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4 AS EPOCAS DA CULTURA PORTUGUESA. § 1. INTROITO E contestavel que na histéria espiritual de um povo se pos- sam definir épocas ou fases. Elas sio préprias da histéria da civilizagao, porque a acumulagio sucessiva de modificagdes no mercado, na tecnologia e nas instituigdes atinge niveis criticos provoca saltos que abrem novos perfodos com caracterfsticas gerais diferentes dos anteriores. Mas a hist6ria cultural € feita de acontecimentos que nao tém entre si um nexo de causalidade € cuja dialéctica nio compreendemos. Na histéria da arte, por exemplo, a sucessiio das épocas é menos fécil de definir do que na hist6ria da tecnologia. HA quem pretenda que na arte se sucedem os perfodos clissicos e os perfodos barrocos num sis tema pendular e circular, independentemente da tecnologia. Poderiamos também imaginar uma sucessfio pendular de épocas permissivas ¢ de épocas repressivas na politica, nos costumes, no vestudrio, também independente da linha de desenvolvimen- to socioeconémico. Por vezes uma personalidade ou um grupo ‘tém um papel decisivo no langamento de um estilo ou de uma atitude quando se encontram numa posigio estratégica. Isso acontece também com certas instituigdes sociopoliticas, como a corte, ou sociveclesidsticas, como as ordens religiosas. Mas tudo tem de ter um discurso, uma explanagio, uma possibilidade de se dizer. E dai que vem a necessidade de dis ul ACULTURA EM PORTUGAL. tinguir épocas para o histori6grafo, Por isso arriscamos hipste- ses neste terreno aleatério, seguindo varios critérios. Um deles € 0 dos mitos dominantes nas vérias épocas, mitos que motivam ou que justificam os comportamentos, mesmo quando estes, na prética, se afastam daqueles. Outro € 0 do grupo dominante que serve de padro e exem- plo. O grupo dominante economicamente ou hierarguicamente nem sempre é 0 dominante culturalmente. A domindncia resulta do dinanisryo cultural. Outro ainda € 0 do sistema cultural a que se pertence. Per- tencemos hoje (aparentemente) ao sistema cultural europeu-oci- dental, mas houve tempo em que a Espanha era auténoma em relagio & cultura europeia medieval (como o eram também a Iélia ou a Inglaterra), excepto quanto a instituigdo eclesidstica. Finalmente, outro critério, propriamente estrutural, € aquele ue designamos por Palavras € Coisas, servindo-nos do titulo de um eélebre livro francés. Af fizemos uma sondagem numa ques- to essencial e por isso mesmo dificil de abranger na sua pro- fundidade, que é 0 valor para cada época do signo linguistico e, portanto, do proprio discurso. Por esse caminho aproximamo- -nos da telagdio do grupo cultural com a realidade que o envolve € com a do proprio sujeto. Diferentes critérios que, reunidos, ndo formam um sistema, ‘mas sfo tentativas avulsas em vérias direcgdes. Preferimos apro- ximar-nos humildemente dos factos. § 2. OS MITOS Os mitos hist6ricos so uma forma de consciéneia fantasma- g6rica com que um povo define a sua posigao e a sua vontade na hist6ria do mundo. primeiro grande mito colectivo portugués, que alids € um mito de toda a Espanha, foi 0 da Cruzada, fixado eloquente- mente por Camdes no poema nacional dos Portugueses. Portu- gal erao paladino da fé catélica, e a expansio mundial da Fé era 112 AS EPOCAS DA CULTURA PORTUGUESA a sua vocagio propria, a razdo de ser da sua historia. Em relag30, especial com Deus, que 0 favoreceu desde 0 nascimento, Portu- gal realizava um plano divino que culminaria na conversio do ‘mundo inteiro. Este mito nasce na guerra santa que travavam entre si os mouros ¢ 0s cristios de todas as nacionalidades. Santiago, que aparecia nas batalhas sob a aparéncia de um cavaleiro resplan- decente, foi incialmente, para todos os povos espanhdis, 0 ajudador na guerra santa, € j4 no século xu, pelo menos, a campanha dos principes cristios na Peninsula foi equiparada pela Igreja & guerra na Palestina. © mito da Cruzada intensificou-se nos séculos xv © xvt, ‘quando os papas tentaram mobilizar os desavindos principes cristaos para resistir a0 avango turco. Portugal combatia enti com os Mugulmanos em duas frentes: no Norte de Africa ¢ no, Oriente até Malaca. A acco dos Portugueses podia ser ideali- zada num nivel mundial de cruzada, Assim o viu Cam@es, € assim o tinha jd visto Joao de Barros nas Décadas, cujo espirito {jd se encontra na Crdnica do Imperador Clarimundo, livro de cavalarias em que se adapta a um sentido portugues o profetismo religioso da Demanda do Santo Graal. Gil Vicente, referindo- se A guerra com os Mouros, chama a Portugal «alferes da Fé». ‘A-um nivel popular este mito exprimiu-se nas Trovas do sapa- teiro Bandarra, que profetiza a unificagiio do mundo sob um s6 rei e um s6 pastor. A este complexo mitico perteuce 9 «milagre» de Ourique, ‘que pela primeira vez aparece relatado nas paginas da Crénica de 1419, Fernio Lopes, todavia, nao 0 inventou, porque o achou escrito num texto anterior, certamente ja do seu século. F de ‘rer que este «milagre» tenha sido forjado sob o impacte da guerra com Castela e que tenha incizlmente um sentido anticastelhano. Ele significava que Portugal era um_reino de fundagio divina e que a sua independéncia se fundava num direito superior ao direito humano. Mas jé em Cambes se vé que ele se integra na concepgio de Portugal como povo predestinado a0 combate pela FE. 113 ‘A CULTURA EM PORTUGAL © mito dos Lusitanos e de Viriato como precursores de Portugal e 0 de Ulisses como fundador de Lisboa so coniribui- ‘ges do saber humanista que se subordinam a ideia central de missio providencial dos Portugueses. mito da Cruzada nao agiu apenas no plano mental, mas foi fortemente motivador no plano da ace. Sentimo-lo atts da tomada de Ceuta e das campanhas afticanas (concebidas como continuagao da guerra santa), e ainda dos empreendimentos do Infante D.,Henrique, sejam quais forem as respectivas causas reais. E evidentemente inspirou D. Sebastido, cuja loucura, como a de Quixote, consistia em tomar por realidades as enti dades puramente mentais. ‘A morte do rei-cruzado nao pds termo definitivo a este mito, Pelo contrério, ele apareceu como garantia sobrenatural da inde- pendéncia e, portanto, da restauragao do reino, que o «milagre» de Ourique mostrava ter sido fundado por Deus. O mito do sebastianismo veio engrossar 0 caudal mftico, que jé entao tinha éculos de existéncia. Vivo ou morto, o rei havia de regressar para cumprir © seu destino providencial. Porventura ha aqui uma reminiscéncia da lenda do rei Artur, que foi conhecida em Portugal na Idade Média. O mito € também uma forma de compensagao em relapio a uma realidade frustrante. E quando Portugal parece condenado um estrangulamento inglério, em Iuta com Holandeses e Castethanos, perdido da Africa e do Oriente (que justificava a motivagio da Cruzada), que o mito ganha a sua forma m: grandiosa e precisa através do padre Ani6nio Vieira, que 0 descreveu na Histéria do Futuro e nos escritos sobre a consu- magio do reino de Cristo na Terra. O padre Vieira projectou 0 mito no futuro e anteviu um novo império mundial com um 6 rei, um s6 pastor e uma s6 fé. Esta ideia é 0 desenvolvimento das profecias do abade Joaquim e dos franciscanos «espirituais», que anunciavam uma nova e tiltima fase na histéria do mundo, & também por outro lado uma versio cristianizada do mito judaico do império universal, ou Quinto Império, inaugurado pelo Messia 114 AS EPOCAS DA CULTURA PORTUGUESA Assim eresceul, como Timatha atrafda por um-fman, © mito inicial da guerra santa, a que sucessivamente se juntaram 0 mito arturiano do rei desejado, 0 mito joaquimita da Terceira Idade do Mundo € 0 mito judaico do Quinto Império. Mas na sua liltima forma o mito era j4 um delirio sem qualquer relagio com a situagdo histrica real, estava na fase da agonia. © golpe de misericérdia no mito foi dado por Alexandre Herculano ao mostrar na Histéria de Portugal que 0 «milagre» de Ourique era uma fraude historiogrifica, suscitando uma viva reacco por parte de alguns mantenedores da tradigio. Mas, ja um século antes, Linis Ant6nio Verney, no Verdadeiro Método de Estudar, mosteara a mais completa falta de respeito por esta cerenga, sem provocar resposta, 0 que mostra que em meados do século xvn ja ninguém a tomava a sério. Foi também Herculano que tentou acreditar uma outra ideia mobilizadora, segundo ele mais préxima da realidade. A visio mundial da histéria que o mito da Cruzada sup6e, quis substituir ‘uma visio interna, tentando apreender 0 gérmen a partir do qual a nago se constituiu, Hereulano procurava também um sentido para a hist6ria de Portugal, mas julgava encontri-lo numa espé- cie de hist6ria natural do Pats, uma histéria quase botinica, a partir de uma semente, A semente eram os concelhos, células populares que se teriam desenvolvido harmoniosamente segun- do um principio de liberdade, se no fossem circunstincias exteriores ¢ esptirias que se Thes opuseram. A monarquia abso- uta, o clero (identificado com a Inquisigio) e a mereantilizagio, ccausada pelos Descobrimentos foram estas circunstincias. Se- gundo esta perspectiva, a parte positiva, criativa e de certa maneira organica da hist6ria de Portugal acabou no século xv. Herculano s6 se ocupou da hist6ria posterior para exemplificar 0 seu aspecto negativo (Histéria da Origem e Estabelecimento da Inquisi¢ao). Embora explicasse a realidade (pois s6 se aplicava a um ccurto perfodo da hist6ria do Pafs), esta teoria no chegou a ser um mito, pois nfo teve um assentimento geral, mas 6 a de certos grupos politicos. Teéfilo Braga tentou inspirar-se nela 15 ‘A CULTURA EM PORTUGAL, para elaborar uma teoria da literatura portuguesa que vé em toda a parte uma poesia popular abafada pela corte e pelos poetas fulicos,-salvo em alguns casos excepcionais, como Cambes e Joao de Deus. E também naquela teoria se inspirou 0 célebre opiisculo de Antero de Quental sobre as causas da decadéncia dos povos peninsulares, causas que eram a monarquia absoluca, a Inquisigdo (com a suposta colaborago dos Jesuftas) ¢ os Des- cobrimentos. Com Antero instaurou-se 0 contramito da deca- déncia, que Oliveira Martins desenvolvera sobretudo na Histé- ria de Portugal, aptesentando 0 Portugal actual como uma sobrevivéncia péstuma de um-pafs que morreu em 1580. Além disso a ideotogia de cruzada € virada do avesso com a dentincia das crueldades e ignomfnias acarretadas pela expansio, A His- t6ria de Portugal de Oliveira Martins & uma espécie de Os Lustadas em negativo. Guerra Junqueiro deu dela uma versio narrativa e dramética nA Pétria, que procura responsabilizar pela decadéncia a dinas- tia de Braganga. Chamo a esta ideia de «decadéncia» um contramito, em primeiro lugar porque se ope deliberadamente a0 mito da cru- zada; em segundo lugar porque pretende no ser um mito, mas ‘uma expressao racional da realidade; em terceiro lugar porque nao tem a fungao de justificar e motivar a acco colectiva, Ela € antes de mais a expresso de uma auséncia de ideal, da inca- pacidade de dar um sentido & vida colectiva, contra a qual reagiram alguns homens, como Ant6nio Sérgio, e alguns movi- mentos, como 0 Integralismo Lusitano € 0 Salazarismo, que aligs tentow agarrar-se a um resto do naufrdgio do mito da cruzada, o da missdo civilizadora portuguesa em Africa. Este contramito da Decadéncia revela sobretudo que 0 mito europeu e «burgués» do progresso no vingou em Portugal a ilo ser como ideologia particular de certos grupos profissionais € politicos, como o fontismo, palavra que deriva do apelido de um engenheiro que viu a regeneragio do Pais na politica dos «melhoramentos materiais», Na consciéneia profunda do povo 116 AS EPOCAS DA CULTURA PORTUGUESA portugués 0 progresso foi visto como uma realidade propria dos -«paises adiantados», isto é, da Europa, mas no como coisa sua. contramito da decadéncia € 0 vazio deixado pelo desapa- recido mito da cruzada. Sao estas duas ideias que presidem como signos ao pereurso da hist6ria cultural portuguesa e a dividem em dois longos perfodos: um que vai das origens até meados do século xvitt € ‘outro que vem desde entdo até hoje. § 3.0 TOPO E A BASE. Outro critério que vamos considerar ¢ 0 que chamamos 0 Topo e a Base. Por outras palavras: qual é a espécie de grupo dominante que em cada fase conseguiu impor um padrio ou um, ‘modelo social ds classes dominadas do Pais. Na nossa perspec tiva, 0 problemia nao é de ordem econémica ou mesmo social no sentido mais estreito desta palavra, mas cultural. Falamos de ‘modelos, padrdes, valores e simbolos. Quem é que em Portugal esteve em condigdes de os impor, e em que medida foi acom- panhado pela base. Serfamos tentados a imaginar esquematicamente na nossa cultura trés épocas: a época dos cavaleiros, a época dos clérigos, ea época dos mercadores. Durante a fase da conquista do territ6rio, das origens até meados do século xm, 05 cavaleiros sao naturalmente 0 grupo mais activo da populacdo. As decisdes capitais, que sio as que respeitam as campanhas militares, dependem deles; as conside- racbes estratégicas estio no primeiro plano da acco colectivi a propria economia, em grande parte baseada no saque, esté orientada para a guerra. Os reis sfo sobretudo chefes de guerra ¢ tém de se impor pelas qualidades guerreiras. Durante a Idade Média, os cavaleiros, como jé apontémos, eram um grupo etnicamente separado da populagio e tinham-se a si proprios como «descendentes dos Godos». Jé durante a monarquia visig6tica 0 direito germanico se fundira legalmente 117 ‘A CULTURA EM PORTUGAL, com o direito romano. Mas 0 grupo dos Germanos, que funda- ‘mentalmente era constituido pelos nobres e nao se fundira com- pletamente na populagao autéctone, conservara a sua fungao guerreira e parte dos seus costumes e tradigGes privativas. Os chefes de guerra profissionais sto hereditérios, como todos os praticantes de qualquer oficio nesta época, excepto 0 eclesidstico. Mas a casta dos fidalgos nao era inteiramente im- permedvel, porque ao lado dos cavaleiros fidalgos havia os cavaleiros Vildos, lavradores afazendados, intermediérios entre a dalguia e 0 campesinato, que tinham interesse em se profissionalizarem e em se tornarem fidalgos de linhagem. E. havia ainda os aventureiros, chefes de bando e de guerrilha, que em condiges favoraveis ingressavam na casta por mérito pr6- prio. Por outro lado, ndo devemos esquecer que tanto para ‘mouros como para cristios esta guerra, desde as origens, era uma «guerra santa», mesmo antes de ser oficialmente uma «cru- zada», guerra em que todo 0 povo estava empenhado, quer para os desastres, quer para os beneficios. s elérigos, muitos dos quais provinham da nobreza para ‘ocupar os postos mais elevados da hierarquia eclesidstica, eram também privilegiados. Eram os doutrinérios e os doutrinadores e além disso tinham um papel muito importante na diplomacia, 1a burocracia, na tesouraria do rei e na sua diplomacia. E na mesma qualidade eram também indispensdveis as grandes casas senhoriais. Como intermedidrios do Sagrado, acummulavam enor- mes tesouros. Mas em circunstincias de guerra permanente eles podiam ser os doutrinadores, porém nio os herdis, nem, por- tanto, 0s modelos. lids, nenhum grupo sacerdotal pode ser um modelo social. A guerra (e seus sucedineos, como a caga e 0 desporto) foi sempre grande inspiradora da imaginacao, ¢ cla af estava quotidianamente, & vista e na experiéncia de todas as camadas da populacao, envolvida no fluxo € refluxo da recon- quista. Alids ela invadia também a vida clerical. E frequente nesta época os clérigos comandarem exércitos; © as odens ‘mondsticas militares combinavam 0 ideal clerical com o ideal guerreiro. 118 ‘AS EPOCAS DA CULTURA PORTUGUESA Os herdis dos cantares de gesta (ou do tinico de que nos resta um vestfgio, a tradigao épica de Afonso Henriques), dos relatos len- darios, dos livros de linhagens, sao guerreiros, como Afonso Hen- riques, Gongalo Mendes da Maia, Fgas Moniz, sendo curioso notar {que a tradigo de Afonso Henriques € decididamente anticlerical.. Os valores do guerreiro, nos textos indicados, so a valentia fisica (0 «esforgo», como se dizia até a0 século xvi, inclusive), a fidelidade ao senhor e a generosidade gratuita (ou «liberalida- de»). Gongalo Mendes da Maia, o heréi de uma bela pagina do Livro de Linhagens do Conde D. Pedro, que inspirou Hercula- no, € um exemplo de «esforgo». Egas Moniz, quando se torna perjuro para salvar Afonso Henriques, dé um exemplo de fide- lidade ao senhor; hd numerosos exemplos, nos livros de linha- gens, deste género de fidelidade, que se mantém mesmo quando © senhor enjeita o vassalo. Os exemplos de «liberalidade» sto numerosos. O Livro de Linhagens do Conde D. Pedro fala por exemplo de um fidalgo que num s6 dia, debaixo de uma érvore, distribuiu pelos seus vassalos sessenta cavalos. Trata-se de um valor proprio de uma economia de potlach: quem mais dava ou quem mais gastava inutilmente mais valia, ‘A importancia do modelo social cavaleiresco prolonga-se para além da época da reconquista. A guerra contra 0 Mouro persistiu na Peninsula até & conquista do reino de Granada, em 1482, sendo interessante notar que, segundo 0 autor da Crénica da Tomada de Ceuta, se aventou na corte portuguesa de D. Joio I ‘a hipétese de cmpreender essa conquista, antes da decisiio de tomar Ceuta. Nunca desapareceu, até ao fim do reino de Grana- da, a ideia peninsular da luta contra os Mouros, que podiam sempre tentar uma invasio enquanto tivessem um pé na Penin- sula, Em 1340 Portugueses e Castelhanos colaboraram no con- tra-ataque a uma invasio mugulmana, que culminou na batalha do Salado. Ea conquista de Ceuta, em 1415, por D. Joao 1, € um empreendimento que na consciéncia colectiva — ow pelo ‘menos na dos doutrinérios que falavam em nome dela— era ainda percepeionado na continuidade da reconquista hispano- -cristi, transformada entretanto em eruzada do Ocidente. 119 ‘A CULTURA EM PORTUGAL No espago que vai de 1250 a 1415, na falta de mouros a enireter a classe guerreira portuguesa, tinham-se sucedido, com intervalos de paz, as guerras fratricidas, quer dentro de Portugal, quer entre Portugueses Castelhanos: ndo falando na guerra entre Sancho II seu irmio D. Afonso, anterior & conquista do Algarve, a guerra entre D. Dinis e seu filho Afonso IV, a guerra entre Afonso IV e seu filho D. Pedro, as guerras de D. Fernando com os reis de Castela, e, por morte de D. Fernando, a guerra luso-castelhana,comegada em 1384 e s6 terminada de jure com paz de 1411, Quatro anos depois seguiu-se a tomada de Ceuta, ‘que recomecou a guerra santa contra os Mouros e deu origem a um estado de guerra permanente no Norte de Africa, que conhe- cerd o seu iltimo grande epissdio em Alcécer Quibir (1578). Embora serodiamente, D. Sebastiao, que quis repetir as proezas do seu antepassado D. Afonso V, foi 0 altimo rei-cavaleiro, 0 ‘iltimo representante da geragdo dos reis guerreiros, iniciada com Afonso Henriques, cuja espada ele levou para a sua desas- trada empresa, Representante anacrénico, porque os trés reis anteriores, D. Jodo II, D. Manuel e D. Jodo I, tinham feito a guerra por procuragdo, sem sair dos seus gabinetes, se bem que casa militar continuasse a ocupar um lugar dominante, no s6 em Marrocos como na India, onde também os Portugueses ti- nham de se bater contra os mugulmanos. A série dos reis-cava~ leiros terminara de facto trés geragdes atrés, com Afonso V, muito melhor cavaleiro que general, e que vérias vezes expusera Peete ra recreate es Feel dele que as crénicas portuguesas deixam de ser rosérios de peripécias bélicas, como tinham sido as de A linha de desenvolvimento da clericatura nfo se situa no ‘mesmo plano que a da cavalaria, Nao se deve esquecer que a organizago religiosa da Peninsula é anterior & fundagio do reino de Portugal. Fé sensivel o desajustamento entre 0 ideal do conquistador e o do evangelizador. Aquele considera-se descen- dente dos « ea algnordncia», contra a prépria Imaginagdo quando ela no é lum mero revestimento, sem autonomia, de um esquema racio- nal ‘As guerras liberais sio o afrontamento entre os mercadores, entretanto desapossados do Brasil, com os seus aliados intelec- tuais, € os clérigos, que eram apoiados pela plebe ignara e fanatizada. O que estava em causa era a posse da terra, que ainda pertencia na maior parte & Tgreja. Os mercadores desa- ossavam os elérigos, tornando-se aristocracia rural, e muitos ‘camponeses puderam tornar-se proprietérios. Foram estes tlti- ‘mos que formaram a classe média rural, seleccionada segundo 5 dotes de trabalho, de economia e de capacidade admistrativa. De facto, no século xrx, © pequeno e médio empreséiio do comércio e da indistria e 0 proprietério campones atento a0 desenvolvimento da «casa», gente morigerada, austera, de con- tas certas, gente de , 149 ‘A CULTURA EM PORTUGAL que no se preocupa apenas com a verdade ou falsidade das proposigdes, mas também com o seu lado estético. Faz parte deste jogo construir as proposigdes de forma simétrica, repet tiva, opositiva, contranstante, elfptica, etc., como pequenas ar- quitecturas que se bastam a si mesmas. A propria narrativa his- t6rica, apesar da fluidez da sua matéria, esta contida nestas moléculas: nao oferece uma sequéncia pura de factos, mas pe- quenos cristais feitos de sentengas em que um membro da frase responde a outro por oposigo ou semelhanga: hé como que ‘esquemas prévios por onde deve correr, como por canais, 0 rio da narrativa, A relagdo entre a palavra e a coisa deixa de ser Sbvia. A lin- ‘guagem passa a constituir problema e jogo. Esta estrutura da expresso, que nao é s6 portuguesa mas ibérica (mas que também se encontra, embora com menos insis- téncia, noutros pafses transpirenaicos — lembre-se 0 wit inglés), parece ter-se desenvolvido com a vida de corte, a partir do reinado de D. Joo II. Corresponde até certo ponto a0 tipo do «cortesdo». Encontramos jé 0s seus precedentes no Cancioneiro Geral, de Garcia de Resende. Sa de Miranda esté cheio de «sentengas», Domina a prosa de Bemnardim Ribeiro, na primeira metade do século xv1. Aparece em Cambes (prosa e verso), em Jorge Ferreira de Vasconcelos, em Tomé Pinheiro da Veiga, em D. Francisco Manuel de Melo. Tem a sua manifestago maxima no padre Anténio Vieira, onde se vé a sua relagéo com uma certa visto do mundo, concebido inteiramente como um sistema de correspondéncias entre as diversas partes do universo, entre © fisico e o espiritual, entre 0 divino € o humano. Na historio- ‘grafia j4 0 podemos descortinar em Jofo de Barros, que obriga © fluir hist6rico a correr por canais conceptuais orientados para uma figura arquitecténica, Inspira quase que cada perfodo da Vida de D. Joao de Castro, de Jacinto Freire de Andrade, nao Ihe escapa D. Francisco Xavier de Meneses, o autor de Portugal Restaurado. Ant6nio Prestes, na segunda metade,do século xvi, Anténio José da Silva, na primeira metade do século xvi, ‘ambos autores de farsas ¢ comédias, mostram-nos como este 150 AS EPOCAS DA CULTURA PORTUGUESA uso da palavra se generaliza no teatro, reflexo da vida quoti- diana. Sublinhemos que nfo se trata de um uso restritamente literd- rio, mas, até onde podemos entrever por cartas, livros de memé- rias e anedotas, de uma forma social corrente na prética quoti- diana da corte, nos serm@es, nos espectéculos. A partir daqui no podia deixar de se propagar a0 pliblico popular. Ainda hoje a agudeza e 0s jogos de palavras sdo frequentes na pcesia popular, ‘como 0 atestam algumas quadras de Antério Aleixo. E por meados do século xvm que se altera esta relagdo mental entre 0 significado e o significante. O padre Verney, no seu Ver- dadeiro Método de Estudar (1746), oferece-nos um modelo de prosa em discurso pritico, centrado sobre as «coisas» (isto &, as ideias), seguindo uma sequéncia légica, sem problemas sobre a maneira de as manifestar. E sem dtivida decalcado sobre a fala das camadas cultas urbanas. Em Verney a palavra deixa de ser jogo: 6 0 destaque da ideia, Novamente o discurso decorre de ideia para ideia. Da mesma forma discorrem 0 padre José Agostinho de Macedo, um grande polemista, e, em poesia, 0 abace de Jazente. s poetas arcédicos (1756-1760) usam um estilo pomposo, ret6rico, de palavras alatinadas e semeado de alusdes mitolégi- cos. Mas é bem claro que essa pompa e nobreza de estilo reco- bre uma sequéncia l6gica das ideias, que as ideias se encadeiam em palavras de significado fixo. A mitologia, 0 escolhido do vocabulério, so apenas um estuque superficial sobre uma ear- pintaria raional. A suposta «poesia» estava s6 na roupagem © nas lantejoulas, no na substincia, tal como a decoraso fantasiosa do estilo rococé é s6 uma superficie, Tra:a-se de mera retGrica acrescentada ao discurso pratico. O essencial é que a relagdo entre o significado e o significante volta a ser unfvoca. Podemos aqui abrir um novo perfodo. A nosso ver, a trans- formagio semistica do século.xvin € uma introdugio ao roman- tismo, via imitagao dos cléssicos franceses e latines. Essencial- ‘mente, 0 romantismo conserva a relago unfvoca entre as duas ‘metades do signo. Mas comparado com o século xvii e mesmo com os anteriores caracteriza-se pelo uso intensivo da conota- 151 ‘A. CULTURA EM PORTUGAL, gio. O signo tem um recorte, que é 0 seu significado, e tem ama auréola, que sio as ideias € sentimentos que esse significado atrai. Os arcades respeitam 0 contorno da palavra, de modo que ‘0 contetido dela surge nitido e fechado em si. Nos rominticos, pelo contririo, esse contorno surge esfumado, como 0 da Lua em nbites de bruma, o que quer dizer que a palavra, sem deixar de ter uma relagio univoca com 0 respectivo conceito, nao se fecha em si, antes abre passagem a outros conceitos. E um som ue tem ecgs e ressondncias, como a miisica romantica. A pa- lavra torna-se um né irradiador de ondas que se vio esbatendo € amortecendo no nevoeiro. A arte da palavra nfo consiste, como sucedera no século xvit, em a triturar em grios portadores de significados miitiplos, tornando possiveis jogos também miiltiplos, mas todos rigorosos, antes em a inserir, com 0 seu significado tinico, num continuum em que o significado se pro- longa ou amolece. Para ver isto basta comparar a eloquéncia de um Herculano, cheia de ressondncias, com ade um Vieira, cheia de astticias. E é por esta arte da conotagdo que o romantismo se prolonga e refina nos chamados «realistas», como Ea de Quei- 16s, e nos simbolistas, como Camilo Pessanha. Este novo tipo de retérica populariza-se através dos jornais e dos oradores poli ticos, que cada vez concorrem mais com os oradores sagrados. Se estas consideragdes sfio verdadeiras, podemos distinguir em Portugal, deste ponto de vista, trés grandes fases culturais. Na primeira, que vai até 20 primeiro tergo do século xvi, a relagio entre as duas metades do signo é untvoca: cada significante tem um s6 significado. Mas nesta primeira grande fase podemos distinguir dois perfodos: aquele em que a retérica niio se evidencia, em que 0 discurso € funcional como nas igrejas romanticas; e aquele em que a ret6rica sobressai, ou ‘como uma forma de resolver problemas novos postos por uma mudanga nos pontos de vista do narrador, ou como uma excrescéncia decorativa gratuita, Podemos chamar a esta fase a Idade Média, cujo ultimo representante seria Gil Vicente. Na segunda grande fase, que vai de cerca de 1530 até meados do século xv, o signo é esquartejado, cada uma das suas partes 152 AS EPOCAS DA CULTURA PORTUGUESA serve para 0 transito do discurso, que deixa de obedecer a uma ordem I6gico-semintica; 0 engenho do autor ou falante sobre- pie-se a0 jufzo, tendendo aquele & construgio de conceitos, que sii vilidos independentemente de serem verdadeiros. Podemos talvez distinguir dois perfodos: a Renascenga, em que se nota ainda um certo compromisso entre este discurso engenhoso € 0 discurso clissico greco-latino, mais préximo da expressiio 16- gica; e 0 chamado «barroco», em que 0 papel do jufzo parece afundar-se completamente e 0 paradoxo se afirma como @ ma- stagiio maxima do engenho, Finalmente, na terceira grande fase volta a restabelecer-se & relagio univoca entre as duas metades do signo, embora 0 modelo no seja jé a lingua coloquial pritica essencialmente camponesa (como o fora na Idade Média), mas a lingua das camadas cultas urbanas, usada no jomalismo e na orat6ria, Ha também dois periodos nesta fase: 0 perfodo em que predomina a l6gica geométrica, mais ou menos revestida de ret6rica greco- -latina; 0 perfodo romaintico e pés-romantico em que se recorre abundantemente & conotagao das palavras, pelo menos no dis- curso literdrio, ‘A primeira fase corresponde, sob 0 ponto de vista Topo € Base, a0 modelo social do cavaleiro-guerreiro; a segunda fase aos modelos sociais do cortesio e do clérigo; a terceira fase a0 modelo do mercador ¢ seus porta-vozes, como o letrado laico. Do ponto de vista Dentro e Fora, as duas primeiras fases corres- pondem & unidade cultural ibérica € a terecira ao rompimento dessa unidade, compensada (em Portugal como em Espanha) pela busca de modelos transpirenaicos. Combinando os quatro pontos de vista, vemos que a viragem crucial € a que se dé em meados do século xvit, Entio se verificam a extingo do mito da cruzada, 0 advento do merca- dor, com os seus valores. proprios,-o- divércio entre as duas partes que constitu’am a cultura ibérica ocidental e o fim do discurso engenhoso. Por outras palavras: o fim de uma tradigdo vvérias veres' secular e 0 principio dos esforgos de integragio num espago cultural ndo ibérico. 153

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