que observar a evolução do seu pensamento sobre este ou aquele ponto, desde
«tudo o que se faz pelo corpo dos defuntos de nada lhes serve para a o Scriptum sobre as Máximas de Pedro Lombardo.
vida eterna, e não passa de um dever de humanídades'". Para Tomás o Na parte - a mais importante - da Súmula teológica escrita pelo pró-
cerimonial do enterro pode ser indirectamente útil aos mortos, dando prio Tomás, noto duas passagens em que se trata do Purgatório.
ocasião a boas obras a favor da Igreja e dos pobres, e incitando à oração No artigo VIII da questão LXXXIX da primeira parte da Súmula
pelo defunto. Melhor ainda, sepultar um defunto num santuário ou num Tomás trata das aparições de mortos, dos espectros. Faz notar que estas
lugar santo, com a condição de não ser por vã glória, pode valer ao morto aparições se devem incluir entre os milagres de Deus que permite que elas
a ajuda do santo junto do qual tenha sido enterrado. Nisto, Tomás é bem aconteçam quer por acção dos anjos bons, quer por acção dos demónios.
do seu tempo e da sua ordem. Dominicanos (e franciscanos) acolhem e Tomás assemelha estas aparições às que se produzem em sonhos e subli-
até atraem a sepultura dos laicos (principalmente dos poderosos e dos nha que nos dois casos elas podem suceder com o desconhecimento dos
ricos) para as suas igrejas e cemitérios, e os laicos procuram cada vez mortos, que são no entanto o seu conteúdo. De facto, Tomás não evoca
mais o favor de beneficiar da sepultura nas igrejas, até aí reservada ao aqui o Purgatório - ainda que fale dos sufrágios pelos mortos - e, curio-
clero e aos religiosos. Mas o mais interessante neste artigo é talvez o samente, não faz alusão ao caso particular em que os espectros estão bem
facto de S. Tomás, apoiando-se num versículo de S. Paulo (Efésios, V, conscientes da sua sorte e da sua condição de espectros, visto que vêm
29): «Ninguém odiou jamais a sua própria carne», declarar que «fazen- implorar os sufrágios dos vivos. Sente-se aqui de novo a inquietação de
do o corpo parte da natureza humana, é natural que o homem o ame». Tomás face a esses vagabundos do além a quem procura limitar tanto
Está-se longe do desprezo monástico tradicional pelo corpo, «essa abo- quanto possível o número e a independência. São inteiramente manipu-
minável vestimenta da alma»65. lados por Deus e não podem obter licença para sair do seu receptáculo ou
12. Apesar da comunhão dos santos, Tomás pensa que os sufrágios da sua prisão senão «por uma dispensa especial de Deus» (per specialem
são úteis principalmente àqueles a quem são destinados mais do que a Dei despensationem), A bem dizer, o mais interessante para a nossa pes-
outros, porque para ele conta sobretudo a intenção do vivo que faz o quisa é que Tomás reintegra aqui as suas teorias sobre a alma separada
sufrágio, visto que o morto não pode já merecer mais. Não se deixa con- (do corpo) numa reflexão sobre os lugares e as distâncias (distantia loca-
vencer pelo argumento segundo o qual os ricos podem ser mais bem aju- lis, artigo VII desta questão LXXXIX). A separação é um obstáculo ao
dados por este sistema individual no Purgatório do que os pobres. A conhecimento? Os demónios são favorecidos pela rapidez e a agilidade
expiação da pena, responde ele, não é quase nada em comparação com dos seus movimentos (celeritas motus, agilitas motus)? Distância espacial
a posse do reino dos céus, e aí os pobres são favorecidos. especialmente importante em relação à luz divina, mas também distância
13. «Aquele que reza não pode, com a mesma oração, satisfazer igual- temporal, pois as almas separadas poderão conhecer o futuro? Tomás, se
mente vários ou um só.» Tomás inclina-se aqui decididamente para o está reticente quanto a uma espacialização «vulgar» das situações no
indivíduo, se não para o individualismo. além, está também consciente da importância de uma reflexão abstracta
14. «Pode acreditar-se que,por efeito da misericórdia divina, o exce- sobre o lugar e o tempo ligados um ao outro mas segundo sistemas dife-
dente dos sufrágios especiais, superabundantes para aqueles a quem são rentes: porque a distância espacial e a distância temporal não dependem
destinados, é aplicado a outros defuntos que estão privados de tais sufrá- de uma mesma «razão» 66.
gios e que têm necessidade de ajuda». No artigo XI da questão VII do De Maio (Do Mal, 1266-1267) Tomás
Ao longo de todas estas questões, Tomás mostrou-se sensível aos pro- pergunta-se ainda se os pecados veniais são remidos depois da morte, no
blemas da dívida, da transferência de bens. O seu vocabulário serve-se Purgatório. A sua resposta é, bem entendido, afirmativa, mas o que lhe
naturalmente da terminologia jurídico-económica. Tomás recusa a con- interessa é demonstrar que entre pecado mortal e pecado venial não existe
tabilidade do além mas não afasta dele certas transacções que lembram uma diferença de gravidade mas uma diferença de natureza. Por outro
mais o meio dos pequenos nobres endividados do que o dos comerciantes. lado, volta ao problema da culpa (culpa) e da pena. No Scriptum sobre

322 323
o livro IV das Máximas, ele pensara, como Lombardo, que «na outra, À recusa dos «Passagins» a Súmula dá a solução seguinte que segue de
vida o pecado venial é remido, mesmo quanto à culpa, pelo fogo do pur- perto as ideias de Agostinho:
gatório, àquele que morre em estado de graça, porque essa pena, sendo de
certo modo voluntária, tem a virtude de expiar todas as faltas compatíveis Oramos pelos vivos, indiferentemente, mesmo que sejam maus, porque
com a graça santificante». Mas no De Maio «o pecado venial já não existe ignoramos se eles serão condenados ou eleitos. Mas oramos sobretudo pelos
no Purgatório quanto à culpa; logo que a alma justa se liberta dos laçoa nossos irmãos e pelos mortos; não pelos inteiramente bons porque eles não
do corpo, um acto de caridade perfeita apaga a sua culpa da qual apenas têm necessidade disso nem pelos inteiramente maus porque não lhes seria útil,
restará a pena a expiar, estando a alma num estado em que lhe é impos- mas pelos medianamente bons que estão no Purgatório, não para que se tor-
nem melhores mas para que fiquem livres mais cedo, e pelos medianamente
sível merecer uma diminuição ou o perdão dessa pena 67».
maus, não para que sejam salvos mas para que sejam menos castigados?",
Como sempre, o que interessa a Tomás é o pecado, a condição da
alma, e não as contingências de um lugar transitório a cujo respeito se A crónica de Raul (Ralph), abade do mosteiro cisterciense de Cogges-
contenta em definitivo com afirmar a existência, porque ele está na Fé o hall em Inglaterra entre 1207 e 1218, a propósito de uma aventura de
na autoridade da Igreja e é conforme às demonstrações racionais das juventude de Gervásio de Tilbury, evoca as ideias de hereges chamados
relações entre Deus e o homem. publicanos 71, espalhados por várias regiões de França e principalmente
em Reims onde se manifestam por um episódio de feitiçaria entre 1176
e 1180: «Pretendem eles que as crianças não devem ser baptizadas antes
de atingirem a idade da razão; acrescentam que não se deve orar pelos
A recusa do Purgatório mortos, nem pedir a intercessão dos santos. Condenam o matrimónio e
pregam a virgindade para mascararem a sua luxúria. Destestam o leite e
1. Os hereges todos os seus derivados, assim como todos os alimentos provenientes do
coito. Não acreditam no fogo purgatório depois da morte e pensam que a
Em oposição à aprovação escolástca do Purgatório, temos a recusa alma, logo ~ue se liberta, vai imediatamente para o repouso ou para a
dos hereges e dos gregos. condenação .»
A oposição dos hereges do Purgatório assenta tanto no plano teórico No século XIII todos os tratados sobre heresias e hereges incluem a
como no plano prático, como se verá adiante. Radica também numa negação do Purgatório entre os erros da maioria dessas seitas (muitas
velha e tenaz recusa das orações pelos mortos, dos sufrágios, a qual já vezes mal diferenciadas pelos autores «ortodoxos») e em especial dos
vimos como contribuiu no fim do século XII para levar os ortodoxos a valdenses. Num tratado para uso dos pregadores - de que falarei - que
formularem mais claramente a existência do Purgatório. Recusados pelos o dominicano Étienne de Bourbon redigirá nos anos que precederam a
hereges de Arras em 1025, os sufrágios foram-no novamente em 1143- sua morte ocorrida em 1261, diz ele dos valdenses da região de Valença
-1144 pelos de Colónia, contra quem o prelado Eberwin de Steinfeld pede cerca de 1235: «Declaram eles também que não existe punição purgatória
a ajuda a S. Bemardo: «Eles não admitem que existe um fogo purgatório senão nesta vida presente. Para os mortos, nem os bons oficios da Igreja
depois da morte, e ensinam que as almas vão imediatamente para o re- nem nada que possa fazer em seu favor tem qualquer efeíto'".» Anselmo
pouso ou para o castigo eternos no momento em que deixam a terra de Alexandria (na Itália do Norte), inquisidor dominicano, redigiu entre
segundo as palavras de Salomão: "se uma árvore cai rara o Sul ou para 1266 e 1270 um tratado onde se esforça por distinguir valdenses e cátaros
o Norte, a árvore fica onde caiu" (Eclesiastes, 11, 3)6 .» e, entre os valdenses, os da Lombardia e os de Lyon. No número das
Na época em que provavelmente, como se viu, Bemardo de Fontcau- crenças comuns aos dois grupos de valdenses ele inclui a negação do
de expressa contra os valdenses a nova estrutura do além, uma Súmula Purgatório: «Como os Transmontanos, os Lombardos não acreditam
contra os hereges que foi erradamente atribuída a Prévostin de Cremona no Purgatório, no juramento, no direito à justiça... E (para uns e ou-
mas que, segundo os editores, deve datar do fim do século XII, menciona tros) também não existe Purgatório. Nada se ganha com visitar os túmu-
a hostilidade de hereges chamados «Passagins» às orações pelos mortos, e
~~~~~:Ss:lt~:'r:~~~~~4~»cruz, construir igrejas, orar, dizer missas ou dar
nessa altura fala do Purgatório. Como nesse texto o Purgatório existe mas
os defuntos estão ainda divididos em quatro e não em três categorias, os A mesma censura no famoso Manual do Inquisidor do dominicano
últimos anos do século XII parecem uma data pertinentef". 8emardo Gui, fruto de uma longa experiência relatada quase no fim

324 325
da vida, no começo do século XIV: «Os Valdenses também negam qUI tina e grega que levaram a Igreja a exprimir as suas primeiras formulações
haja um Purgatório para as almas depois desta vida e, por consequên- dogmáticas do Purgatório no século XIII. O Purgatório nasceu nas aspi-
cia, afirmam que as preces, as esmolas, as missas e outros piedosos sufrá- rações e nasceu também nas lutas.
gios em favor dos mortos não servem para nada.» E ainda: «Dizem Depois da ruptura de 1054, resultado do lento aprofundar da separa-
também e ensinam aos seus adeptos que a verdadeira penitência e o Pur- ção entre cristianismo latino e cristianismo grego iniciada no século IV78
gatório para os pecados só podem ter lugar nesta vida, não na outra ..• se tanto, não faltaram as discussões e as negociações para a reunião das
Do mesmo modo, segundo eles, as almas, quando deixam o corpo, vão duas Igrejas. A questão do além não teve nisso qualquer interferência. A
imediatamente ou para o Paraíso, se devem ser salvas, ou para o Inferno, Igreja grega, que estivera, aliás, na origem da elaboração doutrinária que
se devem ser condenadas, e que não há outro lugar (morada) para at iria conduzir ao Purgatório, não desenvolvera esses germes. Contentara-
almas depois desta vida senão o Céu e o Inferno. Dizem também que -se com uma vaga crença na possibilidade de resgate depois da morte e
as orações pelos mortos não os ajudam nada, uma vez que os que estão com a prática, pouco diferente da latina, de preces e de sufrágios pelos
no Paraíso não precisam delas e para os que estão no Inferno não h' mortos. Mas enquanto a crença latina se expandia no nascimento de um
repouso ".» terceiro lugar do além e na remodelação profunda da geografia do outro
Quanto aos Cátaros, a sua atitude face ao Purgatório parece ter sido mundo, o problema do Purgatório saltou para o primeiro plano das dis-
mais complexa. Voltarei a isto. Os documentos respeitantes às crençaa cussões e das dissenções. Foi essencialmente à volta do problema do fogo
concretas, designadamente em Montaillou, mostram-nos uma posição do Purgatório que se desenrolou a primeira fase do debate.
bastante confusa e cheia de cambiantes. Os textos teóricos aqui examí- Continuando no século XIII, é preciso primeiro recordar que, durante
nados insistem, de um modo geral, numa atitude negativa em relação ao a primeira metade do século, as negociações depararam sobretudo com
Purgatório. Em 1250, na sua Súmula sobre os Cátaros e os Pobres di um obstáculo político, além das dificuldades propriamente religiosas. O
Lyon (Summa de Catharis et Pauperibus de Lunduno ), Rainerius Saeco- papado apoia o império latino estabelecido em Constantinopla pela quar-
ni, um herege convertido por Pedro de Verona e que veio a ser domí- ta cruzada em 1204, enquanto os gregos apenas reconhecem o imperador
nicano e inquisidor como este, tendo escapado a um atentado qUI bizantino sediado em Niceia.
custou a vida a Pedro (logo transformado pela Igreja em S. Pedro Már- No meio destas diligências eis que irrompe o Purgatório. Como diz
tir) escreve: «O segundo erro deles é que, segundo eles, Deus não inflige com graça e com razão o padre Daniel Stiernon: «O fogo! Pois, está
qualquer castigo purgatório, pois negam totalmente o Purgatório, nem bem, há também o fogo do Purgatório que um ano depois inflamará os
qual~uer punição temporária, pois esta é infligida pelo diabo nesta espíritos. Da Apúlia onde brotara a chamazinha em Novembro de 1235,
vida" .» o incêndio atingirá o trono patriarcal, se é verdade que Germano lI,
Dos Cátaros, ainda Italianos, baptizados de Albanos ou Albaneses interpelado no novo debate, redigiu um libelo sobre este tema, causa
(muitas vezes com a corruptela Albigenses), uma pequena súmula anóni- bem candente que deixará vestígios duradouros 79 .•. »
ma, feita provavelmente por um franciscano entre 1250 e 1260, diz que De facto, o primeiro vestígio importante do debate greco-Iatino sobre
não só eles não acreditam no Purgatório como também não acreditam no o Purgatório data de pouco antes. Trata-se do relato de uma controvérsia
Inferno porque este não foi criado pelo Deus que, segundo o Génesis, que no fim de 1231, no mosteiro grego de Casola perto de Otrante, opôs
criou o mundo, ou seja, Lúcifer. Nesta .perspectiva, «eles dizem que . Georges Bardanês, metropolita de Corfu, e um enviado do Papa, o fran-
não há fogo purgatório nem Purgatório» 7 • ciscano Bartolomeu. O relato, talvez incompleto, é do prelado grego.
Georges Bardanês declara que os Irmãos Menores «preconizam a falsa
doutrina de que existe um fogo purificador (xop KCXeCXp'tTjplOV) para on-
2. Os gregos de são levados aqueles que morrem depois de se terem confessado mas
que não tiveram tempo de fazer penitência pelos seus pecados, e são pu-
Se, ao nível da pastoral e da polémica, a luta da Igreja contra 01 rificados antes do Julgamento Final, obtendo a satisfação da pena»80. A
hereges que negavam o resgate depois da morte a levou, como se viu, a autoridade avançada pelos franciscanos é a de «S. Gregório o Diálogo»,
adoptar e a definir a crença num lugar de purgação das penas após a quer dizer, Gregório, o Grande, assim baptizado pelos gregos para o
morte, o Purgatório, no fun do século XII foram os debates de ordem distinguir de muitos outros gregórios.
teológica, as negociações entre membros das hierarquias eclesiásticas la- Eis como se terá desenrolado a discussão:

326 327
A questão posta pelo latino, que se chamava Bartolomeu, era mais ou turas, a fim de que, tomado de respeito perante a autoridade dos maiores
menos esta: mestres, ele abandonasse as suas objecções.
«Quero saber de vocês, gregos, para onde vão as almas daqueles que mor-
reram sem fazer penitência e que não tiveram tempo para cumprir os castigos As autoridades das Escrituras não abalaram o franciscano e cada um
... )81
( «epitímias» que os seus confessores Ihes haviam imposto.» ficou na sua.
A nossa resposta, a dos gregos:
«As almas dos pecadores não vão daqui para o Inferno eterno, porque
a~u7le ~ue d~ve julgar todo o universo ainda não veio com a sua glória para
distinguir os Justos dos pecadores; vão, sim, para lugares sombrios que dão o A primeira defmição pontificaI do Purgatório (1254)
antegozo dos suplícios que esses pecadores devem suportar. Pois, assim como
para os justos foram preparados em casa do Pai vários lugares e diversos Nos últimos anos do pontificado de Inocêncio IV, o clima dos debates
repousos, segundo a palavra do Salvador82, assim existem também diversas entre gregos e latinos modificou-se e pensou-se que se encaminhavam
punições para os pecadores.»
para um acordo quando o Papa morreu em 1254. Algumas semanas an-
O latino: tes da sua morte, em 6 de Março de 1254, o pontífice enviara ao seu
«Nós não temos essa crença, antes acreditamos que existe de um modo núncio junto dos gregos em Chipre, o cardeal Eudes de Châteauroux,
especial um fogo «purgatório», quer dizer83 fogo que purifica, e que por esse uma carta oficial (sub catholicae) que constitui uma das mais importan-
fogo, aqueles que passam deste mundo sem se arrependerem, como os ladrões,
tes datas da história do Purgatório. O Papa, pensando que existiam pon-
os adúlteros, os assassinos e todos aqueles que cometem pecados veniais, so-
tos comuns suficientes entre os gregos e os latinos, e deixando na sombra
frem durante um certo tempo e purificam-se das máculas dos seus pecados, e a
seguir ficam libertos da punição.» a questão bicuda do momento da passagem pelo fogo purgatório antes ou
«Mas, meu excelente amigo, digo eu, aquele que acredita em tais coisas e depois da ressurreição dos mortos, pede (de uma maneira bastante auto-
as ensina parece-me um perfeito partidário de Origenes. Com efeito, Origenes ritária, para dizer a verdade) que os gregos subscreveram uma definição
e os que o seguem preconizaram a doutrina do fim do Inferno, e até os de- do Purgatório:
mónios, passados muitos anos, obteriam o seu perdão e ficariam libertos da
punição eterna. Depois, tu só tens que apelar à tua sabedoria ao referires-te às Uma vez que a Verdade afirma no Evangelho que, se alguém blasfema
palavras do Evangelho ditas por Deus, visto que o Senhor clama que estes, 08 contra o Espírito Santo, esse pecado nunca lhe será remido nem neste século
justos, irão para a ressurreição da vida, enquanto os pecadores (irão) para a nem no outro: pelo que nos é dado a entender que algumas culpas são per-
ressu~eição do julgamento'". E ainda: "Ide para longe de mim, para o fogo doadas no tempo presente e outras na outra vida; visto também que o após-
extenor e eterno, preparar-vos para o diabo e seus anjos!8511E noutra passa- tolo declara que a obra de cada um, seja ela qual for, será posta à prova pelo
gem: "Onde houver lágrimas e ranger de dentes86", e onde estão os vermes que fogo e que, se ela arder, o obreiro sofrerá a sua perda mas ele próprio será
não acabam e o fogo que não se extingue'".» salvo; visto que os próprios gregos, segundo se diz, acreditam e professam
Uma vez que o Senhor faz tantas e tais ameaças contra os que partem verdadeiramente e sem hesitação que as almas dos que morrem depois de
desta vida não purificados (pela penitência) das más acções e dos crimes terem recebido a penitência mas sem terem tido tempo para a cumprir, ou
quem ousará concordar que existe um fogo purificador e um pretenso fi~ que morrem sem pecado mortal mas culpados de (pecados) veniais ou de
da punição antes da decisão do julgamento do Juiz? Mas se fosse possível, culpas mínimas, são purgados depois da morte e podem ser ajudados pelos
de alguma maneira arrancar antes (do Julgamento Final) aos suplícios aque- sufrágios da Igreja, nós, considerando que os gregos afirmam não encontrar
!es qu~ partem .daqui de baixo, culpados seja de que pecados for, o que teria entre os seus doutores um nome adequado e certo para designar o lugar dessa
Impedido o muito fiel e amado de Deus, Abraão, de tirar do fogo inextinguível purgação, e que, por outro lado, segundo as tradições e a autoridade dos
o rico sem misercórdia, quando este implorava, com palavras capazes de co- santos Padres, esse nome é o Purgatório, desejamos que no futuro essa expres-
mover profundamente, uma simples gota de água que caísse da ponta do são seja igualmente aceite por eles. Pois, nesse fogo purgatório, os pecados
dedo, para se refrescar? Mas ele ouviu: «Tu, meu filho, tu fruístes os teus (não, decerto, os crimes e faltas capitais que antes não seriam remidos pela
bens durante a vida, enquanto Lázaro só recebeu males. Agora rezamos a penitência) ligeiros e mínimos são purgados; se eles não forem remidos no
ele e tu sofress'", E ensinava que há um abismo profundo e intransponível decurso da existência, pesam na alma depois da morte'".
entre ele e Lázaro, o pobre. Mas como o irmão menor escutava tudo isto
sem se deixar convencer, e tapava os ouvidos, mostrámos-Ihe os textos dos Esta carta é o registo do nascimento doutrinário do Purgatório como
Pais, que trazem Deus (= inspirados por Deus) respeitantes às Santas Escri- lugar.

328 329
----------------

o segundo concílio de Lyon e o Purgatório (1274) Ambiguamente discutida e sem ir até ao fundo dos problemas, com o
imperador a forçar a mão à hierarquia grega, a união f<;>iprocla~ada em
Em 1274 o segundo concílio de Lyon deu um novo passo. 16 de Janeiro de 1275 depois de ter sido deposto o patnarca Jose I, que a
Convém talvez evocar antes um dos numerosos episódios que marea- desaprovara. Iria ser "etra morta, ~as pe~tiu que o Pur~atório se. ins-
ram as negociações recheadas de polémicas entre gregos e latinos durante talasse melhor na Igreja latina. A formula fOI um comprormsso enunciado
o terceiro quarto do século XIII. pelo Papa Clemente IV numa carta enviada em 4 de Març~ ~e 1267 a~
Em 1263 Tomás de Aquino foi chamado a dar a sua opinião como imperador Miguel VIII. Foi retomada numa carta de Gregono X a MI-
perito na polémica com os gregos. Nicolau de Durazzo, bispo de Croto- guel Paleólogo de 24 de Outubro de 1272 e na profissão de fé que o
na, «sábio em latim e em grego» escrevera um Libelo sobre a procissão do imperador mandou em resposta, em Março ,~e 1274. Tomou-se u~ ~ne-
Espírito Santo e da Trindade contra os erros dos Gregos (Libellus de pro- xo da constituição Cum sacrosancta do concilio, promulgada com ligeiras
cessione spiritus sancti et de fide trinitatis contra errores Graecorum) do alterações de redacção em 1 de Novembro de 1274.
qual em 1262 foi enviada uma cópia latina ao Papa Urbano IV que soli- Eis o conteúdo:
citou a opinião de Tomás de Aquino. O Libelo, que interessava sobretudo
ao fiJioque, pretendia demonstrar que os gregos do século XIII nem sequer Mas, por causa de diversos erros que alguns introduziram por ignorância e
eram fiéis aos Pais da Igreja grega que teriam professado as mesmas dou- outros por malícia, ela (a Igreja romana) diz e procl~a que aqueles que ca?D
trinas que os latinos. O Libelo era de facto uma trapalhada 90 de falsifica- em pecado depois do baptismo não devem ser rebaptizados, mas que, por ~a
ções e de falsas atribuições. O papado sonhava no entanto fazer dele o verdadeira penitência, obtêm o perdão dos seus pecados. Que se, ver~adelr~-
documento de base para as negociações com os gregos. Tomás de Aquino mente arrependidos, eles morrerem em caridade antes de terem, por ínterme-
experimentou, parece, «uma sensação de mal-estar» com a leitura do dio dos dignos frutos de penitência, satisfeito pelo que cometeram ou
Libelo. Não pôs em causa a autenticidade dos textos citados pelo omitiram, as suas almas, conforme nos explicou o irmão João, são purgadas
Libelo mas contestou a validade de uma parte deles, e preferiu frequen- depois da morte por penas purgatórios ou purificadoras, e, para abrand~mento
temente recorrer a outras autoridades. A influência do Libelo não fez dessas penas, servem-Ihes os sufrágios dos vivos fiéis, ou seja, o~.sa~rifiCJosdas
porém diminuir o alcande do Contra errores Graecorum (Contra os Erros missas, as preces, as esmolas e outras obras piedosas que os fiéis ~em o costu-
me de oferecer pelos outros fiéis segundo as instituições da Igreja. As almas
dos Gregos) elaborado por Tomás no Verão de 1263 em Orvieto e que
daqueles que, depois de terem recebido o baptismo, n~o contraíram qualquer
veio a ser, para os latinos, um arsenal de argumentos contra os gregos".
outra mácula de pecado, e também aquelas que, depois de terem con~raIdo a
O essencial, trinta e dois capítulos, diz respeito à procissão do Espírito mácula do pecado, dela foram purificadas, ou enquanto estavam amd.a no
Santo na Trindade, e sete curtos capítulos são dedicados, cinco deles à corpo ou depois de terem contraído a mácula do pecado, foram dele purifica-
primazia do papado romano e os dois restantes à consagração do pão das ou enquanto estavam no corpo ou depois de se terem despojado do corpo,
93
ázimo para a Eucaristia e ao Purgatório. Neste último caso, Tomás de- como se disse atrás, são imediatamente recebidas no céU .
fende a existência do Purgatório da maneira que será retomada no
Suplemento da Súmula Teológica que já vimos.
Entretanto a situação política criada a seguir à tomada de Constanti- O texto está atrasado em relação à carta de Inocêncio IV, vinte an~s
nopla pelos Gregos e ao restabelecimento do Império bizantino na sua antes. Trata de «poenis purgatoriis seu catharteriis», a pal.avra grega lati-
integridade aparente conduziu a uma tentativa de reconciliação entre la- nizada correspondente à palavra latina que os gregos haviam helenizado.
tinos e gregos que teve como resultado o segundo concílio de Lyon em Mas a palavra purgatorium, o purgatório, não aparece. ~ão ~ .trata nem
127492. de lugar nem de fogo. Este atraso será devido apenas a hos~llldad~ dos
A união entre latinos e gregos era desejada por razões políticas pelo gregos, ou virá também das reticências de alguns meios teológicos OCIden-
Papa Gregório X, que via nela uma das condições prévias necessárias ao tais? Não é possivel..., tanto mais que alguns documentos fazem supor
êxito da cruzada que pretendia organizar, e pelo imperador Miguel VIII que, pelo menos na chancelaria imperial bizantina, estavam pr?nto~ a
Paleólogo que queria não só evitar um eventual ataque de CarIos de An- aceitar a palavra purgatório. Com efeito, lê-se nas profissões de fe envia-
jou mas também retomar, como bem demonstrou Gilberto Dagron, uma das por Miguel VIII em 1277 aos Papas João XXI e.Nicolau 1.11,as pena~.
importante política tradicional de «ligação orgânica entre o Ocidente e o do purgatório ou do purificador, tanto na versão latina (poenis purga tom
Oriente». seu catharterii) como na versão grega (1tOlVCI1S1toupytX'toptOU nroi

330 331
o mesmo na profissão de fé de Andronico 11 alguns anos
K<xO<XP'tT)ptoU). o LATINO: E o Purgatório, que dizeis dele? .
mais tarde. Pode também supor-se que o segundo concílio de Lyon pro- OS GREGOS: O que é o Purgatório e qual fOI a ESCritura que vo-lo
mulgara uma fórmula perdida que retomava os termos da carta de 1254 ensinou? • .
de Inocêncio IV e não da de Clemente IV, de 126794• O LATINO: A de Paulo, quando diz que (os homens) ~o postos a prova
pelo fogo: «Se a obra de alguém for. consumida, ele sofrera a sua perda, mas
ele próprio será salvo, e desta maneira como pelo fogo.»
OS GREGOS: Na verdade, o castigo não te~ fim. . .
o Purgatório e as mentalidades: Oriente e Ocidente O LATINO: Eis o que nós dizemos: se alguem, depois de ter ~do, fOI
confessar-se e recebeu uma penitência e morreu antes d~ ter cumpndo ~sa
o importante não é isto. penitência, os anjos levarão a sua alma para ~ fogo punficador, quer dizer,
para aquele rio de fogo, até que ele tenha terminado o.tempo que fal~ do que
É antes, como bem viu A. Michel, o facto de, «no ponto de vista
lhe fora fixado pelo (pai) espiritual, esse t~po <!-uenao pude~a terminar por
dogmático, o texto imposto aos gregos representar seguramente a doutri-
causa da rapidez imprevisível da morte. E depois de ter t~rmtnado o t~~
na católica. É o equivalente de uma definição ex cathedra9s». É a primeira que falta, dizemos nós, que ele vai para a vida eterna punficado. Aereditais
proclamação da crença no processo purgatório, se é que não no Purgató- nisto também? É assim ou não? . ,
rio, como dogma.
OS GREGOS: Escuta: não só não admitimos ISSOcomo também o an~-
O segundo facto interessante é que, a nível dogmático, o Purgatório tematizamos, como os pais em concilio. Segundo a palavra do Senhor, «vos
nunca mais será definido pela Igreja como um lugar preciso ou como um enganai-vos, sem conhecerdes as Escrituras nem o poder de DeUS».
fogo, nas duas assembleias que instaurarão definitivamente o dogma do
Purgatório no cristianismo romano: o concílio de Ferrara-Florença em Com efeito, para os gregos e perante as E~critura~ que ~ão falam do
1438-1439, de novo face aos gregos'", e o concílio de Trento em 1563, Purgatório os latinos não são capazes de citar senao visoes de almas
desta vez contra os protestantes. pretensam~nte salvas dos tormentos do além. «Mas,. acresce~tam, :sses
A minha convicção continua a ser que, apesar das reticências dos factos nos sonhos e no ar que se contam, estão cheios de dl~agaçoes e
A

teólogos e da prudência da instituição eclesiástica, o êxito do Purgatório não oferecem portanto qualquer certeza.» Por c~~sequencla, «faz o
é devido à sua espacialização e ao imaginário cujo desenvolvimento pleno bem durante a vida porque depois da morte tudo e merte e, por ~au~a
permitiu. disso, a prece por aqueles que não fizeram o bem durante a sua propna
Mas antes de vermos o êxito «popular», o êxito maciço do Purgatório, vida não é escutada».
do lugar purgatório, no século XIII, desejaria salientar, num documento Mas Tomás de Lentini relança a discussão:
ligado ao debate entre gregos e latinos, uma confissão que explica as
atitudes profundas dos cristãos do Ocidente quando do nascimento e O LATINO: Em que lugar repousam agora as almas dos justos e onde as
da vulgarização do Purgatório. Depois do segundo concílio de Lyon dos pecadores? , •
(1274), Miguel VIII Paleólogo esforçou-se por fazer respeitar a união OS GREGOS: Segundo a palavra do Senhor, os justos como Lazaro estão
pelo clero bizantino. Os mosteiros do Athos eram um dos principais cen- no seio de Abraão, e os pecadores como o rico sem.pie,?ade.no fogo da geen~.
tros de resistência. Em Maio de 1276 a polícia imperial, no decurso de O LATINO: Muitos simples fiéis da nossa Igr~Ja tem. dificuldade em acei-
tar isso. A restauração (apocatástase) dizem el~s, ainda nao chegou e, por essa
uma «surtida ao Athos», expulsou e dispersou os monges e fez prisionei-
razão, as almas não experimentam nem castigo nem repouso. Portanto, se
ros dois deles, Niceforo e Clemente, que o imperador, por deferência para assim é .
com os latinos, mandou conduzir num barco veneziano a São João de
Acre, onde foram entregues ao núncio pontifica!. Este não é qualquer
um. É um dominicano, Tomás de Lentini, que quarenta anos antes rece-
bera Tomás de Aquino na ordem. Aqui, no momento de completar uma informação para ~ós e~sencia.l,
o manuscrito apresenta uma lacuna. Na minha interpretaçao exíste pOIS
O núncio, que é também bispo de Acre e patriarca de Jerusalém, teve
uma parte hipotética. ..
uma discussão franca com os dois monges gregos e finalmente limitou-se
Noto antes de mais o recurso, paradoxal neste latmo, a~ conceito. de
a fixar-Ihes residência em Chipre'", No debate surgiu a questão do Pur-
apocatástase de Origenes, mas o importante parece-me ser ~ao a doutI?-n~
gatório, pois é bem do purgatório (rô 1tUpJ(<XtÓpwv)que se trata.
mas as disposições mentais dos latinos a que alude Tomas de Lentini.

332
333
Muitos simples fiéis já não se contentam com a oposição geena/seio di NOTAS
Abraão, Inferno/Paraíso depois da morte individual. A necessidade do
Purgatório, de uma última peripécia entre a morte e a ressurreição, di
um prolongamento do processo de penitência e de salvação para lá desta
falsa fronteira da morte tomou-se uma exigência das massas. Vox popu-
li... Pelo menos no Ocidente.

I Entre os títulos de quodlibeta mencionados por P. GLORIEUX, IA littérature

ftIIldlibétique de 1260 à 1320, 1925, só aparece um quodlibet sobre o Purgatório. É de


"omás de Aquino e data do Natal de 1269: «Se se pode ser mais ou menos depressa
IIhcrtadode uma mesma pena no Purgatório» (utrum aequali poena puniendi in purga-
'ur/u, unus citius possit liberari quam alius, quod. 11, 14, p. 278).
2 A 219" e última proposição condenada em 1277 diz respeito ao fogo do além
.m grande precisão: «Que a alma separada (do corpo) não pode de maneira alguma
Illfrer com o fogo» (quod anima separata nullo modo patitur in igne). Trata-se, aliás,
dI! ensino na Faculdade das Artes e não de Teologia. Cf. R. HISSETTE, Enquête
,.., /(!S 219 articles condamnés à Paris le 7 mars 1277, Lovaina-Paris 1977, pp. 311-

·312 .
.1 A bibliografia da escolástica do século XIII é enorme. As sínteses estão mais

Incluídasna filosofia do que na teologia. Para uma vista de conjunto recorre-se aos
lI"ISicos, E. GILSON, La Philosophie au Moyen Âge,3' ed., Paris, 1947, M. DE
WlJLF, Histoire de Ia philosophie médiévale, 6" ed., t. Il, Lovaina, 1936. F. VAN
NTEENBERGHEN, IA Philosophie au XIII' siécle, Lovaina-Paris, 1966. Os grandes
lIColásticosdo século XIII distinguiram bem entre filosofia e teologia. A fronteira nem
IGmpreé fácil de definir e depende da definição que se der destas duas ciências. No
eonjunto - e isto é válido para as melhores - parece-me que estas sínteses não distin-
,uem suficientemente as duas disciplinas. Um esboço rápido mas sugestivo da filosofia
medievalna sociedade foi dada por F. ALESSIO, «li pensiero dell'Occidente feudale»
In Filosfie e Societâ, t. I, Bolonha, 1975. Em C. TRESMONTANT, IA Métaphysique
• christianisme et Ia crise du treiziême siécte, Paris, 1964, encontra-se uma interpreta-
ylo original.
"GUILLEULMUS ALTISSIODORENSIS, Summa aurea, ed. Pigouchet, Paris,
1500, reedição anastática, Francfort-sur-le-Main, Minerva, 1964, livro IV, foI.
('CCIVv e CCCVv.
5 É ainda nesta rubrica que o encontramos no ficheiro metódico da excelente

bibliotecada Universidade Gregoriana em Roma.


6 Sobre Guillaume d'Auvergne ver o livro já ultrapassado de Noêl VALOIS, Guil-
laume d'Auvergne, sa vie et ses ouvrages, Paris, 1880; o.estudo de J. KRAMP, «Des
Wilhelm von Auvergne Magisterium Divinale» in Gregorianum, 1920, pp. 538-584 e
11,121, pp. 42-78, 174-187; e sobretudo A. MASNOVO, Da Guglielmo d'Auvergne a
San Tommaso d'Aquino, 2 vols., Milão, 1930-1934.

334 335
7 Alan E. Bemstein apresentou em Fevereiro de 1979 perante a Medieval Assoe 21 Sobre todos estes problemas ver A. MICHEL, artigo «Purgatoire» in Diction-
tion of the Pacific uma exposição sobre William of Auvergne on punishment after deatlt, naire de théologie catholique, col. 1239-1240.
cujo texto teve a amabilidade de me comunicar. Concordo geralmente com a sua 22 «Utrum in poena purgatorii sit minor certitudo de gloria quam in via... cuja con-

interpretação. Penso que exagerou por um lado e a propósito de Amo Borst, a influêne clusão é «in purgatorio est maior certitudo de gloria quam in via, minor quam in patria»
cia da luta contra os Cátaros sobre as suas ideias a respeito do Purgatório, e por outl'O (Opera, t. IV, fol. 522-524).
lado as contradições que existiriam na sua doutrina do fogo purgatório. Alan E. Bem •• 23 Patria vem de S. Paulo: Hebreus, XI, 14: «Aqueles que assim falam mostram

tein empreendeu uma investigação sobre «Hell, Purgatory and Community in XllIth. claramente que estão à procura de uma pátria.»
century France». 24 Segunda questão do artigo 11 da primeira parte do destaque XXI.

8 «De loco vero purgationis animarum, quem purgatorium vocant, an sit proprius, " 25 lbid., fol, 939-942.

deputatus purgationi animarum humanarum, seorsum a paradiso terrestri, et inferno, 26 Segunda parte do destaque XX.

atque habttaüone nostra, quaestionem habeu (De universo, capo LX). GUILlELMUS 27 Artigo 11 da primeira parte do destaque XXI.

PARISIENSIS, Opera Omnia, Paris, 1674, I, 676. Quanto ao lugar do Purgatório es~ 28 Boaventura pronunciou no concílio de Lyon em 1274, alguns dias antes de
nos capítulos LX-LXI-LXII (pp. 676-679) desta edição. Quanto ao fogo do Purgatório morrer, o discurso solene da sessão de oflcialização da união entre os gregos e os
nos capítulos LXlII"LXIV-LXV (pp. 680-682). latinos.
9 Pontos estes que, quanto a mim, não são secundários. 29 Artigo Hl desta mesma questão.
10 A. PIOLANTI, <di dogma dei Purgatório» in Euntes Docete, 6, 1953, p. 301. 30 Artigo 11 do destaque XLIV.

11 Sobre a vida e as obras de Alexandre de Hales, ver Prolegomena (pp. 7-75), do 31 Capo 11 da sétima parte.

volume I da edição da sua glosa: Magistri Alexandri de Bales Glossa in quatuor librOl 32 Capo III da mesma parte.

sententiarum Petri Lombardi, Quaracchi, 1951. 33 BOA VENTURA, Opera, t. V, fol. 282-283. Os irmãos de Quaracchi fizeram
12 De sera poenitentia, de poena purgatorii et de relaxationibus (Glossa in quatuot' depois uma edição mais manejável do Breviloquium, como para o Comentário às Má-
libros sententiarum Petri Lombardi, vol. IV, Quaracchi, 1957, pp. 349-365). ximas.
13 De remissione et punitione venialium, de aedificantis aurum.foenum, stipulam, di 34 Opera, t. IX, pp. 606-607.

septem modis remissionls peceati (Ibid., pp. 363-375). 35 A primeira epístola de Paulo aos Coríntios, 111, 10-15, mas também das
14 G. Le BRAS, Institutions ecclésiastíques de Ia chrétienté médiévale, I, Paris, 1959, autoridades sobre o Antigo Testamento (Job, lI, 18, Provérbios XIII 12) e de S. Paulo
p.l46 (11 Timóteo, IV, 7-8: Hebreus, IX, 15) cuja relação com o Purgatório parece
15.«Respondemus: sicut dolor communis Ecclesiae universalis, plangentis peccata distante.
fidelium mortuorum et orantis pro ipsis cum genitu, est adiutorius in satisfacttone: nOIl 36 Ibid., p. 608.
quod per se plene satisfaciat, sed (quod) cum poena poenitentis iuvet ad satisfationem, 37 Sobre a importância da oração na teologia de 8oaventura, o que ainda enraíza
sicut ex ratione suffraggii potest haberi. Suffragium enim est meritum Ecclesiae, poeTIM mais o Purgatório no seu pensamento, ver Zelina ZAFARANA, «Pietâ e devozione in
alicuius diminutivum» (Glossa, vol. IV, p. 354). Sun Bonaventura» in S. Bonaventura Francescano (Convénio do Centro de Estudos
16 ALEXANDRE DE HALES, Quaestiones disputatae «antequam esset frater», Nobre a espiritualidade medieval, XIV, Todi, 1914, pp. 129-157).
Biblioteca franciscana scholastica medii aevi, 3 vol., 1. 19-20-21. Quaracchi, 1960, 38 Sobre Alberto, o Grande, ver O. LOTTIN, «Ouvrages théologiques de saint
Passagem citada da questão XLVIII vem nas páginas 855-856. Albert le Grand» in Psychologie et mora/e aux Xll" et XII!' siêcles, voI. VI, Gem-
17 Ibid., p. 1069. bloux, 1960, pp. 237-297 e Albertus Magnus Doctor Universalis 1280/1980, ed.
18 Ibid., p. 1548. G. Meyer e A. Zimmermann, Mayence, 1980.
19 Tendo morrido em 1274, só será canonizado em 1482, e proclamado doutor da 39 De Resurrectione, ed. W. Kübel in Alberti Magni Opera Omnia, t. XXVI, Mu-
Igreja apenas em 1588. Sobre Boaventura pode consultar-se l.-C. BOUGEROL, I". niquefW, 1958. A questão 6 De purgatorio encontra-se nas páginas 315-318 e a questão
troduction à l'étude de saim Boaventura, Paris, 1961, e o conjunto de cinco volumes 9 De locis poenarum simul, pp. 320-321.
S. Boaventura, 1274-1974 publicados em Grottaferrata em 1973-1974. 40 Pode notar-se que Alberto, que neste texto emprega habitualmente o substantivo
Existe um estudo útil sobre S. Boaventura e o Purgatório, em latim, Th. V. GERS- purgatorium, usa aqui o epíteto purgatorius (ignis subentendido). Sobre este uso ver
TER A ZEIL, Purgatorium iuxta doctrinam seraphici doctoris S. Bonaventurae, Turim, adiante a propósito do Comentário às Máximas.
1932. 41 Alberto refuta uma última objecção: «Podendo haver muitas diferenças entre os

20 O Comentário às Máximas de Pedro Lombardo de 80aventura foi editado nos méritos para os que vão ser salvos, condenados ou purgados, deve haver também mais
4 primeiros volumes da edição monumental dos franciscanos de Quaracchi a partir de de cinco receptáculos». Resposta: «Devem separar-se as diferenças gerais das diferen-
1882. O comentário do livro IV encontra-se no tomo IV do destaque 20 nos foI. 517- ••as particulares. Haverá "casas" no interior dos "receptáculos".» Requinte da divisão
-538, nos artigos 2 e 3 da primeira parte do destaque 21 nos foI. 551-556, no artigo 2 do lógica que é também uma referência ao Evangelho de João.
destaque 44 nos foI. 943-944. Uma edição mais manejável foi feita pelos irmãos de 42 Este destaque XXI do Comentário ao Livro IV das Máximas de Pedro Lombardo

Quaracchi: S. Bonaventurae Opera Theotogica, editio minor, 1. IV, Liber IV encontra-se na edição das obras de Alberto, o Grande, de Auguste 8orgnet, B. Alberti
Sententiarum, Quaracchi, 1949. Magni... opera omnia, t. 29, pp. 861-882, Paris, 1894.

336 337
43 Pierre MICHAUD-QUANTIN, no seu grande livro Universitas. Expressions. 60 S. TOMÁS DE AQUINO, L'au-delà, pp. 97-128. Esta questão retoma elemen-
mouvement communautaire dans le Moyen Âge latin, Paris, 1970, pp. 105 e 119, f. 1118 do destaque XXI do Livro IV das Máximas de Pedro Lombardo no Scriptum de
notar que Alberto, o Grande «ao estudar a acção das colectividades divide-as etJI Tomás.
urbanitates da sociedade civil e congregationes da Igreja». O uso da palavra surgiu- 61 «de loco purgatorii non inuenitur aliquid expresse determinatum in scriptura, nec
-lhe no debate dos teólogos a propósito da interdição pronunciada pelo Papa Inocên- nuiones possunt ad hoc efficaces induci» (Ibid., p. 105).
cio IV de excomungar colectividades, importante decisão deste pontífice genovês, 62 O comentado r da nossa edição do Suplemento, o padre J. Wébert, fica em todo o

Alberto tratou deste problema um pouco antes no seu Comentário ao Livro IV •• ualO escandalizado com o caso que Tomás de Aquino faz dos relatos de aparições de
Máximas (destaque 19, artigo VII, Opera, t. 29, p. 808; o nosso texto está na página upectros: «Parece-me estranho, escreve ele, que S. Tomás leve em consideração os
876 do mesmo volume). Pierre Michaud-Quantin faz notar que «no mesmo contexto, relatos sobre os mortos que expiam em certos lugares terrenos. Faz pensar nas "al-
Boaventura emprega congregatio para qualquer agrupamento civil ou religioso». 10118 penadas" dos contos fantásticos» (pp. 304-305). Quanto a mim, espanto-me com a
44 Ibid., 1. 29, pp. 877-878. pouca familiaridade do comentador moderno com a literatura medieval das visões e
45 ALBERTI MAGNI, Opera omnia, ed, A. Borgnet, 1. 30, pp. 603-604. com a mentalidade comum no século XIII, as quais S. Tomás, por muito intelectual
46 Ibid., 1. 30, p. 612. que fosse, tinha de ter em conta e em certa medida partilhava.
47 O Compendium theologicae veritatis foi publicado por Bourgnet no tomo 34 dai 63 A questão LXXI encontra-se nas páginas 129-203 da nossa edição (ver nota
Opera omnia de Alberto, o Grande, Paris, 1895. eobre Hugo de Estrasburgo consultar p. 355).
G. BONER, Über den Dominikaner Theologen Hugo von Strassburg, 1954. 64 De cura pro mortuis gerenda, capo XVIII.
48 Compendium ... IV, 22. Alberti Magni ..., Opera omnia, ed. A. Borgnet, vol. 34. 65 Este desprezo - sobretudo monástico - pelo corpo não impediu os pensadores
p.147. uriatãos da Idade Média (incluindo os monges) de estarem convencidos de que só se
49 Ibid., pp. 237-241. podia ser salvo «de corpo e alma», por meio do próprio corpo.
soSobre Tomás de Aquino ver M.-D. CRENU, Introduction à l'étude de saillt 66 Summa theologiae, Ia Pars, q. LXXXIX, art, VII, 2" edição romana, Roma,
Thomas d'Aquin, Montréa!-Paris, 1950. J.-A. WEISREIPL, Friar Thomas d'Aquino, 1920, p. 695, «non est eadem ratio de distantia loei, et de distantia temporis».
his Life, Thought and Works, Oxford, 1974. Thomas von Aquino. Interpretation 67 A. MICREL, art. «Purgatoire» do Dictionnaire de théologie catholique, col. I
Rezegtion. Studien und Texte, ed. W. P. Eckert, Mayence, 1974. 240. O texto do Scriptum in IV um Sententiarum, dest. XXI, q. 1, a 1 encontra-se
1 M. CORBIN, Le chemin de Ia théologie chez Thomas d'Aquin, Paris, 1974, nlK páginas 1045-1052 da edição Moos. O texto do De Maio, q. 7, a. 11 encontra-se
p.267. nls gáginas 58~-~90 da edição de Marietti, Quaestiones disputatae.
52 Utilizei a edição da Súmula Teológica publicada com uma tradução e notas pe Texto original entre as cartas de S. Bemardo na Patrologie latine, t. 182, col.
edições da «Revue des Jeunes chez Desclée et Cie.» O Purgatório encontra-se no opÚllt fl76-680. Everwini Steinfeldensis praepositi ad. S. Bernardum, apresentação e tradução
culo sobre O Além que contém as questões 69 e 74 do suplemento, Paris, Tournal, Inlllesa em W. L. WAKEFIELD e A. P. EVANS, Heresies of the High Middle Ages,
Roma, 21 ed., 1951, com uma tradução de J. D. Folghera e notas e apêndices de Nova Iorque-Londres, 1969, p. 126 e ss, (a passagem sobre o fogo purgatório está na
L. Wébert: a palavra purgatorium ocupa 6 colunas no Index Thomisticus, Sectio lI, lI. 131).
concordantia prima, ed. R. Busa, vol, 18, 1974, pp. 961-962. 69 Os «Passagins» professavam uma observância estrita do Antigo Testamento,
53 Ver as notas de J. Wébert no opúsculo indicado na nota anterior, p. 287. Incluindo a prática da circuncisão. Foram classificados entre as seitas «judaizantes»,
54 Ibid., p. 13. " primeira menção a seu respeito é de 1184, a última de 1291. Parece terem ficado
ss Ibid., p. 17. uonfinados à Lombardia e terem estado activos pouco antes e pouco depois de 1200.
56 Ver em todo o caso as páginas pioneiras de J. DELUMEAU, La Peur en Oc Ver R. MANSELLI, «I Passagini» in Bol/etino deil'Instinao storico italiano per il medio
dent (XI~-XVJIr siécles), Paris, 1978 (ver Index sv. revenants) e de H. NEVEtlX, "'li e Archivio Muratoriano, LXXXV, 1963, pp. 189-210. Aparecem ao lado dos cáta-
«Les lendemains de Ia mort dans !es croyances occidentales (cerca de 1250-cerca rm mas diferentes deles nesta Summa contra Haereticos aseribed to Praepositinus
1300)>>in Annales E.S.e. 1979, pp. 245-263. Jean-Claude Schmitt e Jaeques Chiffoles 111Cremona, ed, J. N. Garvin, e J. A. Corbett, Notre-Dame, (Indiana), 1958 e tradu-
levaram a cabo pesquisas sobre as aparições na Idade Média. ylu inglesa parcial in WAKEFIELD e EVANS, Heresies of lhe High Middle Ages,
S7 Ver J. Le GOFF, «Les rêves dans Ia culture et Ia psychologie collective p, 173 e ss.
!'Occident mêdiéval» in Scolies, I, 1971, pp. 123-130, retomados em Pour un au 70 Ibid., pp. 210-211.

Moyen Âge, Paris, 1977, pp. 299-306 [tradução portuguesa da Editorial Estampa, 71 Este nome, deformação dos «Paulicianos» orientais, serviu no Ocidente para
Lisboa, 1980). Alberto, o Grande, abordou decididamente o problema no seu trata de.i~ar qualquer ~ipo d~ ~erege.
De somno et vigilia. O texto latino original encontra-se em Radulphi de Coggeshall Chronieon
S8 S. TOMAS DE AQUINO, Somme théologique. L'au-delà, pp. 38-46. "flKlieanum, ed. J. Stevenson, Londres, 1875, pp, 121-125, tradução inglesa em WA-
S9 Edição destinada a ser a edição modelo, se não oficial, das obras comple KEFIELD e EVANS, p. 251.
de Tomás de Aquino, assim chamada porque foi empreendida em 1882 por iniciati 73 O texto latino original foi editado nos excertos do Tractatus de diversis materiis

do Papa Leão XIII, promotor do neotomismo, Esta edição ainda não está to I'rlwdicabilibus publicados por A. LECOY de Ia, MARCHE, Anecdotes historiques
minada. I~Kendes et apoloques tirées du recueil inédit d'Etienne de Bourbon, domintcain du

338 339
XIII" siécle, Paris, 1877, pp. 202-299. Tradução inglesa em WAKEFIELD e EVA ,,. Ver A. DONDAINE, «Nicolas de Crotone et les sources du Contra errores
p.347. thuecorum de saint Thomas» in Divus Thomas, 1950, pp. 313-340.
74 Texto latino publicado por A. DONDAINE, «La hiérarchie cathare en Italie, n Ver a secção do colóquio 1274 Année charniêre (publicado em 1977 pelas edições
Le Tractatus de Hereticis d'Anselme d'Alexandrie, O.P ... » in Archivum fratr dI! C.N.R.S.) dedicada a Byzance et /'Union (pp. 139-207) com os artigos de D. Stier-
praedicatorum, XX, 1950, p. 310-324. Tradução inglesa in WAKEFIELD e EVA non, já citados; J. Darroiizês, J. Gouillard e G. Dagron. Ver também B. ROBERG,
pp.371-372. /)Ir Union zwischen der griechischen und der lateinischen Kirche auf den lI. Konzi/ von
75 Bernardo Gui, nascido em Limousin em 1261 ou 1262, ingressado nos Pr '.Vlln. 1274. Bona, 1964. Sobre as atitudes bizantinas em relação ao além espera-se um
res em 1279, formado em Montpellier, foi inquisidor sobretudo na diocese de Toul próximo livro de Gilbert Dagron. Agradeço a Évelyne Patlagean por me ter comuni-
se. No fim da vida foi bispo de Lodêve. O Manual do Inquisidor deve ter sido aca IlIIdo o texto do seu estudo «Bizâncio e o seu outro mundo. Observações sobre alguns
em 1323-1324. Foi editado com uma tradução francesa de G. Mollat nos clássicos ,.llIlos» a aparecer no colóquio Faire croire (Escola Francesa de Roma, (979).
história de França na Idade Média, VIII/IX, 2 vol., Paris, 1926-1927. Os textos cita 93 Segundo o artigo «Purgatoire» do Dictionnaire de théologie catholique, col. 1249-

encontram-se no capítulo 11 da 5" parte. ·1250.


76 A Summa de Sacconi foi editada por A. Dondaine no prefácio da sua obra 94 Ver A. MICHEL, ibid.. col. 1249-1250.
Traité néo-manichéen du XIII" siêcle: o Liber de duobus principiis, suivi d'un frag. 'Ij Ibid., col. 1249-1250.

de rituel cathare. Roma, 1939, pp. 64-78. Tradução inglesa em WAKEFIELD 96 Ver designadamente De Purgatorio Disputationes in Concilio Florentino Habitae,
EVANS, pp. 333-334. L. Petit et G. Hofmann, Roma, 1969.
77 Esta Brevis summula contra errores notatos hereticorum foi editada por Céles 97 Ver J. DARROUZES, «Les documents grecs concernant le concite de Lyon» in
Douais na Somme des autorités à l'usage des prédicateurs méridionaux au XIII" siê /174. Année charniére, pp. 175-176. O texto citado, extraído do Procés de Niciphore
Paris, 1896, pp. 125-133. Tradução inglesa em WAKEFIELD e EVANS, pp. 35 1/177) foi editado por V. LAURENT e J. DARROUZES, Dossier grec de l'Union de
-356. I.Vlln (1273-1277). Arquivos do Oriente cristão, 16, Paris" 1976, pp. 496-501.
78 Para uma ideia de conjunto ver Y. M. J. CONGAR, «Neuf cents ans ap
Notes sur le Schisme oriental» in L'Église et les Églises: neuf siécles de doulour
séparation entre l'Orient et /'Occident. Études et travaux ojJerts à dom Lambert Be
dom, I, Chevetogne, 1954. Cf. de um ponto de vista menos vasto, os estudos de D.
NICOL reunidos em Byzantium: lts Ecc/esiastical History and Relations with the W.
tem World, Londres, 1972.
79 D. STIERNON. «Le problême de l'union gréco-Iatine vu de Byzance: de
main 11 à Joseph ler (1232-1273)>>in 1274, Année chamiére. Mutations et Continuü
(Colóquio de Lyon-Paris, 1974). Paris, C.N.R.S., 1977, p. 147.
80 P. RONCAGLIA, Georges Bardanés métropolite de Corfou et Barthélemy
/'ordre franciscain, Les discussions sur le Purgatoire (15 de Octobre-17 NovembrO
1231). Estudo critico com texto inédito, Roma, 1953, p. 57 e ss. I
81 Epitimies: actos de penitência e de mortificação.
82 João, XIV, 3.
83 Bardanês emprega aqui o termo 1tOP'Y'tOplO'Y neologismo para traduzir a palavra"
latina.
84 João, V, 29.
85 Mateus, XXV, 41.
86 Mateus, XXV, 51.
87 Marcos, IX, 43-48.
88 Lucas, XVI, 25.

89 Tradução ligeiramente corrigida tirada do artigo «Puragatoire» do Dictionnaire


de théologie catholique, col. 1248. Du Cange citou esta carta no seu célebre glossário na·
palavra Purgatorium. Eis, no latim original, as passagens importantes para o nosse.
objectivo: «Nos, quia locum purgationis hujus modi dicunt (Graeci) non fuisse sibi ab'
eorum doctoribus certo et proprio nomine indicatum, illum quidem juxta traditiones "
auctoritates sanctorum patrum purgatorium nominantes volumus, quod de caetero apud
iIlos isto nomine appeletur»
90 Ver J. A. WEISHEIPL, Friar Thomas d'Aquino, pp. 168-170.

340 341
IX - O TRIUNFO SOCIAL: A PASTORAL E O PURGATÓRIO

No século XIII o Purgatório triunfou na teologia e no plano dogmá-


tico. A sua existência é certa, tomou-se uma verdade da fé da Igreja. Sob
uma forma ou sob outra, num sentido muito concreto ou mais ou menos
abstracto, é um lugar. Oficializa-se a sua formulação. Vem dar sentido
pleno a uma prática cristã muito antiga: os sufrágios pelos mortos.
Mas os teólogos e a hierarquia eclesiástica controlam-no, limitam-lhe a
expansão no imaginário.
Ao nível em que vou agora colocar-me (tanto quanto o historiador
pode captá-lo), o da recepção do Purgatório pelas massas, pelo conjunto
dos fiéis e pelas diversas categorias profissionais, os progressos do Purga-
tório são ainda mais impressionantes.
Quando a Igreja faz descer o Purgatório das alturas da razão teológica
para a prática pastoral, mobilizando os recursos do imaginário, o êxito
parece ser enorme. No fim do século XIII o Purgatório está por toda a
parte, na prática, nos testamentos (timidamente), na literatura em língua
vulgar. O Jubileu de 1300 será o seu triunfo pelo encontro das aspirações
das massas dos fiéis com as prescrições da Igreja. As oposições esbatem-
-se, entre os intelectuais e até entre os hereges. Só a imagem continua
refractária a esse triunfo: conservadorismo da iconografia? Dificuldades
na representação de um mundo intermédio, temporário, efémero? Caute-
la da Igreja, preocupada em manter o Purgatório próximo do Inferno ou
mesmo «infernizá-lo» para evitar representações mais tranquilizadoras do
que assustadoras?' O Purgatório nasce numa perspectiva de localização
porque é preciso encontrar um lugar para as penas que purgam, porque o
vaguear das almas penadas já não é suportável. Mas o espaço e o tempo
estão sempre ligados, mesmo que esse lugar não seja simples, como no-lo
recorda Tomás de Aquino.

343
o tempo contado pode recuar mais de uma centena de anos, como demonstrou Bernard
Uucnée3. Ao nível dos poderosos e da nobreza, ela combina-se com a
a Purgatório é também um tempo, visto que podemos defini-lo co dllta fornecida por um escrito, por um foral conservado mais ou menos
um inferno «temporário». Há, pois, um tempo de Purgatório, e esse te por acaso, e pelas lendas sobre os antepassados, os fundadores das linha-
po que também se define na viragem do século XII para o século XI pns, para permitir a elaboração das genealogias". Principalmente e para
insere-se no repensar geral das estruturas temporais nessa época. nossa reflexão, ela está na fonte da memória dos mortos, tão viva sobre-
Até então a vida e as mentalidades eram dominadas por uma ideol tudo em Cluny nos séculos XI e XII, ainda antes de o Purgatório ser
gia do tempo por um lado e pela experiência de uma multiplicidade localizado. A redacção de obituários chamados Livros de Memória (Li-
tempos por outro. A Igreja ensinava a teoria das seis idades do mund "ri memoriales) e a instauração no dia seguinte a Todos-os-Santos, em 2
que chegara à sexta e última idade, a da velhice ou decrepitude e, de Novembro, de uma Comemoracão por todos os Defuntos, exprime essa
firmar solidamente o universo numa historicidade marcada por doi memória inscrita nos livros e na liturgia dos mortos que serão salvos para
grandes acontecimentos do passado (a criação seguida da queda e a E " da mortes.
carnação do Cristo, origem da redenção) ela estava orientando o tem No século XII, o que caracteriza as novas atitudes em relação ao tem-
no sentido de um fim: o Julgamento Final e a absolvição do tempo !l0 é a combinação entre o tempo escatológico e o tempo terrestre cada
eternidade. Acreditava e afirmava que esse fim estava próximo e es vez mais penetrado de linearidade e sobretudo cada vez mais entrecorta-
convicção teve como consequência preocuparem-se pouco com o peri do de normas, de pontos de referência, de porções de tempo.
do, muito curto, que separava a morte individual da ressurreição d Este tempo sucessivo que é também o tempo da narração é particu-
corpos e do julgamento geral. Indivíduos e grupos exigentes e contes larmente sensível na literatura narrativa que conhece uma extraordinária
tários, ou as duas coisas ao mesmo tempo, introduziram duas varian voga depois de 1150 e sobretudo depois de 1200: os pequenos poemas
neste esquema. narrativos, os contos em verso, o romance, tornam-se em poucos decé-
Uns desejavam um rejuvenescimento do mundo, o regresso da Igrej nios géneros de sucesso". a êxito do Purgatório é seu contemporâneo, ou
primitiva, forma cristã do mito da idade de ouro, outros e por vezes melhor, os dois fenómenos estão ligados. O Purgatório introduz uma
mesmos acreditavam e esperavam que, de acordo com o Apocalipse, Intriga na história individual da salvação, e essa intriga prossegue para
fim do mundo seria precedido por provações do Anticristo, mas ant além da morte.
por uma longa época de justiça, o Millenium. No começo do século as defuntos quando morrem têm de entrar num tempo escatológico,
XIII o milenarismo, condenado desde há muito pela Igreja, encontra quer vão eternamente para o Inferno ou para o Paraíso, quer esperem
um novo profeta, o abade Joaquim de Flore cujas ideias inflamam, ao durante todo o tempo que separa a morte individual do Julgamento Fi-
longo do século, numerosos adeptos, principalmente entre os franei •• lial num lugar neutro mas sombrio, cinzento, do tipo do shéol judaico, ou
canos". então em receptáculos como o seio de Abraão. Mas a teoria dos receptá-
Por outro lado, a vida dos homens era pontuada por uma multiplieis culos que, no fundo, tivera até ao século XII os favores do cristianismo,
dade de tempos: o tempo litúrgico, o tempo do calendário anunciado. transforma-se a ponto de não ser mais do que uma expressão de escola.
controlado pela Igreja e diariamente indicado pelos sinos dos edificio .. () limbo dos padres, dos patriarcas, foi definitivamente encerrado, o seio
religiosos, o tempo dos trabalhos campestres estreitamente dependente de Abraão esvaziou-se, Henoch e Elias moram sozinhos no Paraíso ter-
dos ritmos naturais mas marcado por ritmos calendarizados mais ou me- restre. Apenas restam o limbo das crianças e o Purgatório.
nos cristianizados: ciclo dos doze dias do princípio do ano tradicional, do Apesar de alguns sinais de hesitação vindos sobretudo de Agostinho,
Natal à Epifania, tempo de Carnaval e de Quaresma, tempo das Roga- este último está daí em diante, no século XIII, bem delimitado nas suas
ções e de S. João, época das colheitas, o tempo feudal marcado pelo. fronteiras temporais. Só se entra lá depois da morte. A purgação não
trabalhos da Primavera e pelas datas do prazo de pagamento das ren- começa na terra. a desenvolvimento das crenças e das práticas de peni-
das, as grandes assembleias do Pentecostes. Todos tempos repetitívoa, tência favoreceu sem dúvida o nascimento do Purgatório. Mas a concep-
se não circulares. ção «penitencial» do Purgatório de um Guillaume d'Auvergne não se
Todavia desenham-se segmentos de tempo linear, períodos revestido. encontra depois dele com a mesma força. Tomás de Aquino dá a respos-
de um sentido. Decorrem de uma nova aplicação da memória individual. ta teórica sublinhando que não pode haver penitência senão durante a
colectiva. A memória que se exerce sobre as recordações do passado não vida e pena só depois da morte. Portanto a entrada no Purgatório só

344 345
começa com a morte. Tal como não usurpa o tempo terreno, o Purgatório mais o último recurso para beneficiar do Purgatório. Os últimos ~ns~~lOtes
também não rouba no tempo propriamente escatológico, no pós-ressur- adquirem assim uma intensidade suplementar? pois s~ p~a a maioria dos
reição. Na verdade, o «fogo» purgará não durante o Julgamento Final moribundos já há muito tempo é tarde d~ mais para l~ ~lrectamente para
mas sim antes. o Céu, é ainda tempo de salvação atraves do Purgatono. Parece-me, ~o
O mais importante é que, para os defuntos individuais, o tempo do contrário do que diz Philippe Ariês em O Homem f~rante a.~orte, que e a
Purgatório nã9 cobrirá obrigatoriamente todo o período entre a morte e a partir do século XIII que «daí em diante ~ar~ ~hilippe Ariés trata-se dos
ressurreição. E mesmo mais provável que a alma do Purgatório seja li- séculos XIV-XV) a sorte da alma imortal e decidida no mo~ento da morte
bertada antes do Julgamento, mais ou menos rapidamente, mais ou me- física» e que o Purgatório é uma das causas fundamentaIs desta drama-
nos cedo, segundo a qualidade e a quantidade dos pecados a purgar e a tização do momento da mortes. ,
intensidade dos sufrágios oferecidos pelos vivos. Eis, pois, que no além se Philippe Ariês prossegue: «Cada ~ez hayera menos .lugar para os es-
instala um tempo variável, mensurável e ainda mais manipulável. Daí a pectros e suas manifestações.» Também venfico, a partir ~~ seculo ,XIII e
precisão com que os narradores de aparições de almas do Purgatório e a. com excepção do pequeno número de almas do Purgatono, o nu~e:o
próprias almas indicam, nos seus discursos aos vivos, o tempo decorrido ainda mais pequeno de eleitos ou de condenados que «po.r pe~lssao
depois da morte, o tempo já cumprido no Purgatório, por vezes as pre- . especial» de Deus fazem curtas aparições aos vivos para edificação des-
visões da duração da pena ainda a purgar" e sobretudo do momento em tes mas sem se entregarem à vagabundagem. Se compararmos A Lenda
que se deixa o Purgatório pelo céu do Paraíso, o que permite medir O D;urada do dominicano Jacopo de Varazze, escrita por vo~ta d~ .1260,
tempo passado no Purgatório. com as descrições dos habitantes de Montaillou perante os inquisidores
E aqui que se procura instaurar um cálculo, uma contabilidade sobre meio século depois, ficamos impression~dos com a ~~gabundagem das
a relação entre a quantidade de pecados cometidos na terra, a quantidade almas à volta desses aldeões hereges hostis ao Purga tono e com .a gra~de
de sufrágios produzidos em reparação desses pecados e o lapso de tempo ausência de espectros no livro do pregador interessado em difundir a
, . 9
passado QO Purgatório. Com as suas considerações sobre a proporciona- crença no Purgatono . .
lidade, Alexandre de Hales deu uma espécie de justificação teórica a esses O Renascimento assistirá, no entanto, ao regresso dos espectros, pois
cálculos que Tomás de Aquino se esforçou por conter. O desenvolvimen- se o Purgatório continua então a desempenhar o seu papel de laço entre
to do sistema de indulgências abrirá a porta a todos os excessos dessa os vivos e os mortos, enriquecendo até essa função com nov~s formas de
contabilidade. Assim são postos em relação, de qualquer maneira, o tem- devoção, parece já não funcionar bem como lugar de reclusao ~as almas
po terreno e o tempo do além, o tempo do pecado e o tempo da purgação. penadas. Alguns historiadores do século XVI chamaram a atençao para a
O sistema do Purgatório tem ainda duas consequências capitais. vagabundagem recomeçada e para as danças nos cemitérios, terrenos dos
, . 10
A primeira é dar uma renovada importância ao período que precede a espectros escapados ao Purgatono .
morte. E certo que os pecadores sempre foram prevenidos contra a morte Mas não acho que Philippe Ariês tenha razão ao acrescenta~: ~(Em
súbita e convidados a prepararem-se a tempo, para escaparem ao Inferno. compensação, a crença - durante muito tempo reservada aos sábios e
Mas para evitar uma condenação tão pesada era preciso actuar depressa e aos teólogos ou poetas - no Purgatório como lugar de espera, to~ar-
bem, não levar uma vida demasiado escandalosa, não cometer um pecado -se-á verdadeiramente popular, mas não antes dos meados do século
demasiado exorbitante, ou, no caso de o cometer, fazer uma penitência XVII.» Interrogam-se até se em certas regiões, na de Toulouse, por exem-
exemplar o mais depressa possível, de preferência uma peregrinação a um plo, a voga do Purgatório não acabou no século XVII~ll... .
lugar distante. Para aqueles a quem a ordem monástica podia abrir-se O sistema do Purgatório tem uma segunda consequencla: implica uma
facilmente, eruditos seculares, nobres, poderosos, tomar o hábito quan- definição relativamente concisa dos laços - entre os vivos e os mortos -
do chegava a velhice e a decrepitude era uma boa garantia. Daí em diante eficazes no caso dos sufrágios. . .
o sistema do Purgatório permite definir na prática comportamentos mais A quem aparecem as almas do Purgatório para pedir .socorr?? .Pnmel-
matizados mas igualmente decisivos se se trata de escapar apenas ao Pur- TO à família carnal ascendentes ou descendentes. Depois ao conjuge - e
gatório. O melhor meio é, à falta de uma vida santa, a penitência - cada es~ecialmente no s6culo XIII é import~~te o p~p~l ~as viúvas dos m?rt~s
vez mais precedida de confissão - mas há ainda in extremis esperança de do Purgatório. A seguir, às suas famílias artificiais e, antes de ~als? as
escapar ao Inferno e de se ser passível apenas do Purgatório, se pelo ordens monásticas a que pertencem se são monges, ou a que estãoliga-
menos se iniciou o arrependimento. A contricão final toma-se cada vez dos se são laicos. Enfim, o defunto pode aparecer a um supenor: e eVI-

346 347
dente no caso de um monge que vem solicitar um superior do convento, desiguais e mesmo diferentes. É também o recurso a um conceito psico-
ou da abadia, mas encontra-se também o caso de um vassalo, de um lógico (o sentido subjectivo da duração) bem de acordo com a crescente
familiar, de um servo que se dirige ao seu senhor, ao seu patrão, como «psicologização» que caracteriza a literatura da mesma época. Enfim - e
se o dever de protecção por parte do senhor, estabelecido no contrato não é o menos espantoso nem o menos importante -, o tempo do Purga-
feudal, continuasse para além da morte, no decurso desse tempo ao mes- tório inverte-se em relação ao tempo do além tradicional do folclore. Este
mo tempo diferente e suplementar que é o tempo do Purgatório. Pouco a e assim definido no contra-tipo 470 da classificação dos contos populares
pouco, do século XIII ao século XVI, a solidariedade do Purgatório ser' . por Aarne-Thompson+': «Anos vividos como dias: os anos passados no
arrastada nas novas formas de sociabilidade das confrarias. Mas não outro mundo parecem dias por causa do esquecimento» e, mais ainda,
devemos iludir-nos; e Philippe Ariês, se datou como demasiado tardio porque lá a vida é agradável. A passagem do branco além céltico para
esse momento essencial, compreendeu bem que o Purgatório dá outro o além muito duro do Purgatório levou à inversão da sensação de tem-
sentido à fronteira da morte. Se, por um lado, parece tomá-Ia mais trans- po. Evolução notável: neste jogo de inversões entre a cultura erudita e a
ponível, estendendo sobre a encosta do além a possibilidade de remissão cultura folclórica, é geralmente o folclore que imagina um mundo ao
dos pecados, por outro põe termo à passagem da vida para a eternidade invés. Mas aqui o pensamento erudito, que recebeu do folclore o tema
(gloriosa ou não) como se de um tecido temporal sem costura se tratasse. do além de onde se regressa, procede por sua própria conta a uma inver-
Aproveitando o termo de Gabriel Le Bras, direi que, para um número são. Nisto vê-se bem o jogo dos empréstimos recíprocos e dos passos
crescente de defuntos, abre-se no além um «estágio» entre a vida terrena simétricos da cultura erudita e da cultura folclórica. Vejo aqui uma das
e a recompensa celeste. provas da presença do folclore no seio da génese do Purgatório'". Recor-
O esquema temporal do Purgatório, tal como se exprime nas aparições demos a Viagem de Bran, por exemplo, no fim da qual, quando Bran e os
e se revela nas relações entre vivos e mortos, pode descrever-se assim: companheiros querem voltar à terra de onde partiram, depois do seu
pouco tempo depois da morte (alguns dias ou alguns meses, raramente périplo pelas ilhas maravilhosas que não são senão o além, ao saltar do
mais) um defunto que está no Purgatório aparece a um vivo a quem navio para terra um deles cai desfeito em cinza «como se tivesse vivido
estava ligado na terra, informa-o com maiores ou menores delongas da muitas centenas de anos na terra». No século XIII, a literatura das visões
sua situação, do além em geral e do Purgatório em particular, e convida-o não esgotou a sua sedução sobre ouvintes e leitores. Daí em diante as
a levar a cabo ou a encomendar a outro parente ou pessoa próxima ou a viagens pelo além dão lugar, aberta e nomeadamente, ao Purgatório.
uma comunidade, sufrágios (jejuns, preces, esmolas e, sobretudo, missas)
em seu favor. Promete comunicar-lhe numa próxima aparição a eficácia
(ou ineficácia) dos sufrágios realizados. Esta reaparição pode fazer-se a Novas viagens pelo além
um ou a dois tempos. Se há uma primeira aparição, o morto indica ge-
ralmente ao vivo que porção da pena já cumpriu. A maioria das vezes Nos primeiros anos do século um cisterciense alemão, Conrado, que
uma porção simples, a metade ou um terço, materializada pela aparência foi monge em Clairvaux e depois abade de Eberbach, no Taunus, escreve
exterior do espectro cujo «corpo» (ou «vestuário») são metade negros uma série de milagres e de historietas ao retratar os começos da ordem,
(tempo que falta cumprir) ou um terço brancos e dois terços negros, etc. O Grande Exórdio Cisterciense ou o Relato dos Começos da Ordem Cister-
Podemos espantar-nos (e os homens do século XIII, ainda pouco fa- ciense (Exordium Magnum Cisterciense Sive Narratio de Initio Cistercien-
miliarizados com um Purgatório banalizado, manifestaram esse espanto) sis Ordinis). Nele se encontram várias histórias de espectros. O
por a estada no Purgatório surgir, na maior parte das vezes, como muito Purgatório raramente é citado porque a obra apresenta-se como a histó-
breve, da ordem de dias ou de meses, se bem que num dos primeiros casos ria de um tempo, o século XII, e até 1180 ele ainda não existia. Numa
mais interessantes, o do usurário de Liêge, a purgação dure catorze anos história tirada do Livro dos Milagres, escrito em 1178 por Herbert de
" 12 ' ,
em dOISpenodos de sete anos . E que o tempo parece muito longo no Clairvaux, um castelão dado à violência e à rapina, Baudouin de Gui-
Purgatório, por causa da dureza (acerbitas) das penas sofridas. Um dia se, da região de Reims (que no entanto venerava Pedro, abade de Igny)
aparece a alguns, como se verá, tão comprido como um ano. Esta inten- morrera arrependendo-se mas sem ter tido tempo de fazer penitência. Na
sidade do tempo do Purgatório é notável a vários títulos. É primeiro uma própria noite da .ua morte, aparece a um monge invocando o auxílio de
solução, ainda que grosseira, para o problema da proporcionalidade en- S. Bento, enquanto um anjo aparece a Pedro de Igny para pedir sufrágios
tre tempo terreno e tempo no além purgatório que põe em relação tempos da comunidade cisterciense pelo morto. Algum tempo depois, dois anjos

348 349
levam diante do altar da igreja da abadia de Igny, à presença do abade du parede Thurchill vê almas manchadas de preto e branco. As mais
Pedro, o defunto com hábitos negros mas com bom aspecto e feitos de brancas são as mais próximas da parede e as negras as mais distantes.
bom tecido. O abade compreende que as vestes negras são sinal de peni- Ao lado da parede abre-se o poço do Inferno e Thurchill sente o seu odor
tência e que esta aparição diante do altar dá a entender que o morto será rétido. Esse odor, diz-lhe Julião, é um aviso por ele não pagar as suas
salvo. Como depois ele não apareceu mais, teve-se a certeza de que fora dizimas à Igreja. Mostra-lhe a seguir a leste da basílica um grande fogo
recebido nos lugares purgatórios (in locis purgatoriis ), promessa de sal- purgatório pelo qual passam almas antes de serem purgadas num outro
vação futura. purgatório, esse gelado, um lago muito frio onde a passagem é regulada
Vê-se que o sistema não funciona bem visto que o morto não volta por S. Nic~lau (que já encontrámos como santo do Purgatório). Por fim,
para informar os vivos da sua passagem do Purgatório para o Paraíso15• 11M almas passam mais ou menos depressa por uma ponte com estacas e
Noutra história é Santo Agostinho que aparece numa visão a um pregos aguçados para a montanha do Paraíso (o monte de alegria, mons
santo monge de Clairvaux para o conduzir através de inúmeros lugarea /luudii). Regressados ao centro da basílica, Julião e Domnius mostram a
de penas até à entrada do poço da geena 16. 'l'hurchill a triagem e a pesagem das almas. S. Miguel Arcanjo, S. Pedro e
Ainda noutro caso Conrado propõe-se mostrar como a prova do fogo S. Paulo procedem a elas em nome de Deus. S. Migue1 faz passar as almas
purgatório é temível e aterradora: conta a história de um monge que, todas brancas pelas chamas do fogo purgatório e pelos outros lugares de
antes de morrer, é conduzido em espírito aos lugares infernais (ad loca penas sem que elas fiquem feridas, e leva-as para o monte do Paraíso. As
infemalia), onde a breve visão que tem se aproxima muito do Purgatório que estão manchadas de branco e preto, S. Pedro fá-Ias entrar no fogo
de S. Patrick (e do Apocalipse de Paulo), e depois a um lugar de refrigério purgatório para aí serem purgadas pelas chamas. Q~anto às almas todas
(ad quemdam refrigerii locum). Conrado explica que os mortos são rece- negras são objecto de pesagem entre S. Paulo e o diabo, Se a balança se
bidos neste lugar depois de terem sido purgados dos seus pecados com inclina para o lado de S. Paulo, este leva a alma para ser purgada no fogo
mais ou menos rapidez segundo a quantidade e a qualidade dos pecados, purgatório; se se inclina para o lado do diabo, este leva-a para o Inferno.
e cita o sermão de S. Bernardo quando da morte de Humberto, superior 'l'hurchill, acompanhado de S. Domnius, visita a seguir demoradamente o
de Clairvaux, em que o santo dissera que os pecados cometidos cá em Inferno guiado por Satanás, excepto o inferno interior. Aproximando-se
baixo deviam ser pagos cem vezes mais até ao último tostão nos lugares do átrio de entrada do monte de alegria apercebe-se de que S. Miguel faz
purgatórios (in purgatoriis locis) 17. nvançar as almas que esperam mais ou menos depressa em proporção
Recordações de um tempo em que o Purgatório se preparava para com o número de missas que os amigos e a Igreja universal mandaram
nascer mas ainda não existia, estas visões e aparições do Magnum Exor- dizer pela sua libertação. Depois percorre rapidamente muitas casas do
dium Cisterciense têm um perfume arcaico. O Purgatório está em compen- monte paradisíaco com S. Miguel por guia e termina com uma volta pelo
sação bem presente nas visões relatadas um pouco mais tarde por dois Paraíso terrestre. S. Julião aparece-lhe de novo e ordena-lhe que conte o
beneditinos ingleses, herdeiros da grande tradição céltica e anglo-saxóni- que viu. Daí em diante, no dia de Todos-os-Santos, Thurchill contará a
ca desde Bede. O primeiro, Roger de Wendover, monge da grande abadia sua visão. Fá-lo em linguagem vernácula e admiram-se por aquele rústico
de Saint-Albans, falecido em 1236, conta nas suas Flores das Histórias anteriormente sem cultura e com dificuldade de falar, dar prova de uma
(Flores historiarum), datadas de 1206, a viagem de Thurchill ao além'", bela eloquência nestes relatos'".
Quando trabalhava no seu campo, este camponês da aldeia de Tids- Esta descrição cheia de arcaismos agrupa, de facto, em três lugares,
tude, na diocese de Londres, vê aparecer um homem que diz ser S. Julião Paraíso, Inferno e Purgatório, o mundo do além, mas a divisão geográfica
Hospitaleiro e que o previne de que virá buscá-l o na noite seguinte para o não é perfeita. O Inferno inclui uma parte superior e outra inferior, o
levar junto do seu patrono S. Tiago de que é devoto, e para lhe mostrar, Paraíso contém muitas casas e a sua montanha parece-se com a torre
por permissão divina, segredos escondidos aos homens. Chegada a noite, de BabeI, e o Purgatório é feito de três pedaços colados uns aos outros:
vem com efeito acordá-Io no seu leito e faz-lhe sair a alma do corpo que o fogo, o lago gelado e a ponte.
fica no leito mas não inanimado. O seu guia fá-lo entrar numa grande e
esplêndida basílica que não tem paredes excepto uma, não muito alta, a
norte. S. Julião e S. Domnius, guardas da basílica, levam Thurchill a
o Purgatório celebrado: os «exempla»
visitá-Ia. São os lugares que Deus destina aos mortos sejam eles conde- Estas histórias ainda só eram destinadas a um auditório limitado, o
nados ou salvos pelas penas do Purgatório (per purgatorii poenas). Junto dos mosteiros; faltava-Ihes chegar às massas laicas.

350 351
o grande meio de difusão do Purgatório é o sermão e dentro Duas passagens são particularmente significativas. A primeira está
sermão, as historietas com que os pregadores recheiam as suas homil num modelo de sermão Aos esposos (Ad conjugatos): «A contrição
e que fazem passar a lição através do divertimento da anedota. Este transforma a pena do inferno em pena do Purgatório, a confissão em
curs? a uma f~rma narrativa curta é um dos meios principais pelo qual pena temporal, a satisfação conveniente em nada. Na contrição o peca-
Igreja moderniza o seu apostolado, mantendo-se porém dentro de u do morre, na confissão é retirado da casa, na satisfação é enterrado'".»
longa t~a~i.ção. Na ocorrência es.tas historietas edificantes, estas exemp Ex.posição notável que liga o Purgatório à contrição e ao processo
comp~t.lblhzam-se - apesar de diferenças notórias - com as narrações penitencial e que sublinha o regresso decisivo do Inferno para o Purga-
Gregono, o Grande, nos seus Diálogos. Ora essas narrações são com tório.
sab~~os, um marco essencial no caminho do Purgatório. O e~cont Num modelo de sermão para os domingos, Jacques de Vitry evoca a
decisivo no século XIII entre o Purgatório e o exemplum é a consecu Ideia de um repouso dominical no Purgatório: «Faz parte da devoção
retumbante do cenário que, seis séculos e meio antes, Gregório, o Grau Acreditar, e muitos santos o afirmam, que no dia do Senhor as almas
de, esboçaraê" . dos defuntos repousam ou, pelo menos, sofrem castigos menos duros
O se?Dão teve ~emp.reum lugar importante no apostolado da Igrej no Purgatório até segunda-feira, quando a Igreja tem o hábito de os
mas o seculo XIII e o seculo do renascimento do sermão no seio de socorrer na sua compaixão, celebrando uma missa pelos defuntos. As-
discurso novo, mais directo, mais realista, do qual os irmãos mendican sim, é a justo título que são privados do beneficio desse repouso domini-
são em breve os principais promotoresê'. O sermão - e as suas incrus eul aqueles que não honraram cá em baixo o dia do Senhor, recusando
ções, os exemp/a - é o grande meio de comunicação de massas do sécul Abster-se dos trabalhos servis e dos negócios do século ou, pior ainda,
XIII, a mensagem recebida po~ todos os fiéis, mesmo havendo algun. entragando-se a comezainas e à bebida e a outros desejos carnais, dan-
desertores da rmssa e e~ e~pecIal da pregação, mais dados a ser pilarei do-se lascivamente a danças e canções, e que não tiveram receio de sujar e
de taberna do que de Igreja. O sermão recheado de exempla já não' de desonrar os domingos com querelas e discussões, com propósitos vãos
apenas ~m momento esperado do oficio, desenvolve-se separadamente, e ociosos, com palavras maldizentes e temerárias'".»
nas Igrejas ou nas pra.ças, prefiguração da conferência e do «meetings, Transposição do repouso sabático no Inferno para uma trégua domi-
A par com os malabanstas cujo público é sobretudo de nobres, os prega- nical no Purgatório, ligação entre o comportamento ao domingo cá em
dores da .moda tornam-se os «ídolos» das multidões cristãs. Mostram- baixo e a pena de domingo no além. A Igreja amarrou decididamente o
olhes, ensinam-lhes, o Purgatório. Pnrgatório à prática terrena num paralelismo edificante.
Dos modelos de sermões de Jacques de Vitry destinados ao conjunto
lias situações humanas (sermones vulgares ou ad status) apenas aproveito
dois exempla em que o Purgatório tem um papel fundamental.
Um precursor: Jacques de Vitry O primeiro, talvez proveniente do cisterciense Hélinand de Froimont,
veio das lendas tecidas em volta de Carlos Magno e dirige-se «àqueles que
!acques de Vitry é um dos primeiros autores de modelos de sermões choram a morte de parentes ou amigos». Situa-se pois nas novas formas
che~os d~ exemp/a qu~ iriam s~r m.uito utilizados depois. Formado pela de sociabilidade entre os vivos e os mortos. Um cavaleiro do séquito de
U~l1~ersldade de Pans nos pnmeiros anos do século XIII, pároco de Carlos Magno numa expedição contra os Sarracenos em Espanha pede
Oigmes no No~e de França, em contacto com o meio das beguinas (es- por testamento a um parente que, depois da sua morte, venda o seu ca-
s~s mulh~res re~Iradas no meio das cidades para aí levarem uma existên- valo em beneficio dos pobres. O parente, indelicado, fica com o cavalo.
cia a meio carmnho entre a das laicas e a das freiras), pregador célebre Ao fim de oito dias o morto aparece-lhe, censura-lhe ter retardado a sua
entre ~a parte da cristandade, sobretudo em França, bispo de Acre na libertação do Purgatório e anuncia-lhe que no dia seguinte ele expiará a
Palestina e, por fim, cardeal bispo de Tusculum (morre em 1240): é um sua culpa com uma morte horrível. No dia seguinte aparecem corvos
p:rsonagem considerávell/ê Nas suas recolhas de sermões o Purgatório negros que levam o infeliz pelos ares e o deixam cair sobre um rochedo
nao ~cupa grande lugar, mas vê-se nele o novo sistema do além bem onde parte a cabeça e morre'". O papel dos vivos para com os mortos do
acreditado e oferece-nos particularidades interessantes. Com efeito, deve Purgatório é evocado com bastante subtileza e a diferença entre pecado
acrescentar-se aos seus exempla as partes teóricas dos sermões que expri- venial e pecado mortal fica bem ilustrada. Aqui o objectívo é incitar ao
mem as suas concepções. cumprimento das disposições testamentárias, em especial quando se tr ita

352 353
de cláusulas reparadoras, pelos testamenteiros. O jogo Purgatório/Inf
\lIo que constituem os doze livros (destaques) do Dia/ogus miracu/orum
no enriquece a panóplia das ameaças.
do a conversão, a contrição, a confissão, a tentação, os demónios, a
O s~gundo exemplum mal evoca o Purgatório, mas nem por isso aimplicidade, a Virgem Maria, as visões, a eucaristia, os milagres, os mo-
menos Importante e está ligado às prédicas a favor da cruzada. U
ribundos e a recompensa dos mortos'". Este último capítulo é, evidente-
mulher ,im~ede o marido ~e ir ouvir um sermão pela cruzada preg mente, aquele onde o Purgatório aparece em plenitude, quer pelo número
pelo propno Jacques de Vitry. Mas ele consegue ouvi-lo por uma j
e os pormenores dos exempla quer pela estrutura da obra.
Ia, e quando o pregador anuncia que esta penitência permite evitar
A estrutura do décimo-segundo e último destaque é simples. A da
p~~a~ p~rgatórias e a pena da g~ena, e obter o reino dos céus, foge recompensa dos mortos é tripla. Para uns é a glória do Céu (Paraíso
vigilância da mulher, salta pela Janela e vai ser o primeiro a tomar
celeste), para outros são ou as penas eternas do Inferno ou as penas tem-
cruz2~. Cruza~a, indulgência e Purgatório, evocação do sistema trip porárias do Purgatório. Em cinquenta e cinco exempla, vinte e cinco são
do alem, também aqui se apresenta um modelo onde o Purgatório des
dedicados ao Inferno, dezasseis ao Purgatório e catorze ao Paraíso. Por
penha um papel intermédio cada vez mais importante.
esta simples contagem se vê que, apesar de Cesário ser um espírito liberal
e misericordioso e a «infernizaçâo» do Purgatório não ter atingido a in-
Dois grandes divulgadores do Purgatório tensidade a que chegará mais tarde no mesmo século, o Inferno continua
u ser o lugar de onde se extraem mais lições. Causar medo constitui uma
É entre os religiosos das ordens e no contacto ainda mais estreito co preocupação, se não primeira pelo menos essencial'". Entre Inferno e
os meios urbanos que devemos procurar os grandes divulgadores do Purw Paraíso, porém, o Purgatório conquistou para si um lugar praticamente
gatório por meio da prédica e dos exempla. E eis dois deles, eminen igual.
entre todos os ou!r~s: São bem diferentes de Jacques de Vitry e o cOQ, Mas o Purgatório não esperou pelo último destaque do Dialogus
traste entre eles dOISe Igualmente grande. São dois monges, um cistercien •• miraculorum para aparecer. Andrée Duby citou oito «exempla do Purga-
e o outro dominicano, e viveram nos dois primeiros terços do século XIQ tório», entre os quais alguns importantes para a doutrina do Purgatório
mas ~m morreu em 1240 e o outro vinte anos depois, em 1261: um • visto por Cesário ". Na verdade, se o Purgatório faz daí em diante parte
alemao e o seu ponto de referência geográfico e cultural é Colónia, cOe do último capítulo das súmulas cristãs, o que trata dos «fins últimos», dos
quanto o outro é francês e a sua experiência vai da formatura universi« novissima, encontra-se também no horizonte de cada etapa da vida espi-
tária em Paris até à sua actividade como inquisidor num grande círculo ritual.
ao redor do Convento dos Pregadores de Lyon. Porém, ambos escrevem Apresentarei quatro exempla importantes dos primeiros livros antes
obras para uso directo ou indirecto dos pregadores e ambos rechearam di de tratar do bloco de exempla do Purgatório do último «destaque»,
exempla os seus tratados a ponto de eles terem sido (erradamente) consi- No primeiro capítulo que trata da conversão, Cesário de Heisterbach
derados compilações de exempla. Um e outro dão sobretudo uma grande conta a história de um estudante pouco dotado que, para ter êxito nos
importância ao Purgatório tanto nos exempla como na construção teórica estudos, aceita, a conselho do diabo, recorrer à magia. Segurando na mão
em que se Inserem. Com eles surge nitidamente o além triplo Inferno um talismã que Santanás lhe deu, brilha nos exames. Mas fica doente e
Purgatório e Paraíso, num equilíbrio relativo que culminará co~ a Div~ em artigo de morte confessa-se a um padre que o faz deitar fora o talismã.
na Comédia. Morre e a sua alma é transportada para um vale horrível onde espíritos
com mãos de unhas compridas e afiadas brincam com ela como se fosse
uma bola, e ao brincarem ferem-na gravemente. Deus tem piedade dele e
1. O cisterciense Cesário de Heisterbach ordena aos demónios que deixem de torturar aquela alma. Esta reintegra
o corpo do estudante que volta à vida. Assustado com o que viu e expe-
Em forma de diálogo que lembra Gregório, o Grande o cisterciense rimentou, converte-se e faz-se monge cisterciense, vindo a ser abade de
Ce.sário de Heisterbach elaborou entre 1219 e 1223 u~ Diálogo dOI Morimond. Trava-se então um diálogo entre o noviço e o monge, ou
MIlagres, na verdade uma recolha de historietas em que assistimos 4 seja, Cesário. O noviço pergunta se o lugar de tormentos do estudante
tr~nsformação do relato tradicional do milagre em exemplum, conto era o Inferno ou o Purgatório. Cesário responde que, se o vale das penas
27
e?Ificante. ._ Mas esta r;c~lha tem ~a orientação que é uma peregrina- pertencesse ao Inferno, isso significaria que a sua confissão não fora
çao do cnstão aos fins últimos, ao alem. As doze etapas desta peregrina- acompanhada de contrição e verdade é que ele consentiria em ficar
à

354 355
com a pedra mágica mas recusara render homenagens ao demónio. N ou esses sessentas dias de doença o purgaram dos seus pecados como
entanto, o que impede Cesário de falar explicitamente do Purgatório !Ie fossem sessenta anos de Purgatório, ou a maneira como ele suportou
respeito deste abade de Morimond é o facto de não haver anjos na sua o sofrimento durante sessenta dias conseguiu para ele um mérito de ses-
visão mas sim demónios. Ora o mestre de Cesário nas escolas de Colónia.. senta anos33. Cesário interpreta da maneira activa, valorizadora e não
Rudolfo, ensinara-lhe que os demónios nunca tocavam numa alma eleita meramente negativa, a acção dos méritos cá de b~ixo do mundo. Como
e que eram os anjos bons que a levavam para os lugares do Purgatório,' no caso anterior, Cesário privilegia a vontade actrva do homem de pre-
«se ela for digna do Purgatório» - expressão que indica que o Purgatório ferência às virtudes passivas. A •

é promessa de Paraíso, esperança, concessão da justiça misericordiosa d. A história do monge Cristiano de Hemmenrode pretende por em eVI-
Deus". . dência o poder da Virgem Maria. Este Cristiano, também ele ~astante
No capítulo da contrição, o segundo, Cesário conta a história de um ingénuo, ainda antes de ser monge ~ enquanto ~studante e depOls. padre
jovem monge quê deixou o convento, fez-se salteador de estrada e foi resiste a várias tentações e é favorecido com visoes por Santa Mana Ma-
mortalmente ferido durante o cerco a um castelo. Antes de morrer con- dalena e sobretudo pela Virgem Maria. Já monge em Hemmenrode, u.m
fessa-se e os seus pecados parecem tão grandes ao confessor que este não dia em que sonhava com as penas do Purgatório tem um~ vi~ão: a Vir-
encontra penitência para lhe dar. O moribundo sugere mil anos de Pur- gem, rodeada por outras virgens e acompanhada do fale.cldo Impera~or
gatório ao fim dos quais espera a misericórdia divina; e antes de expirar Frederico Barba Ruiva, preside ao seu funeral. Leva consigo para os ceus
pede ao padre que leve a um certo bispo uma carta em que lhe roga que Il alma do defunto que multidões de demónios reclamam em vão, sopran-
reze por ele. Morre e é levado para o Purgatório. O bispo, que nunca I do sobre ela colunas de fogo. Anjos conduzem a alma até um grande fogo
deixara de amar aquele ex-monge apesar da sua apostasia, reza e manda e comunicam-lhe que depois da morte ela voltará àquele lugar e ~erá de
rezar por ele durante um ano todo o clero da sua diocese. Passado um passar através daquele fogo. Regressado à ~i~a, Cristiano. continua a
ano o morto aparece-lhe «lívido, descamado, magro, vestido de negro», levar no mosteiro a sua vida santa cheia de visoes e de humildade. Esta
Agradece todavia ao bispo porque esse ano de sufrágios lhe retirara mil humildade explica-se pelo facto de não só ter perdi?o a virgin~ade na sua
anos de Purgatório e declara que mais um ano de ajuda o libertaria to- juventude mas também por ter dois filhos nat~rals, am?os mgressad.o.s,
talmente. O bispo e o seu clero repetem os esforços. Ao cabo do segundo aliás, na ordem cisterciense. Tem portanto maior necessidade do auxilio
ano, o morto reaparece ao bispo «de cogula branca e com ar sereno». da Virgem Maria. Esta atende-o tanto que n.o moment~ da ~ua ~orte a
quer dizer com o hábito cisterciense. Anuncia a sua partida para o Paraí- Virgem e o Menino Jesus aparecem-lhe vestindo o habito Clsterclen~e. e
so e agradece ao bispo, pois aqueles dois anos lhe haviam sido contados quando ele morre recebem-no no Paraíso. A visão do fogo do Purgatono
por dois mil anos. O noviço fica maravilhado com o poder da contrição • se ven 'fiICOUpor tan t o 34 .
nao .
do morto e com o poder das preces que o libertaram. Cesário sublinha No caso dos dois Cristianos, Cesário quis mostrar que o pior nunca
que a contrição é mais eficaz do ~ue os sufrágios que podem diminuir a está assegurado e que o primeiro Cristiano sou~ escapar ao Infem~ ~ara
pena mas não aumentar a glória" . ir para o Purgatório, enquanto ao segundo foi poupado o Purgatono e
A história de um jovem monge cisterciense de Heisterbach que se en- dado o Inferno. .
contra no último livro do Dialogus miraculorum, Cristiano, contém igual- Os exemplo do décimo segundo e último «destaque» respeítantes a?
mente muitos ensinamentos sobre a contabilidade do Purgatório segundo Purgatório formam, numa primeira abordagem, trê~ g~pos, segundo cn-
Cesário. Trata-se de um monge muito piedoso, impregnado durante a térios em que se misturam considerações novas e. l~elas tradlcl0n~ls. ~
vida de um perfume aromático semelhante ao odor de santidade, mas que está em primeiro lugar no espírito da é~~a e ligar o novo alem .as
fraco de espírito, favorecido com visões da Virgem, dos anjos, do pró- categorias de pecados. De acordo com a tradição .esta, em ~ompensaça?,
prio Jesus, mas atormentado por provações de tentação, como perder o a preocupação de fornecer pormenores sobre os dl.feren~es ~~os de sufrá-
dom das lágrimas que lhe é restituído por um beijo num crucifixo. A sua gios. Enfim, caracteristico do século XIII é o desejo de ínsisnr na dureza
última provação é uma doença terrível. Aparece-lhe Santa Agata que o das penas do Purgatório, evidente até num espinto pleno de mansuetude
exorta a suportar com resignação aquela doença, pois sessenta dias de como o de Cesário. . .
sofrimento ser-lhe-ão contados por sessenta anos. Sessenta dias após esta O primeiro grupo (oito exemplo, dos números 24 a ~Al) ~lZ, 'pOlS, .res-
aparição, no dia da festa de Santa Ágata, morre. Segundo Cesário, os peito à avareza (cupidez), à luxúria, à magia, à desobediência, a obstina-
propósitos de Santa Agata podem ser interpretados de duas maneiras: ção perversa, à superficialidade e à preguiça. ..

356 357
o usurário de Liege: Purgatório e capitalismo "te anos terrenos indicados pelas vestes do morto, sucessivamente negras
• brancas. A evocação da panóplia dos sufrágios: esmolas, jejuns, preces,
o exemplum que abre a série parece-me de particular importância. vlllilias, onde faltam as missas mas que uma forma extrema de comunhão
a história do usurário de Liêge: do" santos completa e resume: a penitência de substituição do vivo sob a
rurma de erernitismo penitencial no meio urbano: a vida de reclusão. A
o MONGE: Um usurário de Liêge morreu na nossa época. O bispo precisão, a nível do vocabulário, sobre as relações entre Inferno e Purga-
dou expulsá-lo do cemitério. A mulher dele foi junto da cúria apostólica lório, a passagem do vocabulário infernal das Escrituras para o vocabu-
implorar que ele fosse enterrado em Terra Santa. O Papa recusou. Ela ar "rio do novo Purgatório que aspira a ele, Inferno, e conserva -
mentou então a favor do esposo: «Disseram-me, Senhor, que marido e m lerllPorariamente - a sua dureza. .
são apenas um e que, segundo o apóstolo, o homem infiel pode ser salvo Mas o mais espantoso não é isto. A surpresa deste texto (que o foi
esposa fiel. Aquilo que o meu marido se esqueceu de fazer, eu, que sou
provavelmente também para os ouvintes e os leitores deste exemplum) é
parte do seu corpo, fá-lo-ei em seu lugar. Estou pronta a entrar em e1au
u facto de o herói, o beneficiário desta história, ser um usurário. Num
por ele e a resgatar a Deus os seus pecados» Cedendo aos rogos dos card
o Papa mandou o morto para o cemitério. A mulher passou a viver ao lado momento em que a Igreja redobra esforços contra a usura severamente
seu túmulo, fechou-se como reclusa e esforçou-se dia e noite por aplacar eondenada no segundo (1139), terceiro (1179)37 e quarto (1215) concílios
para salvação da sua alma, por meio de esmolas, jejuns, orações e vigílias. de Latrão, no segundo concílio de Lyon (1274) e ainda no concílio de
cabo de sete anos apareceu-lhe o marido vestido de negro e agradeceu- Viena (1311), no momento em que se desenvolve entre a cristandade
«Deus te pague, pois graças às tuas provações fui retirado das profun uma campanha contra a usura, particularmente intensa no começo do
do Inferno e das penas mais terríveis. Se me prestares tais serviços duran IlÓculoXIII na Itália do Norte e em Toulouse, e em que a avareza está
mais sete anos, ficarei completamente livre.» Ela assim fez. Ele apareceu-
de novo passados sete anos, mas desta vez vestido de branco e com um ar fe
.m vias de roubar ao orgulho o primeiro lugar entre os pecados
mortais'", quando os fiéis têm sempre debaixo dos olhos esse tema favo-
«Graças a Deus e a ti fui hoje libertado,» rito da imaginária romana - o usurário, presa certa do Inferno, puxado
O NOVIÇO: .Como pode ele dizer-se liberto do Inferno, lugar onde pura a geena pela bolsa recheada que lhe pende do pescoço, ei-lo, o usu-
existe resgate possível?
ririo, salvo por uma hipotética contrição final e pela dedicação da espo-
O MONGE: As profundezas do Inferno significam a dureza do Purgat6i
111. apesar da resistência da Igreja representada pelo topo da sua
rio. Assim quando a Igreja reza pelos defuntos dizendo: «Senhor Jesus Criltof
Rei de Glória, liberta as almas de todos os fiéis defuntos da mão do Inferno. hierarquia.
das profundezas do abismo, etc.», não está a rezar pelos condenados, mil Demonstrei noutro livr039 como, na linha deste exemplum, no decurso
pelos que podem ser salvos. A mão do Inferno, as profundezas do abismo. do século XllI e em determinadas condições, o usurário vai ser arrancado
querem dizer aqui a dureza do Purgatório. Quanto ao nosso usurário, nlo 10 Inferno e salvo por e através do Purgatório. Avancei mesmo a opinião
teria ficado livre das suas penas se não tivesse manifestado uma contriçlt provocadora de que o Purgatório, ao permitir a salvação do usurário,
fmaes. contribuíra para o aparecimento do capitalismo. Aqui desejaria sobretu-
do realçar o papel do Purgatório no domínio socioprofissional. Uma das
Notam-se os pontos fortes deste texto. A ênfase posta no valor dOI !'unções do Purgatório foi, com efeito, subtrair ao Inferno aquelas cate-
laços conjugais numa altura em que a Igreja procura impor um modelO .orjas de pecadores que, pela natureza e gravidade da sua culpa, ou pela
matrimonial de monogamia baseada na igualdade dos dois cônjuges, fi hostilidade tradicional à sua profissão não tinham anteriormente hipótese
a um modelo aristocrático masculino todo orientado para a salvaguarq de lhe escapar.
do património e pouco respeitador do carácter único e indissolúvel dOi Por um lado, há pecados gravíssimos, designadamente no meio mo-
laços conjugais'". No sistema dos sufrágios pelas almas do Purgatório slQ nástico, como a apostasia ou a luxúria que podem beneficiar, pelo preço
no geral as estruturas do parentesco aristocrático que actuam, e nelas Q' de uma permanência mais ou menos longa no Purgatório, da salvação
papel da mulher é secundário. Aqui, pelo contrário, no meio urbano ti flnal, quando o seu caso era até então desesperado. Têm de facto a pos-
burguês, o laço conjugal passa para primeiro plano, no além como 01. sibilidade, principalmente em Cister, de serem favorecidos pela intensida-
em baixo. O sistema de proporcionalidade temporal entre o tempo dOI' de do culto mariano em pleno desenvolvimento - e que intercessor mais
sufrágios terrenos e o tempo das penas do Purgatório e a ocorrência d•• eficaz do que a Virgem em casos aparentemente desesperados? - e pela
aparições reguladas pela divisão dessa relação de tempo, dois períodos dt solídez dos laços comunitários da ordem. Mas, por outro lado, as cate-

358 359
gorias socioprofissionais desprezadas e condenadas, os que derra mas penas que sofria no Purgatório. Esta mulher que parecia boa e ho-
sangue, os manipuladores de dinheiro, os maculados de impureza nesta entregara-se a práticas de magia para conservar o amor do marido.
ter esperança, se cá em baixo no mundo souberam agradar suficientem O noviço, sem pensar na faceta supersticiosa deste comportamento, fica
te (também com os seus tesouros de iniquidades?) aos seus próximos. impressionado com a severidade de Deus para com pecados que ele con-
como a Virgem, aqui é a esposa que pode operar maravilhas e a legisl sidera pecadilhos. Atenção, parece dizer o texto, o nosso ponto de vista
bem como a jurisprudência anti-usurárias do século XIII interessam não é forçosamente o de Deus42. Cesário reforça. Deus é muito rigoroso,
devotadamente pelas viúvas de usurários. mesmo quezilento. Quando os monges não obedecem a todas as prescri-
ções dos superiores e lhes opõem uma resistência obstinada, mesmo que
Me trate de e coi
COIsaspequenas, D eus, esse, nao
- deieixa passar na d a43 .
o Purgatório é a esperança Depois da negligência, eis o seu oposto, a teimosia, punida no Purga-
tório. Uma teimosia que é, também ela, uma forma de desobediência. Um
Um segundo exemplum baseado na cupidez faz com que a uma fi mestre-escola que se fizera monte no mosteiro de Pruilly mostrara-se de
cisterciense apareça um superior recentemente falecido, com um as um rigor que o seu abade tinha em vão tentado moderar. Morreu e, uma
lívido e débil, o hábito coçado, o qual lhe revela que vai finalmente fi noite, o abade que se encontrava na Igreja para as laudes viu surgir no
liberto do Purgatório quando de uma solenidade da Virgem Maria, coro três personagens semelhantes a velas a arder. Reconheceu-as: no
ças aos sufrágios de um dos seus monges. Pasmo da freira: toda a gente meio estava o mestre-escola tendo ao lado dois conversos recentemente
julgava tão «santo»! Causa da sua passagem pelo Purgatório: levado falecidos. O abade disse ao monge defunto: «Como vais? - Bem», respon-
avareza, aumentou para além das conveniências os bens do mostei de o outro. O abade, que se lembrava da sua obstinação, admira-se: «Não
Aqui actua um sistema triplo de relações intercistercienses, um su sofres nada por causa da tua desobediência?» A aparição confessa: «Sim,
rior, um monge e uma freira. As mulheres têm um papel importante sofro muitos e enormes tormentos. Mas como a minha intenção era boa,
funcionamento do Purgatório, particularmente em Cister e muito el o Senhor não me condenou.» Quanto aos conversos, o abade admira-se
cialmente em Cesário de Heisterbach'". por um, que foi apóstata, brilhar mais do que o outro a quem nada havia
O pecado da freira de Sion en Frise é muito grave. Foi seduzida a censurar, e o monge explica-lhe que, depois do seu pecado, o primeiro
um prelado e morreu ao dar à luz. Antes de morrer, confiou-se à I arrependeu-se e ultrapassou em fervor o segundo, que não passava de um
família carnal: o pai, a mãe, duas irmãs casadas e um primo direi pusilânime. Aqui intervém um pormenor interessante: para deixar um
Mas estes, sem esperança de poderem salvá-Ia, tanto o seu caso lhes testemunho irrefutável da sua aparição, uma prova da existência do Pur-
rece evidente, não se preocupam com sufrágios. Assim, ela vai solici gatório de onde se pode regressar por um instante, o monge defunto dá
um abade cisterciense que fica admirado com a sua aparição porque um tal pontapé no estrado onde se cantam os salmos que o deixa racha-
a conhece. Cheia de vergonha, pede timidamente «ao menos um salmo do. Assim nasce uma «relíquia» do Purgatório. São relíquias destas, da-
algumas missas» sem se atrever a revelar-lhe a sua culpa nem a sua id tando as mais antigas do fim do século XIII e as mais recentes de meados
tidade completa. Por fim ele encontra uma tia da morta, também o do nosso século xx, que estão reunidas no pequeno Museu do Purgatório
freira cisterciense, que lhe explica tudo. Alertam os pais que reencon em Roma. Que lição tirar deste exemplum? Cesário e o noviço estão de
a esperança, bem como a família carnal e todos os monges e freiras acordo ao ver confirmado o sistema de valores de S. Bento que reprova
província. A história não diz como termina esta mobilização, mas a tanto os que se obstinam no rigor como os que são demasiado «super-
pida salvação da pecadora não oferece dúvidas. A Virgem não interv ficiais»44.
directamente neste salvamento, mas o nome próprio da heroína - úni É uma exaltação da moderação beneditina confirmada pelo Purgató-
indicação que ela ousa confiar ao abade - é Maria. Este breve relato, fei rio. A alusão à superficialidade é uma transição hábil para falar no caso
com muita delicadeza e verdade psicológica, realça a função essencial do sacristão João, do mosteiro de ViIlers, homem religioso mas que foi
Purgatório, nesse começo do século XIII. OS pais da infeliz desesperar superficial nas palavras e nos actos (in verbis et signis}, Condenado ao
e depois reencontraram a esperança (de animae ejus salute desesperantes., Purgatório, aparece ao seu abade que fica aterrorizado'".
spe concepta). O Purgatório é a esperança": : Por fim, nesta revista dos pecados monásticos punidos no Purgatório,
Outro exemplum apresenta um marido orando pela esposa defun eis castigada a preguiça. Um abade de Hemmenrode observava em tudo a
que aparecera à sua cunhada, uma reclusa, para a informar das duril" disciplina da ordem, mas era renitente para trabalhar com as mãos jun-

360 361
tamente com os irmãos. Antes de morrer, prometeu a um monge a q Assim, uma pequena freira de nove anos do mosteiro de Mont-Saint-
amava .entre todos os outros, aparecer-lhe trinda dias depois da mo .Bauveur, próximo de Aix-Ia-Chapelle~ irmã Gertrudes, aparece a .~a
para o informar do seu estado. Na data prevista manifesta-se brilhan eompanheira do convento da mesma Idade, com quem tinha o hábito
da cintura pala cima, mas todo negro para baixo. Reclama ~rações de tagarelar durante o oficio. Condenada a cumprir o seu .P.urgat.óri?
~o.n§;s e aparece de no,:o para an~nciar a sua libertação do Pur nos locais onde pecara, teve de voltar quatro vezes para participar, mV1-
t<:>no . O noviço pede entao para ser mformado da hierarquia dos suf Ilvel excepto para a amiga, no oficio do convento. O noviço vê que esta
g10S. As orações são mais eficazes para os mortos do que as esmo pena foi pequena ao lado de algumas penas terrenas 51 . Por filID, C esano ..
Alguns exempla vão dar-lhe a resposta.
propõe um exemplum que mostra o que I?oderíamos ~hamar de grau zero
Eis primeiro o. caso d~ u~ morto que aparece a um amigo e lhe diz q . do Purgatório. Uma criança pequena muito pura, Guilherme, que entrara
a escala e a segwnt.e: pnmeiro as orações, os sufrágios a bem dizer um na ordem morreu ao fim de um ano de provações. Aparecendo a um
tanto mornos, depois as esmolas e sobretudo as missas. Na missa o Cri ••• , monge, disse-lhe estar em sofrimento. Este fica atemorizado: «Se tu, ino-
ora, e o seu corpo e o seu sangue são as esmolas?".
Um nobre adole~nte que se fez converso em Clairvaux guardava
reb~~o de ~a. quinta. Um primo-irmão defunto aparece-lhe e pede
'li.
cente, és castigado, o que me acontecerá a mim, pobre pecador? - Sosse-
responde o menino morto, o que eu estou a sofrer é apenas estar
privado da visão de Deus.» Algumas orações durante ~te dias b~s~ram
a~xilio de tres missas para se libertar de enormes tormentos. Ditas as t para que ele reaparecesse, protegido pelo manto da Virgem Mana, indo
missas re~pareceu para a~~dece~ e afirmou que não deviam admirar ••• ' para o Paraíso.
com as Virtudes da eucanstia, pois uma breve absolvição podia ser s Cesário apresenta aqui um Purgatório próximo do limbo das crianças
ciente para libertar certas almas'".
t faz notar que o caso do pequeno Guilherme não é excepcional: um
E então 9ue se vê aparecer o monge Cristiano de Heisterbach de q . teólogo afirmou-lhe que um certo número de justos, que apenas tê~. a
se falou atras, que morrera na ausência do abade. Quando este voltou til piar pecados veniais insignificantes, têm como castigo no Purgatono
~assados set~ dias bastou-lhe dizer «Que descanse em paz» para que Cri •• lerem privados durante um certo tempo d a visao isão dee D eus 52 .
bano fosse libertado do Purgatórío'".
Aqui Cesário atinge um ponto extremo da dout~na do. Purgató~~.
Mas é n~ssário q~e. a intercessão - por muito modesta que seja •. Não só abre ao máximo o leque das penas, mas tambem articula explici-
venha de um íntermediáno eficaz. Uma beneditina do mosteiro de Rin- tumente a reflexão teológica sobre o Purgatório com uma outra preocu-
dorp, perto de Bona, era devota de S. João Evangelista. Depois de morrer. pução que, sem ser mencionada, deve estar-lhe muitas ~ezes ~ga~a: a
apareceu a um~ freira que ~ra também sua irmã carnal e rezava por ela, reflexão sobre a visão beatifica. Para dar todas as suas dimensões a re-
para lhe anunciar a sua salda do Purgatório. Mas revela-lhe que o seu flexão teológica da Idade Média sobre o tempo intermédio, o tempo que
mtercessor não f?ra S._João mas ~. Bento, que se limitara a ajoelhar separa o momento da morte do da ressurreição e do julgamento geral, é
perante Deus em mtenção dela. ASSIm se recorda aos monges e às freiru necessário ter-se em consideração o facto de no Purgatório, ameaçado
a vantagem que há em honrar os santos fundadores da sua ordem'? pelo lado de baixo pelo Inferno a que as almas purgadas conseguiram
. .O~últimos exempla de Cesário sobre o Purgatório têm por objective escapar, estas serem atraídas para o alto por esse apelo do Par~so que,
insistír na dureza das penas do Purgatório. O noviço perguntou a Cesário em casos limite, pode reduzir-se à falta única mas essencial da Visão bea-
se era verdade ~ue a .m~is insignificante pena do Purgatório era superior a tifica. É precisamente entre os grandes teólogos do século XIII que a dou-
q~_alquer pena .1magmavel deste mundo. Cesário responde dando a opí- trina da visão beatífica dos justos, imediatamente após o julgamento
nrao de um teologo que consultara sobre o assunto. «Não é verdade, particular, toma a sua forma defínitiva'". O Purgatório, nestes .casos li-
respondeu este, a menos que se fale do mesmo género de pena: por mites superiores, pode ser em definitivo um testemunho da realidade de
exempl~, o fogo do Purgatório é mais forte do que qualquer fogo terres- uma visão beatifica anterior ao Julgamento Final.
tre, o fno mais asp~ro do qu~ qualquer frio cá em baixo, etc.». Mas pode Este passar revista ao Purgatório de Cesário termina lembrando que
haver no Purgatono penas inferiores a certas penas terrestres. Mesmo , algumas visões mostram que o Purgatório pode estar situado em diversos
reconhece~do a dureza das penas do Purgatório, Cesário, espírito mode- . lugares deste mundo. Gregório, o Grande, deu disto exemplos. Mas
~a~o, desejoso ~e mostrar toda a maleabilidade do sistema do Purgatório, o mais convincente é o do Purgatório de S. Patrick. Afirma ele: «Que
insiste ?~amplitude das penas do Purgatório, que oferece o maior leque aquele que duvida do Purgatório vá à Irlanda e entre no Purgatório de
de puniçoes.
S. Patrick, e não duvidará mais das penas purgatórias ".»

362 363
.Sant055. Étienne de Bourbon deixa-se levar por um espírito escolástico
Para ~I~m de to~os os aspectos que sublinhei, compreende-se o que que o faz multiplicar divisões e subdivisões, por vezes muito artificialmen-
p~ra Cesano de Heisterbach, testemunha e actor privilegiado da instal te. O Purgatório constitui o título ou capítulo cinco do primeiro dom do
çao d~ lugar ~o Purgatório nas crenças dos cristãos da Idade Média, Espírito-Santo, o dom do temor (De dono timoris f",
essencial do ~lsteI?a do Purgatório. E antes de mais o culminar de Este primeiro livro do dom do temor compreende dez títulos: 1) das
p~~cesso ~mtenclal onde a contrição final, como vimos no caso do USQe sete espécies de temor; 2) dos efeitos do temor do Senhor; 3) que é preciso
rano de Llege: p~r exemplo: ~ condição necessária e suficiente, mas cuj temer a Deus; 4) do Inferno; 5) que é preciso temer o Purgatório futuro;
etap~s ~normals sao a contnçao, a confissão e a penitência. É a seguir I 6) do temor do Julgamento Final; 7) do temor da morte; 8) do temor do
definição de um lu~ar. e. de ~a pena ainda não completamente estabílí- pecado; 9) que se deve temer o perigo presente; 10) da qualidade dos
zado~ mas ~ue se individualizam cada vez mais em relação à terra, eJI inimigos do género humano (os demónios).
relaçao ao. h~bo~ em relação ao Paraíso, mas sobretudo em relação ao Logo de início Étienne de Bourbon introduz-nos num cristianismo de
Inferno. Dlstmgu,lf.bem o Purgatório do Inferno é uma preocupação fun- medo, onde o Purgatório é encaixado num contexto de temor escatológi-
damental de Cesano. co, a par e muito próximo do Inferno.
Há t~mbém um exercício de contas por vezes um pouco simplista ma.
que se s~tu:a entre os hábitos monásticos de contabilidade simbólica e
nov~~ h~bltos de uma contabilidade prática que se estende do comércio'
o. Trata-se, pois, do Purgatório do quinto título. Este título é, por sua
vez, dividido por Étienne de Bourbon, mas de maneira artificial, em sete
capítulos, porque o dominicano leonês organiza as suas exposições segun-
pemtencia. do números simbólicos (sete, dez, doze, etc.). Estes sete capítulos são
Acima ~e t,:,do Cesá?o insiste na solidariedade entre os vivos e 01 dedicados ao Purgatório presente, ao Purgatório futuro, à natureza dos
mort?s, solidariedade cujo modelo é para ele a família cisterciense onde pecadores e das culpas que têm a ver com o Purgatório, às sete razões que
se reun.em o pa~e?tesco carnal do meio nobre e o parentesco artificial da devemos ter para temer o Purgatório repartidas por três capítulos e, fi-
co~um~ade rehgIosll:' m~s onde assomam também novas solídariedades nalmente, aos doze tipos de sufrágios que podem ajudar as almas do
conjugais o,:, pro~sslOnals, das quais o caso do usurário de Líêge é O
Purgatório.
exemplo mais notavel. Regressando a uma concepção tradicional geralmente abandonada na
sua época, Étienne de Bourbon pensa que a vida terrena pode ser consi-
derada um primeiro purgatório onde se pode ser purgado de doze manei-
2. O dominicano Étienne de Bourbon e a «infemizacão» do Purgatório ras cuja enumeração pouparei ao leitor. Não há aqui qualquer
argumentação mas apenas autoridades sobre os Testamentos, umas após
Entre o Diáologo dos Milagres do cisterciense Cesário de Heisterbach outras. O segundo capítulo pretende provar a existência de um purgatório
(cerca. de .1~20) e ? Tratado das Prédicas (Tractatus de diversis matertis das almas despojadas dos corpos no futuro. As provas são autoridades
praedicabilibus) feito no período que vai de 1250 a 1261 data e (Mateus, XII, Gregório, o Grande, Diálogos IV, Paulo, I Coríntios, III), e
t dei . r ' m que a
sua mor e o elXOU inacabado, pelo dominicano Etienne de Bourbon a um conjunto de textos do Velho Testamento que falam do fogo e de
atmosfera do Pur~atório muda. Já não é de esperança mas de medo. ' provação no futuro. Uma vez que depois da morte deve haver remissão
O autor, n~scld<:>em Belleville-sur-Saône cerca de 1195, fez os seus dos pecados, tem de existir um lugar apropriado para essa última purga-
estudos em Saint-Vincent de Mâcon e depois na Universidade de Paris ção que não pode ser nem o Inferno nem o Paraíso. Étienne condena os
antes de en~r~r para a Ordem dos Pregadores. Saiu muitas vezes do con- hereges - sobretudo os valdenses - «que dizem que não há pena purga-
vento dominicano de Lyon e, como pregador e inquisidor, andou por tória no futuro» e negam os sufrágios pelos mortos. Num daqueles desli-
~uvergn~, Le Forez, Borgonha e os Alpes. No fim da vida entregou-se zes que lhe são habituais, Étienne evoca então as oito espécies de pena de
a re~ac~o d~ ~m grande tratado para uso dos pregadores onde, também que trata o livro das Leis, sem dizer em que é que elas podem ter a ver
ele, m~n~ vanos ~~xe"!pla.Mas em vez de os colher principalmente na com o Purgatório, e declara que os que negam o Purgatório pecam contra
sua propna exp.en~~cla como fizera Cesário, em quem a maioria dos Deus e contra todos os sacramentos.
exempla er.am hlsto~cas recentes que ouvira contar, Étienne foi buscá- Quem é castigado no Purgatório? No começo do terceiro capítulo
-los ta~to as fontes hvrescas como à tradição contemporânea. Além dis- Étienne define três categorias de pecadores destinados ao Purgatório:
to, ~elxou menos autonomia aos seus relatos, subordinando-os mais os que «se converteram» tarde de mais, os que ao morrerem só têm pe-
estntamente a um plano modelado sobre os sete dons do Espírito-
365
364
cados veniais e aqueles que não fizeram penitência suficiente cá em b ' Injustamente adquiridos, a intercessão dos santos, a fé, os sufrágios ge-
no mundo. Um desenvolvimento breve resume-se praticamente a um rais da Igreja baseados na comunhão dos santos. Três preocupações pa-
pido come?tário da segunda epístola de Paulo aos Coríntios, IIl, 10-15 recem animar Étienne: insistir no papel dos próximos (aqueles que mais
Os capitulos quatro, cinco e seis são consagrados às razões que podem pelas almas do Purgatório são os parentes do morto, os «seus» -
homem tem para temer a pena do Purgatório e que são sete: a dure sui - e os seus amigos amiciy; sublinhar o valor dos sufrágios executados
(acerbitas), a diversidade (diversitas), a duração (diuturnitas ), a este ' pelos bons, os justos e, por fim, recordar o papel da Igreja na distribuição
dade (sterilitas), a qualidade dos tormentos (tormentorum quaiitas) e controlo 'destes sufrágios.
pequeno número de auxiliares (subveniencium paucitas ) e a nocivida Está fora de questão mencionar aqui os trinta e nove «exempla do
(dampnositas).
Purgatório» de Étienne de Bourbon, tanto mais que muitos deles são
Estas características negativas da pena do Purgatório são ilustra-. tirados de fontes antigas que vimos ou citámos, Gregório, o Grande,
das principalmente com a ajuda de exempla. Assim, o Purgatório .' Rede, Pedro, o Venerável, Jacques de Vitry, etc.
S. Patrick com a descrição das suas torturas tirada do Apocalipse dt' Citarei três deles de entre aqueles que Étienne afirma ter recolhido da
Pa~lo é.longamente evocado para mostrar ao mesmo tempo a dureza ~'. boca de outros, e que introduz com a palavra audivi «ouvi dizer».
a diverslda,d~ das penas. A duração refere-se à sensação que as almas têJD O primeiro caso tem todavia probabilidades de ser de origem livresca,
no Purgatório de que no tempo passa muito lentamente, por causa dot pois encontra-se nos Otia imperialia de Gervásio de Tilbury (cerca de
sof?ID~ntos que lá suportam. A equivalência é essencialmente uma equi~ 1210),a menos que o seu informador o tenha lido em Gervásio. ~m todo
valência de resgate entre o mundo cá de baixo e o além. Etienne avan9a o caso, é interessante comparar a versão de Gervásio com a de Etienne.
com alguma reserva (forte. talvez, diz ele) que se pode resgatar num dia Recordo a versão de Gervásio de Tilbury:
um ano de Purgatório. A esterilidade decorre da impossibilidade de ad-
quirir méritos depois da morte, a nocividade vem da carência da visão de Há na SicíJia uma montanha, o Etna, ardendo com um fogo sulfuroso,
I?eus. Ao contrário dos que, como Cesário de Heisterbach, parecem con- perto da cidade de Catânia ..., as pessoas do povo chamam a esta montanha
siderar que a P?~açã? .de Deus é a pena mais pequena das que se supor- Mondjibel e os habitantes da região contam que, pelas vertentes desertas,
tam no Purgatono, Etienne lembra que estar privado nem que seja por apareceu na nossa época o grande Artur. Aconteceu um dia que um palafre-
um só dia da visão de Deus não é pequeno prejuízo. E chega ao exagero: . neiro do bispo de Catânia ficou cheio de preguiça, por ter comido de mais. O
os santos prefeririam, se fosse necessário, estar no Inferno mas vendo cavalo que ele escovava escapou-se e desapareceu. O palafreneiro procurou-o
Deus a estar no Paraíso sem o ver. Nestas páginas bastante obscurantis- em vão pelas escarpas e precipícios da montanha. Com crescente inquietação,
pôs-se a explorar as cavernas escuras do monte. Um carreiro muito estreito
tas esta tirada sobre a visão beatífica introduz como que um raio de sol.
mas plano conduziu-o a um prado muito grande, encantador e cheio de todas
Sobre a qualidade dos tormentos, Etienne remete para o que diz du as delícias.
penas do Inferno, o que é significativo. O pequeno número de auxiliarei Lá, num palácio construído por encanto, encontrou Artur deitado num
tem a ver com o pessimismo de Étienne. Segundo ele, «os vivos esquecem leito real. O rei, ao saber o motivo da sua vinda, mandou entregar o cavalo
depressa os mortos» e estes, no Inferno, gritam como lobo ao rapaz para que este o restituisse ao bispo. E contou-lhe como, ferido ou-
«Ten~e piedade de mim, tende piedade de mim, ao menos vós, amigo. trora numa batalha contra o seu sobrinho Modred e o duque dos Saxões,
meus, pois a mao do Senhor tocou-me.» E ainda: «Os amigos de ocasião Childerico, lá jazera durante muito tempo procurando curar as suas feridas
os amigos no m~ndo são semelhantes a um cão que, enquanto o peregri- constantemente reabertas. E, segundo os indígenas que mo contaram, enviou
no esta sentado a mesa segurando um osso na mão, dá ao rabo em sinal presentes ao bispo que os mandou expor à admiração de uma multidão de
de afecto por ele, mas quando ele tem as mãos vazias já não o reconhece.» pessoas confundidas com esta história inaudita".
E é de novo ~ aproximação ao Inferno, «pois o Inferno é muito esquecido»,
. Por fim Etienn~ de Bourbon trata longamente os doze tipos de sufrá- E a de Étienne de Bourbon:
gros que podem ajudar as almas do Purgatório. Também aqui são os
Ouvi dizer a um certo irmão da Apúlia chamado João, que dizia ser da
exempla que vêm dar testemunho. A exposição do dominicano é bastan-
região onde o acontecimento se produzira, que um homem procurava um dia
te. confusa, mas po.demos elaborar assim a lista dos doze sufrágios: a o cavalo do seu patrão na montanha Etna onde se encontra, dizem, o Purga-
~ssa, a oferenda piedosa, a oração, a esmola, a penitência, a peregrina- tório, perto da cidade de Catânia. Chegou a uma cidade onde se entrava por
çao, a cruzada, a execução de legados piedosos, a restituição de bens urna pequena porta de ferro. Informou-se junto do porteiro sobre o cavalo

366 367
que procurava. Este respondeu-lhe que deveria ir à corte do seu senhor q mou-lhe que só estava ali havia pouco tempo. Ele suplicou ao anjo que o
lho entregaria ou o informaria. Rogou ao porteiro que lhe dissesse o q eonduzisse ao seu estado anterior e afirmou que, se ele o permitisse, es-
deveria fazer. O porteiro disse-lhe que se livrasse de comer de um prato q tava pronto a suportar pacientemente os seus males não só durante dois
lhe iriam oferecer. Naquela cidade ele viu uma multidão tão grande como
população da terra, de todos os géneros e de todos os oficioso Tendo atrava-
anos mas até ao Julgamento Final.
sado muitos palácios chegou a um onde viu um principe rodeado dos se O anjo consentiu e o preboste suportou ~acientemente todos os seus
ofereceram-lhe muitos pratos e ele recusou-se a provar deles. Mostraram-I males durante os dois anos complementares .
quatro leitos e disseram-lhe que um deles estava preparado para o seu patrão Eis bem claramente - se não ingenuamente - patenteadas a proporcio-
os outros três para os usurários. E este príncipe disse-lhe que fixava um dia nalidade elementar entre os dias no Purgatório e os anos na terra e a
obrigatório para o seu patrão e os três usurários, se não seriam trazidos ,: dureza da pena do Purgatório infinitamente superior a qualquer pena
força, e deu-lhe uma taça de ouro com tampa de ouro. Disseram-lhe q. cá em baixo. .
não a destapasse e que a levasse ao seu patrão como sinal, para que bebeall', Último exemplum: «Ouvi dizer, conta Etienne de Bourbon, que uma
dela. Deram-lhe o cavalo; ele regressa e desempenha-se da sua missão. AbfC1l1 criança de uma grande familia morreu com a idade de nove anos. Para se
a taça, e sai de lá uma chama ardente, lançam-na ao mar com a taça e o m~. entregar às suas brincadeiras aceitara um empréstimo com juros da famí-
inflama-se. Os outros homens, se bem que se tivessem confessado, mas só por lia do pai e da mãe (sic). Não pensou nisso no momento de morrer e, se
medo e não por verdadeiro arrependimento, no dia aprazado são levado. ' bem que se tivesse confessado, não restituiu o dinheiro.» Apareceu pouco
sobre quatro cavalos negros'". .
depois a um dos seus e disse que estava a ser castigada severamente por
não ter pago o que devia. A pessoa a quem apareceu informou-se e saldou
De Gervásio a Étienne, o Purgatório sem nome é chamado pelo seu. todas as dívidas. A criança reapareceu-lhe, anunciou que estava liberta de
nome, a cidade perdeu o seu encanto, o fogo do Purgatório anuncia-se todas as penas e tinha um ar muito feliz. Esta criança era o filho do duque
pelo fogo da taça, os leitos preparados já não são de repouso mas leitos de Borgonha, Hugues, e a pessoa a quem apareceu era a própria mãe do
de tortura, o cavalo prefigura os cavaleiros negros condutores de almas, duque, sua avó, que mo contou 61 .» E'IS esq~e~atIcamen
. te ev~cad o ~ m~-
anunciadores da morte. Como bem observou Arturo Graf, de um texto canismo da aparição das almas do Purgatono e realçada a ímportancia
para o outro a história «ínfernizou-ses-". da restituição de bens para a libertação do Purgatório. Este tomo~-se um
Uma outra história teria sido contada a Étienne de Bourbon por um instrumento de salvação e, ao mesmo tempo, um regulador da Vida eco-
irmão padre, velho e piedoso. Havia uma vez um preboste que não temia nómica cá em baixo no mundo.
a Deus nem aos homens. Deus teve piedade dele e deu-lhe uma grave O tratado de Étienne de Bourbon parece ter tido um grande êxito e os
doença. Ele gastou em medicamentos e noutros meios tudo o que pos- seus exemplo foram muitas vezes utilizados. Assim se expandiu a imagem
suía e não tirou nenhum proveito. Passados cinco anos e continuando de um Purgatório «infernizado», banalizado, objecto de cálculos simplis-
a estar doente não podia levantar-se, já não tinha nenhum meio de subo tas.
sistência e desesperou por causa da sua pobreza, do seu estado miserável e Vou referir-me a uma recolha de exemplo por rubricas classificadas
dos seus sofrimentos, e começou a murmurar contra Deus que o fazia por ordem alfabética o Alphabetum narrationum (elaborado nos primei-
viver tanto tempo em tal miséria. Foi-lhe enviado um anjo que o censu- ros anos do século XIV pelo dominicano Amold de Liêge e que deu ori-
rou por assim blasfemar, exortou-o a ter paciência e prometeu-lhe que, se gem a muitas cópias mais ou menos fiéis em latim e em línguas ver:náculas
suportasse os seus males durante mais dois anos, ficaria plenamente pur- .. inglês, catalão e francês - nos séculos XIV e xv), para dar uma Imag~m
gado e iria para o Paraíso. O outro respondeu que não era capaz, que final dos exempla do Purgatório. Oferece-nos catorze exempla na rubnca
preferia morrer. O anjo disse-lhe que teria de escolher entre dois anos Purgatório (purgatorium), os quais se agrupam em oito temas. Quatro
de sofrimento e dois dias de pena no Purgatório antes de Deus o mandar dizem respeito às penas do purgatório, à sua intensidade, duração e te-
ir para o Paraíso. Ele escolheu dois dias no Purgatório, foi levado pelo mor que inspiram: «As penas do Purgatório ,s~o diversas» (nl!676), ? ~u~
anjo e enviado para o Purgatório. A dureza (acerbitas ) da pena pareceu- significa que não se reduzem ao fogo purgatono, «a pena do Purgatono e
-lhe tão insuportável que antes de se ter passado meio dia já ele julgava dura (acerba) e longa», conforme ensinou Agostinho, «a pena do Purga-
estar ali há uma infinidade de dias. Pôs-se a gritar, a gemer, a chamar tório, mesmo que dure pouco, parece durar muito tempo», no que encon-
mentiroso ao anjo, a dizer que ele não era um anjo mas um diabo. O tramos o tempo invertido do além folclórico, «o purgatório», enfim, «é
anjo veio, exortou-o a ter paciência, censurou-lhe o ter blasfemado e afir- mais temido pelos bons do que pelos maus», o que o situa mais próxi no

368 369
do Paraíso do que do Inferno mas testemunha também a sua dureza. rer, e das condições do além. Primeiro, trata dos mártires da Ordem, dos
dizem respeito à localização do Purgatório, que admitem ser na te mortos bem-aventurados, das visões e revelações que acompanham a
«Alguns são purgados entre os vivos» e «alguns fazem o seu purgató morte. Depois vêm as situações no pós-morte. É aqui que se coloca, em
entre aqueles junto de quem pecaram». Felizmente, dois têm a ver com ot primeiro lugar, a evocação dos irmãos que estão no Purgatório, a qual
sufrágios: «A pena do Purgatório é suavizada pela oração- e «a pena do precede os estratagemas do diabo, as maneiras de ajudar os defuntos, a
Purgatório é anulada pela missa». Os exempla são tirados de Gregório, O triste sorte dos apóstatas e, pelo contrário, a glória daqueles que, depois
Grande, de Pedro, o Venerável, do Purgatório de S. Patrick, dos cister« da morte, se ilustram através dos milagres. Os exempla dos irmãos no
cienses Hélinand de Froimont e Cesário de Heisterbach, de Jacques de Purgatório ocupam pois a posição intermédia, de chameira, que é bem
Vitry e do dominicano Humbert de Romans, autor de um «dom de te- a do novo lugar.
mon (De dono timoris) muito próximo de Étienne de Bourbon'S. Gérard de Frachet propõe catorze exempla, catorze histórias de Pur-
Completarei este estudo da difusão do Purgatório com o sermão e O gatório que não se inserem num tratado como acontecia com Cesário de
exemplum no século XIII, evocando por um lado a biografia dos primeircs Heisterbach ou Étienne de Bourbon. São para glória da ordem, ou antes,
dominicanos e a prédica entre as beguinas e, por outro, a continuação da para seu uso interno, alternando os casos felizes e gloriosos com os que
exploração das visões do Purgatório para fins políticos. devem fazer os irmãos reflectir. Lembram o Exordium magnum de Con-
rado de Eberbach para a ordem cisterciense no começo do século e, prin-
cipalmente em relação a Cesário, respiram um ar muito tradicional.
Dominicanos no Purgatório Primeira história: no mesmo dia morrem num convento de Colónia
um velho pregador e um noviço. Ao fim de três dias o noviço aparece.
As ordens mendicantes desempenham o papel dos cistercienses no O seu fervor valeu-lhe uma passagem muito breve pelo Purgatório. Pelo
enquadramento espiritual da sociedade durante o século XIII. Mas enm contrário, o pregador só aparece passado um mês. Os seus comprometi-
os dominicanos como entre os franciscanos uma parte dos irmãos conti- mentos com seculares valeram-lhe esta provação mais longa mas, em
nua próxima da tradição monástica. Assim, o contemporâneo de Êtienne compensação, tem uma sorte mais brilhante, como revelam as vestes or-
de Bourbon, Gérard de Frachet, dá uma imagem sensivelmente diferente nadas com pedras preciosas, uma coroa de ouro, recompensa das conver-
do interesse dos Irmãos Pregadores pelo Purgatório. sões que obteve.
O testemunho de Gérard de Frachet é precioso sobretudo para a di- As catorze histórias seguintes passam-se em Inglaterra. Em Derby, um
vulgação da crença no Purgatório no interior da ordem dominicana. Este jovem irmão em artigo de morte passa da alegria à angústia. Alegria
natural de Limoges originário de Châlus (Haute- Vienne), ingressado nOI porque S. Edmundo e depois a Virgem aparecem-lhe. Angústia porque,
Pregadores em Paris em 1225, superior de Limoges e depois provincial da embora se soubesse eleito quase com certeza, receia que os pecados ve-
província da Provença, falecido em Limoges em 1271, escreveu uma his- niais (modica ) de que está carregado lhe valham, apesar de tudo, a con-
tória da ordem dominicana e dos seus memorabilia entre 1203 e 1254. denação. Aviso de que a fronteira entre pecados veniais e mortais, entre
Compreende ela cinco partes. A primeira é dedicada aos começos da Purgatório e Inferno, é estreita.
ordem, a segunda a S. Domingos, a terceira ao mestre-geral Jourdain O irmão Ricardo, leitor em Inglaterra, vê no seu leito de morte apa-
de Saxe, sucessor de Domingos à frente da ordem, a quarta à evolução rições terríveis, e depois é-lhe revelado que será salvo graças à ajuda dos
da ordem (de progressu ordinis) e a quinta à morte dos irmãos. seus irmãos dominicanos e também à dos franciscanos que ele sempre
Esta estrutura da obra é significativa. A quinta e última parte exprime amara. Aviso, pois, no sentido da colaboração entre as duas ordens.
bem as atitudes de um meio religioso representativo da tradição e da O irmão Alain, superior em York, assaltado também ele por visões
inovação dentro da Igreja. A morte dá à vida o seu sentido e situa-se aterradoras no momento de morrer, prefere permanecer num fogo terrí-
no ponto de encontro da existência terrena com o destino escatológico. vel até ao Julgamento Final, a rever a figura dos diabos que lhe aparece-
Gérard de Frachet testemunha bem esta focagem no momento da morte ram. O Purgatório, na sua forma mais penosa, vale portanto mais do que
em relação com o pós-morte, que explica também o êxito do Purgatório. ° Inferno no seu aspecto mais visível.
Examinemos mais de perto esta quinta parte das «Vidas dos Irmãos Um pároco, aterrado pela visão que lhe anuncia o Inferno, ingressa
da Ordem dos Pregadores» ou «Crónica da Ordem de 1203 a 1254». Re- nos dominicanos e, depois de morrer, aparece ao seu confessor para lhe
presenta todos os casos, possíveis para os irmãos, das maneiras de mor- revelar que fora salvo e que ele também o será.

370 371
As duas histórias seguintes passam-se «em Espanha», em Santa .1 uma vida devota a meio caminho entre a vida das religiosas e a das
(hoje Portugal). Numa vemos um irmão passar pelo Purgatório po laicas. Seduzem e inquietam simultaneamente e são objecto de um apos-
foi assistido por seculares no momento da morte, e na outra um ou tolado especial por parte da Igreja.
irmão ter a mesma sorte por se ter gabado de cantar bem. Ao estudar a pregação praticada em 1272-1273 na capela de Santa
Um irmão italiano de Bolonha sofre, também ele, no Purgatório, Catarina da beguinaria de Paris, que S. Luís fundara cerca de 1260, pelos
ter gostado em excesso de arquitectura. Um irmão português de Lisbol pregadores na sua maioria dominicanos e franciscanos, Nicole Bériou
punido igualmente no Purgatório, porque se ocupou de mais de man encontrou muitas vezes o Purgatório'", Um mostra os mortos gloriosos
critos, enquanto o irmão Gaillard d'Orthez é visto numa aparição com no Paraíso, representado por Jerusalém, exortando os seus irmãos que se
peito e os flancos queimados por se ter interessado de mais pela cons encontram no Purgatório, representado pelo Egipto. As penas do Purga-
ção de novos conventos, e pede orações aos irmãos. O irmão João tório são pesadas e devemos preocupar-nos com os nossos parentes que lá
lestier de Limoges passou sete dias no Purgatório por causa dos Ie encontram, atormentados e impotentes'".
defeitos e atesta que a pena que lá se sofre pelos pecados veniais é muí Outro incita as beguinas a rezar por «aqueles que estão no Purgató-
intensa. E indica que os anjos o foram buscar para o levarem para rio» para que Deus liberte «os seus prisioneiros da prisão do Purgató-
Paraíso. . . &5
rio.» .
Esta indicação é muito interessante, pois anuncia a iconografia Vemos definir-se a ideia de que há vantagem em rezar pelos que estão
Purgatório: veremos anjos estendendo a mão a defuntos para os fi no Purgatório porque, logo que estiverem no Paraíso, eles rezarão por
sair do novo lugar e os fazer subir ao céu. aqueles que os arrancaram ao Purgatório. «Não serão ingratos», afirma
O irmão Pedro de Toulouse, embora tivesse sido muito dedicado à • o segundo pregador. Outro ainda incita a rezar pelos que estão no Pur-
ordem e apesar do número de conversões que conseguira, revela em gatório, não pelos do Inferno, por aqueles que estão na prisão do Senhor
nhos que passou vários meses no Purgatório não se sabe por que pecad e, em linguagem vernácula, «gritam e vociferam» e que os vivos devem
Um excelente irmão morrera com o terror estampado no rosto. Q libertar com as suas esmolas, jejuns e orações'".
do aparece, alguns dias depois da morte, perguntam-lhe a razão de Um sublinha que não se deve esperar pelo Purgatório ou pelo Inferno
terror. Ele responde por meio do versículo do Livro de Job, 41, 1 para se cumprir a penitência?", enquanto um franciscano, evocando a
«Quia territi purgabuntur»: «porque serão purgados em terror.» Enfim. lista das oito categorias de pessoas pelas quais se deve habitualmente
um .último irmão sofre um suplício devido à sua paixão pelo vinho, que rezar (pro quibus solet orari), inclui nela as que estão no Purgatório'",
bebia puro. Um terceiro explica que se deve fazê-lo especialmente «pelos parentes e
Estes exempla mostram alguns traços do sistema do Purgatório: • amigos» 69. Este indica que o primeiro fruto da penitência é libertar da
duração, as aparições. São sobretudo instrutivos porque revelam como pena do Purgatório 70, e aquele avisa: «São loucos os que dizem: "Ora,
são usados no interior da Ordem dos Pregadores - toda uma casuístioa farei a minha penitência no Purgatório" pois não há comparação entre
dos pecados veniais por um lado, uma imagem dos irmãos por outro a dura~ão da pena do Purgatório e qualquer pena cá em baixo no
mais próximas das preocupações tradicionais do meio monástico, d~ mundo I.)) Particularmente interessante é a declaração de um pregador
que se pretendiam diferentes, do que das tendências intelectuais com franciscano no Dia de Ramos. Não quer ser um daqueles confessores
que - a exemplo de algumas grandes figuras - se queria caracterizá-los, «grandes avaliadores de almas» (non consuevi esse de illis magnis ponde-
!?epois dos irmãos pregadores eis também as mulheres animadas pelo ratoribus) que enviam uns para o Inferno e outros para o Paraíso. «O
desejo de levar uma nova forma de vida religiosa, a quem se propõe que caminho intermédio, diz ele, parece-me mais seguro. Como não conheço
meditem sobre o Purgatório: as beguinas. o coração dos diferentes homens, prefiro enviá-los para o Purgatório e
não para o Inferno por desespero, e o resto deixo-o ao mestre supre-
mo, o Espírito Santo, que ensina os nossos corações a partir de
o Purgatório e as beguinas dentro72.) Terá havido uma expressão mais bela da função do Purgató-
rio?!
No século XIII, as beguinas constituem um meio muito interessante. Este pequeno corpus de sermões às beguinas parisienses realça três
Estas mulheres retiram-se para casas individuais ou habitadas por um aspectos fundamentais do Purgatório: 1) E a prisão de Deus. Trata-se
pequeno número delas situadas no mesmo bairro da cidade para levarem pois do grande encerramento das almas e a sua libertação impõe-se às

372 373
orações dos vivos porque se coloca na longa tradição cristã das pr Il voz da Igreja. É também a época em que a concepção de santidade
pelos prisioneiros oriunda dos primeiros séculos de perseguição e estim evolui, em que, a par com o milagre sempre necessário para reconhecer
lada pelos sentimentos de justiça e de amor. 2) O Purgatório obriga um santo, as virtudes, a qualidade da vida, a aura espiritual contam cada
solidariedade entre os vivos e os mortos, em que insistem quase tod vezmais. S. Francisco de Assis, para além dos mártires, dos confessores e
os pregadores. 3) Enfim, o Purgatório está estreitamente ligado à penit dos taumaturgos, encarna um novo tipo de santo cujo modelo directo é o
cia, quer esta liberte dele, quer aquele a termine. próprio Cristo?". Mas há uma piedade popular, uma devoção de massas
que tocam tanto os intelectuais como o povo e que se alimentam nas
fontes tradicionais da hagiografia. A par com as vidas individuais de
o Purgatório e a política santos, divulgam-se recolhas de lendas hagiográficas elaboradas num no-
vo espírito, que os próprios catálogos medievais chamam de «lenda no-
Numa crónica do começo do século XIV composta no Convento dOI! Vil»,legenda nova. É verdade que o público privilegiado destas «lendas» é
Dominicanos de Colmar encontra-se uma história que mostra que o Pur- o «pequeno mundo do clero vivendo em comunidade» e o «grande públi-
gatório continua a ser uma arma política nas mãos da Igreja. É a história, co» não é atingido directamente por estas recolhas. Mas, por intermédio
de um mimo que viu no Purgatório Rudolfo de Habsburgo (1271-1290) dos pregadores e dos artistas que, com frescos, miniaturas e esculturas se
filho de Rudolfo, rei dos Romanos. • inspiram largamente nestas lendas, também ele é atingido, tanto mais que
A história, contada pelo dominicano Otto, é suposta ter acontecido um vasto movimento de tradução, adaptação e encurtamento em lingua-
em Lucerna. Havia nesta cidade dois amigos, um ferreiro e um mimo gem vulgar põe estas lendas ao alcance da parte do mundo monástico que
chamado Zalchart. Um dia o mimo foi representar num local onde •• não entendia o latim, os conversos e as freiras, e abre-lhes assim um
realizava um casamento. Entretanto o ferreiro morreu e apareceu a Zal. caminho directo para a sociedade dos laicos".
chart montado num grande cavalo e levou-o e à sua sanfona para uma
montanha que se abriu para os deixar entrar. Lá encontraram muitos
importantes personagens falecidos, entre os quais Rudolfo, duque de AI. o Purgatório na «lenda dourada»
sácia, filho do rei dos Romanos Rudolfo. Estes mortos aproximaram-li
de Zalchart e pediram-lhe que anunciasse às suas mulheres e aos seus Nesta produção hagiográfica a Itália chega relativamente tarde mas,
amigos que eles estavam a sofrer grandes penas, um por ter roubado, no século XIII, cerca de 1260, produz a lenda que, apesar da sua medio-
outro por ter praticado a usura, e rogavam aos seus parentes vivos que cridade, conhecerá o maior êxito, a Lenda Dourada (Legenda aurea) do
restituíssem aquilo de que eles se tinham apossado. Rudolfo confiou tam- dominicano Jacopo de Varazze. Amálgama de fontes diversas, a Lenda
bém a Zalchart uma mensagem para os seus herdeiros, pedindo-lhes que dourada nem por isso é menos aberta a temas «modernos» de devoção. E
procedessem à restituição de um bem usurpado, e encarregou-o de anun- favorável ao Purgatório que surge em primeiro plano em dois dos seus
ciar a seu pai o rei dos Romanos que também ele morreria dentro de capítulos, o que é dedicado a S. Patrick e o que trata da Comemoração
pouco tempo e viria para aquele lugar de tormentos. Como selo de au- das almas.
tenticidade imprime-lhe no pescoço com dois dedos duas marcas doloro- Ao Purgatório de S. Patrick atribui ele a seguinte origem: «Quando
sas. Depois de a montanha o devolver ao mundo dos vivos, ele entrega as S. Patrick pregava na Irlanda e não tirava disso grandes frutos, pediu ao
mensagens que lh~ foram confiadas mas os sinais (intersigne - intersig- Senhor que lhe mostrasse um sinal para assustar os irlandeses e os levar a
num) do pescoço infectam-se e ele morre ao fim de dez dias. fazer penitência. Por ordem do Senhor, traçou num determinado local um
Toda a história mergulha num clima folclórico: o ferreiro é um demó- grande círculo com o seu bordão e eis que a terra se abriu no interior do
nio condutor de almas e o mimo um rabequista do diabo. Quanto a este círculo e surgiu um poço muito grande e profundo. Foi revelado a S.
Purgatório, é de tal maneira «infernizado» que, quando Zalchart pergun- Patrick que ali era um lugar do Purgatório. Se alguém lá quisesse descer
ta a Rudolfo «Onde estais?», este responde: «No Inferno ".» não lhe faltaria mais nenhuma penitência par.a cumprir e não suportaria
O Purgatório penetra também no mundo dos santos e na hagiografia, outro purgatório pelos seus pecados. Muitos não regressavam e os que
O século XIII é a época em que a santidade passa a ser controlada pelo regressavam tinham de lá estar desde uma manhã até à manhã seguinte.
papado, em que os santos já não se fazem através da vox populi (na con- Ora entravam lá muitos que não regressavam.» Jacopo de Varazze resu-
dição de ter sido sancionada por milagres), mas através da vox Ecclesiae, me a seguir o opúsculo de H. de Saltrey (que não menciona) mas muda o

374 375
nome do herói substituindo o cavaleiro Owein" por um nobre cha e esperam. Porém, in fine. Jacopo da Varazze, que no fundo não tem
Nicolau. qualquer ideia pessoal e justapõe as opiniões de un.s e outros, afi~a
Nesta lenda inserida no calendário litúrgico, onde os grandes perí como conclusão desta pergunta que mais vale acreditar que a pumçao
e os grandes momentos do ano litúrgico dão origem a exposições dou do Purgatório não é executada pelos demónios mas apenas por ordem
nárias sumárias, o Purgatório encontra-se na Comemorarão das A/mal de Deus.
2 de Novembr078. Esta exposição aborda logo ao princípio o probl I
Sobre a pergunta seguinte, a localização do Purgatório, depois ~e ter
do Purgatório. A comemoração é apresentada como um dia destinado emitido a opinião dominante na sua época, Jacopo e~~~era tambén: d~
levar.sufrá~os ~os,def~n~o~~u~ não são ajudados por benesses especi enfiada outras opiniões que não lhe parecem contradltonas em relação a
A ongem e.~tnbUlda a mtcratrva do abade de Cluny, Odilon, segun primeira. Opinião comum: «A purgação faz-se num 10c8;1situa?~perto
Pedro Damião. O texto que conhecemos está alterado de maneira a f: do Inferno chamado Purgatóri079.» Mas acrescenta: «E a opimao da
de Odilon não o ouvinte do relato do monge regressado da peregrina maioria dos entendidos (sapientes) mas outros pensam que ele se situa
mas a testemunha directa dos gritos e lamentos não dos defuntos to no ar e na zona tórrida.» E prossegue: «No entanto, por dispensa divina,
rados mas dos demónios furiosos por verem que as almas dos mortos certos lugares são por vezes destinados a certas almas, seja para abreviar
são arrancadas pelas esmolas e as preces. a sua punição, seja prevendo a sua libertação mais rápi~a, ou para nos
Jacopo de Varazze responde a seguir a duas perguntas: 1) Quem ea edificar ou ainda para que a punição se cumpra nos locais do pecado, ou
no Purgatório? 2) O que pode fazer-se pelos que lá estão? O domini " ainda graças às preces de um santo.» Em defesa destas últimas hiP?t~ses,
ligúrico dado às divisões numeradas como um estudante subdivide cita algumas autoridades e exemplos tirados sobretudo de Gregono, o
primeira pergunta em três: 1) Quem deve ser purgado? 2) Por quem? 3 Grande mas também da história do mestre Silo proveniente de ,Pedro,
Onde? Existem - resposta à primeira subpergunta - três categorias di o Chantre, mas que reencontramos em Jacques de Vitry e em Etienne
purgandos: 1) os que morrem sem terem terminado completamente a de Bourbon e, para o último caso, a intervenção de um santo, remete
sua penitência; 2) os que descem ao Purgatório (qui in purgatorium M,." para o Purgatório de S. Patrick. . _
Dos sufrágios diz muito classicamente que quatro ~lpOSsa~ ~speclal-
.
cendunt) porque a penitência que lhes foi imposta pelo confessor é in'"
rior a? que de~a ser (Jacopo prevê também, aliás, o caso em que ela seja mente eficazes: as oraçõs dos amigos, as esmolas, a missa e o Jejum ..In-
supenor ao devido e valha ao defunto um acréscimo de glória); 3) aqueles voca a autoridade de Gregório, o Grande (história de Paschase e muitas
que «levam consigo madeira, feno e palha» e, através desta referência outras), de Pedro, o Venerando, de Pedro, o Chantre, o segundo livro dos
à. p.rimeira epístola de Paulo aos Corintios, Jacopo visa os pecados ve- Macabeus, Henrique, o Grande, célebre mestre parisiense da. segunAda
mais. metade do século e uma história interessante porque evoca as indulgên-
Ao desenvolver estes princípios Jacopo esboça uma aritmética do Pur- cias ligadas à cruzada, no caso a cruzada contra os albigenses: «As i~d~l-
gatório, dizendo por e~e?Iplo que «se se tivesse de suportar uma pena d. gências da Igreja são igualmente eficazes. Por exemplo, um nuncio
dOIS~eses no Pu.rgatono, poder-se-ia ser ajudado (pelos sufrágios) d. pontifical pedira a um guerreiro valoroso que fosse combater n~ cruz::da
maneira a ser-se libertado ao fim de 'rm mês». contra os albigenses ao serviço da Igreja, concedendo-lhe uma indulgên-
_ Seguindo Ag~stin~o, ele precisa que a pena do Purgatório, ainda que cia para o pai defunto; passou lá quarenta dias e, ao cabo desse período,
nao seja eterna, e murto dura e excede qualquer pena terrena, até os tor- apareceu-lhe o pai irradiando luz e agradeceu-lhe a sua líbertação'".»
me~tc:>sdos.mártires. Jacopo leva bastante longe a «infemização» do Pur- Por fim designa a categoria dos medianamente bons como a que apro-
gatono, pOISpensa que são os demónios, os anjos maus, que atormentam veita com os sufrágios. Numa última palinódia volta à sua ideia de que os
os defuntos no Purgatório. Enquanto outros supõem que Satanás e 01 sufrágios dos vivos maus não aproveitam às almas do Pur~~tório, par~
demónios vêm assistir com prazer aos tormentos dos expurgados, aqui dizer que isto não se aplica à celebração de missas, sempre validas, ne?I a
pelo contrário, são os anjos bons que vêm (talvez) assistir e os consolam: realização de boas obras de que o defunto tivesse encarregado o VIVO,
Os mortos do Purgatório têm ainda outra consolação: esperam a «glória ainda que mau. . '
futura (o Céu), sabendo estar certos». E em relação a esta glória futura Este longo desenvolvimento termina por um exemplum brado da Cro-
t~m .uma certeza ~<detipo médio» (medio modo), o que realça a impor- nica do cisterciense Hélinand de Froimond, do começo do século XIII, e
tancia da categona de intermédio. Os vivos esperam e têm certezas os cuja acção é suposta desenrolar-se na época de Carlos Magno, em 807
eleitos têm certezas sem espera, os que estão no Purgatório têm certezas exactamente. «Um cavaleiro que partia para a guerra de Carlos Magno

376 377
"

j.

contra os Mouros pediu a um parente que vendesse o seu cavalo e dCSII


dinheiro aos pobres se ele morresse na guerra. Depois da morte do ca
leiro este. parente ficou com o cavalo que muito lhe agradava. Po
de origem, o flamengo, no contacto com os laicos?), parece ter sido ~
tanto suspeita aos olhos da Igreja oficial. Inocêncio IV or~enou a To~~s
de Cantimpré que corrigisse a primeira redacção da sua VIda. O domini-
!
tempo depois apareceu- lhe o defunto brilhando como o Sol e disse- cano apenas chama Lutgarda de «piedosa» (pia), nunca ?e santa (s~ncta
"Bom parente, durante oito dias fizeste-me sofrer as penas do Purgatô ou beata) mas foi considerada e honrada como santa «a moda antiga».
por causa do cavalo cujo preço não deste aos pobres; mas não o levar Segundo a sua Vida, especializara-se na libertação das almas do Purga-
para o Paraíso (impune non feres) pois hoje mesmo os demónios v tório. Conta no seu activo pessoas notórias, até mesmo célebres, que
levar a tua alma para o Inferno enquanto eu, purgado, vou para o rei auxiliou.
de Deus." Logo se ouviram no ar como que clamores de leões de ursos. A primeira de que nos falam é Simão, abade de Fouilly, «um homem
.
de lobos, e ele fOIlevado da terra 81 .» Reconheceu-se neste uma' versão di fervoroso mas duro para quem de si dependia», falecido prematuramen~e.
um dos dois exempla sobre o Purgatório que se encontram nos sermo",~ Tinha uma predilecção pela piedosa Lutgarda a quem a su~ ~orte mU1~o
vulgares de Jacques de Vitry - mas também em Eudes de Chêriton • perturbou. Cumpriu penitências especiais (afflictiones} e Jejuns e pediu
Tomás de Cantimpré. E um clássico das colecções de exempla. Retoma- ao Senhor a libertação da alma do defunto; o Senhor respondeu-lhe:
d~ na Lenda dourada. será um pouco o vademecum do Purgatório DO «Graças a ti serei benevolente para com aquele por quem oras.» Mílitan-
seculo. XIII. Nele se encontra o essencial do processo do Purgatório desdt , te decidida da libertação das almas do Purgatório, Lutgarda responde:
Agostinho, com alguns textos mais recentes destinados a contribuir com > «Senhor, não deixarei de chorar e não me satisfarei com as tuas promes-
complementos teóricos e explicações. sas enquanto não vir livre aquele por quem te imploro.» Então o Senh,?~
apareceu-lhe e mostrou-lhe a alma em pessoa que o acompanhava, ja
liberta do Purgatório. «Depois do que Simão apareceu frequentem~n~e
Uma santa do Purgatório: Lutgarda a Lutgarda e disse-lhe que teria passado quarenta anos no Purgatório
se as suas orações não o tivessem socorrido junto de Deus misen-
A literatura hagiográfica oferece um testemunho surpreendente da cordíoso'".»
popularidade do Purgatório. No momento de morrer, a bem-aventurada Maria de Oignies confir-
No Purgatório as almas têm necessidade de auxílio. Este vem-íhes mou que as preces, os jejuns e os esforços de Lutgarda tinham um gran~e
sobretudo dos parentes, dos amigos, das suas comunidades. Mas nio poder. E predisse: «Debaixo do céu, o mundo não tem intercessor mais
caberá aos santos, a determinados santos, cumprir o seu dever de inter- fiel nem mais eficaz para libertar com as suas preces as almas do Purga-
~ss?re~, de a~iIiadores? É ~erdade que a Virgem, mediadora por exce- tório do que a dama Lutgarda. Durante a vida realizou muitos milagres
Iência, e particularmente acnva. Um certo santo Nicolau está prestes a espirituais e depois da morte reali~-los-á c~rpora~s84.» ., .
J~tar aos seus numerosos patrocínios o do Purgatório, se assim se pode O próprio cardeal Jacques de Vitry podena ter Sido um beneficiário da
dizer. Mas um caso é especialmente notável. O século XIII assiste ao es- intercessão de Lutgarda. Quatro dias depois da sua morte, Lutgarda, que
boçar do. cult~ de uma verdadeira santa do Purgatório, Santa Lutgarda. não soubera dela, foi transportada ao Céu e viu a alma de Jacques d.e
E uma cistercíense do mosteiro beneditino de Saint-Frond talvez uma Vitry levada por dois anjos para o Paraíso. «O espírito de Lutgarda feli-
simples conversa, .que morreu cega em 1246 no mosteiro de Aywiêres, citou-o e disse: "Reverendíssimo Padre, ignorava a tua morte. Quando
no Brabante,. na diocese de Namur. Parece ligada ao meio das beguinas deixaste o teu corpo?" Ele respondeu: "Há quatro dias e passei três o<;>ites
e esteve relacionada com Jacques de Vitry de quem recebeu pelo menos e dois dias no Purgatório." Ela admirou-se: "Porque não me fizeste sinal,
um~ carta, e com a tal Maria de Oignies, beguina célebre, cuja vida foi a mim, sobrevivente, logo que morreste, para que eu te libertasse da. tua
e~n.ta por Jacques de Vitry. Deixou nome principalmente na história da pena com o auxílio das orações das nossas irmãs? - O Senhor, replicou
mística, em que contribuiu, juntamente com algumas beguinas, para pro- ele, não quis entristecer-te com a minha pena e preferiu confortar-te ~~m
mover a devoção ao Coração do Crist082. a minha libertação e a minha glorificação, terminado o meu purgatono .
. Um dominicano bem conhecido, Tomás de Cantímpré, escreveu a sua Mas tu vais em breve seguir-me". Ao ouvir estas palavras a piedosa Lut-
Vida logo depois de ela ter morrido, entre 1246 e 1248. Mas Lutgarda não garda veio a si e anunciou às irmãs com grande alegria a s.uam,orte, o seu
será ca~onizada oficialmente. Lutgarda, de que ele nos diz que nunca purgatório e a sua glorificação.» Segundo Tomás de Cantlmpre,.ess: pur-
conseguru falar francês (não quereria conservar a língua da sua cultura gatório de Jacques de Vitry teve uma segunda testemunha, um irmao do

378 379
convento dos dominicanos de Roma, onde Jacques de Vitry foi prim A partir do fim do século XII, com a redescoberta do testamento, com a
enterrado, ao qual Deus também revelou no quarto dia depois de mo multiplicação dos legados piedosos, com o desenvolvimento da crença no
o seu purgatório e a sua glorificação'". Purgatório, a documentação necrológica toma um aspecto sensivelmente di-
Enfim, a bem-aventurada Maria de Oignies apareceu a Lutgarda ferente. Uma simples inscrição recomendando uma comemoração e sufrágios
pediu-lhe que interviesse a favor do amigo de ambas, Baudoin de Bar é substituída por uma inscrição acompanhada por um oficio a celebrar. O
zon, superior de Oignies, anti~o capelão de Aywiêres, a quem promete officium plenum, até então excepcional, toma-se progressivamente de regra.
ajudar no momento da morte 6. Sendo o oficio dos mortos, solene ou não, super-errogatório, importava asse-
E Tomás de Cantimpré conclui: «Ó venerável Maria, como és verde- gurar a respectiva celebração por meio de fundos, e daí a modi~cação do
deira no teu testemunho, fiel na tua promessa, tu que te dignaste ir pedir' carácter das notícias. Ao lado do nome do defunto, da sua qualidade e da
sua função, acrescentaram-se os elementos constitutivos desses fundos insti-
piedosa Lutgarda o sufrágio das suas preces para todos os mortais, t1&
tuídos geralmente em forma de renda: base, devedores, sucessão destes, por
que, quando ainda estavas nesta terra, pediste àquela que era a mata
vezes mesmo definindo-se as modalidades de emprego: distribuição ao cele-
poderosa que libertasse as almas do Purgatório e que, sublimada n•• brante, aos ajudantes, aos sineiros. Por vezes define-se mesmo o tipo de oficio
alegrias celestiais, vieste ainda pedir o seu auxílio para um amigo d•• a celebrar. Em certos casos a legação de fundos era feita em vida do benefi-
funtol» ciário e o oficio era então uma missa, a maioria das vezes da Virgem ou do
Espírito Santo, que passaria a ser missa de aniversário após a sua morte.
O processo de inscrição variou e evoluíu. Primeiro,. inscrevia~-se ~ado a
lado os óbitos dos membros da comunidade, de associados espíntuaís e os
Os vivos e os mortos: testamentos e obituários fundos de aniversário para os quais as modalidades de execução eram indica-
das. Progressivamente a inscrição destes fundos passou a ser preponderante e
o Purgatório aparece também nas principais manifestações das nov •• suplantou as inscrições automáticas e graciosas de simples nomes a comemo-
rar. Era sempre lícito relembrar no capítulo ou no refeitório os nomes dos
formas de solidariedade entre os vivos e os mortos no século XIII.
defuntos para quem os sufrágios da comunidade eram requeridos, mas o es-
OS primeiros documentos em que se pensa são os testamentos. É pre-.
sencial era saber quais os oficios dos mortos que deviam celebrar, em intenção
ciso reconhecer que o Purgatório parece apenas fazer neles uma tímida
de quem deviam ser ditos, que pitança, que soma em dinheiro, segundo os
aparição nesse século XIII. Só se introduzirá verdadeiramente no século casos, estava ligada a essa celebração. O livro tinha pois um duplo uso, mas
XIV, e mesmo assim de maneira diferente segundo as regíões'". Por já s~ servia para inscrever os óbitos da comunidade. com fundos. .
exemplo, num testamento como o de Renaud de Borgonha, conde de E por esta razão que se vê desaparecer progressivamente destas compila-
Montbéliard, que data de 1296 (com o acrescentamento de um codicilo ções, a partir do século XIII, os membros da comunidade (sobretudo nas
em 1314) trata-se mesmo de aliviar a alma do futuro defunto pagando li comunidades monásticas) em proveito dos laicos, burgueses e nobres, preocu-
suas dívidas e mandando dizer missas pelo aniversário da sua morte pados com assegurar a sua salvação e encurtar a estada no Purgatório por
«para remédio da alma» (a expressão «pro remedio animae» é tradicional meio de outorga piedosa de fundos'".
dos actos de doação e depois nos testamentos) e evocam-se portanto O.
sufrágios pelos defuntos que estão no Purgatório, mas o nome não'
Enfim, encontra-se pelo menos um testemunho explícito do lugar ~u-
pronunciado'". Seria necessário estudar a atitude das ordens mendican-
pado pelo Purgatório nas preocupações dos membros de uma confran~,
tes das quais se sabe que foram por um lado grandes «captadoras dto .
associações cuja grande preocupação, à semelhança dos colegas funera-
testamentos» e, por outro lado, grandes divulgadores do Purgatório, pe.
rios da Antiguidade, era velar pelos funerais e pelos sufrágios dos mem-
10 menos nos sermões e nos exempla. Não foram elas que no decurso do
bros defuntos da confraria. Encontra-se esta referência no alvará da
século XIII substituíram os cistercienses no papel de vulgarizadoras do
Purgatório? confraria dos barbeiros de Arras de 1274.
Este texto, cujo original foi escrito em linguagem vernácula, em f~an-
Os estabelecimentos religiosos conservam sempre livros de memórias
cês antigo, visto que uma das partes - os barbeiros - é formada por laicos
dos mortos. Mas os necrológicos do período anterior dão lugar a novo.
que não sabem latim - é dos mais significativos. O Purgatório está no
memoriais a que se chamará obituários e, se o Purgatório não aparece .
centro desta asso' .iação de tipo sociedade ajuramentada própria do novo
neles directamente, os seus progressos influenciam muito esta transforma-
mundo urbano entre os membros de ambos os sexos de uma profissão
ção, como pensa o especialista Jean-Loup Lemaitre.
dirigida por pessoas eleitas de tipo comunal (presidente da Câmara e

380
381
abnotacés) e a comunidade de uma das novas ordens religiosas mendicaa u Menestrel de Reims encontra-se, bem entendido, o Purgatório. Mas a
tes, os dominicanos, estreitamente ligados no seu aposto lado à nova s0- produção literária, em francês por exemplo, tomou-se tão abundante no
ciedade urbana. século XIII que apenas é possível efectuar uma sondagem. Parece-me,
pelas amostras dadas por alguns eruditos'", que o Purgatório se toma
Saibam todos os que existem ou vão existir que o superior dos IrmlOl uma espécie de acessório nos diversos géneros literários. Como assinala
Pregadores de Arras e o convento dos ditos Irmãos concederam, pela auto- o Vocabulário de Francês Antigo de Tobler-Lommatzch, nunca se fala do
ridade do mestre da Ordem, aos barbeiros de Arras uma caridade (confraria). Purgatório na epopeia (género anterior ao Purgatório, ainda que se te-
fazer em honra de Deus e de Nossa Senhora e de Monsenhor S. DomingOl. nham composto canções de gesta no século XIII) e a primeira obra lite-
Concederam-lhes três missas todos os anos perpetuamente a todos os irmão. • rária que o menciona é o Espurgatoire saint Patriz de Maria de França.
irmãs que nela entrarem, nela permanecerem e lá morrerem. A primeira mi••• Um cavaleiro italiano, Filipe de Novare, jurista, escritor, interessado
é no dia da trasladação de Monsenhor S. Domingos e as duas outras nOl nos negócios com a Terra Santa e com Chipre, escreve depois de refor-
aniversários dos seus pai e mãe falecidos. E outorgaram-lhes plena associaçlo
mado com mais de sessenta anos e depois de 1260, em francês, que é a
(compaignie) e plena participação de todos os bens que existirem e vierem •
lingua literária da cristandade, um tratado onde resume a sua experiência,
existir no seu convento de Arras e para toda a ordem e santa cristandade,
para todos os vivos que se mantiverem em caridade e em graça e, por aquelol Os Quatro Tempos da Idade do Homem. Os jovens, segundo Filipe, ~me~
que morrerem, para encurtar as suas penas no Purgatório e apressar o seu tem muitas imprudências e mesmo loucuras. Fazem pouca pemtência ca
,. 92
repouso eterno. A todas estas coisas mencionadas o superior e os irmão. em baixo no mundo, e terão de fazer uma grande e longa no Pu rgatono.
associam (acompaigne ) todos os homens e todas as mulheres que entrarem No Romance de Baudouin de Sebourc pode ler-se:
neste convento por intermédio do presidente da câmara e dos almotacés que
os barbeiros lá puserem. E para certificar e tornar estável (estande: estável, Vai para o Paraíso
firme) e provável tudo isto, o superior e o convento dos ditos irmãos selaram Sem passar pelo Purgatôno",
este documento com o seu selo, o que foi feito no ano da Encarnação d,
Nosso Senhor MCC e XLVII, no mês de Abril90.
o que lembra o papel intermédio, a situação de passagem do Purgatório.
Gautier de Coincy, cónego de Soissons, autor da mais abundante e
Sobre este texto - na verdade o único deste género que conheço e que reputada colecção de Milagres de Nossa Senhora (Miracles de Notre-Da-
chegou até nós - formularei duas hipóteses. A primeira tem a ver com o me) em verso (1223), fala do Purgatório como lugar de castigo:
papel dos mendicantes difusores de novas atitudes perante a morte, na
divulgação do Purgatório. A segunda é o interesse pelo Purgatório ma- No Purgatório ajustam-se as contas
nifestado por uma profissão suspeita, desprezível, esses barbeiros-cirur- Ele foi para lá levado pelas más acpões
giões em contacto com o corpo e o sangue, que eram incluídos nos oficios Que em vida cometeu e praticou",
desonestos - inhonesta mercimonia. Como aconteceu com os usurários,
não verão os barbeiros no Purgatório uma melhor oportunidade para Jehan de Journi, proprietário da Picardia, escreve na sua Dízima de
escapar ao Inferno? Uma das consequências dos progressos do Purgató- Penitência (Dfme de pénitence ) composta em Chipre em 1288:
rio não será reabilitar, na perspectiva da salvação, as categorias sóciopro-
fissionais espiritualmente frágeis e consolidar religiosamente a sua Um homem prudente deve moderar-se
ascensão social? Enquanto pode resistir
Que dê esmolas enquanto vive
Porque na morte isso ajudá-to-á
o Purgatório em língua vulgar: o caso francês A ir para o Purgatório
A fim de se purificar para o Paraiso" ...
Haveria outra investigação a empreender na literatura em língua ver-
nácula. O seu interesse seria informar-nos sobre a difusão do novo além Mas o mais interessante de todos estes textos literários é, sem dúvida,
nas obras literárias directamente «consumidas» pelos laicos. Nas compi- uma passagem do conto em verso A Corte do Paraíso (La cour de para-
lações de exempla em língua vulgar ou nas crónicas «topa-a-tudo» como dis):

382 383
Por isso vos diz no dia das Almas tores de 1300 assinalaram também que era o início de um novo século.
E depois do Dia de Todos-os-Santos Consecução penitencial, ele oferecia aos fiéis uma espécie de substituto do
Tenham todos a certeza; Millenium controlado bem de perto pela Igreja e pela Santa Sé.
Conta-nos a história
Nesta altura o Papa concedeu aos peregrinos de Roma indulgência
De que as almas do Purgatório
plena (plenissima venia peccatorum), a completa remissão dos pecados
Repousam durante esses dois dias;
Mas as que não tiverem perdão que até então só era dada aos cruzados, e estendeu o beneficio dessa
E forem condenadas pelos seus pecados indulgência aos mortos, ou seja às almas do Purgatório. Esta extensão
Tenham todas a certeza nunca vista das indulgências fez-se tardiamente e de uma maneira de
De que não terão repouso nem permanência. certo modo indirecta.
Foi por uma decisão do Natal de 1300 que Bonifácio VIII concedeu a
A ligação entre a festa de Todos-os-Santos e a Comemoração daa indulgência plena a todos os peregrinos que morreram durante a peregri-
Almas (1 e 2 de Novembro) está fortemente marcada, e os laços destel nação, quer fossem a caminho quer estivessem em Roma, e às pessoas
duas solenidades com o Purgatório nitidamente sublinhados. A origina. que, tendo a firme intenção de realizar a peregrinação, tinham sido disso
lidade destes versos reside sobretudo no seguinte: se o sabat infernal, O impedidas'". A medida era pois de maior importância.
descanso hebdomadário dos condenados do Inferno é negado, em com. Parecia que o Papa decidia «a libertação instantânea de todas as penas
pensação aparece a ideia de uma trégua de dois dias no Purgatório, em para certas almas do Purgatôriosf". É certo que a teoria do poder ponti-
vez da ideia de Jacques de Vitry de um repouso dominical. O Purgatório fical já fora de certo modo estabelecida, nomeadamente, como já vimos,
«infernizou-se» decididamente a ponto de ser transferido para ele o tema por S. Boaventura e S. Tomás de Aquino. Mas, segundo parece, nunca
de um repouso imaginado para a geena. fora aplicada. A possibilidade de os vivos libertarem os mortos do Pur-
Justamente na viragem do século XIII para o século XIV, um grande gatório nunca fora até então exercida senão per modum suffragii, pela
acontecimento permitiu ao Purgatório uma promoção ao encontro daa transferência para os mortos dos méritos que os vivos adquiriam através
intenções da Igreja e das aspirações dos fiéis. Foi o Jubileu de 130096• de boas obras.
Parece que o poder pontifical em matéria de libertação das almas do
Purgatório permaneceu teórico até ao século xv, após esta explosão.
As indulgências para o Purgatório: o Jubileu de 1300 O canonista Alessandro Lombardo, falecido em 1314, bem repetiu, por
exemplo, que o Papa podia ir em socorro dos que estão no Purgatório com
Neste ano o Papa Bonifácio VIII, já empenhado na sua luta com o rei a ajuda de indulgências indirectamente ou «acidentalmente», que podia
de França Filipe, o Belo, e, através deste, com a sociedade laica cristã que conceder indulgências a todos quantos «oram ou fazem bem aos defuntos
suportava cada vez menos o jugo pontifical, convocou pela primeira vez a que estão no Purgatório»; mas os seus sucessores do século XIV não se
Roma todos os fiéis para a celebração do jubileu, em memória da lei atreveram, tanto quanto se sabe, a usar deste poder exorbitante sobre o
mosaísta expressa no capítulo XXV do Levítico. Tratava-se de uma espé- além. Porém a iniciativa, embora limitada, fora tomada. Uma etapa fora
cie de super-ano sabático, ano de expiação e de repouso, de libertação e ultrapassada na inserção das indulgências no sistema do Purgatório.
de regresso às origens, que deveria repetir-se passados sete vezes sete
anos, quer dizer de cinquenta em cinquenta anos. Ano jubilar simbólico
que decerto nunca foi efectivamente realizado. Também aqui o cristianis- A persistente hostilidade ao Purgatório
mo substituiu judaísmo e o Evangelho anunciou «um ano da graça do
Senhor» (Lucas, IV, 19). Desde a Alta Idade Média que o jubileu, sem Esta decisão de Bonifácio VIII quando do jubileu de 1300, que foi um
ser praticado pela Igreja, fora integrado por alguns autores eclesiásticos grande êxito é, de certo modo, o ponto de interrupção do triunfo do
nas novas concepções cristãs da penitência e do perdão. É portanto nor- Purgatório no século XIII. Mas não devemos esquecer que, nessa viragem
mal que o jubileu ressuscitado se junte ao recente Purgatório também ele do século, o Purgatório só tem partidários entre a cristandade.
ligado, histórica e teoricamente, à penitência. E há os hereges.
Isidoro de Sevilha definira nas suas Etimologias o jubileu como um Ainda no começo do século XIV, em 1335 e em Giaveno no Piemonte,
ano de remissão (remissionis annus I": Ano de absolvição cujos promo- muitos valdenses declaram ao inquisidor dominicano: «Na outra vida

384 385
só existem o Paraíso e o Inferno e o Purgatório apenas existe ne. condenação eterna pois basta ser um cristão fiel que se confessou e se
mundo 100.»
arrependeu para não ser condenado ... »
Porém noutros casos, alguns suspeitos francamente hereges ou qUi Todavia, Pierre Durand é uma excepção. Segundo as revelações feitas
passam por o. ser, parecem acomodar-se mais ou menos ao Purgat6rio li Arnaud Gélis a condição normal das almas dos defuntos é vaguearem e
o~ porque (j integraram num contexto de crenças folclóricas sobre O irem visitar as igrejas: «Fazem penitência indo a diversas igrejas. Uns vão
além ou porque foram sensíveis ao imaginário do Purgatório. mais depressa outros mais lentamente, e os que têm penitência maior vão
E. ~ ~so de uma mulher, Rixenda, que em 1288 é interrogada pela . mais depressa. É assim que os usurários correm como o vento; mas os que
Inquisição em Nar~~ne '. Parece pertencer ao meio das beguinas ligadu têm uma penitência mais pequena caminham mais lentamente. Não ouvi
aos. franciscanos espmtuaís, Declara ela que há oito anos, pelo S. Mateua falar de ninguém que sofresse outra penitência além da movimentação,
~(fol transportad~ para o Céu e ~u Jesus em pé e sentado e sua mãe Maria excepto o referido Pierre Durant que passou pelo fogo do Purgatório.
Junto dele e ao pe deles S. Francisco», Acrescenta que «pôde ver o seu pai Assim, quando deixam de visitar as igrejas, vão para o lugar do Repouso
e a sua mãe no Purgatório expiando os seus pecados e eles lhe disseram onde ficam até ao dia do Julgamento, segundo me disseram esses
que par~ os salvar ... (há ~qui uma lacuna no manuscrito) e disseram que defuntos'P'»
g;aças as suas preces muitas almas são arrancadas ao Purgatório, espe- Quando Amaud Gélis abjura, volta a ter mais consideração pelo Pur-
cialmente seu pai e sua mãe e uma prima direita Aucradis. Diz tambénl gatório: «Sobre o primeiro artigo, negando o erro que ele contém, afir-
que no seu arrebatamento viu ~a mulher, Feralguiêre de Béziers, sobre- mou que embora tivesse acreditado nisso que se mencionou, crê agora
ca:re~da de. penas, .sendo açoitada e espancada no Purgatório durante firmemente que as almas dos homens e mulheres defuntos vão para o
tres <?as ... VIU o pai e a mae a porta do Paraíso e pouco depois foram Purgatório onde cumprem a penitência que não cumpriram no mundo.
recebidos ~a. sua _mor~da.» No dia seguinte precisa que as almas que saem Terminada esta, vão para o Paraíso celeste onde estão o Senhor Cristo, a
do Purgatono nao vao logo para o Paraíso e esperam um pouco na sua . . t 105
Santa VIrgem, os anjos e os san os .»
mo.rada. Ass~ seu pa~ e sua mãe, que ela libertara do Purgatório por Outra forma de resistência ao Purgatório encontra-se designadamente
meio de oraçoes e restituindo algum trigo que eles deviam, tiveram do em certos religiosos e poetas, especialmente em Itália.
esperar durante um dia e uma noite à porta do Paraísol'" ... Uns, conservadores, tradicionalistas, querem acreditar na velha opo-
Isto passa-se também com alguns aldeões cátaros de Montaillou. Pa. sição Inferno/Paraíso e fecham os olhos perante esse novo terceiro lugar,
rece~me que aqui se deveria adoçar a opinião de Emmanuel Le Roy La- criação de teólogos intelectuais.
durie: ,«~m todas estas histórias existe um grande esquecido, o Bonsevin dalla Riva106, um milanês que viveu na segunda metade do
Purgatôrio.» No processo de Raímond Vaissiêre d'Ax, a testemunha aju- século XIII, da Ordem dos Humiliates, escreveu um Libro delle Tre
ramentada Jean Barra declara: «Quando estávamos ambos em Encastel Scritture onde, entre a escritura «negra» que descreve as doze penas do
ele disse-me que me fizesse membro da seita do falecido Pierre Authié o Inferno e a escritura «dourada» que mostra as doze glórias do Paraíso, o
herege, porque assim a minha alma, ao sair do corpo, iria logo ou entraria que existe não é o Purgatório mas a Encarnação, a Paixão do Redentor,
no Paraíso e não veria o Inferno nem o Purgatório'!".» que constitui a escritura «vermelha» feita do sangue do Cristo.
N~ caso mais completo que chamou a atenção de Emmanuel Le Roy Na mesma época um outro poeta, o franciscano Giacomino da Vero-
Ladune, o de Amaud Gélis, copeiro da quinta de Saint-Antonin, vemos na só retém das «escrituras» de Bonsevin a negra e a dourada num poe-
espectros e Purgatório a coexistir e misturar-se. A alma do falecido Pierre ma Da Jerusalém Celeste e da Babilónia Infernal onde, entre as alegrias do
Durand: ~ónego de Pamiers, que lhe aparece na igreja de Saint-Antonín, Paraíso e as penas do Inferno, não existe lugar sequer para as purgações
faz familiarmente a pergunta clássica: «Perguntei-lhe como ele ia e ele intermédias. A alusão às «subtilezas» dos teólogos (v. 19), a oposição
disse-~e: "Agora bastante bem, mas conheci um lugar muito mau." Per- nítida entre o bem e o mal:
guntei-lhe qual e ele respondeu-me: "Passei pelo fogo do Purgatório que
era d~ro e mau. Mas só passei por ele." Pediu-me também que rezasse por o mal conduz à morte com o anjo perdido
ele. VI-O uma outra vez no claustro ... E vi-o outra vez ainda no claustro e o bem dá a vida com o bom Jesus
depois não o vi mais, e julgo que está no repouso103.»
(v. 331-332).
Arnaud Gélis faz notar o recuo do Inferno perante o Purgatório:
«Todos aqueles que já se foram me dizem que não se deve ter medo da .
parecem visar a exclusão do plano mterme 'do10 d o P urgatono
, . 107
.

386 387
Para outros a hostilidade, se não ao Purgatório pelo menos a ce NOTAS
exageros piedosos que têm a ver com ele, parece vir do receio de enco
tr~r n~le superstições pagãs. Assim, numa passagem do seu célebre Spec-
chio di ve~apenttenza, on~e denuncia «as opiniões falsas e vãs que ficaraaa
do p~~aDJsmo ou foram introduzidas pela falsa doutrina do demónio», O
dominicano Jacopo Passavanti ataca «a vaidade e cupidez dos mortaia
que querem dirigir a justiça divina e que pelas suas obras, palavras,
oferendas pretendem tirar prematuramente as almas do Purgatório. B
uma grande presunção e um erro perigoso»!".
Há quem considere Bonsevin dalla Riva e Giacomino da Verona pre-
cursores de Dante. O génio e a audácia do poeta da Divina Comédia SÓ
saem mais realçados por contraste.

1 Talvez investigações aturadas permitam encontrar uma iconografia do Purgató-


rio mais precoce do que habitualmente se julga (ver o Apêndice III).
2 Sobre Joachim de Flore e o milenarismo, ver a obra de M. REEVES, The In-
fluence of Prophecy in the Later Middle Ages. A Study in Joachimisme, Oxford, 1969, e
o belo livro de Henry MOTIU, La Manifestation de l'Esprit selon Joachim de Fiore,
Neuchâtel, Paris, 1977. A obra inspirada mas por vezes contestável de Norman
COHN, The Pursuit of the Millenium, Londres, 1957, trad. franc., Les Fanatiques de
l'Apocalypse, Paris, 1963, sensibilizou o grande público para os movimentos milena-
listas do século XI ao século XVI.
3 B. GUENÉE, «Temps de l'histoire et temps de Ia mémoire au Moyen Âge» in
Bulletin de Ia Société de l'Histoire de France, nO 487, 1976-77, pp. 25-36.
4 Ver K. HAUCK, «Haus und Sippengebundene Literatur mittelalterlicher Adels-
geschlechter» in Mitteilungen des Instituis für Õsterreichische Geschichtsforschung, 62,
1954, pp. 121-145 retomado em Geschichtsdenken UM Geschichtsbild im Mittelalter,
Wege der Forsehung, XXI, 1961. G. DUBY, «Remarques sur Ia Iittérature gênêalogi-
que en France aux XI" et XII" siécles» in Comptes rendus de l'Académie des Inscriptions
et Belles-Lettres, 1967, pp. 123-131. G. DUBY, «Structures de parenté et noblesse.
France du Nord xr-xrr siêcles» in Miscellanea Mediaevalia in memoriam J. F. Nier-
meyer, 1967, pp. 149-165, ambos retomados em Hommes et Structures du Moyen Âge,
Paris, 1973, pp. 267-298. L. GENICOT, Les Généalogies, Typologie des Sources du
Mouen Âge occidental, fase. 15, Turnhout, 1975.
5 Ver os trabalhos atrás citados, pp. 149-150.
6 Sobre o êxito dos géneros narrativos nesta época ver os fascículos 12 (Le
Roman por J.-Ch. Payen e F. N. M. Diekstra, 1975) e 13 (Le Fabliau por O. Jodogne
eLe Lai narratifpor J. Ch. Payen, 1975) da Typologie des sources du Moyen Age
occidental e La littérature narra tive d'imagination: des genres littéraires aux techniques
d'expression (Colóquio de Estrasburgo, 1959), Paris, 1961. Faz falta um estudo
de conjunto sobre o «fenómeno narrativo» na Idade Média e a sua explosão no
século XIII.
7 Não escapará ao leitor que esta expressão que veio a ser corrente, «purgar a sua

pena», vem da crença no Purgatório.


8 Philippe ARIES, L'Homme devam Ia mort, Paris, 1977, p. 110.
9 H. NEVEUX, «Les lendemains de Ia mort au Moyen Age» in Annales E.S.e.,
1979, pp. 245-263.

388 389
Jean DELUMEAU na sua grande síntese sobre La peur en Occident du XIV-
.
10 critica. Andrée Duby, a quem agradeço pelas suas informações e sugestões, prepara
XVllr siêcle (1978), Jean WIRTH, no seu belo estudo sobre La jeune fllle et Ia um importante trabalho sobre o Dialogus miraculorum. \
(Pe~uisa sobre as teses macabras na arte germânica do Renascimento), 1979. 29 Num texto notável que teve a amabilidade de me comunicar, Alberto .Forni
I Michelle BASTARD-FOURNIÉ, «Le Purgatoire dans Ia région toulousaine 111 acentua que para os ouvintes de sermões o tema do Purgatório «é fonte de terror». 1
XIV" siêcle et au début du XV" siêcle» in Annales du Midi, pp. 5-34: «Êxito efémero • É verdade, mas noutros contextos a «infernização» do Purgatório não é levada tão
escala do tempo histórico; parece que no século XVIII o Purgatório já não está ao longe. A. FORNI, «Kerigma e adattamento. Aspetti della predicazione cattolica nei
centro das preocupações religiosas dos naturais de Toulouse, a acreditar-se no leite- secoli XII-XIV» (a aparecer no Bullettino dell'Istituto Storico Italiano per iI Medio
munho dos testamentos» (p. 5, nota 2). Evo},
12 Ver adiante, pp. 358-360.
30 São os exempla I, 32 (conversão de um abade de Morimond que ressuscitou); 11,
13 A. AARNE e S. THOMPSON, The Types of the Folktale, 21 ed. revista, Hei. 2 (monge apóstata que se fez salteador de estrada e no momento da morte se arrepen-
sinquia, 1964, p. 161. deu e escolheu dois mil anos no Purgatório); m, 24 (tendo um confessor cometido o
14 Jean-Claude Schmitt, nas suas investigações sobre os espectros, interessa- •• pecado de sodomia com um adolescente, arrependeu-se profundamente mas não ousou
particularmente por este aspecto. confessar-se; depois de morto aparece ao adolescente, conta-lhe as suas penas e exorta-
15 CONRADO D'EBERBACH, Exordium magnum cisterciense, Il, 23, ed. a. -o a confessar-se); 111, 25 (um noviço cisterciense que morre antes de ter podido con-
Griesser, Roma, 1961, pp. 143-147. Agradeço a M. Philippe Dautrey que prepara fessar-se escapa ao Purgatório confessando-se a um padre numa aparição em sonhos);
um estudo sobre A Morte cisterciense por me ter chamado a atenção para estes textoe, IV, 30 (tentações e visões do jovem monge de Heisterbach, Cristiano, que Santa Bár-
16 Também tirado do Liber miraculorum de Herbert, ibid., p. 229. bara preveniu de que sessenta dias de uma doença dolorosa cá em baixo serão conta-
17 Ibid., pp. 332-334.
dos por sessenta anos no Purgatório); VII, 16 (Cristiano, monge de Hemmenrode,
18 Ver o Apêndice IV, pp. 443-444.
devoto da Virgem Maria, vê numa visão a sua alma atravessar um grande fogo mas
19 Chronica ROGERI DE WENDOVER, Flores Historiarum, t. 11, Londres, 1887, ir finalmente para o Paraiso); VII, 58 (um bandido aceita não cometer nenhuma má
pp. 16-35. Mathieu Paris, também monge de Saint-Albans, falecido em 1259, nas sua acção no sábado em honra da Virgem e deixa-se enforcar e decapitar: escapa assim ao
Grandes Chroniques (Chronica Majora) onde continua Roger de Wendover, conteQ. Purgatório); XI, 11 (o converso Mengoz ressuscitado pelo padre Gilberto conta que
tou-se com recopiar palavra por palavra a história de Thurchill tal como a encontrou viu no além mortos que seriam libertados do Purgatório dentro de trinta dias).
em Fleurs des Histoires, MATTHAEI PARISIENSIS, Monge de Sancti Albani, Chro- 31 I, 32, ed. Strange, I, pp. 36-39.
nica Majora, 1. lI, Londres, 1874, pp. 497-511. 3211, 2, ed. Strange, I, pp. 58-61.
20 S';?bre o exemplum ver o fascículo L'Exemplum da Typologie des sources tIN 33 IV, 30, ed. Strange, I, pp. 198-202.
Moyen Age occidental, no prelo, de a. BREMOND, J. Le GOFF e J.-Cl. SCHMITI, 34 VII, 16, ed. Strange, 11, pp. 17-23.
A 21 A velha obra de A. LECOY De La MARCHE, La chaire franpaise au MoJl'lf 3S XII, 24, ed. Strange, 11, pp. 335-336.
Age, spécialement au Xlll" siêcle, Paris, 1886, reimp. em Genebra, 1974, sobre a pli. 36 Ver G. DUBY, Le Chevalier, Ia femme et le prêtre. Le mariage dons Ia France
dica, continua a fornecer informações e ideias preciosas. Ver também de J. Le GOFF. féodale, Paris, 1981.
J.-CI. SCHMITT, «Au XIII" síêcle: une parole nouvelle» in Histoire vécue du peupl, 37 Recusa-se mesmo a sepultura aos usurários.
chrétien (sob a orientação de J. DELUMEAU), vol. I, Toulouse, 1978, pp. 257-279. 38 L. K. LITTLE, «Pride Goes before Avance: Social Change and the Vices in
22 Sobre Jacques de Vitry, Alberto FORNI, «Giacomo de Vitry, Predicatore e Latin Christendom» in American Historical Review, 76, (1971), 16-49.
soeiologo» in La Cultura XVII/I. 1980, pp. 34-89. 39 J. Le GOFF, «The Usurer and Purgatory» in The Dawn of Modem Baking
23 JACQUES DE VITRY, Sermones vulgares, Sermão 68 Ad conjugatos, inédito. (Centro de Estudos Medievais e do Renascimento, Universidade da Califórnia, Los
Transcrição de Marie-Claire Gasnault sobretudo segundo os manuscritos Cambrai 53<t Angeles) New-Haven-Londres, 1979, pp. 25-52.
e Paris BN, ms latino 17509. 40 Dialogus miraculorum, XII, ed. Strange, Il, pp. 336-337.
24 Sermão inédito Sermo communis omni die dominica (I) segundo o manuscrito 41 Ibid., XII, 26, pp. 337-338.
455 de Liêge, fol. 2-2 v, comunicado por Marie-Claire Gasnault, a quem agradeço 42 Ibid., XII, 27, pp. 338-339.
vivamente. 43 Ibid., XII, 28, p. 339.
25 The Exempla or illustrative stories from the sermones vulgares of Jacques de Vitry, 44 Ibid., XII, 29, pp. 339-340.
ed. Th. F. Crane, Londres, 1890, reimp. Nelden, 1967. Edição preciosa pelas suas 45 Ibid., XII, 30, pp. 340-341.
nota.s, mas medíocre pelo texto, e que separa os exempla do contexto do sermão, o 46 Ibid., XII, 31, pp. 341-342.
que ~~pede que se avalie o seu significado. O exemplum citado é o nOXCIV, pp. 52-53. 47 Ibid., XII, 32, p. 342.
Ibid., nOCXXII, p. 56. 48 lbid., XII, 33, pp. 342-343.
27 Ver Fritz WAGNER, «Studien zu Caesarius von Heisterbach» in Analecta Cis- 49 lbid., XII, 34, p. 343.
tercensia 29, 1973, pp. 79-95. 50 Ibid., XII, 35, pp. 343-344.
28 CÉSÁRIO DE HEISTERBACH, Dialogue miraculorum ed. J. Strange, Colónia- 51 Ibid., XII, 36, pp. 344-345.
-Bona-Bruxelas, 1951. F. Wagner anuncia no seu artigo atrás citado uma nova edição 52 Ibid., XII, 37, pp. 346-347.

390 391
53 Ver H. DONDAINE, «L'object et le medium de Ia vision béatifique chez lei ~)'\Ibid., p. 124.
théologiens du XIIle siêcle», in Revue de théologie antique et médiévale, 19, 1952. pp. 65 Ibid., p. 124.

60-130. Sobre a crise do século XIV provocada pela negação da visão beatífica iln 56 Ibid., p. 129.

Papa João XXII ver M. DYKMANS, Les sermons de Jean XXII sur Ia vision béatifl- 67 lbid .. p. 138.

que, Roma, 1973. 68 Ibid., p. 143.

54 Dialogus miraculorum, XII, 38 e XII, 39, pp. 347-348. 69 Ibid., p. 154.

55 Sobre o tema dos sete dons do Espírito Santo nos séculos XII e XIII (os septe- '10 Ibid., p. 160.

nários estão na moda: sacramentos, pecados capitais, artes liberais, etc.) ver O. LOT· 71 Ibid., p. lB5, n. 253.

TIN, Psychologie et Morale aux Xll" et XIII' siêcle, t. IlI, Problémes de moralc /2 Ibid., p. 221.
73 E. KLEINSCHMIDT, «Die Colmarer Dominikaner Geschichtsschreibung im
Lovaina, 1949,. capo XVI, «Les dons du Saint-Esprit du Xlf" siêcle à l'êpoque de saint
Thomas d'Aquin», pp. 327-456. 11. und 14. Jahrhundert» in Deutsches Archiv [ür Erforschung des Mittelalters, 28,
56 Está em preparação uma edição do tratado de Étienne de Bourbon em colabo- lIeft, 2, 1872, pp. 484-486.
74 Ver o belo livro de André VAUCHEZ, La Sainteté en Occident aux demiers
ração entre «l'Ecole nationale des chartes» (Paris), o «groupe d'anthropologie histori-
que de I'Occident médiéval de l'École des Hautes Études en sciences socíaless (paris) e siêcles du Moyen Âge (1198-1431). Recherches sur les menta/ités religieuses médiéva-
«l'Istituto Storico Italiano per il Medio Evo» (Roma). A transcrição do De dono lcs, Roma, 198\.
75 Sobre as lendas latinas, a excelente obra de Guy PHILIPPART, Les /égendiers
timoris foi assegurada por Georgette Lagarde, a quem agradeço vivamente, a partir
do manuscrito latino 15970 da Biblioteca Nacional de Paris onde o Purgatório ocupa iatinset autres manuscrits hagiographiques, Tipologia das fontes da Idade Média oci-
os fólios 156-164. Uma antologia de exempla tirados da compilação de Étienne do dental, Turnbout, 1977. Em 1980 Jean-Pierre Perrot defendeu na Universidade de
Bourbon foi publicada no século passado por A. LECOY DE LA MARCHE, Anec- l'aris-11l uma tese interessante sobre um conjunto de lendas do século XIII em fran-
dotes historiques, légendes et apologues tirés du recuei! inédit d'Étienne de Bourbon, cês. Prosseguem os estudos sobre lendas em inglês e alemão.
76 A edição do texto latino da Légende dorée p<;>r
Th. Graese, Dresde-Leipzig, 1846,
dominicain du XIIr siêcle, Paris, 1877. O autor extraiu 14 exempla respeitantes ao
Purgatório que se encontram nas pp. 30-49. Madame Lagarde transcreveu a totalida- loi feita apenas a partir de um único manuscrito. A tradução medíocre para francês de
de dos 39 exempla sobre o Purgatório. Humbert de Romans, mestre geral dos Prega- Roze, Paris, 1900 (reed. em 1967) deve preferir-se a de Téodor de Wyzewa, Paris, 1902,
dores, compôs no Convento dos dominicanos de Lyon, para onde se retirara entre embora mais difícil de encontrar.
77 Legendo aurea, ed. Graese, pp. 213-216.
1263 e a sua morte em 1277, uma compilação de exempla, o Liber de dono timoris
ou Tractatus de habundancia exemplorum que aguarda ser editado de maneira critica 78 lbid., pp, 728-739.
79 «Purgantur in quodam loco juxta infernum posito qui purgatotium dicitur», ibid.,
e ser estudado. Está muito próximo do tratado de Étienne de Bourbon.
57 •
GERVASIO DE TILBURY, ed. LEIBNIZ, Scriptores rerum brunsvicensium, I, [J.730.
921 ;8 LIEBREC:HT, Des Gervasius von Tilbury Otia imperia/ia, Hanover, 1856, p. 12. 80 Ibid., p. 736.
9 Texto latino em A. LECOY DE LA MARCHE, Anecdotes historiques ..., p. 32. 81 Ibid., p. 739.
82 Sobre Lutgarda ver S. ROISIN. «Sainte Lutgarde d'Aywiêres dans son ordre
5 Arturo GRAF, «Artú nell'Etna» in Leggende, miti e superstizioni dei Medio Evo,
Turim, 1925. et son temps» in Co//ectanea Ordenis Cisterciensium reformatorum, VIII, 1946,
60 A. LECOY DE LA MARCHE, Anecdotes historiques .... pp. 30-31. pp. 161-172. L. REYPENS, «Sint Lutgarts mysticke opgang» in Ons geest Erf., XX,
61 Ibid., p. 43. !946.
62 Agradeço a Colette Ribaucourt que transcreveu um manuscrito inédito do Alp- 83 Vila, 11, 4 ACla Sanctorum, 16 de Junho, Junho, IV, ed. Paris-Roma, 1867.
h~~etum narrationum por ter tido a gentileza de me comunicar os «exempla do Purga- 84 Vila, lI, 9, ibid., p. 198.
tono». Sobre o Alphabetum narrationum ver J. Le GOFF; «Le vocabulaire des exempla 85 Vita, m, 5, ibid., p. 205.

d'aprês YAtphabetum narrationum» in La lexicographie du latin médiéval (aetas do 86 Vila, Hl, 8, ibid., p. 206.
87 Cf. J. CHIFFOLEAU, La comptabilité de l'Au-delà, les hommes, ia mort et Ia
colóquio de Paris, 1978), Paris, 1981.
. Se se quiser ter uma ideia aproximada do lugar do Purgatórionos exempla medie- région comtadine à Ia fin du Moyen Âge, Rome, 1981, e M. Bastard-Fournie, «Le
vais pode consultar-se o Index exemplorum de F. C. Tubach que examinou as princi- Purgatoire dans Ia région toulousaine au XIV" et au début.do x.ye siêcle», in Annales
pais compilações de exempla dos séculos XIII e XIV. Assinala trinta temas de exempla du Midi, 1980, 5-34, designadamente pp. 14-17 (e n. 65).
88 J.-P. REDOUTEY, «Le testament de Renaud de Bourgogne, Comte de Mont-
do Purgatório. No fascículo da Tipologia das fontes da Idade Média ocidental sobre o
exemplum podem encontrar-se indicações quanto aos méritos e defeitos desse instru- bêliard», in Société d'émulation de Montbéliard, vol. LXXV, fase. 192, 1979, pp. 27-57.
mento de trabalho: F. C. TUBACH, Index exemplorum. A Handbook of Medieval Ver a notícia breve de P. C. TIMBAL, «Les legs pieux au Moyen Age» in La Mort au
Moyen Âge, colóquio da Sociedade de historiadores medievalistas, Estrasburgo, 1975,
Religious Tales.Pi' Communications, nO204, Helsínquia, 1969.
63 Nicole BERIOU, «La prédication au béguinage de Paris pendant l'annêe litur- Estrasburgo 1977, pp. 23-26.
89 J.-L. LEMAITRE, Répertoire des documents nécrologiquesfranpais. sob a orien-
gique 1272-1273», extraído de Recherches augustiniennes, volume XIII, 1978, pp. \05-
-·229. tação de P. Marot, Recueil des historiens de la France, 2 vol., Paris, 1980, pp. 23-24.

392 393
900t t '.
exto ongmal foi publicado G F AGN
l'his~fjre de l'":dr:strie en France, t. I, P~~:, 1898. IEZ, Documents pour servt« ~ x - O TRIUNFO rormco. A «DIVINA COMÉDIA»
_ Aproveitei os exemplos dados por TOBLER-LO .
Wõrterbuch VII 1969 col 209 . MMATZCH, AltjrfUlzosLfC/w
YEN Le 'tif ti '.' 6-2097, s.v. purgatotre e as referências de J -Ch "A
Genebra ~;6~ u repenttr ~ Ia littérature française médiévale (des origine~ à Il.W)
tóri ' s.v, purgatoire, mas apenas os textos onde se menciona explicitarncnl •
~a~~:f.a ono, o que, por exemplo, não é o caso do «conto piedoso» Le chevalier ,,:

. 92 PHILIPPE DE NOV ARE, IV âges d'omes ed M de FréviU P .


«c~lfait lijones po de penitance ou siêcle; si estue; qu;i/ /~ [ace grfUlte~t laons,1888, p.l]
toire,» J' ligue en purll"
93 L'R
I
94 E omans ~ B~udouin de Sebourc, XVI, 843, in Tobler-Lommatzch VII 2097
n purgatOlre c est Ia somme ' ,.
Menez en fu por les meffaix '
9S Qu'en sa vie out ouvrez et fait (ibid.)
Et sages home amesurer
Se doit si ke puisse durer Pouco depois de terem passado cem anos sobre o seu nascimento, o
S'aumosne tant qu'iJ iert en víe Purgatório beneficia de uma oportunidade extraordinária: o génio poéti-
Si qu'a Ia mort li fache aie co de Dante Alighieri, nascido em Florença em 1265, confere-lhe defini-
De li mener en purgatoire tivamente um lugar de eleição na memória dos homens. Entre o seu exílio
Pour lui poser net en Ia gloire ... em Florença em 1302 e a sua morte em Ravena em 1321, Dante compôs a
LeD' de •.
96 ~ penitence, 2.885 (citado por Tobler-Lommatzch VII 2097) nivina Comédia cujos dois primeiros cantos, ou seja, o Inferno e o
Arseruo FRUGONI II Gi U bil di " '"
Storico Italiano per i/ Medi~e:o e A h ~~ M,Borufa.clO VIII»> in Bollettino del/'Islilulll Purgatório já estavam terminados em 1319, como prova uma carta do
Incontri nel Medio e», Bolonha 1';7~Vlpo 7;~~~o7rU11/o, 1950, pp. 1-121, retomado em erudito bolonhês Giovanni dei Virgilio.
97·PL, 72,222. "p.. Não é apenas para mostrar a obra do acaso na história do Purgatório
: Bul/arium Anni Sancti, ed. H. Schmídt, Roma, 1949, p. 35. que termino este estudo com a Divina Comédia. E também não é apenas
100A. FRUGONI, Incontri nel Medioevo, p. 106. rara, no fim deste livro, deixar o Purgatório nas alturas onde Dante o
197~'oP~' ~70~~~~8,E;:~C~
~~~~~~t~~8~ella societâ piemontese dei trecento, Turim, colocou. É igualmente, é sobretudo, porque Dante, através de uma obra
de excepção, reuniu numa sinfonia a maior parte dos temas esparsos cujo
Inquisuio UI Rlxendinfanaticam in I Von DOLLING . _
geschichte des Mittelalters, Munique 1890' t II 706-7 ER, Beitrãg« zur Sekten. rasto segui nesta obra. li Purgatorio é uma conclusão sublime para a lenta
102 J DUVERNOY ."" pp. 11. génese do Purgatório. É também, de entre estas imagens possíveis e por
1978, I, 354. ' Le registre d'Inquisition de Jacques Fournier, Paris-Haia.
vezes concorrentes do Purgatório que a Igreja, ao afirmar o essencial do
103 Ibid., p. 160. dogma, deixara à escolha da sensibilidade e da imaginação dos cristãos, a
104 nu., p. 163.
mais nobre representação do Purgatório nascida do espírito humano.
105 Ibid., p. 167.
Na selva dos comentários dos estudiosos de Dante, entre os quais
106 BONVESIN DALLA RIV ALe'
Consultei a edição de Leandro B ' opere .vo/gan, ed. G. Contini, I, Roma, 1941. seria ridículo pretender incluir-me, segui o simples caminho de uma lei-
Riva Pisa 1902 De IAI?ENE,.// libro deI/e Tre Scritture di Bonvesin dalla tura desapaixonada do poema em que o meu guia era a lembrança dos
, , . vo aos meus amigos Girolamo Arn ldi R I
cimento dos textos de Bonvesin daUa Riva e de Giaco:U eda a~u Manselli o conhe- numerosos textos que haviam precedido a Divina Comédia na busca do
107 GIACOMINO DA VERONA, IA Gerusalemme no erona:.. Purgatório '. Traçarei, em primeiro lugar, esse percurso.
ed. E. Barana, Verona, 1921. Utilizei a edição de R Br cele~/~:;O ~abl.lo~~ infemale,
Duecento, I, Nápoles, 1960, pp. 627-652. . oggIru-. ontini ID Poeti dei
108 JACOPO PASSA VANTI Lo S. '.
pp. 387-391. ' 'pecchio di vera penitenza, ed. M. Lenardon, o sistema dantesco do Purgatório

Dante já disse muito a esse respeito no último verso do Inferno.


O poeta e o seu guia, Virgílio, saíram para «tornar a ver as estrelas».
O Purgatório não é subterrâneo. Está ao nível da terra sob o céu estrela-
394
395
do. Um velho sábio da Antiguidade, Catão da Útica recebe-os porque é O ção profunda desses lugares marginais na crença e nas práticas.
guarda do Purgatório. Este é uma montanha cuja parte inferior é uma O verdadeiro sistema do além adoptado pela massa dos fiéis não foi o
antecâmara, um lugar de espera onde estão na expectativa os mortos sistema dos cinco lugares mas o dos três lugares. No entanto, os limbos
que ainda não são dignos de entrar no Purgatório propriamente dito. também estão presentes na Divina Comédia. Os dois limbros: o dos anti-
A montanha ergue-se no hemisfério sul, ocupado, segundo Ptolomcu gos sábios e dos patriarcas, o das crianças do mundo cristão. Sente-se
que segue Dante, por um oceano deserto impenetrável para os homens Dante dilacerado entre a sua admiração, o seu reconhecimento, o seu
vivos. Eleva-se nos antípodas de Jerusalém (Ill, 3, IV, 68 e ss.). O Purga- afecto pelos grandes espíritos pagãos - a escolha de Virgilio para guia é
tório propriamente dito é abordado pelos dois peregrinos no canto nono, plena de sentido -, a sua piedade e a sua ternura pelas crianc.inhas mort~s
quando Virgilio anuncia ao seu companheiro: de tenra idade, por um lado, e, por outro lado, a sua estreita ortodoxia
cristã. Ninguém poderá ser salvo no céu sem ter recebido o baptismo.
Chegaste agora ao Purgatório Mas os duplos habitantes dos limbos não cessam de perseguir Dante
Vê lá em baixo a falésia (balzo) que o cerca ao longo de toda a sua peregrinação. Para os sábios e os justos de antes
Olha a entrada no sítio em que ela parece interrompida de Cristo há dois destinos diferentes. Os que viveram sob a antiga lei
foram salvos pelo Cristo que desceu àquela parte do Inferno que consti-
(v. 49-51).
tuía o limbo dos patriarcas,
O Purgatório é formado por sete círculos ou cornijas sobrepostas
e fê-Ias bem-aventurados
(cerchi, cerchie, cinghi, cornici, giri, gironi), cuja circunferência vai dimi-
nuindo à medida que se sobe. Ali as almas purgam os sete pecados capi- (Inferno, IV, 61):
tais: por sua ordem, o orgulho, a inveja, a cólera, a preguiça, a avareza, a
gula e a luxúria. No cume da montanha Virgílio e Dante entram no pa- e que Ele fechou definitivamente. Quanto aos pagãos, têm de ficar a esse
raíso terrestre onde se passam os seis últimos cantos do Purgatório nível de trevas, mas Deus concedeu-lhes no ponto mais alto dos infernos,
(XXVIII a XXXIIn. No limiar do paraíso terrestre Virgílio abandona ao nível do primeiro círculo, um castelo nobre (nobile castello) onde
a sua tarefa e diz àquele que conduziu até então: vivem «num prado de fresca verdura», limitado por um lado por «um
lugar aberto, luminoso e elevado» (Inferno, IV, 106 e ss.). Os sábios anti-
Não esperes que eu te diga mais nem que te faça sinal
gos, cuja evocação e reminiscências não cessam de acompanhar Dante no
Livre, recto e são é o teu arbítrio
decurso da sua peregrinação, estão também explicitamente presentes no
E seria um erro não lhe obedecer:
Purgatório: são eles Aristóteles e Platão e tantos outros de que recorda «o
Por isso faço-te soberano e dou-te a coroa e a mitra
desejo sem fruto» do verdadeiro Deus (III, 40-45); é Juvenal que Virgílio
(XXVII, 139-142). evoca descendo para «o limbo do inferno» (XXII, 14); é Estácio, pergun-
tando ansiosamente a seu mestre Virgílio se os grandes escritores roma-
.0 poeta desaparece deixando em lágrimas Dante a quem logo aparece nos estão condenados e Virgílio respondendo-lhe que estão com ele «no
Beatriz que será a sua guia na última fase da peregrinação, no terceiro primeiro recinto da cega prisão», onde falam frequentemente da monta-
reino, o Paraíso. nha, do monte do Purgatório, onde residem as suas amas, as Musas
Ninguém melhor do que Dante exprimiu a ligação entre o sistema da (XXII, 97 e ss.). Foi aliás um deles que Deus pôs como guarda da monta-
Criação cá em baixo no mundo e no além. Do Inferno emerge-se ao nível nha do Purgatório: Catão de Útica. Alguns admiram-se por verem essa
do mundo intermédio e temporário, o da terra, de onde se eleva para o função confiada a um pagão que, ainda por cima, se suicidara. Mas Dan-
céu a montanha do Purgatório coroada pelo Paraíso terrestre que já não te tinha a maior admiração por aquele que, pelo preço da própria vida,
se situa num canto perdido do universo mas ao seu nível ideológico, o da fora o campeão da liberdade (Purgatório, I, 70-75). No Banquete Virgílio
pureza, entre o auge da purificação no Purgatório e o início da glorifica- faz dele o símbolo do cidadão, do herói da vida cívica que julga ter nas-
ção no Céu. Aqui parecem relativamente sacrificados os limbos, sobre os cido «não para si próprio mas para a pátria e para o mundo inteirov'.
quais no século XIII os teólogos profissionais se tinham complacentemen- Quanto às crianças mortas antes do baptismo e apenas marcadas pelo
te entendido, sem que a isso tenha correspondido, parece, uma implanta- pecado original, estão com os sábios pagãos naquele mesmo castelo do

396 397
primeiro círculo do Inferno, o que é revelado por Virgílio ao trovador com evocá-Ia de maneira significativa no segundo canto do Purgatório
Sordel que encontra no antepurgatório: quando, na nau do anjo barqueiro, «as almas cantam todas juntas em
uníssono o salmo CXIII In exitu Israel de Aegypto que se cantava na
Existe lá em baixo um lugar ensombrado não por tormentos Idade Média enquanto se transportavam os mortos de sua casa para a
Mas apenas por trevas, onde os lamentos Igreja e depois para o cemitério (lI, 46-48). O essencial está na ascensão
Não soam como gritos e não são mais do que suspiros dessa montanha constantemente referida (eele sobe» ao longo de todo
É lá que eu moro com os pequenos inocentes canto)" e a que se chama mesmo «o monte sagrado» (U sacro monte,
Que os dentes da morte morderam antes XIX, 38), o monte santo (U santo monte, XXVIII, 12). A esta monta-
De terem sido lavados do pecado humano
nha, em dois daqueles versos de que tem o segredo para evocar várias
(VII, 28-33). sensações ao mesmo tempo, Dante define-a como um puy, breve designa-
ção de vulcão, e como que erguida em direcção ao céu onde deve condu-
Ainda no Paraíso, Dante evocará as criancinhas retidas no limbo do zir:
Inferno:
e eu dirigi o meu olhar para o pico
que do sítio mais alto se ergue para o céu
Mas depois que veio o tempo da graça
(e diedi il viso mio incontro al poggio
Sem o perfeito baptismo do Cristo che'nverso il ciel piú alto si dislaga)
Essa inocênciafica retida lá em baixo
(111, 14-15).
(XXXII, 82-84).

Montanha muito alta, muito escarpada, muito penosa de escalar. Vir-


Se Dante soube dar ao Purgatório todas as suas dimensões foi porque gílio arrasta literalmente Dante e trepam de gatas:
compreendeu o seu papel de intermediário activo e o mostrou graças à
sua encarnação espacial e à figuração da lógica espiritual em que se inse- subíamos pela fenda aberta na rocha
re. Dante soube estabelecer a ligação entre a sua cosmogonia e a sua e de todos os lados as paredes esmagavam-nos
teologia. Alguns comentadores afirmaram que ele introduzira - quase e debaixo de nós o solo reclamava pés e mãos
como verbo-de-encher - na Divina Comédia os conhecimentos adquiri- quando estávamos na aresta superior
dos na frequentação, segundo as suas próprias palavras, das «escolas da alta falésia, num lugar descoberto
religiosas e das discussões dos filósofos» a que se entregara de corpo e «meu mestre, disse eu, que caminho vamos tomar?»
ele para mim: «que nenhum dos teus passos desça:
alma após a morte de Beatriz em 1290. Quem não vê que a sua cosmo-
avança apenas atrás de mim para o alto da montanha»
gonia, a sua filosofia e a sua teologia são a própria matéria - a matéria e o
espírito - do seu poema? (IV,31-38).
O Purgatório é bem «esse segundo reino» entre o Inferno e o Paraíso.
Mas Dante tem desse além intermédio um conceito dinâmico e espiritual. o cume era tão alto que desafiava a vista
O Purgatório não é um lugar intermédio neutro, é orientado. Vai da terra
(IV,4O).
onde os futuros eleitos morrem, ao céu onde fica a sua morada eterna. No
decurso do seu itinerário eles purgam-se, tomam-se cada vez mais puros,
aproximam-se sempre mais do topo, das alturas a que se destinam. De Este «segundo reino» que é todo um mundo, por sua vez está dividido
entre todas as imagens geográficas que o imaginário do além oferecia a em sete regiões a que Dante também chama reinos: são os «sete reinos»
Dante desde há tantos séculos, ele escolhe a única que exprime a verda- pelos quais Virgílio pede ao porteiro Catão que os deixe passar, a ele e a
deira lógica do Purgatório, aquela onde se sobe, a montanha. Para Dante Dante:
que realiza, na invocação dos fins últimos, a síntese entre o mais novo (o
Deixa-nos ir pelos sete reinos
Purgatório) e o mais tradicional (o temor do Inferno e o desejo do Céu),
não existe cristalização dos sentimentos à volta da morte. Contenta-se (1,82).

398 399
De um destes reinos para o seguinte, de uma cornija para a que 1M espiritual mais elevada. Enfim, a purgação faz-se pela oração que purifica
está por cima, os viajantes sobem escadas, degraus escarpados (scale a alma, fortifica-a na graça de Deus e exprime a sua esperança".
scaglioni, scallo, gradi, etc.). Ei-los, por exemplo, quando sobem da quar- O princípio que explica a distribuição das almas pelas cornijas do
ta para a quinta cornija: Purgatório é o amor. Virgílio explica a Dante o seu mecanismo quando
vão a meio da montanha, entre a terceira cornija, a dos coléricos, e a
entre as duas paredes da dura rocha quarta, a dos preguiçosos.
(XIX,48).
Dante interroga o seu guia durante uma paragem que não deve inter-
romper a lição que vai recebendo progressivamente:
Meu doce irmão, diz-me, que ofensa
se expia neste círculo onde estamos?
A montanba da purgação
Se os nossos passos pararem, que não parem os teus ensinamentos

Mas esta montanha é a da purgação e esse é bem o acto essencial que (XVII, 82-84).
lá se produz. Este tema é posto logo de início por Dante:
O fundo comum a todos os pecados é a ausência de amor de Deus,
E eu cantarei este segundo reino quer dizer do bem. O amor desviado para o mal, o amor tíbio de mais, o
onde a alma humana se purga amor transformado em ódio, eis o movimento profundo do pecado; sobre
e se torna digna de subir ao céu a montanha do Purgatório restaura-se o verdadeiro amor, a escalada do
(I, 4-6).
Purgatório é uma subida para o bem, o retomar da navegação em direc-
ção a Deus, atrasada pelo pecado. Dante reúne aqui as metáforas da
montanha e do mar naquele lugar onde o monte surge do oceano. Com
Virgílio, dirigindo-se a Catão, recorda que mostrar essa purgação a efeito, Virgilio responde:
Dante é o objectivo daquela parte da sua viagem:
o enfraquecido amor do bem
e agora quero mostrar-lhe esses espíritos restaura-se para o seu dever,
que se purgam sob a tua guarda aqui regressa e retoma a sua batida o remo indevidamente retardado
(I, 65-66). (XVII, 85-87)5.

~o meio da purgação colectiva, Dante atenta nas purgações indivi-


A lei do progresso
duais. E, por exemplo, o caso do poeta Guido Guinizelli na sétima cor-
nija, a dos libidinosos:
Toda a lógica deste purgatório montanhoso está no progresso que se
Sou Guinizelli e já estou a purgar-me consegue ao subir: a cada passo a alma progride, torna-se mais pura. É
uma ascensão em sentido duplo, sentido fisico e sentido espiritual. O sinal
(XXVI,92). deste progresso é o aligeiramente da pena, como se a escalada se tornasse
mais fácil, a montanha menos escarpada, para a alma cada vez menos
A purgação na montanha faz-se de três maneiras: por uma punição carregada de pecados.
material que mortifica as paixões más e' incita à virtude. Pela meditação Logo no antepurgatório Virgilio anunciou-o a Dante:
sobre o pecado a purgar e sobre a virtude oposta: de certo modo, existe
no Purgatório um tratado das virtudes e dos vícios. Meditação facilitada E ele para mim: «Esta montanha é tal
que sempre lá em baixo no princípio ela é difícil
pelo .exemplo de mortos ilustres ou conhecidos encontrados nas cornijas.
mas quanto mais o homem se eleva, menos ela faz sofrer»
AqUI Dante desenvolve a utilização tradicional dos mortos do Purgatório
para fins políticos (e que poeta foi mais político do que ele?) numa lição (IV,88-90).

400 401
E de novo as imagens da escalada e da navegação misturadas: de eleitos e lá sofrem; mas a justiça de Deus que é perfeita e se confunde
com a misericórdia e a esperança e que reina nesses lugares atenua os
Assim, quando ela se tornar tão suave
Que te seja fácil subi-Ia
sofrimentos que vão diminuindo à medida que se sobe.
Como é fácil descer de barco a favor da corrente, Na sexta cornija, Dante diz ao seu amigo Forese Donati que a monta-
então estarás no fim deste caminho nha onde se encontra e para onde Virgílio o levou é o lugar que levanta e
dignifica:
(IV, 91-94).
De lá os seus incitamentos levaram-me para o alto
A partir da primeira comija já há melhoria; os corredores verticais são subindo e contornando a montanha
substituídos por escadas: que dignifica aqueles que o mundo tornou defeituosos
(XXIII, 124-126).
... Vem, aqui estão os degraus
daqui em diante sobe-se mais facilmente

(XII, 92-93).
o Purgatório e os pecados
No alto desta primeira escada Dante evoca a lei de progressão que é
também uma lei de progresso: Este Purgatório é bem aquele onde os pecados são expiados, mas
Dante parece ter esquecido, pelo menos em parte, os ensinamentos dos
Estávamos no cimo da escada teólogos. Não são os pecados veniais os que lá se expiam, pecados de que
lá onde pela segunda vez se interrompe Dante não fala a não ser talvez quando alude a eles ao evocar o amor
a montanha que apaga o mal enquanto a subimos
excessivo pela família, um desses pecados «leves» já citados por Agosti-
(XIII, 1-3). nho. Mas no entanto, no essencial, purgam-se nas sete comijas os sete
pecados capitais tal como no Inferno. Dante, sempre consciente da lógi-
ca profunda do Purgatório, vê nele um inferno temporário que lembra os
Na comija seguinte um anjo faz notar aos alpinistas a continuação das
melhorias, num clima mais descontraído: tormentos infernais merecidos pelos mesmos pecados mas também eles
cometidos de maneira menos grave, seja porque foram parcialmente apa-
Diz-nos ele com voz alegre: subi por aqui gados pelo arrependimento e a penitência, seja porque foram menos in-
Por uma escada bem menos íngreme do que as outras veterados do que os dos condenados, seja porque somente em parte
mancharam uma vida animada pelo amor de Deus em tudo o resto.
(XV, 35-36). Um anjo marca simbolicamente Dante por esses pecados à entrada do
Purgatório, traçando com a ponta da espada sete vezes a letra P (peccato,
À chegada à quinta comija onde os mortos choram estendidos com a pecado) sobre a sua testa.
face contra o chão, pedem-lhe auxilio, invocando o princípio do progres-
so da ascensão: «Arranja maneira de lavar
quando estiveres lá dentro, esses ferimentos», diz ele
Ó eleitos de Deus, cujos sofrimentos
São suavizados pela justiça e pela esperança (IX, 112-114).
Guiai-nos até aos degraus que sobem mais alto
Com efeito, à saída de cada cornija um anjo apagará uma das chagas,
(XIX, 76-78).
um dos pecados marcados sobre a fronte ,de Dante.
No décimo-sétimo canto, depois de Virgílio ter explicado a Dante a
Esta nova interrupção sintética lembra alguns dados essenciais do lista das infracções ao amor, esclarece-o também, à luz desse princípio,
Purgatório: as almas que lá moram estão prometidas ao céu, são almas sobre o sistema dos sete pecados capitais.

402 403
As três primeiras formas da transformação do amor do bem em amor senão com ajuda (XI, 127-129). Daí a surpresa de Dante por encontrar no
do mal são as três espécies de ódio ao próximo, ou antes o amor do mal Purgatório, menos de cinco anos depois de ter morrido, Forese Donati,
do próximo ('I mal che s'ama e dei prossímo). São a vontade de o humi- cujo pouco zelo no arrependimento o fazia julgá-lo no antepurgatório
lhar, a impossibilidade de suportar a sua superioridade, o desejo de se
vingar de qualquer ofensa. Os três primeiros pecados capitais são pois: lá em baixo
o orgulho, a inveja e a cólera (XVII, 112-123). num lugar onde o tempo é restaurado pelo tempo
Há, por outro lado, três formas de um outro amor: «que se dirige para (XXIII, 83-84).
o ~m mas segundo uma corrupção da ordem» (XVII, 125 e ss.). Virgílio
deixa a Dante o cuidado de descobrir, na sequência da sua ascensão as
três formas desse amor corrupto. Serão elas a avareza, a gula e a luxúria. O antepurgatório
No centro do sistema inscreve-se o relaxamento do amor, o amor
tíbio, o amor «lento» (lento amore). É o pecado que se expia a meia A originalidade de Dante está, com efeito, no facto de imaginar que
altura da montanha: essa indolência, esse aborrecimento da vida nascido muitos pecadores, antes de penetrarem no espaço onde se desenrola o
no meio monástico, a que se chama em latim accedía (de onde o italiano processo de purgação, fazem um estágio num lugar de espera, o antepur-
accídia) de que se purgam os «tristes» (tristi} da quarta cornija.
Verifica-se que esta lista dos sete pecados capitais é também uma lista
hierárquica, pois elevando-se de cornija em cornija as almas progridem.
, gatório, no sopé da montanha. Pode supor-se que, estando cada vez mais
o Purgatório prometido aos que se contentavam com um acto de contri-
ção in extremis (já em Cesário de Heisterbach se adivinhava isso), Dante
Também aqui Dante se mostra tradicionalista e inovador simultaneamen-
te. T,radicionalista porque põe à cabe~a dos pecados o orgulho, quando
I julgou necessário, por muito inclinado que estivesse a acreditar largamen-
te na justiça de Deus, instituir essa provação suplementar, a espera junto
no seculo XIII a avareza o suplantara . Inovador porque considera mais
graves os pecados do espírito cometidos contra o próximo, o orgulho a
I do Purgatório.
É uma multidão inquieta, ignorante do caminho para o Purgatório,
inveja, a cólera, do que os pecados da carne cometidos em grande parte que pergunta a Virgílio e a Dante:
contra o próprio, a avareza, a gula, a luxúria. Para este último vício,
Dante faz beneficiar do Purgatório, tal como condenara ao Inferno, os Se o sabeis,
libidinosos, tanto homossexuais como heterossexuais (canto :XXVI). Mostrai-nos o caminho que leva à montanha
No mecanismo do pecado que conduz ao Purgatório, Dante parece ter (lI, 59-60)
sido especialmente sensível ao carácter tardio do arrependimento. Volta a
isso por várias vezes. É, no antepurgatório, Belacqua convencido de A Dante, que no antepurgatório pergunta ao seu amigo Caselia:
que lhe é inútil ir até à porta do Purgatório que continuará a estar-lhe
fechada, Mas tu, como te atrasaram tantas horas?
«Porque, diz ele, adiei até ao fim os salutares suspiros»
este contenta-se com responder:
(IV, 132).
Nenhum mal me fizeram,
É a multidão daqueles que receiam a morte violenta e, por isso,
mas o anjo que leva consigo quem lhe agrade e quando lhe agrada,
só se arrependeram no último momento: mais de uma vez me recusou a passagem
«Morremos todos outrora de morte violenta pois a sua vontade é o reflexo de uma vontade justa
e fomos pecadores até à hora última» (11, 94-97).

(V, 52-53).
É ele que recorda como sendo realidade a velha lenda segundo a qual
Na primeira cornija recordam-lhes que um morto que tenha esperado as almas dos mortos não condenados mas que têm de se purgar, se reú-
a última hora para se arrepender não pode ser admitido no Purgatório nem em Ostia, junto da foz do Tibre:

404 405

-------~-~"', .."=~~~
Foi assim que, quando eu contemplava o mar, Virgilio tem de o acalmar.
lá onde a água do Tibre se torna salgada, A montanha é bem um lugar de castigos. Eis, por exemplo, na segun-
fui apanhado por ele com benevolência da cornija, a dos invejosos, o chicote, se bem que as cordas sejam entran-
e ele estendeu as asas em direcpão àquela foz çadas de amor,
porque é lá que sempre se reúnem
as almas que não têm de descer ao Aqueronte Este círculo castiga
O pecado da inveja, e é por isso que as cordas
(11, 100-105). do chicote são entranpadas de amor

o orgulhoso provençano Galvani ficou a dever apenas a uma acção


piedosa que foi para ele uma humilhação ter escapado à espera no ante-
I (XIII, 37-39).

purgatório. Para pagar o resgate de um amigo seu, mendigou na praça II Estas sombras dos invejosos sofrem penas ainda piores,
principal da cidade:
pois um fio de ferro atravessa as pálpebras de todas
Essa acpão tirou-lhe a pena do exílio e os pescoços, como se faz aos gaviões selvagens
se não estão quietos
(XI, 142).
(XIII, 70-72).
Guido Guinizelli, esse, já pode purgar-se .t Entre os pecados cometidos na terra e a intensidade e duração destes
«Porque, diz ele a Dante, arrependi-me antes dos meus últimos dias» castigos, especialmente o tempo de espera no antepurgatório, existe, para
lá do nível da montanha onde se purga a culpa, essa proporcionalidade
(XXVI,93). em que reconheci uma das características do sistema do Purgatório.
O filho legítimo de Frederico 11, Manfredo, que morreu excomunga-
Foi na época em que Dante fez a sua viagem pelo além que aconteceu do, declara no antepurgatório:
uma circunstância que remove os obstáculos à porta do Purgatório e
empurra para a montanha a multidão de almas que esperam. São as in- É verdade que aquele que morre em conflito
dulgências decididas pelo Papa Bonifácio VIII por ocasião do jubileu de com a Santa Igreja, mesmo que no fim se arrependa,
1300. Casella di-lo a Virgílio e a Dante ao falar do barqueiro Catão: tem de ficar no exílio fora desta vida
trinta vezes o tempo que ficou
Para falar verdade, há três meses que ele na sua teimosia
recebe em paz quem quer entrar. nn, 136-140).
(11,98-99).
E Belacqua:
Que melhor testemunho se poderia encontrar da perturbação provo-
Primeiro é preciso que o céu gire à minha volta durante o mesmo tempo
cada pela inovação de Bonifácio VIII nas práticas relacionadas com o
em que o fez durante a minha vida, enquanto eu espero cá fora
Purgatório?
porque retardei até ao fim os salutares suspiros
Não só não entra quem quer e como quer, como não deve pensar-se
que o Purgatório dantesco é já um Paraíso. As suas cornijas ressoam de (IV, 130-132).
lamentos e gemidos. Ao aproximar-se dele, Dante, em sonhos, fica ater-
rorizado. Estremece e toma-se lívido, Examinando em imaginação essa proporcionalidade, Estácio, o gran-
de admirador de Virgílio, garante que teria de boa vontade passado mais
como um homem a quem o medo faz gelar um ano suplementar no Purgatório para ter podido viver na terra ao
(IX,42).
mesmo tempo que Virgílio (XXI, 100-102).

406 407
Mas Dante retoma a afirmação vinda de Agostinho, segundo a qúal as Este fogo é tão forte que impede Dante de se lançar nos braços do seu
penas do Purgatório são superiores à pior das penas terrenas. Fá-lo no mestre Guido Guinizelli
seu jeito imaginativo, utilizando o relevo montanhoso que deu ao Purga-
tório: No entanto, por causa desse fogo 1UÜJ me aproximei mais
(XXVI, 102),
Chegámos entretanto ao sopé da montanha.
Aiencontrámos rochas tão escarpadas
Que a agilidade das pernas era em vão enquanto o trovador Arnaut Daniel
Entre Lerici e Turbia; o mais ermo,
o mais duro montão de pedregulhos é uma escada se perde no fogo que o purifica
fácil e espaçosa se o compararmos com aquelas rochas
(XXVI, 102).
(III, 46-51).

o fogo
I Enfim, no momento de deixar o Purgatório pelo Paraíso terrestre, é
preciso passar através da parede de fogo. O anjo da última cornija anun-

Dante faz frequentemente alusão àquilo que, antes dele, se identificou


mais ou menos com a pena do Purgatório, o fogo.
A No pesadelo que o atormenta ao aproximar-se da montanha, Dante
I cia-o:

Não se vai mais longe se primeiro não se sofrer


a mordedura deste fogo; ó almas santas entrai nele...
ve em sonhos um fogo: (XXVII, 10-11).
Aí tive a impressão de que ardíamos 1
e o incêndio imaginário tornou-se tão pungente Dante olha o fogo com apreensão:
que foi preciso o meu sono interromper-se
Inclinei-me por cima das minhas mãos postas
(IX, 31-33). olhando o fogo, e imaginei com nitidez
corpos humanos que outrora vira arder
Dante julgou-se no Inferno:
(XXVII, 16-18).
Escuridão de inferno, escuridão de uma noite privada
de qualquer estrela; um céu estéril, Virgílio tranquiliza-o:
ensombrado de nuvens tanto quanto é possível,
não pôs diante da minha vista um viu tão espesso Podes estar certo de que, se no seio desta chama
como este fumo que nos cobriu tivesses de ficar mil anos e mesmo mais,
ela não poderia queimar-te um único cabelo
(XVI, 1-5).
(XXVII, 25-27).
Na sétima e última cornija o fogo queima os libidinosos (XXV, 137):
Aqui o flanco da montanha dardeja chamas para cima
A provação é no entanto penosa, se bem que Virgílio tenha entrado no
e do fundo da ravina sopra para o alto um vento fogo à frente dele:
que os empurra para trás e os afasta da borda:
de maneira que tinham de caminhar pelo lado descoberto Quando estive nesse fogo, era no vidro em fusão
um a um; e eu temia o fogo por este lado, que me teria lançado para ~e refrescar,
e pelo outro temia cair no abismo de tal maneira o incêndio era imenso

(XXV, 112-117). (XXVII, 49-51).

408 409
É preciso que Virgílio lhe fale de Beatriz sem parar e que uma voz d' Auvergne, à grande tradição dos teólogos do século XII que haviam
chame por eles cantando da outra borda para que Dante suporte a pro- firmado o Purgatório na penitência.
vação. É. no antepurgatório, o canto do Miserere, canto de humildade neces-
Fogo-que lembra o Inferno, mas que no entanto é diferente dele. No sário à expiação e à purificação (V, 22-24).
momento em que vai deixar Dante, Virgílio recorda-lhe: É, no momento de transpor a porta do Purgatório, o simbolismo per-
feito e subtil dos três degraus que lhe dão acesso.
o fogo temporário e o que é eterno,
Tu viste-os, meu filho Vi uma porta e por baixo três degraus
de cor diferente, que lhe davam acesso
(XXVII, 127-128).
e um porteiro que não dizia palavra.

A vanpômos para eles e o primeiro degrau


era de um mármore branco, tão claro e tão polido
Purgatório e Inferno: o arrependimento
que eu me via nele como num espelho, tal como sou.

É certo que por diversas vezes o Purgatório lembrou a Dante o Infer-


no. Se a montanha com as suas nove moradas, o antepurgatório, as sete
comijas do Purgatório e o Paraíso terrestre anuncia as nove esferas do
Paraíso, no momento de a transpor ela recorda-lhe sobretudo os nove
I O segundo era escuro, mais negro do que avermelhado,
feito de um tipo de pedra tosca e calcinada,
rachada ao comprimento e à largura.

círculos/do Inferno. No entanto, Dante assinala a diferença fundamental Por cima, o terceiro, macipo,
que existe entre o Inferno e o Purgatório e que ele toma perfeitamente parecia-me de pôrfiro, tão vivo
.nítida, Primeiro, pela estreiteza da porta (IX, 75) que constrasta com a como o sangue que sai de uma artéria.
grande abertura da porta do Inferno e lembra a porta estreita da salvação
segundo o Evangelho: «Entrai pela porta estreita. Largo e espaçoso é, Pelos três degraus acima para meu agrado,
me levou o meu guia, dizendo: «Pede
com efeito, o caminho que leva à perdição, e há muitos que o tomam;
humildemente que ele te abra esta porta.»
mas estreita é a porta e apertado o caminho que leva à vida e há poucos
que o encontram» (Mateus, XLVII, 13-14). E ainda: «Lutai para entrar (IX,76-108).
pela porta estreita, pois muitos, diga-vos eu, procurarão entrar e não
poderão» (Lucas, XIII, 24).
«Esta cena», como bem explica o comentário da edição bilingue fran-
Dante é ainda mais explícito:
cesa do Centenário, «é uma representação da penitência: o anjo represen-
ta o padre, silencioso, pois é o pecador que deve dirigir-se a ele. Os três
Ó como estes caminhos de chegada são diferentes
dos do Inferno, pois aqui é entre cânticos degraus de cores diferentes simbolizam os três ~ctos do sacra.mento: a
que se entra, e lá em baixo é entre terríveis lamentos. confissão, a contrição e o cumprimento, actos diferentes em ~l mesmos
mas que constituem entre os três o sacramento, tal como os tres degraus
7
Dante, mais e melhor do que qualquer outro, faz do Purgatório o conduzem a um só limiar .»
lugar intermédio do além, mas subtrai o seu Purgatório à «inferniza- O primeiro degrau simboliza a contrição (contritio cordis) que deve
ção» a que a Igreja o submete no século XIII. Mais ortodoxamente fiel tomar o penitente branco como mármore. O segundo representa a con-
à lógica do Purgatório, nesse intervalo desigualmente distante dos dois fissão (confessio oris) que provoca no penitente o vermelho escuro da
extremos, pendendo para o Paraíso, Dante apresenta o Purgatório como vergonha. O terceiro encama a penitê~cia propriamente dita. que é de
~ lugar da esperança e do início da bem-aventurança, da entrada progres- um vermelho vivo como o ardor da candade, do amor, que anima agora
siva na luz. o penitente. . .
É que, de uma certa maneira e para além da maioria dos grandes Neste limiar da purgação o morto penitente, ainda que penetre na-
escolásticos, Dante é fiel, como o fora quase em excesso Guillaume quele

410 411
mundo, onde pecar já não está no nosso poder E assim, arrependendo-nos e perdoando,
saímos para fora da vida reconciliados com Deus
(XXVI, 131-132), que inflama os nossos corações do desejo de o ver

(V, 55-57).
deve, como homem que sempre é, dotado de livre arbítrio, manifestar a
sua vontade de purgação. Dante segue Virgílio até ao Purgatório «de boa No antepurgatório Buonconte de Montefeltro conta que o seu arre-
vontade» (di buona voglia). pendimento no momento de morrer o colocou entre ~s mãos do .anjo de
No meio do Purgatório, Estácio lembra a Virgílio e a Dante que a Deus para grande despeito do anjo do Infem?, ~o diabo, que Vl~ a s~
alma deve querer purificar-se. presa escapar-lhe por meio de uma pequena lagnma, per una lacrimetta:

Da sua purificacão só o seu querer faz prova O anjo de Deus agarrou-me e o do Inferno
que, como é livre de mudar de morada, gritava: «ó tu que vens do céu, porque me defraudas?
vem surpreender a alma e obtém para ela Levas contigo o que existe nesse de imortal
o feliz resultado da sua vontade por uma pequena lágrima que mo rouba»
(XXI, 61-63)8. (V, 104-107).

Assim Dante terá fixado a lição abstracta dos escolásticos que se per- Quando Dante descobre na cornija dos avaros, envergonhado e ten-
guntam se a pena do Purgatório é «voluntária». tando esconder-se, o Papa Adriano V, interpela-o aSSlID:
Penitência que envolve também a sua parte de amargura (a acerbitas
dos teólogos e dos pastores). «... Espírito em que as lágrimas amadurecem
o fruto sem o qual não podemos voltar a Deus ...)
Assim os avaros e os pródigos da quinta cornija:
(XIX, 91-92).
o mal da avareza aparece nitidamente neste lugar
na purgapão das almas convertidas
e nenhuma pena naquele monte é mais amarga
Nesta quinta cornija estende-se à beira do abismo a multidão daqueles
que, pelas suas lágrimas, fazem o mal dissolver-se,
(XIX, 115-117).
E Aqueles em quem gota a gota se funde
l pelos olhos o mal que ocupa o mundo inteiro
Ainda no Paraíso terrestre a bela dama Matelda que, cantando e dan- i
çando, recebe Dante ainda acompanhado por Virgílio, canta o salmo
XXXII, um salmo da penitência: .~'
"
(XX, 7-8).

Ao entrar no Paraíso terrestre, Dante recordará uma última vez que


Beati, quorum tecla sant peccata! para experimentar aquela felicidad«; é 'preciso tê-Ia pago primeiro com o
(XXVIII, 40). arrependimento que faz correr as lágrimas (XXX, 145).

Neste processo penitenciaI o arrependimento é particularmente impor-


tante e é bom que ele se manifeste por lágrimas. A esperança
As vítimas de morte víolenta que estão no antepurgatório, apesar do
pouco tempo que tiveram antes de expirarem puderam, no entanto, não Mas Dante insiste, no Purgatório reina a esperança. As almas, dota-
só arrepender-se mas também perdoar aos seus assassinos e aos seus car- das de um corpo imaterial - é o tema incansavelme~te repe~,do das som-
rascos. bras que se procura em vão abraçar/ - são almas libertas, ja salvas.

412 413
A esperança exprime-se muitas vezes pela oração. Todo o Purgatório Verdes, semelhantes às folhas novas recentemente nascidas
está recheado de orações e de cânticos. Dante soube integrar no poema a eram os seus mantos que, agitados por asas verdes,
liturgia que os escolásticos mantiveram à parte a maioria das vezes. E a esvoaçavam atrás deles ao vento da sua corrida
imagem dos mortos do Purgatório em oração será precisamente aquela
(VIII, 25-30).
que os artistas do fim da Idade Média escolherão para distinguir o Pur-
gatório do Inferno. Aqui não há esperança alguma, então para que serve Logo que ouviu as asas verdes cruzarem o ar
rezar? Lá, pelo contrário, a certeza da salvação deve materializar-se em a serpente fugiu ...
orações, ser testemunhada e apressada por elas. Esperança simbolizada
pelo branco e pelo verde, cores da pureza e da esperança. (VIII, 106-107).
Logo durante os primeiros passos dos viajantes no antepurgatório
aparece o branco. E acontece na primeira cornija o grande episódio da recitação do
Pater pelos orgulhosos, do qual dizem o último versículo, o que apela
Depois por cada lado eu vi aparecer à libertação do mal, apenas como pró-forma pois, libertos do pecado,
um não sei quê de branco e por baixo já não têm daí em diante necessidade dele.
pouco a pouco outra brancura surgia
Esta última prece, Senhor bem-amado,
(11, 22-24).
já não se faz por nós, que não temos mais necessidade,
mas por aqueles que ficaram atrás de nós
Virgilio encoraja Dante e exorta-o a procurar a luz:
(XI, 22-24).
e tu conserva bem a tua esperança, meu doce filho
As primeiras almas que Dante vê no antepurgatório são já «almas
(lH,66).
afortunadas» (11, 74), eleitas ...
Quando os peregrinos começam a sua ascensão, são de novo impeli- Ó vós, bem realizados, Ó espíritos já eleitos
dos pelo desejo, pela esperança e pela luz,
(lH,73),
mas aqui o homem deve voar
sobre as asas ágeis e as plumas diz-lhes Virgílio dirigindo-se a elas.
do grande desejo, como disse aquele guia Aos invejosos da segunda cornija, Dante diz também:
que me dava esperança e me iluminava com a sua luz
Ó vós, almas que tendes a certeza
(IV, 27-30).
de ver a luz mais alta
Passam as almas do antepurgatório em oração: (XIII, 85-86).

Ali oravam as mãos postas A salvação das almas do Purgatório é determinada pela justiça de
Federigo Novel/o e o de Pisa...
Deus que castiga mas que é também misericórdia e graça, e progride
(VI, 16-17). também pelo resto de vontade das próprias almas. Na cornija dos ava-
ros, Hugo Capeto assinala-o:
Os anjos que ali velam têm mantos e asas cor de esperança:
Por vezes um de nós fala em voz alta e outro em voz baixa
E vi sair das alturas e descer às profundezas segundo o ardor que impele a nossa caminJu:ula,
dois anjos, com duas espadas reluzentes, tornando os nossos passos ora mais longos, ora mais curtos
truncadas e privadas das pontas. (XX, 118-120).

414 415
A ajuda dos vivos Nino Visconti, também ele, pede a Dante que incite a sua neta Gio-
vanna a ajudá-lei.
O progresso na purgação e na ascensão ao céu depende sobretudo da
ajuda dos vivos. Aqui Dante retoma plenamente a crença nos sufrágios. quando estiveres para lá das grandes ondas
Se a maioria dos mortos do Purgatório reclama a ajuda de um parente ou diz à minha Giovanna que interceda por mim
de um amigo, outros apelam mais à comunhão dos santos. lá em cima onde se dá resposta aos corapões inocentes
Manfredo, enquanto espera a entrada no Purgatório, pede ao poeta que
(VIII, 70-72).
revele o seu estado, quando voltar à terra, à filha e à sua «doce Constan-
ça» que, sabendo-o excomungado, poderá julgá-lo também condenado,
Os orgulhosos que recitaram o Pater pedem ajuda aos vivos pois eles
pois aqui, com a ajuda dos de lá de baixo, pode-se avançar muito próprios, tanto quanto está no seu poder (e Dante parece entrar no cami-
rm, 145). nho da reciprocidade dos méritos), rezam pelos que estão na terra, e
Dante junta-se ao seu apelo:
Belacqua desespera de entrar em breve no Purgatório,
Se naquele outro lado se reza sempre pelo nosso bem
a menos que venha em meu auxílio uma prece, sobre a terra, que devem então dizer e fazer por essas almas
surgida de um corapão vivo e em santa grapa aqueles cuja vontade tem boas raizes?
Deve-se ajudá-Ias bem a lavar-se das máculas
(IV, 133-134). que levaram daqui de baixo, para que, puras e leves,
possam elevar-se até às esferas estreladas
Jacopo dei Cassero solicita a ajuda de todos os habitantes de Fano:
(XI, 31-36).
Peco-te, se alguma vez vires essa região
que está situada entre a Romanha e a que pertence a Carlos
faz-me o favor das tuas orações No Purgatório há portanto almas que foram esquecidas; há também
em Fano, e que os que lá estão se prostemem bem as que foram socorridas. Uma natural de Siena, Sapia, que se arrependeu
diante dos altares tarde de mais, foi ajudada pelo seu compatriota Pier Pettigano, um fran-
para que eu possa expiar as minhas graves ofensas ciscano:

(V,68-72). Quis estar em paz com Deus no fim


da minha vida; mas a minha dívida não teria sido
Buonconte de Montefeltro queixa-se de ter sido abandonado pela mu- diminuída pela penitência
lher Giovanna e pelos seus: se não se lembrasse de mim
nas suas santas preces Pier Peuigano,
nem Giovanna nem os outros se preocupam comigo que por caridade se comoveu a meu favor
e é por isso que eu ando entre aqueles de cabeça baixa
(XIII, 124-129).
(V,89-9O).

Dante fica como que acabrunhado com as reclamações destas almas Por vezes uma alma do Purgatório pede a Dante que solicite a seu
que esperam diante da porta do Purgatório: favor não os vivos, mas Deus. Como na comija dos coléricos, Marco o
Lombardo:
Logo que me libertei de todas aquelas sombras
que somente tinham pedido que se rezasse Peco-te
a fim de que para elas viesse depressa a hora de se tomarem santas que intercedas por mim quando estiveres lá em cima
(VI, 25-27). (XVI, 50-51).

416 417
í!
I

É também a ajuda de Deus que Estácio invoca para as almas do Pur- Nesta temporalidade sinfónica o tempo é feito da ligação do tempo da
gatório na quinta cornija: viagem de Dante com o tempo vivido das almas do Purgatório entre as
quais ele passa, é feito sobretudo dos diferentes tempos misturados dessas
Que ele possa em breve mandá-Ias para o alto almas postas à prova entre a terra e o céu, entre a vida terrena e a eter-
nidade. Tempo acelerado e tempo retardado, tempo em vaivém entre a
(XXI,72). memória dos vivos e a inquietação dos mortos, tempo ainda ligado à
história e já absorvido pela escatologia.
Mas, está claro, os que sofrem no Purgatório solicitam ainda mais No Purgatório até a duração é regulada pelo progresso das almas.
a intercessão da Virgem e dos santos, como os invejosos da segunda cor- Esta articulação do tempo dos homens é marcada na eternidade divina
nija: por prodígios, que sublinham os únicos acontecimentos que podem pro-
duzir-se no Purgatório.
OUFO gritar «Maria. orai por nôsl» Quando Virgílio e Dante estão na quinta cornija, a dos avaros, eis que
e gritar: ((Miguel» e «Pedro» e «Todos os Santos» a montanha treme:
(XIII, 50-51). E nós esforçávamo-nos por avançar pela estrada
tanto quanto era permitido ao nosso poder
quando senti, como qualquer coisa que desaba,
tremer a montanha. e veio-me um frio glacial
semelhante ao frio que ataca aquele que caminha para a morte
o tempo do Purgatório
(XX, 127-129).
A viagem de Dante e Virgílio ao Purgatório dura quatro dias de tem-
po pascal, o da ressurreição, da vitória sobre a morte, da promessa de E todavia, coisa estranha, eis que se elevam cânticos de alegria:
salvação: um dia, o da Páscoa, no antepurgatório, dois dias, segunda e
terça-feira de Páscoa no monte do Purgatório, o quarto, quarta-feira, no Depois. de todos os lados elevou-se um grito
Paraíso terrestre. Durante toda a viagem, Dante anota cuidadosamente o tal que o mestre (Virgílio) virou-se para mim
movimento do sol e dos astros que os iluminam na sua ascensão circular e dizendo: «Não tenhas medo enquanto eu te guiar»
simbolizam a graça de Deus que os acompanha e leva para o céu as almas «Gloria in excelsis Deo» cantavam
do Purgatório. todos...
Mas é todo o canto do Purgatório que está semeado de anotações (XX, 133-137).
temporais. No Inferno as únicas indicações sobre tempo eram as que de-
marcavam a viagem de Virgílio e Dante. No Paraíso o tempo será abolido No canto seguinte Estácio vai explicar aos dois peregrinos o significa-
mesmo para a breve fassagem de Dante. O Purgatório é, pelo contrário, do daquele tremor de terra:
um reino no tempo! . Dante integra a situação do tempo do Purgatório
no conjunto do tempo da história, o tempo máximo de permanência no (estas alturas) tremem quando uma alma se sente purificada
Purgatório é o que se estende da morte ao Julgamento Final. Aqui o tão perfeitamente que se ergue e se põe em movimento
poeta dirige-se ao leitor: para subir ao céu e esse grito (que ouvistes]
acompanha-a
Vais ouvir (XXI, 58-60).
como Deus quer que a dívida seja paga:
não te detenhas na forma do martírio:
Esta perturbação dos acontecimentos no Purgatório é pois o voo das
pensa no que se seguirá. pensa que na pior das hipóteses
ele não pode persistir para lá da grande setenpa almas tornadas dignas de subir ao céu e capazes de para lá voarem. Este
tremor e este clamor é a agitação produzida pela passagem de uma alma
(X, 107-111). do tempo para a eternidade.

418 419
o purgatório dantesco é também, é ainda sem dúvida o tempo do Esta claridade vem também dos anjos que levam para o Purgatório a
sofrimento e da provação. As almas do Purgatório estão privadas da luz celestial derramada nas suas faces:
verdadeira alegria, a da visão beatífica, pois, como diz tristemente o Pa-
pa Adriano V, Eu distinguia bem as suas cabeças louras
mas os meus olhos perdiam-se no reverbero dos seus rostos
Assim como o nosso olhar não se dirige (VIU, 34-35).
para o alto. fIXO que está nas coisas terrenas,
assim aqui a justiça fâ-lo mergulhar na terra
No momento de entrar na segunda cornija, Virgílio olha o sol:
(XIX, 118-120).
«ó doce luz. entro confiando em ti
pelo novo caminho...

A caminho da luz os teus raios serão sempre os nossos guias»


(XIII, 16-21).
Mas o Purgatório é todo aspirado para o alto. Beatriz não virá subs-
tituir Virgílio para guiar Dante até ao Paraíso senão no Paraíso terrestre,
senão no canto trigésimo primeiro, mas logo no antepurgatório Virgílio Ao subir da segunda para a terceira cornija, Dante fica mesmo des-
anuncia-a a Dante: lumbrado:

Sei que me compreenderás;falo de Beatriz senti pesar sobre a minha fronte


que tu verás lá em cima. no alto um resplendor de luz bem maior do que antes
deste monte. risonha e feliz e fiquei espantado com estas coisas desconhecidas
(XV, 10-12).
(VI, 46-48).

Os escolásticos interrogavam-se sobre se são os demónios ou os anjos E Virgilio explica-lhe:


que se ocupam das almas do Purgatório. Dante responde sem hesitação
Não te admires se te deslumbrarem
que são os anjos bons, os anjos do céu, os anjos de Deus. Há o da entrada
os servidores do céu...
que marca sobre a fronte os sete Pês dos pecados capitais, e também, em é um mensageiro que vem convidar o homem a elevar-se mais alto
cada cornija, o que lá introduz as almas e os peregrinos, e que à saída,
apara o P correspondente ao círculo ultrapassado. (XV, 28-30).
Sobretudo e apesar dos episódios de escuridão, de fumo, de noites-
mas são noites sob as estrelas -, a montanha do Purgatório é progressi- O Paraíso terrestre já está finalmente banhado de luz celestial
vamente envolvida pela claridade. A ascensão é uma caminhada para a
luz. Entre as trevas do Inferno e a luz do Paraíso, o Purgatório é um lugar As trevas fugiam por lodos os lados
que mergulha num claro-escuro que não cessa de se iluminar 1I.
(XXVII, 112).
Logo de início, na praia da ilha à beira-mar, o sol ergue-se e restitui as
suas cores à paisagem como ao rosto de Dante.
Tem lugar a última purificação. De uma nascente correm dois rios dos
Estendi para ele as faces ainda molhadas de lágrimas quais um..o Letes, tira ao homem a recordação do seu pecado, e o outro,
e nelas ele fez reaparecer o Eunué (que é uma invenção de Dante), restitui-lhe a lembrança de todo
a sua cor que o Inferno escurecera o bem que praticou (XXVIII, 127-132). Última palavra de Dante sobre o
(I, 127-129). processo de penitência e de purgação em que a memória desempenha um

420 421
papel tão importante. É a metamorfose definitiva da memória, também NOTAS
ela lavada do pecado. O mal está esquecido, só subsiste a memória do que
há de imortal no homem, o bem. A memória, também ela, atingiu o limiar
escatológico.
Eis pois Dante em contacto com a verdadeira claridade:

Ó esplendor de viva luz eterna


(Ó isplendor di viva luce ettema)
(XXXI, 139).

O poeta, que terminou a viagem ao Purgatório, bebe a água do Eunué


e, qual alma purgada, chega ao último verso do Purgatório
1 Utilizei a edição bilingue publicada quando do sétimo centenário do nascimento
puro e pronto a subir até às estrelas do poeta, em 1965, pelos Libraires associés, Paris, 1965, com o texto italiano a partir
(puro e disposto a salire alie stelle). da última edição da Società Dantesca Italiana, a tradução de L. Espinasse-Mongenet
revista por Louise Cohen e Claude Ambroise e uma publicação de Paul Renucci.
Também me foram úteis a tradução e os comentários originais, ricos e densos de
André Pézard na Biblioteca da Pleiade saídos também em 1965. Um quadro oportuno
da estrutura do Purgatorio encontra-se na Edizione dei Centenario de Tutte le Opere di
Dante, ao cuidado de Fredi Chiapelli, Milão U. Marsia, 1965. O breve artigo «Pur-
gatorio» do Dante Dictionary é útil pela caracterização do Purgatório dantesco tanto
do ponto de vista topográfico como ideológico. Encontram-se indicações interessantes
sobre a localização e a descrição do Purgatório no antigo estudo de Edoardo COLI, Ii
paradiso terrestre dantesco, Florença, 1897. Entre os comentários, o de G. A. Scartaz-
zini é retomado e revisto por Giuseppe Vandelli na edição critica da Società Dantesca
Italiana, 2' ed., Milão, 1960. André Pézard distingue o de G. TROCCOLl, Il Purga-
torio dantesco. Utilizei também o de Charles S. SINGLETON, Dante Alighieri, The
Divine Comedy, Purgatorio, 2: Commentary, Princeton, 1973, e as notas da edição de
Natalino Sapegno, Florença, 1956. De um ponto de vista importante na minha óptica,
o da teologia, pode sempre ler-se o estudo clássico do padre MANDONNET, Dante, le
théologien, Paris, 1935 que se combina com Dante et /a philosophie de Étienne GIL-
SON, Paris, 1939.
Sobre os precursores de Dante nas visões e descrições do além, citarei, além de H.
R. PATCH, The Other World According To Descriptions In Medieval Literature, 1950;
A. D'ANCONA, I precursori di Dante, Florença, 1874; M. DODS; Forerunners of
Dante, Edimburgo, 1903; DIELS, «Himmels und Hõllenfahrten von Homer bis Dan-
te» in Neues Jahrbuch, XLIX, 1922, p. 239 e ss.; A. RUEGG, Die Jenseitvorstellungen
vor Dante, Einsiedeln e Colónia, 1945, e sobretudo Giosuê MUSCA, «Dante e Beda»
in Studi Storiei in onore di Ottorino Bertolini, Il, 1972, pp. 497-524. Devo à amizade de
Girolamo Arnaldi ter podido consultar em excelentes condições os comentários mais
antigos à Divina Commedia publicados por G. Biagi, G. L. Passerini, E. Rostagno, La
Divina Commedia nella figurazione artistica e nel secolare commento, Turim, 1931. Os
comentários mais antigos (os do século XIV, os únicos a que me cingi) são sobretudo
filológicos.
2 «Onde si /egge (o De Senectude de Cícero) di Catone che non a sé, ma a Ia patria e

a tutto 10 mondo nato esser credea» (Convivio, IV, XXVII, 3).

422 423
3 I, 108; 11, 60, 122;m. 46; IV, 38, 39; VI, 48; VII, 4, 65; VIII, 57; X, 18; XII, 24,
r
A RAZÃo DO PURGATÓRIO
73; XIV, I;XV, 8; XIX, 117; XX, 114, 128; XXI, 35, 71; XXII, 123; XXV, 105; XXVII,
74; XXVIII, 101; XXX, 74 e ainda no Paraíso XV, 93; XVII, 113, 137.
4 Cf. Dante Dictionary, p. 534.

5 Ed el/i a me: «L'amor dei bene scemo


dei suo dever quiritta si ristora,
qui si ribatte il mal tardato remo.»
Belos versos, difíceis de traduzir ...
6 Cf. L. K. LIlTLE, «Pride goes before Avarice. Social Change and the Vices in
Latin Chrístendom» in American Historical Review, LXXVI, 1971.
7 É a edição com a tradução de L. Espinasse-Mongenet indicada na nota I, p. 449.
A citação encontra-se na página 604.
8 Della mondizia sol voler fa prova
che, tutto libero a mutar convento,
l'alma sorprende, e di voler le giova.
9 ot ombre vane.fuor che nell'aspetto! A história do Purgatório na sociedade cristã não termina no começo
Tre volte dietro a lei le mani avvinsi,
do século XIV. A sua inserção em profundidade na devoção cristã e de-
tante mi tomai con esse ai petto (11, 79-81).
10 Ver um sugestivo estudo de Luigi BLASUCCI, «La dimensione dei tempo neI
pois católica, os seus momentos mais fervorosos, os mais «gloriosos»,
Purgatorio» in rApprodo Letterario, 1967, pp. 40-57. Sobre a tradução em termos datam dos séculos XV a XIX. Às formas tradicionais de publicidade
psicológicos destes dados teológicos, inteligentes observações de A. MOMIGLIANO vem acrescentar-se a imagem 1• O fresco, a miniatura, a gravura e os con-
no seu comentário ao Purgatorio, Florença, 1946, designadamente sobre a «nostalgia juntos artísticos das capelas e dos altares especializados dão enfun ao
insieme terreno e celeste, che unisce in una medesima malinconia le anime che aspirano imaginário do Purgatório a possibilidade de se concretizar. Desprovidas
alia Ratria celeste e il pellegrino che ha in cuore Ia lontana patria terreno». da força do delírio literário que afligem certas visões do além, a arquitec-
J Ver M. MARTI, «Simbologie luministiche neI Purgatorio» in Realismo dantesco
tura, a escultura e a pintura garantem ao Purgatório a sedução da visão
e altri studi, Milão-Nápoles, 1961.
directa, rematam o triunfo da sua localização, da sua materialidade, do
seu conteúdo''.
Os desenvolvimentos não são menos importantes em matéria de cren-
ças e de práticas. O Purgatório fizera uma aparição limitada nos testa-
mentos. Mais ou menos a partir do século XIV, mais ou menos cedo, mais
ou menos intensa segundo as regiões, é uma penetração que por vezes
confina com a invasão''. Surgem instituições para suprir a carência de
testamentos, ou reforçá-los no apelo à generosidade dos fiéis. Nas re-
giões meridionais de França, por exemplo, onde subsistem reticências,
se não resistências, ao julgamento particular e ao terceiro lugar, vulgari-
za-se «a taça das almas do Purgatório» que se faz circular na igreja no
momento da missa para recolher «o dinheiro dos fiéiS) e que vai alimen-
tar «a obra do Purgatório» bem estudada por MicheUe Bastard-Foumíer.
São os trocos da comunhão dos santos. Estas representações figuradas,
estas práticas, revelam transformações, um alargamento das crenças liga-
das ao Purgatório. A devoção que se exprime pelos altares e pelos ex-
-votos às almas do Purgatório mostra que daí em diante não só essas
almas adquiriram méritos mas podem também dirigi-los aos vivos, resti-
tuir-lhes, devolver-lhes a sua assistência. Eis assegurada a reversibilidade
dos méritos de que se duvidava nos séculos XII e XIII e que era então
quase sempre negada. O sistema da solidariedade entre os vivos e os mor-

424 425
tos através do Purgatório tornou-se uma cadeia circular sem fim, uma do conceito de morte que era o horizonte principal da sua busca. No
corrente de reciprocidade perfeita. O anel fechou-se. Por outro lado, a entanto e como já demonstrei, no século XIII o Purgatório modificou a
criaçã? de uma «taça das almas do Purgatório» prova que os sufrágios, atitude dos cristãos perante os últimos momentos da vida. O Purgatório
para Ia da comemoração do 2 de Novembro, se aplicam a todos os mor- dramatizou essa última parte da existência terrena, carregando-a de in-
tos que se supõe estarem no Purgatório, mesmo que o fiel pense que a sua tensidade misturada de temor e de esperança. O essencial, a escolha do
oferenda servirá sobretudo para encurtar as provações dos «seus» mor- Inferno ou do Paraíso, visto que o Purgatório era a antecâmara certa do
tos. A comunhão dos santos manifesta-se em plenitude. A sua aplicação Paraíso, podia ainda jogar-se no minuto derradeiro. Os últimos instantes
está generalizada. eram também os da última oportunidade. Creio no entanto que falta
No século XIII o Purgatório apenas tinha dado lugar a formas limita- expliçar a relação entre o Purgatório e a morte no período que vai do
das de espiritualidade - se exceptuarmos o grande poema dantesco. Santa século XIV ao século XX.
Lutgarda era uma ardente auxiliar das almas do Purgatório mas parece
não ter unido explicitamente essa devoção à corrente mais profunda de No momento de terminar este livro onde tentei mostrar e explicar a
espiritualidade de que foi uma das pioneiras, designadamente na piedade formação do sistema do além cristão entre os séculos IV e XIV, sistema
ao Coração do Cristo. Oriunda do meio das beguinas, essa devoção que ideológico e imaginário, sou tomado de inquietação. O meu propósito foi
se desenvolve com Hadewijch e Mechtilde de Magdeburg, depois com as sugerir que neste sistema o lugar-chave foi o elemento intermédio, efême-
monjas beniditinas Mechtilde e Gertrude de Hackeborn, no fim do século ro, frágil e no entanto essencial, o Purgatório, que ganhou o seu lugar
XIII, inspira sobretudo o meio das monjas de Helfta, na Saxónia. Com entre o Paraíso e o Inferno.
Gertrudes, a Grande, falecida em BOiou 1302, o Purgatório entra na Mas será ele a verdade do sistema?
esfera da mística mais elevada e atingirá o topo (ou as profundezas) do Não poderemos perguntar-nos se o elemento motor, organizador, não
misticismo com Santa Catarina de Génova (1147-1510), autora de um foi esse Paraíso que tão pouco suscitou o interesse dos historiadores e
Tratado do Purgatório. que, se consulto as minhas notas, não me parece tão insípido e monóto-
No campo dogmático e teológico, é também entre meados do século no como se diz? Essa planície banhada por grandes rios, transfigurada
XV e o começo do século XVII que o Purgatório se entroniza na doutrina pela luz, rumorosa de cânticos de uma harmonia perfeita, impregnada
da Igreja católica, ainda contra os gregos no concílio de Florença (1439), de perfumes estranhos, repleta da inefável presença divina que se revela
contra os protestantes no concílio de Trento (1562). Trento, questão de na quinta essência e na infinita amplidão do empíreo, continua a ser um
teólogos e de governantes mais do que de pastores, embora inserindo mundo por descobrir". Além do Purgatório, esperança e certeza de salva-
irrevogavelmente o Purgatório no dogma, mantém à distância, como ção, exigência de justiça mais graduada e mais precisa, de preparação
no século XIII, o imaginário do terceiro lugar, o qual ocupa também mais atenta à pureza perfeita requerida na última etapa do «regresso»,
um lugar modesto nas duas grandes sínteses em que o Purgatório se ra- o que anima o sistema, não será a promessa do Cristo crucificado ao
dica na teologia da catequese pós-concílio de Trento, a dos jesuítas Bel- bom ladrão: «Hoje tu estarás comigo no Paraíso» (Lucas, XXIII, 43)?
larmin e Suarez. O Purgatório estaria tão inclinado para o Paraíso, a despeito das ima-
Mas o Purgatório vive ainda mais intensamente nas grandes expres- gens infernais, que o motor da crença cristã católica seria esse desejo do céu
sões ~atólicas entre os séculos XV e XIX. Há um Purgatório do gótico que atrairia para ele as almas do Purgatório numa sequência ininterrupta
~ameJante e da devotio moderna, um Purgatório da Contra-Reforma, es- de regressos a Deus pontuados pelos trovões jubilosos da Divina Comédia.
ta claro, mas sobretudo talvez um Purgatório clássico, um Purgatório Nesta perspectiva, eu não teria decifrado suficientemente, por trás do
barroco, e finalmente um Purgatório romântico e um Purgatório ao gos- quase-silêncio dos textos, o problema da visão beatífica cuja privação,
to da congregação de Saint-Sulpice, Os historiadores mais importantes mais do que ser o grau zero do Purgatório, seria a última estância antes
d~s atitudes perante a morte entre os séculos XVI e XX, Philippe Ariês, da eternidade. Não seria do lado da «duração extra» como lhe chama
Pierre Chaunu, François Lebrun, Alberto Tenenti e Michel Vovelle abri- Pierre Chaunu, ou do «suplemento de biografia» como se lhe refere Phi-
ram nas suas grandes obras um lugar para o Purgatório, não tão definido lippe Ariês, que se deveria procurar, depois da vida terrena, a chave espa-
como seria desejável", É verdade que o Purgatório, esse grande desconhe- ço-tempo do Purgatório, mas do lado do vazio necessário antes da visão
cido da história, é uma peça do além, mesmo que se trate de um além beatífica, antes da eternidade. Teria João XXII razão? O Purgatório seria
perecível e não, ao menos aparentemente, de uma componente essencial mais uma pré-eternidade do que uma pós-existência?

426 427
Mas a minha inquietação não vem daqui. No desenrolar de toda esta das, concentra as suas interrogações, as suas esperanças e as suas angús-
história, não teria sido a preocupação principal da Igreja manter o infer- tias em dois pólos. Primeiro cá em baixo no mundo e, se abstrairmos do
no eterno? O fogo purgatório temporário não teria sido a exaltação do número ínfimo de verdadeiros «desinteressados», o olhar dirige-se para o
fogo inextinguível? O segundo reino não terá sido o degrau protector do horizonte da morte, onde os velhos modelos do acto de morrer estalam
reino infernal? O Purgatório não teria sido o preço pago pela Igreja para por todos os lados. Como morrer? Para os católicos e para os homens de
conservar a arma absoluta, a condenação eterna? Seria a luz sulfurosa de todas as fés e para os que, pura e simplesmente, devem pensar na sua
um período do catolicismo, o que corresponde ao cristianismo de medo morte, a opção parece espartilhar-se entre paraísos e infernos, projecção
de Jean Delumeau. dos sonhos cá de baixo e de um temor que encontrou uma nova realidade
Compreender-se-ia talvez melhor a atitude actual da maioria dos ca- imaginária. O apocalipse nuclear hoje: um apocalipse cuja aterradora
tólicos e da Igreja para com o Purgatório. experiência se fez cá em baixo 7•
Atitude que visa o conjunto do sistema do além, mas mais particular- Porém haverá sempre, espero, um lugar nos sonhos do homem para a
mente o Purgatório. Para a Igreja trata-se, mais uma vez na sua história, nuance, para a justiça/justeza, para a medida em todos os sentidos do
de realizar um aggiornamento que cada um de nós pode, conforme a sua termo, para a razão (ó Purgatório racional!) e para a esperança. Faço
crença, considerar uma lenta mas perseverante caminhada para a realiza- votos por que não possamos dizer em breve que, na verdade, o Purgató-
ção de um cristianismo «ideal», simultaneamente regresso às fontes e rio teve o seu tempo.
consecução, ou reduzir a uma simples recuperação da marcha caótica
da história por uma instituição atrasada. Seja como for, o imaginário
do além faz mais uma vez as despesas de uma atitude que, sob o signo
da depuração, rejeita as formas «primitivas» das crenças. Para bem dos
espíritos informados do passado, respeitadores dos outros, ansiosos de
equilíbrio, dizem eles, como Y. M. Congar: «Mais uma vez será necessá-
rio purificar as nossas representações e desembaraçar-nos, se não das
imagens, pois não podemos pensar sem elas e há-as válidas e mesmo
belas, pelo menos de certas imaginações",» Quem não aderiria ao desejo
de afastar a visão de torturas, propriamente infernais ou pretensamente
purgatórias, cuja inspiração em práticas terrenas que estão longe de ter
desaparecido, é por de mais evidente? Do programa traçado pelo grande
teólogo dominicano deve reter-se a vontade de unir duas tendências que a
história opôs excessivamente: adaptar as crenças à evolução das socieda-
des e das mentalidades sem mutilar o homem de uma parte fundamental
da sua lembraça e do seu ser: o imaginário. A razão alimenta-se de ima-
gens, é a história profunda que no-lo revela.
Temo, com efeito, que, nesse desejo de depurar, o Purgatório fique a
perder, pois, como julgo ter demonstrado, o seu aparecimento, o seu
desenvolvimento e a sua difusão estão de tal modo ligados ao imaginário
que o padre Congar teve de encontrar tonalidades quase origenistas para
o salvar nas concepções actuais da hierarquia católica.
Do lado dos fiéis parece-me que o desinteresse pelo Purgatório se
explica de outra maneira e talvez mesmo por razões inversas. Do lado
do clero há a «desinfernização» e a desmaterialização do Purgatório.
Do lado dos fiéis e dos homens sensíveis à evolução das crenças religio-
sas há um crescendo de desapego em relação ao tempo intermédio do
além. De novo a nossa época, sobretudo nas sociedades ditas desenvolvi-

428 429
NOTAS APÊNDICE I ,
BIBLIOGRAFIA DO PURGATORIO

I Ver o Apêndice III.


2 Sobre as diversas formas do «êxito» do Purgatório ver Michelle BASTARD-
-FOURNIÉ, «Le Purgatoire dans Ia région toulousaine au XIve siêcle» in A.1I1ItÚeS
du Midi, 1980, pp. 5-7. No que respeita à iconografia do purgatório, campo vasto
ainda largamente inexplorado, deve mencionar-se o estudo pioneiro de Gaby e Michel A actual bibliografia do Purgatório é considerável. M.uitas obras d~-
VOVELLE, Vision de Ia mort et de l'au-delâ en Provence d'aprês les autels des âmes • dicadas à história do Purgatório são mal informadas e anlII~a~asde espi-
purgatoire (xJt"-xr siêcles), Paris, 1970. Não consultei a tese inédita, que eu saiba, de rito polêmico entre os católicos ~ os pro!estantes e al?o!ogetlco entr~ ~s
Madame A.-M. VAURILLON-CERVONI, L'iconographie du Purgatoire au Moylm católicos. Tem-se muitas vezes a impressao de que a V1~aodo Purgatório
Âge dans le Sud-Ouest, le centre de Ia France et en Espagne, Toulouse, 1978, que parece dos eruditos católicos não se renovou desde Bellarmin e Suarez ate a
dizer respeito ao fim da Idade Média e ao século XVI.
primeira metade do século xx. O grande artigo de A. MICHEL, «Pur-
3 Remeto às observações de M. Bastard-Fourniê, em especial a propósito do belo
trabalho de Jacques ChitToleau a respeito de Avignon e a Comtat Venaissin, p. 17, atório» no Dicionário de Teologia Católica de E. VA~AN!, E. M~N-
n. 65, e mais genericamente p. 7. ~ENOT e E. AMANN, t. 13, 193~, col..l ~63-1326, ~U1tOnco, contlOu~
4 Ph. ARIÉS, L'Homme devant Ia mort, Paris, 1977, P. CHAUNU, La Mort à a ser fundamental. O seu espírito e tradICiOnal e antlprotestante. A me
Paris - xvr, xv/r, xVIIr siêcles, Paris, 1978. F. LEBRUN, Les Hommes e/Ia mort lhor síntese pareceu-me ser a de A. PIOLANTI, «11 ~ogma del purga~-
en Anjou, Paris, 1971. M. VOVELLE, Piété baroque et décbrisüantisation en Provence, rio» in Euntes docete, 6, 1953, pp. 287-311. O artigo, «Fegfeuer» o
Paris, 1973, Id., Mourir autrefois. Altitudes collectives devant Ia mort aux xv/r et Lexicon jür Theologie und Kirche, IV, 1960, co~. 49-?5 ~ breve. A obra
xV/Ir siêcles, Paris, 1974, Id., «Les attitudes devant Ia mort: problêmes de mêtho- AK Fegfeuer Die chrtstltchen Vorstellun-
des, approches et lectures ditTérentes» in Annales E.s.C., 1976. Num livro que recebi do protestan t e E . FLEISCHH ,. d .
quando escrevia esta conclusão, Pierre Chaunu caracterizou o Purgatório no século
gen vom Geschick der Verstorbenen geschichtlich dargestel!t,_1969, ,~tlna~
XV de maneira notável que está de acordo com os resultados da minha pesquisa, da a informar os seus correligionários so~re a poslça~ catohca, e
Eglise, culture et société. Essais sur Réforme et contre-Réforme 1517-1620, Paris, simpática mas não nos chegou directamente, informa defiCientemente e
1981, designadamente pp. 378-380 a propósito do concílio de Trento. Nele retoma não está isenta de erros. . LAN
uma afirmação do seu livro de 1978 (p. 131) vinda em parte de um meu esboço de A obra mais sugestiva é a do etnólogo e histonado~ Marcus .-
1975: J. Le GOFF,«La naissance du Purgatoire (XII" et XIII" siêcles)» in La Mort au DAU, Hõlle und Fegfeuer in Volksglaube, D~chtung un! Klr~henlehr~, Hei-
Moyen Âge (colóquio de Estrasburgo 1975, prefácio de P. CHAUNU), Paris, 1977, p.
d lb 1909 É lamentável que as suas informações sejam antlga~ e
710. «A explosão do Purgatório, escreve ele (p. 64), a explosão e a substantivacào da
pena purgatória pode ser datada com extrema precisão. Acontece entre 1170 e 1180,
p:rc~:~' e sob;etudo que sofra do desprezo do etnólogo pela crono~ogta.
tanto quanto as nossas séries heterogéneas permitem avaliar. Explode como uma bom- Sobre a exegese medieval de um texto essencial para o desen~olvlme~-
ba atómica no fim da instalação de uma massa crítica de transformação,» Viu-se que to do Purgatório, ver J. GNILKA? '". I Kor. 3, 10 ein Schrij"tzeugms
sou mais subtil. jür das Fegfeuer? Eine exegetisch-hlstorlsche Untersuchung, Dusseldorf,
S Ver R. R. GRIMM, Paradisus Coelestis, Paradisus Terrestris. Zur Auslegungs-
geschichte des Paradises im Abendland bis um 1200, Munique, 1977. 195~ antiga história do Purgatório foi renovada pelos traba~os excele~-
6 Y. CONGAR, Vaste monde, ma paroisse. Vérité et dimensions du salut, Paris, Évolution de Ia doctrine du Purgatoire chez saint
1966, capo VII: «Que savons-nous du Purgatoire?», p. 76. Ver também Y. CON- tes d e J osep h NTEDIKA , . ,. de l' -d I'
GAR, «Le Purgatoire» in Le mystére de Ia mort et sa 'célébratíon, Lex orandi, 12, Au ustin. Estudos agostiniano~, Paris, 1966 e L Evocatzo~ . au .e a
Paris, 1956, pp. 279-336. da:s Ia priére pour les morts. Etudes de patristique et de liturgie latine,
7 Relembro o sentido etimológico de apocalipse: descoberta, revelação. Lovaina, Paris, 1971.

430 431
Em J. GOUBERT e L. CRISTIANI, Les plus beaux textes sur l'au-
-delà, encontra-se uma antologia de textos de valor e nível diferentes, mas
T
.• I

«PURGATORIUM»:
APÊNDICE II
HISTÓRIA DUMA PALAVRA
com alguns significativos sobre o Purgatório.

o facto essencial é o aparecimento, na segunda metade do século XII,


ao lado do adjectivo purgatorius, a, um, do substantivo purgatorium.
Curiosamente, este acontecimento linguístico que me parece um sinal
da evolução capital das crenças respeitantes ao além escapou aos histo-
riadores do Purgatório ou pouco lhes chamou a atenção. Até Joseph
Ntedika se engana ao atribuir a Hildebert de Lavardin ou Hildebert du
Mans (falecido em 1133) o privilégio de ter sido o primeiro a empregar a
palavra purgatorium (Evolution de ia doctrine du Purga to ire chez saint
Augustin, p. 11, n. 17). Encontra-se o mesmo erro no artigo «Fegfeuer»
do Lexicon für Theologie und Kirche, vol. IV, col. 51. A. PIOLANTI
contenta-se com dizer: «Neste século (o XII) aparecem os primeiros esbo-
ços do tratado De purgatorio (o adjectivo transformara-se em substanti-
vo)» (<<11dogma dei Purgatorio» in Euntes Docete, 6, 1953, p. 300);
E. FLEISCHHAK pretende, sem dar referências (pudera!. ..), que «a pa-
lavra purgatorium foi usada desde a época carolíngia» (Fegfeuer ... 1969,
p.64).
Para poder afirmar como faço que o termo aparece muito provavel-
mente entre 1170 e 1180 é necessário corrigir algumas falsas atribuições
de textos ou emendar a edição de certos textos anteriores a 1170 (usado
sobretudo nas expressões ignis purgatorius, poena( e) purgatoria( e), loca
purgatoria, e a forma in (locis) purgatoriis) onde purgatorium como subs-
tantivo só aparece porque a edição foi feita a partir de manuscritos pos-
teriores a 1170, onde o copista substituiu naturalmente, por exemplo,
ignem purgatorium por purgatorium simplesmente, dado o emprego habi-
tual do substantivo na sua época.
Pedro Damião (falecido em 1072) no seu sermão LIX para a festa de
S. Nicolau, sem empregar o termo purgatorium, teria distinguido o lugar
purgatório entre as cinco regiões que podem acolher o homem; 1) regia
dissimilitudinis (cá em baixo); 2) paradisus claustralis (o paraíso cá em
baixo, quer dizer o claustro); 3) regia expiationis, o lugar da expiação

432 433
- o purgatório; 4) regia gehennalis, o inferno; 5) paradisus supercoelestis, o menos de uma vintena de anos depois da sua morte. Cf. igualmente,
paraíso celestal. sobre Nicolau de Clairvaux, G. CONST ABLE, The /etters of Peter the
Para distinguir a região da expiação, usa a expressão loca purgatoria Venerable /I, Nicho/as of Montieramey and Peter the Venerable, pp. 316-
(P L, 144, col. 838). Mas reconheceu-se que este texto não é de Pedro -330, Cambridge (Mass.), 1967.
Damião, mas do falsário notório, Nicolau de Clairvaux (falecido depois Antes de S. Bemardo a palavra purgatorium teria sido encontrada
de 1176), que foi secretário de S. Bemardo. Por exemplo, F. DRESS- num texto de Hildebert de Lavardin, bispo de Mans e arcebispo de Tours
LER, Petrus Damiani. Leben und Werk (Anselmiana XXXIV), Roma, (falecido em 1133), e o excelente Ntedika, como já se viu, aceitou essa
1954. Apêndice 3, pp. 234-235 fornece, na lista dos 19 sermões que mui- atribuição errada. O sermão 85 Jerusalem quae aedificatur publicado
to provavelmente não devem ser atribuídos a Pedro Damião, o sermão com os sermões de Hildebert por Beaugendre em 1708 e reproduzido
59, e acrescenta que eles são «provavelmente» de Nicolau de Clairvaux, pela Migne, Patrologie latine, 171, col. 741 (hi, qui in purgatório
«einem gerissenen Fâlscher». Cf. J. RYAN, «Saint Peter Damiani and the po/iuntur) foi atribuído a Pedro, o Devorador, por HAURÉAU, «Noti-
sermons of Nichoias de Clairvaux: a clarification» in Medieval Studies, 9, ce sur les sermons attribués à Hildebert de Lavardin» in Notices et extra-
1947, 151-161. Aliás, a Patrologie latine da Migne publicou duas vezes o its des manuscritu ... , XXXII, 2, 1888, p. 143. Cf. A. WILMART, «Les
mesmo sermão (59), uma primeira vez sob o nome de Pedra Damião sermons d'Hildebert» in Revue Bénédictine, 47, 1935, pp. 12-51. A atri-
(PL, 144, col. 835-839) e uma segunda vez sob o de Nicolau de Clair- buição a Pedro, o Devorador, foi confirmada por M. M. LEBRETON,
vaux (PL, 184, cal. 1055-1060). Nicolau de Clairvaux é talvez também o «Recherches sur les manuscrits contenant des sermons de Pierre le Man-
autor do sermão 42 «De quinque negotiationibus et quinque regionibus» geur» in Bulletin d'Informations de L'I.R.H.T., 12 (953), pp. 25-44. M.
atribuído a S. Bemardo, muito próximo do de Pedro Damião mas onde François Dolbeau teve a amabilidade de me fazer notar que nos manus-
o sistema dos três lugares (dentro dos cinco) e a palavra purgatório critos mais antigos destes sermões, que por sua vez confirma como sendo
(purgatorium) surgem com uma nitidez que me parece impossível antes de Pedra, o Devorador, encontra-se in purgatorio (ms 312 (303) e 247
de 1153, data da morte de S. Bemardo: Tria sunt loca, quae mortuorum (238) de Angers, do fim do século XII) mas que o fragmento de frase
animae pro diversis meritiis sortiuntuer: infernus, purgatorium, caelum (S. inteira onde se encontra in purgatorio falta num manuscrito mais anti-
BERNARDO, Opera omnia, ed. J. Leclercq-H. M. Rochais, 6, I, p. 259). go, o 227 (218) da Biblioteca Municipal de Valenciennes, de meados do
Dom Jean Leclercq e H. M. Rochais tiveram a amabilidade de me rea- século XII.
firmar por escrito e de viva voz o que haviam escrito em diferentes arti- Como me parece que o substantivo purgatorium se encontra realmente
gos: J. LECLERCQ, «Les collections de sermons de Nicolas de numa carta enviada em 1176 pelo beneditíno inglês Nicolas de Saint-Al-
Clairvaux» in Revue bénédictine, 1956; H. M. ROCHAIS, «Enquête bans ao cluniacense Pierre de Celle (em 1180-1182, segundo informação
sur les sermons divers et les sentences de saint Bernard» in Analecta amavelmente fomecida por A.-M. Bautier); Porro facto levi per purgato-
soe, 1962, a saber, que nada permitia decidir pela não-atribuição a S. rium transitu intravit in gaudium Domini sui (PL, 202, col. 624), e que
Bemardo do sermão 42, se bem que nada permita igualmente atribuir- Pedra, o Devorador, falecido em 1179, se é que empregou no sermão
-lhe a paternidade com segurança: «Mantivemos o De diversis 42 como de Jerusalem quae aedificatur o substantivo purgatorium não o emprega nun-
S. Bemardo se trata de um texto de que existem várias redacções devidas ca no De sacramentis composto entre 1165 e 1170, julgo que os empregos
não ao próprio S. Bemardo, mas a Nicolau de Clairvaux e outros, o que mais antigos de purgatorium como substantivo seriam de cerca de 1170 no
explicaria a introdução de elementos mais tardios» (J. Leclercq, carta de cisterciense Nicolau de Clairvaux, no beneditíno Nicolau de Saint-Albans
5 de Outubro de 1979). Madame Monique-Cêcile Garand, que teve a e no mestre secular da Escola de Notre-Dame de Paris, Pedro, o Devo-
gentileza de examinar por mim os manuscritos latinos 2571 da Bibliote- rador.
ca Nacional de Paris e 169 de Cambrai - talvez os mais antigos -, sugere Resta um problema que não pude esclarecer de maneira decisiva. En-
prudentemente, sob critérios paleográficos, que o primeiro deve ser do contra-se na edição de um tratado anónimo, De vera et falsa poenitentia,
terceiro quarto do século XII (mas talvez de antes da canonização de publicada pela Migne e atribuída pela Idade Média a Santo Agostinho,
Bemardo em 1174, sendo que a palavra sanctus não figura no título e mas que data, na verdade, do fim do século XI ou mais provavelmente da
terá sido acrescentada no ex-libris) e o segundo da segunda metade do primeira metade do século XII, o termo purgatorium usado como substan-
século. Poderá pois pensar-se numa data próxima de 1170. Estou con- tivo: ita quod nec purgatorium sentiunt qui in fine baptizantur (PL, 40,
vencido de que o primeiro sermão não é de S. Bemardo e data pelo 1127). O facto de nalgumas linhas mais adiante o texto falar de ignis

434 435
i .,
1,;1

"

'I
purgatíonís nada prova mas deixa isolada a palavra purgatorium sobre a sou de S. Bernardo) não vão directamente para o Paraíso e passam pelo
qual estou convencido de que só ficou nos manuscritos a partir do fim do Purgatório. ~
século XII, quando o texto primitivo devia ser ignem purgatorium. Não Se se consultar os dicionários e glossários do latim medieval, vê-se que
restam dúvidas, na verdade, de que o De vera et falsa poenitentia data de o exemplo mais antigo de purgatorium citado por DU CANGE é a carta
antes do meio do século XII, pois foi citado não só por Pedro Lombardo de Inocêncio IV a Eudes de Châteauroux de 1254. J. F. NIERMEYER
falecido em 1160 (PL, 192, 883) mas também pelo Decreto de Graciano, (Mediae Latinitatis Lexícon Minus, Leyde, 1976) diz: «subst. neutro pur-
escrito cerca de 1140 (PL, 187, 1559, 1561, 1637). Infelizmente, apesar dos gatorium, o Purgatório, the Purgatory, S. XIII». A. BLAISE no seu Dic-
meus esforços, ajudado por M. François Dolbeau, M. Agostino Paravi- tionnaire latin-francais des auteurs du Moyen Âge (Corpus christianorum
cini Bagliani e Mme Marie-Claire Gasnault, não pude consultar o manus- Continuatio Maedievalis, Turnhout, 1975, pp. 754-755) diz que a palavra
crito do De vera et falsa poenitentia anterior ao fim do século XII, e a aparece no século XII enquanto anteriormente empregava-se uma perífra-
minha convicção continua a ser uma hipótese. Só posso desejar uma edi- se como purgatorius ignis e cita o pseudo-Agostinho (o De vera et falsa
ção científica deste texto fundamental para a história da penitência, tema poenitentia), a carta de Inocêncio 111do começo do século XIII e o sermão
essencial da teologia e da prática religiosa no século XII. Cf. A. TEE- de Hildebert de Lavardin que deve ser restituído a Pedro, o Devorador,
TAERT, La Confession aux laiques dans l'Église latine depuis le VIII" (falecido em 1179). Indica também o sentido de «local penitencial situado
jusqu'au XIV siêcle, Paris, 1926, pp. 50-56, e C. FANTINI, «Il tratatto numa ilha e chamado "purgatório de S. Patrick" ou Patrick».
ps. agostiniano De vera et falsa poenitentia» in Ricercche di storia religio- J.-H. BAXTER e Ch. JOHNSON (Medieval Latin Word - List from
sa, 1954, pp. 200-209. British and Irish Sources, Oxford, 1934) dão simplesmente «purgatorium,
Sobre a maneira como a expressão ignis purgatorius se transformou a purgatório (ecl.), c. 1200». R. E. LATHAM no seu Revised Medieval
partir do fim do século XII em purgatorium, quando o substantivo do Latin Word-List from Britísh and Irish Sourees (Londres, 1965) distingue
texto mais recente e o adjectivo do texto primitivo estavam no mesmo «purgatorium (teol.) e. 1150 e purgatorium Sancti Patricii (in Lough
caso gramatical, eis um exemplo significativo. Derg) c. 1188». Julgo que a data de cerca de 1150 vem da data de 1153
Alexandre de Hales na sua Glosa das Máximas de Pedro Lombardo atribuída, na tradição do Purgatorium Sancti Patricii, à aventura do ca-
(entre 1223 e 1229), cita o De potestate legandi et solvendi de Richard de valeiro Owein. A data (e provavelmente a história) é fantasista.
Saint- Victor, falecido em 1173, da seguinte maneira: «per incendium pur- Para as línguas vernáculas em francês a menção mais antiga de
gatorii scoria peccati excoquitur» (Glossa in IV libros Sententiarum Petri purgatório aparece provavelmente sob a forma espurgatoire no Espurga-
Lombardi, liv. IV, dest. XX, ed. Quaracchi, 1. IV, p. 354). Ora o texto toire Saint-Patriz de Marie de France, cerca de 1190 (ou no princípio do
original de Richard de Saint- Victor é: «per incendium purgatorii ignis século XIII, entre 1208 e 1215, na hipótese de F. W. LOCKE, in
scoria peccatí excoquitur» (PL, 196, 1177). Speeeulum, 1965, pp. 641-646).
No fim do século XII e no começo do século XIII purgatoríum e ignis O meu amigo Josef Macek faz-me notar que em checo a palavra que
purgatoríus coexistem quase como sinónimos e por vezes nos mesmos designa o Purgatório Oõistec só aparece nos anos 1350-1380 em traduções
autores. Pierre de Celle, a quem Nicolas de Saint-Albans escreve cerca de obras latinas. Mas este Purgatório parece mal diferenciado do limbo
de'Tl Sü falando de purgatoríum (a propósito de S. Bernardo), emprega ou mesmo do inferno. Para Jean Hus, o Purgatório é «o terceiro inferno»
no seu tratado De disciplina claustrali, feito em 1179, apenas a expressão (tretie pehlo in Vyhlad viery, Ms M, Biblioteca da Universidade de Brno,
ignis purgatorius (PL, 202, col. 1133). Como os manuscritos mais antigos MK, fol. 16 a). Ainda no começo do século XV os taboritas recusam-se a
de várias obras do século XII não foram conservados, será dificil detectar acreditar no Purgatório e fazem um jogo de palavras entre oõistec e
com segurança os empregos mais antigos de purgatorium. osistec (mentira) ou chamam ao Purgatório purgáé, quer dizer purgati-
Madame Anne-Marie Bautier teve a gentileza de me assinalar uma das vo. Sobre a recusa do Purgatório entre os Valdenses e os Hussitas, ver
mais antigas definições do Purgatório que se encontra numa vida de S. Romolo CEGNA, «Le De reliquiis et de veneratione sanctorum: De
Victor, mártir de Mauzon, recentemente editada por F. DOLBEAU purgatorío de Nicola della Rosa Nera detto da Dresda (di Cerruc), mai-
(Revue historique ardennaise, 1. IX, p. 61): Purgatorium ergo, locum con- tre à Prague de 1412 a 1415», Mediaevalia Philosophiea Polonorum,
flationis, ergastulum purgationis, iste sanctus repperít in gremio ecclesiae in t. XXIII, Wroclaw-Varsóvia-Cracóvia-Gdansk, 1977.
qua conflari injuriis et passionibus meruit, quibus ad remunerationem victo-
riae laureatus pervenit» Verifica-se que certos santos (e foi o que se pen-

436 437
I
jj
APÊNDICE III
AS PRIMEIRAS IMAGENS
(Ver as quatro páginas de ilustracães extra-texto)

No artigo FEGFEUER (Purgatório) do excelente Lexicon der christli-


chen lkonographie, ed. Kirschbaum, vol. 11, 1970, col. 17, W. BRAUN-
FELS escreve: «No mundo figurado do paleocristianismo como no da
Idade Média, até ao fim do século XIV não se encontra qualquer repre-
sentação do Purgatório».
Embora me pareça certo que a iconografia do Purgatório só se expan-
diu no fim do século XIV, encontram-se todavia representações do Pur-
gatório durante o século precedente e uma investigação iconográfica
atenta revelaria sem dúvida uma colheita mais rica de imagens do Purga-
tório anteriores ao fim do século XIV.
Apresento aqui três dessas representações:
1) A mais antiga, para a qual o Padre Gy chamou a minha atenção, é
uma miniatura que se encontra no folheto 49 do Breviário de Paris, cha-
mado Breviário de Filipe, o Belo (Paris, Biblioteca Nacional, manuscrito
latino 1023). Este manuscrito, que data do período 1253-1296 e que, se-
gundo critérios formais, deve ser situado perto de 1296, é muito prova-
velmente o breviário cuja ilustração foi encomendada por Filipe, o Belo,
a um célebre pintor parisiense, mestre Honoré, em 1296, como testemu-
nha o inventário do tesouro do Louvre desse ano.
A miniatura de pequenas dimensões (3,5 em x 4 em) do folheto 49
representa provavelmente um julgamento de almas por Deus. O Cristo
em majestade e dois serafins que o acompanham ocupam cerca de dois
terços da altura da miniatura. Na parte inferior vêem-se quatro almas do
Purgatório, duas ainda imersas no fogo e duas sendo tiradas do fogo por
dois anjos que romperam o tecto de nuvens. A figura compreende quatro
lugares em camadas: um céu dourado, uma zona de nuvens, uma zona
sub-lunar quadriculada e o fogo (Cf. V. LEROQUAIS, Les Bréviaires
manuscrits des bibliothéques publiques de France, t. lI, Paris, 1934,
nO 487, pp. 465-485).

439
I

.~
2) Uma miniatura que oferece ao mesmo tempo diferenças e seme- APÊNDICE IV
lhanças com a imagem anterior encontra-se no Breviário parisiense cha- TRABALHOS RECENTES
mado Breviário de Carlos V que foi talvez executado por uma mulher da
família real francesa, entre 1347 e 1380, data em que se encontra na Bi-
blioteca de Carlos V (paris, Biblioteca Nacional, manuscrito latino 1052,
folheto 556 verso, cf. LEROQUAIS, t. IH, pp. 49-56). A miniatura, tam-
bém de pequenas dimensões, está datada «da comemoração dos mortos»,
quer dizer de 2 de Novembro, enquanto a anterior ilustra o Salmo CXIV,
Salmo Dilexi, onde o salmista agradece a Javé tê-lo libertado das malhas
do shéol. O Cristo não figura nesta miniatura, ao contrário da anterior.
Dois grandes anjos levam para o céu duas almas que já só têm os pés no
fogo. Onze cabeças de almas representando uma multidão destas almas
do Purgatório e as diferentes condições sociais (lá se reconhecem o papa,
o bispo, etc.) estão mergulhadas no fogo. Há três lugares em camadas: um Já depois de terminar este livro (Janeiro de 1981) tive conhecimento de
céu azul muito delgado (cerca de um décimo da altura), uma zona inter- diversos estudos mais ou menos ligados ao Purgatório.
média quadriculada ocupando mais de metade da altura, um mundo in- Paolo SANTARCANGELI em NEKYIA, La discesa dei poeti
fernal feito de rochas silicosas com um grande buraco cheio de fogô. agli Inferni, Milão, 1980, evoca o Purgatório de S, Patrick e a Irlanda
Devo o conhecimento e a reprodução desta miniatura à amabilidade de (p. 72) a propósito da geografia simbólica dos Infernos situados nas
M. François Avril. ilhas.
3) A terceira representação do Purgatório encontra-se num fresco da Três estudos importantes foram dedicados às visões e às viagens do
catedral velha de Salamanca que representa todo o sistema do, além no além.
começo do século XIV segundo a concepção dos quatro lugares. A esquer- O primeiro, de Michel AUBRUN, «Caractêre et portée religieuse et
da (para quem olha) o Céu e à direita o Inferno. No centro receptáculos sociale des Visiones en Occident du VIe au XIe siêcle», apareceu nos Ca-
com almas representando à esquerda o Purgatório, à direita os limbos. hiers de civilisation médiévales, Abril-Junho 1980, pp. 109-130. O autor
No receptáculo superior do Purgatório um anjo vem buscar uma alma analisa com argúcia a atmosfera religiosa e psicológica destas visões. Des-
para a conduzir ao céu. Uma inscrição data esta pintura de 1300 da taca com perspicácia a atitude da hierarquia eclesiástica que oscila entre a
era espanhola, o que daria 1262, mas M. François Avril pensa que, por reserva e a recuperação que se inscrevem no quadro da desconfiança da
razões de estilo, este fresco não pode ser anterior à primeira metade do Alta Idade Média em relação aos sonhos. Não põe o «problema» do
século XIV. Devo a reprodução desta pintura à amabilidade do professor Purgatório porque o seu estudo fica-se pelo começo do século XII, mas
Luis Cortes. Cf. José GUDIOL RICART, Ars Hispanica, voI. 9, Pintura nota justamente a presença, na visão de Drythelm de Bede, de uma espé-
Gótica, Madrid, 1955, p. 47. cie de «Purgatório-penitência a nordeste» e de «Purgatório-espera a su-
deste». Esta dicotomia do Purgatório corresponde aos dois «além» da
tradição céltica, o quase-infernal e o quase-paradisíaco, e anuncia o
Purgatorio de Dante com a sua antecâmara.
O grande medievalista soviético Aaron J. GURJEWITSCH (cuja obra
sobre Les Catégories de Ia culture médiévale, 1972, traduzida para alemão
com o título Das Weltbild des mittelalter/ichen Menschen, Dresde, 1978,
aparecerá brevemente em tradução francesa nesta Bibliothéque des
Histoires da Gallimard) enviou ao colóquio organizado em Paris em Mar-
ço de 1981 pelo Centro Nacional de Investigação Científica sobre o
Temps chrétien (séculos IV a XIII), colóquio em que não pôde partici-
par, um texto importante que será publicado nos Annales E.S.e. sobre
O Indivíduo e a Imaginapão do Além (L'individu et l'imagination de l'au-

440 441
de/à). Gurjewitsch censura a Pierre Chaunu e principalmente a Philippe Estes estudos recentes levam-me a recordar e a afirmar que não estu-
Ariês terem baseado as suas ideias sobre o Purgatório em fontes que só o dei todas as visões do além que conservámos, para o período que vai do
aceitam tardiamente (testamentos e sobretudo iconografia) enquanto ou- século VIII ao século XIII. Penso que apenas pus de parte textos que nada
tras, essenciais, fazem datar de mais cedo o seu nascimento e difusão. acrescentavam à minha demonstração, num sentido ou noutro, apesar do
Estou de acordo com ele por considerar que essas outras fontes - as interesse que pudessem ter. A palavra purgatorium não existe, está claro,
visões do além e os exempla que largamente utilizei neste livro - são em nenhum desses textos. Vou dizer rapidamente, a título de exemplos,
indispensáveis e dão outra imagem da história do Purgatório. Ambos porque não aproveitei algumas dessas visões analisadas pelos três autores
concluímos que o período crucial é o fim do século XII e o princípio do que acabo de citar, como o tinham sido - ainda que de maneira menos
século XIII. Mas creio que Gurjewitsch, por sua vez, esqueceu de mais a pormenorizada e numa perspectiva menos histórica - pelos autores anti-
teologia, a liturgia e as práticas religiosas. Penso como ele que o Purga- gos como Becker, Dods, MacCullogh, Seymour, Patch e mais recente-
tório e o conjunto do sistema do além revelados por essas fontes mostram mente Dinzelbacher.
um processo de individualização da morte e do além que insiste cada vez
mais no julgamento individual logo após a morte. Mas o conjunto das Alta Idade Média: século VII. A Visão de Bonellus (PL, t. 87, col.
fontes e em especial as que falam dos sufrágios fazem notar que, como 433-5).
demonstrei, esta promoção da salvação individual se combina com a ac- O abade espanhol Valera, falecido no último decénio do século VII,
ção das comunidades a que pertence o indivíduo, quer se trate de comu- conta a viagem ao além do monge Bonellus. Durante um êxtase é levado
nidades terrestres de parentesco carnal ou artificial, quer da comunidade por um anjo para um habitáculo, uma célula esplendorosa de pedras
sobrenatural da comunhão dos santos. preciosas que será a sua futura morada se continuar com as suas práticas
Em Abril de 1981 Claude CAROZZI apresentou na XXIXe Settimana ascéticas. Num segundo êxtase um demónio leva-o para o poço do Infer-
di Storia du Centro Italiano di Studi sull'Alto Medioevo de Spoleto de- no. Nenhuma palavra alude a qualquer purgação mas alguns detalhes
dicada ao tema Popoli e paesi nella cultura altomedievale uma comunica- evocam o sistema do futuro Purgatório. O lugar está situado nas profun-
ção notável- que aparecerá no volume das relações e debates da semana dezas da terra, e contém um fogo aterrador no qual os demónios lançam
- intitulada: A Geografia do Além e o seu Significado Durante a Alta Idade as almas. Bonellús vê lá um diabo horrível acorrentado mas que não deve
Média. E um bosquejo da tese que prepara sobre a literatura das visões ser Satanás, pois só lhe mostram «o poço inferior do abismo onde as
entre os séculos VI e XIII. O Purgatório estava no centro da sua exposi- penas são mais intensas e mais cruéis». Um pobre que ele socorrera na
ção. Estou de acordo com ele quanto a sublinhar-se a importância da terra procura vir em seu auxílio - alusão ao sistema dos sufrágios. Resiste
geografia no desenvolvimento das crenças do além e a distinguir-se como graças ao sinal da cruz, como acontecerá no Purgatório de S. Patrick.
etapas principais: os Diálogos de Gregório, o Grande, a visão de Finalmente é conduzido à terra. Não existe, repito, qualquer ideia de
Drythelm de Bede, a politização do além na época caroIíngia, e evolução purgação, apenas uma hierarquia dos lugares de punição. O sistema é
decisiva no sentido da precisão dos grandes textos do século XII e do dualista: lugar muito agradável sem nome, abismo (abyssus) chamado
começo do século XIII. Mas divergimos num ponto que considero essen- inferno (infemus).
cial. Claude Carozzi fala do Purgatório a partir do século VIII, quando
não do século VI. E «realista» onde eu sou «nominalista» e acredito no Alta Idade Média: século VII. A Visão de Barontus (678/9)) (Monu-
significado capital das mudanças de vocabulário; e é assim levado a ver menta Germaniae Historica, Scriptores Rerum Merovingicarum, V,
no fim do século XII o nascimento do Inferno - um além de castigos pp. 337-394). Barontus, monge do mosteiro de Longoretus (Saint-
eternos bem diferenciado - e não o do Purgatório. A título de piada -Cyran, perto de Bruges), levado por dois demônios durante uma doença
provocadora esta hipótese é sugestiva, mas não creio que esteja de acor- grave, é socorrido pelo santo arcanjo Rafael e por S. Pedro, que lhe mos-
do com a realidade histórica. Claude Carozzi estudou com muita erudi- tram as quatro portas do Paraíso e lhe deixam entrever o Inferno onde
ção e inteligência um género literário. Um fenómeno histórico como o multidões de homens e mulheres reunidos por categorias de pecados são
nascimento do Purgatório deve ser explicado por um conjunto de fontes torturadas pelos diabos. Nada de purgação.
analisadas no seu contexto histórico global. Mas o meu resumo simplifica
muito as teses de Claude Carozzi. Será preciso esperar pela conclusão e Alta Idade Média: século VIII. A Visão do monge de Wenlock (cerca
publicação da sua tese de cuja riqueza e interesse estou certo. de 717) (Monumenta Germaniae Historica Epistolae, t. 3, pp. 252-257).

442 443
Numa carta à abadessa Eadburge de Tenet, S. Bonifácio conta a visão No começo do século XIII: a visão de Thurchill.
dum monge da abadia inglesa de Wenlock, no Shropshire. Alguns anjos Retomo a visão de Thurchill, visão literalmente espantosa e que ex-
fizeram-no dar a volta ao globo terrestre e depois mostram-lhe os poços pliquei há alguns anos no meu seminário, mas sobre a qual não me alar-
de fogo dos infernos e ele ouve os lamentos e os gritos das almas que guei (atrás, pp. 350-351) porque, sendo, grosso modo, contemporânea do
estão no inferno inferior. Mostram-lhe também um lugar muito agradá- Purgatório de S. Patrick, provavelmente ligeiramente posterior, não fez o
vel que lhe designam como o paraíso de Deus. O único ponto interessante sucesso do Purgatório, ao contrário do opúsculo de H. de Saltrey. Esta
para a pré-história do Purgatório é a existência de um ponto sobranceiro visão datada de 1206 é talvez obra do cisterciense inglês Ralph de Cog-
a um rio de fogo de onde caem almas que são mergulhadas no rio ou geshall. Foi incluída pelos beneditinos Roger de Wendover nas suas Flo-
intei~as ou só por uma parte do corpo, ou por metade do corpo, ou até res historiarum e Mathieu Paris, falecido em 1259, nas suas Chronica
aos Joelhos ou até às axilas. «São, dizem-lhe, as almas que depois de Majora. Thurchill, camponês simplório da região de Londres, é levado
deixarem a vida mortal não estavam completamente libertas de certos durante o sono através do além por Santo Julião, o Hospitaleiro, e S.
pecados leves e precisavam de um castigo piedoso do Deus misericordio- Domnius que, a pedido de S. Tiago, o levam a fazer a peregrinação ao
so, para serem dignas de Deus.» É, sem a palavra, a ideia de purgação. além. No interior de uma grande basílica sem paredes parecida com um
Mas este texto está bastante atrasado em relação à visão de Drythelm de claustro monástico, visita «os lugares de castigo dos maus e as moradas
Bede, quase contemporânea. dos justos». O vocabulário a respeito do Purgatório reúne, como é nor-
mal no início do século XIII, expressões arcaicas (loca poenalia, ignis pur-
No século XI: Otloh de Saint-Emmeran. gatorius) e o novo substantivo purgatorium (per purgatorii poenas). A
Otloh de Saint-Emmeran e de Fulda (1010-1070) autor da primeira geografia do além de Thurchill é ainda um tanto confusa e o Purgató-
autobiografia da Idade Média que se chegou a comparar com as rio, obedecendo à imagem arcaica dos receptacula animarum, ainda não
Confissões de Santo Agostinho, escreveu um Livro de Visões (PL, está bem unificado. Assim, por entre outros lugares purgatórios, há um
t. 146, col. 341-388) que se situa na tradição monástica e relata visões purgatório dirigido por S. Nicolau (qui huic purgatorio praeerat). A visão
que ele próprio teve ou que encontrou em autores, o principal dos quais de Thurchill apresenta duas particularidades representativas da mentali-
Gregório, o Grande, nos Diálogos. Entre essas visões de estranhos encon- dade do começo do século XIII: a importância dada ao acto de pesar as
tra-se a do monge de Wenlock contada por S. Bonifácio (col. 375-380) e a almas, que se reencontra na escultura gótica, e a associação ao Purgatório
de Drythelm narrada por Bede (380-383). Dada a antiguidade das fontes de uma tipologia de habitantes dos lugares das penas do além, misturan-
de Otloh, não só o Purgatório não aparece nestas visões, mas mesmo as do pecados capitais (o castigo de um orgulhoso) e pecados das categorias
expressões ignis purgatorius, poenae purgatoriae só aparecem raramente'. sociais (punições de um padre, de um cavaleiro, de um jurisconsulto,
Por exemplo, na visão catorze, um monge de um mosteiro da Boémia, forma interessante do esquema trifuncional da sociedade). O que sobre-
Isaac, vê num prado muito agradável os santos Gunther, Maurício e tudo impressionou os exegeses da visão de Thurchill foi o carácter teatral
Adalberto que lhe dizem que tiveram de «passar pelo fogo purgatório» da visão que culmina no episódio espantoso em que o peregrino assiste ao
antes de ir para aquele refrigerium. Otloh nada traz, pois, de novo, ao espectáculo, ao jogo (ludus vestros) dos demónios com as torturas dos
futuro Purgatório. Pode notar-se, por entre os apartes interessantes das habitantes do Purgatório (p. 503). Henri REY -FLAUD (Para uma dra-
visões, a sua tendência para insistir, por um lado, na espoliação dos bens maturgia da Idade Média - Pour une Dramaturgie du Moyen Âge, Paris,
monacais pelos laicos como causa dos seus castigos no além (na visão sete 1980, pp. 82-83) fez a aproximação entre a visão de Thurchill e o movi-
um proprietário rural culpado deste crime aparece aos seus dois filhos mento teatral da época e designadamente com o Jogo de S. Nicolau,
numa cavalgada aérea) e, por outro, para utilizar estas visões para fins inteiramente contemporâneo, do natural de Arras Jean Bode!. Parece
políticos. Por exemplo, a visão do monge Isaac destina-se a mostrar a todavia que, tal como para a iconografia, esta teatralização do Purgató-
supremacia da cadeira episcopal de Ratisbona sobre a de Praga. A visão rio terá abortado e os mistérios terão continuado a funcionar segundo o
dezassete mostra a imperatriz Teofânia, mulher de Othon 11 e mãe de sistema dualista do Paraíso e do Inferno.
Othon lU, aparecendo a uma monja para lhe pedir que a tire dos tormen- Por fim, a terceira grande visão do além, com as do Purgatório de
tos que sofre no além, porque, à moda das mulheres orientais, exibiu na S. Patrick e de Thurchill da passagem do século XII para o século XIII,
terra vestes luxuosas de mais. Belo exemplo da utilização do além para a do monge Eynsham (Evesham), igualmente incluída no Chronicon
exprimir o fosso cultural entre o Ocidente e o Oriente! Anglicanum de Ralph de Coggeshall (ed. J. Stevenson, 1875, pp. 71-72),

444

1
445
I
I~
I;
nas Flores historiarum de Roger de Wendover e na Chronica Majora de AGRADECIMENTOS
Mathieu Paris (vol. 11,pp. 243-244), está demasiado próxima da Visão de
Drythelm e nela o Purgatório está por de mais fragmentado para que eu a
aproveite.

- François Dolbeau teve a amabilidade de me indicar um artigo de


Brian GROGAN: «Eschatological Teaching of the Early Irish Church»
surgido em Biblical Studies, The Medieval lrish Contributions, ed. M.
McNamara. Proceedings of the lrish Biblical Association, nO I, Dublin,
1976, pp. 46-58. Menciona muito o Purgatório. Sem o dizer com clareza,
pois emprega o termo prematuramente, B. Grogan confirma que o Infer-
no e o ignis purgatorius só se distinguem um do outro no fim do século XII
e que o Purgatorium Sancti Patricii é o primeiro texto relativo à Irlanda
em que aparece a palavra purgatorium.
- Recebi, sem poder utilizá-Io, o artigo de GiIbert DAGRON «La Esta investigação beneficiou de muitas ajudas. Em primeiro lugar, a
perception d'une difTérence: les débuts de Ia "Querelle du Purgatoire't» dos membros do Grupo de Antropologia Histórica da Escola de Altos
(Actes du xV" congrês intemational d'Etudes byzantines, IV, Histoire, Ate- Estudos em Ciências Sociais: Andrée Duby, Marie-Claire Gasnault,
nas, 1980, pp. 84-92).
Georgette Lagarde, Colette Ribaucourt, Jean-CIaude Schmitt e da mi-
nha colega e amiga Anne Lombard-Jourdan.
Ainda de Paris, ao Instituto de Investigação e de História dos Textos
do C.N.R.S., a François Dolbeau e Monique-Cécile Garand, ao Comité
Du Cange, Anne-Marie Bautier, ao Léxico do Latim filosófico medieval,
Annie Cazenave, e à equipa da Biblioteca de Saulchoir que me fizeram
beneficiar da sua competência e da sua gentileza.
Em Roma, os meus amigos Girolamo Amaldi e Raoul Manselli dis-
pensaram-me a sua ciência e a sua atenção. Encontrei uma ajuda incom-
parável na Biblioteca da Escola Francesa, junto de Noêlle de La
Blanchardiêre, de Pascale Koch e de todo o pessoal. Jean-Claude Mai-
re-Vigueur, director dos estudos medievais, e Jacques Chiffoleau, mem-
bro da Escola, deram-me um apoio múltiplo. Georges Vallet, director da
Escola e André Hartmann permitiram-me, ao receber-me de uma maneira
perfeita na Piazza Navona, redigir em condições inigualáveis a maior
parte da obra. Na Biblioteca do Vaticano, Agostino Paravicini-Bagliani
antes de mais, mas também Louis Duval-Arnould e Monsenhor Joseph
Sauset não me regatearam nem a sua ciência nem a sua amabilidade.
Pude assim trabalhar em excelentes condições na Biblioteca da Universi-
dade Pontifical Gregoriana. O P. Reinhard Elze, director do Instituto
Histórico Alemão e o Dr. Goldbrunner, bibliotecário, adivinharam mes-
mo as minhas necessidades e os meus anseios.
A três amigos que me trouxeram em diversas fases deste trabalho, e
designadamente na critica estabelecida do manuscrito, uma ajuda inesti-
mável: ao P. Pierre-Marie Gy, a Jean-Claude Schmitt, e muito particular-
mente a Jacques Revel, exprimo a minha especial gratidão.

446 447

Christine Bonnefoy e, ocasionalmente, Simone Brochereau contribuí-
ram com os seus cuidados e gentileza para a realização deste livro.
A todas e a todos o meu mais profundo reconhecimento.

10 editor moderno fez por várias vezes um uso abusivo do termo purgatorium nos
títulos que deu às visões.

448

Você também pode gostar