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Capitulo 2 HISTORIAS NOS GUIAS CURRICULARES — ANOS 70 O ensino de Histéria na escola fundamental brasileira esteve, desde sua inclusio nos programas escolares (século XIX), fortemente articulado a tradigdes européias, sobretudo francesa. Durante o século XIX € inicio do século XX, privilegiava-se o ensino da Historia Universal seguindo o esquema quadripartite: Historia Antiga, Histéria da Idade Média, Histéria Moderna e Histéria Contempordnea. O ensino de Histéria do Brasil era visto em conjunto com a Histéria Universal, numa posigao secundaria. A partir de 1940, durante o Estado Novo, 0 Ministério da Educacao e Satide Puiblica estabeleceu o ensino de Historia do Brasil como disciplina aut6noma. As Reformas de Ensino de Francisco Campos (1931) e Gus- tavo Capanema (1942), ao estabelecerem orientacdes metodoldégicas para o ensino de Historia, reafirmam o esquema quadripartite francés de Histéria Universal e a Hist6ria do Brasil dividida em duas séries, © primeiro conjunto compreendendo a Histéria do Brasil até a Inde- pendéncia e o segundo compreendendo a Historia do Brasil do. 12 Reinado até aquele momento, o Estado Novo. No colégio, repetiam- Se os programas do gindsio, os chamados ‘‘ci¢los concéntricos que deveriam ser ampliados ou aprofundados”’. ! 1. Miriam Moreira Leite, O ensino de histdria no primdrio ¢ no gindsio, Sio Paulo, Cultrix, 1969, p. 110. 49 er A partir de 1961, da Lei de Diretrizes e Bases, 0 Conselho Federal de Educacaéo passa a estabelecer apenas a amplitude das disciplinas obrigatérias, cabendo aos Conselhos Estaduais e as con- gregagdes de professores a defini¢ao dos programas. As orientacdes do Conselho Federal de Educagao para o ensino de Histéria recaiam sobre a Histéria Geral e Historia do Brasil e ainda Historia da Amé- rica, quando possivel. Percebemos que a institucionalizagao, ou seja, 1 Historia Geral, os grandes fatos da Historia européia, ~ como a Revolugio Francesa, a Revolugao Industrial, continuam sendo destacados dentro da seqiiéncia cronoldgica. Em Historia do Brasil, os fatos politicos institucionais periodizadores, como a Independéncia do Brasil e a Proclamagao da Republica, sustentam o arcabougo histérico difundido pelos programas. No século XIX, 4 medida que a Europa afirma sua politica imperialista no mundo, afirma também o discurso de Histéria Univer- sal a sua imagem e semelhanga. Assim, no Brasil, as nogGes de civilizagao e progresso tao caras a burguesia européia, em oposi¢ao a barbdrie e ao atraso dos americanos, passam a fazer parte do ideario dos republicanos. Segundo Ferro, para 0 eurocentrismo os valores que definem a civilizagao — ‘‘unidade nacional, centralizagao, obediéncia a lei, industrializagdo, instrucdo publica, democracia, fornecem uma espécie de codigo do direito dos Estados Na¢Ges'entrarem na Histdria’’.* Estas nogGes sao destacadas dentro do quadripartismo (An- tiga, Medieval, Moderna e Contemporanea) e na Historia do Brasil, que passa a ser construida dentro dos marcos da histéria européia. Os marcos, segundo Chesneaux, tém uma fungao politica ideolégica bem. definida. No caso da Idade Antiga, destaca-se a antiguidade greco- romana e seus valores culturais como base da cultura burguesa euro- péia. No periodo medieval, salienta-se a Idade Média crista, exaltando os valores da civilizagdo cristé. O periodo moderno, segundo o autor, Tepresenta a pretensdo da burguesia de completar a histdria, contro- lando, em nome da modernidade, o futuro da humanidade. A Idade Contemporanea apresenta o dominio do Ocidente sobre o mundo, através da elaboragao de um quadro coerente e Blobal do mundo . Nos séculos XIX e XX, os paises ializa iza ‘seos“*guias faturais ‘da historia africana, asidtica ou americana’”.® 2. Marc Ferro, A histéria vigiada, So Paulo, Martins Fontes, 1989, pp. 24-28. 3. Jean Chesneaux, Du passé, faisons table-rase?, Paris, Francois Maspero, 1976. 50 sisal O eurocentrismo foi aplicado de forma marcante nfo sé nos programas de ensino, mas também na pesquisa histérica e na organi- zacao dos curriculos dos cursos superiores em Histéria. O curriculo minimo do curso de Histéria, de acordo com a Resolugao de 19 de dezembro de 1962, é basicamente constituido de Histéria Antiga, Média, Moderna e Contemporanea, além de Histéria da América e do Brasil. * No caso da pesquisa, um bom exemplo é o levantamento dos temas das teses e dissertagdes defendidas na Universidade de Sao Paulo a partir do ano de 1939. Nele é evidente a opcdo de autores brasileiros por temas e tratamentos eurocéntricos. * A cronologia composta de periodos supostamente gerais indica uma sucess4o temporal que separa passado e presente, 0 ‘‘novo’’ ocupa 0 lugar do passado ‘‘morto”’, e também Ihe da continuidade, de forma que caminhamos numa linha historica rumo ao progresso. Desse modo, a Histéria do Brasil, durante muitos anos, foi , , tratada nos programas de ensino como pequeno apéndice da Histéria 0 Universal. A medida que 0 pais se europeiza, deixa de ser “barbaro”, ‘‘atrasado’’ e comega a se organizar ‘‘a imagem da Europa’, ele comega a “‘entrar na Histéria’’ e conseqiientemente passa a ser parte mais significativa dos programas de ensino. ¢ As experiéncias norte-americanas no ensino de Histéria foram referéncias através da disciplina Estudos Sociais. Na década de 30, no interior do movimento de inovacao educacional, Anisio Teixeira publi- cou uma proposta de ensino de Estudos Sociais no Brasil. A partir dai, a possibilidade_de_implantagao de Estudos Sociais nos curriculos passa a ser parte do debate educacional, surgindo experiéncias que demonstraram assumirem os Estudos Sociais diferentes papéis e sig- nificados nas diversas épocas. Em Minas Gerais, os Estudos Sociais sdo implantados na escola primdria na década de 50, amparados pelo Programa de Assisténcia Brasileiro-Americano ao Ensino Elementar (PABAEE). Este érgao nasceu de um convénio firmado em 1953 entre o governo federal do Brasil, 0 governo do estado de Minas Gerais e 0 governo dos Estados Unidos da América do Norte, com o objetivo de formar e aperfeigoar professores para a Escola Normale 4, Resolugao de 19-12-1962 — C.F.E. 5. Ver Maria Regina da C.R'S. de Paula, ‘Teses defendidas no Departamento de Historia da Universidade de Sao Paulo, Revista de Histdria, So Paulo, vol. 1,n® 100, ano XXV, 1974, p. 821. 6. Nesse sentido constituem referéncias importantes as obras de Oliveira Viana sobre o branqueamento racial ¢ a superioridade social e racial dos brancos sobre os mestigos e negros: Populaces meridionais do Brasil foi editado pela primeira vez em 1918; e Evolugdo do povo brasileiro, ‘cuja primeira edigao € de 1923. 51 ™ Priméria, além de produzir e distribuir novos materiais didaticos. Sob a influéncia de autores norte-americanos, foram publicadas obras ame- ticanas e estudos resultantes do trabalho desenvolvido pelo programa em Minas Gerais. Estas obras tornaram-se referéncia para as experién- cias desenvolvidas posteriormente. ” Na década de 60, os Estudos Sociais séo considerados como uma disciplina optativa para o ensino médio, de acordo com a Lei de Diretrizes e Bases de 1961. Em Sao Paulo, os Gindsios Vocacionais e Pluricurriculares fundados em 1962 e a Escola de Aplicagdo da Uni- versidade de Sao Paulo adotam Estudos Sociais em seus curriculos. No final da década de 60, a Secretaria de Estado da Educacio intro- duz a disciplina no curriculo ginasial das escolas da rede estadual. Nestas primeiras experiéncias, as concep¢Ges norte-america- nas de educac&o e de ensino de Histéria sao marcantes. Os Estudos Sociais no programa do PABAEE tinham como objetiv ae formar nas criancas a compreensio ¢ capacidade de seu ajusta- ye mento e integragdo social... e preparar as criangas para achar at dados e informagdes que Ihes sero uteis, ou para si ou para . estabelecer relagdes fisico-geogrificos e geogrifico-humanas. ® Na proposta da Equipe Renov (experiéncias realizadas nos Gindsios Estaduais Vocacionais de Sao Paulo), os Estudos Sociais sao definidos como drea- que se utiliza dos conhecimentos produzidos pelas Ciéncias Sociais e tinha como um dos objetivos: a integracdo paulatina do educando no meio social em que vive A equipe, entretanto, ressalva que: a integracdo do educando no seu contexto social nao significa adaptagdo ou ajustamento, mas mudanga e comportamento. ” 7. A primeira versio do programa de Anisio Teixeira foi publicada pela primeira vez em 1934, com o titulo Programa de ciéncias para a escola elementar. A partir dai foi publicado diversas vezes. Em 1962 foi publicado como Estudas sociais na escola primdria, Rio de Janeiro, MEC. A concepao norte-americana de Estudos Sociais é veiculada entre nds especialmente através das obras: John U. Michaelis, Estudos sociais para criancas numa democracia, Rio de Janeiro, Globo, 1963; Ralph C. Preston, Ensinando estudas sociais na escola primdria, Rio de Janeiro, USAID e Fundo Cultura, 1964, Outra referéncia para os Estudos Sociais no Brasil é Edgar Bruce Wesley, Teaching social studies in the elementary school, Boston, D.C. Health and Co., 1952. 8. Estes objetivos estéo relatados numa obra fruto da experiéncia do PABAEE em Minas Gerais: Maria Onolita Peixoto, Habilidades de estudos sociais, Rio de Janeiro, Nacional, 1964, p. 27. Posteriormente, com base nesta experiéncia foi publicado: Leny Wemeck Domelles e Therezinha Deusdaré, Estudos sociais — Introdugdo, Rio de Janeiro, Ao Livro Técnico, 1972. 9. A proposta da equipe pode ser conhecida em: Equipe Renov, Estudos sociais — uma proposta ara o professor, Petrépolis, Vozes, 1976, pp.12 ¢ 19. 52 Evidentemente, os projetos apresentam nuances significativas. Entretanto, a influéncia do conceito de Estudos Sociais relacionado 4 formacao do cidadao perpassa o contetido destes Pprojetos. Da mesma _ forma, nes nto histérico toda a politica educacional brasileira tem como pri referéncia 6 inodélo de educagao norte-americano. O ensino de Histéria na escola fundamental em Mi Gerais, Sao Paulo e nos demais estados brasileiros, nos anos 70, norteou-se basicamente pelas diretrizes da Reforma Educacional de 1971. Con- forme mencionado no capitulo anterior, a Lei 5692/71 no mudou em profundidade 0 ensino brasileiro, apenas consolidou medidas que ja vinham Sendo adotadas, institucionalizou algumas experiencias ja rea- lizadas, Comio~Os Estudos Sociais, por exemplo, e estabeleceu as diretrizes educacionais em consondncia com o projeto de educaco mais amplo do Estado Brasileiro. A partir da Lei 5692/71, 0 governo edita uma série de leis, pareceres € resolugGes normatizando e clareando os principios e dou- trinas, enfim, regulamentando a implantagao da reforma educacional. Um dos fatos que nos chama a atengio na reforma é a centralizacao das divisSes do processo de ensino nas esferas governamentais, refor- gando uma tendéncia que vem desde a Escola Nova. Apesar de a considerarem uma ‘‘descentralizagao articulada’’, o controle técnico- burocratico sobre a escola € o professor é acentuado. Um exemplo deste controle técnico-burocratico esta na defi- nigéo de competéncia para planejar, selecionar e definir os conteidos a serem trabalhados nas escolas. A reforma de 1971 estabeleceu uma nova organizacao curricular, definiu uma concepgdo de matéria, area de estudo, disciplina e atividade e tragou uma doutrina norteadora dos programas de ensino, os objetivos ¢ os minimos de contetidos deseja- veis em cada disciplina, area e atividade de estudo. O quadro adiante demonstra a definicdo de competéncias. Percebemos que o professor e 0 aluno so os ult imos elos da cadeia hierarquica. Ao aluno.cabe a tarefa de receber os contetidos, Ao professor, compete dosar, adaptar, selecionar dé acordo mo ambiente; e, em conjunto com o diretor, assume ‘‘operacionali ee executar o planejamento penisado e articulado nas esferas de poder as quais ele esté subordinado. A escola perde ainda mais sua relativa autonomia como espaco de criacdo, pois recebe os planejamentos, as orientagdes e as diretrizes preestabelecidas, competindo a ela ‘‘garantir 53 Distribuigéo dos Contetidos Matéria Competéncia Nivel de Influéncia SS —ONicleoComum — Conselho Federal de Nacional — Oart. 7 de Educagao A parte diversificada Conselho Estadual Regional (optativa) pelo esta- de Educa¢gao belecimento. Contetidosseleciona- —_ Estabelecimento de Escola dos de acordo com as (iretor + Pro- caracteristicas espe- fessor) cificas da ambiéncia. Dosagem de acordo Professor de turma de Aluno com a capacidade do Curriculo Pleno aluno. o nivel de conhecimentos que todos os alunos, ao concluirem uma série, nivel ou grau de ensino, devam obter’’. "" O que deve ou nao ser obtido é estabelecido pelos Conselhos Federal e Estadual de Educacao. Isto, sem duvida, representa uma continuidade da tradigao centralizadora da educacéo no Brasil, que havia sido, pelo menos teoricamente, diminuida com a Lei de Diretrizes e Bases de 1961. A centralizacdo das questdes educacionais vem da Reforma de 1931, que previa o controle e a elaboragaéo das medidas ligadas aos programas pelo Ministério de Educag&o e Satide Ptiblica. A Reforma Gustavo Capanema prosseguiu a linha centralizadora, porém, em 1951, segundo Miriam Moreira Leite, apesar de muitas resisténcias, os programas de ensino foram elaborados por uma congregagao de professores do Colégio Pedro II. A partir da L.D.B. de 1961, o C.F.E. passa a definir apenas a amplitude das disciplinas obrigatérias. ” A reforma de 1971 vem inovar as formas de controle e centralizagio do ensino. 10. Parecer n? 4833/75 — CFE. ML. Op. cit. 12. M. Moreira Leite, op. cit., pp. 105-115 54 | a i ii ni ellis onnbnibbilee ss: Desse modo, os contetidos a serem ensinados na escola, em todas as areas do conhecimento, sAo planejados e sistematizados pelos orgéos governamentais € suas equipes de profissionais especialmente formados para este fim. O ensino de Histéria passa a ser objeto de controle dos Conselhos e a discusséo mantém-se basicamente limitada aos programas de ensino elaborados pelas Secretarias de Educacao e aos livros didaticos escritos 4 semelhanga dos programas adotados em grande escala. O controle do que deveria ser ensinado pode ser constatado nos programas de ensino. Segundo a Secretaria da Educagiio de Sao Paulo, os guias curriculares nao apenas traduzem os contetidos dos ins- trumentos legais definidores da reforma como refletem a filosofia que os informa. ° O entéo Governador do Estado de Minas Gerais, Rondon Pacheco, ao apresentar o Programa de Ensino afirma: © curriculo do Ensino de 1° grau, organizado por especialistas sob a supervisdo da S.E.E., inspira-se nas idéias da nova filosofia de ensino (...). E 0 complemento indispensavel 4 implantacio, em trabalho integrado com 0 Governo Federal, da Reforma de Ensino. “ Os contetidos propostos expressam a ‘“‘filosofia’’ da reforma educacional definida pelo Estado, as concepgdes de educaciio, de ensino e de Histéria que evidentemente eram estrategicamente neces- sarias ao sucesso da politica educacional, mas que também de alguma forma se articulavam com experiéncias ja realizadas. Em So Paulo, segundo Miriam M. Leite, a Secretaria de Educacio resolveu introduzir os Estudos Sociais nas primeiras séries ginasiais de 1968. Depois de tomar a inicia- tiva de abrir as portas do gindsio a 80% da populagdo que a procurou, 2 Chefia do Servico de Ensino Secundario e Normal coneluiu que um meio de evitar a evasio e a repeténcia dos ginasianos seria fazé-los ter um gindsio de disciplinas integradas GF A incorporagao de experiéncias nao significa que 0 processo de mudangas se deu de baixo para cima. Pelo contrario, 0 quadro 13, Sao Paulo, Secretaria de Educagio, Guias curriculares para o ensino de I? grau, Sao Paulo, CERHUPE, 1975, p. 5. 14, Minas Gerais, SEE, Programa de ensino do primeiro grau — Estudos sociais, Belo Horizonte, (a), p. 1 15. Miriam M. Leite, op. cit., p. 115. ss hierarquico foi rigorosamente respeitado, a ‘‘inovagao”’ fez-se nos limites da Lei 5692/71. E exatamente um dos pilares da ‘‘inovagdo”’ € a adocdo de Estudos Sociais como parte do Nuicleo Comum, absor- vendo Historia, Geografia, elementos das outras Ciéncias Humanas e _disciplinas normativas como OSPB e EMC. A introdugao dos Estudos Socais e a interpretacio dos instru- mentos legais assumiram dimensdes diversificadas. Em Minas Gerais, ~:partindo da experiéncia acumulada, o campo de Estudos Sociais foi definido da seguinte forma: nas séries. iniciais como atividades de Integrago Social. Esta denominagao expressa um dos objetivos dos Estudos Sociais: integrar ou ajustar o aluno ao meio social, conforme afirmag4o dos autores do programa: Integracdo Social é um resultado alcancado por todo o programa da escola. Entretanto a expressio foi tomada no seu sentido especifico, traduzindo essencialmente os Estudos Sociais nas séries iniciais do 1° grau. O contetido destas atividades de Integracdo Social era consti- tuido basicamente de conceitos geogrdficos e historicos, além da orien- tacao civica. Ha uma fusao destes conceitos num unico corpo, ou seja, disciplina componente da grade curricular denominada Integra¢ao Social. De 5a 8 série, segunda fase do 1° grau, os Estudos Sociais so tratados como ‘‘area de estudos’’. Segundo os autores, os Estudos Sociais so contetidos afins que se completam, para formarem um quadro comum de referéncia do ambiente fisico-social do homem. Inte- grar tais contetidos constitui tarefa dos organizadores do curriculo. ” De acordo com esta concepcfo, o programa estabelece que os contetidos de Histéria, Geografia, Educacao Moral e Civica e OSPB sejam trabalhados de forma sistemdatica e integrada. A integracdo vertical e horizontal proposta nao é radicalizada como de 1? a 4? série; nao ha uma fusao dos diversos campos de conhecimento e as especi- ficidades de Histéria e Geografia foram preservadas. No manual de orientagao do curriculo de 1° grau, a Secretaria de Educacio dé a seguinte diretriz: No que se refere ao trabalho integrado ou correlacionado, o problema se liga as possibilidades que o Programa oferece e a receptividade do(s) professor(es). Se professor tinico, que ele 16. Minas Gerais, op. cit., p. 7. 17. Idem, ibidem, p. 6. 56 uaa = Nes =<) encontre os pontos de Integracao e correlagéo e monte seu pla- nejamento. Se varios professores, com formagio especifica, formulem em equipe seus objetivos, definam os temas que pos- sam ser trabalhados ao mesmo tempo. * Percebemos que a integragéo dos temas dos varios contetidos afins, Geografia, Histéria, Educagao Moral e Civica e OSPB, assume aqui 0 carater de proposta metodoldgica que o professor vai executar, de acordo com suas possibilidades. A integragdo nao anuncia a dimen- séo descaracterizadora das diversas disciplinas, nem a diluigéo das mesmas para, a partir de seus fragmentos, constituir 0 corpo Estudos Sociais. O programa é claro. Fornece uma lista de contetidos de His- toria, outra de Geografia, outra de OSPB e outra de EMC para cada série. O professor, no nivel de execucao, devera montar 0 seu plane- jamento, realizando a integracao vertical e horizontal dos temas. O Programa de Ensino nfo nega os Estudos Sociais. Pelo contrarié, critica“a forma “‘tradicional e estatica’’; assume os objeti- vos € Os pressupostos tracados pelo Conselho Federal de Educagiio e ainda gatante os contetidos minimos exigidos por este Conselho. A nosso ver, Os equivocos e as dificuldades legais colocados pelo Pare- cer 853/71 e pela Resolucdo 8/71, na definig&o de curriculo pleno, atividades, matérias e areas de estudos, abriram possibilidades para varias interpretagdes como esta da Secretaria do Estado de Educagao de Minas Gerais — ou seja, Estudos Sociais como area de estudo, campo amplo, abrangendo varias disciplinas especificas. Em Sao Paulo, a Secretaria Estadual de Educacao elaborou, a partir da Reforma de 1971, os Guias Curriculares para as disciplinas do Nucleo Comum do 1° grau. Os guias tiveram como referéncia as disposigdes legais decretadas pelo governo federal e o referencial tedrico que norteou os legisladores de curriculo em nivel federal. Aqui, como no caso de Minas Gerais, é marcante a influéncia dos pensadores norte-americanos. Retomam as teorias de estrutura da maté- tia de Jerome Bruner ¢ a teoria curricular de Ralph Tyler, forte inspi- ragéo do movimento curricular brasileiro nos anos 60 e TOR -~ O Guia de Estudos Sociais dimensiona o seu campo de estudo fazendo uso do referencial legal. Diz o texto: 18, Idem, Manual de orientagdo do curriculo de 1° grau, Belo Horizonte (s/d), p. 25. 19. Dentre as obras mais utilizadas citamos; Ralph W. Tyler, Principios bdsicos de curriculo e ensino, Porto Alegre, Globo, 1974; Jerome S. Bruner, O processo da educagdo, Sao Paulo, Nacional, 1973. s7 porque de solugdes muito questionadas vale recorrer as posigdes declaradas nos instrumentos legais: objetivo dos Estudos Sociais “& a Integracao espacio-temporal e social do educando em ambi- tos gradativamente mais amplos. Os seus componentes basicos sio a Geografia e a Histéria, focalizando na primeira a Terra e os fenémenos naturais referidos 4 experiéncia através dos tempos” (Parecer 853/71 — C.F.E.). Se a esses componentes bisicos se acrescentam outros elementos derivados das demais Ciéncias Huma- nas todos se referindo a uma realidade, como realidade indecom- ponivel, tem-se o campo dos Estudos Sociais. Admite-se que os Estudos Sociais sio questionados, mas a resposta dada ao questionamento é a existéncia de uma legislacao que deve ser cumprida. O conceito de integrag4o espago-temporal indi- cada na legislacdo é assumido pelos autores como somatéria de contetidos num corpo unico. Logo, o campo de Estudos Sociais é dimensionado como um soma de contetidos de Histéria, Geografia e demais ciéncias humanas; porém, ndo resguardando as especificidades destes contet- dos, mas fundindo-os dentro de uma unica disciplina — Estudos Sociais. Portanto, os contetidos sdo tratados de forma exterior uns aos outros. Nao hé horizonte multidisciplinar interno a cada disciplina. Delimitado o campo dos Estudos Sociais, os autores do guia depreendem, das diretrizes legais, dois eixos para a organizagéo dos contetidos curriculares. Primeiro é a integragao dos contetidos, o que resulta, segundo o documento, ‘‘na abordagem da sociedade e da cultura como um todo’’. O segundo eixo é 0 método retrospectivo do desenvolvimento dos contetidos, ou seja, partir do hoje, do contempo- raneo para se analisar o passado, o antigo. O programa estabelece uma integragdo vertical dos contetidos de 1* a 8* série a partir de trés temas, cada um deles desdobrados em dois subtemas. Os trés temas sao: ‘‘a crianga e a sociedade em que vive, fundamentos da Cultura” Brasileira e a sociedade atual: andlise e processo de formacao’’.* Percebemos que 0 tratamento dado a implantagao do ensino de Estudos Sociais nos dois estados traz pontos bastante significativos para o ensino de Histéria. Em primeiro lugar, os documentos expres- sam um “‘consenso’’ em torno dos Estudos Sociais, se bem que o de S4o Paulo deixa explicito que o consenso é forjado em torno da legislacéo a ser cumprida. Talvez por isso, a implantagao em Sao Paulo faz-se de forma radical, através da fusio dos contetdos de 1? a 8? série. Em Minas Gerais, a fusio da-se até a 4° série. 20. Sao Paulo, op. cit., p. 64. 21. Idem, ibidem. 58 a Um outro ponto que percebemos é que em Sao Paulo a exten- sio da escolaridade, a unificagdo do primario e do gindsio num tnico ciclo (1* a 8* série) é melhor contemplada na organizagao dos contet- ~——dos curriculares. A integrac&o vertical proposta através dos temas atenua, pelo menos em teoria, os efeitos da dicotomia que até hoje persiste entre 1* a 4* e 5* a 8*. Enquanto em Minas Gerais, apesar de a proposta de integracao vertical ser bem elaborada, a disciplina Integrac4o Social, pela natureza de seus propésitos, afasta-se de His- toria e Geografia e liga-se mais & Educacéo Moral e Civica. No que se refere as concepedes de educaciio, de curriculo, do processo ensino-aprendizagem e, sobretudo, 4 concepgdo de ensino de Historia, sob a forma de Estudos Sociais, a inspiragao na Pedagogia norte-americana € marcante. Conforme analisado anteriormente, os autores americanos serviram de referencial teérico para as inovacdes curriculares no periodo. = “ © guia curricular. de Estudos Sociais para o estado de Sao Paulo é um exemplo desta caracteristica. A substituicdo-de Histéria na escola fundamental por Estudos Sociais segue o modelo do ensino “americano. A concepgao de ensino-aprendizagem contida no pro- grama tende a privilegiar o desenvolvimento de ‘‘atitudes e compor- tamentos propicios @ assungo de responsabilidades sociais e civicas’”” em detrimento de habilidades mais especificas, # Segundo o programa: Os contetidos foram selecionados pelo seu valor instrumental, isto €, pela sua condig&o de recurso hdbil em promover a forma- sao da crianga e do pré-adolescente. Dai a pouca énfase sobre o conhecimento académico. °° Os critérios de selegio de contetidos sao definidos a partir da separagao entre aquisi¢do de habilidades sociais e habilidades especi- ficas . A transmissdo das habilidades sociais representa 0 campo de formagao moral e politica, enquanto as habilidades especificas se teferem 4 transmissao de informagées, conceitos e conhecimentos ligados 4 area. Nesse programa ha uma opgdo por privilegiar a forma- ¢do civica e os contetidos sao escolhidos em funcao deste propésito. Esta leitura, ao ser aplicada na elaboracéo dos guias curriculares, evidencia uma simplificagdo dos objetivos, temas da metodologia Proposta, além de separar os conceitos de informagao e formacao no interior do processo educativo. 2 dem Biden 23. Idem, ibidem, p. 9. 59 Analisando os objetivos gerais a serem conseguidos ao final do curso de Estudos Sociais nos oito anos de escolaridade, constata- meiro diz iceitos basicos qué—~ © iplina. Uni dos 6bjétivos Ciéncias Humanas utilizé-los como instrumentos de interpretacdo da realidade. Histéria e Geografia, suas categorias e seus objetos sao diluidos no bojo das chamadas Ciéncias Humanas. O segundo grupo diz respeito as atitudes e responsabilidades sociais_e_civicas. Argumenta-se pretender conseguir o Tespeito; a dignidade; 0 ajustamento; a compreensio; a aceitagdo das diversida- des; o sentimento de solidariedade; a responsabilidade ante os deveres basicos para com o Estado, a nagio, a comunidade; a valorizacao do pais e das suas institui¢Ges; 0 respeito ao patriménio cultural e, por fim, a valorizagao do trabalho como ‘‘alavanca do progresso””. Juntando estes ingredientes, forja-se a imagem do Homem ideal para construir 0 pais e a sociedade do trabalho, do progresso € da democracia. Estas concepgdes remetem-nos a Marc Ferro quando ele associa as imagens a Histéria que nos ensinaram na infancia. Porém, diz 0 autor, as imagens sofrem mudancas 4 medida que os saberes e as ideologias se transformam e a medida que se altera, na sociedade, a funcao da Histéria.* Os outros objetivos do ensino de Estudos Sociais dizem res- peito 4 Capacidade~para aplicar 0 raciocinio cientifico ao estudo da tealidade; as habilidades no utilizar os instrumentos Estudos Sociais, por exemplo, capacidade de utilizar mapas, globo etc. O ultimo grupo de objetivos refere-se as habilidades gerais com as atividades de Estudos ‘Sociais; novamente refere-se as posturas e valores do aluno, como, por exemplo, sua acdo em grupo, sua capacidade de tomar decisdes e a sua forma de participacao nas atividades. O programa de ensino de Minas Gerais estabelece critérios, padr6es de desempenho, diretrizes e objetivos gerais ‘‘em face a natureza dos contetidos especificos de Estudos Sociais’’. Isto quer dizer que nao ha uma generalizagéo das proposigées; as especificida- des so consideradas. Percebemos os cortes que demarcam o campo de cada disciplina, porém a funcdo dos Estudos Sociais de desenvol- vimento de valores morais e civicos é contemplada. 24. Mare Ferro, A manipulagdo da histéria no ensino e nos meios de comunicagéo, Sao Paulo, Thrasa, 1983, p. 9. 60 ae hd uma Seema de concepeao coma es de obtivo de Sao 0 Paulo; € enqu: nesta objetiva-se 0 ‘‘dominio de conceitos de Ciéncias Humanas”, numa clara atitude_de. > diluigao da_ciéncia historica; 0 programa de Minas as Gerais objetiva-se * ‘o conhecimento das estruturas dos contet- dos especificos de Estudos Sociais’’. Houve um reforgo da concepgao de Estudos Sociais nao como ciéncia ou disciplina, mas como drea de estudo. Ainda na area cognitiva, estabelece uma série de habilidades intelectuais voltadas para a Histéria e a Geografia.**_ O segundo grupo de objétivos refere-se a drea afetiva.\Nesse ponto, constata-se uma semelhanca com o programa de Sao Paulo. Buscava-se a formacao de “interesses, atitudes e sentimentos que revelem formacao humanistica e civismo’’. Procura-se forjar um homem dentro dos padrées e valores preestabelecidos pelas instituigdes sociais. Dentro dos padrées de desempenho, o programa estabelece que o ensino/aprendizagem de Estudos Sociais se dara em fung’o de forma- gao destes valores e habilidades e do desenvolvimento de uma ‘‘cons- ciéncia nacio E interessante observar que hé uma tentativa de legitimar, pelo controle do ensino de Histéria, a ldgica politica do Estado e da classe dominante, anulando a liberdade de formagao e de pensamento da juventude, homogeneizando a imagem destes sujeitos sociais, em torno da imagem do Homem que melhor serve aos interesses ‘do Estado e da Nacdo. Estes interesses eram nesse periodo ardorosa- mente defendidos pelo Conselho de Seguranga Nacional, cuja doutrina implicitamente esta colocada nestes programas. 7° O programa, apds explicitar ‘“em fungao de’’ que ensino este se pautaria, faz a seguinte ressalva: sem © conhecimento da histéria nacional e internacional, sem uma visio do quadro geogréfico nacional e mundial, aliados a ‘uma visdo das forgas dirigentes do mundo atual, sem uma intro- ducao a politica intemacional contemporanea, é impossivel integrar- se de maneira construtiva e consciente no mundo de hoje e compreender as necessidades e possibilidades da sociedade bra- sileira.*” 25. Minas Gerais, op. cit., pp. 3-6 26. Sobre a ideologia de Seguranga Nacional ver Maria Helena M. Alves, Estado e oposigdo no Brasil. (1964-1984), Petrépolis, Vozes, 1989. 27. Minas Gerais, op. cit., p. 4. Os autores, sem diivida, aproveitam as contradigdes do pro- cesso de implantagdo da reforma e, ao mesmo tempo em que afirmam os objetivos dos Estudos Sociais, esclarecem que sé se poder conse- gui-los através do ensino especifico de Histéria e Geografia. Ou seja, a ‘‘integracdo do sujeito social’, leia-se ‘‘ajustamento”’, fungao do ensino de Estudos Sociais, sé pode ser conseguida, segundo os auto- tes, ensinando a Histéria e a Geografia do Brasil.e do Mundo. Trata-se da confirmagao da ‘‘necessidade’’ da Histéria para a ome -de consciéncia do mundo quat-estarios-inseri go de objetivos estratégicos do Estado_ para Tegitimar a existéncia, as acdes, os comportamentos do Estado e da nagao.* O fim da Histéria poderia tornar impossivel a compreensao da ‘‘politica’’, das forgas ‘‘dirigentes’”’ e das possibilidades do Brasil; ou seja, sem a histéria passada, sem a histéria da atualidade, a com- preensao das possibilidades da sociedade brasileira estaria compro- metida: logo, o dominio da nossa propria Historia estaria comprometido. Nesta preservacao da Histéria, os autores do Programa de Ensino de Minas Gerais tragam algumas diretrizes para a organizacio dos contetidos. A diretriz ideolégica é um reforco do objetivo geral dos Estudos Sociais — ‘‘ajustamento crescente do educando ao meio cada vez mais amplo e complexo, em que deve nao apenas viver mas conviver’’? — definido pela legislagao federal: Resolugao n® 8, de 1° de dezembro de 1971. As diretrizes metodoldgicas, 4 semelhanga do ‘‘guia curricu- lar paulista’’, fundamentam-se nas teorias de estrutura da matéria de Bruner, quanto a apreensao da idéia geral, da transferéncia de habili- dades e da compreensio dos fundamentos da matéria em estudo. Entretanto, nenhum dos programas leva em conta a amplitude do conceito de aquisigao da estrutura. Para Bruner, captar a estrutura da matéria em estudo é compreendé-la de modo que permita relacionar, de maneira significativa, muitas outras coisas com ela. Aprender estrutura, em suma, é aprender como as coisas se relacionam.?” Esta é uma das dimensdes do processo ensino- aprendizagem que nao faz parte desses planejamentos. Para entendermos esta sim- plificagao, precisamos considerar a historicidade dos mesmos e as 28. Mare Ferro, op. cit., p. 11. 29. Jerome S. Bruner, op. cit., p. 7. 62 concepg6es da escola e de conhecimento que embasam o processo de elaboracaéo e implantagao desses programas. Em primeiro lugar, estes planejamentos curriculares sao ins- trumentos — meios através dos quais se realiza 0 projeto educacional do Estado militar, autoritario, dominante, no Brasil nos anos 60 e 70. Este instrumento mediador ¢ um instrumento politico, apesar da pre- tensa neutralidade e também das posturas pessoais e produces acadé. micas dos autore: guias. ae - tl, A escola de 1° grau aqui é concebida dentro da hierarquizacao e divisao do trabalho académico, como o espago em que se ensina um saber produzido, ou seja, a escola tem uma fungdo basicamente repro- dutora. Nesse contexto, ela reproduz nao sé a academia, mas também os 6rgaos de seguranca em plena atuacio. Desse modo, 0 governo, como demonstrou 0 quadro anterior, detém a fungao planejadora e os professores vao paulatinamente sendo desapropriados de sua fungao criadora. O processo de desqualificacao do professor, estrategicamente colocado pelo Estado, fetira daquele profissional a fungao de pensar. Para qué énsinar; a quem ensinar; como ensinar e quando ensinar: autoritariamente, estas questées pas- sam a ser respondidas pelos especialistas, alheios ao processo de ensino/aprendizagem. Essa desqualificagao do profissional da educa- ¢4o percorre a moderna educacao brasileira. Conforme analisam Silva e Antonacci, a reorganizagao do processo de trabalho escolar e a autonomia didatica do professor estiveram no centro das preocupagdes desde o movimento da Escola Nova no final dos anos 20 e inicio da década de 30.” Tais diretrizes de educagéo concebem 0 processo de ensino- aprendizagem apenas na sua dimensao reprodutora, a forma de apro- priagéo do conhecimento é concebida aqui como aquisicao de um grande nimero de informagGes através da memorizacdo. O ato peda- gdgico de conhecer se resume, desta forma, a reproduzir, copiar, verbalizar, memorizar mecanicamente e acumular informacées. O planejamento curricular elaborado fora da escola é instru- mento de veiculagao do que deve ser transmitido, para que, para quem © como deve ser transmitido, A partir da imposigao dos objetivos, os especialistas das Secretarias de Educago orientam a organizacao dos contetidos e das atividades. Qual 0 conhecimento histérico e geogra- fico necessdrio para os integrantes de vastos segmentos soci .. 30. M. Antonieta Antonacci e Marcos A. Silva, op. cit. - = ie © povo em geral? O que e como “‘interessa’’ ao projeto educacional imposto? Ja analisamos os objetivos e agora veremos os contetidos indicados para as primeiras séries. Estado e| Sao Paulo/ Estado e Minas Gerais/ discipl. Estudos Sociais discipl. Integracgao Social Série Série 1? e 2! |A erianga e a sociedade séries_|em que vive. Integracdo do homem ao A crianga e a sua comuni- meio fisico e social. dade. 1? série] 1. O mundo fisico em que 1. A comunidade das pes- vivemos. soas. 2. Asnecessidades (psico- 2.Elementos do meio légicas e socioculturais) natural da comunidade. do homem. 3. Asnecessidades basicas 3. O mundo social que nos do homem. rodeia. 4.A atividade humana como instrumento de) 2! série} 1. O ambiente fisico em satisfagio das necessi- que vivemos. dades. 2.0 ambiente fisico da localidade. 3# e 48 | A crianca e a sociedade 3. Necessidades sociocul- séties [em que vive. turais do homem e os A crianga e o Estado em meios organizados por que vive. ele para seu ajustamento. 1.0 Municipio 4. Aspectos de vida na 1.1 Aspectos socioeconémi- comunidade local e sua cos. integracdo no municipio. 1.2 Delimitagao geogrifica. 1.3 Integragéo urbana e| 3¢série| 1. O municipio integrado mural. | ao estado: aspectos fisi- 1.4 Esbogo da Histéria do cos € humanos. Municipio: origens e 2. O municipio integrado evolucio. politicamente ao estado. 2. Regiao a que pertence o municipio. 4? série! 1. O Estado de MG inte- 3. O Estado: coordenagao grado ao pais; situacdo entre os Municipios. geogrifica e econémica. 4.0 Estado de Sao Paulo 2. O Estado de MG e sua no contexto brasileiro. integracdo na Federacio Brasileira. os Numa primeira leitura, poderemos dizer que os contetidos difundidos por estas disciplinas, as séries e a ordenagado dos mesmos s4o semelhantes nos dois Estados. Percebemos que os programas curriculares cumprem a tarefa de universalizagao do saber, difundindo conhecimentos até certo ponto padronizados, definidos e selecionados na esfera competente — os especialistas das Secretarias de Educagao. O objeto de estudo das quatro primeiras séries segue a ordenacao: 18 série: a comunidade mais proxima, escola, familia; 2? série: 0 bairro; 3* série: o municipio; 4% série: 0 estado. Os guias curriculares de varios estados da federagao (nos anos 70) seguem 0 mesmo esquema, como, por exemplo, Rio de Janeiro, Bahia e demais estados do No lordeste. Os argumentos a favor desta seqitenciagao tém como referéncia Piaget, o desenvolvimento cognitivo da crianga e o desenvolvimento das nogdes de espaco/tempo. Varios estudos recomendam a ampliagao e o aprofundamento destas nogées a partir dos estudos da escola, da casa, da rua. para entao se ampliar para o estudo do quarteirao, do bairro, da cidade, do estado e assim por diante. * Este esquema tornou-se ‘‘contetido universal’? do ensino de Historia e Geografia nas quatro primeiras séries. B um fato anterior, inclusive a década de 70, e que persiste como um contetido Ppretensamente objetivo, neutro, insubstituivel. A partir deste ‘tesquema’’ ja dado, preconcebido e irredutivel, surgem as confirmagées de contetidos e interpretagGes. Debrugando-nos sobre os esquemas explicitos nos programas de Minas Gerais e Sao Paulo, podemos perceber as nuances de interpretagGes e concepgGes. Estas nuances expressam a diferenciacaéo das experiéncias dos dois processos. Um dos aspectos“que.chama a nossa aten¢ao Nesta -proposta de contetido é a fra; ntacdo.-Ha uma fragmentacao de contetidos-de uma série para~Outra, no caso de MinaS Gerais, e das duas primeiras séries para as duas uiltimas, no caso de Sao Paulo, Ao definir os temas € 0s subtemas para uma mesma série, os autores acabam Por determinar compartimentos segmentados. A escola, a familia, 0 bairro, 0 municipio sao estudados em seus varios aspectos social/geografico ou fisico/cultural/econémico/humano como se nao fossem espacos e dimens6es constitutivas da mesma realidade. PressupGe-se o ensino partindo dos espagos mais proximos da ctianga, ‘‘a comunidade’’, e ampliando-se no decorrer das séries para 31. Sobre esta questéo vide: Emesta Zamboni, Sociedade ¢ trabalho, Revista Brasileira de Historia, n® 11, pp. 117-126. Da mesma autora: Desenvolvimento das nopées de espaco ¢ tempo na crianga, Cadernos Cedes, Sao Paulo, n® 10, pp. 63-71. 65 Os outros espagos mais afastados: bairro, municipio, regido, estado. Estes espacos aparecem como unidades estanques, pois nao se leva em conta a nogdo de totalidade. Da mesma forma, o estudo em paralelo dos varios aspectos da experiéncia humana social/ politico/econémico dificulta a construgao daquele conceito. E também nao consideram como a TV, o radio, os jomnais e a imprensa em geral transformam a nossa relacao espaco-temporal com os acontecimentos através de deslocamento constante de imagens e significados tornando o distante préximo. A fragmentacao do saber encontra paralelo na fragmentaco do processo produtivo capitalista. No mundo da técnica; dos mieios de comtinicacao de massa, as informagées fragmentadas tomam a forma de verdade e o receptor passivo nao reflete, apenas consome as informagées a-histéricas e no as assimila. Luckesi, analisando o curriculo como transmissor de ideologia, alerta: a tomada do comunicado e do meio de comunicagao de forma reificada e fetichizada, como se fossem a propria realidade, é que conduz a distorgéo do conhecimento da consciéncia e permite a manipulacao do educando, no caso da escola, através do curriculo, ena sociedade em geral através dos meios de comunicagao abertos. = Além da manipulacdo, das distorgdes, a fragmentagdo do saber - traz consigo algumas implicagGes graves para a formagao do educando. A primeira é a dificuldade de pensar as relacdes concretas das varias dimensdes_constitutivas do Social. Anteriormente, colocamos a Ppreocupacao de Bruner com a necessidade de 0 educando ‘‘estabelecer relagGes’’, ‘“ver como as coisas se relacionam’’, Nessa perspectiva do Programa o educando obtém informacées dos varios niveis, espacos, agentes e elementos que agem na realidade, mas de uma forma isolada. A segunda implicagao € que, nao estabelecendo telagGes entre os varios hiveis, o educando, assim como o receptor dos" méids de comunicacao de massa, nfo chega a refletir criticamente obre as experiéncias historicas, uma vez que as informagées isoladas apar cem como a-historicas ¢ a-temporais.’ Os homens ‘no surgem como construtores da histdéria e nao se considera integralmente o seu modo—~ de vida mas apenas as dimensdes consideradas chave Para a explicagdo dos “‘aspectos”’ delimitados. O programa de Minas Gerais privilegia os aspectos fisicos do ambiente ou meio geogréfico como determinantes dos aspectos 32. C.C. Luckesi, Curriculo e ideologia: uma contribuicao a reflexio sobre a resisténcia a manutengao ideolégica, Rio Grande do Sul, 1985 (Conferéncia). 66 va m dy val os Jo de obs “€s relagdes de poder e dominacao existentes no Social: Por socioculturais, humanos ¢ histéricos. Espago geogrdfico aqui nao é concebido como espago socialmente construido pelos homens, A concepgao determinista de Geografia subordina 0 estudo dos outros niveis ao conhecimento do mundo fisico e da natureza. O estudo da vida dos homens e€ de questdes sociais e politicas, quando aparece, é de forma naturalizada. A ago do homem como sujeito da construgao do espago nao é considerada. Os homens — aspectos humanos — sfo tratados ora em termos de “‘populacao”’, ‘*elemento’’ da paisagem cuja variagdo traz conseqiiéncias para o ambiente, ora como membros da “‘comunidade’’. Tanto_no_programa.de-Sao-Paulo como de Minas Gerais, ha uma naturalizacao tanto das relagSes sociais que so tratadas como Félacoes Fumanas, quanto dos problemas sociais e das transformagdes que sio mostradas como independentes da ago € vontade humana. O coniceito de comunidade é fartamente usado com uma dupla fungdo: negar a existéncia da divisdo social, da luta de classes e, mais que is ir tro lado, a‘‘vida em comunidade”’, na escola, na familia, nd Bairro, no municipio, difunde harmonia, cortesia, reciprocidade, respeito e cooperaco entre os homens, numa clara atitude de mascaramento das formas de convivéncia na sociedade. A vida em comunidade, conforme a propugnam os programas de ensino, implica a realizagao de ‘‘atividades humanas para a satisfagdo das necessidades de subsisténcia do homem’*. O conceito de trabalho € também “‘naturalizado’’, na medida em que é reduzido a “‘satisfagado das necessidades vitais’’, por isso a sua extrema valorizacio e “‘idealizagao’’. As diferentes formas de trabalho aparecem apenas como diferentes profissdes. Trata-se de uma construcao imagindria do significado do trabalho na nossa sociedade. Evoquemos a andlise de Marx para uma apreciacao critica desses programas. Segundo ele, a desvalorizagao do mundo humano aumenta na razio direta do aumento de valor do mundo das coisas. O trabalho no cria apenas bens; ele também produz a si mesmo e o trabalhador como uma mercadoria e, deveras, na mesma proporgao em que produz bens. Esse fato simplesmente subentende que 0 objeto produzido pelo trabalho, 0 seu produto, agora se Ihe opde como um ser alienado, como uma forga independente do produtor. O produto do trabalho é trabalho incorporado em um objeto e 67 convertido em coisa fisica; esse produto é uma objetificagdo do trabalho. ® O trabalho no sistema de produgo capitalista é um trabalho social, produtor de mercadorias, coisas e por isso as relagdes se dao entre coisas, objetos. Os programas de ensino,-ao_veicularem_uma visao idealizada do trabalho, das profissdes, ocultam a ali Zo do processo dé trabalho. Longe de ser uma atividade harmoniosa e prazerosa, © ‘trabalho rio ‘sistema de producdo capitalista aparece como algo estranho ao trabalhador e que domina, que provoca sofrimento, nao conseguindo na maioria das vezes satisfazer as suas necessidades, e sima outras necessidades, de outras pessoas. Ha, portanto, uma tentativa deliberada de mascarar as contradig6es existentes no mundo do trabalho;~ a exemplo da prépria Constituigao em vigor durante a ditadura. De acordo com ela, os principios basicos do desenvolvimento nacional so: a valorizacao do trabalho como condigéo da dignidade humana e a harmonia e solidariedade entre as categorias sociais. Essa tentativa aparece claramente também quando se analisa © espago reservado aos aspectos sociais e histéricos. Subordinados pelas determinagées “‘objetivas’’, os aspectos histéricos resumem-se a subitens nos programas, quando entdo propdem o estudo da origem e da evolugao do municipio e do estado, ressaltando os “‘vultos que contribuiram para o progresso e evolucdo dos mesmos’’. Segundo Chaui, a ideologia, ao tentar impedir a percepcao da historicidade, como complexo e tenso fazer, costuma considerar como a esséncia da historia as nogSes de progresso e desenvolvimento, porque esta nocao (Progresso) tem em sua base o pressuposto de um desdobramento temporal de algo que ja existira desde 0 inicio como germe, ou larva, de tal modo que a histéria nao é transformagao e criagdo, mas explicitagdo de algo idéntico que vai apenas crescendo com o correr do tempo (...). A nogio de desenvolvimento Pressupoe-se um ponto fixo, idéntico e perfeito, que é 0 ponto terminal de alguma realidade e ao qual ela deverd chegar normativamente. * E, normativamente, 0 municipio, 0 estado, o bairro, a comunidade tém um destino linear, evolutivo, de acordo com a ldgica dos vultos e herdis que contribuiram para o progresso. Esta concepeao de historia, baseada nos principios das “leis cientificas e racionais”? que regem a 33. Karl Marx, Manuscritos econémicos ¢ filoséfices: trabalho alienado, in Erich Fromm, Conceito marxista do homem, Rio de Janeiro, Zahat, 1979, pp. 90-91 34. M. Chaui, Cultura e democracia, Sao Paulo, Modema, 1984, p. 29. 68 sociedade, exclui a acdo histérica das diferentes classes que nela atuam, as experiéncias e os projetos diferenciados, tornando sujeitos histéricos aqueles que invariavel e “‘naturalmente’’ conduzem os destinos da nagdo e da comunidade. Ao mesmo tempo, Jegitimam os condutores do momento e realizam um simulacro da participagéo de todos pela ldgica da identidade. O culto aos sujeitos historicos e a glorificagao de suas agdes constituem parte relevante do conteudo de histéria nos programas de ensino. No caso de Minas Gerais, a énfase as datas civicas, locais e nacionais € 0 culto aos simbolos, as instituigdes, a Patria e a Nacdo perpassam o contetido das quatro séries. Muitas escolas, nesse periodo, exigiam um caderno especial de datas civicas, onde os alunos prestavam sua homenagem aos herdis. Da mesma forma, as Escolas Normais exigiam trabalhos de pesquisa e confecgao de materiais sobre esse campo de atividades como requisito para aquisicao do titulo de professora primaria. No caso de Séo Paulo, havia uma énfase na valorizacao do Patrim6nio Histérico do Estado, das tradicdes e dos homens ilustres paulistas retomando tradigdes como a da historiografia das bandeiras. A inclusao destes contetidos nos programas da década de 70 nao constitui novidade na escola brasileira. Desde 0 século XIX, o ensino de Historia configura espago privilegiado para a transmissao de noges tais como patria, nagao, igualdade, liberdade, bem como, para 9 culto dos herdis nacionais. * O Estado, sem divida, utiliza-se dos curriculos para uniformizar o passado, excluindo da meméria oficial certa imagem do municipio, do Estado, da comunidade e da nacdo. Através das atividades escolares buscam a identificagao, a legitimagao e a homogeneizacao de uma determinada imagem, que nada mais é que a imagem que interessa 4 classe dominante_e suas estratégias dsicas de hegemonia. A escola e 0 ensino de Histdria, através destes contetdos e dos objetivos definidos pelo Estado, tentam garantir a legitimacao e o controle da histéria pelos setores dominantes. Entretanto, Williams, analisando 0 papel da ideologia, diz que o processo hegeménico é muito mais amplo e que 0 peso de instituigdes como familia, escola, comunicag6es é muito varidvel. Segundo o autor, 35. A propésito vide: Thomas E. Skidmore, Preto no branco: raga e nacionalidade no pensamento brasileiro, Rio de Janeiro, Paz e ‘Terra, 1976, José Maria O. Silva, Manoel Bonfim ¢ a sociedade do futuro, Educacdo e Sociedade, S4o Paulo, n° 27, 1987, pp. 93-112, e ainda, Salvar a América — educagao e histéria: nuances do radicalismo republicano em Manoel Bonfim, Revista Brasileira de Histdria, Sao Paulo, v. 9, n® 19, fev. 1990, pp. 115-134; Circe M.F. Bittencourt, Patria, civilizagéo e trabalho — o ensino de histéria nas escolas paulistas (1917-1939), USP, 1988 (Tese), 69 por serem processos especificos, com finalidades particulares varidveis, e com relagdes varidveis mas sempre efetivas com o que deve, de qualquer modo, ser feito a curto prazo, a conseqiiéncia pratica é, com freqiiéncia, confusio e conflito entre © que € considerado como propésitos e valores diferentes. * A “‘‘histéria_oficial’”” consegue excluir, silenciar, . ocultar_os, outros projetos e agGes, mas nao consegue ‘elimina coletiva. As instituigdes e o proprio ensino de Histéria nao apenas Tatificam, confirmam e impdem a memoria e os valores dominantes. E preciso considerar os limites deste discurso historiografico homogeneizador, do controle social exercido pelo Estado e dos seus instrumentos, no caso, os programas de ensino. E preciso considerar também as tensdes internas vividas pelas escolas, e o fato de que a aprendizagem e a formagdo da consciéncia histérica nao se dao apenas nestas instituigdes, mas no conjunto do social. A veiculagéo destes valores e concepcées, nestes programas, revelam, entretanto, um contexto histérico em que o discurso institucional encontra ressonancia, ou seja, € ‘‘aceito”’ pelos sujeitos histéricos, no caso, os especialistas, detentores do saber e do poder de dizer 0 que deveria ou no ser transmitido na escola fundamental. Além disso, precisamos ressaltar que 0 controle e a imposi¢ao de ‘contetidos e metodologias encontra campo fértil nas séries iniciais, por diversas razées. Em primeiro lugar, a formagdo do professor.” habilitado para o ensino de 1? a 4? série da-se de uma forma precaria, — Nos cursos profissionalizantes em nivel de 2° grau. Este profissional, ~ ao assumir as atividades em sala de aula, ministra 0 ensino de todas as areas e disciplinas, entre elas Historia e Geografia. Assume, assim, acondigdo de polivalente, o que torna seu desempenho bastante vulnerdvel e superficial, em todos os setores. Nesta condigdo, ha uma tendéncia ~ em aceitar ministrar, sem maiores questionamentos, os contetidos veiculados pelos programas e livros didaticos como o saber correto, pronto e indiscutivel. Em segundo lugar, a fragmentacdo do conhecimento ¢--a- organizacao curricular tornam as-varias-disciplinas Estudos Sociais, Ciéncias, Matematica etc, compartimentos estanques e isolados. Alunos € professores nao conseguem abordar o conhecimento da realidade de ‘uma forma inter-relacionada, acabando 0 ensino por se tornar meramente. informativo, superficial, reprodutivista e reducionista. \ — 36-Raymond Williams, Marxismo ¢ literatura, Rio de Janeiro, Zahar, 1979, p. 121. 70 OV R Em terceiro lugar, como decorréncia dessa fragmentacéo dos objetivos da politica educacional, na década de 70 houve, sem di vida, uma _valorizacdo da fo ‘40 especifica em detrimento da formacio geral. Em nivel de 1* a 4* série, isto redundow numa fragmentacdo dos contetidos ¢ no privilegiar da alfabetizagao no sentido restrito, apenas como leitura e escrita de silabas, letras, palavras e textos sem uma reflexdo sobre o sentido e o significado dos mesmos. A ‘‘matematica moderna”: contar, realizar as quatro operacdes e memorizar a tabuada descolados da vivéncia de alunos e professores. Histéria e Geografia (Estudos Sociais) tornaram-se apéndices, lembradas pelos professores nos periodos proximos as provas oficiais e nas comemorag6es civicas. Nestas ocasiées, atendendo a burocracia das escolas e das esferas superiores, havia ent&o 0 culto aos herdis e aos seus feitos marcantes, havia a imposigao de valores e concepgdes explicitos nos programas de ensino, conforme analisamos, e nos livros didaticos. Tudo isso expressa os limites do ensino de Historia nas séries iniciais. As mudangas operadas pelos novos programas curriculares, pelas sugestées de atividades, pelos livros diddticos elaborados em fungaéo dos programas contribuiram para a formagao, nos alunos, de algumas atitudes diante de Historia e Geografia. A primeira delas, bastante séria, € a concepgao de que Historia e Geografia sao disciplinas dispensaveis no curriculo, que nao serviam para o vestibular ou para a vida deles. Os alunos chegavam a 5® série numa posi¢ao de desprezo e de desinteresse total pelos conhecimentos Histérico e Geografico. Ou, em alguns casos, hé um interesse pelo ‘‘exdtico’’ na Historia: terras e povos distantes, aventuras e antepassados. A segunda é uma posi¢ao auto-excludente da Historia. Os alunos interiorizaram a idéia de que nao sao sujeitos histéricos. Inimeras vezes ouvi dos meus alunos que nds nao fazemos parte da Historia, nao somos importantes pata o fazer histérico. A Historia, para os alunos da S* série (em sua maioria), estuda apenas o passado protagonizado por D. Pedro I, Tiradentes, os Bandeirantes, Princesa Isabel etc. Muitos professores encontraram, e encontram ainda, resisténcias a uma nova forma de se trabalhar Historia, decorrentes desta postura de mero expectador introjetada e assumida durante os primeiros anos de escolaridade pelos alunos. Além disso, a forma de trabalhar — mecanicista, repetitiva, fragmentada e simplificadora — acabou por menosprezar o desenvolvimento de nogées fundamentais para a reflexdo histérica: nogdes 71 de espago, tempo, relagdes sociais, trabalho e muitas outras nao foram priorizadas. Os alunos de S* série tém demonstrado enormes dificul- dades ao lidar com uma visdo articulada do espago; nao conseguem. se expressar frente aos problemas colocados pela sua realidade social” e, por ultimo, ndo percebem a totalidade social como algo que se transforma, se movimenta cotidianamente. Outra decorréncia da nova forma curricular é a atitude de passividade frente a Histéria, como analisamos anteriormente, e frente ~ ao conhecimento. O aluno expectador da Histdria € por excelénciaum = expectador_em sal: aula. A pratica de receber o contetido pronto, a nao exigéncia da reflex4o, da pesquisa produziu alunos passivos frente ao saber, copiadores de anotacdes e questiondrios que eram. devolvidos na prova tal e qual recebidos em sala de aula. Histéria € Geografia passam a ser encaradas desde cedo como disciplinas que nao exigem reflexio e elaboracéo da parte dos alunos. O préprio nome dado 4 disciplina, Integraco Social, indica como era reduzido e simplificado 0 novo modelo de ensino e de escola que se fazia naquele periodo. Estes resultados dao indicagdes de como se processava a continuidade do ensino de Histéria nas quatro ultimas séries do 1° grau. As abordagens indicadas pelos programas de Sao Paulo e Minas Gerais contém especificidades no que diz respeito 4 forma € ao con- tetido, embora ambos protegidos sob o manto dos Estudos Sociais ¢ de toda a orientaco legal autoritaria. A seguir, relacionamos os con- teudos selecionados para dar continuidade a implementacao do programa. Os temas escolhidos pelos autores do programa de ensino do estado de Sdo Paulo tém como parametro principal a diluigao de contetidos especificos do campo da Histéria e da Geografia em torno dos Estudos Sociais. Esta disciplina foi implantada em todas as areas do 12 grau até 1977, quando entao, através da Resolugéo SE 139/77, se reintroduziu Historia e Geografia nas 7* e 8% séries, porém man- tendo-se Estudos Sociais nas 5* e 6% até 1981, quando se iniciaram os estudos visando a reformulagao do curriculo de 1° grau e a reimplan- tagao de Histéria e Geografia também nessas ultimas séries. Os contetidos de Histéria e Geografia para a 5* série privile- giam dois problemas principais. De um lado, ‘tos fundamentos da cultura brasileira’’ e, de outro, o processo de ‘‘ocupagao do espago brasileiro’. Para caracterizar as bases ou fundamentos da nossa cul- tura, os autores preconizam 0 estudo do ‘‘estagio’’ cultural dos varios 72 oo iigseen ie Biieili il auee ienmg lt neeicentanniennanenacaoaei Rx Ts Asura oe Go mOO -n0e0 ue ideo Minas Gerais Série Estudos Sociais Série Historia Fundamentos da Cultura Bra- Bases da Formagdo Historica sileira. St | do Brasil. O Processo de Ocupagdo do 2 | 1. Introdugdo: 0 homem, o Espaco Brasileiro. Grau meio fisico-geografico ea Ste @ | 1. OBrasil: pais de dimensdes historia. s continentais. 2. A época das grandes nave- Grau | 2. O enquadramento do Bra- acces. sil no sistema colonial. 3. Brasil, Descobrimento e 3. A cana e a sociedade agu- Fundamentos da Coloniza- careira. gio. 4. A ocupacao do interior. 4. Sistema Politico e Admi- 5. A colonizacao estrangeira nistrativo da Colénia. no Sul. 5. Pirataria e invasdes estran- 6. As transformagées ocorri- geiras, das no Brasil com a insta- 6. A expansio territorial. lago industrial. 7. As atividades econdmicas 7. A ocupacdo desigual do da Colénia. territorio brasileiro e as ten- 8. Aspectos da Cultura Colo- tativas de superacio dos nial. problemas. 9. O nativismo. Unidade Nacional: os elos da sua integragao. © | Organizagdo e Desenvolvi- 1. Fundamentos da Unidade: 2 | mento.do Estado Brasileiro. Grau } 1. Origens.do Estado Ame- Constituigdo e Lingua 2. Configuragao de uma Nagao. 2.1. Base Comum: manifesta- ges diversas: folclore. Base Territorial. Nascimento da autonomia politica: Patria, A longa caminhada para a industrializagao. Os elos da Integracao Nacional, 3. O Brasil e 0 equilibrio mundial. 22 2a, 2.4. 23 ricano. Independéncia do Brasil © 2° Reinado. . Fundamentos da vida eco- némico-social do Império. . Politica externa do Impé- tio Brasileiro. . As origens da Republica Federativa. A Repiiblica Velha. A Repiiblica Nova. - Omovimento revoluciona- tio de 1930. Etapas do Governo Vargas. © quadro politico de 1945-1964, A Revolugao de 1964: qua- dro politico, econémico e social. Caracterizagao econémico- AEN aw Fox 8.2. 83. 8.4. 2 social da Republica. 73 Série Sao Paulo Estudos Sociais A sociedade atual: andlise € proceso de formagdo. Configuragdo de um mundo agrario. 1. Caracterizagdo geral do mundo quanto a: localiza- 40, economia e populacao. 2. Sociedades agropastoris no mundo atual. A agricultura como 12 ele- mento de fixaco. . A agricultura como ele- mento constante da vida humana. » a af Grau Minas Gerais Historia Estudos de Histéria da Civi- lizagdo. O homem e a terra. As civilizacées antigas. ‘A Europa Medieval. A transigdo para a Idade Moderna. A difusao da Cultura Euro- péia. ‘A Era das Revolugées. O mundo contemporaneo: as grandes guerras mun- diais e as repercussdes do conflito. woeeNe a Configuragdo de um mundo industrial: 0 equilibrio mun- dial. 1. Configurago dos paises industriais do globo. © process histérico da implantagao e desenvolvi- mento de uma economia industrial. . Transigo de uma econo- mia feudal para uma economia capitalista. Acao colonialista da Europana América, Africa e Asia. A Revolugao Industrial. Caracterizagao do mundo quanto a: — nivel de desenvolvimen- to. — sistemas econdmico-po- Iiticos. O equilibrio mundial e as organizacoes_politicas: ONU, MCE, OTAN, Pacto de Varsévia, COMECON. nv 2. +m 2.3. 24 25, Grau Estudos de Histéria Contem- pordnea. f Osignificado doséculo XX. 2. A ordem politico-econd- mica do mundo atual. . Formas regimes de gover- no. Doutrinas econémicas. Sistemas de organizacao do trabalho. Os organismos internacio- nais. Sociedade tecnoldgica. Os grandes problemas do mundo contemporaneo. O esforgo para o desen- volvimento. As dreas de atrito intema- cional. A rivalidade das grandes poténcias. A paz internacional — A ONU. 5. A cultura contemporanea — O progresso das cién- cias. —O progresso das comu- nicagdes e a integragdo cultural. 2s Ze 23. 2.4. ay 4.1. 4.2. 4: & 44. 74 grupos étnicos, suas agGes, seus costumes e valores, enfim sua Participagao no processo de coloniza¢io e desenvolvimento do Brasil. 2” A concepgao de cultura aqui se confunde com a concep¢aio racionalista de civilizagéo. Segundo Williams, esta nogao ““expressava dois sentidos que estavam historicamente unidos: um estado realizado, que se podia contrastar com a ‘barbarie’, mas também agora um estado realizado de desenvolvimento, que implicava processo histérico e progresso”’. *O Guia exemplifica bemo problema detectado pelo autor. Nessa perspectiva, 0 processo de colonizagdo € estudado de acordo com as atividades, os objetivos eSpecificos e os problemas propostos, abordando a sociedade acucareira a partir do confronto entre dois grupos: portugueses, por um lado, e indigenas e africanos, por outro. Neste confronto, segundo o documento, prevalece a “‘acao désintegradora e exploradora do mais forte’’ sobre os grupos reconhecidos ai como mais fracos, aculturados: os indigenas. A “mentalidade portuguesa”’, voltada para as ‘‘preocupacdes com o lucro”’ e com uma “‘tendéncia em evitar o trabalho bragal’’, prevaleceu no confronto com a cultura dos negros africanos. Ha, sem diivida, uma identificagdo do “‘lucro e das atividades nao bragais com 0 civilizado, em oposic¢do ao atraso dos negros africanos, que, por sua vez, nao valorizavam o lucro e realizavam o trabalho bragal’’. ° Os portugueses representavam o estado realizado que impés a sua mentalidade, formando as bases da cultura, do progresso do Brasil, em oposi¢ao aos costumes dos indigenas e até mesmo dos negros, vencidos no processo de ‘‘aculturacao”’. Admite-se, porém, a presenga de tragos culturais do negro na vida do brasileiro de hoje. O vencido aqui é identificado como ser culturamente inferior: Dai, a razio e a justificativa da predominancia portuguesa. A cultura brasileira desenvolveu-se ocupando de forma desi: igual 0 territério brasileiro, sendo que o ‘‘meio fisico colaborou ou limitou”’ a manutencao de atividades econdémicas e de distribuigdo populacional. O _processo histérica de civilizagao.do.Brasil-foi determinado por dois fatores. De um lado, por um grupo cultural mais avancado, que se impos aos demais grupos étnicos ¢,.por outro lado, pelas condigées Propiciadas pelo meio fisico, ° . Ah oth 37. Sao Paulo, Guia Curricular, ap. cit. p. 87. 38. Raymond Williams, op. cit., p. 19. 39. S40 Paulo, op. cit., pp. 90-92. 40. Idem, ibidem, pp. 88-93. ae Este binémio teve como consegiiéncia um desenvolvimento econémico que progrediu a partir de ciclos e uma ocupagao desigual do territdrio brasileiro. Caminhamos do ciclo do agticar para a pecuaria, a mineracdo, 0 café, a borracha e, finalmente, a atividade industrial. Estes grandes ciclos com ““ciclos menores”” ou des econémicas acessérias . A industrializagao aparece como destino, decorréncia natural do desenvolvimento agrario, fenémeno que opera transformagdes e nasce ligado 4 presenca dos europeus “‘civilizados’’ no Brasil, que vém completar o processo civilizador em. desenvolvimento. Isto de tra uma concepgao de Histéria entendida como evolugdo apoiada no determinismo econémico. A partir da 6* série, a preocupacdo volta-se para a problematica da ‘‘unidade’’ da nago civilizada, abordando prioritariamente o estudo do que’se consideram os “‘elos’’ fundamentais para a integragao da nagao. *' Segundo o diciondrio de moral e civismo editado pelo MEC em 1967, integragdo nacional significa “‘toda ago conducente a atrair as populagdes marginalizadas para o circuito social. Principalmente em paises nao desenvolvidos, como o Brasil, existem grandes contingentes de populagaéo que se encontram 4 margem do processo de desen- volvimento, sem condigGes de superar sua marginalizacao. Integrar significa criar mecanismos concretos, que permitam a todos se tornarem agentes conscientes e responsdveis do desenvolvimento, beneficiando-se devidamente de suas vantagens’’. ° Nesse sentido, é importante lembrar o lema do Projeto Rondon nos anos 70: ‘‘Integrar para nao entregar’’. A relacdo direta entre esta concepcao de.integragdo e as nocdes de civilizagéo e cultura que embasam o programa para a 5? série nao € mera coincidéncia e, sim, mera coeréncia. ‘Trata-se de abordar os mecanismos, os conceitos através dos quais se busca unificar a linguagem, a imagem e a sociedade como um todo. A racionalidade cientifica burguesa é o parametro que norteia a selecdo dos contetidos necessdrios 4 ldgica da dominagao. O desenvolvimento ¢ 0 fim e ao governo, as trés Forgas Armadas, compete o papel de unificar, integrar e cuidar da seguranga nacional, tendo em vista a realizagio plena do desen- volvimento. *° Os conceitos de constituicdo, nago, patria, patriotismo, povo, contetidos inerentes 4 Educagéo Moral e Civica, substituem o estudo 41. Idem, ibidem, pp. 100-101. 42. Brasil (Ministério da Educagao e Cultura), Pequena Enciclopédia de Moral e Civismo, Brasilia, 1967, pp. 282-283. 43. Sao Paulo, op. cit., pp. 106-107. 76 nie ati ite RBBR? 2, de Histéria e Geografia. Um tema complexo como a Independéncia Brasileira ¢ reduzido e simplificado a constituicao da Patria brasileira. As diversidades brasileiras so entendidas como diferen étni foleléricas, regionais, qu mm uma unidade destituida de ¢ tensdes. As contradi¢Ges sociais e econémicas, ocultadas, so reduzidas a uma questo de integracao. Os contingentes que ainda nao participam do desenvolvimento por problemas de “‘diferengas culturais’’ so, a partir da acao do Estado unificador, integrados ao proceso civilizador e passam a usufruir das vantagens deste desenvolvimento. E uma questao dos processos de aculturag4o verificados no Brasil. “ A diversidade e a pluralidade aqui sao perfeitamente passiveis de homogeneizacao € unificagdo. Os alunos devem identificar este processo € ndo refletir sobre ele, conforme indicam os objetivos especificos a serem conseguidos: — Identificar que o Brasil, apesar de sua diversidade s6cio-econémica, forma uma unidade; — Identificar os valores, costumes do povo brasileiro; — Identificar que ha uma fase comum na configuragao da nacido brasileira com manifestacdes diferentes, Esta unificagéo é possivel de se concretizar? Se nao identificarmos 0 conceito de cultura com o conceito de civilizacao burguesa; se entendermos cultura como ptocesso social no qual os homens criam modos de viver, de se relacionar e de se expressar diferentes e determinados, como falarmos na unidade da nacao e do povo? Segundo Canclini, a dominacao para realizar sua hegemonia tem procurado quebrar a estrutura e a coesdo dos grupos, destruindo 0 significado que os objetos possuem para os mesmos, Para o autor, © capitalismo nao apenas desestrutura ¢ isola, mas também reunifica, recompée os pedacos desintegrados mum novo sistema: a organizagio transnacional da cultura (...). E assim, ao desenvolver e sistematizar a nossa ignorancia do diferente, a padronizagdo mercantil nos treina para viver em regimes totalitdrios, no seu sentido mais literal de oposigéo aos regimes democraticos, ao suprimir o plural e obrigar que tudo fique submerso numa totalidade uniformizada. 44. Idem, ibidem, pp. 101-103. 45. Idem, ibidem, p. 100. 46, Néstor Garcia Canclini, As culuras populares no capitalismo, Sio Paulo, Brasiliense, 1984, Pp. 75, 87, 89. 77 Desse modo, a uniformizag&o e a integracao defendidas naquele documento explicitam concepgGes e argumentos estreitamente vinculados aos principios defendidos pelo idedrio de seguranga nacional. A Constituic¢io de 1967 define, no art. 87, o Conselho de Seguranga Nacional como ‘‘o érgao de mais alto nivel na assessoria direta ao Presidente da Republica’’, competindo a ele (art. 89) estabelecer ‘‘os objetivos nacionais permanentes e as bases para politica nacional’’. Os papéis das Forgas Armadas sao definidos no art. 91 como: ‘‘essenciais a execugdo da politica de seguranga nacional, destinam-se 4 defesa da Patria e a garantia dos poderes constituidos, da lei e da ordem’’.” Assim, a Seguranga Nacional, no Brasil pdés-64, tem como guardia as Forcas Armadas e ndo se resume a manutengao da ordem publica e 4 defesa da Nacdo, mas constitui-se numa doutrina que passa a orientar estrategicamente todo 0 projeto politico e econémico do Estado. Esta douitrina, élaborada pela Escola Superior de Guerra com a colaboracao de érgdos como o IPES e o IBAD, tem como uma de suas estratégias a Psicossocial. Esta voltava-se particularmente para os movimentos sociais e instituigGes educacionais. Baseado nisso, o Ministério da Educac&o e Cultura orienta suas diretrizes educacionais, 0 controle e a persegui¢ao politica no interior dos movimentos de estudantes e professores, nas Universidades e Escolas de 1° e 2° graus. A unidade e a integracéo da nagdo também aparecem no programa diretamente associadas ao desenvolvimento representado pela industrializagéo. Sua ‘‘longa caminhada’’, desde a sociedade acucareira agraria até o presente, é linear e inexoravel. Ao seu progresso, ligam-se diretamente a lavoura de café, So Paulo, as Forgas Armadas, cujo papel é considerado “fundamental para a proclamacao e manutencao da Republica”’, outro fator ligado ao destino da industria. E, finalmente, a industria é atribuido um papel de ‘‘responsabilidade’’ como elo integrador da nagao e da projegao do Brasil no mercado internacional. Assim temos: civilizagao/progresso/Republica/Industria/Unidade Nacional e, por ultimo, Equilibrio Mundial. A ultima parte do programa de ensino de Histéria do Estado de Sao Paulo compreende as duas ultimas séries do primeiro grau. O tera “‘a sociedade atual: andlise e processo de formacao”’ é subdividido em dois: ‘‘configuragéo de um mundo agrario’’ e, em seguida, “*configuragao de um mundo industrial’’. Os contetidos selecionados 41. Brasil, Constiuigdo, op. cit., pp. 44-45. 48. Nesse sentido, vide: raci Galvao Sales, Trabalho, progresso e a sociedade civilizada, Sao Paulo, Hucitec, 1976. 78 o veer ove para o desenvolvimento dos temas envolvem nogGes de Histéria e Geografia Geral. O eixo norteador da Histéria Geral é 0 mesmo da Histéria do © processo historico do desenvolvimento econémico & politico ; mundial, desde os primeiros povos que se fixaram na terra até o mundo industrial em que vivemos hoje. Sao selecionadas algumas civilizagdes do Antigo Oriente, além de Grécia e Roma, para configurar a histdria geral do mundo agrario na Antigitidade, base do desenvolvimento industrial, fendmeno este também considerado “‘universal’’. Ferro, analisando as relagdes entre a histéria geral ea historia local e entre o conhecimento do passado e a inteligibilidade do presente, afirma: essa histéria (geral) justapde os ‘‘fatos’’ titeis a reconstrugao do que ja foi vivido, mas tal dispositivo oculta o ritmo Particular de cada categoria de fenémeno, a sua especificidade. Desse modo, se a andlise do presente se liga ao estudo do mundo industrial, e do ‘‘equilibrio mundial’? e se ha uma concep¢ao de que a industrializacao ¢ filha direta do desenvolvimento da agricultura, priorizaram a “‘reconstru¢ao do mundo agrario para explicar o fenémeno presente. Outro_ponto. priorizado é a nossa heranca greco-romana, especialmente a preocupagéo pela manutencao da ‘unidade”, unica forma de sobrevivéncia sobre as pressdes adversdrias’’. A industrializagao € abordada como o fim ultimo do Pprocesso historico; ¢ as questées mundiais colocadas servem mais para legitimar a afirmacao e menos para analisar 0 advento da industria modema. Pesez, analisando o tratamento dado as revolucgées técnicas na historia da cultura material, considera que (...) 86 resta a certeza de um progresso. Um progresso, contudo, que s6 é evidente globalmente, para a humanidade tomada em seu conjunto. E o peso das sociedades ocidentais nesse conjunto € consideravel. Ele talvez mascare evolugdes diferentes, culturas imoveis e até regressdes. A prdpria nocdo de progresso ndo é universal. Algumas sociedades a ignorarami ou a’ fecusarani.” Fechando-se a toda e qualquer influéncia externa, 0 Japao cultivou, com isso, durante séculos, o imobilismo. O caso da China é ainda mais perturbador: depois de ter inventado tudo desde 0 inicio da fossa era, em seguida viveu 4 sombra desses conhecimentos, sem inovar, até ontem. 49. Marc Ferro, op. cit., p. 110. 50. Jean Marie Pesez, Historia da cultura material, in Jacques Le Goff (org,), A histéria nova, Sao Paulo, Martins Fontes, 1990, pp. 201-202. 79 A citacdo é longa, mas bastante precisa e oportuna. Este programa de ensino veicula uma série de temas, problemas ¢ acontecimentos histéricos a serem estudados pelas criangas, conforme temos analisado, cheio de certezas, ‘‘prontos’’, porém guiados por — uma certeza maior — a do progresso. A historia da familia, do bairra,__ ,do Brasil nao. possui outres- ritmos,-nem_particularidades, nem mesmo -curiosidades que possam ser consideradas na analise do passado e do presente? A Histéria Geral é a histéria da industrializagao, do mundo ocidental moderno que constréi sua imagem e a universaliza como se fosse um fato universal? E a historiografia produzida na época? Em que fontes documentais e bibliograficas esta Historia se fundamenta? Se compararmos © contetido deste programa com o contetido de Histéria do programa de Minas Gerais, percebemos que, embora por caminhos um pouco diferentes, a légica do progresso se mantém. O mascaramento de ritmos e culturas divergentes dos ocidentais também persiste. Os temas escolhidos para a S* ¢ & séries referem-se a Historia do Brasil e sdo subdivididos em dois: ‘Bases da Formagao da Historia do Brasil e Organizacio e Desenvolvimento do Estado Brasileiro’’. A Historia do Brasil inicia-se com a chegada dos portugueses e caminha através da sucessio dos fatos/datas/marcos até o ultimo marco politico importante — a “‘Revolucdo de 1964”. Vf Neste programa, nfo ha uma dilui¢ao da Histéria do Brasil em nogdes de moral e civica como no programa de Sao Paulo. Aqui ha um conjunto coerente de fatos que constitui a meméria oficial da nacio brasileira. Nao ha na selegio de acontecimentos escolhidos algum que nao tenha sido divulgado, tornado um marco histérico petrificado na sociedade. Segundo Vesentini, esta histéria como um conjunto amplo é dotado de um passado. Para que este assuma o ar de uma vida certos temas fornecem seus grandes momentos, suas viradas decisivas. Entretanto surgem ‘no como temas, mas como fatos objetivos. Dessa forma podem. reproduzir-se e sua articulacdo continua garantindo a percepcao da vida da nagao a despeito de reinterpretagdes. * Assim, os fatos selecionados pelos autores do programa sao “‘objetivos”’, “‘viradas decisivas”’, parte da vida da nagdo e por isto chamam a si varias interpretages, mas se mantém intocaveis nos curriculos dos cursos superiores de Historia, na maioria dos livros de Historia destinados ao grande publico leitor, nas comemoragGes oficiais 51. Carlos A. Vesentini, Escola e livro didético, in Marcos A. Silva (org.), Repensando a historia, Sa0 Paulo, Marco Zero, 1984, p. 76. 80 iii e nos programas de ensino da escola fundamental. O peso do fato torna-se decisivo e nele passam a se localizar a-histéria e a politica, os acontecimentos e as informagGes sobre as quais se debrugaram as interpretagdes. Portanto, torna-se marco periodizador a partir do qual se monta a cronologia histdrica, dividindo o tempo num “‘antes”’ e num “‘depois”’ de. A temporalidade dos fatos nao é diferencial, ¢ linear~ Independéficia vern antes da Abolicao, que necessariamente é estudada antes da Proclama¢ao da Republica e assim sucessivamente. Segundo Pierre Vilar, foi a histéria tradicional que ‘‘construiu’’ o tempo (...). Acontecimentos, reinos, eras: é uma construcdo ideolégica, mas nao “‘homogénea"’. Além do que, quando a preocupagio cronolégica se fez critica, quantos mitos demoliu, quantos textos dessacralizou? No caso da Historia do Brasil, estas ‘‘construgdes ideoldgicas”’ servem para articular 0 conjunto, periodizando, servindo de marcos através dos quais os outros temas passam a gravitar. Nesse programa, em torno do marco Independéncia, temos 0 governo de D. Jodo VI, 0 movimento pela Independéncia e a conceituacéo de Nac¢4o, Povo, Estado. O periodo republicano é marcado, primeiro temos a Republica Velha, e Republica Nova a partir de 1930. Para Vesentini, estas construgdes antecedem o trabalho do historiador. Elas se dao no social e decidem poderosamente sobre a interpretagao posterior. Para o autor, ao lado do fato, o documento surge como um outro ponto sacrossanto para o historiador, uma época expressa-se através dele. Para a historiografia tradicional positivista, o documento é o espelho fiel da realidade, local de onde 0 historiador, através de sua metddica, extrai objetivamente os fatos. Logo, em nome da objetividade € da neutralidade cientifica, o histori a corroborando com as ‘‘construgGes ideoldgicas”” vencedoras, com a memoria oficial instituida. * O exemplo disso é como o programa de ensino prioriza os estudos dos fatos politicos institucionais que formam o conjunto desta meméria, excluindo temas e fenémenos, acgGes sociais- de grande significado, reduzindo temas e periodos complexos da historia a meros fatos, como, por exemplo, ‘‘Revolucao de 64°’. Os chamados ““aspectos econdémicos € sociais vém como decorréncia do politico, como meros 52. Pierre Vilar, Histéria marxista, histéria em constnigo, in Jacques Le Goff e Pierre Nora, Historia: novos problemas, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1979, p. 159. 53. Carlos A. Vesentini, A teia do fato, Sao Paulo, USP, 1982 (Tese). 81 apéndices’’. O “‘cultural’’ aparece em atividades suplementares. Nesse sentido, a Histéria do Brasil é simplificada, reduzida a um conjunto politicos institucionais, que expressa a meméria do lo ponto de uma determinada fracéo da sociedade e que, por difundida ¢ como a histéria da na¢do. Reta importante salientar que na bibliografia historiografica sugerida aos professores pelo programa de Minas Gerais, aparecem apenas os classicos estudos de Histéria do Brasil. Sao arroladas obras de Capistrano de Abreu, Oliveira Vianna, Gilberto Freire, Sérgio Buarque, Celso Furtado, Hélio Viana, José Hondério Rodrigues e muitos outros, com. exce¢ao de Caio Prado e de outros marxistas. * No Guia Curricular de Sao Paulo nao aparecem as referéncias bibliograficas nem para a Historia Geral nem para a Histéria do Brasil, demonstrando uma concepgao de conhecimento histérico como se fosse dado, uniforme e nao uma construcao. O contetido de Histéria Geral proposto para as 7® ¢ 8® séries do 1° grau segue o esquema francés, a seqiiéncia linear: Idades Antiga, Média, Moderna e Contemporanea, cujas fungdes politica e ideologica j4 foram analisadas no inicio deste capitulo. Na 8? série, percebemos uma semelhanca com o programa de Sao Paulo no que se refere a énfase dada ao ‘‘progresso industrial e tecnoldgico”’ do século XX e ao equilibrio mundial. Ha, inclusive, uma concentragao de contetidos de Historia Geral na 7* e na 8* série, um detalhamento da questao desenvolvimentista tecnolégica. A tentativa de transmitir uma “‘histéria geral das civilizagdes”’ pode fracassar ou ser bem sucedida no expurgo, pois o pretenso discurso da totalidade deixa civilizagdes inteiras fora do esquema Pproposto. Excluem paises e agdes que seriam do interesse do alunado brasileiro e petrificam a ‘‘difusdo da cultura européia”’, as Tevolugées € a sociedade tecnoldgica do primeiro mundo. A operacao excludente aqui é clara; a histéria universal ou geral é a histéria do mundo ocidental desenvolvido. Segundo Certeau, na cultura ocidental moderna, especialmente na historiografia, a inteligibilidade se instaura numa relacao com 0 outro; se desloca (ou progride) modificando aquilo de que faz seu outro — o selvagem, 0 passado, 0 louco, a crianca, o terceiro mundo. Através destas variantes heter6nomas entre si se desdobra uma problematica 54. Minas Gerais, op. cit., pp. 60, 74, 75. 82 daephieoecapciestiselain articulando um saber-dizer a respeito daquilo que 0 outro cala e garantindo o trabalho interpretativo de uma ciéncia humana. *5 Dessa forma, através dos programas de ensino, dos livros didaticos, uma unica imagem de histéria impée-se ao siléncio da crianga fragile pobre do terceiro mundo. Nao apenas sua voz é silenciada como sua histéria é excluida, 0 seu tempo presente e o seu passado separados; é uma construgdo ‘‘homogénea’’ evolutiva, logo o seu ritmo nao lhe pertence, Mas trata-se de um trabalho interpretativo, portanto uma construg&o e, por isso, 0 conteido dos conhecimentos historicos transmitidos, a escolha deles depende do profissional de Historia, da sua posigao frente ao saber histérico, frente as abordagens e frente ao fazer histdrico. 55. Michel Certeau, A escrita da histéria, Rio de Janeiro, Forense, 1982, p. 15. gS

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