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R E V IST A

BRASILEIRA
DE

Literatura
Comparada

São Paulo
2013
Diretoria Abralic 2012-2013

Presidente Antônio de Pádua Dias da Silva (UEPB)

Vice-Presidente Ana Cristina Marinho Lúcio (UFPB)

Secretário José Hélder Pinheiro Alves (UFCG)

Tesoureiro Diógenes André Vieira Maciel (UEPB)

Conselho Fiscal Sandra Margarida Nitrini (USP)


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Marilene Weinhardt (UFPR)
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Humberto Hermenegildo de Araújo (UFRN)

Conselho Editorial Benedito Nunes, Bóris Schnaidermann, Eneida Maria de Sou-


za, Jonathan Culler, Lisa Bloch de Behar, Luiz Costa Lima,
Marlyse Meyer, Raul Antelo, Silviano Santiago, Sonia Brayner,
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ABRALIC
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CEP: 58429-570 - Bairro Universitário (Bodocongó)
Campina Grande PB
E-mail: revista@abralic.org.br
R E V IST A
BRASILEIRA
DE

Literatura
Comparada

ISSN 0103-6963
Rev. Bras. Liter. Comp. São Paulo n.23 p. 1-230 2013
2008 Associação Brasileira de Literatura Comparada
A Revista Brasileira de Literatura Comparada (ISSN- 0103-6963)
é uma publicação semestral da Associação Brasileira de Literatura
Comparada (Abralic), entidade civil de caráter cultural que congrega
professores universitários, pesquisadores e estudiosos de Literatura
Compa­rada, fundada em Porto Alegre, em 1986.

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta revista poderá ser


reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados,
sem permissão por escrito.

Editora
Ana Cristina Marinho Lúcio
Comissão editorial Antônio de Pádua Dias da Silva
Diógenes André Vieira Maciel
José Hélder Pinheiro Alves

Revisão
Priscilla Ferreira
Editoração Magno Nicolau (Ideia Editora Ltda.)

Revista Brasileira de Literatura Comparada / Associação


Brasileira de Literatura Comparada – v.1, n.1 (1991) –
Rio de Janeiro: Abralic, 1991-
v.1, n.23, 2013

ISSN 0103-6963

1. Literatura comparada – Periódicos. I. Associação


Brasileira de Literatura Comparada.

CDD 809.005
CDU 82.091 (05)
Sumário

Apresentação
Antônio de Pádua Dias da Silva 7

Artigos

Por um comparativismo do pobre: notas para um programa de estudos


Alfredo Cesar Melo 9

Literatura comparada: o regional, o nacional e o transnacional


Eurídice Figueiredo 31

Intertextualidade em prol de uma Estética da Transgressão no Heavy Metal:


A
Ozzy Osbourne, o Louco, o Demônio, a Celebridade
Flavio Pereira Senra 49

Da literatura ao cinema, traduzindo sobre restos de linguagens
João Manuel dos Santos Cunha 79

Focos múltiplos: comparatismo e mídia nas crônicas de Xico Sá


Luiz Carlos Santos Simon 97

Outros Países das Maravilhas para Alice: novas perspectivas


para a Literatura Comparada apresentadas a partir do
estudo de caso de Alice no País das Maravilhas
Manaíra Aires Athayde
Paulo Pereira 119
Amor e morte em “Dido, a Rainha de Cartago” de Christopher Marlowe
Maria da Conceição Oliveira Guimarães 171

Literatura comparada ainda: facetas e eclipses disciplinários


Paulo Sérgio Nolasco dos Santos 189

Afrontando fronteiras da literatura comparada:


da transnacionalidade à transculturalidade
Zilá Bernd 211

Pareceristas ad hoc 223


Normas da revista 225
7

Apresentação

A proposta de lançar um número da Revista


Brasileira de Literatura Comparada – RBLT cuja discussão
estivesse centrada na problematização e apresentação
de outros ou novos parâmetros de viabilização do
comparativismo literário, se deu em razão de a própria
Associação Brasileira de Literatura Comparada, sobretudo
em seus congressos, se mostrar propensa a novas relações
dos estudos comparados, ora reiterando as antigas bases,
ora proporcionando outros caminhos que contemplem os
outros suportes, as outras linguagens, outras questões.
Com o número 23 – A literatura comparada hoje
– esperávamos receber artigos que problematizassem
estas questões postas, principalmente porque os estudos
comparados no Brasil, como todos percebem, foram
atravessados por outras propostas e modos de abordar os
textos literários na medida em que estes também migraram
do seu antes e quase único suporte – o livro – para outras
mídias, o que exige, na perspectiva comparativista,
adequações necessárias antes pensadas unicamente na
relação livro-livro e seus condicionantes: língua, cultura,
contextos, imagens, tempo, autores, estilos.
Nessa linha de raciocínio, os estudos culturais
ganharam foro privilegiado em nossa cultura, alterando a
paisagem do comparativismo literário fortemente enraizado
na cultura acadêmica. As relações literatura e outras mídias
também contribuíram para o enlarguecimento dessa visão
que, sem abandonar a tradição da disciplina literatura
comparada, avança, de forma migratória, para os estudos
comparatistas, muitas vezes tomando estes estudos “fora
do eixo” da antiga base, provocando aligeiradas tensões
8 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

entre os estudiosos e co-fundindo-se em sua dinâmica ou


práxis de trabalho.
Os artigos selecionados para compor o número
desta RBLT, não somente pela chamada, mas, sobretudo,
pela composição de outros olhares dentro e sobre o
mesmo campo de estudo, trazem esta discussão. O leitor
irá encontrar textos que revisam o conceito de literatura
comparada a partir do tema motivador do XIII Congresso
Internacional da ABRALIC: o regional, o nacional e
o transnacional ou “à luz de conceitos de multi, inter e
trans-disciplinaridade e multi, inter e trans-culturalidade”.
A discussão do eixo temático por pesquisadores
experientes na área é uma prova de que a chamada da RBLT
avança naquilo que sustenta a sua filosofia de existência:
a base comparativista e suas interfaces com outras mídias,
outros suportes, outros aportes, outros modos de ver e
interpretar, sobretudo o que ainda se fazia estranho para os
estudos clássicos que era incorporar à prática dos estudos
comparados em literatura, porque somente em literatura,
os objetos da cultura de massa, por exemplo. Dessa forma,
os artigos deste volume contemplam também estudos na
perspectiva interdisciplinar, intermidiática e intertextual,
a literatura que migra para produtos new media como iPad,
o Second Life e os games.
A RBLT quer contribuir com as discussões em
torno do objeto que a sustenta e que é o fundamento da
ABRALIC. Problematizar suas bases, seu modus operandi,
seu suporte, sua base teórico-metodológica parece-nos
viável em tempos de criação e invenção de outras práticas
interpretativas.

Campina Grande - Paraíba

Antônio de Pádua Dias da Silva


9

Por um comparativismo
do pobre: notas para um
programa de estudos

Alfredo Cesar Melo*

Resumo: Este artigo tem como objetivo discutir, em caráter


exploratório, possíveis caminhos para os estudos de literatura
comparada no Brasil, levando em conta a crescente importância
dos debates em torno da inserção do Brasil no Sul Global. No
artigo discuto duas possibilidades de abordagem para o estudo
da cultura brasileira num contexto de comunicação Sul-Sul.
Palavras-Chave: Sul Global; Estudos pós-coloniais, Literatura
Comparada.

Abstract: This article sets as its goal to discuss, in an


experimental fashion, possible routes to the comparative literary
studies in Brazil, bearing in mind the growing importance
of the debates about the Brazilian insertion into the Global
South. In this article, I discuss two possible approaches to the
study of Brazilian literature within a context of South-South
communication.
Keywords: Global South; Postcolonial Studies; Comparative
Literature.

* Universidade Estadual de
Campinas.
1
Tal indistinção chega Se “estudar literatura brasileira é, em boa parte,
a ser uma questão estudar literatura comparada”, como afirmava Antonio
institucionalizada, a ponto
de José Luis Jobim, então
Candido, em 1946, pode-se dizer que a melhor crítica
presidente da Abralic, ter que literária brasileira do século 20 fez justiça ao lema
refletir sobre as razões que elaborado por Candido (2000, p. 213). E fizeram de
levam a Abralic se chamar tal modo que é difícil separar os estudos de literatura
Associação Brasileira de
Literatura Comparada, e não,
brasileira da literatura comparada.1
simplesmente, Associação Essa indistinção é notória, por exemplo, na obra
Brasileira de Literatura mais significativa de Antonio Candido. Como caracterizar
(JOBIM, 2006, p. 95). um livro como Formação da literatura brasileira senão
10 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

como um finíssimo exercício de literatura comparada,


em que os modelos europeus, tanto da Arcádia como do
Romantismo, vão sendo gradualmente adaptados às terras
americanas? Um texto como “Dialética da malandragem”,
já na fase mais madura de Candido, sintetiza bem o
emprego de uma moldura comparatista para entender as
especificidades do Brasil. No seu estudo sobre Memórias de
um sargento de milícias, Candido inicia a discussão sobre
gênero literário definindo o romance malandro a partir
de uma contraposição ao gênero do romance picaresco.
Para isso, faz distinções entre o pícaro e o malandro que
se remetem às diferenças de formações sociais da Espanha
e do Brasil. No decorrer de sua análise, para demarcar as
singularidades de uma ética malandra, Candido compara
a sociabilidade iluminada no romance brasileiro com a
ética puritana figurada no romance A letra escarlate, de
Nathaniel Hawthorne (CANDIDO, 1998).
Algo semelhante pode ser visto na obra de Roberto
Schwarz, que já no seu primeiro estudo de fôlego sobre
Machado de Assis, disserta sobre “as ideias fora do
lugar”. Todo o argumento do famoso ensaio de Schwarz
está estruturado em bases comparatistas. Para Schwarz,
o liberalismo seria uma ideologia de segundo grau, pois,
no Brasil, o discurso liberal não apresentava qualquer
verossimilhança ao tentar mascarar o processo social de
exploração. Na Europa, o discurso liberal correspondia
às aparências da vida social, necessitando da contra-
intuição de um Marx para revelar a sua lógica; enquanto
no Brasil, devido à escravidão, a qualquer transeunte o
discurso liberal soaria grotescamente falso. A partir desse
arcabouço conceitual eminentemente comparativo,
Schwarz estuda as dificuldades de importação do romance
no Brasil – sobretudo na obra de José de Alencar – para,
finalmente, analisar a maneira como Machado de Assis
consegue transformar gradualmente os pressupostos
sociais do Brasil – bastante diversos dos europeus-
em triunfos formais do melhor romance brasileiro
(SCHWARZ, 1977, p. 13-26).
Outro crítico que, ao longo da segunda metade
do século 20, se debruçou sobre esse mecanismo de
diferenciação da forma literária brasileira frente aos
modelos europeus foi Silviano Santiago. No seu clássico
Por
um comparativismo do pobre... 11

ensaio “O entre-lugar do discurso latino-americano”,


Santiago teoriza sobre esse estatuto secundário ou
derivativo geralmente atribuído às culturas periféricas
como a brasileira. Combatendo as noções de fonte e
influência – que haviam marcado até então a disciplina
da literatura comparada -, Santiago argumenta que “[a]
maior contribuição da América Latina para a cultura
ocidental vem da destruição sistemática dos conceitos
de unidade e pureza” (SANTIAGO, 2000, p. 16, grifos
do autor). Empregando o conceito barthesiano de “obra
escrevível”, Santiago argumenta que o escritor latino-
americano está sempre produzindo “a partir de uma
meditação silenciosa e traiçoeira” sobre o texto europeu,
contaminando-o e transformando-o em algo novo
(SANTIAGO, 2000, p. 20).
Apesar de serem críticos literários se utilizando
de marcos teóricos bem distintos entre eles, como a
antropologia social britânica, o marxismo e o pós-
estruturalismo, os três críticos mencionados referem-se a
um problema real, cuja presença é identificada desde os
primórdios da literatura brasileira: ansiedade dos letrados
brasileiros de pertencerem a uma cultura secundária,
incapaz de originalidade. Se há algo em comum nos
trabalhos de Candido, Schwarz e Santiago é a teorização
sobre uma derivação criativa na cultura brasileira.
Ao dar um sinal positivo na diferença da cultura
brasileira frente à europeia – algo que os modernistas
haviam feito no plano artístico –, a geração de críticos
literários da segunda metade do século 20 talvez tenha
dado, assim, sua mais valiosa contribuição para o estudo
da literatura comparada no Brasil: a relativização da
hierarquia entre centro e periferia. Esse talvez seja o grande
paradigma do comparativismo brasileiro no século 20 – o
paradigma da antropofagia modernista, da ressignificação
do legado europeu por parte do letrado brasileiro, visto
agora como ativo produtor de cultura. Em outras palavras,
ao colocar em relevo a questão da autonomia criadora
da literatura brasileira, estamos também nos referindo ao
paradigma da formação da literatura brasileira.
Tal paradigma está longe de ter se exaurido e
continua a render frutos para a nossa mais exigente crítica
literária. A pujança dessa episteme – apenas para dar
12 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

alguns poucos exemplos entre os pesquisadores mais jovens


– pode ser identificada na fecunda análise de Pedro Meira
Monteiro sobre a relação entre Visconde de Cairu e as
máximas moralistas de La Rochefoucauld (MONTEIRO,
2004); no fino estudo de José Luiz Passos sobre o diálogo
do romance machadiano com temas shakespereanos
(PASSOS, 2009); ou na investigação incontornável de
Gilberto Pinheiro Passos sobre o intertexto francês na
obra de Machado de Assis (PASSOS, 1996).
O que estou propondo neste artigo é pensar as
relações do Brasil com o mundo além dessa bipolaridade
(Brasil X Europa; periferia X centro; ex-colônia X ex-
metrópole), o que não significa, já adianto, negar a sua
importância, nem negligenciar o fato de que as relações
assimétricas de poder com a Europa estruturam a nossa
cultura. Não se trata, portanto, de invalidar uma moldura
de análise, focada na relação entre centro e periferia, para
celebrar uma outra, marcada pelas relações Sul-Sul, nem
sugerir que a relação do Brasil com países igualmente
periféricos implique alguma forma idealista de simetria
de poder. É necessário examinar os dois tipos de relação
(centro X periferia; Sul-Sul) simultaneamente, abraçando
suas dificuldades e ambiguidades. Como veremos a seguir,
trata-se de adicionar mais um grau de complexidade a essa
moldura comparativa que já temos, mostrando que há
outras relações além das bipolaridades tradicionalmente
estudadas pela crítica brasileira.
Seria o caso, conforme a sugestão de Silviano
Santiago (2013), de não apenas focar na noção de
formação – muito centrada na autonomia em relação
ao centro – e pensar mais seriamente a ideia de inserção
no mundo, levando em conta outras possíveis relações
do Brasil com outras culturas que não aquelas centrais.
Para isso, proponho dois tipos de moldura de análise para
um comparativismo mais direcionado às relações Sul-
Sul: o primeiro teria a ver com a ideia de comparação
como co-aparição, que poderia servir de paradigma
para estudos comparativos de autores e culturas que, na
maior parte das vezes, se ignoram em razão da própria
dinâmica da divisão internacional de conhecimento,
que dificulta a comunicação e difusão de cultura entre
países do Sul Global; enquanto a segunda moldura teria
Por
um comparativismo do pobre... 13

a ver com uma moldura interidentitária do Brasil (entre


Próspero e Caliban), que obriga a revisão de uma série
de representações cristalizadas na crítica cultural sobre o
Dipesh Chakrabarty analisa esse Brasil. Se estamos acostumados a compreender a cultura
sintoma causado pela divisão
internacional do conhecimento brasileira como uma desvio criativo de um modelo
em seu livro Provincializing
Europe: “There are at least europeu, a inserção do Brasil no contexto lusófono
two everyday symptoms of the
subalternity of non-Western,
africano pode nos ajudar a criar uma outra representação,
third-world histories. Third- na qual muitas vezes o Brasil se mostra como modelo para
world historians feel a need
to refer to works in European as culturas lusófonas na África.
history; historians of Europe do
not feel any need to reciprocate.
Whether it is an Edward
Thompson, a Le Roy Ladurie, a
George Duby, a Carlo Ginzburg, Comparação como com-parison (co-aparição)
a Lawrence Stone, a Robert
Darnton, or a Natalie Davis - to
take but a few names at random Utilizo o termo co-aparição, inicialmente
from our contemporary world
- the “greats” and the models empregado por Jean Luc-Nancy e depois retrabalhado
of the historian’s enterprise
are always at least culturally por Natalie Melas no seu livro All the difference in the
“European.” “They” produce
their work in relative ignorance
World. Co-aparição seria um conceito que tenderia afastar
of non-Western histories, and a conotação normativa que a palavra “comparação”
this does not seem to affect the
quality of their work. This is ganhou no decorrer de sua institucionalização nos estudos
a gesture, however, that “we”
cannot return. We cannot even
literários (MELAS, 2007, pp. 58-72). Co-aparição também
afford an equality or symmetry of permite o estudo comparativo de formas, culturas, e
ignorance at this level without
taking the risk of appearing dinâmicas sociais que não necessariamente entraram em
“old-fashioned” or “outdated.””
(CHAKRABARTY, 2007, p. contato, mas que, nem por isso, seria de menor interesse
28). Tradução minha: “Há ao deixar de cotejá-las.
menos dois sintomas cotidianos
da subalternidade de histórias A divisão de conhecimento eurocêntrica irradia
não-ocidentais e terceiro-
mundistas. Historiadores do do centro para as margens. A estrutura rígida desse fluxo
terceiro mundo sentem a
necessidade de se referir aos
de informação permite pouco compartilhamento e trocas
historiadores europeus, enquanto culturais entre os países na periferia. As consequências
estes não sentem necessidade
de agir reciprocamente. Seja dessa divisão internacional do conhecimento são notórias.
um historiador como um
Edward Thompson, um Le
Seria impensável que intelectuais mexicanos, brasileiros e
Roy Ladurie, um George argentinos, por exemplo, não tivessem um conhecimento
Duby, um Carlo Ginzburg, um
Lawrence Stone, um Robert amplo da história cultural europeia. De outro lado,
Darnton, ou uma Natalie
Davis – apenas para mencionar um intelectual brasileiro que não tenha familiaridade
alguns nomes contemporâneos com grandes autores peruanos e cubanos não teria sua
-, seu modelo historiográfico é
sempre culturalmente europeu. formação considerada falha ou precária. Somos impelidos
Eles escrevem seus trabalhos
ignorando as histórias não- a conhecer o centro e ignoramos outros países, cujas
ocidentais e isso não parece
afetar a qualidade de seus
histórias e processos sociais são bastante semelhantes.2
trabalhos. Este é um gesto É importante frisar que houve considerável contato
que, no entanto, não podemos
retribuir. Não podemos nos cultural entre brasileiros e hispano-americanos e que
dar ao luxo de propormos
uma simetria de ignorâncias,
bons estudos comparativos foram feitos acerca desse
sob o risco de parecermos intercâmbio. Apenas para dar alguns poucos exemplos:
“antiquados” e “desatualizados”.
Raul Antelo estudou a apropriação que Mário de Andrade
14 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

faz da literatura hispano-americana (ANTELO, 1986);


Jorge Schwartz analisou como o artista argentino XulSolar
incorpora temas brasileiros (SCHWARZ, 2011); assim
como Leopoldo Bernucci meticulosamente examina o
quanto da obra de Euclides da Cunha fora transfigurada
pela pena de Mário Vargas Llosa (BERNUCCI, 1989).
Todos esses são estudos que mapeiam bem o contato entre
a cultura brasileira e as culturas hispano-americanas.
Tratam-se de investigações comparativas que se fiam no
liame existente entre dois sistemas literários, o que não
deixa de ser um fator limitante.
Uma das vantagens da ideia de comparação como
co-aparição é exatamente a de poder estabelecer pontes
nas quais a divisão internacional do conhecimento criou
abismos. É poder perceber a co-emergência de formas
literárias e dinâmicas sociais de culturas que se ignoram,
mas que vivem, cada uma a seu modo, as contingências da
experiência pós-colonial. Estudar as co-aparições dessas
sociabilidades periféricas constitui um passo importante
para criarmos um arquivo pós-colonial, isto é, de unir
e comparar produções culturais geralmente segregadas
pela divisão internacional de conhecimento e seu fluxo
frequentemente unidirecional (centro em direção à
periferia).
Tomemos o exemplo do ensaísmo latino-
americano. Qualquer leitor da tradição do pensamento
social brasileiro que entre em contato com os ensaios
de cunho interpretativo- histórico-sociológico da
América hispânica perceberá inicialmente duas coisas:
a imensa similaridade que os textos hispano-americanos
e brasileiros guardam entre si, na infrene busca para dar
um sentido à nação; e a solene ignorância mútua que
cerca, na imensa maioria das vezes, essas duas tradições
do pensamento.
O caso da convergência entre as obras do
brasileiro Gilberto Freyre e do cubano Fernando Ortiz é
paradigmático. Afinal de contas, as semelhanças entre os
dois ensaístas latino-americanos são dignas de nota: ambos
estiveram na fronteira entre a literatura e a antropologia,
escrevendo as obras seminais do nacionalismo cultural de
seus respectivos países (Casa-grande & senzala no Brasil e
Contrapunteo cubano em Cuba), além de terem inserido
Por
um comparativismo do pobre... 15

seus discursos numa moldura por muito tempo considerada


antirracista - que almejava separar os conceitos de raça e
cultura - e de terem criado metáforas de incorporação e
negociação culturais: plasticidade e transculturação (que
juntamente com a antropofagia são metáforas centrais
do campo discursivo latino-americano). No entanto,
praticamente não existe diálogo entre esses dois autores.
Não se pode dizer que houve qualquer influência de um
sobre o outro.
Torna-se imperativo estudar, como dois intelectuais,
completamente independentes e apartados um do outro,
desenvolvem estratégias bastante similares para lidar com
a questão da originalidade criativa das culturas periféricas.
Para isso, proponho uma comparação entre os conceitos
centrais de seus projetos intelectuais: plasticidade na
obra de Gilberto Freyre e transculturação na obra de
Fernando Ortiz. Esses conceitos são metáforas poderosas
de negociação cultural que iluminam aspectos diferentes,
e às vezes complementares, desse mesmo processo de
negociação. O encontro entre diferentes culturas e etnias
na América Latina se deu sob a égide da colonização,
com todas as assimetrias de poder típicas desse sistema.
As metáforas forjadas pelas obras de Freyre e Ortiz
têm como referente as dimensões ambivalentes de tal
processo. Da tensão desse encontro cultural tanto surgem
formas de dominação que prezam pela continuidade das
relações de poder colonial (o entendimento do conceito
de plasticidade será fundamental para destrinchar
analiticamente essas tendências), como manifestações de
resistência e tentativas de subversão das relações vigentes
(aspectos esses que ganham maior inteligibilidade à luz do
conceito de transculturação).
A importância de tais metáforas de negociação é
percebida mais agudamente quando se leva em conta o
papel que desempenharam, numa época em que culturas
periféricas, como a brasileira e a cubana, tinham que lidar
com o mal-estar da cópia, que levava que tais nações se
considerassem culturas sem originalidade, e, portanto,
condenadas a reproduzir as ideias e instituições européias
(SCHWARZ, 1987, p.29).
No entanto, mais do que lidar com esses problemas,
por meio de suas metáforas, num plano meramente teórico
16 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

ou abstrato, pode-se dizer que a própria construção de


seus textos também se deve a um processo de negociação
cultural. Mais do que um simples objeto de estudo, a
negociação cultural estava no núcleo da prática discursiva
de Gilberto Freyre e Fernando Ortiz.
Tanto Gilberto Freyre quanto Fernando Ortiz
buscavam legitimidade para seus trabalhos por meio
da associação de suas respectivas obras à autoridade de
grandes nomes da antropologia de então (Franz Boas e
Bronislaw Malinowski, respectivamente). Mas, ao mesmo
tempo em que inscrevem seus discursos como sendo parte
dessas tradições antropológicas, delas também muito
discrepam. Enrico Mario Santí é enfático em afirmar
que Fernando Ortiz não era e nem podia ser considerado
funcionalista, como Malinowski assim o havia designado,
no seu famoso prefácio a Contrapunteo (SANTÍ, 2002,
p.230-35). De acordo com o próprio Malinowski, para
o funcionalista, a cultura seria um vasto aparato com
que homens faziam frente a problemas concretos com a
finalidade de satisfazer suas necessidades. Ora, nada mais
longe da abordagem que Ortiz faz do tabaco, que é um
vício, e do açúcar, que é um luxo. Nenhum dos produtos é
uma necessidade vital nas suas respectivas comunidades.
Outra diferença significativa entre Ortiz e os funcionalistas
é o uso da História. O funcionalismo estudava as
comunidades sincronicamente, enquanto Ortiz sempre
encontrou na História e no desenvolvimento diacrônico
da sociedade as fontes para sua reflexão antropológica
(RIVEREND, 1978, p. 25). De qualquer modo, sempre
que a diferença entre Ortiz e o funcionalismo é colocada
pela crítica do autor de Contrapunteo, há um resultado
positivo. A diferença é marcada pela criatividade, pelo
senso imaginativo e pela maneira pouco convencional de
escrever do antropólogo cubano (CORONIL, 1995: p.
35). Algo semelhante pode ser dito em relação a Freyre.
Seu estudo estaria muito distante daquilo que, na teoria
antropológica, tem-se chamado de culturalismo boasiano.
A prosa de Freyre está longe da aridez metódica da escrita
de Franz Boas, e muito mais próxima da imaginação
romanesca, antecessora daquilo que seria cunhado
posteriormente como “história íntima”, com seu apego
ao concreto, às cores, aos sabores, aos detalhes, nisso
Por
um comparativismo do pobre... 17

antecipando toda a tradição francesa de história da vida


privada (MELLO, 2002, p. 261).
O que podemos concluir é que tanto Freyre como
Ortiz reivindicam a legitimidade do centro de produção
de saber como uma forma de se comunicar com esse
centro, sem, no entanto, submeter-se à totalidade de suas
normas disciplinares. Eles entremeiam a antropologia
com imaginação e sugestões da oralidade de suas culturas.
Muitas vezes se rendem a uma mimese do objeto, ou
seja, deixam-se misturar, imiscuir-se ao objeto que
estudam, aderindo a seu ponto de vista, acrescentando,
assim, uma dicção própria a seus textos. Compare-se a
maneira empática com que Ortiz narra a chegada do
tabaco na Europa para curar as doenças da razão, com
os ensaios sobre magia e mito de Malinowski, e se verá
que, enquanto o antropólogo polonês segue todas as
regras de distanciamento e neutralidade discursivas,
Ortiz desenvolve uma narrativa que adere ao ponto
de vista do tabaco. Da mesma forma, Gilberto Freyre
revitaliza a língua portuguesa, fazendo uso da oralidade e
das construções mais eruditas, realizando na sua própria
linguagem “um equilíbrio de antagonismos”, que seria
o próprio objeto de estudo do ensaísta brasileiro. Desse
modo, Ortiz e Freyre criam textos que são marcados
pela diferença em relação ao discurso do centro - com o
qual, não obstante, nunca deixam de dialogar. Se é certo
que o ensaio resiste à pureza discursiva das disciplinas
intelectuais - como a Antropologia - ao mesmo tempo
em que mobiliza esses mesmos discursos (RAMOS,
2001, p. 233), será com Gilberto Freyre e Fernando Ortiz
que o ensaísmo latino-americano atingirá a mais plena
consciência de sua dimensão heterogênea e aglutinadora
de discursos.
Gustavo Pérez Firmat chama a atenção para a
dicção ensaística de Contrapunteo (PÉREZ FIRMAT,
1995, p. 52), na qual Fernando Ortiz habilmente
emprega a paralepsis – que é uma figura de linguagem que
consiste em querer dizer algo, afirmando o seu contrário
(por exemplo, quando Ortiz afirma que não pretende
emular El libro de buen amor, para em seguida escrever
sua versão própria do livro de Juan Ruiz). Já Ricardo
Benzaquen de Araújo destaca o tom de conversa que o
18 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

ensaísmo freyreano adota, “parecendo facilitar que ele


arme um raciocínio francamente paradoxal, fazendo com
que cada avaliação positiva possa se suceder uma crítica
e vice-versa”, criando, assim, “um ziguezague que acaba
por dar um caráter antinômico à sua argumentação”
(ARAÚJO, 1994, p. 208). Por trás de cada uma dessas
estratégias – a paralepsis de Ortiz e a argumentação
antinômica de Freyre –, pode-se entrever um pensamento
em movimento, sendo estruturado e organizado por uma
subjetividade criadora, o que dá uma tensão peculiar
aos seus textos. Isso não se daria com a monografia
científica, já que a sistematização teórica trata de elidir as
possíveis arestas que só a inconsistência epistemológica
e a heterogeneidade dos tons ideológicos do ensaio são
capazes de potencializar. É curioso notar como, mesmo
estando tão apartados, e ignorando-se mutuamente,
Freyre e Ortiz chegam a um resultado formal – o ensaio,
com seus limites e potenciais – muito similar.
Voltando à idéia de comparação como co-
aparição, espero ter demonstrado como ganhamos com
cotejamentos em torno a configurações socioculturais
que não necessariamente influenciam uma a outra
(como os ensaios de Freyre e Ortiz), mas que têm uma
imensa capacidade heurística de iluminar dimensões
muito semelhantes da experiência pós-colonial, ao
mesmo tempo em que auxilia a estabelecer os contornos
específicos da cada uma dessas experiências. Comparar
produções culturais feitas no Brasil com aquelas de
países caribenhos, africanos, ou asiáticos pode ajudar a
mapear identidades e marcar diferenças entre as maneiras
dessas culturas se auto-representarem. A constituição
de um arquivo pós-colonial, que seja capaz de resgatar
a pluralidade da experiência pós-colonial, se faz cada
vez mais necessária numa época em que os estudos pós-
coloniais nas universidades metropolitanas estão sendo
guiados por uma perspectiva “indiocêntrica” (para usar
a expressão da escritora argentina Beatriz Sarlo, apud
ORTEGA; NATALI, 2007, p.310).
Há teóricos como Jorge Klor de Alva (1995) e
Gayatri Spivak (1993) que consideram que o processo
da descolonização não seria extensivo à América Latina,
uma vez que o continente tem uma outra história, e seu
Por
um comparativismo do pobre... 19

processo de emancipação política, ocorrida no século


XIX, passou por outras dinâmicas sociopolíticas. A teoria
pós-colonial, embutida no argumento de Klor de Alva e
Spivak, é tão indiocêntrica que toma a Índia como um
modelo normativo de pós-colonialidade. Se os estudos
latino-americanos podem incorporar os estudos pós-
coloniais aos seus debates, a recíproca também deveria
ser verdadeira para os estudos pós-coloniais praticados
nas universidades metropolitanas. Como lembra
Fernando Coronil, obras importantes como Colonial
Discourse and Postcolonial Theory (WILLIAMS AND
CHRISMAN, 1994), Post-Colonial Studies Reader
(ASHCROFT, GRIFFITHS, TIFFIN, 2006), Relocating
Postcolonialism (GOLDBERG E QUAYSON, 2002),
Postcolonialism Theory: A Critical Introduction
(GANDHI, 1998), não incorporam a longa experiência
latino-americana à sua reflexão (CORONIL, 2008, pp.
402-403). Mais recentemente, Robert Young, um dos
mais atuantes representantes dos estudos pós-colonial
nas universidades metropolitanas, reconhece que a teoria
pós-colonial tem uma genealogia plural, encontrada nos
diversos discursos anticoloniais do terceiro mundo. No
seu livro Postcolonialism: An Historical Introduction,
Young menciona intelectuais que pensaram a experiência
latino-americana (Las Casas, Mariátegui, Ortiz, Che
Guevara) como participantes desse discurso anti-colonial.
No entanto, faz uma distinção bastante vacilante entre
a “crítica pós-colonial” e os “discursos anti-coloniais”.
Segundo Young, a crítica pós-colonial marca o momento
em que a experiência política e cultural da periferia
marginalizada “developed into a more general theoretical
position to be set against western political, intellectual
and academic hegemony” (YOUNG, 2001, p. 65).3 Tal
“posição teórica geral” está associada aos “heartlands
of the former colonial power”(YOUNG, 2001, p. 65),
isto é, aos centros europeus de produção intelectual.
Em outras palavras, Young reproduz uma hierarquia
colonial na sua distinção: a teoria pós-colonial é um
3
Tradução: evoluiu para uma
posição teórica mais geral para produto das universidades ocidentais, que estuda e
ser contraposta à hegemonia examina os discursos anti-coloniais para colocar em
política, intelectual e acadêmi-
ca no Ocidente
xeque concepções eurocêntricas. O discurso anti-
colonial, produzido localmente, é matéria a ser moldada
20 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

pelas categorias produzidas pela teoria metropolitana. O


desnível é evidente.
É preciso estar atento para não reproduzir, dentro
dos estudos pós-coloniais, hierarquias que foram alvo
de tanta luta e resistência entre intelectuais de países
periféricos. É necessário pensar o Brasil no contexto do
Sul Global, dentro de sua heterogeneidade. Comparar é
imperativo, mas sempre dentro de uma moldura de co-
aparição, sem criar hierarquia entre os termos, isto é,
sem estabelecer a experiência anglófona como um marco
normativo que deve mensurar a experiência brasileira.

Moldura interidentitária: entre Próspero e


Caliban

No seu artigo “Entre Próspero e Caliban:


Colonialismo, Pós-Colonialismo e Interidentidade”, o
sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, um dos
principais teóricos do Sul Global, defende uma hipótese
arrojada e polêmica, que tem causado intensos debates
nos estudos pós-coloniais lusófonos: a cultura portuguesa
habitaria uma zona de “interidentidade”, por ter sido um
poder colonizador (Próspero), ao mesmo tempo em que
uma “colônia informal” (Caliban) da Inglaterra.
A hipótese de Boaventura, que coloca Portu-
gal como ponto articulador dessa identidade poro-
sa entre colonizador e colonizado, vem sendo se-
riamente questionada por muitos estudiosos (cf.
MADUREIRA, 2008). Ainda assim, creio que uma
moldura interidentitária - entre Próspero e Caliban -
daria rendimentos até mais interessantes caso aplicada
à situação do Brasil. Se levarmos a sério essa posição
interidentitária do Brasil, muito da própria imagem que
construímos acerca da cultura brasileira precisaria ser
revista. Como notamos no início do artigo, boa parte da
crítica literária e cultural brasileira tem compreendido
o Brasil dentro do paradigma centro-periferia, no qual
o Brasil é frequentemente identificado como um país
periférico, sofrendo com a dependência cultural. Ora, já
está mais do que na hora de tirar as conseqüências do
status de média potência mundial desfrutado pelo Brasil,
Por
um comparativismo do pobre... 21

no qual estabelece relações de poder com outros países a


partir de outros arranjos. O caso da África lusófona parece
ser o mais ilustrativo. Faz-se necessário discutir com mais
vagar essa posição ambivalente da cultura brasileira no
mundo.
Numa monografia dedicada ao estudo das
relações entre Brasil e África, Fernando Arenas mostra
a ambivalência que rege a interação entre Brasil e África
lusófona. De um lado, há ações que claramente denotam
solidariedade entre países “terceiro-mundistas”. O Brasil,
por exemplo, exportou para Moçambique a tecnologia
social do Bolsa Família; e ajudou a fundar a primeira
universidade pública do Cabo Verde. Por outro lado, a
presença de empresas brasileiras, como Companhia Vale
do Rio Doce, Petrobrás e Odebrecht, tem exercido um
impacto predatório nas economias e no meio-ambiente
de Angola e Moçambique. Fazemos as vezes de parceiros
pós-coloniais no mundo lusófono e, ao mesmo tempo,
de neocolonizadores. Ademais, a cultura brasileira teria
aquilo que Arenas chama de “capital afetivo” (ARENAS
2011) - que é a simpatia nutrida pelos africanos diante de
nossas manifestações culturais como música, telenovela
e futebol.
Convém lembrar que essa relação ambígua com
a África não vem dos tempos recentes, com a política
externa do governo Lula. Pelo contrário, trata-se de
relação antiga, que nunca foi devidamente teorizada.
Basta lembrar que, nas décadas de 1950 e 1960, o Brasil
defendeu Portugal nos fóruns multilaterais para que a
antiga metrópole pudesse manter suas colônias. Gilberto
Freyre foi um intelectual instrumental para essa missão,
forjando a teoria do lusotropicalismo - teoria que estudaria
a predisposição do lusitano para colonizar regiões tropicais.
O Brasil narrado por Freyre serviria como exemplo da
boa colonização portuguesa. No entanto, o que acontece
no Atlântico Sul é mais complexo do que uma simples
colaboração de um intelectual conservador com um
regime fascista. Se o Brasil narrado por Freyre passa a ser
extremamente conveniente para as narrativas oficiais do
governo português, esse mesmo Brasil discutido nas obras
seminais de Freyre servirá de inspiração para intelectuais
caboverdianos - como Baltasar Lopes e Gabriel Mariano
22 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

- articularem um projeto de independência cultural em


relação a Portugal. A imagem do Brasil no Atlântico
lusófono passa, então, a ser pendular - apropriada tanto
por Próspero (Portugal), como por Caliban (Cabo Verde).
Baltasar Lopes foi um dos fundadores do movimento
Claridade, formado por um grupo de letrados interessados
na investigação da identidade cultural cabo-verdiana.
Desde seu início, o grupo se inspirou principalmente
no modernismo nordestino do Brasil. Lopes confessa
ter lido avidamente os romances de Jorge Amado, José
Lins do Rêgo, Armando Fontes e Marques Rebelo,
e as poesias de Jorge de Lima e Manuel Bandeira. Seu
romance Chiquinho, publicado em 1947, tem uma forte
afinidade com os romances sociais do Nordeste brasileiro,
guardando alguma coisa do memorialismo de José Lins do
Rêgo e da crítica social de Jorge Amado. Para Lopes “esta
ficção e esta poesia revelava-nos um ambiente, tipos,
estilos, formas de comportamento, defeitos e virtudes,
atitudes perante a vida que se assemelhavam aos destas
ilhas” (LOPES, 1956, p. 6). O impacto que a cultura
brasileira teve sobre o fundador do Grupo Claridade pode
ser percebido na descrição pormenorizada que o próprio
Lopes faz de sua leitura de “Evocação do Recife”, poema
de Manuel Bandeira. Lopes lia o poema visualizando
Cabo Verde. Vila da Ribeira Brava, sua cidade natal,
seria o Recife da poesia; um velho conhecido seu, Nhô
Pedro António, faria as vezes de Totônio Rodrigues com o
pince-nez, e a moça tomando banho nua, observada com
alumbramento por Bandeira na Caxangá, era imaginada
nos tanques da Ribeira do João. Tal como Tomás Antonio
Gonzaga, poeta arcádico estudado por Antonio Candido
em Formação da Literatura Brasileira, que colocava uma
ninfa neoclássica nos ribeirões de Minas Gerais, Lopes
vislumbrava os personagens e situações narrados pela
literatura brasileira dentro de cenário cabo-verdiano.
Numa das passagens de Aventura e rotina, Freyre
reconhece os fortes vínculos culturais que unia Cabo
Verde ao Brasil: “Mais de um cabo-verdiano foi o que me
disse com a maior clareza: que se sentia mais brasileiro do
que português da Europa. Que Cabo Verde deveria ser
província do Brasil” (FREYRE, 1953, p. 246).
É possível verificar, no testemunho de Baltasar
Por
um comparativismo do pobre... 23

Lopes, o imenso impacto do livro brasileiro em Cabo


Verde. Pode-se dizer que tal impacto - ainda não teorizado
- não se restringiu a Cabo Verde. Em seu estudo sobre a
recepção de Guimarães Rosa na África lusófona, Anita
Moraes oferece subsídios importantes para essa reflexão
(MORAES, 2012, p. 29-45). No seu estudo, Moraes
mostra como o encontro - muitas vezes fortuito - com a
ficção de Guimarães Rosa marca um ponto de inflexão
nas trajetórias de escritores como Luandino Vieira, Ruy
Duarte e Mia Couto. Em todos os relatos, os escritores
revelam como a obra rosiana mostrou-se fortemente
inspiradora para que tais escritores pudessem escrever
os seus livros. Se, de acordo com Homi Bhabha, em
seu “Signs taken for wonders”, o livro inglês representa,
inicialmente, uma fonte de recalque para o colonizado; o
livro brasileiro descortinava, por sua vez, possibilidades
de desrecalque. Minha principal hipótese é a de que a
literatura brasileira (sobretudo a prosa de Guimarães
Rosa) forneceu aos escritores lusófonos africanos um
modelo de narrativa transcultural que foi de extrema
importância e utilidade no processo de formação das
literaturas nacionais africanas de língua portuguesa. Se
as ligações entre literatura brasileira e literatura africana
lusófona estão bem documentada bem documentadas
(HAMILTON, 1994; ORNELAS, 1996; CHABAL,
1995), faz-se necessário tirar as consequências da natureza
emuladora dessa relação. Ao incorporar a oralidade de
uma cultura tradicional (caipira) à alta literatura, a ficção
rosiana apresentava aos escritores africanos de língua
portuguesa um achado formal que seria imprescindível
na construção das literaturas nacionais africanas de
língua portuguesa. Tanto o escritor angolano Luandino
Vieira como o romancista moçambicano Mia Couto
já declararam que Guimarães Rosa foi uma fonte de
inspiração determinante na maneira como estes próprios
escritores conceberam a literatura de seus países.
Como a maioria dos estudos comparativos em
literatura (estudos pós-coloniais, estudos sociológicos,
marxismo) tem focado suas análises na dicotomia entre
colonizador/colonizado, ocidental/oriental, centro/peri-
feria, Norte/Sul, Prospero/Caliban, uma questão necessita
ser colocada: como devemos dar conta de relações
24 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

entre países que são considerados de “terceiro mundo”,


“subdesenvolvidos”, “não-ocidentais” e do hemisfério
Sul? Essa relação Sul-Sul seria uma relação baseada na
emulação ou na colaboração? Que tipo de dinâmica
de poder seria criada entre esses países? Essas são as
principais questões que devem estruturar um programa
de estudos focados no Sul Global. Primeiro, no entanto,
são necessários alguns esclarecimentos conceituais. O que
vem a ser narrativa transcultural e porque esse tipo de
narrativa ofereceria uma moldura conceitual importante
para entender as relações literárias Sul-Sul?
Narrativa transcultural é um termo cunhado pelo
crítico literário uruguaio Angel Rama. De acordo com
Rama, escritores latino-americanos como José Maria
Arguedas, Gabriel García Marquez, Roa Bastos e João
Guimarães Rosa seriam “narradores transculturais”
(RAMA, 1982, pp. 15-67). Esse tipo de narrador
trabalharia como uma espécie de “tecedor” literário,
costurando alta literatura com a oralidade de culturas
mais tradicionais. Vale a pena salientar que o conceito
transculturación, cunhado por Fernando Ortiz e
apropriado por Rama, implica necessariamente a formação
de novas identidades e culturas. Transculturação é um
processo que sempre leva à síntese de um binarismo,
formando, assim, um terceiro espaço, resultante de
negociações várias. Logo, a narrativa transcultural não
seria propriamente nem literatura modernista nem ficção
regionalista, mas uma produção cultural num entrelugar
epistemológico, capaz de incorporar avanços formais
da vanguarda com a revitalização do legado popular.
Parece, portanto, bastante compreensível que esse modo
particular de narrativa tenha atraído escritores africanos
lusófonos, uma vez que países como Moçambique e
Angola estavam enfrentando o desafio de reconstruir a
nação das ruínas de guerras coloniais e civil. Costurar as
diferentes vozes e visões de mundo dos variados grupos
sociais e étnicos num texto nacional seria uma maneira
de cicatrizar simbolicamente as feridas do conflito e criar
uma comunidade imaginada.
É sintomático, por exemplo, que o angolano
Luandino Vieira tenha escolhido o musseque (uma
vizinhança inter-étnica) como o local primordial de
Por
um comparativismo do pobre... 25

sua ficção. De acordo com Patrick Chabal, “Vieira´s


musseques are a frontier area where a mixture of social
and racial groups meet: from the poor white settler to
the rich mestiço trader, from Cape Verdean merchant to
the black laborer, from the impoverished assimilado to
the pretentious ambaquista” (CHABAL, 1995, p. 22).4
O musseque seria, assim, um espaço poroso no qual a
comunicação e a negociação entre diferentes grupos
ainda eram possíveis. Já o escritor moçambicano Mia
Couto, no seu romance Terra Sonâmbula, narra a história
de um encontro entre um idoso, Tuahir, e um orfão,
Muidinga, dois fugitivos de um campo de refugiados
que acabam vivendo num ônibus queimado cercado
de cadáveres. Muidinga encontra um caderno próximo
a um dos corpos e começa a ler em voz alta os eventos
escritos no caderno por alguém chamado Kindzu. A
narração do romance alterna os dialógos entre Muidigina
e Tuahir com entradas do caderno. Em um certo ponto do
romance, voz e palavra escrita começam a se entrelaçar
à medida em que Mudinga vai preenchendo as lacunas
do texto de Kindzu com sua própria imaginação e desejo
de ter uma família. O leitor do romance não consegue
distinguir as entradas reais do diário de Kindzu da leitura
que Muidinga faz do diário. No romance de Mia Couto,
textos são espaços permeáveis que devem ser apropriados
e contaminados pela imaginação e desejo do povo.
4
Tradução minha: Os mus- Tais narrativas transculturais - viajando do Brasil
seques de Vieira são áreas
fronteiriças onde os diferentes
para África lusófona - podem fomentar novas discussões
grupos sociais e étnicos se teóricas da chamada literatura mundial. Baseado na
encontram: do colono pobre teoria do sistema-mundo de ImannuelWallerstein, Franco
europeu ao rico comerciante
mestiço; do mercador cabover- Moretti, no seu artigo “Conjectures on World Literatura”,
diano ao trabalhador negro, procura estabelecer uma “lei da evolução literária”,
do assimilado empobrecido ao
pretensioso ambaquista. afirmando que “in cultures that belong to the periphery
5
Tradução minha: Em cultu- of the literary system (which means: almost all cultures,
ras que pertencem à periferia
do sistema-literário (o que quer
inside and outside Europe), the modern novel first arises
dizer: quase todas as culturas, not as autonomous development but as a compromise
dentro e fora da Europa), o between a western formal influence (usually French or
romance moderno surge não
como um desenvolvimento English) and local materials” (MORETTI, 2000, p. 58).5
autônomo, mas como um Respondendo a Moretti, Efraín Kristal menciona algumas
compromisso entre influências
formais ocidentais (geralmente
exceções à lei de Moretti, encontradas na literatura
inglesas ou francesas) e mate- hispano-americana, assim, questionando seriamente a
riais locais. eficácia do modelo teórico proposto por Moretti. Kristal
26 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

argumenta, por exemplo, que, na literatura hispano-


americana, a poesia - e não o romance - era o gênero
literário dominante até 1920. Ademais, ao criticar o
modelo de Moretti, Kristal estaria argumentando “in
favor of a view of world literature in which . . . themes and
forms can move in several directions – from the centre to
the periphery, from the periphery to the centre, from one
periphery to another” (KRISTAL, 2002, p. 65).6
Essa visão da literatura mundial - proposta por
Kristal -, na qual formas e temas viajam de um ponto
periférico para outro, é certamente adequada para pensar
as relações culturais, em geral, e literárias, em particular,
do Sul Global - já que se trata de estudar as relações
entre Brasil e África lusófona. Se nós entendermos que
narrativas transculturais são um tipo de “compromisso”,
dentre tantos outros possíveis, entre forma ocidental e
práticas narrativas locais, seria apropriado afirmar que
“compromissos” - especialmente a partir da segunda
metade do século 20 - viajaram tanto quanto formas
europeias. Seria tão importante mapear as viagens dos
“compromissos” (narrativas transculturais) de uma
periferia para outra como traçar os fluxos culturais do
centro para periferia.

Conclusão

Se a prática da literatura comparada é constitutiva


daquilo que chamamos de estudo da literatura brasileira,
uma ampliação do alcance daquilo que consideramos
literatura comparada certamente terá efeitos na maneira
como nós entendemos a nossa cultura e o espaço que
ocupa no mundo.
Descrevi neste artigo duas possíveis abordagens
para estudar a relação do Brasil com o Sul Global. Longe
de serem exaustivas, tais abordagens devem e podem 6
Tradução minha: De uma
se somar a muitas outras. Reitero aqui as vantagens visão de literatura mundial na
analíticas de cada uma: com a noção de comparação qual temas e formas pudessem
se movimentar em várias dire-
como co-aparição podemos estudar culturas, literaturas ções – do centro para periferia,
e autores que, de fato, não tenham nenhum liame entre da periferia para o centro,
si. Trata-se de agregar analiticamente aquilo que a divisão de uma periferia para outra
periferia.
internacional de conhecimento fragmentou. A outra
Por
um comparativismo do pobre... 27

vantagem da co-aparição estaria na maneira de cotejar


experiências pós-coloniais sem parâmetros normativos da
experiência anglófona ou francófona. Cada configuração
cultural periférica deve ser compreendida dentro da sua
especificidade, e não como desvio de um suposto modelo
canônico.
Trabalhar com a noção da cultura brasileira como
pertencente a uma zona interidentitária - capaz de se
revelar tanto como inspiração descolonizadora quanto
presença neocolonizadora no continente africano - nos
leva a pensar como as relações Sul-Sul estão longe de
ser simétricas ou ideais. Frequentemente pensamos
a cultura brasileira como aquela que de algum modo
imitou, apropriou, canabalizou o alheio para se constituir.
É chegada a hora também de pensar a cultura brasileira
como objeto de emulação, com todas as ambivalências e
problemas que essa emulação traz. Só poderemos renovar
a prática comparatista quando formos capazes de conectar
a disciplina da literatura comparada a uma noção mais
precisa da geopolítica do saber e da cultura.

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31

Literatura comparada:
o regional, o nacional
e o transnacional

Eurídice Figueiredo*

Resumo: O texto propõe uma revisão do conceito de Literatura


Comparada a partir das mudanças operadas no mundo literário
desde a descolonização dos países africanos e as diásporas de
escritores que se instalaram nos países ocidentais, embaralhando
o próprio conceito de Literatura Nacional. Em seguida, sugere
a possibilidade de trabalhos comparativos entre as literaturas
dos países que foram colonizados, longe da ideia de influência
de literaturas centrais sobre as literaturas ditas periféricas.
Palavras-chave: Literatura Comparada; literaturas
diaspóricas; estudos pós-coloniais.

Abstract: This text proposes a revision of the concept of


Comparative Literature considering the transformations that
have taken place in the literary world since the decolonization
of African countries. The work of diasporical writers who
moved to Western countries calls into question the very
notion of a National Literature itself. The text then suggests
that it is possible to perform comparative studies of literatures
of formerly colonized countries that differ from the traditional
approach which focuses on the influence of Central Literatures
on Peripheral ones.
Key words: Comparative Literature; Diasporical Literatures;
Post Colonial Studies.

*
Universidade Federal
Fluminense/CNPq.
32 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

Literatura Comparada: textos fundadores

Tomo como mote para a minha reflexão o livro que


Eduardo Coutinho e Tania Carvalhal organizaram em
1994 com o título Literatura Comparada: textos funda-
dores, no qual incluíram artigos publicados de 1886 até
1974. O livro trouxe uma relevante contribuição para os
estudos da área, já que colocaram à disposição do público
brasileiro artigos escritos em várias línguas, dispersos em
revistas ou livros de difícil acesso. Quase vinte anos de-
pois, relendo o livro para escrever este texto, parece-me
importante ressaltar alguns elementos. Considerando que
a Literatura Comparada nasceu na França em torno de
1830 (JEUNE, 1994, p. 223), não surpreende que haja
hegemonia da linha francesa no livro. No século XIX a
nova disciplina se configurou a partir da ideia de centrali-
dade da Literatura Francesa, cujo principal postulado era
a influência que exercia sobre as demais. O nacionalismo
e a primazia da França eram os alicerces do pensamento
que se delineava de maneira bastante inflexível.
A contrapartida veio dos professores (muitos deles
emigrados europeus) dos departamentos das universida-
des americanas, que adotaram uma posição mais aberta
e mais cosmopolita. Muitos deles já não faziam distinção
rígida entre Literatura Geral ou Literatura Mundial e
Literatura Comparada. Remak questiona a assertiva do
crítico francês Van Tieghem segundo a qual a literatura
comparada envolvia investigações limitadas a dois países.
“Por que uma comparação entre Richardson e Rousseau
deveria ser classificada como literatura comparada, ao
passo que uma comparação entre Richardson, Rousseau e
Goethe [...] seria atribuída à literatura geral?” (REMAK,
1994, p. 186).Além disso, uma nova questão metodoló-
gica se abria para o diálogo entre a Literatura e outras
áreas do saber. A definição de Remak é bem ampla e se
aproxima daquilo que se pratica até hoje.

A literatura comparada é o estudo da literatura além das


fronteiras de um país específico e o estudo das relações
entre, por um lado, a literatura, e, por outro, diferentes
áreas do conhecimento e da crença, tais como as artes
Literatura
comparada: o regional, o nacional e o transnacional 33

[...], a filosofia, a história, as ciências, a religião etc. Em


suma, é a comparação de uma literatura com outra ou
outras e a comparação da literatura com outras esferas
da expressão humana (REMAK, 1994, p. 175).

Note-se no livro de Coutinho e Carvalhal a au-


sência da América Latina tanto como sujeito do discurso
(não há autores latino-americanos) como objeto do dis-
curso (não há menção às Literaturas Nacionais da região
senão de passagem). A África e o Oriente aparecem uma
ou outra vez nos textos como áreas exóticas que um dia
viriam participar desse concerto de nações literárias. De-
ve-se destacar também a ausência de negros e demulhe-
res.
René Wellek mostra que há um paradoxo na evolu-
ção da literatura comparada já que, apesar de ela ter sur-
gido como uma reação contra o nacionalismo limitado,
como um protesto contra o isolacionismo, acabou desem-
bocando numa competição entre países, cada um queren-
do provar que mais exerceu influência sobre os demais
ou que melhor assimilou um grande escritor estrangeiro
(WELLEK, 1994, p. 112-114).

Novas literaturas

Passados quase 40 anos da publicação do último


texto que compõe a antologia, o que mudou? Na Amé-
rica Latina aconteceu o chamado boom que inseriu, de
maneira cabal, as literaturas hispânicas do subcontinente
no cânone da literatura. Mas o fenômeno talvez mais im-
pressionante foi a emergência tanto de literaturas africa-
nas quanto de literaturas de países asiáticos (como Índia
e Paquistão) escritas nas línguas europeias. Uma nova
característica mudou o mapa das grandes literaturas: es-
critores “étnicos” (seja pela cor seja pela religião: negros,
mestiços, muçulmanos), provenientes das antigas colô-
nias, deixaram seus países e se radicaram nas metrópoles
dos países ocidentais começando a dar novas configura-
ções às literaturas nacionais.
As primeiras publicações (tanto de poesia quanto
34 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

de romance ou teatro) de autores que viriam a ser con-


siderados fundadores das novas literaturas africanas co-
meçaram em torno dos anos 1950: no mundo da fran-
cofonia, Léopold Sédar Senghor (do Senegal) publicou a
Anthologie de la nouvelle poésienègre et malgaxe, em 1948,
e Kateb Yacine (da Argélia) publicou o romance Nedjma,
em 1956; no mundo de língua inglesa, Chinua Achebe
publicava o romance, recentemente traduzido entre nós,
O mundo se despedaça, enquanto Wole Soyinka (ambos da
Nigéria) representava suas primeiras peças em Londres
em 1958. As literaturas das antigas colônias portuguesas
na África emergem no mesmo movimento. Em 1953, é
publicado o caderno Poesia negra de expressão portuguesa,
organizado por Francisco José Tenreiro e Mário de An-
drade, que, segundo Benjamin Abdalla, foi concebido na
esteira da Antologia de Senghor, que recebera como pre-
fácio o famoso texto de Sartre, Orfeu Negro (ABDALLA,
2008, p. 80). Um pouco mais tarde (1964), saía Luuanda,
de Luandino Vieira, que se tornaria um clássico da litera-
tura angolana. O que parece ser um denominador comum
nessas literaturas, bem como em alguns autores do Caribe
e da América Hispânica, é a tentativa de se apropriar da
tradição literária, transformando-a de modo a integrar as
tradições orais que caracterizam essas culturas.

O barroco

Em grande parte da obra desses autores predomina


o barroco, que permite a mistura, o hibridismo, a profu-
são de elementos que decorrem da mestiçagem cultural.
Severo Sarduy assinala que o barroco “reflete estrutural-
mente a desarmonia, a ruptura da homogeneidade, do
logos enquanto absoluto, a carência que constitui nosso
fundamento epistêmico”, ou seja, os escritores barrocos
fazem uma crítica da história oficial, adotando uma visão
crítica, contestatária.

Barroco em sua ação de pesar, em sua queda, em sua lin-


guagem afetada, às vezes estridente, multicor e caótico,
metaforiza a impugnação da entidade logocêntrica que
Literatura
comparada: o regional, o nacional e o transnacional 35

até então nos estruturava em sua distância e sua autori-


dade; barroco que recusa toda instauração, que metafo-
riza a ordem discutida, o deus julgado, a lei transgredida.
Barroco da Revolução (SARDUY, 1979, p. 178).

Esses escritores barrocos fazem uma invocação épi-


ca da História através da alegoria, da fantasmagoria, si-
tuando-se numa visão revisionista que se insurge contra
os paradigmas de modernização difundida pelo Ocidente,
ao mesmo tempo em que incorpora os elementos da tra-
dição europeia, inclusive a do próprio barroco. Há neles
uma visão não linear e não naturalista da História. Se-
gundo Chiampi, o barroco se dinamiza no nível de uma
temporalidade paralela que seria a da meta-história: “é o
nosso devir permanente, o morto que continua falando,
um passado que dialoga com o presente por seus fragmen-
tos e ruínas, quem sabe para preveni-lo de tornar-se te-
leológico e conclusivo” (CHIAMPI, 1998, p. xvii).
As histórias contadas pelos escritores barrocos se
embaralham, se entranham, em metamorfoses que pro-
duzem uma profusão de sentidos. As narrativas não são
nem lineares nem miméticas, as intrigas e as relações en-
tre os personagens não são muito claras nem muito lógi-
cas. O leitor encontra-se no terreno do indecidível, há
uma hesitação justamente porque os romances não são
“realistas” (no sentido dos romances europeus do século
XIX). A liberdade destes escritores decorre do fato de eles
não terem a pretensão de desvelar “a verdade”; é antes
uma maneira de conservar uma liberdade que se abre a
todas as liberdades. Incorpora-se a tradição rabelaisiana
do barroco que a França havia apagado por séculos, intro-
duzindo o riso, o erotismo, a carnavalização, a linguagem
1
Desenvolvo este aspecto no desregrada e inovadora, o realismo grotesco.1
artigo “O humor rabelaisiano
de Patrick Chamoiseau e
Considerando que o Prêmio Nobel não é garantia
Mário de Andrade”, publicado de qualidade, mas constitui um sintoma de mudanças dos
na revista Alea: Estudos neo- cânones, torna-se pertinente destacar o aumento signi-
latinos, vol. 7, n. 2, dez. 2005.
Disponível em www.scielo. ficativo de não europeus que foram premiados, sobretu-
br e retomado, com pequenas do desde os anos 1980. Hispano-americanos tiveram seis
modificações, no meu livro
Representações de etnicidade: prêmios (três antes de 1980, três depois): Gabriela Mis-
perspectivas interamericanas tral (Chile), em 1945, Miguel Ángel Astúrias (Guatema-
de literatura e cultura (7letras,
2010).
la), em 1967, Pablo Neruda (Chile), em 1971, Gabriel
36 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

Garcia Marquez (Colômbia), em 1982, Octavio Paz (Mé-


xico), em 1990, Mário Vargas Llosa (Peru), em 2010. O
Caribe de língua inglesa teve dois: Derek Walcott (Santa
Lúcia), em 1992, e V.S. Naipaul (Trinidad e Tobago), em
2001. A África teve quatro: Wole Soyinka (Nigéria), em
1986, Naguib Mahfouz (Egito), em 1988, Nadine Gordi-
mer (África do Sul), em 1991, John Coetzee (África do
Sul), em 2003. O Japão e a China tiveram dois cada um:
Yasunari Kawabata (Japão), em 1968, e Kenzaburo Oe
(Japão), em 1994; Gao Xingjian (China), em 2000, e Mo
Yan (China), em 2012. A Turquia, um país periférico da
Europa, teve um: Orhan Pamuk, em 2006. Merece des-
taque o Nobel concedido à escritora afro-americana Toni
Morrison, em 1993.
Um aspecto que afeta a percepção do “nacional”
é o fato de as línguas europeias terem sido apropriadas e
transformadas por esses escritores descentrados: são mui-
tas as variações de francês, inglês, espanhol e português.
Acabou a relação, mesmo que tênue, da tríade: um país,
uma língua, uma literatura. Assim, novas apelações sur-
giram para designar o fenômeno - literaturas diaspóricas,
literaturas migrantes, literaturas transnacionais. Nesse
panorama movediço, em que os antigos alicerces ruíram,
a Literatura Comparada já não pode mais ser a mesma.

Do conceito de influência ao de
intertextualidade

A literatura não é mais apanágio dos países euro-


peus, já que a cada ano surgem novos escritores, oriundos
de países quase desconhecidos do grande público, com
formas literárias inovadoras. O conceito de influência
continua na berlinda. Ultrapassada a visão positivista do
século XIX francês, ele foi apresentado, em artigo de 1967,
pelo crítico russo Victor Zhirmunsky.2 Ele considerava
que a influência envolvia sempre a transformação social
do modelo, ou seja, cada modelo é reinterpretado e adap- 2
É bom lembrar que a União
tado “às condições literárias e sociais que determinaram Soviética ocupa uma posição
periférica se comparada com a
sua influência, às novas relações de tempo e espaço, à hegemonia francesa e norte-
tradição literária nacional em geral e à individualidade americana.
Literatura
comparada: o regional, o nacional e o transnacional 37

ideológica, psicológica e artística do autor em questão”


(ZHIRMUNSKY, 1994, p. 208).Franco Moretti, em ar-
tigo publicado em 2000, afirma que o romance europeu,
transposto em culturas periféricas, revela “uma conci-
liação entre uma influência formal ocidental (em geral
francesa ou inglesa) e matérias locais” (MORETTI apud
VASCONCELOS, 2011, p. 68). Como Sandra Guardini
Vasconcelos (2011, p. 68) aponta, a adoção de modelos
abstratos para explicar a difusão do romance, tal como é
feito por Moretti, tende a deixar de lado o particular, ou
seja, o objeto em seu contexto histórico.
No Brasil, já há algum tempo, evita-se falar de “in-
fluência”, porque nela subjaz a ideia de uma relação de
subalternidade das literaturas dos países colonizados em
relação às dos países colonizadores. A crítica a essa rela-
ção de dependência foi feita por ensaístas brasileiros, den-
tre os quais eu destacaria a figura de Silviano Santiago, no
sentido de repensar o estatuto da literatura brasileira em
relação às literaturas europeias, com destaque para arti-
gos como “O entre-lugar do discurso latino-americano”
(Uma literatura nos trópicos, de 1978), “Apesar de depen-
dente, universal” (Vale quanto pesai, de 1982).
Do ponto de vista da teoria do texto, desde Mikhaïl
Bakhtin, Julia Kristeva e Roland Barthes, fala-se muito
mais de intertextualidade, conceito mais neutro, que dá
conta do fato de que todo escritor é, antes de tudo, leitor.
Para Barthes, a “escritura é a destruição de toda voz, de
toda origem. A escritura é esse neutro, esse composto,
esse oblíquo aonde foge o nosso sujeito, o branco-e-preto
onde vem se perder toda identidade, a começar pela do
corpo que escreve” (BARTHES, 1988, p. 65).3 Ao mos-
trar que “o texto é um tecido de citações” (BARTHES,
1988), as quais, por sua vez, emanam de outros textos,
Barthes dessacralizava a figura do autor como criador
único e autoconsciente do texto. Ao tirar o foco do autor,
Barthes privilegiava o leitor, aquele que teria o encargo
3
O tradutor usa a palavra es-
de dar sentido ao texto no processo de leitura: “o leitor
critura para écriture; eu prefiro é o espaço mesmo onde se inscrevem, sem que nenhuma
usar o termo mais comum da se perca, todas as citações de que é feita uma escritura;
língua portuguesa, escrita, e
creio que esta é a tendência a unidade do texto não está em sua origem, mas no seu
atual. destino” (BARTHES, 1988, p. 70).
38 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

Manifeste pour une “Littérature-Monde” 


enfrançais

No dia 16 de março de 2007, o jornal Le Monde


publicou um Manifeste pour une “littérature-monde” em
français, assinado por 44 escritores, dentre os quais Edou-
ard Glissant, Tahar Ben Jelloun, Dany Laferrière e Maryse
Condé. Alguns meses mais tarde, foi publicado um livro,
Pour une littérature-monde, do qual participaram alguns
dos signatários do Manifeste e outros escritores que não
o haviam assinado. Inicialmente é preciso observar que
o ponto de comparação postulado é a existência de uma
literatura de língua inglesa que não teria um rótulo aná-
logo a “francófono” e cujos autores produziram “roman-
ces ruidosos, coloridos, mestiços, que diziam, com uma
força rara e palavras novas, o rumor destas metrópoles
exponenciais em que se chocavam, se misturavam, se
mesclavam as culturas de todos os continentes” (Mani-
feste, tradução minha). Na reivindicação dos signatários
do Manifeste, percebe-se a superação do “nacional” em
benefício de uma visão “transnacional” da literatura na
medida em que a maioria deles pertence, ao mesmo tem-
po, a várias “comunidades imaginadas” (Anderson), ou
seja, são escritores que vivem uma realidade de hibridis-
mo e mestiçagem.
O livro Les littératures de langue française à l’heure de
la mondialisation (2010), organizado por Lise Gauvin, pu-
blicou o Manifeste pour une littérature-monde em français,
que estava inédito em livro desde sua publicação no jor-
nal. Este livro assinala a posição crítica dos quebequenses
em relação ao Manifesto e a favor da francofonia literária,
embora reconheça o ranço colonial que subsiste no termo
francofonia, tal como usado no terreno da política inter-
nacional.

Literatura do Commonwealth

Contrariamente à afirmação presente no Manifesto


de que em inglês não haveria rótulo análogo à francofo-
nia, Salman Rushdie, em artigo intitulado “A literatura
Literatura
comparada: o regional, o nacional e o transnacional 39

do Commonwealth não existe”, escrito em 1983 (1993,


p. 77), mostrava que a expressão “literatura do Com-
monwealth” — utilizada então para agrupar os escritores
oriundos dos países que outrora fizeram parte do Império
Britânico — era inapropriada, porque incluía escritores
provenientes de países que não faziam parte do Com-
monwealth (como a África do Sul e o Paquistão). Mas o
argumento principal tinha a ver com as mesmas questões
colocadas pelos signatários do Manifeste pour une “littéra-
ture-monde” quase 25 anos depois, ou seja, que o termo ti-
nha uma ressonância paternalista e colonialista. Haveria,
de um lado, a literatura inglesa propriamente dita — a
superior, a sagrada — e, de outro lado, a literatura da pe-
riferia que reagruparia um bando de rudes recém-chega-
dos ao mundo das letras. Ele considerava particularmente
desagradável a expressão “literatura do Commonwealth”
por ela se constituir em “gueto de exclusão”. É importante
destacar que ele concebe a literatura inglesa como toda
a literatura escrita em língua inglesa, como Tahar Ben
Jelloun considera que todos os que escrevem em fran-
cês fazem literatura francesa (e não francófona). Assim,
separar a literatura inglesa seria conferir-lhe um caráter
“segregacionista nos planos topográfico, nacionalista e
talvez até mesmo racista” (RUSHDIE, 1993, p. 79). A
regra base que sustenta o edifício do gueto “literatura do
Commonwealth” seria que a literatura é expressão da na-
cionalidade, o que ele contesta. Assim, a recepção nos
países centrais varia: se os livros recriam tradições orais e
populares, com elementos das culturas ancestrais, eles são
apreciados, enquanto que aqueles que mesclam as tradi-
ções ou rompem com elas parecem suspeitos. O escritor
pós-colonial é, então, acusado de falta de autenticidade.
Ora, por que se exige autenticidade de um escritor afri-
cano, asiático ou latino-americano, e não se exige auten-
ticidade de um escritor francês ou inglês? Porque, como
afirma Rushdie, a autenticidade é a herdeira do velho
exotismo. “Ela exige que as fontes, as formas, o estilo, a
língua e os símbolos derivem todos de uma tradição pre-
tensamente homogênea e contínua” (RUSHDIE, 1993,
p. 83). A busca de autenticidade é falaciosa, porque mes-
mo as tradições são múltiplas e já misturadas, não existe
40 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

nada puro e homogêneo, senão de forma abstrata e ima-


ginária. Nimrod, escritor nascido no Chade, afirma que o
que os racistas europeus recusam é a mestiçagem cultural:

O que dizer do escritor africano? Tudo se passa como se


ele tivesse de produzir uma literatura exótica destina-
da aos europeus e a si próprio, o que leva a destinar à
nostalgia uma África que desapareceu há muito tempo
[...] A literatura atravessa sua existência e o leva a es-
crever não uma literatura de africanos autênticos mas a
de africanos urbanos — em todos os sentidos do termo
— que é a prova inaudita do mestiço cultural em que eles
se transformaram (NIMROD, 2007, p. 223).

A exigência de representar o autenticamente na-


cional coloca-se tão somente para os periféricos, porque
ninguém pergunta sobre a francidade dos escritores fran-
ceses nem sobre a anglicidade dos escritores ingleses. A
criação literária, nos dias de hoje, tanto nos países cen-
trais quanto nos países que passaram pelo processo de co-
lonização, não segue paradigmas rígidos.

Lusofonia?

No que se refere aos países africanos de língua por-


tuguesa, o termo lusofonia tende a não ser apreciado por
atrelá-los de modo simbólico a Portugal, como salienta
Laura Padilha (2007), que vê a lusofonia como extensão
do lusismo, maneira de afirmação de Portugal. Ela consi-
dera que lusofonia significa mais do que o simples aspecto
linguístico e, nesse sentido, vai de encontro à posição de
Eduardo Lourenço.
Como nos espaços de língua francesa e inglesa, o
português foi transformado para se moldar às peculiari-
dades da vida cultural dos diferentes países africanos e,
principalmente, para incorporar elementos da tradição
oral, como acontece em outras áreas diglóssicas, ou seja,
países que falam mais de uma língua, com estatutos dife-
rentes (a língua ocidental e outra/s língua/s ágrafa/s). Essa
“reinvenção linguística e cultural” da língua portuguesa
foi chamada por David Mestre de “geogramática” (PADI-
LHA, 2007, p. 106).
Literatura
comparada: o regional, o nacional e o transnacional 41

Do ponto de vista da legitimação, publicação e dis-


tribuição de livros, os autores africanos ainda passam por
Lisboa, mas é de se destacar a amplitude do mercado edi-
torial brasileiro que abre as portas para esses escritores. E
é também importante lembrar que os laços com o Brasil
são antigos, já que os primeiros escritores, que participa-
ram dos movimentos de independência, foram leitores
dos brasileiros, como Guimarães Rosa e Jorge Amado, o
que provocou uma transversalidade bastante produtiva.

Língua e linguagem

Rushdie ressalta que a flexibilidade do inglês possi-


bilita que escritores de várias partes do globo o reinventem
para exprimir suas necessidades. A partir da etimologia de
traduzir — traducere, levar além — o autor afirma que eles
são homens “traduzidos”, pois foram levados para longe
de seus locais de nascimento. Apesar de normalmente
se dizer que se perde no processo de tradução, Rushdie
aposta que se pode também ganhar (1993, p. 28). O fato
de eles terem uma dupla perspectiva, de dentro e de fora,
permite que sua visão estereoscópica (RUSHDIE, 1993,
p. 30) seja particularmente interessante.
De maneira semelhante, escritores africanos como
Nimrod afirmam que eles inventaram uma nova maneira
de escrever em francês, porque exprimem realidades que
são parcialmente distantes da cultura e da sensibilidade
francesas. “O francês consegue falar nossas línguas sem
deixar de ser francês” (NIMROD, 2007, p.230). Patrick
Chamoiseau, Raphaël Confiant e Jean Bernabé, no Eloge
de lacréolité, explicam como os antilhanos conquistaram a
língua francesa: “Nós estendemos o sentido de certas pa-
lavras. Nós desviamos outros. E metamorfoseamos muito.
Nós a enriquecemos tanto no léxico quanto na sintaxe.
Nós a preservamos em muitos vocábulos cujo uso se per-
dera. Em suma, nós a habitamos. Em nós, ela ficou viva.
Nela, nós construímos nossa linguagem” (BERNABÉ;
CHAMOISEAU; CONFIANT, 1989, p. 47, grifos dos
autores, tradução minha).
Edouard Glissant concebe a crioulização como um
42 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

processo de transformação da linguagem na narrativa an-


tilhana, que se nutre dos contos crioulos e adota a eco-
nomia da língua crioula no interior da língua francesa.
“É preciso abrir caminho através da língua em direção de
uma linguagem que não reside talvez na lógica interna
dessa língua. A poética forçada nasce da consciência des-
sa oposição entre uma língua de que se serve e uma lin-
guagem da qual se necessita” (GLISSANT, 1981, p. 237).
A crioulização pretende engendrar uma linguagem capaz
de tecer as poéticas crioulas, barrocas, presentes na orali-
dade tradicional, em contraste com a economia da língua
francesa, muito mais concisa, clara e clássica.
E as possibilidades de leitura de autores de ori-
gens muito variadas aumentam, facilitadas pela rapidez
com que as obras literárias são traduzidas. Trata-se de
uma “polinização cruzada” (RUSHDIE, 1993, p. 31),
em grande parte devido à multiplicação dos centros e à
maior divulgação e circulação de bens culturais no mun-
do globalizado. Assim, cada escritor pode escolher seus
predecessores a partir de suas afinidades eletivas. Salman
Rushdie, por exemplo, coloca-se como herdeiro de Gógol,
Cervantes, Kafka, Melville e Machado de Assis, uma ár-
vore genealógica poliglota, dos quatro cantos do mundo.
Decididamente, os escritores que estão produzindo uma
literatura transnacional eliminaram todo tipo de gueto,
seja ele nacional, territorial ou linguístico.

República mundial das letras

Como os escritores antilhanos e africanos de língua


francesa, Rushdie postula que a língua inglesa deixou de
ser propriedade dos ingleses há muito tempo e que, nesse
sentido, não há mais centro. Destruir o centro tem como
corolário destruir a noção de periferia, à qual são relega-
dos os escritores provenientes da imigração. Este ponto
é importante como matéria de discussão. No caso do in-
glês, a colocação parece ser bastante apropriada, porque o
poderio americano desestabilizou a posição da Inglaterra
enquanto centro. Já os escritores canadenses de língua
inglesa, próximos demais dos Estados Unidos, preferem
Literatura
comparada: o regional, o nacional e o transnacional 43

reforçar o polo de Londres, que lhes fornece um capital


cultural em contraposição à dominação do seu vizinho
do sul (CASANOVA, 1999, p. 176). Entretanto, no caso
francês, Paris continua a exercer uma primazia tanto polí-
tica quanto cultural no espaço francófono e, como aponta
Pascale Casanova, se ela desempenhou o papel de centro
de consagração para inúmeros escritores norte-america-
nos (Faulkner, os negros a partir do movimento do Har-
lem Renaissance) e latino-americanos (sobretudo do cha-
mado boom), paradoxalmente, para os escritores de língua
francesa, Paris não pode funcionar como uma espécie de
“terceiro lugar específico” (CASANOVA, 1999, p. 177).
Como não há outro local que possa exercer a função de
centro de consagração, o mal-estar e a marginalização
dos escritores francófonos redundaram no Manifesto. No
caso das literaturas africanas de língua portuguesa, Lisboa
ainda conserva seu poder de legitimação e de divulgação
de livros e escritores, embora o peso demográfico e edito-
rial do Brasil tenda a desequilibrar a balança de Portugal.
Assim, é preciso reconhecer que as capitais dos antigos e
atuais impérios — Paris, Londres, Lisboa, Nova York —
ainda são centrais no jogo do poder cultural, e não é por
acaso que é nessas grandes cidades que os escritores de
todo mundo se encontram e dialogam.
Assistiu-se, nas últimas décadas, à renovação do
romance pela intervenção de autores vindos do Sul,
como observa Milan Kundera: “uma nova grande cultura
romanesca caracterizada por um extraordinário sentido
do real ligado a uma imaginação desenfreada que ul-
trapassa todas as regras da verossimilhança” (KUNDE-
RA,1993, p.43). Salman Rushdie também aponta para
o caráter inovador da produção dos países pobres e das
minorias deserdadas dos países ricos e para o intercâmbio
e a intertextualidade existentes entre diferentes regiões
do planeta: por exemplo, o realismo mágico latino-ame-
ricano foi absorvido e reciclado por escritores da Índia,
como ele próprio (1993, p. 85). Haveria uma república
mundial das letras — para usar a expressão de Pascale
Casanova — sem fronteiras políticas e linguísticas. Mas,
paradoxalmente, se os autores das periferias estão mais
aptos a renovar do que os escritores dos centros literários,
44 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

é aí — nos grandes centros — que os escritores “do sul”


devem ser consagrados, para terem uma oportunidade de
sobreviver.
Não é por acaso que os escritores de língua fran-
cesa que reivindicam a pertença a uma literatura-mun-
do se comparam aos escritores de língua inglesa que são,
hoje, os mais inovadores, os mais vendidos e os mais ci-
tados. Abaixo deles viriam os latino-americanos, tanto os
romancistas do boom quanto novos escritores, como Ro-
berto Bolaño, Rodrigo Fresán, Santiago Gamboa e outros.
Com algumas exceções, naturalmente, pode-se afirmar
que os maiores prosadores da contemporaneidade são
pessoas com duplas ou múltiplas identidades, pessoas que
não estão coladas a nenhuma nação de modo monolítico,
pessoas híbridas que se situam no entre dois, no entrelu-
gar.

Temas da ABRALIC

Creio que os temas dos congressos da ABRALIC de


2011 e 2013, respectivamente “Centro, centros” e “A in-
ternacionalização do regional” estão conectados às ques-
tões que estou levantando, porque têm a ver com a noção
de “Universal” propalada pelo Ocidente, que, vendo-se
como centro, relegava ao folclore e ao exotismo tudo
o que não se conformasse com ele. Se, historicamente,
houve, na América Latina, a oposição entreregionalis-
mo (geralmente associado a romance rural) e cosmopo-
litismo/universal, isso se deve ao fato de se considerar o
primeiro como sendo atrasado enquanto o urbano teria
caráter universal e seria, portanto, associado ao moderno
(ao centro).
Ora, agora, no século XXI, as barreiras parecem
borradas: escritores que têm os pés fincados na região são
tão universais quanto aqueles que situam seus romances
nos grandes centros urbanos. Por outro lado, num mundo
globalizado e caminhando para a homogeneização, eles
tornam-se valorizados no mercado internacional justa-
mente porque têm um diferencial a oferecer. Para citar
um exemplo: os romances e novelas de Milton Hatoum
Literatura
comparada: o regional, o nacional e o transnacional 45

não só se passam sempre em Manaus como se nutrem da


complexidade sóciocultural da Amazônia. E foi por essa
razão que foi convidado pela editora escocesa Canonga-
tea participar da coleção Mitos, cuja proposta era de que
escritores produzissem novelas-releituras de lendas de seu
país. Assim nasceu Órfãos do Eldorado, livro imediata-
mente traduzido para o inglês para a tal coleção.
A própria noção de região tende a se alargar no
sentido postulado por Ángel Rama e Ana Pizarro, ou seja,
as grandes regiões ultrapassam as fronteiras nacionais e
linguísticas. Assim, o Cone Sul, a Amazônia e o Cari-
be são macro-regiões marcadas por uma história e uma
cultura comuns, o que permite estudos comparados que
levem em conta essa dimensão. Saímos, assim, do eixo
Norte-Sul, ou seja, Europa versus os países por ela colo-
nizados, para trabalhar no eixo Sul-Sul, aprofundando as
ligações existentes entre as literaturas das macro-regiões.
A região já se internacionalizou há muito tempo, só Ca-
rolina não viu.

Conclusão

A clausura do/no nacional tem impedido a com-


preensão de que movimentos e tendências surgidos em
um país ou área linguística têm correlação com outros
muito mais amplos que atingem outras regiões, consti-
tuindo-se em macro-regiões. Assim, as inter-relações que
se podem vislumbrar no presente podem suscitar outros
desdobramentos a fim de se detectarem as linhas de força
das literaturas colocadas assim em diálogo.
A internacionalização do regional se dá porque no-
vas redes transnacionais se formam permitindo a circula-
ção de ideias e a criação de novos padrões de comporta-
mento, novos gostos, muitos deles bastante hibridizados.
Um exemplo analisado por Marilene Weinhardt (2013)
é o romance Roliúde, de Homero Fonseca. Não se pode
deixar de evocar a Bollywood da Índia, similar, portan-
to, à Roliúde do Nordeste brasileiro, ambos remetendo a
Hollywood, a meca do cinema americano. Estamos todos
no mesmo mundo globalizado, para o bem e para o mal.
46 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

Nesse mundo em que os trânsitos se dão tanto de forma


real quanto virtual, em que a “polinização cruzada” de
que fala Rushdie torna-se regra em vez de ser exceção,
a Literatura Comparada se impõe como disciplina aber-
ta para a experiência da outridade, porque a experiência
de escritores e leitores não se circunscreve aos limites de
uma nação. Embora as grandes áreas linguísticas tenham
um canal de comunicação já dado de antemão, a media-
ção da tradução impõe-se cada vez mais, permitindo que
mais leitores tenham acesso a obras de todos os recantos
do planeta.

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49

A intertextualidade em prol de uma


estética da transgressão no heavy
metal: Ozzy Osbourne, o louco, o
demônio, a celebridade

Flavio Pereira Senra*

Resumo: No contexto pós-moderno, torna-se cada vez mais


necessário adotar um enfoque interdisciplinar, intermidiático
e intertextual no tocante aos Estudos Comparativistas e
Culturais. Desse modo, partindo do universo da Cultura de
Massas, o artigo propõe-se a investigar como o discurso estético
do cantor de Heavy Metal Ozzy Osbourne é construído com
base em inter-relações com outros discursos e saberes, de forma
que se possa estabelecer um culto à personalidade midiática.
Para investigar tais negociações identitárias, estéticas e
ideológicas, são desenvolvidas análises comparativas entre
o vídeo a vivo The Ultimate Ozzy e o documentário nazista
O Triunfo da Vontade, de Leni Riefenstahl. Adicionalmente,
evidencia-se como o artista promove o esvaziamento do
imaginário religioso (do Cristianismo) e do discurso científico
psiquiátrico (o conceito de “Sanidade”).
Palavras-Chave: Estudos Culturais. Intertextualidade.
Semiótica. Heavy Metal.

Abstract: In the post-modern scenario, it becomes more


necessary to adopt an interdisciplinary, inter-media and inter-
textual approach when it comes to Cultural and Comparative
Studies. Therefore, through the perspective of the Mass
Culture universe, this paper analyzes how the aesthetical
discourse of the Heavy Metal singer Ozzy Osbourne is built on
inter-relations with other discourses and areas of knowledge,
in a way that it can be established a Cult of Media Personality.
In order to investigate these identity, aesthetic and ideological
negotiations, the paper develops comparative analysis between
the live vídeo footage The Ultimate Ozzy and the nazist
documentary The Triumph of the Will, of Leni Riefenstahl. In
addition, it is shown how the artist promotes the emptiness of
the religious imaginary (of Christianity) and of the scientific-
psyquiatric discourse (the concept of “Sanity”).
Keywords: Cultural Studies. Intertextuality. Semiotics. Heavy
Metal.
*
Universidade Federal do Rio
de Janeiro.
50 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

No contexto pós-moderno, mostra-se cada vez


mais pertinente, na seara dos Estudos Culturais e
Comparativistas, uma abordagem de natureza intertextual.
Pode-se afirmar que na contemporaneidade, marcada
por notória fragmentação e pluralidade, o termo “texto”
retoma seu significado original, conotando não apenas
uma forma de composição semântica organizada em torno
de um registro linguístico verbal, mas sim uma “maneira
de tecer”, ou, simplesmente, “coisa tecida” (CUNHA,
1982). Essa definição mostra-se bem mais abrangente,
e eleva o vocábulo texto ao patamar de qualquer
organização discursiva que transmita um significado,
independentemente se revestido de um discurso verbal ou
não-verbal (audiovisual, imagético, musical etc.).
Esse enfoque intertextualizado é aplicável a
uma questão relevante do contexto contemporâneo: a
efervescência de um panorama cultural moldado pelas
necessidades do mercado, próprio da sociedade de
consumo em nos inserimos, que se convencionou chamar
de Cultura de Massas. A despeito de quaisquer tentativas
de se determinar critérios que classifiquem determinado
tipo de produção cultural como “de massas” ou “elevada”,
à medida que o homem adentra o século 21, torna-se mais
evidente ao pensamento crítico de um modo geral que
tais limites culturais vão se tornando frágeis, plásticos,
líquidos, ou, simplesmente, irrelevantes. Evidencia-se, na
esfera da Cultura de Massas, a produção de uma série de
discursos que, em um nível explícito ou não, ancora-se em
uma série de outros discursos oriundos de outras áreas do
conhecimento, estabelecendo com essas relações distintas,
sejam parafrásticas, paródicas ou (e) descontrutivas. Essas
(re)negociações com outros textos servem à construção
de um discurso estético que, além de ser um produto de
consumo, é, adicionalmente, um produtor de ideologias,
de modos de vida e de identidades para o receptor.
Tal argumento pode ser aplicado ao cantor britânico
de Heavy Metal Ozzy Osbourne, que, ao longo de sua
extensa carreira, ancorou sua imagem pública a elementos
de uma série de campos semânticos referentes a signos
considerados marginais, opositores e transgressores. Os
maiores exemplos estão nos epítetos do vocalista veiculados
A
intertextualidade em prol de uma estética da transgressão... 51

na grande mídia: “Homem Louco”, “Príncipe das Trevas” e


“Servo do Demônio”, tanto em nível artístico/profissional
quanto em nível biográfico/pessoal.1 Essa tentativa de se
criar uma Estética da Transgressão para Ozzy Osbourne
foi construída através de canais midiáticos diversos:
fonográficos, iconográficos e audiovisuais, e estabelece um
culto à personalidade midiática do artista.

Triumph des Wahnsinn2

Grossíssimo modo, compreende-se o culto à


personalidade como um processo de propaganda político-
ideológica que tem por objetivo principal construir
a imagem de um determinado governante exaltando
(em geral, de forma idealizada e exagerada) todas as
suas melhores características. Esse tipo de promoção da
figura do chefe de um Estado-Nação se fez recorrente
em contextos ditatoriais, como na União Soviética e na
Alemanha (respectivamente, com Josef Stálin e Adolf
Hitler). Praticamente todos os braços da comunicação
publicitária (a mídia impressa, o rádio, a televisão), bem
como plataformas de propagação das artes (o cinema, a
música, a escultura e a pintura) podem ser controlados
pelo Estado com esses fins.
Deve-se ter em mente que um dos maiores propósitos
do culto à personalidade é agregar signos diversos à figura
do Chefe de Estado, de forma que possa ser criada uma
imagem do líder que não apenas denote poder, mas
que também transmita segurança para as massas. Tem-
se, então, uma associação direta entre o indivíduo que
comanda o país e a própria ideia de Nação, ou, em outras
1
Além dessas nomenclaturas palavras, o indivíduo Chefe de Estado e o estado em si
terem sido utilizadas na mídia são, ideologicamente, um só. O “grande líder” é elevado
especializada, há lançamentos
de Ozzy que fazem referência
a um patamar de símbolo, de ideia, de representação
a elas, como o disco Diary of metonímica do que é a Nação em si. Se for levado em
a Madman (“Diário de um
homem louco”), de 1981, e a
consideração que o conceito de Estado-Nação é muito caro
caixa especial Prince of Darkness na era moderna para a delimitação de identidades, pode-se
(“Príncipe das Trevas”), de facilmente inferir que em regimes totalitários em que se fez
2005.
2
Em alemão, “Triunfo da presente esse tipo de propaganda, a identidade nacional
Insanidade”. era imediatamente atrelada à figura do grande líder. Ou
52 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

seja, ser um filho daquela nação implicava diretamente ser


um filho do “Grande Pai” que a comandava politicamente.
Nesse âmbito, no caso do cantor Ozzy Osbourne, recursos
midiáticos distintos exercem um papel fundamental na
construção de um culto à sua figura pública. Um exemplo
está em seus shows filmados e oficialmente lançados em
vídeo, em que as tomadas procuram enfatizar o poder do
cantor sobre as multidões.
É o caso do vídeo The Ultimate Ozzy. Por ser um
lançamento especial, em comemoração ao disco de
platina triplo conferido ao álbum “The Ultimate Sin”
(OSBOURNE, 1985), alternam-se imagens do próprio
show com outras cenas, como o videoclipe da canção “Shot
in the dark” (OSBOURNE, 1985, p. 09). No decorrer do
referido videoclipe, tem-se o início da apresentação de
Ozzy Osbourne. Sobrepondo o áudio da plateia à canção,
é exibida uma série de tomadas do público, em diferentes
ângulos, mostrando uma casa de espetáculos superlotada,
com fãs diversos apertados na grade de proteção próxima
ao palco, e são dados diversos closes em fãs erguendo os
braços, gritando em frenesi. Tal recurso já caracteriza,
nos minutos iniciais do vídeo, Ozzy Osbourne como um
ser capaz de incutir elevados níveis de adrenalina nas
multidões. Mais do que isso: é uma forma de representar
o poder do ente individual sobre o coletivo, o que
contribui significativamente para a dinâmica do culto à
personalidade.
Eis que, com os instrumentistas já posicionados,
pode-se ver a imagem de um estranho objeto pendurado
no teto, sendo descido por correntes até o nível no
palco. O ângulo da câmera aliado ao áudio dos gritos da
multidão proporciona ao espectador a impressão de que
ele próprio está presente no evento, entre os fãs. O objeto
em questão à medida que desce revela-se um gigantesco
boneco que emula a imagem do próprio cantor, com os
cabelos compridos desgrenhados e alourados, exatamente
de acordo com seu visual na época. Contudo, imprimindo-
lhe características soturnas através de caracterizações como
os gigantescos olhos avermelhados, a bocarra com dentes
pontiagudos, a imensa língua para fora, as garras nas mãos e
as asas de morcego interligadas aos braços (que por sua vez,
A
intertextualidade em prol de uma estética da transgressão... 53

estão fechados enquanto esse totem monstruoso desce ao


palco). Quando a estranha estátua toca o solo, eis que uma
explosão ocorre com diversas faíscas brilhantes voando
para todos os lados. Um rápido close nos fãs espremidos
na grade, erguendo os braços e batendo cabeça, aumenta a
expectativa para o que ocorrerá. Eis que a criatura abre os
braços e vê-se que o colo do monstrengo possui o formato
de um trono, e lá está Ozzy Osbourne sentado nele,
vestindo uma capa brilhante, contemplando o público
com uma expressão séria e autoritária. Esses elementos
permitem uma imediata associação da imagem do cantor
à de alguma figura monárquica ou imperial. Novamente, a
câmera mostra a plateia, enfatizando diversos rostos, todos
eufóricos com a chegada do “grande líder”.
Pode-se afirmar que o recurso cênico de fazer Ozzy
Osbourne descer do teto é análogo à descida de alguma
entidade metafísica superior advinda dos céus, uma
analogia que dialoga perfeitamente com a mecânica de culto
à personalidade discutida. Ainda, a estátua monstruosa
em questão, ao retratar Ozzy como uma espécie de criatura
bizarra e sombria, realça os signos que são constantemente
vinculados ao cantor, no caso, os relacionados ao demônio,
ao louco, ao ser das trevas e outros similares. Sempre em
consonância com “O Fortuna”, a mudança de imagem
ocorre exatamente no momento em que ecoa uma intensa
batida de tambores. À medida que cresce a dinâmica da
canção, com o coro cantando cada vez mais forte, Ozzy
corre pelo palco, gritando, conclamando o público a
acompanhá-lo nessa “noite insana” (let´s have a crazy night
tonight,3 ele afirma). Percebe-se nesse ponto um recurso
curioso: o cantor, imerso em sua performance de palco
hiperbólica, emite um grito agudo ao microfone e logo
em seguida aponta-o para a plateia, para que ela repita o
gesto, gritando em uníssono. O gesto é repetido algumas
vezes. A mixagem de áudio destaca a resposta do público,
aumentando o volume do grito da multidão, enfatizando,
dessa forma, o domínio que o artista exerce sobre seus fãs.
A câmera prossegue mostrando imagens do cantor
de diversos ângulos, tanto próximo quanto distanciado das
3
“Vamos ter uma noite insana lentes, de direções distintas do ambiente, o que privilegia
hoje!” a noção espacial que se tem da casa de espetáculos
54 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

dando a ela uma impressão de grandeza e profundidade


em suas proporções físicas. Tal recurso é importante,
pois evidentemente enfatiza a quantidade de pessoas
que estão lá para venerar o artista, criando a imagem de
um local imenso (com capacidade para comportar um
número elevado de pagantes) completamente lotado.
Em questão de segundos a câmera intercala as imagens
de Ozzy Osbourne com outras da plateia, com as pessoas
apertadas umas as outras (dando ao espectador do vídeo a
ideia de superlotação, novamente), extasiadas, gritando. A
mixagem de áudio favorece a vibração do público, pondo
o som da multidão eufórica em volume análogo a “O
Fortuna”. Esse tratamento dado ao som culmina no grande
clímax da canção, com o áudio da gritaria da multidão
amplificado ao máximo. Nesse momento, Ozzy ergue seus
braços para o alto, com o olhar arregalado, imerso em um
transe. A câmera em movimento posicionada no ângulo
da plateia permite a captação da imagem do cantor no
palco e, ao mesmo tempo, da vasta multidão imitando
seu gesto, com os braços para cima. Eis que Ozzy inicia
o culto com a já esperada saudação ritualística: “Let the
madness... begin!”.4 Um grandioso efeito pirotécnico
nesse instante contribui para o tom apoteótico da cena,
um recurso utilizado justamente nos preciosos segundos
em que o baterista marca no contratempo o andamento
da canção que iniciará o espetáculo: “Bark at the moon”.
Mal o show começou e o público já presenciou uma espécie
de “clímax”, com todos já envolvidos e dominados pelo
grande líder que seguem nesse instante.
As estratégias de captação de áudio e vídeo presentes
em The Ultimate Ozzy permitem uma comparação com
o emblemático Triumph des Willens5 (RIEFENSTAHL,
1935). Trata-se de um longa-metragem propagandista
encomendado e produzido pelo regime nazista que narra
o Congresso Nacional-Socialista ocorrido em Nuremberg
no ano de 1934. Produzido e dirigido pela cineasta Leni 4
“Deixem a loucura...
começar!”
Riefenstahl, o filme faz um evidente enaltecimento da figura 5
“Triunfo da Vontade”.
de Adolf Hitler, mostrando o quanto ele era importante 6
Diga-se de passagem, o führer
acompanhou e inspecionou
para o progresso material da Alemanha e, acima de tudo, toda a produção do filme,
para a felicidade do povo.6 Lançado em 1935, Triumph agindo literalmente como um
produtor executivo não-oficial.
des Willens tornou-se um divisor de águas na história do
A
intertextualidade em prol de uma estética da transgressão... 55

cinema graças às técnicas inovadoras de Riefenstahl. Uma


delas foi o emprego de música em perfeita consonância
com as imagens. A trilha sonora em questão, de Richard
Wagner (um compositor cuja obra é associada ao nazismo)
exerce um papel determinante no efeito que as imagens
captadas geram sobre os espectadores.
O filme tem início com uma imagem dos céus da
Alemanha, mostrando apenas as nuvens. Em seguida,
a câmera paulatinamente aproxima suas lentes e exibe
a cidade de Nuremberg, em uma panorâmica dos céus.
São mostradas tropas marchando, enfileiradas. A trilha
sonora wagneriana, “Die Meistersinger von Nürnberg”
(“Os cantores-mestres de Nuremberg”), contribui para o
tom épico da cena. Paralelamente, são exibidas imagens
do avião oficial de Hitler sobrevoando os céus, com sua
sombra cruciforme sendo projetada sobre as casas e as
pessoas. Já no aeroporto, uma multidão de civis aguarda
a chegada do aeroplano. A opção em filmar essas pessoas
é importante, pois através do foco na aglomeração do
povo, no momento que antecede a chegada do grande
líder, tem-se um retrato da veneração em torno de sua
figura. A beleza do cenário e a imponência da composição
musical de Wagner reforçam a ideia que se quer transmitir
de uma Alemanha gloriosa. Com o pouso do avião e
a descida de Adolf Hitler, a câmera alterna cenas da
multidão celebrando estrondosamente a sua chegada,
batendo palmas e gritando. Rápidos closes em rostos
felizes e comovidos de homens, mulheres e crianças são
alternados com a figura de um sereno e sorridente Hitler,
constituindo sua imagem como aquele que iria “restaurar”
a Alemanha. A mixagem de áudio é determinante nesse
ponto, pois o som da multidão em polvorosa aumenta
gradativamente de volume, ao ponto de atingir uma altura
desproporcional com as saudações gritadas em uníssono
assim que Adolf Hitler sai do avião (“Hail!”).
As cenas seguintes aprofundam essa “estética do
culto” à figura de Hitler. Em um carro oficial, o então
chanceler da Alemanha está de pé, fazendo a típica
saudação com o braço esticado, gesto imitado pelas
centenas de pessoas (tanto militares quanto civis) que se
amontoam nas laterais da estrada por onde passa o cortejo
56 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

oficial. Tomadas em close das costas e da mão de Hitler são


alternadas com cenas da população em êxtase imitando o
gesto, recurso que privilegia a saudação feita ao público
e a influência deste sobre o povo alemão. A câmera, em
movimento, dá ao espectador a sensação de estar dentro
do carro oficial, ao lado do fürher. Deve-se salientar que
o áudio e o vídeo são combinados constantemente, de
maneira a sempre fomentar a ideia da comoção que Hitler
causa nas pessoas. À medida que o carro oficial se aproxima
da praça central de Nuremberg, em um crescendo, vão
mudando as tonalidades da canção “Horst-Wessel-Lied”
(“A bandeira nas alturas”), hino oficial do Partido Nazista,
sendo sobreposta pelo áudio da multidão que saúda Hitler.
Já dentro da cidade de Nuremberg, a câmera, em
segundos, alterna cenas diversas da arquitetura local com
outras de pessoas que se amontoam nas janelas de suas
casas saudando Hitler, na esperança de que ele veja cada
uma delas. Há um determinado momento em que uma
mãe com uma criança no colo se aproxima do carro oficial,
ao que o chanceler acaricia o bebê. Logo em seguida há
tomadas de diversos menores de idade, demonstrando sua
empolgação pela presença de Hitler. Ainda de pé em seu
carro e com o braço estendido em sua saudação ao povo,
Adolf Hitler é conduzido até seu destino: o hotel onde
ficaria para descansar de sua jornada. A câmera prossegue
com a mesma dinâmica de exibição de imagens em close do
líder e da população excitadíssima com sua presença, com
algumas outras tomadas em soldados e seus uniformes.
No clímax dessa primeira parte do filme Hitler surge na
sacada da janela de seu hotel para saudar a população. Já
sem a trilha sonora de Richard Wagner, o único áudio
é a ovação do povo, que evidentemente tem seu volume
bastante elevado no exato momento em que o Fürher surge
na janela. Esse recurso, aliado às tomadas da multidão
estendendo seus braços para saudar a figura do grande
líder, reiteram a dinâmica do culto à personalidade a que
se propõe esse filme.
Triumph des Willens foi um sucesso de bilheteria
em território alemão e, interessantemente, apesar de sua
proposta política de glorificação do Nazismo, foi aclamado
em outras partes do mundo, chegando a receber prêmios
A
intertextualidade em prol de uma estética da transgressão... 57

na França, na Suécia e até mesmo nos EUA. Muito


do sucesso do documentário se deve aos paradigmas
cinematográficos criados por Leni Riefenstahl, estes tão
impactantes na história do cinema que muitos diretores
nas décadas seguintes iriam, explícita ou veladamente,
usá-los na produção de suas obras. Os exemplos são vários
e incluem Francis Ford Coppola, em seu clássico filme
de guerra Apocalypse Now, mais especificamente na cena
de diversos helicópteros voando ao som da composição
wagneriana “Cavalgada das Valquírias”. A imponência
dos batalhões do Império marchando alinhados em
diversos filmes da saga Guerra nas Estrelas com a célebre
marcha imperial ao fundo também leva a crer que George
Lucas bebeu dessa fonte. Os diretores de Coração Valente
e Cruzada (Mel Gibson e Ridley Scott, respectivamente)
já declararam que tomadas aéreas desses filmes foram
inspiradas na linguagem cinematográfica de Riefenstahl.
Nem mesmo a Disney se exclui dessa lista de exemplos,
vide O Rei Leão, com a cena em que o vilão Scar discursa
para uma multidão de hienas malignas que marcham
alinhadas em cenário sombrio, durante a execução de sua
música-tema, “Se preparem”.
De um modo geral, filmes que de alguma forma
abordam a mecânica do culto à personalidade, são
devedores diretos ou indiretos de Triunfo da Vontade.
O registro ao vivo de Ozzy Osbourne The Ultimate Sin
emprega técnicas que foram utilizadas pela primeira vez
no filme de Riefenstahl. Levando-se em consideração a
proposta de culto à personalidade estabelecida em ambos
os filmes, pode ser estabelecido um contraponto entre o
registro ao vivo do cantor inglês e o referido documentário
de propaganda do partido nazista. Coincidentemente,
algumas das imagens promocionais mais recentes de Ozzy
Osbourne o mostram caracterizado como um típico oficial
militar:
58 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

[Figura 1: Foto promocional, 2010]

Na foto em questão, vê-se Ozzy Osbourne


caracterizado com uma farda negra, que, em alguns
aspectos, permite uma associação com aquela utilizada
pelos nazistas, vide as cruzes de ferro penduradas em
seu uniforme7. Em relação ao seu emprego no decorrer
do Terceiro Reich, havia um critério de categorização:
a de primeira classe era usada no ombro esquerdo; a de
segunda classe era suspensa por fitas em outras partes do
uniforme e a grã-cruz de ferro, em maior destaque, era
pendurada no pescoço. À exceção desta última, vê-se que o
“general Osbourne” ostenta algumas cruzes de primeira e
de segunda ordem, bem como algumas medalhas diversas.
É evidente que o cantor jamais teve qualquer afiliação
ao Nazismo ou a organizações militaristas ao longo de
sua trajetória musical e pessoal. Seu figurino obedece a
propósitos puramente estéticos, e são justamente as cruzes
1
Deve-se ressaltar, todavia,
que a Cruz de Ferro não é um
de ferro os elementos mais significativos da imagem. Essas símbolo de origem nazista, e
sugerem uma carreira extensa de um general ou de algum sim uma condecoração surgida
no Reino da Prússia em 1813.
outro oficial de alta patente que tenha obtido muitas O Império Alemão a resgatou,
condecorações por grandes feitos militares. utilizando-a para condecorar
oficiais durante a Guerra
Levando-se em consideração que essa imagem é Franco-Prussiana, a Primeira
datada de 2010, ou seja, com um Ozzy Osbourne de 62 e a Segunda Guerra Mundial.
O Terceiro Reich utiliza uma
anos e com 41 anos de carreira, fica estabelecida uma versão personalizada dessa
clara analogia entre o fato de o cantor chegar a esse cruz, com a suástica impressa
sobre ela.
A
intertextualidade em prol de uma estética da transgressão... 59

estágio de sua vida ainda atuante no ramo musical com,


metaforicamente, a imagem de um sobrevivente de várias
“guerras”, como a infância de pobreza, a conturbada saída
do Black Sabbath, o alcoolismo, as querelas públicas com
fanáticos religiosos e as acusações judiciais de incitação
ao suicídio, dentre outras passagens turbulentas de sua
trajetória profissional e pessoal. Até mesmo os ferozes
conflitos internos tão presentes em suas canções podem
ser incluídos nessa lista de “guerras pessoais” travadas
pelo artista (muitas de conhecimento público). É possível
ver nessas condecorações militares uma alusão indireta
aos relatos diversos que compuseram a mitologia de Ozzy
Osbourne. Tem-se nessas medalhas e cruzes de ferro uma
forma de enfatizar, de forma simbólica, os elementos
humanos da vida desse olimpiano, aqui recorrendo à
terminologia de Edgar Morin para referir-se às celebridades
(MORIN, 1986).
O emprego de elementos do campo semântico do
militarismo na imagem reproduzida relaciona à figura de
Ozzy a diversas representações de autoridade. Seguindo esse
viés, pode-se afirmar que os demais elementos presentes
na imagem também exercem um papel significativo na
construção dessa mensagem. Na Figura 1, o cantor posa
em uma floresta repleta de árvores ressecadas, com diversas
folhas caídas no chão, como um típico dia de fim de
outono. As árvores ressecadas representam a ausência de
vida, e imprimem um tom sombrio à imagem. A atmosfera
soturna é reforçada pelas cores presentes na cena, todas
frias e com tonalidades escurecidas. Nesse ponto, a névoa
ao fundo também auxilia nesse propósito.
Ao centro, em destaque, vê-se o cantor fazendo uma
de suas famigeradas expressões faciais exageradas, com
a boca aberta e os olhos arregalados (como se estivesse
gritando, enfurecido, fora de seu estado normal), olhando
fixamente para a lente da câmera. Esse recurso permite
que se tenha a impressão de que Ozzy Osbourne está a
olhar diretamente para qualquer pessoa que se coloque
na frente da foto a contemplá-la, estabelecendo, dessa
forma, uma interlocução com quem lê a imagem. Desse
modo, levando-se em consideração todos os signos
veiculados nessas imagens promocionais, torna-se possível
60 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

ver no cantor a figura de algum “General das Trevas”


ou “Autoridade Militar do Heavy Metal” que, com seu
“arsenal de insanidade”, estabelece uma relação intrínseca
de medo e/ou fascínio com seu público.
No tocante à loucura, a definição recorrente do
adjetivo “louco” refere-se ao indivíduo que age ou pensa
em desacordo com as normas vigentes, podendo tornar-
se um elemento danoso para a sociedade. Dessa forma,
cria-se uma estigmatização da insanidade que faz com que
ela deva ser excluída e erradicada. Surge neste ponto uma
questão importante: o termo “louco” com a sua carga
semântica “maldita” é cunhado pelo homem racional,
por aquele que irá promover o afastamento do “doente
mental” do convívio com os demais seres humanos.
Recorrendo a Foucault, podemos afirmar que tentar
revisitar a história dos loucos no pensamento ocidental é
se deparar com a história dos silenciados – uma história
escrita pelos “mentalmente sadios”.
Pode-se identificar na Idade Clássica o grande
estabelecimento da alteridade entre razão e “desrazão”. A
loucura é vista concomitantemente como uma forma de
transgressão, de exceção e de invalidação da razão cartesiana
do referido período. Dessa forma, o dito “louco” torna-
se um elemento a ser excluído do pensamento racional
filosófico ocidental. Tal premissa sustenta a necessidade
de se banir esse grupo de indivíduos do espaço social, o
que justificou a construção dos asilos psiquiátricos, espaço
de confinamento exclusivo para os ditos mentalmente
doentes. Sob esse viés, vê-se como a loucura não é um
objeto de estudo crítico, e sim uma justificativa “plausível”
para uma forma de afastamento e reclusão do “louco”.
Com o surgimento da psiquiatria no século XIX,
a loucura passa a ser um campo de estudos científicos.
Logo, tem-se uma subordinação completa da concepção
de loucura à concepção de razão, na qual esta detém a
fundamentação teórica necessária para compreender,
categorizar, isolar e, finalmente, corrigir o indivíduo
“alienado” da realidade. Através da internação em asilos
psiquiátricos, o discurso médico-científico torna-se a
justificativa irrevogável da necessidade de segregação
desses indivíduos. O louco não deve permanecer no
A
intertextualidade em prol de uma estética da transgressão... 61

seio familiar para receber qualquer tipo de assistência,


nem tampouco integrar a população, já que ele não se
constitui como força de trabalho para o capitalismo em
constante desenvolvimento. Sob essa lógica, um indivíduo
considerado “são” pode ser visto como um “cidadão” (leia-
se: uma ferramenta de produção para a economia vigente
e um reprodutor das práticas sociais tradicionais).
O arcabouço teórico racionalista em questão
apregoa que é “necessário”, para o próprio bem-estar do
enlouquecido, abrigá-lo em um local especial onde receberá
os “cuidados” adequados, o que gera, inevitavelmente,
nos que estão fora dos muros dos manicômios percepções
distintas em relação aos “loucos”, ora de compaixão
absoluta, o que enfatiza a “inferioridade” e “inabilidade”
social dos insanos; ora de ódio, mediante o grau de
periculosidade dos “dementes”. Compreendem-se esses
cuidados como o conjunto de práticas definidas pelo
Estado, ou seja, pelo sujeito racional, que considera o
louco um risco aos outros – e a si mesmo. Logo, com
o advento dos asilos psiquiátricos, pode-se afirmar que
a loucura “encontrou uma pátria que lhe é própria: [...],
algo que isola a loucura e começa a torná-la autônoma em
relação ao destino com o qual ela estava confusamente
misturada” (FOUCAULT, 1978, p. 382-384).
Ainda sobre esse espaço, tem-se nele a representação
máxima do empoderamento do discurso da razão e do
esvaziamento de qualquer critério de verdade que pudesse
ser atribuído ao “louco”. Nesse cenário insere-se a figura
do psiquiatra, ferramenta maior para o restabelecimento
da razão provisoriamente perdida do paciente. O
caráter de reversibilidade do estado de desvio mental é
evidenciado já que é uma maneira de reafirmar o discurso
científico como elemento controlador e disciplinador
da desrazão. Esse antagonismo é evidenciável na relação
médico-paciente, onde aquele é o sujeito e este o objeto.
A passividade do louco no processo é importante, pois
é o que permite que ele, enclausurado nessa espécie de
prisão, seja julgado como um “culpado” por um crime.
O reencontro com a razão e o posterior reencaminhento
à sociedade só pode ocorrer com o autorreconhecimento
do erro, com o enfrentamento da loucura por parte do
62 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

próprio portador do desvio mental. Assim, a alteridade de


membros da “sociedade normal” versus pacientes do asilo é
erradicada, fazendo do indivíduo “curado” e “reintegrado”
mais um daqueles que irá estigmatizar e excluir os loucos.
Ozzy Osbourne ao longo de sua carreira assumiu o
epítome de madman, personificando o estigma da exclusão
social, usando-o como elemento identitário. Entretanto,
essa abordagem da loucura enquanto signo estético-
ideológico não promove um afastamento, mas opera como
um dos vetores comunicacionais que aproximam o cantor
de seu público, fomentando o culto existente em torno de
sua identidade midiática. Assumindo que é o elemento
estranho ao mundo racional, o outro da razão, Ozzy, ao
passo que satisfaz as fantasias de muitos de seus fãs que
por diversas razões podem compartilhar de um sentimento
análogo de tensão Eu versus o Mundo, também desconstrói
e debilita qualquer discurso teórico-científico a respeito da
loucura, associando-a com a ideia de liberdade, e não com
a de confinamento.
O paradigma da insanidade, invertido, torna-se um
elemento potencializador da figura do indivíduo perante
a sociedade, uma forma de distanciá-lo do restante dos
homens não por ser “inferior” ou “irracional”, mas por
ser dotado de uma superioridade singular, dada a sua
racionalidade sui generis, inalcançável pelos demais. Esse
recurso estético-ideológico é um dos mais recorrentes na
constituição de Ozzy Osbourne como celebridade, tendo o
próprio artista dialogado com essa ideia de várias formas.
Um exemplo disso está na já discutida dinâmica de seus
espetáculos, em que o público, já em delírio durante a
execução de “O Fortuna”, grita cada vez mais pelo seu
ídolo. É quando Ozzy solta seu já aguardado bordão:
“Let the madness... begin!”, e no exato último acorde
da canção de introdução, a banda entra em ação e tem
início o espetáculo. Com a recorrência de tais práticas em
seus shows, Ozzy Osbourne estabelece entre ele e seus fãs
uma dinâmica análoga à do ritual e do culto, no tocante
ao caráter de repetição e permanência de uma série de
características que hão de definir e dar propósito a uma
tribo (MAFFESOLLI, 2006) em particular. Entretanto, o
caso de Ozzy Osbourne, tem como premissa principal a
A
intertextualidade em prol de uma estética da transgressão... 63

enunciação erguida em torno não de uma ordem coletiva,


e sim de uma construção individual, no caso, o self do
próprio emissor da mensagem.

The Godfather of Heavy Metal

É recorrente no seio da mídia especializada o


debate a respeito de que banda teria sido a fundadora do
que hoje se compreende por Heavy Metal. Por mais que
existam algumas divergências, é comum apontar o Black
Sabbath como, se não o grupo que seria o mais merecedor
de tal “paternidade”, um dos que exerceram influência
mais direta na gênese do estilo. Ozzy Osbourne foi um dos
membros-fundadores do Black Sabbath e mesmo em sua
carreira-solo muitos dos maiores clássicos de sua banda
original foram (e ainda são) executados ao vivo. O próprio
músico em entrevistas reforça esse senso de pertença a uma
espécie de “panteão sagrado” dos primórdios da música
pesada, de um grupo seleto de grandes ídolos musicais de
indivíduos8 que, por sua vez, também vieram a se tornar
ídolos musicais (os “olímpicos de outros olímpicos”).
Essa questão “de origem”, somada à projeção da imagem
do cantor no decorrer de sua carreira-solo, solidificou o
nome de Ozzy Osbourne como uma figura “paternal”
do universo cultural do Heavy Metal, sendo reverenciado
como uma Institution of Metal ou The Godfather of Heavy
Metal (ALLEN, 2002).9
Este último epíteto apresenta duplo significado. A
palavra “Godfather” traduz-se como “Padrinho”, termo
que, de acordo com o Catolicismo, designa aquele que
deverá orientar seu afilhado no caminho considerado
virtuoso – o da bondade, generosidade e, previsivelmente,
o da religião. Com isso, considerar Ozzy Osbourne como
8
No caso, as bandas
proeminentes fim da década de
“padrinho” do Metal implicaria que ele estaria, até então,
1970, do decorrer dos anos de guiando o estilo, ciceroneando seus milhares de “afilhados”,
1980, 1990 e 2000. sejam músicos renomados ou fãs, nos caminhos do que
9
Respectivamente, “Instituição
do Metal” e “Padrinho do seria a “religião do heavy metal”. Todavia, o mesmo
Metal” (ou “Poderoso Chefão termo “Godfather” remete a uma cultuada trilogia
do Metal”).
10
Já em, Portugal, o título do cinematográfica, The Godfather, intitulado O Poderoso
filme foi O Padrinho. Chefão10 no Brasil. A trilogia narra a saga da família mafiosa
64 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

Corleone, italianos que possuem um rígido senso de honra


dentro de seu clã patriarcal, defendendo-o com violência.
O que se percebe aqui é uma acepção dupla do caráter de
“padrinho” de Ozzy Osbourne: concomitantemente uma
figura paterna bondosa e um “chefão” temido e violento.
Ambos os significados remetem a uma concepção de
poder notoriamente masculino que exerce o papel de
líder, gerenciador e agregador de uma estrutura familiar.
Tais acepções remetem aos sentimentos de adoração/amor
e violência/medo atrelados ao cantor, identificáveis nas
imagens a seguir.

[Figura 2:”The Godfather of Metal”, foto promocional, 2010]


A
intertextualidade em prol de uma estética da transgressão... 65

[Figura 3: capa do album No rest for the Wicked, de 1988]

As imagens reproduzidas possuem um traço em


comum: o artista sentado em um trono. Considerando
este um objeto cuja simbologia é de fácil decodificação,
torna-se evidente a sugestão de que Ozzy Osbourne seria
alguma espécie de figura monárquica no universo da
música pesada e, principalmente, entre seus fãs. Deve-se,
contudo, analisar em mais detalhes cada uma dessas duas
representações de “realeza”.
A Figura 2, datada de 2011, é uma foto promocional
intitulada The Godfather of Metal, veiculada na imprensa
durante a divulgação de seu então álbum mais recente
(Scream, OSBOURNE, 2010). Nela, vê-se o cantor todo
trajado de negro, sentado em uma cadeira cuja aparência
remete diretamente à ideia de um trono. Destaca-se o
fato de que Ozzy está descalço e com as unhas dos pés
pintadas de preto. O fundo da imagem, completamente
branco e sem cenário algum, estabelece um contraste com
a cor negra, destacando-a. O elemento que mais reforça
o tom soturno da imagem é a estranha capa que cobre
Ozzy Osbourne, composta por penas de coloração negra.
Estas por sua vez remetem diretamente à imagem de um
corvo, animal que na tradição cultural europeia remete ao
66 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

mau agouro e à desgraça. A “ave negra dos românticos”


(CHEVALIER; GHEERBRANT, 2006, p. 293) é tida
como aquela que sobrevoa os campos de batalhas à espera
de cadáveres para poder se alimentar. Esse gosto por
carniça se faz presente em diversas lendas judaicas e cristãs
que descrevem o animal como um arauto da morte.
Na mitologia grega, o corvo é caracterizado como
uma ave amaldiçoada. Originalmente um pássaro de
coloração branca, o corvo teria recebido de Apolo a missão
de ser o guardião de Coronis, amante do deus. Tendo a ave
se descuidado e permitido que a mulher fugisse, Apolo,
enfurecido, amaldiçoa o animal, tornando-o tão negro
quanto a noite. Outra lenda de origem grega veiculada à
ave também aborda a temática da punição. Nesta, conta-se
que o corvo deveria apanhar água para uma cerimônia dos
deuses. Entretanto, o animal, desejando obter alguns figos
de uma árvore, resolve esperar pelo amadurecimento das
frutas para poder comê-las. Essa decisão evidentemente
fez com que o corvo se atrasasse muito, o que deixou os
deuses indignados com tal irresponsabilidade. O corvo foi
então castigado a ficar sem beber uma gota de água sequer
durante todo o verão. Como resultado, sua garganta secou
ao ponto de lhe render uma eterna rouquidão, o que seria
a razão principal para os corvos serem aves que, ao invés
de um melodioso canto, emitem um crocitar estridente e
feio.
Vê-se que esses elementos auxiliam a compor a
imagem do corvo como um ser condenado, que vive da
morte e que traz o mau agouro consigo. Logo, o que se
tem na referida imagem é a idealização da figura de Ozzy
Osbourne como um “rei negro”, envolto em seu manto
feito de penas de corvo, contemplando seus súditos
com um olhar calmo (e até um tanto quanto blasé). Os
elementos que remetem ao campo semântico do soturno
relacionam-se com a concepção artística de Ozzy como
“Príncipe das Trevas”.
Já a Figura 3, capa do disco No rest for the Wicked,
mostra novamente a imagem do cantor sentado em um
trono. Contudo, ainda que a simbologia atrelada a este
elemento seja a mesma da figura anterior, esta caracterização
“imperial” de Ozzy Osbourne traz consigo signos mais
A
intertextualidade em prol de uma estética da transgressão... 67

específicos. Primeiramente, evidencia-se a opção pela


ausência de cores, dando a impressão de se tratar de uma
fotografia em preto-e-branco envelhecida e já começando
a dar sinais de amarelamento em sua superfície. Tal opção
cromática reforça o tom sombrio da imagem.
A expressão do músico é marcada por um semblante
quase que sem expressão alguma, bem diferente da
exegese demonstrada em muitas de suas fotos oficiais
promocionais e imagens de espetáculos ao vivo. Percebe-
se novamente o recurso da maquiagem negra em volta
dos olhos, o que evidencia seu olhar enigmático. O que
chama a atenção na capa são os outros elementos que a
compõem, como o próprio trono onde está sentado o
artista. O assento monárquico nesta fotografia é feito de
madeira e possui crânios como ornamentações principais.
Dos quatro crânios afixados acima do assento de Ozzy, três
são de origem animal. A julgar pelo formato desses e por
seus chifres, fica sugerido que são de crânios de bodes, um
dado relevante, tendo em vista que o animal em questão
carrega consigo uma série de simbolismos distintos.
Em culturas pagãs o bode é associado à força, à
libido e à fecundidade. Essa simbologia em muito se
assemelha com a que o carneiro carrega na mesma cultura,
contudo, há uma oposição a ser levada em consideração:
o carneiro remete ao dia, ao sol, enquanto o bode, à noite
e à lua. Tal aspecto se torna relevante se for lembrado que,
em simbologias subsequentes, estabeleceu-se a imagem
do bode como animal associado ao oculto, às trevas e
ao demônio. Tal associação teve início quando a Igreja
Católica com o rei Felipe IV da França desmantelaram a
Ordem dos Templários. No ano de 1307, ela os acusou
de serem adoradores de um (suposto) demônio que eles
denominavam Baphomet. Tal “denúncia” foi amplamente
explorada como justificativa para difamar os cavaleiros
publicamente e lançá-los ao fogo. Foi exatamente da
representação dessa figura que veio a inspiração para a
caracterização de Satã como uma sinistra criatura com
chifres de bode ou até mesmo a própria cabeça do animal.
Em verdade, Baphomet não era um demônio
anticristão, mas uma entidade pagã “demonizada” pela
Igreja. Diversas outras práticas pagãs foram consideradas
68 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

demoníacas durante o processo de crescimento político


do Cristianismo na Europa da Idade Média. Uma dessas
foi o sacrifício de um bode durante as festas em louvor a
Dionísio. A partir desse ponto criou-se a mitologia cristã
de que o sacrifício deste animal seria o gesto requerido
para a expiação dos pecados do mundo:

Depois fez chegar a oferta do povo, e tomou o bode da


expiação do pecado, que era pelo povo, e o degolou, e
o preparou por expiação do pecado, como o primeiro.
(BÍBLIA SAGRADA; Levítico 9:15)
Então Arão fará chegar o bode, sobre o qual cair a sorte
pelo SENHOR, e o oferecerá para expiação do pecado
(Ibidem; 16;09)
Também oferecereis um bode para expiação do pecado, e
dois cordeiros de um ano por sacrifício pacífico. (Ibidem;
23:19)

Além dos crânios de bode, há também o de um


de um ser humano, posicionado bem acima da cabeça
de Ozzy Osbourne. Curiosamente, este também possui
grandes chifres retorcidos, similares aos de um bode, o
que por si só sugere que essa seria uma ossada de um...
demônio. Torna-se evidente que todos esses elementos
que adornam o trono onde senta o cantor remetem ao
campo semântico do oculto e do demoníaco, fazendo do
trono presente na imagem uma espécie de assento de um
homem que seria praticante de rituais que estabelecessem
uma interconexão entre o elemento humano e o satânico.
Essa ligação entre esses dois planos é sugerida pelo topo
do trono, onde se vê um crânio de um bode em cima do
ser humano/demônio, posicionados exatamente na linha
da cabeça de Ozzy Osbourne. O alinhamento desses três
elementos sugere uma relação intrínseca entre o elemento
demoníaco (o bode e o misterioso crânio humano com
chifres) e o próprio cantor.
Deve-se atentar também para as vestimentas de Ozzy
Osbourne na referida imagem. O cantor usa um manto
amarrado com uma corda na cintura. Tal fato seria um mero
detalhe se não fosse pelo constante diálogo estabelecido
entre as construções imagéticas do artista e o universo
religioso, mesmo que seja uma relação marcada por tensão
A
intertextualidade em prol de uma estética da transgressão... 69

ou oposição. A imagem do manto carrega consigo alguma


espécie de representação religiosa em diversas culturas.
Essa vestimenta é para o monge ou a monja um indicativo
simbólico de seu isolamento do restante do mundo e de
seus votos a Deus. Vestir o manto nesse caso representa “a
retirada para dentro de si mesmo a para junto de Deus,
a consequente separação do mundo e de suas tentações
e a renúncia aos instintos materiais” (CHEVALIER;
GHEERBRANT, 2006, p. 589). É considerado, além de
uma entrega completa ao universo sagrado, um sinal de
escolha voluntária pelo caminho da sabedoria. Ainda no
campo semântico da religiosidade cristã, diversas imagens
de santos e até do próprio Cristo mostram essas figuras
trajando um manto, em geral, marcado por simplicidade,
sem luxo, o que seria um óbvio sinal de humildade.
O manto que Ozzy Osbourne veste na capa de No
rest for the Wicked segue esse padrão. O traço que torna
mais evidente o diálogo com o universo cristão é o próprio
título do álbum, que faz referência direta a um versículo
da Bíblia que diz: There is no rest for the wicked´, says the Lord
(BIBLEHUB; Isaiah 57: 2011). O que se percebe na referida
imagem é o emprego de uma série de referências religiosas
sob um viés desconstrutor. Se o elemento “trono” legitima
o caráter divino do rei, aqui se tem um trono marcado
por um caráter demoníaco. O versículo que dá nome
ao disco, logo, sugeriria que o personagem encarnado
pelo cantor na capa do disco seria uma representação
metonímica de todos os “ímpios sem paz” condenados
por Deus. Seguindo o viés da desconstrução do discurso
religioso, pode-se até afirmar que as três crianças presentes
na capa exercem um papel determinante. O elemento
infantil está intimamente ligado a uma conotação de
inocência, de um estado anterior ao pecado, uma ideia
cara ao pensamento cristão por se tratar de uma fase da
vida humana anterior ao desenvolvimento da sexualidade.
Ainda sobre a abordagem cristã da infância, há na Bíblia
referências diretas às crianças como os seres mais dignos
de adentrarem o reino dos céus, como: “[...] qualquer
11
“Não há paz alguma para os um que não receber o reino de Deus como uma criança,
ímpios, diz o Senhor” (BÍBLIA
SAGRADA, Livro de Isaías,
não entrará nele” (BÍBLIA SAGRADA, Lucas, 18:17).
48: 22). Inclusive, deve-se lembrar que, na tradição cristã, os anjos
70 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

são comumente representados como crianças.


Considerando esses fatos, pode-se encarar a
presença das crianças na imagem como um esvaziamento
dessa mitificação cristã da infância. Vê-se que as meninas
presentes na capa vestem-se como maltrapilhas e têm os
cabelos despenteados, imprimindo-lhes um aspecto sujo.
Fica implícito que elas são tão “ímpias” quanto o “rei”
sentado no trono, como se fossem sua “prole” ou suas
“jovens súditas”. Considerando os elementos presentes na
capa de No rest for the Wicked que imprimem sobre Ozzy
Osbourne a imagem de uma figura de liderança de cunho
religioso (o trono e o manto) e, ao mesmo tempo, tendo
em mente a inversão do paradigma cristão presente na
capa, poderia se afirmar que o cantor encarna a imagem
de uma espécie de “Messias do Mal”. Essa interpretação,
além de ser coerente com a inversão dos signos religiosos
na imagem, faria dessa fotografia uma representação
às avessas de pinturas de Jesus Cristo na presença de
crianças, imagens essas recorrentes na tradição cristã que,
por sua vez, fazem uma alusão a um versículo da Bíblia em
específico: “[...] Jesus, porém, chamou-as e disse:/Vinde
a mim as crianças, que o reino dos céus é daqueles que
se parecem com elas.”(BÍBLIA SAGRADA, 18:15-16).
Essa caracterização da figura de Ozzy Osbourne como um
“Cristo às avessas” se mostra mais explícita em outras de
suas imagens promocionais:

[Figura 4:Capa do álbum Down to Earth,


de Ozzy Osbourne, 2001]
A
intertextualidade em prol de uma estética da transgressão... 71

[Figura 5: Christ, pôster de Ozzy Osbourne, 2010]

Nas imagens em questão, respectivamente datadas de


2001 e 2010, nota-se um claro intertexto com a iconografia
de Jesus Cristo, mais especificamente, no momento de sua
crucificação, o que é perceptível pela posição dos braços
do cantor. No caso da Figura 4, capa do disco Down to
Earth, percebe-se ao longo do corpo de Ozzy uma aura
cruciforme. Um exame atento da imagem revela que nos
pulsos e no pescoço do cantor há grilhões que o prendem
à cruz. Mas o ponto que chama mais a atenção é a escolha
de cores presentes na fotografia, privilegiando tons negros
e azulados. A opção por essas tonalidades justifica-se pela
maneira como é representada a figura de Ozzy, com seus
ossos à mostra através de sua pele, o que torna essa capa
um “raio-x de um messias crucificado”. Todavia, ainda
que boa parte da formação óssea do cantor esteja visível,
há partes de sua epiderme que estão presentes nessa
radiografia, como suas tatuagens.
Outra característica digna de nota é a cabeça
tripartida do cantor, com uma face central que mistura
típicos elementos de um crânio (vide a ausência de
um nariz) com outros de uma face “normal” (os olhos,
mesmo que quase que totalmente engolidos pelas negras
e exageradas órbitas oculares). As cabeças laterais de
Ozzy gritam, o que imprime a elas um tom de desespero.
Sabendo que o propósito de uma radiografia é mostrar o
interior de uma pessoa, pode-se inferir que o raio-x desse
72 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

messias da confusão, além de sua constituição óssea, exibe


sua loucura (representada pelas três cabeças, sendo que as
duas em desespero podem, simbolicamente, representar
o conflito trazido pela insanidade, as “outras vozes” que
falam em sua mente) e suas tatuagens, uma das “marcas
registradas” do cantor. Os crucifixos ostentados por Ozzy
Osbourne são mais um elemento que imediatamente
remetem à figura de Jesus Cristo.
Em relação à Figura 5, uma foto promocional
veiculada no formato de um pôster durante a divulgação
do disco Scream, destaca-se um objeto sobre a cabeça do
cantor: uma réplica da coroa de espinhos, feita de material
pouco definível, com formas pontiagudas e retorcidas.
Nesse ponto, os cabelos compridos de Ozzy Osbourne
auxiliam bastante na construção intertextual, já que todas
as representações iconográficas feitas de Jesus Cristo o
retratam com cabelos longos. Nota-se a presença de signos
que constroem um tom sombrio, como as largas roupas
negras (em particular, um sobretudo, que lembra um
manto, elemento já discutido) e o já comentado recurso
da maquiagem negra em torno dos olhos. A intensa
iluminação de cor vermelha é também um ponto digno de
nota, pois, dentre, suas muitas simbologias (CHEVALIER;
GHEERBRANT, 2006, p. 944) há aquela que associa
essa tonalidade ao campo semântico do demoníaco, por
ser uma cor representativa do fogo. A tradição ocidental
cristã construiu a imagem do reino do inferno como um
local “onde o fogo nunca se apaga” (BÍBLIA SAGRADA,
Marcos, 9: 43). Também há na Bíblia associações entre essa
cor e o pecado: (...) “Quando vossos pecados forem como
o escarlate/Como neve eles embranquecerão/Quando
eles forem vermelhos como a púrpura/Como lã tornar-se-
ão” (BÍBLIA SAGRADA, Isaías, 1: 18).
Dessa forma, essa imagem, por mostrar um Ozzy
Osbourne “crucificado”, traz consigo todas as acepções
tradicionais recorrentes ao campo semântico do
messianismo, como o tom de adoração em torno de sua
figura, a necessidade que seus seguidores têm dele, a crença
do retorno messiânico e, evidentemente, o sacrifício.
Este último em particular pode ser lido na biografia do
artista, especialmente em episódios envolvendo protestos
A
intertextualidade em prol de uma estética da transgressão... 73

por parte de grupos religiosos contra a sua música e sua


figura. Esse intertexto com o messianismo cristão também
se faz presente em versos de canções de Ozzy, como: Look
at yoursely/instead of looking at me/With accusation in your
eyes/Do you want me crucified for my profanity/ (...)/ If you
think you´re without sin/ be the first to cast the Stone (You´re
no Different, em OZZY OSBOURNE, 1983: 02). 12
Percebe-se em You´re no different o emprego de
elementos do discurso religioso, como a dicotomia
sagrado versus profano para definir, a relação da sociedade
contra Ozzy Osbourne, respectivamente. A associação
entre a figura de Jesus Cristo com o martirizado eu-lírico
da canção fica evidente com a menção das intenções
dos outros em crucificá-lo, além da referência explícita
à resposta de Jesus Cristo a aqueles que lhe indagaram
sobre o que deveria ser feito com uma mulher adúltera,
cercada por uma pequena multidão ávida para apedrejá-
la: “Aquele dentre vós que se considera sem pecado que
seja o primeiro a atirar a pedra” (BÍBLIA SAGRADA,
João, VIII, 3: 11). Levando-se em conta que, de um modo
geral, a subjetividade estética construída nas canções de
Ozzy Osbourne possui uma forte carga autobiográfica
(ou seja, um caso de aproximação explícita entre o sujeito
poético e seu autor), pode-se afirmar que os versos dessa
canção criam para o cantor a identidade de uma espécie
de “Messias do Metal”.
Ainda, deve-se mencionar que, na referida passagem
do Evangelho segundo João, encontra-se uma significativa
representação da imagem de Cristo enquanto desconstrutor
de paradigmas sociais. De acordo com o texto bíblico, o
ato de apedrejamento público de uma mulher adúltera
fazia parte da lei deixada por Moisés. Logo, o episódio
em que Jesus Cristo desafia aqueles que se consideravam
limpos de quaisquer pecados a lançarem a primeira pedra
pode ser lido mais do que apenas uma crítica à hipocrisia
12
“Olhe para você mesmo /
Ao invés de olhar para mim/ de se tentar estabelecer um julgamento moral de outra
Com acusação no olhar/Você pessoa. Há, em verdade, uma clara desconstrução de um
me quer crucificado Por ser
profano/ Se você se considera discurso moral institucional vigente, pois, afinal, Cristo
sem pecado /Seja o primeiro se opõe a um código que rege as relações interpessoais
a atirar a pedra” (“Você
não é diferente”, em OZZY
de seu tempo, um discurso propagado pelos fariseus,
OSBOURNE, 1983:02). então detentores de grande poder político. Dessa forma,
74 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

o intertexto estabelecido na canção de Ozzy Osbourne


com essa passagem bíblica associa ao cantor um dos traços
mais marcantes da figura de Jesus Cristo: o caráter de
transgressão às verdades proferidas pelas instituições de
poder.
Tal construção identitária de cunho messiânico
corrobora a mecânica de culto à personalidade recorrente
na produção da imagem pública de Ozzy Osbourne,
associando-o a diversos signos pertencentes a um universo
de figuras de autoridade (o General, o Monarca), de
patriarcalidade (o “Padrinho”/ “Chefão”) e/ou de
religiosidade (o Messias). Além de tais alusões fomentarem
uma nítida estética da adoração em torno da figura do
cantor, cada uma delas também vincula a ele características
específicas determinantes de sua constituição. É o caso da
ideia de poder associada à figura do general veterano; da
soberania atrelada ao monarca em seu trono e, no caso
do messias, de sua “missão divina” de salvar os demais
homens, mesmo que através de sua martirização e
subsequente morte. Dessa maneira, vê-se como uma série
de recursos intertextuais, veiculados em diferentes mídias,
permitem que Ozzy Osbourne (enquanto figura midiática)
se aproprie de discursos canônicos/tradicionais, de forma
que, através de releituras, associações, esvaziamentos e/
ou desconstruções, possa estabelecer uma Estética da
Transgressão como o alicerce-mor de um culto à sua
personalidade.

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Duração de 42:56.
______.The Ultimate Sin. USA: Epic/CBS, 1985. Duração de
40:59.

Videografia

DON´T BLAME ME: THE TALES OF OZZY OSBOURNE.


EUA: Epic Music Video Inc.Direção e Produção de BRIEN,
Jeb. EUA: 1991.Duração de 90 min.
THE ULTIMATE OZZY. Produção e direção de OZZY
OSBOURNE MANAGEMENT INC. USA:Epic/CBS Music
Video, 1986. Duração de 80 min.
TRIUMPH DES WILLENS. Produção e direção de
RIEFENSTAHL, Leni. Alemanha:Universum Film AG, 1935.
Duração de 114 min.
78 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

Fotografia

Figura 1: Foto promocional oficial 2010. Fotografia por Jennifer


Tzar. Disponível em <www.ozzy.com>. Acesso em 19 mar. 2013.
Figura 2: “The GodFather of Metal”. Foto promocional, 2011.
Direção de arte e fotografia por Jennifer Tzar. Disponível em
<www.ozzy.com>. Acesso em 20 mar. 2013.
Figura 3: Capa do álbum No Rest for the Wicked (OZZY
OSBOURNE, 1988). Design e Arte por JOULE, Steve.
Maquiagem por CANNON, Greg. Fotografia por COSTELO,
Fin, HARRISON, Tony
Figura 4: Capa do álbum Down to Earth, 2001. Direção de Arte
por David Coleman. Fotografia de Nitin Vadukul.
Figura 5: Christ. Pôster de Ozzy Osbourne, 2010. Créditos
da imagem pertencentes a Ozzy Osbourne Management.
Disponível em <www.ozzy.com>. Acesso em 02 mar. 2013.
79

Da literatura ao cinema, traduzindo


sobre restos de linguagens
João Manuel dos Santos Cunha*

Resumo: Desde o estabelecimento do cinema, as ligações entre


literatura e a nova arte vêm sendo detectadas. Na verdade,
ainda que amplamente pensados como constructos diferentes,
eles são naturalmente propícios à linguagem. Se atentarmos
para uma certa história cultural dessas relações, no entanto,
verificaremos que, geralmente, ela foi feita de segregações.
Era essa a moldura vigente até o desenvolvimento de teorias
semiológicas que viriam a afinar o estudo das relações entre
linguagens, no contexto da revisão pós-estruturalista, chegando
às teorias da intermidialidade contemporâneas. No âmbito de
um recente e produtivo comparatismo indisciplinado, é preciso
reconhecer que críticos e teóricos “antigos”, operando em
diversos campos do conhecimento, contribuíram com ideias
que repercutem ainda hoje, no quadro de uma compreensão
totalizante que não considera limites entre textualidades
fílmicas e literárias. Essa é a constatação examinada neste
ensaio, aplicada ao tema da tradução interlinguagens.
Palavras-Chave: literatura e cinema, literatura comparada,
intertextualidade

Abstract: Since the establishment of cinema, the existence of


connecting points between literature and the newer art has been
pointed out. In fact, though widely thought of as being different
things, they are naturally open to the work of language. If we
look at a certain cultural history of these relations, however, we
find that, more often than not, it has been one of segregation.
That was the framing that existed until the development of
semiotic theories refining the study of the relations between
languages in the context of poststructuralist approaches, which
* Universidade Federal de culminated in the contemporary creation of theories dealing
Pelotas – UFPel with intermediality. As part of a recent and productive trend
80 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

toward the undisciplining of comparativism, we must recognize


that “traditional” critics and theorists operating in various
fields of knowledge have also contributed ideas that resonate
even today as part of a more totalizing understanding that
ignores the boundaries between literary and filmic textualities.
This text is an attempt to discuss those notions, as applied to
the theme of intersemiotic translation.
Keywords: literature and cinema, comparative literature,
intertextuality

Refletindo sobre a supervivência das imagens,


Georges Didi-Huberman, em Sobrevivência dos vaga-
lumes, considera que “a imaginação – esse mecanismo
produtor de imagens para o pensamento – nos mostra o
modo pelo qual o Outrora encontra, aí, o nosso Agora
para se liberarem constelações ricas de Futuro” (2011,
p. 61). Ainda que recortada do denso ensaio em que o
historiador da arte interroga extensivamente a história
das imagens e do pensamento, conectando-se com
práticas e ideias de um vasto conjunto de artistas, filósofos
e escritores, como Pier Paolo Pasolini, Walter Benjamin
ou Giorgio Agamben, a assertiva pode ser tomada como
fundamento para se pensar igualmente a permanência da
linguagem, considerada como inerente ao pensamento
e à imagem. Tomada assim, no contexto de um tempo
em que, segundo o próprio Didi-Huberman, “o valor da
experiência caiu de cotação” (2011, p. 126), a metáfora
da imagem como a luz que aparece, desaparece, reaparece
e redesaparece incessantemente, sobrevivendo, como a
frágil luminescência dos pirilampos, estimula a reflexão
sobre o tópico da história do pensamento teórico-crítico
no quadro das conexões entre as linguagens da literatura
e do cinema. É essa hipótese que anima a reflexão aqui
desenvolvida, com investimento na recuperação de
imagens-pensamento estatuídas desde Serguei Eisenstein,
George Bluestone, Pier Paolo Pasolini, Christian Metz e
Peter Wollen, chegando a Jacques Derrida e Robert Stam
e, bem recentemente, a Evando Nascimento.
Muito antes do desenvolvimento das teorias que
viriam a afinar a metodologia de aproximação dessas
linguagens, a partir dos anos sessenta – no contexto da
Da
literatura ao cinema, traduzindo sobre restos de linguagem 81

revisão pós-estruturalista –, no entanto, críticos e teóricos


de diversos campos do conhecimento contribuíram com
ideias que sobrevivem − num continuum ainda que
modulado por intermitências. Alguns desses constructos
repercutem ainda hoje, na moldura de uma compreensão
totalizante e na esteira de abordagens que consideram
a transcendência dos limites entre textualidades.
Reciclando postulações formalistas e mesmo de uma
“filmologia”1 sedimentada a partir da França, os estudos
literários e fílmicos, agora compreendidos como práticas
interdisciplinares que levam em conta condições
culturais, históricas e de recepção de textualidades,
podem, ainda, aproveitar contributos de uma “velha”
mas nada negligenciável abordagem das relações entre
literatura e cinema.
Do amplo arco teórico que contém essas
contribuições, recupero a de um “antigo” crítico, George
Bluestone, ativo desde os anos quarenta e autor de uma
obra que, em alguns aspectos, adiantou de muitos anos
pressupostos que hoje poderiam embasar uma possível
“teoria dos media”. Em 1957, ele publica Novels into
1
O termo foi
film: the metamorphosis of fiction into cinema, em que
institucionalizado a partir apresenta o seu entendimento para casos de “adaptação”
de proposição de Gilbert
Cohen-Séat, diretor da Revue
cinematográfica para textos literários. Nessa obra, ele
Internationale de Filmologie, defende a ideia incontornável de que livro e filme são
Ikon – Presses Universitaires objetos estruturados em meios formais completamente
de France (1947-1962),
criada por professores da diversos: o da imagem, no cinema, e o da palavra, na
Universidade da Sorbonne, literatura. O que se conforma, entretanto, na transposição
como Roger Caillois, Edgar
Morin e Roland Barthes, entre os dois meios, é a construção parafrásica, pela qual
para veicular resultados o cineasta “se constitui não somente como tradutor de
das investigações sobre a
nova disciplina, justamente
autor literário, mas autor de texto novo” (BLUESTONE,
denominada “filmologia”, 1957, p. 62, tradução minha).
a qual buscava estabelecer Ainda que algumas das conclusões de Bluestone
noções fundamentais e limites
do conhecimento sobre as tenham sido arguidas, principalmente com relação à
relações do cinema com valorização que ele faz do texto literário em detrimento
outros campos do pensamento
e da criação estética, como do fílmico, é forçoso reconhecer, no entanto, que,
psicologia e sociologia. A no conjunto dessas formalistas articulações pré-pós-
reflexão essencial sobre o tema
encontra-se em COHEN-
modernismo, há ideias que permaneceram e se mantém
SÉAT, Gilbert, Essai sur les ainda hoje no cerne da problematização sobre o tema
principes d’une philosophie du
cinéma. Introduction générale,
das “adaptações”. Uma delas é a de que, metaforizados
1946. em outros mas sendo ainda eles mesmos, figurados que
82 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

são em um outro meio e instalados em um outro tempo


e em um outro espaço, os personagens das narrativas
literárias, em trânsito para as telas dos cinemas, restam
vivos no imaginário tanto do leitor como do espectador,
como se fossem “heróis de lendas populares, apartados da
aventura da linguagem, vivendo uma vida mítica própria”
(BLUESTONE, 1957, p. 63, tradução minha).
Gosto de voltar a essa constatação do “antigo”
crítico norte-americano, quando me ponho a refletir sobre
o estatuto da narrativa e da consequente condição dos
personagens nessa movimentação entre espaços textuais,
eis que nela encontro material ainda rentável para a
discussão sobre as relações entre as linguagens literária
e fílmica, restritas ou não ao tema das “adaptações”
da literatura ao cinema. Esse é um dos aspectos de
uma questão que vem se constituindo como um tema
recorrente no atual quadro dos estudos comparados em
literatura e que abordarei na sequência.
Nos últimos anos tem se constituído uma zona
comum entre o campo dos estudos literários e o dos
estudos fílmicos: a dos “estudos de mídia”. Nessa recente
conjuntura, se examinados em intersecção, e para além
das impropriamente denominadas “adaptações fílmicas
para textos literários”, literatura e cinema compartilham
espaço fecundo para a análise textual comparativa.
Por outro lado, se considerarmos que esses meios
expressivos se inter-relacionam de modos diversos, no
contexto de um universo midiático bastante amplo, que
incluiria meios tão diferentes como televisão, jornal,
música popular, graphic novels, internet, histórias em
quadrinhos ou videojogos e artes visuais, pode-se pensar
que se configurariam como participantes de um campo
investigativo que, necessariamente, não elegeria apenas
objetos estéticos como corpus, apartando-se do paradigma
hermenêutico que caracterizou os estudos literários e
fílmicos até o último quartel do século XX. Poderiam
ser investigados, assim, em uma rede de processos
intermidiáticos, localizada no vasto campo das práticas
culturais. Sob essa estimativa, o reconhecimento de que
o complexo processo cinematográfico se efetiva numa
relação intermídias permite pensar o filme como objeto
Da
literatura ao cinema, traduzindo sobre restos de linguagem 83

cultural como outro qualquer, cuja natureza ultrapassa


a própria especificidade dos procedimentos técnicos2
inerentes à linguagem fílmica, para se constituir como
produto de práticas intersubjetivas como tantas outras,
inclusive a literária.
O estabelecimento da natureza dos meios expressivos
do cinema como sendo do domínio da “linguagem” e a
consequente constatação de que o filme conforma-se
como “texto”3 – construção teórica consolidada desde os
2
Uso os termos “processo” e estudos de Christian Metz, no final dos anos sessenta –
“procedimento” na acepção franqueou avanço efetivo para a aproximação de textos
proposta por Christian Metz;
“processo” diz respeito ao
literários e fílmicos em perspectiva pós-estruturalista.
amplo conjunto dos atos A reflexão do semiólogo sobre a natureza do processo
sociais, culturais, econômicos cinematográfico e dos procedimentos fílmicos possibilitou
etc., agenciados para a
produção do objeto filme; comparação de forma sistematizada, com rendimento
“procedimento”, ao exercício teórico-crítico que chancelou a ultrapassagem de
dos códigos e subcódigos
fílmicos que enformam a fronteiras disciplinares:
linguagem cinematográfica.
Assim, para ele, o “cinema é
fato da ordem do processo” e
O cinema não é uma língua, sem dúvida nenhuma, mas
o “filme”, do “procedimento”. pode ser considerado como uma linguagem, na medida
Para detalhes, ver: “O em que ordena elementos significativos no seio de
filme”/ “O cinema”; “Estudar
os filmes: dois caminhos combinações reguladas, diferentes daquelas praticadas
diferentes”, in: METZ, pelos idiomas e que tampouco decalcam a realidade.
Christian [1971] 1980, p.57-
104. Anos depois, André Assim, sendo uma linguagem, permite uma escrita, isto
Gaudreault usaria os mesmos é, o texto fílmico (METZ, [1971]1980, p. 338, grifos
dois vocábulos mas com
sentido diferente, no âmbito meus).
da tentativa de verificar a
paulatina construção da
própria linguagem do cinema,
A formulação de Metz repercutiu entre a crítica e a
considerando a evolução da teoria cinematográfica e a literária desde então, gerando
técnica narrativa durante profícuo aproveitamento para os estudos que se ocupam
as duas primeiras décadas
da história do cinema. Para das relações entre literatura e cinema, por investigadores
detalhes, ver: GAUDREAULT, como, na França, André Gaudreault (1988), Jeanne-
André, 1989.
3
A noção de texto fílmico, Marie Clerc (1993), Michel Serceau (1999) ou Francis
“eminentemente complexa, Vanoye (1989); na Alemanha, Peter Wollen (1984);
pode ser entendida como
uma rede de significações
e, na Itália, Pier Paolo Pasolini (1982). No Brasil, elas
múltiplas”, cf. MIMOSO- ecoaram nas articulações desenvolvidas pioneiramente
RUIZ, Duarte, 1989, p.235; por Haroldo de Campos (1969) e por Julio Plaza (1987),
ou, em outra acepção, “o
resultado provisoriamente bem como, mais recentemente, em Evando Nascimento
‘parado’ do trabalho com (2002, 2013), por exemplo, quando pesquisadores como
códigos: isto é, o filme”. Cf.
METZ, Christian, 1980, p. esses pensaram a questão da tradução intersemiótica e
338. o problema da intraduzibilidade do signo estético entre
84 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

línguas e entre linguagens. No amplo quadro dos estudos


sobre “adaptação fílmica para textos literários”, é preciso
ainda considerar a contribuição de Linda Hutcheon,
investigadora canadense, em livro publicado em 2006 e
recentemente traduzido no Brasil com o título de Uma
teoria da adaptação (2011).
Em Peter Wollen, muito antes que se configurasse
uma possível “teoria da intermidialidade”, mas na esteira
dos estudos de Metz, encontramos a seguinte constatação
sobre a natureza da linguagem do cinema, vista em relação
com a de outras linguagens:

[...] a linguagem ou a semiótica do cinema compreende,


assim como a linguagem verbal, não só o indexal e o
icônico, mas também o simbólico. Na verdade, tendo
em consideração as origens do cinema, marcadamente
mistas e impuras, seria espantoso que fosse de outro
modo. O cinema não só se desenvolveu tecnicamente
a partir da lanterna mágica, do daguerreótipo e outros
instrumentos semelhantes – a sua história do realismo
–, mas também a partir da banda desenhada, dos
espetáculos do Wild West, dos autômatos, dos romances
de cordel, dos melodramas, da magia – a sua história de
narrativa e do maravilhoso (WOLLEN, 1984, p. 153).

Tais aportes consideraram intersecções do cinema


com a linguística e a literatura, imprimindo em seus
fundamentos teorizações surgidas ao tempo em que
o pensamento clássico sobre o cinema nos anos vinte
apontava para a natureza impura e híbrida do processo
fílmico. Em Serguei Eisenstein, notadamente, já se
encontrava discutida e demonstrada de forma clara essa
condição, no período em que o teórico e cineasta russo
desenvolveu o conceito de “cinematismo”. Foi a partir da
metodização dos princípios da montagem de planos, que
ele articulou a noção de “cinematismo”. A concepção
de “montagem”, aplicada tecnicamente ao cinema,
é construída por ele como uma possibilidade natural
da percepção do mundo pelo homem, encontrando-
se presente na relação direta do olhar humano sobre a
Da
literatura ao cinema, traduzindo sobre restos de linguagem 85

4
Na esteira dessa articulação realidade, mas também desenvolvida pelas linguagens
semiológica einsteiniana, é artísticas desde sempre.4
importante resgatar a visão de
um escritor brasileiro que, nos Sua atividade teórica, concomitante à da criação
anos dez do século XX, chegou de filmes, evoca a pintura de Leonardo da Vinci, El
à conclusão semelhante
sobre a natureza das imagens Greco, Toulouse-Lautrec; a escultura de Bernini e Rodin;
fílmicas em sua relação com bem como o teatro Kabuki, as representações circenses
o olhar do homem. O carioca
João do Rio (1881-1921) via e do music hall, e a música de Debussy e Scriabin, para
o “cinematographo” como aproximar o cinema de outras textualidades. Para refletir
“o arrolador da vida atual,
como a grande história visual sobre a natureza cinemática da relação do sujeito com
do mundo”. Em crônica o mundo, ele invoca ainda a qualidade cinemática na
escrita em 1908 e publicada
como “Introdução” ao livro literatura de Máximo Gorki, Leon Tolstoi, Charles
Cinematógrafo: crônicas cariocas Dickens e James Joyce, além de apontar o componente
(primeira edição impressa em
Portugal como Cinematógrafo, pictórico das “imagens montadas” na formatação dos
Porto, Chardron, 1909), ele
constatava, pioneiramente,
ideogramas chineses e japoneses. Valendo-se de uma
que, “se a vida é um metodologia que evidenciava a prevalência de um “olhar
cinematógrafo colossal,
cada homem tem no crânio cinematográfico sobre o mundo, Eisenstein recorre, ainda,
um cinematógrafo de que aos murais de Orozco, à gravura de Utamaro e ao cubismo
o operador é a imaginação.
Basta fechar os olhos e as de Picasso. Afirma, assim, a essência de um cinema que se
fitas correm no cortical com expressa, como outras linguagens artísticas, pelo “modo
uma velocidade inacreditável.
Tudo quanto o ser humano cinemático de ver o mundo, de estruturar o tempo, de
realizou não passa de uma narrar uma história, ligando uma experiência à seguinte”
reprodução ampliada da
sua própria máquina e das (EISENSTEIN, 1980, p. 8, tradução minha).
necessidades instintivas dessa O termo “cinematismo” (cinématisme) significava
máquina. O cinematógrafo
é uma delas”. Cf. RIO, para ele, então, a ideia de que “existem formas fílmicas
João do, Cinematógrafo: fora do cinematográfico” (1980, p. 9); ou seja, criou o
crônicas cariocas, 2009, p.4-5.
Disponível em: <http://www. neologismo e o empregava para designar um movimento
academia.org.br/antigo/media/ de retroação conceitual e analítica do cinema sobre as
Cinematografo>. Acesso em:
20 set. 2012. artes tradicionalmente consolidadas. Ou, ainda: para
5
Eisenstein chegou a
experimentar a adaptação
o metteur en scène do teatro de vanguarda e cineasta
de obra literária, quando, que também pensou o cinema que praticava – além de
em 1930, em passagem pelos
Estados Unidos, roteirizou fotógrafo, roteirista, cenarista, desenhista e pintor –, o
o romance Uma tragédia mundo apreendido pelo olhar do sujeito, traduzido em
americana (An american
tragedy, Theodore Dreiser, conexão direta, é cinema antes e apesar de o cinema
1925) para os estúdios da ser uma possibilidade de linguagem técnica e estética.
Paramount, filme que não
chegou a dirigir; em 1951, É esse termo cunhado ainda nos anos vinte que dará
o romance foi filmado por título a um livro que ele preparou em vida, mas que só
George Stevens com o título
de A place in the sun (no Brasil, seria editado postumamente, em 1980, com o título de
Um lugar ao sol). Na Rússia, Cinématisme – peinture et cinéma. Ainda que não tenha
trabalhou com o escritor
Isaac Babel no roteiro de O tratado especificamente do tema da tradução de obras
prado de Beijin, em 1935. Cf. literárias para o cinema,5 sua concepção do conjunto
EISENSTEIN, Serguei, 1987,
p. 355. das linguagens como sendo a manifestação de uma
86 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

“cinematografia sem cinema” colocaria, necessariamente,


a literatura e o cinema num mesmo nível de “escrita”
estética.
Assim, postulando uma espécie de “estética
geral”, Eisenstein define não só um método analítico-
comparativo de obras consideradas na totalidade da
cultura, como incorpora à sua teoria fílmica constructos
de outros meios expressivos. Essa visada ultrapassaria
a própria condição de arte-síntese do cinema para se
constituir como uma possibilidade de compreensão
do lugar e do funcionamento das imagens no mundo
cultural. O conjunto dessas especulações corresponderia,
assim, aos fundamentos do que atualmente se postula
como sendo uma provável “teoria da intermidialidade”,
inserida, naturalmente, num possível campo dos “estudos
de mídia”.
Pier Paolo Pasolini, cineasta e escritor, refletindo
sobre conceitos como “língua” e “linguagem”, no âmbito
do cinema e da literatura – ao mesmo tempo em que
Christian Metz articulava uma “semiologia do filme
como um estudo dos discursos e dos textos” ([1969]
1980, p.11) –, afirma que “o cinema se constitui como
uma linguagem da realidade” ([1965] 1982, p. 187). Em
conferência proferida no Festival de Cinema de Pesaro,
em 1965, depois publicada como “Cinema de poesia”, em
Empirismo herege (1982), ele defende a tese de que seria
possível pensar sobre a linguagem dos filmes no mesmo
contexto linguístico da distinção entre prosa e poesia
na literatura. É nesse texto que propõe a denominação
de “língua da prosa” e “língua da poesia” – tópico que
veio a se constituir como um dos mais valorizados e
mal compreendidos temas abordados no ensaio – para
caracterizar os procedimentos cinematográficos que
ele identificava em certo tipo de cinema da época. A
“língua da poesia” seria aquela em que o espectador
pode perceber a câmera em exercício dos procedimentos
fílmicos, como, por exemplo, em travellings ou vazamentos
de luz e, principalmente, no enquadramento por plano-
sequência, pelo qual se elide corte e montagem de
planos. Já na “língua da prosa”, a presença do cineasta/
narrador por detrás da filmadora não seria percebida. O
Da
literatura ao cinema, traduzindo sobre restos de linguagem 87

uso das palavras “prosa” e “poesia”, emprestados da teoria


literária, como se vê, acabam por definir procedimentos
formais específicos do âmbito da cinematografia e não
apontam para uma necessária articulação comparativa
com aqueles da literatura: “cinema de poesia” não
corresponderia à “literatura em verso”; “cinema de prosa”
não seria o equivalente de “literatura em prosa”.
Essa articulação, no entanto, acabou por se
constituir como ponto de partida para o pensamento
sobre a cinematografia vinculada não só a um cinema
dito “de arte” − ou aos “cinemas novos” a partir dos anos
cinquenta −, como ao cinema “industrial”. Na atual
conjuntura de produção e circulação de filmes – já vistos
como produtos de um “hipercinema” (LIPOVETSKY,
SERROY, [2007] 2009) −, distribuídos massivamente
tendo em vista o circuito comercial de salas de cinema e
veículos como a televisão e outros meios digitais, o debate
“poesia-prosa” instalado sob o viés da tese de Pasolini
perdeu tanto em consistência como em produtividade.
Não é meu objetivo aprofundar aqui a discussão sobre
esse ângulo da “semiologia pasoliniana”: recupero-a com
o intuito de atualizar aspecto que interessa para pensar
o sentido de língua e linguagem no contexto atual dos
estudos comparados em literatura e cinema, fulcrando a
questão no tema da tradução interlinguagens. Importa,
para isso, o sentido da relação que Pasolini, no ensaio
referido, estabelece entre cinema e realidade. Sendo uma
língua, como ele postula, o cinema se exercita como uma
“língua escrita da realidade” (1980, p. 186). Para ele,
a realidade já é cinema, eis que se constitui como um
“plano-sequência infinito”. Ou seja, o autor-cineasta o
que faz é “escrever” a própria realidade com a “língua do
cinema”. Pela via dessa faculdade, o cinema possibilitaria
a tradução do mundo por meio da montagem de planos
enquadrados do real, estatuto mesmo da linguagem
cinematográfica. É a montagem, portanto, a operação
criadora que aporta sentido para uma realidade que, sob
essa contingência, pode ser também pensada como sendo
“linguagem”. O que se pode perceber, então, em Pasolini,
é a permanência do pensamento-imagem de Eisenstein,
tal como ele o expressou em Cinématisme ([1929], 1980).
88 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

Partindo da concepção de linguagem em Pasolini, o


norte-americano Robert Stam conclui, reafirmando a tese
do italiano, que tanto a realidade quanto sua representação
em filme são discursivas. O que lhe permite atestar que
“[...] a relação entre o cinema e o mundo é de tradução.
A realidade é ‘o discurso das coisas’ que o cinema traduz
em um discurso de imagens, o qual Pasolini designou
como ‘a linguagem escrita da realidade’” (STAM, 2003,
p.133). A conclusão de Pasolini sobre o mundo ser “um
cinema em estado de natureza”, (1982, p. 186) funda-
se na ideia de que o cinema é língua porque possui uma
dupla articulação, tal como as línguas verbais.6 Nesse
ponto, Pasolini distancia-se de Christian Metz, o qual,
como vimos, ao localizar na faculdade da linguagem do
cinema a sua possibilidade de produzir textos, descarta
justamente a sua qualidade de língua (METZ, [1969]
1980, p. 337-338). Consequentemente, para Pasolini,
é o cinema – como “língua escrita” e como processo
de linguagem – que permite a legibilidade do mundo;
e o discurso expressivo possibilitado pela montagem
cinematográfica é o que possibilitaria a apreensão do
significado dessa realidade.
No momento em que, quase cinco décadas depois das
teses de Pasolini (o texto em referência veio à luz em 1965)
e mais de oitenta anos após as teorias “multimidiáticas”
avant la lettre de Eisentein (circa 1929), ainda é intensa
e produtiva a discussão sobre a relação entre as duas
linguagens. Ainda que o debate atual se desenvolva sob
a égide de uma provável “teoria da intermidialidade”, é
impossível não reconhecer nas postulações nada ingênuas
– e, na essência, coincidentes – desses pensadores a ideia
incontornável de que literatura e cinema, para além de
6
O ponto de referência teórico
para essa formulação de
traduzirem o mundo em discurso, o que fazem é produzir Pasolini é a distinção proposta
texto do mundo. Estabelece-se, assim, uma relação que em 1960 pelo linguista
francês André Martinet entre
coloca essas textualidades, tanto quanto o produto de os elementos mínimos de
outras linguagens que buscam entender a “vida real”, no significação (monemas) e os da
articulação (fonemas), os quais
mesmo nível de traduções do mundo que se integram na possibilitam o reconhecimento
amplitude de uma rede que se tece “entre meios” e na da dupla articulação numa
língua. Sobre a “dupla
amplitude da cultura. articulação das línguas”, ver:
Quando consideramos essas premissas, podemos MARTINET, André, Elementos
pensar texto literário e texto fílmico como objetos de linguística geral, 1985.
Da
literatura ao cinema, traduzindo sobre restos de linguagem 89

imbricados num vasto campo do conhecimento que


poderia ser denominado de “estudos textuais” e que
abrangeria, naturalmente, de forma indistinta, a produção
cultural gerada no entrecruzamento de meios expressivos
e em circulação intermeios. Tais condições permitem
o equacionamento de uma metodologia aplicável,
pontualmente, ao exercício da interpretação sob o viés da
tradução interlinguagens.
Do ponto de vista do pensamento que tem sustentado
metodologicamente o comparatismo literário, o que se
constata é que, desde a articulação e a sistematização
das chamadas “teorias da intertextualidade” (Kristeva,
pós-Bakhtin; Genette, pós-Kristeva)7, o tema das
relações de produção e recepção de textos transcendeu
o campo específico dos estudos linguísticos ou literários.
Localizando-se em contexto de saberes cooperativos,
esse fato permitiu que se invocasse a intersecção com
outras áreas disciplinares e do conhecimento em geral.
Consequentemente, a interdisciplinaridade deixou de
ser estratégia eletiva para se constituir como práxis
natural e incontornável para leitura de textos literários,
considerados na vasta dimensão da produção cultural.
Face a essa constatação, a obra literária passa a ser vista
como um produto da cultura e a literatura como uma
prática discursiva intersubjetiva como muitas outras. O
resultado é que a interdisciplinaridade perde também
sua especificidade, “uma vez que os estudos literários
passam a inscrever-se na esfera da cultura, marcada
justamente pela confluência de áreas diversas do saber”
(COUTINHO, 2011, p.24).
Atentando para o atual estado do pensamento
crítico e teórico sobre a produção e a recepção de
7
No desenvolvimento de sua textualidades culturais, estimadas as considerações que
“teoria da transtextualidade”, têm sustentado a discussão até aqui delineada, textos
Gérard Genette não trata
especificamente da relação
literários e textos fílmicos, então, devem ser pensados
entre textos literários e não mais em relação binária. Nessa contextura, recorte
fílmicos, mas cita essa possível
tradução transtextual, usando
metodológico importante tem sido o que permite examinar
o termo “transmodalização” essa condição a partir das chamadas “adaptações fílmicas
para se referir às adaptações para textos literários”. Esse exercício acadêmico tem se
teatrais ou cinematográficas
(GENETTE, [1982] 2006, constituído como um must no quadro do comparatismo
p. 40). contemporâneo e tem convocado em larga escala a
90 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

manifestação de outros constructos teóricos – como o


dos estudos de tradução, por exemplo, ou o dos estudos 8
O ensaio é versão ampliada
culturais. de intervenção intitulada
Traduzindo o intraduzível:
Em ensaio publicado recentemente,8 Evando entre literatura e filosofia,
Nascimento desenvolve reflexão atenta e elaboração apresentado pelo pesquisador
e discutido em mesa-redonda
fértil sobre a natureza da tradução não só entre línguas, constituída no Congresso
como, de forma ampla, entre linguagens, literárias ou da ABRALIC de 2011, da
qual participaram ainda
não. É desse texto que parto para pensar o tópico da Márcio Seligmann-Silva
adaptação como tradução interlinguagens, privilegiando (UNICAMP) e Mauricio
Cardozo (UFPR). Na ocasião,
esse aspecto para problematizar o fato já sedimentado Evando Nascimento (UFJF)
entre a crítica e a teoria de que “toda tradução implica refletiu sobre a natureza da
tradução não só entre línguas
interpretação” (NASCIMENTO, 2013, p.78). como, de forma ampla, entre
Um dos temas abordados por Nascimento, linguagens, incluindo outras
que não apenas a literária,
retomando articulação de Jacques Derrida, é, justamente, demonstrando que “a
a da natureza da tradução entre linguagens como uma sobrevida e a supervivência
dos textos (literários ou não
questão de interpretação. Ora, o que tem sido explorado dependem do idioma do
na análise da tradução intersemiótica da literatura para outro”, pensando a questão
da tradução como “o lugar da
o cinema é a condição preliminar do tradutor como verdadeira universalidade e
do cosmopolitismo, um lugar
intérprete do hipotexto. Ou seja, vigeria o pressuposto de trânsito entre culturas”.
de que, antes mesmo do exercício técnico tradutório – Dentre suas conclusões,
embasadas em Walter
criação de roteiro escrito para a posterior transposição Benjamin, Jacques Derrida,
em imagens cinematográficas – o que o tradutor faz é Goethe, Paul Ricoeur e
Haroldo de Campos, estavam
interpretar o texto literário, dele se apropriando para, as de que “o texto traduzido
a seguir, transcriá-lo por meio de um outro código, no é sempre um híbrido de pelo
menos duas culturas” e “o
exercício de uma outra linguagem, criando objeto novo tradutor é na verdade um
– o filme –, ainda que incontornavelmente ligado ao seu mediador de culturas”. Essas
ideias aparecem amplamente
hipotexto. Valendo-se da perspectiva derridiana, Evando discutidas em ensaio publicado
Nascimento introduz percuciente olhar sobre o tema, em 2013 – agora sob o título
de “A tradução incomparável”,
ao arguir o fato de que, já no exercício de interpretação, capítulo do livro – Ética e
está implicada a prática tradutória: o olhar que traduz o estética nos estudos literários −
que reúne os textos integrais
mundo em linguagem é que possibilita interpretação. Essa das intervenções realizadas
constatação permite que se pense o tópico da tradução em nas mesas-redondas e nas
palestras programadas no XII
contexto absolutamente amplo, mas ao mesmo tempo bem Congresso Internacional da
ABRALIC. Cf. anotações
preciso, em que o sujeito, como intérprete da realidade pessoais, material cedido pelo
(“o discurso das coisas” pasoliniano; o “cinematismo” próprio Evando Nascimento
na ocasião (2011), e que é
einsteiniano), já está posto como tradutor, eis que, o texto do qual parto para
ao enunciar o mundo, articula “ato de fala” e traduz o embasar a discussão elaborada
neste artigo, bem como de
mundo pela linguagem. Interpretar o mundo, então, seja texto disponível em: <http://
por meio de que língua ou linguagem for, será sempre um www.abralic.org.br/anais/
cong2011/AnaisOnline/pdf/
ato de tradução, produtor e condutor de sentido. programacao.pdf>. Acesso
Como se pode perceber, as constatações de em: 12 nov. 2012.
Da
literatura ao cinema, traduzindo sobre restos de linguagem 91

Nascimento nos convocam a pensar sobre o sentido


mesmo do termo tradução, quando examinamos o tema
das chamadas adaptações da literatura para o cinema ou
mesmo das traduções intersemióticas de forma ampla. O
mais evidente sentido para a palavra tradução, inclusive em
entrada de verbetes de dicionários da língua portuguesa, é
o de que “traduzir é passar para outra língua”, ou “transpor
de uma língua para outra”. Se atentarmos, no entanto,
para a origem etimológica do vocábulo, verificaremos
que tanto “traduzir” como os correlatos “tradução” e
“tradutor” têm origem no latim traducere ou transducere,
com a significação essencial de “fazer passar, pôr em outro
lugar”; ou seja, “conduzir, levar através de”; “conduzir
além”. São essas formas que se encontram também em
idiomas como francês, espanhol e italiano. Em português,
além dos termos “traduzir”, “tradução” e “tradutor”, existe
o registro de “trasladar”, “transladador” e “trasladação”,
com o mesmo significado e origem dos equivalentes em
língua inglesa e com a mesma acepção dos vocábulos
translator e translatoris: “aquele que leva para outro
lugar”. Em alemão, a origem do vocábulo correspondente
não é latina, mas o significado é praticamente o mesmo,
“traduzir”: übersetzen (über: “além, noutra parte”; setzen:
“pôr, colocar”). Nesse contexto de sutis mas determinantes
possibilidades de sentido, Evando Nascimento, pensando
em largo espectro o alcance do significado de “tradução”,
na esteira de Jacques Derrida, apresenta a oportunidade
para que se reflita sobre “a tradução como metáfora”:

[...] Mas o caso é que, tradicionalmente, aplicamos


mais o significado dicionarizado de tradução a sua
modalidade interlinguística, as outras seriam apenas
formas metafóricas de tradução. Todavia, justamente
o que interessa a Derrida é o valor de metáfora, quer
dizer, de transporte, de transferência e de translação
(translation) que se encontra em toda e qualquer
operação de sentido e de comunicação. Se “toda
interpretação é uma tradução”, mais do que um jogo de
palavras, isso quer dizer que toda interpretação, todo
ato de decifração sígnica implica [...] deslocamento
contextual, uma transferência ou translado de sentido
92 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

de um contexto a outro (NASCIMENTO, 2013, p. 83,


grifos do autor).9

“Conduzir de um lugar para outro”, “transferir”: é


essa a árdua tarefa do tradutor, a de conduzir textualidades
de um lugar a outro, sabendo, de antemão, que sempre
restará uma zona opaca ao final do trabalho, constituída
por aspectos que, forçosamente, se extraviaram na
transferência e geraram restos textuais. Quando se trata
da tradução entre sistemas de signos estéticos, como no
caso da transladação do literário ao fílmico, é certo que o
risco da perda – mas também o do ganho – é ainda maior.
E é isso o que potencializa o fato de que, nesse movimento
interlinguagens, fica implícita a natureza metafórica da
tradução, presente desde o primeiro ato tradutório: o do
olhar sobre o mundo. Nessa direção é que também aponta
Evando Nascimento, constatando que, na modalidade
de tradução intersemiótica, aquela que se faz entre
mais de um sistema de signos, “[...] transladar é perder
para poder ganhar novos sentidos e atributos, de uma
língua ou linguagem a outra, em perpétuo movimento
de comunicação tradutória, quer dizer, transferencial”
(NASCIMENTO, 2012, p. 13).
A tradução fílmica para textos literários tem
como resultado, portanto, uma construção híbrida,
resultado da mistura de discursos, de linguagens e de
meios organizados pelo tradutor-interpretador. Ainda
que seja possível balançar as inevitáveis perdas e os nada
desconsideráveis ganhos de sentido para as histórias
narradas, agrada-me pensar que compete também ao
tradutor fílmico – o responsável pela transladação de
discursos e pela relativização de meios expressivos – a 9
É nessa altura do ensaio
condução dos personagens de um a outro lugar ficcional. que Nascimento trata da
tradução e o “incomparável”,
Transferidos de seu lócus hipotextual, eles ganham uma afirmando que Derrida “não
outra vida em uma outra diegese. Figurados por meio deixou de ironizar o fato de
Jakobson nomear a tradução
de uma outra linguagem, são instalados em um outro interlinguística como ‘tradução
tempo e em um outro espaço. Traduzidos-metaforizados propriamente dita’, como se
as outras modalidades não
em outros, mas sendo ainda eles mesmos, restam como fossem tão tradutórias, quer
imagens sobreviventes. dizer, tão impróprias e quase
impossíveis, quanto essa...” (A
É para essa condição que já apontara George Bluestone tradução incomparável, 2013, p.
em sua já clássica conclusão sobre a sobrevivência das 83 et seq.).
Da
literatura ao cinema, traduzindo sobre restos de linguagem 93

personagens na passagem das folhas de papel em branco e


preto das narrativas literárias para o écran de luz e sombra
das salas de cinema. Constatação que permanece como
um dos fundamentos do pensamento sobre a tradução
entre linguagens, mesmo agora, no momento em que se
pensa no destino das personagens de papel em trânsito
para a luminescência das telas midiáticas na worldwide
web. Quando se busca localizar a fundação da história
das relações entre palavra literária e imagem fílmica,
constatamos, no entanto, que ela começa bem antes.
Atravessando o século vinte, a supervivência da imagem-
pensamento de Serguei Eisenstein, pirilampejando desde
os princípios do cinematógrafo, produz luz suficiente para
iluminar ainda hoje o pensamento sobre as relações entre
palavra e imagem. O que nos leva de volta à figuração
de Georges Didi-Huberman, pela qual ele postula que
a imaginação – “esse mecanismo produtor de imagens
para o pensamento” – possibilita, desde sempre, a via
pela qual o “Outrora encontra o Agora para se liberarem
constelações ricas de Futuro” (2011, p. 61).

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Da
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96 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013
97

Focos múltiplos: comparatismo e


mídia nas crônicas de xico sá

Luiz Carlos Santos Simon*

Resumo: As práticas comparatistas no Brasil têm sido


reavaliadas recentemente em debates que ganham espaço em
publicações eeventos da ABRALIC. Uma consequência desses
debates é a reclamação de que muitos trabalhos afastam-se
das tendências comparatistas e da revisão das proposições
teóricas presentes nas novas leituras de autores fundadores
da Literatura Comparada. Trazer à cena a crônica de Xico
Sá, com suas diversas alusões à cultura da mídia, é um passo
para diminuir distâncias entre as pesquisas contemporâneas
focalizadas também em textos literários contemporâneos e
alguns valores que são relevantes para a leitura comparatista.
Palavras-Chave: Literatura Comparada. Crônica. Cultura da
mídia. Xico Sá.

Abstract: Comparative practices in Brazil have been recently


re-evaluated in debates that take place in publications and
events of ABRALIC. One consequence of these debates is
the claim that many articles keep away from the comparative
tendencies and the review of theoretical propositions presented
in the new readings of foundational authors of Comparative
Literature. To bring to light Xico Sá’s chronicle, with its many
allusions to the media culture, is a step forward to diminish
distances between contemporary researches focused also on
contemporary literary texts and some values which are relevant
to the comparative reading.
Keywords: Comparative Literature. Chronicle. Media culture.
Xico Sá.

* Universidade Estadual de
Londrina (UEL).
98 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

As reflexões de pesquisadores brasileiros sobre


Literatura Comparada – algumas recentes, outras nem
tanto – são atravessadas com frequência por dois tópicos.
Um deles tem caráter histórico que muitas vezes se associa
a componentes de teorização: trata-se da releitura de textos
clássicos, fundadores da disciplina, com a observação
atenta das nuances teóricas e ideológicas que se agregaram
às diferentes proposições ao longo do tempo e oriundas de
lugares também muito diversos. São exemplos destacados
dessas iniciativas volumes publicados na última década do
século XX, como Literatura Comparada: textos fundadores,
organizado por Eduardo F. Coutinho e Tania Franco
Carvalhal (1994), e Literatura Comparada: história, teoria e
crítica, escrito por Sandra Nitrini (1997). Mais recentemente
ainda,a revisão da Literatura Comparada ganha, nos
estudos brasileiros, a companhia de inquietações sobre o
estatuto e sobre a situação contemporânea da disciplina
e da ABRALIC,materializando-se nas apresentações
de trabalhos nos congressos da associação, em textos
selecionados para os vários números da Revista Brasileira
de Literatura Comparada e outras iniciativas editoriais da
associação, em publicações dos autores já citados e de
outros como Rita Terezinha Schmidt, que organizou,
em 2010, a reunião de ensaios Sob o signo do presente:
intervenções comparatistas; Ivete Lara CamargosWalty,
que se deteve, em Centro, centros: literatura e literatura
comparada em discussão (2011), sobre a análise de artigos
incluídos na mencionada revista; e Marilene Weinhardt
(2013), que aborda, em texto incorporado ao livro Memórias
da Borborema: reflexões em torno de regional, os rumos da
disciplina, levando em consideração o tema proposto para
o encontro da ABRALIC realizado em 2012, em Campina
Grande, na Paraíba: a internacionalização do regional.
O segundo tópico não se distancia muito do
primeiro, uma vez que se trata de derivação do que
acabei de designar como “inquietações” quanto ao perfil
da Literatura Comparada e, no contexto brasileiro, das
práticas de pesquisa que se realizam sob essa denominação.
Refiro-me ao debate sobre uma suposta inadequação do
termo “Comparada” para adjetivar “Literatura”, polêmica
que se estenderia também ao nome da ABRALIC e a vários
Focos
múltiplos: comparativismo e mídia nas crônicas de Xico Sá 99

dos exercícios analíticos expostos nos congressos, em seus


anais e também nas revistas da associação. Não se deve
imaginar que esse incômodo assuma grandes proporções
nem que enseje um movimento organizado para propor
medidas radicais, como a alteração do nome da ABRALIC
para ABRALIT ou seleções rigorosas de trabalhos para
os eventos e publicações da associação, ainda que esse
rigor às vezes assuma lugar de destaque nas discussões. A
sugestão de novo nome para a ABRALIC, com a supressão
do adjetivo, ou mesmo da criação de uma nova associação,
até aparece, mas sem a exposição de muitos argumentos
e também sem ostensivas consequências e repercussões,
como, por exemplo, em texto escrito por Marisa Lajolo
(2005, p. 31): “por que será que não temos uma ABRALIT?”.
A consistência da ABRALIC acaba sendo o fundamento
da contestação dessa ideia, empreendida duas vezes por
José Luís Jobim, em publicações de 2006 e 2011. É curioso
– e também bastante saudável – verificar que tanto a ideia
de Lajolo quanto a reação de Jobim miram a necessidade
de uma representação política forte da área de Literatura,
no âmbito da defesa da pesquisa em estudos literários, e
de seu gerenciamento de aporte financeiro pelos órgãos
públicos nacionais. No entanto, o questionamento do
emprego da expressão “Literatura Comparada” para a
designação das atividades de pesquisa em nosso meio pode
gerar a desconfiança de que persiste o apego à ideia de
que as práticas comparatistas mais convencionais, como o
confronto entre textos literários pertencentes a diferentes
nacionalidades, ainda sobrevive como o emblema maior
da Literatura Comparada.
É evidente que todas as preocupações registradas
até aqui e seus desdobramentos em ensaios, guardadas as
devidas proporções, são de grande relevância para o debate
sobre a Literatura Comparada. O histórico da disciplina
conjugado com a interpretação e o acompanhamento das
recentes publicações da área, muitas delas internacionais,
são essenciais para a atualização dos estudos comparatistas
e para a formação de um arcabouço teórico igualmente
imprescindível para aquele que quer se munir de reflexões
avançadas que propiciem leituras amadurecidas dos textos
literários em geral. Deve-se considerar ainda que muitas
100 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

dessas publicações cumprem o papel de iniciação e de


garantia de oportunizar o acesso aos leitores: quantos dos
textos fundadores reunidos por Eduardo F. Coutinho e
Tania Franco Carvalhal não permaneceriam dispersos ou
restritos a livros esgotados ou ainda sem tradução para a
língua portuguesa, não fosse a iniciativa dos organizadores
do volume? Também no que diz respeito às constantes
reavaliações da ABRALIC e da produção de conhecimento
que ela abriga, é preciso reconhecer que se trata de prática
extremamente saudável para balizar os rumos da pesquisa
na área: trabalhos como os de Ivete Walty e Marilene
Weinhardt assumem a condição de parâmetros para que
não deixemos de perceber a dinâmica da organização da
associação e das atividades científicas que se manifestam
em seus congressos e suas publicações. Finalmente, mesmo
a discussão sobre a propriedade do uso da expressão
“Literatura Comparada” exerce a contribuição de suscitar
o exame contínuo do cotidiano de nossas pesquisas
comparatistas, seja na indagação dos modelos teóricos
empregados em cada trabalho apresentado nos eventos
e nas revistas, seja na análise do formato da associação
de estudos literários que almejamos, incluindo-se aí as
potencialidades políticas que podem derivar desse grupo
articulado.
O reconhecimento da grande importânciados
estudos em Literatura Comparada que se caracterizam
por diferentes naturezas não deve, contudo, obscurecer
determinadas questões levantadas no confronto dessas
práticas de pesquisa tão diversas entre si. Se há em muitas
das publicações citadas uma concentração específica sobre
os percursos da disciplina, suas variações metodológicas
e inclinações ideológicas ao longo do tempo e também
um olhar analítico voltado para a releitura da produção
ensaística – e aqui cabe esclarecer que a produção focalizada
na maioria das vezes é a dos estudiosos tradicionalmente
identificados com o comparatismo – que se veicula
na associação, é preciso perceber que a dimensão da
ABRALIC atingiu um grau quase inimaginável, como se
pode constatar pelo número de trabalhos apresentados nos
congressos. Aliás, talvez até seja o caso de problematizarmos
a situação nos seguintes termos: o que está em jogo é a
Focos
múltiplos: comparativismo e mídia nas crônicas de Xico Sá 101

dimensão da ABRALIC ou a dimensão dos congressos da


ABRALIC? Rita Terezinha Schmidt dispôs-se a enfrentar
a questão de avaliar essa “compatibilidade razoável entre
identidade e crescimento” (SCHMIDT, 2011, p. 266),
estabelecendo o contraste, a partir da coleta de dados
recentes, entre o número de associados e o número de
trabalhos inscritos para o congresso da associação. É uma
questão espinhosa até porque exigiria o exame minucioso
dos trabalhos apresentados, além da própria subjetividade
envolvida na demarcação de limites para o comparatismo
contemporâneo. De qualquer modo, a inquietação é
justificável, pois traz para o centro da discussão a reflexão
sobre a identidade da Literatura Comparada e de nossa
associação brasileira que adota esse nome, inclusive para
nos prevenirmos quanto ao risco de convivermos com um
abismo intelectual, científico e até bibliográfico: no mesmo
espaço, configurado pelos congressos e publicações da
associação, as afinidades entre as revisões do comparatismo
e trabalhos que ignoram tais contribuições podem estar se
tornando cada vez mais raras.
É nesse sentido que o diálogo entre práticas de
pesquisa tão distantes pode e deve ser estimulado. Uma das
formas de estreitar essa relação é valorizar o reconhecimento
de tendências recentes na Literatura Comparada, como
evidencia Eduardo F. Coutinho: “Agora, o interesse maior
do comparatista deslocou-se (...) da preocupação com a
natureza e função da literatura no plano internacional,
para a tentativa de compreensão das diversas contradições
da categoria do literário em diferentes culturas”
(COUTINHO, 2001, p. 289). Ainda que se percorra
tantas vezes o trajeto da disciplina, que se estabeleçam
repetidamente as distinções entre Escola Francesa e Escola
Americana e que se mencione a necessidade de superação
do método de fontes e influências, um procedimento
que pode gerar maior impacto para a adesão a exercícios
efetivamente comparatistas na contemporaneidade é a
canalização da ênfase para o repertório de objetos que
podem ser pesquisados. Dentro da amplitude desse
repertório, sobressai o fascínio despertado pela produção
literária contemporânea na agenda dos pesquisadores.
E, nessa relação de interesses e desejos que movem os
102 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

estudos, é preciso perceber que as manifestações abordadas


são marcadas pela problematização do literário e pela
aproximação da mídia, constituindo o espaço daquilo
que Coutinho aponta como contradições. É também
nessa atitude, responsável pela ampliação do terreno a ser
percorrido pelas pesquisas em Literatura Comparada, que
se ampara João Manuel dos Santos Cunha, para desenvolver
seu trabalho “Comparatismo literário e multiplicidade
midiática: os limites de uma impossibilidade”:

Nesse contexto, outros agentes e saberes foram integrados


de forma indissociável ao quadro da reflexão comparada
sobre o literário, visto em sua relação com diversas
linguagens, códigos estéticos ou suportes textuais,
incluindo aqueles inicialmente denominados como
meios de comunicação de massa e hoje reconhecidos, de
forma genérica, como mídia. [...] O que se referia [...] como
uma impossibilidade metodológica tem se estabelecido
em possibilidade investigativa nada negligenciável para
pensar o literário face às evidências midiáticas da cena
cultural (CUNHA, 2011, p. 178-179).

Esse percurso, caracterizado pelas observações dos


cruzamentos entre literatura e mídia, é,em parte,o que
elejo aqui, substituindo os contos e os romances abordados
no ensaio de Cunha pela atenção destinada à crônica. As
narrativas focalizadas naquele trabalho, selecionadas a
partir do acompanhamento meticuloso do processo de
enraizamento das intersecções entre palavra e imagem,
oferecem-se como vasto material para análise. Assim,
ainda que reconheça passos iniciais das convergências
entre o literário e o midiático nas produções de autores
como Rubem Fonseca e Sérgio Sant’Anna, Cunha prefere
deter-se sobre a prosa de ficcionistas mais recentes, como
Amílcar Bettega Barbosa e Daniel Galera. Trata-se de uma
opção que não se esquiva das “evidências” observadas pelo
pesquisador.
A crônica brasileira contemporânea assume um
papel peculiar nessa rede de confluências. Basta pensar em
dois traços muito significativos para a história do gênero:
seu vínculo com os jornais e com as revistas, suportes
fundamentais para sua afirmação no Brasil desde o
Focos
múltiplos: comparativismo e mídia nas crônicas de Xico Sá 103

século XIX, e a configuração do texto como produção que


preserva compromisso e intimidade com o tempo presente.
Em ambas as situações, o que se nota é a proximidade
entre crônica e mídia. O fato de ser concebido como
texto a ser integrado às páginas da imprensa já contribui
para eliminar eventuais distâncias e estranhamentos
diante do universo da comunicação, em que a própria
crônica ocupa espaço. De modo semelhante, o apego aos
acontecimentos da véspera ou da semana e a sintonia com
a vida contemporânea impulsionam o cronista a dirigir
seu olhar para o ambiente midiático, especialmente e de
forma crescente nos dias atuais, quando as tecnologias
proporcionam a intensificação de acessos a múltiplas
manifestações artísticas, culturais e comunicacionais.
Nesse sentido, a escolha das crônicas de Xico Sá,
todas reunidas em um só volume, para a abordagem
a ser aqui desenvolvida, pode até parecer um recorte
excessivamente específico ou restrito, uma vez que não
se abre para o restante da produção do autor e ainda
deixa de contemplar outros nomes da geração composta
por jovens cronistas em atividade, como Antônio Prata,
Arnaldo Bloch, Eliane Brum, Fabrício Carpinejar,
Fernando Bonassi, Luís Henrique Pellanda, Marcelo
Rubens Paiva,Martha Medeiros, Miguel Sanches Neto,
Milly Lacombe e Tati Bernardi, entre outros que publicam
regularmente nos veículos de imprensa e na internet e
já transferiram suas crônicas para livros. O espaço aqui
disponível não permitiria, contudo, que se reservassem
quinhões, mesmo que diminutos, para cada um desses
autores. Além disso, a restrição deliberada ao livro de
Xico Sá, publicado em 2010, Chabadabadá: aventuras e
desventuras do macho perdido e da fêmea que se acha, tem
a função de demonstrar como as relações entre o literário e
o midiático adquirem intensidade e se manifestam em um
número grande de crônicas e sob diferentes realizações.
Deve-se destacar ainda que o foco dirigido para a produção
do autor selecionado ajuda a tornar mais evidente um
aspecto muito relevante tanto da constituição da crônica
quanto para a prática comparatista exercitada por nós, no
Brasil: trata-se da identificação do gênero com a condição
brasileira, entendida como “aclimatação” por Antonio
Candido (1992) e Davi Arrigucci Jr. (1987).
104 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

Chabadabadá desperta a atenção não só por seu


título, mas, também, por sua capa e suas dimensões. É um
livro quadrado com 19 cm de altura e os mesmos 19 cm
de largura, fugindo do padrão mais convencional do livro
mais alto do que largo. Quanto ao título e às ilustrações
que aparecem na capa e ao longo de diversas páginas
do livro, cabe registrar trechos incluídos pelo autor na
advertência, que já antecipam o entendimento dos textos e
de sua relação de sentido com os demais recursos gráficos
da publicação:

Aos amigos e amigas que se sentirem furtados nas suas


boutades, teses, chistes e frases de efeito, o autor justifica:
a intenção foi poupá-los de eventuais desastres no
casamento e manter a harmonia nos lares. Sempre que fui
fiel a tais créditos, promovi, não por gosto, redemoinhos
desnecessários nos consórcios amorosos.
Ademais, o leitor ainda pode se deparar, aqui e ali, com
toda uma sorte de vigarices semânticas, sinceridades
do peito, dores de amor à Leonard Cohen ou à
Waldick Soriano, confissões de mal-amadas, boleros,
chabadabadás, orações aos moços, truques de falsos
donJuans e outros subgêneros.
P.S. – O título do livro nos remete ao refrão da trilha
sonora do filme “Unhommeet une femme” (Um homem,
uma mulher), de Claude Lelouch, 1966.
No Brasil, o “chabadabadá” era cantado, por gozação,
como “sábado ela dá, sábado ela dá...”
P.S. 2 – Benicio é um dos maiores e mais respeitados
ilustradores do país. Seu traço inconfundível já foi visto
na publicidade, no cinema e na indústria editorial. As
ilustrações reproduzidas em Chabadabadá fazem parte de
seu acervo de capas pulp, que ele desenhou ao longo de
sua carreira para edições de pocket books (SÁ, 2010, p.
7).

A explicação sobre o título, presente no primeiro


post-scriptum, já remete ao aproveitamento da cultura
midiática como um procedimento constante ao longo
do livro. Além disso, o autor não perde a chance de
mencionar o modo de apropriação popular daquele refrão
entre os brasileiros, como uma espécie de reivindicação de
espontaneidade e de um caráter popular para os próprios
Focos
múltiplos: comparativismo e mídia nas crônicas de Xico Sá 105

escritos em sintonia com as práticas sociais observadas e


até valorizadas pelo autor, práticas igualmente espontâneas
e populares. A exposição do vínculo de Benicio com
a publicidade, o cinema e os livros de bolso representa
também uma forma de assumir identificação entre o
espaço profissional pelo qual o ilustrador sempre circulou
e, em certa medida, os próprios textos de Xico Sá. Uma
das questões que já desponta, nesse texto de advertência,
diz respeito exatamente a essa identidade: em que medida,
mais precisamente, resiste a ideia de equivalência entre
os textos do autor e a cultura midiática, mais de uma
vez apontada como referência já na advertência do
livro? Não se deve ignorar que, no segundo parágrafo, as
alusões admitidas a “vigarices semânticas”, a “confissões”,
“boleros”, “orações” e a Waldick Soriano estão obviamente
acompanhadas da ironia do cronista. A questão não é
o descompasso entre a antecipação dessas referências
e a presença dos elementos no decorrer das crônicas: o
cantor Waldick Soriano, típico representante da música
brega, por exemplo, é efetivamente citado em mais de
um texto. O que se deve tentar entender é como essa
gama de manifestações culturais, que se insinuam como
numerosas e diversificadas, é absorvida no conjunto das
crônicas do livro. Essa investigação requer uma leitura
mais pormenorizada dos textos presentes no volume.
Antes, porém, de ingressar na análise particularizada
das crônicas selecionadas, é interessante expor a
diversidade e a frequência dos nomes citados ao longo
do livro, para que se forme uma imagem mais fiel da
natureza das citações. Numa breve leitura, sem pretensões
de obter absoluta exatidão, foram contabilizados mais
de oitenta nomes de personalidades vinculadas a vários
setores da cultura, como literatura, música popular,
cinema e televisão, nas pouco mais de cento e cinquenta
páginas que exibem textos do cronista. Como vários desses
nomes são mencionados em mais de uma crônica – são
exemplos Nelson Rodrigues, Roberto Carlos, Honoré
de Balzac, Sonia Braga, Alan Delon, Oscar Wilde, Paulo
Cesar Pereio e Waldick Soriano –, é bastante viável que
as citações ultrapassem uma centena. Quanto às esferas
culturais em que transitam essas celebridades, revela-se
106 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

um quadro muito heterogêneo: se há menções a figuras


típicas da cultura midiática sem qualquer prestígio fora do
universo do mero entretenimento, como Benito de Paula,
Adriane Galisteu, Márcio Greyck, Costinha, Marylin
Monroe, Paulo Coelho, Giuliano Gemma e até o herói
de desenho animado He-Man, abre-se espaço também
para autores que estão entre os mais prezados no meio
literário, como Guimarães Rosa, Charles Baudelaire,
Graciliano Ramos, James Joyce, Manuel Bandeira, Marcel
Proust e Clarice Lispector, além dos lugares reservados
para algumas personalidades da música popular e do
cinema que gozam de certo reconhecimento no âmbito
erudito, tais como Chico Buarque, Cartola, Frank
Sinatra, Woody Allen, Catherine Deneuve, Luis Buñuel
e Pedro Almodóvar. É notória, portanto, a diversidade no
catálogo de referências de Xico Sá: nas crônicas, aparecem
brasileiros, europeus e norte-americanos; as citações vão
desde artistas canônicos até expoentes da cultura brega,
desprovidos de talento artístico, passando pelos estágios
intermediários; atividades distintas, como música popular
e literatura, cinema e televisão, fornecem as fontes para
a interlocução do cronista. Às crônicas, então, para uma
avaliação mais específica de como se caracterizam as
conjugações de referências com origens tão heterogêneas
e se os procedimentos de Xico Sá confirmam aquilo
que Douglas Kellner (2001, p. 52) identifica como um
fenômeno contemporâneo: o esfacelamento da hierarquia
entre comunicação e cultura.
Na crônica “Do que podemos aprender com King
Kong e John Wayne”, observamos já no título a referência
ao gorila gigantesco criado para o cinema e a um ator do
meio hollywoodiano com grande projeção no mundo
inteiro. O ponto de contato para as duas referências, assim
como em muitos outros textos do livro, é a difícil relação
entre homens e mulheres, que, segundo o cronista, já
era ameaçada por desacertos desde os anos 1960 e 1970,
período em que os filmes foram produzidos.As linhas
iniciais da crônica trazem imagem certeira para diagnosticar
a insegurança masculina quantoao papel a ser assumido no
convívio com novos padrões de comportamento feminino:
Focos
múltiplos: comparativismo e mídia nas crônicas de Xico Sá 107

E eis que a galega linda, gostosa e bela, toda adjetivosa,


a Jessica Lange, saca?, se vira para o tarado primata,
obsessivo como um tio Nelson em flor, e conclui,
minuto de candura em uma cena de pânico entre
mamíferos desproporcionais e em estágios diferentes,
Ilha da Caveira, exterior, crepúsculo selvagem de um dia
qualquer:
- Você não está vendo que isso não vai dar certo?! (SÁ,
p. 14).

A reprodução da cena até esse momento da crônica


pode criar a expectativa de que o autor se posiciona a
favor da mulher e contra o homem, sem necessariamente
emitir algum juízo sobre o filme, na versão dirigida por
John Guillermin, em 1976. O que pesaria para essas
interpretações seriam as caracterizações da atriz e do
animal: Jessica Lange foi, nos anos 1970, uma inequívoca
representante da atriz sensual que desempenhou papéis de
mulheres sensuais, e é esse o traço destacado pelo cronista
no trecho; enquanto isso, ao gorila já se fixa a qualificação
de “tarado” e “obsessivo”. No entanto, logo após essa
passagem, surge uma ressalva que condena conjuntamente
filme, atriz e personagem feminina: “De facto, tudo levava
a crer na razoabilidade da sentença da loira, embora tal
criatura [...] fizesse aquela cara de biscate zoofílica de
última catega.” (SÁ, p. 14). A partir dessa frase, marcada
pela transformação da condição de “linda, gostosa e bela”
em um ser vulgar, desprovido de recursos dramatúrgicos, já
não se sustenta qualquer ideia de que o filme terá a defesa
do cronista em seus elementos estéticos. A cena inicial pode
até funcionar como ilustração adequada para os desajustes
nas relações de gêneros, mas a desqualificação técnica do
filme e do elenco serve também para a equivalência com os
desastres que constituem os relacionamentos frustrantes
entre homens e mulheres, assim identificados – tanto o
filme quanto os relacionamentos – pelo autor, em trecho
que recupera em parte o subtítulo do livro: “obviedades
no piscinão de metáforas dos encontros e desencontros do
macho perdido e da mulher que se acha” (Sá, p. 14).
Se os investimentos de King Kong não convencem
tanto, nem como produção cinematográfica nem como
108 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

representação de abordagem com êxito do homem


dianteda mulher, a saída do cronista é o retrocesso maior
no tempo em busca de imagens que apresentem outro
perfil de relação amorosa entre um homem e uma mulher.
O autor localiza tais imagens no filme Quando um homem
é um homem, dirigido, em 1963, por Andrew McLaglen e
estrelado por John Wayne e Maureen O’Hara. O nome do
ator é precedido pelo epíteto “glorioso”, conquista que se
deve provavelmente à rudeza com que seus personagens
enfrentam todas as adversidades na ampla filmografia de
John Wayne: índios, ladrões, outros malfeitores e, no caso
do filme em questão, a resistência da esposa, decidida a
pedir o divórcio. São as peripécias experimentadas pelo
casal que promovem a cena mais exaltada pelo cronista,
mais complacente com esse faroeste do que em relação a
King Kong:

Deseja reconquistá-la com ganas nem que seja obrigado a


sujar as botas no atoleiro sem fundo do amor e da sorte.
E é justamente na lama uma das pelejas mais corajosas
e bonitas de um homem e de uma mulher desde que
o Criador resolveu usar o barro para fazer algo à sua
imagem e semelhança (SÁ, p. 15).

Na seleção de cenas operada pelo autor, não há


dúvida de que sua preferência recai sobre o filme de John
Wayne. Para se compreender essa escolha, é preciso pôr
à parte tanto as questões estéticas quanto as questões de
gênero, sobretudo essas últimas. É preciso pensar sobre a
cena muito mais pelo vigor com que o personagemenfrenta
seu desafio, empenho que precisaria ser desvinculado da
ideia de violência físicaou de opressão contra a mulher.
Não é esse emprego de força que seduz o cronista. O
vigor exibido por Wayne atrai o cronista, porque traduz
a intensidade de um desejo que não mais existe, acuado
por uma série de interdições, de códigos de conduta que
levam muitas vezes à hesitação masculina e à degradação
da manifestação da virilidade. O tom nostálgico com
que o autor encerra a crônica é a demonstração final da
identificação com um determinado modelo de imagem
que guarda poucas afinidades com as práticas amorosas
Focos
múltiplos: comparativismo e mídia nas crônicas de Xico Sá 109

contemporâneas e com os padrões de comportamento


masculino: “Ali começou nossa provação, nosso calvário...
Da lama para a luta no gel, viejo John Wayne, foi um pulo.
Que falta você nos faz, meu brother, meu chapa” (SÁ, p. 15).
Entre a cena do ator batalhando na lama pela preservação
do amor e a imagem patética de programas televisivos com
homens e mulheres se engalfinhando, com uma suposta
e artificial sensualidade, na banheira com gel, o cronista
marca sua posição com clareza, sugerindo a ideia de que,
mesmo no interior da cultura midiática, já sobressai uma
hierarquia de imagens, à espera de uma reavaliação crítica.
Na crônica “V de veneno, V de Vanzolini e V de
vingança”, a referência cultural desloca-se do cinema para
a música popular, concentrada na figura do compositor
Paulo Vanzolini, autor da bastante conhecida canção
“Ronda”. Motivada pelas homenagens dedicadas ao
compositor – lançamento de filme, shows e conferências
–, a crônica consiste na articulação da trajetória de
Vanzolini como zoólogo com a letra da canção “Ronda”,
reproduzida integralmente em parágrafos espalhados
pelo texto, e com as relações amorosas contemporâneas
caracterizadas pelo ciúme e por escândalos, temática da
referida canção. Para a integração dessas questões, Xico
Sá não deixa de informar que a especialidade do zoólogo
é o estudo dos répteis. Nem por isso, o texto assume
rumo científico: “Criatura que rasteja, seja macho, fêmea
ou bicho, é com ele mesmo. A sua música está repleta
de gente que esperneia, desassossego, como a dama que
procura o seu marido, amante ou cacho em uma longa
viagem ao fim da noite paulistana” (SÁ, p. 28). Fica mais
explícito o elo entre o cientista Vanzolini e sua ocupação
como compositor de canção. Torna-se também claro
que o rastejar de homens e mulheres será o ponto a ser
focalizado e atualizado pelo cronista. O assunto, porém,
não é tratado com formalidade, mas transferido para
a mesa do botequim, acentuando o caráter prosaico e
espontâneo que emerge tanto em eventuais conversas
sobre o tópico quanto nas crônicas em geral. Num dos
momentos de reavaliação da ronda pela cidade, com a
procura do ser amado presumivelmente em algum bar à
noite, e entre uma e outra reprodução de trecho da letra
110 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

de “Ronda”, surge aadaptaçãodessa busca para o estágio


contemporâneo das transações afetivas:

O problema é que agora somos nós, os homens, que


rondamos em vão à procura da cria das nossas costelas,
opinariam amigos que se pelam de medo de um chifre.
Até que faz sentido. Sintoma dos tempos, coisas da vida.
Bem feito. Eu acho é pouco. Levamos o troco da história
(SÁ, p. 29).

Mais uma vez é processada a releitura crítica de


uma manifestação da cultura midiática. O que desponta
como curiosidade, nessa crônica, é o aproveitamento
integral da letra da canção reproduzida em sua totalidade.
Assim, não se trata de uma referência breve, casual,
pontual, mas de uma incorporação plena que pode ser
interpretada como uma adesão efetiva e afetiva da crônica
ao texto original. Ao mesmo tempo, o trecho transcrito
estimula a constatação de que o texto escrito por Xico Sá
não se reduz à mera repetição de “Ronda”. Ao atualizar a
situação abordada na canção e expor a inversão de papéis
acompanhada dos comentários sobre essa inversão, o
cronista gera acréscimos quanto ao texto de Vanzolini e
prossegue em sua contribuição para a afirmação de um
discurso que, embora simples – como se percebe nas cinco
últimas frases do trecho transcrito –, constitui prática que
ainda não pode ser considerada tão comum, mesmo nos
dias atuais, isto é, um discurso masculino que reconhece as
dívidas dos homens nas relações afetivas e a legitimidade
de certas práticas femininas que não seriam tão toleradas
nem frequentes há pouco tempo atrás.
Na crônica “Da cantada como revolução
permanente”, as referências culturais voltam a ser mais
diversificadas. Aqui, elementos da literatura, do cinema,
da música popular e da televisão estão todos reunidos para
o cronista discorrer sobre a cantada como um exercício de
sedução que deve ter certas particularidades. A primeira
delas diz respeito à permanência, como indica o título,
uma prática paciente, sem qualquer afoiteza no que se
refere à expectativa de resultados imediatos: “Existem
mulheres que a gente canta no jardim da infância para
Focos
múltiplos: comparativismo e mídia nas crônicas de Xico Sá 111

dar o primeiro beijo lá pelos treze, quatorze.” (Sá, p. 98).


Para tornar mais claro seu modelo ideal de cantada, o
cronista apresenta exemplos do que se deve e do que não
se deve fazer. E aí entram em cena situações vinculadas ao
universo da cultura midiática:

Mas é necessário que a cante sempre, não aquela cantada


localizada, neoliberal e objetiva, falo do flerte, do mimo,
do regador que faz florescer, como numa canção brega,
todos os adjetivos desse mundo.
A cantada de resultado, aquela imediata, é uma chatice,
insuportável, se eu fosse mulher reagiria com um tapa de
novela mexicana, daqueles que fazem plaft!
(...)
E claro que para cada uma dizemos uma loa, fazemos
uma graça, não repetimos o texto, o lirismo, o floreado
(SÁ, p. 98).

As situações apresentadas oscilam de modo curioso.


O cronista recorre a imagens simplórias, como o “regador
que faz florescer”, mas ao mesmo tempo adverte para que
se evite a repetição do texto do flerte. Chega a defender
a canção brega e o excesso de adjetivos, mas recomenda
a singularidade do lirismo. E ainda sugere que o tapa de
novela mexicana é reação legítima para certas cantadas
pouco inspiradas e criativas. Não, não se trata de pretender
transformar a cantada em texto extremamente sofisticado,
rico em linguagem literária, pois isso a desviaria de seu
caráter mais comunicável e persuasivo. Isso explica a
aproximação da canção brega e o fato de o termo “lirismo”
vir seguido do termo “floreado”. O texto da cantada
defendida está distante tanto do requinte absoluto, que
deve abrir espaço para a inflação de adjetivos, quanto
da vulgaridade imediatista, que merece um tapa como
resposta.
É nesse lugar intermediário que Xico Sá evoca
a figura de Vera Fischer, que protagonizou o filme de
1973, dirigido por AnibalMassaini, A superfêmea. Trata-
se de pornochanchada que exemplifica a necessidade de
dirigir as cantadas também às mulheres feias, “até porque
as feias não existem” (SÁ, p. 98). Segundo o cronista, “a
dita feia, quando bem cantada, vira a superfêmea”. O
112 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

exemplo funciona como um argumento a mais em defesa


do cuidado empregado na linguagem, pois a cantada
bem feita teria até o poder de transformar uma mulher
supostamente feia no objeto sexualmente mais desejado,
representado por Vera Fischer. A condição para se obter
esse prêmio, apontado como inestimável, contudo, é clara:
a cantada precisa ser bem executada. Na citação cultural
subsequente da crônica, confirma-se a ideia do cuidado
na linguagem: “Tem que cantar sempre a mesma mulher
e parecer que está apenas de passagem, que o estribilho
é sempre novo, nada de larararás que mais parecem
refrões do Sullivan e do Massadas, lembram dessa dupla
de músicas chicletosas?” (SÁ, p. 99). A canção brega
reaparece, agora não mais como modelo a ser seguido, mas
com um exemplo de poucas alternâncias na linguagem que
deve ser descartado em virtude da falta de criatividade. A
referência à dupla de compositores é mais um resgate no
tempo: os dois se conheceram em 1979 e permaneceram
juntos até meados dos anos 1990. A crônica é concluída
com outro retorno no tempo: a menção a Gabriela,
telenovela estrelada por Sônia Braga, que foi ao ar em
1975. O cronista imagina a situação segundo a qual o
leitor teria iniciado o processo de sedução sobre a atriz
ainda naquele tempo; depois de muitos anos, todos
pontuados pelas cantadas do leitor, ela teria finalmente
se mostrado receptiva às insistentes investidas, resolvendo
recompensá-lo. Eis o resultado: “Vai ser lindo do mesmo
jeito, não acha? Na tela do nosso cocuruto vai passar o
videoteipe de todos os desejos antigos e despejados no ralo
pela morena cravo& canela” (SÁ, p. 99). Sônia Braga é
alçada, do mesmo modo que Vera Fischer, a prêmio, para
as cantadas persistentes e bem realizadas. É interessante
notar que mais de trinta anos separam as produções
culturais protagonizadas pelas atrizes da crônica de Xico
Sá. É óbvio que o cronista poderia ter selecionado para seu
texto outras atrizes mais jovens, que representassem mais
claramente o apelo sexual exercido nos dias de hoje. Não é
isso que acontece, porém. Ele dirige-se a um leitor que não
ingressou tão recentemente na juventude, ou ainda instiga
os leitores com quarenta anos ou menos para que todos
remexam o baú da memória da cultura midiática, inclusive
Focos
múltiplos: comparativismo e mídia nas crônicas de Xico Sá 113

para levá-los ao reconhecimento de que aos objetos do baú


podem ser atribuídos valores muito diferentes entre si:
alguns desses objetos passam a ser cercados de um afeto
que o tempo ajudou a construir.
O ar nostálgico é retomado na crônica “Eita cabra
‘inzingente!’”, que aborda as intervenções da plateia
durante a projeção de filmes em cinemas nordestinos. A
primeira interação exposta é recente: trata-se da imagem
do personagem representado por Leonardo Di Caprio
despencando do navio para as águas geladas, no filme
Titanic, dirigido por James Cameron, em 1997. Diante
da cena, surge, de imediato, o grito de reaçãode um
espectador de Caruaru: “ – Valha-me, Nossa Senhora,
que o galeguinho pedrou de vez!” (SÁ, p. 146). O cronista
evoca, com simpatia, a intervenção e sua harmonia com a
resposta da plateia:

Mesmo em um momento dramático, fazia-se da tragédia


uma gargalhada nervosa e coletiva. [...] Falar com os
artistas, aplaudir os mocinhos, inventar diálogos,
interagir com o cinemascope... era praxe, do jogo, não
havia cerimônia em vibrar com o Zorro, em imitar a
Chita do Tarzã, em torcer pelo Batman ou pelos tantos
épicos de Giuliano Gemma no faroeste-spaghetti(SÁ, p.
146).

A marca nostálgica faz-se bastante evidente através


tanto da recuperação de filmes com heróis da infância e da
juventude quanto da lembrança da prática de experimentar
diálogos com aquelas projeções. Tudo compõe uma rede
afetiva valorizada pelo autor. Assim como esses filmes,
outro que deu origem a intervenções dessa espécie
incorporadas à crônica é Belle de Jour, produção de
1967, dirigida por Luis Buñuel. Já na apresentação do
filme percebe-se a deferência do cronista ao qualificar o
diretor como “glorioso” e sua atriz principal Catherine
Deneuve como “inimitável”. Tãosignificativas quanto
esses comentários elogiosos ao filme – que depois merece
algumas linhas confirmando o apreço do autor –, ou mais,
são as circunstâncias da intervenção do espectador de
1980 reproduzida no texto.
114 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

A linda e gostosa galega, Catherine, óbvio, toda entregue


a um moço e o cara todo nojento, com aquele tédio
tipicamente francês, triste herança do baixinho enfezado
Jean-Paul Sartre.
Um rapaz na plateia [...] não se aguenta – e aí não era
apenas gaiatice, era sinceridade imediata – e desabafa,
nas alturas:
- Eita cabra “inzingente”!
O cinema veio abaixo, claro, era o sentimento de nós
todos, homens e mulheres da terra do sol e sem fastio
algum na flor da mocidade (SÁ, p. 146).

O título da crônica deriva, portanto, da fala do


espectador, revelando a expressividade da intervenção e o
valor a ela atribuído pelo cronista. Curiosamente, a cena
do filme que suscita o desabafo do rapaz é reconstituída
por Xico Sá como uma forma de antecipar e justificar a
intervenção. Catherine Deneuve, ou sua personagem, além
de “linda e gostosa”, é apresentada como “galega” – assim
como Di Caprio fora reconhecido pelo espectador de Titanic
como “galeguinho” –, signo de sua condição de estrangeira,
que pode representar tanto o caráter de desejo que ela
desperta quanto sua diferença, sua distância em relação às
possibilidades de identificação entre os brasileiros e a atriz.
O ator e personagem com quem ela contracena tem esse
componente de estranhamento enfatizado: ele é “nojento”
e entediado e tem tais características vinculadas à condição
de “francês”. Nesse sentido, o desabafo do espectador,
além de ser repercutidopelos risos, é interpretado como
reação inevitável e sintonizada com a coletividadedaquela
plateia, “homens e mulheres da terra do sol”, para a qual
aquele fastio era uma atitude estranha, de acordo com a
manifestação do cronista. A situação focalizada propicia
identificações com certas práticas comparatistas recentes
que dirigem o olhar para a produção da América Latina e
requerem novas e específicas interpretações dos trânsitos e
dos mecanismos de apropriação revelados no diálogo entre
as manifestações culturais contemporâneas de diferentes
localidades: “Os critérios até então inquestionáveis de
originalidade e anterioridade são lançados por terra e o
valor da contribuição latino-americana passa a residir
exatamente na maneira como ela se apropria das formas
Focos
múltiplos: comparativismo e mídia nas crônicas de Xico Sá 115

literárias européias e transforma-as, conferindo-lhes novo


viço.” (COUTINHO, 2003, p. 21). Assim, ao assumir o
comentário do espectador, justificá-lo, contextualizá-lo e
alçá-lo à condição de título da crônica, Xico Sá endossa
a intervenção como expressão autêntica, sem que isso
configure rejeição ao filme. Esse movimento do cronista
guarda, portanto, pontos de contato com questões
relevantes para as relações entre o comparatismo, a crônica
e a mídia, além de ainda contribuir para o enfoque isolado
de cada um desses elementos. A título de conclusão, passo
à tentativa de estabelecer conexões mais claras entre esses
três campos, através de breves comentários de outras
crônicas do autor e de suas correlações com os textos já
abordados.
O traço afetivo que emerge das crônicas “Do que
podemos aprender com King Kong e John Wayne”,
“Da cantada como revolução permanente” e “Eita cabra
‘inzingente’” desponta também em textos como “Do
Jornal Nacional do amor” e “A arte de pedir em namoro”.
Nas duas últimas crônicas, a televisão e o cinema
aparecem sob a forma de correlatos para um padrão
de relacionamento amoroso valorizado pelo cronista.
Em “Do Jornal Nacional do amor”, Xico Sáidentifica a
felicidade no cotidiano da relação estável a dois com a
experiência do relato das notícias do dia tal qual o formato
do telejornal. Em “A arte de pedir em namoro”, sobressai
a ambientação para um relacionamento afetivo pouco
comum na contemporaneidade, mais identificada com
a fluidez e com a instabilidade. O ambiente eleito é o
cinema: “Os dedos dos dois se encontrando no fundo do
saco das últimas pipocas...” (SÁ, p. 90). Essas associações
reforçam a ideia de uma relação entre crônica e cultura
midiática que não se faz somente através de afastamentos
e divergências, embora se deva recordar que os excessos
da vulgaridade não são tolerados, como nas alusões
desfavoráveis a King Kong, ao quadro televisivo que exibe
as lutas na banheira com gel e às canções “chicletosas” de
Sullivan e Massadas. Além disso, percebe-se que a televisão
e o cinema são fontes selecionadas para proporcionar o
toque prosaico tão importante para a crônica escrita por
Xico Sá e por outros cronistas, sejam eles contemporâneos,
sejam de gerações anteriores.
116 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

A crônica “Um homem invisível na multidão”


revela, a partir do relato da experiência de distribuir
panfletos na rua e do desprezo proveniente dessa atividade,
a consciência das diferenças entre o homem comum
e anônimo e as personalidades e situaçõesda cultura
da midia. São evidenciadas ali, assim como em “V de
veneno, V de Vanzolini e V de vingança” e em “Eita cabra
‘inzingente’”, as realidades particulares de um e outro,
ainda que o cronista afirme que nem mesmo Rodrigo
Santoro e Leonardo Di Caprio obteriam êxito na função
de entregar panfletos na rua. O anonimato e o ostracismo
desse homem invisível contrastam, porém, com o mundo
de grande projeção e fantasiaproporcionado pela vida
midiática. E é desse contraste que surgem as imagens das
intervenções no cinema e da constatação de que, nos dias
atuais, é o homem que pode estar sujeito a ter de ir às ruas
para descobrir o paradeiro da mulher amada. As crônicas
são, assim, transformadas em releituras das experiências
oferecidas pela mídia.
Esse caráter de releitura é o que define a importância
da crônica “‘Eu te amo’ não faz mal à saúde”. O cronista
elabora um texto-apologia da frase reproduzida no título
para pôr em xeque o presente receoso e hesitante em
termos de relações amorosas, reconhecido por ele como
tempos de “amores-vinhetas” (SÁ, p. 69). Não falta sequer
uma moral para encerrar a crônica: “mais vale um ‘eu te
amo’ que entre por um ouvido e saia pelo outro do que
um silêncio mortal de um homem que nunca se empolga
e deixa a gazela achando que ‘eu te amo’ é coisa de filme
americano” (SÁ, p. 69). O autor encampa a frase que pode
até ter sofrido o desgaste de ter sido pronunciada tantas
vezes em diversas manifestações da música popular, da
televisão e do cinema, mas sua defesa representa a proposta
de estabelecer a convivência com o desgaste provocado pela
mídia. É nessa coexistência, amparada pela recomendação
do reaproveitamento da frase, que podemos vislumbrar as
aproximações e as tensões entre o discurso literário e o
discurso midiático, sem deixar de recorrer à perspectiva
comparatista.
Focos
múltiplos: comparativismo e mídia nas crônicas de Xico Sá 117

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119

Outros Países das Maravilhas para


Alice: novas perspectivas para a
Literatura Comparada apresentadas
a partir do estudo de caso de “Alice
no País das Maravilhas”

Manaíra Aires Athayde*
Paulo Silva Pereira**

Resumo: O intuito deste ensaio é mostrar como Alice no País


das Maravilhas, com os seus quase 150 anos, antecipa caracte-
rísticas da cultura pós-moderna ou digital. Tentaremos encon-
trar respostas para o fato de a obra de Lewis Carroll ser a mais
explorada nos novos meios tecnológicos, de modo a comparar a
migração da narrativa da literatura para o cinema, e do cinema
para produtos new media, nomeadamente para o iPad, o Second
Life e os games. Trata-se, porquanto, de questões fundamentais
das Materialidades da Literatura, uma recente área de atuação
da Literatura Comparada assente na relação da literatura com
as novas mídias e nas mudanças tecnológicas que alteraram os
regimes de representação da escrita e da leitura, pelo que vamos
fazer um guia das esferas de investigação a partir de Alice.
Palavras-Chave: Alice no País das Maravilhas; Materialidades
da Literatura; cultura digital; plurimedialidade.

Abstract: The purpose of this article is to show how


Alice in Wonderland, with its nearly 150 years, anticipates
characteristics of postmodern or digital culture. We will try
to find answers to the fact that the book of Lewis Carroll
be further explored in the newsmedia, so as to compare the
migration of the narrative of literature to film, and film to new
media products, particularly for the iPad, Second Life and
games. These are fundamental questions of Materialities of
Literature, a recent area of activity of Comparative Literature
based on the relationship between literature and new media
Doutoranda, Universidade and on the technological changes that have altered regimes of
*

de Coimbra (UC), bolsista


CAPES. representation of writing and reading, so we’ll make a guide of
**
Professor do Departamento the spheres of research from Alice.
de Línguas, Literaturas e
Culturas. Universidade de
Keywords: Alice in Wonderland; Materialities of Literature;
Coimbra. digital culture; multiple media.
120 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

Ao abrir Alice no País das Maravilhas (1865), e a sua 1


Nos originais, Alice’s
continuação Através do Espelho e o que Alice Encontrou por Adventures in Wonderland e
Through the Looking-Glass and
Lá (1871),1 deparamo-nos com uma história diversa das What Alice Found There, em que
que, monotonamente, os contos infantis nos habituaram, este é uma espécie de segundo
volume da mesma obra. A
com os seus príncipes e princesas, fadas e duendes que maior parte das adaptações
povoam uma narrativa linear arrematada por um epílogo mistura cenas dos dois livros.
feliz. Interessa-nos aqui mostrar por que em Alice – Como consideramos que
ambos estão intrinsecamente
escrita na plenitude da era vitoriana pelo professor de ligados, ao referirmo-nos no
matemática Charles Lutwidge Dodgson (1832-1898), sob título deste ensaio a Alice
no País das Maravilhas fica
o pseudônimo de Lewis Carroll – existe essa diferença subtendido que também se
narrativa, e que justifica o nosso debruçamento sobre a trata de Através do Espelho e o
que Alice Encontrou por lá (este,
história, e como esse conto de quase 150 anos permite inclusive, abreviaremos para
instaurar novas discussões no campo de investigação da Através do Espelho).
2
A importância de ressalvar
Literatura Comparada, a partir de uma das suas mais essa relação é que, sendo
recentes áreas, as Materialidades da Literatura. Charles Dodgson matemático
e tendo ele incentivado com
De origem anglo-saxônica (como o é Alice2) e com a sua obra a conjugação das
primícias nos anos 1980, esta esfera do Comparatismo ciências exatas e das ciências
propõe uma nova dinâmica entre as Letras, a Comunicação humanas e da linguagem,
defendemos que Alice, assim,
e as Artes3. Está assente, sobretudo, nas mudanças das antecipa parte importante
tecnologias de comunicação ocorridas nas últimas três do campo de atuação das
Materialidades da Literatura,
décadas, que alteraram tanto os regimes de representação com toda a sua natureza
dos media como os regimes de representação baseados interdisciplinar, conforme
explicaremos detalhadamente
nos códigos da escrita e da leitura. Essas modificações adiante.
resultaram num novo capítulo da teoria crítica sobre 3
No mundo lusófono, a área
encontra programa pioneiro
as materialidades da comunicação, com reflexos tanto na Universidade de Coimbra,
na investigação das formas literárias passadas como das com um núcleo de investigação
criado em 2010.
formas literárias atuais. Dentre as reflexões suscitadas, 4
Aqui, coloca-se em questão
estão as trazidas pela estética da recepção, em que o foco a validade doclose reading, e
é deslocado da leitura para o leitor e centrado na vivência os seus «moldes tradicionais»,
diante das exigências das novas
do leitor junto à obra, em detrimento da assimilação de mídias. Para investigadores
conteúdo e a introjeção de interpretações autorizadas.4 como N. Katherine Hayles
e Susan Schreibman, o close
Acontece que Alice, apesar de datar de meados do readingnão consegue mais
século XIX, é o livro que apontamos como aquele que está lidar com a complexidade
da literatura do século XXI,
na linha fronteiriça entre o paradigma pré e o paradigma permanecendo ainda apenas
pós-digital,5 possibilitando-nos não só trabalhar com as porque assumiu um lugar
proeminente como a essência
propriedades das Materialidades da Literatura em sua da identidade disciplinar,
narrativa, como com a circulação dessa narrativa por constituindo a maior porção
diferentes mídias. Trata-se de uma história que permite do capital cultural de que os
estudos literários se socorrem
ser atualizada por distintas gerações e possibilita o diálogo paraprovar o seu valor à
com textos literários de diferentes gêneros e épocas, bem sociedade, a saber a própria
caracterização do método de
como entre a literatura e outras artes e ciências, numa leitura, com atenção precisa e
Outros
países das Maravilhas para Alice... 121

perspectiva que valoriza a experiência do leitor. Aliás, essa


intermedialidade em que Alice se circunscreve denota o
próprio papel do Comparatismo, que tem sido redefinido
em razão dos objetos literários rearticulados, das línguas
e culturas postas em questão, da emergência de escritas
várias e suportes que ultrapassam a escrita verbal e o
livro impresso como modelo. O diálogo entre textos,
culturas, tempo e espaços diversos se torna o instrumento
dinamizador da relação suportes/sintaxes, em suas novas
linhas inscritas pela literatura e pelo cinema, pelo vídeo
e pela música, pelos discursos e pelas performances, que
operam na dinâmica do comparativismo hoje.
Das propriedades dessas atuais dinâmicas resultam
novas características da produção literária, da relação
entre autor e obra e da relação entre leitor e obra.
Assim, como em Alice encontramos indícios primordiais
dos anseios das Materialidades da Literatura, é nosso
desígnio neste ensaio elucidar na narrativa de Carroll
esses indicativos que antecipam características da cultura
pós-moderna ou digital, além de alargar o campo de
abrangência das Materialidades colocando em foco a
cultura da convergência. Neste âmbito, tratar-se-á de
ampliar o debate sobre as narrativas crossmidiáticas e as
narrativas transmidiáticas, tentando encontrar respostas
detalhada à retórica, ao estilo
e à escolha da linguagem, para o fato de Alice no País das Maravilhas ser o conto mais
análise de palavra a palavra nas adaptado no mundo e o mais explorado nos novos meios
técnicas linguísticas, apreciação
e articulação do valor estético
tecnológicos,6 e comparando a migração da narrativa da
de um texto e capacidade de literatura para o cinema, e do cinema para produtos new
totalização.
5
«Digital» aqui não se refere
media, nomeadamente para o iPad, o Second Life e os games.
somente ao mundo virtual Porém, mais do que descrever o percurso de Alice
em rede online, mas, sob o em todas essas redes, a grande perscruta que aqui se
conceito de Manuel Portela,
a toda uma estrutura que, coloca é por que em Alice, com a sua já secular existência,
independentemente do encontramos uma pré-disposição para todos esses networks
suporte, está atrelada à
organização multilinear ou das Materialidades; e por que é Alice a narrativa que,
hipertextual, à interatividade, dos dois séculos passados, permanece em tenaz ascenso
à intertextualidade e ao
dinamismo.
neste novo cenário do século XXI. Para responder a essas
6
Morton Cohen, em biografia perguntas, que culminam, em suma, na razão de Alice no
sobre Charles Dodgson, afirma País das Maravilhas ser diferente das outras histórias infantis,
que os livros de Alice são os
mais largamente traduzidos e vamos colocar em diálogo os conceitos de narrativas
comentados depois da Bíblia e crossmidiáticas, narrativas transmidiáticas e transdução,
de Shakespeare.
sugerindo que das novas experiências de leitura surgem
122 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

o que vamos chamar de leituras transmidiáticas. Coloca-


se, portanto, em voga não só o debate acerca da literatura
fantástica ou nonsense, mas questões imprescindíveis para
se refletir sobre este novo século na literatura infantil, um
terreno que se torna cada vez mais fértil nos núcleos de
investigação das Materialidades da Literatura.
Se formos procurar em Alice a relação entre sua
narrativa e o mundo enunciativo que hoje nela podemos
reconhecer, encontramos nichos comparativos que
transitam da caracterização social e do indivíduo na pós-
modernidade à preocupação com a composição gráfica
e a materialidade do livro impresso e aos elementos
indiciadores de novas dinâmicas da narrativa, então
inscritas na era digital. Os mundos a que Alice chega,
aliás, depois de passar pela toca do coelho, em Alice no
País das Maravilhas, ou pelo espelho, em Através do Espelho
(vide a importância de haver uma espécie de canal
de comunicação, que em analogia encontramos hoje
enquanto aparelhos que nos “teletransportam” para o
mundo digital), são prenunciativos do que a sociedade
viria a se tornar. Não se trata de uma visão de oráculo, mas
de entender profundamente as diretrizes sociais e as suas
dinâmicas e perceber qual o caminho possível que delas
resulta. Por isso, aqui evocamos a pós-modernidade como
aquela descrita por Zygmunt Bauman (1998) – não como
uma ruptura com a modernidade, como defende François
Lyotard, mas como um prolongamento intensificado dela,
como tão bem soube reconhecer antecipadamente, numa
lógica visionária, Charles Dodgson.
As passagens entre os dois mundos evocam “a
transição do indivíduo austero ao indivíduo religado,
participante do fluxo de informações do mundo
contemporâneo” (SILVA, 2000, p. 163), numa correlação
entre o que hoje chamamos de ciberespaço e o mundo
dos sonhos, ambos universos paralelos onde tudo
parece ser possível. Aliás, essa noção de um “mundo de
possibilidades” – ou como diria Alice, “de muiticidade”
–, está atrelada, no enredo, à crise de identidade, que
acompanhará todo o percurso da protagonista, que de
início tenta definir quem é pelo que os outros não são.
Outros
países das Maravilhas para Alice... 123

“Devo ter-me transformado mesmo em Mabel, e terei


de viver naquela casa tão pequena, sem brinquedos por
perto e, oh, meu Deus, com tantas lições para estudar!
Não, já tomei uma decisão: se eu for Mabel, vou ficar
por aqui mesmo! De nada vai servir que eles ponham
a cabeça e digam aqui para baixo: ‘Volte, querida!’ Eu
olharei para cima e direi somente: ‘Quem sou eu, então?
Respondam-me primeiro, e então, se eu gostar de ser essa
pessoa, voltarei; se não, ficarei aqui embaixo até que eu
seja outra’” (CARROLL, 2000, p. 33).

Hoje, no ciberespaço, há a possibilidade de se criar


desde diferentes perfis identitários em redes sociais, numa
projeção do indivíduo sobre a maneira como quer que o
outro o veja, até vários avatares em ambientes virtuais,
assumindo mudanças radicais de personalidade. O que
é sintomático, aliás, numa cultura marcada pela crise de
identidade, que, com toda a sua estranheza e solidão7
antecipadas por Caroll, acompanha sempre o enredo e
vai justificar a imersão de Alice em novos mundos, num
universo de virtualizações: mundos dentro de mundos,
7
Em Através do Espelho, no histórias dentro de histórias (cada capítulo é uma história
quinto capítulo, temos uma dentro da história e, no próprio enredo, temos personagens
curiosa passagem: «“Gostaria…
de conseguir ficar contente!”
sempre a contar uns aos outros histórias, como ocorre
a Rainha disse. “Só nunca no encontro com a Lebre de Março ou com os gêmeos
lembro a regra. Você deve
ser muito feliz vivendo neste
Tweedledum e Tweedledee).
bosque e ficando contente
quando lhe apraz!”. “Só que [muitos diálogos] representam para Alice choques de
isto é tão solitário!”, disse
Alice melancólica; e à ideia
consciência nas aventuras, pois enquanto a menina
de sua solidão, duas grossas insiste numa linguagem com função socializante,
lágrimas lhe rolaram pela seus interlocutores trabalham com “a arbitrariedade
face” (CARROLL, 2009, p.
do emissor dos signos”, numa atitude bem mais
111). Podemos perceber que,
ao longo da jornada, Alice “egocêntrica”, demonstrando muitas vezes hostilidade e
não desenvolve nenhum quase não escutando Alice: nessa brincadeira de seguir o
relacionamento sólido. A coelho ou de conferir o que existe por trás do espelho,
menina encontra vários
personagens, mas nenhum Alice perdeu sua identidade interna, estilhaçando as
deles faz com que ela realmente referências de data, corpo, nome próprio, local e a
se sinta confortável. É a linguagem socializadora. A oscilação física, as novas
solidão que Bauman (1998)
caracteriza como resultado de regras semânticas de tempo e o estranhamento da
“relacionamentos líquidos”, linguagem confundem a perspectiva da protagonista, que
com a fragilização dos laços nem sempre se reconhece como criança através do ponto
humanos num mundo onde
as pessoas não querem mais se
de vista do outro (GOLIN apud SPALDING, 2012, p.
comprometer. 126).
124 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

David Harvey (1996) concebe essa fragmentação


do sujeito como um processo sem fim, de rupturas e
fragmentações cíclicas no interior do indivíduo, enquanto
para Stuart Hall (2005), a concepção do sujeito pós-
moderno não é simplesmente a sua desagregação, mas o seu
deslocamento. Ernest Laclau (1990), por sua vez, descreve
uma estrutura deslocada como aquela em que o núcleo é
substituído por uma pluralidade de centros de poder. A
sociedade pós-moderna, assim, não tem um centro, um
princípio articulador ou organizador desenvolvido de
acordo com o desdobramento de uma única causa ou lei.
Não é um todo unificado e bem delimitado, uma totalidade
produzindo-se através de mudanças evolucionárias a partir
de si mesma. Ela está constantemente sendo descentrada
ou deslocada por forças fora de si.
Marco Silva (2000), com a sua Sala de Aula
Interativa, delineia traços dessa dissolução do sujeito
desde os primórdios da modernidade, seja em poemas de
Baudelaire ou na novela Nova Heloísa, de Rosseau. Afirma
que a diferença entre o sujeito moderno, colocando na
quota a Alice, e o sujeito pós-moderno é que aquele tem
consciência da dissolução que experimenta e, assim,
se inquieta, enquanto este não se sente propriamente
aturdido, mas, sobretudo, “quer estar livre para fazer
de si o que quiser, para fazer por si mesmo, e nenhuma
autoridade ou referência transcendente pode dar-lhe
lei” (SILVA, 2000, p. 163). É, pois, plausível a distinção
proposta por Silva, sobretudo porque o sujeito moderno
é o sujeito de transição, mas há objeção em assentir que
Alice pertença tão convictamente ao mote que caracteriza
enquanto sujeito moderno.
Uma das cenas que ilustra bem essa “liberdade pós-
moderna do indivíduo” em Alice no País das Maravilhas
está no capítulo IX, quando Alice reencontra a Duquesa
e, ao ouvir várias histórias cheias de fins moralizantes
(uma paródia às histórias infantis em voga na época),
a menina discute com a soberana e reivindica o seu
direito de pensar. A passagem também mostra a recusa
a narrativas totalizantes, já que o que importa para esse
sujeito fragmentado não são os objetivos, as metas, os fins,
mas os processos, os nichos, as conjugações.
Outros
países das Maravilhas para Alice... 125

Se por um lado Alice representa o sujeito


fragmentado em sua tentativa de individuação, de busca
pela originalidade e pela propriedade de pensamento,
por outro quem personifica a dissolução do sujeito são os
gêmeos Tweedledum e Tweedledee (personagens inspirados
numa canção de ninar inglesa), tornando-se evidente em
Através do Espelho a alusão ao processo de uniformização
do pensamento, num sistema social homogeneizante,
em que as pessoas são condicionadas a pensar todas da
mesma forma. Os dois personagens, no entanto, também
assumem o papel da estranheza, no processo que Bauman
(1998) designa como “criação e anulação de estranhos”.
Nesta perspectiva, na sociedade moderna, e sob a égide
do estado moderno, a busca por acabar com o estranho,
com o diferente foi munida de uma “destruição criativa”,
que demolia construindo, que mutilava corrigindo (vide
a história A Morsa e o Carpinteiro que os gêmeos contam a
Alice) e que, assim, conseguia, inversamente ao planejado
junto a todo esforço de constituição de ordem em curso,
resultar numa nova maneira de o próprio sistema criar os
seus estranhos.
Quando comparamos o capítulo III de Alice no País
das Maravilhas, no qual a menina encontra um intrigante
grupo de animais, que vê às margens do rio de lágrimas
(“um pato, um Dodô, um Papagaio e uma Aguieta, além
de várias outras criaturas curiosas”), com o capítulo III
de Através do Espelho, em que Alice encontra aquilo que
seria uma espécie de Arca de Noé em forma de locomotiva
(“com diversos seres como cavalos e insetos, além de um
curioso mosquito com cabeça de cavalo”), percebemos que
no segundo volume da obra a estranheza é prontamente
assumida, sobretudo com os “curiosos” animais que não
só são avocados como antropomórficos, como passam a
ser assumidos em estranhas mutações. Em Alice no País das
Maravilhas a estranheza ainda está centrada sobretudono
atrito que Alice detecta entre o mundo do qual vem
e o mundo em que se encontra, isto é, a estranheza é
sintomizada através da descrição das expressões de Alice,
que “vive estranhando tudo por ali” (CARROL, 2000, p.
28).
Ainda na intrigante passagem em que a menina
126 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

entra na locomotiva é importante ressalvar a menção


explícita ao progresso vivido pela sociedade vitoriana,
com suas máquinas a vapor. Não esqueçamos que a
motorização, em plena emergência quando a narrativa
foi escrita, impôs um valor mensurável à velocidade e
modificou profundamente a relação do homem com a
máquina e do homem com o tempo. Na própria história
de Carroll temos essa sociedade “de mudança constante,
rápida e permanente” (HALL, 2005, p. 14) anunciada não
só nas situações suscitadas, mas na construção da própria
narrativa, com um ritmo célere de imersão sobre imersão,
alternância constante entre cenas, capítulos curtos e
preponderância da ação sobre a descrição, “construindo
uma obra veloz, rápida, alinhada com os valores do século
seguinte à sua publicação” (SPALDING, 2012, p. 120).
É que em Alice começamos a perceber as
transformações não só do espaço e do tempo, mas da
relação entre eles, pois uma das principais diferenças entre
a modernidade e a pós-modernidade é que nesta o espaço
se torna determinante sobre o tempo. Como, aliás, fica
evidente em Alice, onde a passagem do tempo é dependente
do espaço em que se está a explorar (entra aqui a ideia
de relatividade do tempo, que mudou o pensamento do
homem do século XX e que explica, por exemplo, por que
quando estamos no mundo da web “não vemos o tempo
passar”). Além disso, a curiosidade da menina está atrelada
a um estado de espírito repleto de ansiedades, como o é
o do homem pós-moderno, uma vez que a ansiedade é
sustentada pelo mundo de celeridades, num processo de
retroalimentação.
Há ainda o que Giddens (1990) chama de
“desalojamento do sistema social na modernidade tardia”,
quer dizer, a extração das relações dos contextos locais
de interação e sua reestruturação ao longo de escalas
indefinidas de espaço-tempo. Nas descontinuidades, os
modos de vida foram colocados em ação de uma maneira
inédita, tanto em extensão, em que as transformações
sociais serviram para estabelecer formas de interconexão
social que cobrem o globo, quanto em intensidade, em que
essas transformações alteraram algumas das características
mais íntimas e pessoais da nossa existência cotidiana
(como o foi o País das Maravilhas para Alice).
Outros
países das Maravilhas para Alice... 127

Mais uma vez temos, assim, em Através do Espelho,


a retomada, só que agora temática, de uma referência que
começou a ser feita em Alice no País das Maravilhas, mas
de uma maneira mais camuflada, sob a égide simbólica.
A saber que o Coelho Branco, sempre a olhar para o
relógio, sempre com pressa, pode ser lido como ícone
da modernidade, como Carroll perspicazmente nos dá
pistas na discussão no Chá Maluco, embora a referência
à modernidade seja mesmo explícita somente em Através
do Espelho, na referida passagem em que Alice, querendo
chegar à terceira casa no jogo de xadrez em que ela é
um dos peões, consegue pegar o trem mencionado pela
Rainha. Os passageiros, em coro, dizem para Alice: “Não
o faça esperar, criança! Ora, o tempo dele vale mil libras o
minuto!” e a menina retruca: “Melhor não dizer nada. A
fala vale mil libras a palavra!” (CARROL, 2009, p. 191).
Por conseguinte, a própria busca de Alice, nessa
segunda parte da obra, torna-se clara: em Alice no País das
Maravilhas, a menina simplesmente explora os mundos
que lhe insurgem, sem um propósito, por curiosidade
apenas (como alguém que se abeira do “futuro”, com a
desconfiança prudente e a curiosidade necessária); já em
Através do Espelho, a menina tem um objetivo declarado,
que é tornar-se Rainha. Ora, aqui temos uma alusão à
maneira como as pessoas são excitadas à competição, a
uma corrida cujo objetivo é estar no topo, com a promessa
da mobilidade social que a modernidade trouxe, e que a
pós-modernidade acentuou.
Não obstante, tão logo a Rainha Vermelha informa
que, quando chegar à oitava casa, Alice será uma rainha,
a menina começa a correr e descobre que, no mundo do
espelho, se corre corre para chegar a lugar algum. Como
nas estratificações sociais, em que a promessa da corrida
e a possibilidade de ascensão servem para movimentar o
sistema, mas a verdade é que a maior parte das pessoas,
embora não saiba, está a correr sem grandes possibilidades
de mudar a sua posição no jogo, permanecendo sempre
no lugar em que está. A possibilidade de ascensão, por sua
vez, é a grande quimera que move a engrenagem do sistema
social – o sonho, a esperança amalgamada à expectativa
de um dia alcançar o que se deseja, muitas vezes em
128 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

necessidades criadas pelo próprio meio. Ou, como diz Cida


Golin, “quando [Alice] alcança suas metas, aquele mundo
que ela tentou entender, mas deixou algumas perguntas
sem respostas, não serve mais. A protagonista, então,
acorda” (2002, p. 52), num bom exemplo do que acontece
quando algum fragmento de desejo é concretizado nessa
liquidez assentada da cultura pós-moderna.
A mesma ideia está presente em Alice no País das
Maravilhas, na Corrida do Dodô, uma corrida em círculos
em que não há vencedores, e no Jogo de Croquet, jogado
com objetos feitos de bichos de verdade e regras indefinidas
ou, “pelo menos, se tem, ninguém as segue” (CARROLL,
2009, p. 100), nas palavras de Alice. Passagem esta, aliás,
que pode ser associada ao afrouxamento das regras na
sociedade pós-moderna como resultado da crise de
representação, em que a destruição dos referenciais deu
lugar à entropia, em que todos os discursos são inclusivos e
sem poder totalizador (como a pós-modernidade tem lugar
depois da Segunda Guerra, este é um traço que surge em
antítese ao totalitarismo). O resultado é que não há mais
padrões limitados para representar a realidade, e o pós-
moderno, pelo seu caráter policultural, sua multiplicidade,
sua hiperinformação, serve à constituição de uma rede
inclusiva de consumidores, como veremos mais à frente.
Tanto na Corrida do Dodô como no Jogo de
Croquet, Alice descobrirá que não há um vencedor, pois
o importante no País das Maravilhas não é vencer nem
chegar a algum lugar, mas explorar o meio. Este também é
o princípio da web, que não sustenta desígnios nem pontos
de chegadas porque a contingência do meio é navegar. “A
propósito, é interessante que apenas ao deixar-se levar pela
água de seu choro, nadando, ou navegando, para usarmos
um termo da era digital, foi que Alice encontrou a entrada
para aquele País das Maravilhas, um verdadeiro labirinto,
como aos poucos o leitor descobrirá” (SPALDING, 2012,
p. 119).
O labirinto, aliás, pode ser usado como uma
metáfora do ciberespaço porque convida à exploração,
diante do traçado complexo de entrecruzamentos e de
caminhos, alguns sem saída e outros em bifurcações
contínuas. “Tal como num labirinto, o visitante de
Outros
países das Maravilhas para Alice... 129

uma obra hipermidiática é convidado a explorar a teia


hipertextual que a constitui. […] O mais interessante
é descobrir os mistérios que se escondem nos seus
detalhes mais discretos e a investigação infinita de suas
possibilidades, e não chegar a um fim” (SILVA, 2007, p.
151). Além disso, a ideia de explorar o meio está associada
ao universo labiríntico porque, segundo Italo Calvino, o
labirinto “evoca a imagem de um mundo em que é fácil
perder-se, desorientar-se, e o exercício de reencontrar
a orientação adquire um valor particular, quase de um
adestramento para a sobrevivência” (CALVINO, 2003, p.
223). Em várias passagens de Alice no País das Maravilhas
a ideia de um mundo labiríntico é reforçada, como no
capítulo IV, que inicia com uma corrida da menina para
uma direção qualquer, ou no capítulo VI, quando Alice se
depara com o famoso Gato de Cheshire e, ao revelar que
não sabe exatamente para onde ir, o Gato lembra que não
faz muita diferença o caminho que irá escolher.

Toda orientação pressupõe desorientação. Só quem teve


a experiência de estar perdido pode libertar-se dessa
perturbação. Mas esses jogos de orientação são, por
sua vez, jogos de desorientação. É nisto que está o seu
fascínio e o seu risco. O labirinto é feito para se perder
e desorientar quem nele se introduza. Mas o labirinto
também constitui um desafio para o visitante, para
reconstruir o seu plano e dissolver o seu poder. Se o
conseguir, destruirá o labirinto; não existe labirinto para
quem o atravessou (ENZENSBERGER apud CALVINO,
2003, p. 223).

Além de uma narrativa labiríntica, no suscitado


espaço de exploração, temos também em Alice “a ideia
de uma enciclopédia aberta, adjetivo que certamente
contradiz o substantivo enciclopédia, etimologicamente
nascido da pretensão de exaurir o conhecimento do
mundo encerrando-o num círculo” (CALVINO, 1990,
p. 131). Essa forma primordial que, para Italo Calvino,
nasce nos grandes romances do século XX, conseguimos
antecipadamente encontrar nas histórias de Alice no País
das Maravilhas e de Através do Espelho. Tanto é que os
textos dos dois volumes da obra são constituídos por uma
130 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

espécie de mosaico entre os diálogos das personagens e a


fala do narrador, na dinâmica que podemos classificar de
“multiplicidade”, que se intensifica na pós-modernidade a
partir de um prolongamento do presente.
O presente, porquanto, acumula diferentes
mundos passados, e os seus elementos, numa esfera de
simultaneidade, que então substitui a temporalidade, a
causalidade ou a sequencialidade num novo espaço, onde
em Alice a prosódia do tempo é minada através de irrupções
constantes e de uma pulverização das regras semânticas.
O novo espaço, por sua vez, não é mais definido pela
linearidade de relações causais ou sequenciais, mas
firmado por relações simultâneas que preterem a posição
teleológica pela contingência de mundo. Eis, então, o
tempo plurilinear sutilmente presente em Alice, que deixa
de ser concebido como uma sucessão de períodos para
se orientar como um presente que, fixo em si enquanto
se move adiante, é atingido por várias linhas de eventos
com sentidos e direções diferentes. “No momento em que
a ciência desconfia das explicações gerais e das soluções
que não sejam setoriais e especialísticas, o grande desafio
para a literatura é o de saber tecer em conjunto os diversos
saberes e os diversos códigos numa visão pluralística e
multifacetada do mundo” (CALVINO, 1990, p. 127).
E é por ser essa “enciclopédia aberta” que Alice nos
revela, por exemplo, a importância do livro impresso na
sociedade vitoriana, período largamente reconhecido pela
expansão do ensino e o aumento de letrados na classe
média inglesa. Alice no País das Maravilhas é iniciado,
inclusive, com a irmã de Alice a ler um livro e, não
tarda, percebemos que a própria Alice é também uma
leitora atenta, que se orgulha em memorizar poemas,
equações e canções. Aliás, uma leitora de livros infantis
pedagogizantes, como mostra a passagem em que só bebe
o líquido que encontrou numa garrafa, logo após cair na
toca do coelho, quando lê e não vê escrito “veneno”,
“pois lera muitas historinhas divertidas sobre crianças
que tinham ficado queimadas e sido comidas por animais
selvagens e outras coisas desagradáveis, tudo porque não
se lembravam das regrinhas simples” (CARROLL, 2000,
p. 24). Neste mesmo quarto capítulo, ao Alice se chatear
Outros
países das Maravilhas para Alice... 131

por ficar “crescendo e diminuindo o tempo todo”,


encontramos um outro relevante traço da obra de Carroll:
a autoconsciência da escrita, que vai ser intensificada em
Através do Espelho.

Eu quase desejaria não ter entrado na toca do coelho...


apesar disso... apesar disso... é bem curioso, sabe, este
tipo de vida! Eu queria saber o que foi que aconteceu
comigo. Quando eu lia contos de fadas, imaginava que
esse tipo de coisa nunca acontecia, mas, agora, eis-me no
meio de uma história dessas! Deve ter algum livro escrito
sobre mim, deve ter! E, quando eu crescer, vou escrever
um... Mas eu já cresci”, acrescentou num tom lastimoso
(CARROLL, 2000, p. 51).

Pois que, em Através do Espelho, fica ainda mais


visível a relevância dada ao registro impresso e à cultura
letrada da Inglaterra vitoriana (o que depois tornar-se-á
pródigo de toda a modernidade). No início da trama, por
exemplo, logo no primeiro capítulo, Alice entra no mundo
do espelho e, ainda com o tamanho do lugar de onde veio,
depara-se com o Rei Vermelho e segura-o com a mão, o
Rei se queixa à Rainha do “horror daquele momento”
(CARROLL, 2009, p. 28) e ela sugere-o que faça uma
anotação. Enquanto ele registra sua queixa num bloco de
notas que carrega no bolso, Alice folheia um livro, que
primeiro pensa estar escrito noutra língua e logo depois
descobre que se trata de um “livro do espelho”.
O que temos, diante dessa “brincadeira”, é uma
espécie de primícias da poesia concreta, que ganhou
pujança na segunda década do século XX. Em Alice no País
das Maravilhas, no capítulo III, também encontramos uma
passagem similar quando o Rato conta a Alice uma longa
“tale” (um dos muitos trocadilhos do livro, uma vez que
“tale”, em inglês, tanto pode significar “história, conto”
como “cauda, rabo”) e a história, então, é escrita sob a
forma de um poema com o formato de uma cauda.
132 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

(Fig. 1) Versos do «livro do espelho». CARROLL, 1865, p.


18, adaptação do original. (Fig. 2) «Tale» desenhada por
Carroll. Versão disponível em<http://www.gutenberg.org/
files/19002/19002-h/19002-h.htm>

Esses jogos de linguagem, em que a construção do


poema se assemelha a algo relacionado a seu tema, são
importantes em Alice porque revelam a preeminência dada
à visualidade e à materialidade do livro, o uso consciente
que Lewis Carroll faz do suporte impresso explorando
veemente os seus recursos gráficos – o que um século
mais tarde veio a se tornar de suma importância para o
Concretismo e, depois, para a literatura infanto-juvenil e
para a literatura digital. Quando, logo na primeira página
de Alice no País das Maravilhas, Alice se questiona “para que
serve um livro sem figuras nem diálogos?” (CARROLL,
2000, p. 19), não falava de ilustrações à serviço do texto,
no conceito tradicional de adornar o texto, mas já nos
levava a pensar na natureza relacional dos elementos de
uma página, na unidade que é possível se obter com eles.
Trata-se, portanto, do uso do espaço gráfico como agente
estrutural; espaço, aliás, que se converte num objeto em e
por si. Quer dizer, a exploração espacial de significantes
leva à natureza produtiva do campo de significados que
a lauda oferece, enquanto o espaço articula nas páginas
funções relativas e dinâmicas de partículas elementares
gráficas, em que há um protocolo: o espaço gráfico está à
espera de ser ativado pelo leitor.
Outros
países das Maravilhas para Alice... 133

Em várias passagens encontramos momentos em


que as indicações gráficas são nevrálgicas para a narrativa.
Nos primeiros três capítulos de Alice no País das Maravilhas,
asteriscos estão dispostos em três linhas para indicar as
transformações de tamanho por que passa Alice cada vez
que come ou bebe algo. Também é recorrente o uso do
itálico para distinguir palavras-chave nos diálogos, como
quando a lagarta pergunta para Alice “Who are you?”
(you simboliza a crise de identidade pela qual atravessa
a protagonista), ou o uso de letras maiúsculas, como em
“ORANGE MARMALADE”, no primeiro capítulo.
Os recursos gráficos também se tornam importantes
para assinalar aquilo que podemos considerar como os
primórdios da noção de hipertextualidade, como no
capítulo VI, em que consta “Se você não souber o que é
um grifo, olhe a ilustração na página 111” (CARROLL,
2009, p. 109), ou no capítulo XI, em que Alice está
assistindo a um julgamento e, na cena, Carroll escreve a
seguinte observação endereçada ao leitor: “o juiz era o
Rei; e, como usava a coroa por cima da peruca (olhe antes
do sumário se quiser saber como fazia), não parecia muito à
vontade” (CARROLL, 2009, p. 128, itálico nosso).
Não obstante, em Através do Espelho, encontramos
ainda mais acentuado o emprego dos recursos gráficos, a
exemplo da redução da fonte e do uso do itálico, no terceiro
capítulo, para sinalizar a fala sussurrada, o “fiozinho de
voz” com que fala o inseto perto do ouvido de Alice. Esse
aumento de consciência sobre a manipulação do material
em que o texto é escrito e publicado, colocando o suporte
a serviço da componente textual, parece justificar, ao se
comparar os dois volumes da obra, “o ganho estético em
sofisticação e a perda estética em exuberância” (2002,
p. 744), nas palavras de Harold Bloom. Alice no País das
Maravilhas é uma espécie de “claro movimento abrupto”
que já não é mais possível em Através do Espelho. Quer
dizer, ao compararmos os dois livros, observamos que
se trata da mesma história, só que contada (sob a forma
de justaposição) com uma consciência maior sobre os
elementos da narrativa e sobre a integração do texto ao
suporte, porém com um frescor menor de inovação, sendo
ele somente possível com o primeiro impacto, a primeira
criação.
134 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

Nesse “ganho estético em sofisticação”, está a


consolidação da ideia de jogo, presente na tessitura da
narrativa (a ordenação rítmica ou simétrica da linguagem,
a acentuação eficaz pela rima ou pela assonância, o disfarce
deliberado do sentido, a construção sutil e artificial das
frases), e a sua consequente complexização. Se em Alice no
País das Maravilhas a composição da história é elaborada
em ritmo de jogo, para além de todas as referências que
surgem, inclusive com as cartas de baralho, em Através do
Espelho, o jogo é explícito na própria elaboração temática,
uma vez que Alice, ao atravessar o espelho, vai parar
num jogo de xadrez, em que ela se torna uma das peças.
“Alice é uma peça do jogo do narrador e também assume
uma posição de jogador. A menina multiplica-se como
personagem de dois contos, o da sua experiência onírica
e o do narrador. Alice sonha, mas também é imagem do
sonho do outro” (GOLIN apud SPALDING, 2012, p.
145). Ou seja, se em Alice no País das Maravilhas, nós temos
mundos dentro de mundos, histórias dentro de histórias,
em Através do Espelho, o que há é um desdobramento: o
jogo dentro do jogo, a ficção dentro da ficção, o sonho
dentro do sonho.
Acontece que o jogo é hoje uma das principais
componentes da cultura pós-moderna, inclusive parti-
lhando várias características com a literatura digital,
como uma organização plurilinear e a capacidade de
permitir que o leitor, até então passivo, se torne utilizador,
participante da trama numa atmosfera imersiva. As formas
mais complexas de jogo, para Johan Huizinga em seu
Homo Ludens, possuem “os mais nobres dons de percepção
estética” (2004, p. 10), a ressalvar que a linguagem
poética teria nascido enquanto jogo e que, mesmo tendo
um caráter sacro, na Antiguidade era simultaneamente
“ritual, divertimento, arte, invenção de enigmas, doutrina,
persuasão, feitiçaria, adivinhação, profecia e competição”
(p.134). É essa antiga raiz, porquanto, que justifica que a
cultura surja “sob a forma de jogo, e é através dele que a
sociedade exprime sua interpretação da vida e do mundo”
(p. 53).
O jogo, por sua vez, traz a discussão sobre o
simulacro. Jean Baudrillard (1991), em Simulacros e
Outros
países das Maravilhas para Alice... 135

Simulações, afirma que a sociedade pós-moderna substituiu


a realidade e os significados por símbolos e signos, tor-
nando a experiência humana uma simulação da realidade.
A simulação, então, seria a imitação de uma operação
ou processo existente no mundo real e estaria ligada à
produção dos simulacros, cópias que representam ele-
mentos que nunca existiram ou que não possuem mais o
seu equivalente na realidade – como o País das Maravilhas,
como o ciberespaço. Os simulacros, portanto, não são
meramente mediações da realidade, nem mesmo mediações
falseadoras da realidade; o que fazem, sob a perspectiva de
Baudrillard, é ocultar que a realidade é irrelevante para a
atual compreensão de nossas vidas. Ou, para utilizarmos
a ideia de Umberto Eco, em Sobre os Espelhos, “o universo
catóptrico é uma realidade capaz de dar a impressão da
virtualidade e o universo semiósico é uma virtualidade
capaz de dar a impressão da realidade” (1989, p. 44),
entendendo por catóptrico o efeito de refletir e tornar
aparentemente maiores os objetos sem, no entanto,
modificá-los, e semiósico, ao contrário do mimético, o
plano cujos referentes estão voltados para a performance,
o que faz com que os seus significados sejam consequência
de ações sociais e determinem o autoconhecimento do
indivíduo e suas interpretações sobre a sociedade.
O que acontece é que o mundo icônico de Alice no
País das Maravilhas é definitivamente assumido enquanto
universo simbólico em Através do Espelho, onde toma forma
manifesta a virtualização e o simulacro através do jogo.
Observa-se, por exemplo, que a própria toca do coelho,
enquanto canal de passagem, é substituída por um espelho,
que possui diversas apreensões culturais e alegóricas (vide
a importância que ganha aqui o lago que materializa o
reflexo de objetos, no capítulo cinco). Para Umberto
Eco, “a magia dos espelhos consiste no fato de que a sua
extensividade-intrusividade não só nos permite ver melhor
o mundo mas também vermo-nos a nós próprios tal como
nos vêem os outros; trata-se de uma experiência única”
(ECO, 1989, p. 20). A imagem especular dupla que exibe
características de unicidade explica, segundo Eco, por que
“os espelhos têm inspirado tanta literatura”.
Além disso, se o universo onde Alice perde e
136 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

reconstrói a sua identidade é um mundo nonsense,


não podemos deixar de descartar a ideia do espelho
deformante, que pode ser visto como “uma prótese com
funções alucinatórias”. Afinal, se tomarmos substâncias
alucinogénias e não soubermos que estamos drogados,
acreditaremos nos nossos órgãos do sentido porque
nos habituamos a confiar neles, mas se o soubermos,
na medida que ainda conseguirmos controlar as nossas
reações, vamos nos esforçar para interpretar e traduzir
os dados sensoriais e, assim, reconstruir percepções
corretas da realidade (ou melhor, análogas às da maioria
dos seres humanos). “O mesmo acontece com o espelho
deformante. Se não soubermos nem que é espelho nem
que é deformante, encontrar-nos-emos numa situação de
normal engano perceptivo” (ECO, 1989, p. 31). O que
parece é que Carroll se utiliza propositadamente do “engano
perceptivo” para fazer com que nesse mundo nonsense se
enxergue mais longe: quer a sua diegese prenunciadora,
quer os seus personagens. Alice, por exemplo, encontra-se
totalmente cega quanto ao seu futuro mais próximo, mas
é extremamente atenta às “mensagens” que recebe num
deliberado presente veloz.
Todas essas questões, contudo, estão atreladas
a discussões sobre a realidade, em que a passagem
para o “simulacro” em Alice dá-se sempre pelo sono e,
consequentemente, pelo mundo dos sonhos. No início de
Alice no País das Maravilhas temos uma sutil e reveladora
correlação, quando o “Caindo, caindo, caindo” (a
repetição do verbo parece um mantra ou uma evocação
da hipnose para que o indivíduo “durma”), durante a
queda da menina na toca do coelho, é associado algumas
alíneas depois ao “E aqui Alice começou a ficar com
sono” (CARROLL, 2000, p. 21). O desfecho do livro não é
menos revelador, com um fim que mais parece um sonho
em cima de outro sonho: “[Alice] continuou ali sentada,
com os olhos fechados, quase acreditando estar no País
das Maravilhas, mas sabendo que bastaria abrir de novo
os olhos e tudo voltaria à prosaica realidade” (CARROLL,
2000, p. 152).
Em Através do Espelho a discussão se torna conspícua,
como aclara o nome dos dois últimos capítulos, “Despertar”
Outros
países das Maravilhas para Alice... 137

e “Quem sonhou”. Neste capítulo XII, inclusive, há


a curiosa passagem em que os gêmeos Tweedledum e
Tweedledee dizem a Alice que o Rei Vermelho, que ronca
a ponto de todos ouvirem, é que está sonhando com
Alice, e não a menina com o Rei Vermelho e o País das
Maravilhas, como ela insiste.

“Bem, não adianta você falar sobre acordá-lo”, disse


Tweedledum, “quando não passa de uma das coisas do
sonho dele. Você sabe muito bem que não é real.”
“Eu sou real!”, disse Alice e começou a chorar.
“Não vai ficar nem um pingo mais real chorando”,
observou Tweedledee.
“Não há motivo para choro.” (CARROL, 2009, p. 214).

Primeiro, é preciso dizer que as investigações sobre


a mente e seu funcionamento (e aqui entram os sonhos),
bem como os ensejos para criar um sistema teórico sobre
o comportamento humano, estavam em voga na altura em
que Charles Dodgson escreveu Alice no País das Maravilhas
e Através do Espelho (não é à toa que a psicanálise é fruto
do final do século XIX). E também é preciso ressalvar a
maestria do escritor em antecipar discussões dessa estirpe
em sua obra (vide que A Interpretação dos Sonhos, de Sigmund
Freud, só foi lançado em 1900; além disso, como segundo
Golin “os choques de consciência, nas aventuras de Alice,
dão-se através do diálogo” (2002, p. 51), propomos aqui
uma alusão à psicanálise), envolvendo facções associadas
ao sonho, à fantasia, à alucinação, à ansiedade e ao que
hoje chamamos de inconsciente. Lembremos, ainda, que
Charles Dodgson era um matemático cartesiano e que a
leitura cartesiana do século XIX estava muito próxima à
ideia de que a realidade é uma vida sonhada, projetada
pela mente (“penso, logo existo”).
Interseccionando esses vetores, temos um escritor
que consegue, ainda no século XIX, de maneira ímpar,
atualizar a confluência das ciências exatas e das ciências
humanas e da linguagem, o que veio a ser o pleito de
atuação das Materialidades da Literatura mais de um
século depois.
138 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

Um seu professor na altura, Mr. Tate, afirmava


coincidirem nele [Charles Dodgson] duas tendências
opostas: um rigor enorme no esclarecimento dos
problemas matemáticos, a par de uma exigência de
soluções exaustas e claras e, por outro lado, uma total
fantasia com as palavras, desarticulando a gramática,
alterando os tempos dos verbos e desfazendo a semântica
(ANTUNES; SAMPAIO, 1978, p. 23).

Um terceiro fator relevante é que Charles Dodgson


foi criado no cerne da Igreja Cristã, numa família
rigorosamente puritana, e deu continuidade aos estudos
na medieval Christ Church College (depois transformada na
Universidade de Oxford), o que potenciou a sua educação
voltada para um cristianismo alvitre da escolástica
medieva, onde ocorreram as primeiras ligações do trivium
ao quadrivium, manifestadas a partir da relação entre as
palavras e o ipsum,8 e onde se tornaram frequentes os
debates sobre os chamados “universais de Aristóteles” e
a problemática das ideias gerais, envolvendo o realismo
e o nominalismo. É essa discussão metafísica, afinal, que
Carroll retoma no excerto, em que os irmãos Tweedle
defendem a posição realista, e o universo da existência
material, e Alice adota a visão nominalista, com o universo
da existência conceitual. Para os realistas, as ideias
universais existiriam por si mesmas, pois entre o universo
das coisas e o universo dos nomes haveria uma analogia
tal que quanto mais universal fosse um termo gramatical,
maior seria o seu grau de participação na perfeição original
8
Ipsum, em latim, corresponde
da ideia. Assim, o universal brancura seria mais perfeito a todos os seres e coisas do
do que qualquer coisa branca existente, por exemplo. Já mundo. A análise dos seres
o nominalismo sustentava que os termos universais não e coisas do mundo, por sua
vez, cabia ao quadriviume suas
existiriam em si mesmos, seriam apenas palavras sem quatro disciplinas – aritmética,
uma existência real. Para os nominalistas, o que existe são geometria, astronomia e
música – ensinadas nas
seres singulares e o universal não passa, portanto, de uma universidades medievais. A
convenção (cf. COTRIM, 2004, pp. 122-125). educação era iniciada com o
estudo da linguagem, o trivium,
Essa epistemologia acabou por construir a premissa que compreendia gramática,
cultural, denominada realismo simbólico, que está patente lógica e retórica. Todo o
nas discussões atuais sobre virtualização e simulacro. percurso educativo, embora
baseado no sistema de ensino
Segundo essa perspectiva moderadora, cada objeto que romano, estava submetido à
constitui o mundo tem um sentido inerente e quanto teologia (cf. COTRIM, 2004,
p. 123).
mais universal é o conceito ou o nome, maior o seu grau
Outros
países das Maravilhas para Alice... 139

de apreensão nas coisas individuais. Ou quanto mais


bem articulada a construção dos singulares, maiores as
possibilidades de torná-los universais. A consequência
disso é que numa sociedade cada vez mais materialista
e de fulgurantes quebras cartesianas, paradoxalmente o
corpo é considerado dispensável e a mente é que define
o ser humano numa “instauração generalizada da vontade
ou desejo de virtualidade por parte da espécie humana”
(RÜDIGER, 2003, p. 70).

O que está sempre em discussão, na verdade, é o conceito


de realidade. Quando um jovem se exalta, teme e vibra
diante de um game, por exemplo, seus sentimentos são
absolutamente reais, mesmo que o jogo em si não passe
de simulação ou mesmo simulacro. É como dirá uma
das Rainhas para Alice no nono capítulo de Através do
Espelho: “se o cachorro desaparecesse, a fúria restaria!”
(SPALDING, 2012, p. 151).

A virtualização e o simulacro, problematizados em


Alice através do sonho, também estão associados à questão
da autoria e da posse, cerne de muitos debates atuais
sobre o ciberespaço e as suas propriedades que facultam
a reprodução e a apropriação. Em passagem do capítulo
VIII, de Através do Espelho, Alice pensa ter sonhado com
o Leão e o Unicórnio e, ao acordar e perceber o enorme
prato de bolo aos seus pés, cogita que todos sejam parte de
um mesmo sonho e diz: “Só espero que o sonho seja meu,
e não do Rei Vermelho! Não gosto de pertencer ao sonho
de outra pessoa” (2009, p. 268). No mesmo capítulo, o
Cavaleiro assume a autoria de uma canção e, tão logo
põe-se a cantar, Alice percebe “que não é invenção dele”
(CARROL, 2009, p. 282) e, baixinho, corrige a letra.
No entanto, o que o narrador diz que vai ficar “nítido”
na lembrança da menina é o que ela sentiu naquele
momento, diante dos meigos olhos azuis e o sorriso gentil
do Cavaleiro, com a luz do poente cintilando através dele
e o cavalo andando calmamente em volta (cf. CARROL,
2009, p. 257). Deixa de ser relevante, assim, a autoria da
melodia, pois o que passa a interessar é o efeito causado
pelo que Gumbrecht (2010) chama de “produção de
presença”.
140 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

Essa postura, aliás, é semelhante a do próprio


Carroll, que ao englobar em seus dois livros “poemas,
canções de ninar e personagens infantis, muitas vezes
recriando-os e parodiando-os, preocupa-se não com uma
suposta fidelidade ao original, e sim com a construção
de um novo texto” (SPALDING, 2012, p. 154). Eis
aqui o importante tratamento dado à intertextualidade,
antecipando mais uma vez uma das características fulcrais
da literatura na pós-modernidade. A intertextualidade se
tornou imprescindível não só para a produção literária,
como para os novos modos de leitura e de problematização
da literatura em nossa cultura, repleta de hiperligações.
Além da panóplia intertextual, encontramos por
item prenunciador em Alicea multifuncionalidade de
papéis na produção de uma obra, com Lewis Carroll a
assumir não somente o ofício de autor, mas também de
ilustrador e paginador. Ora, a primeira versão, intitulada
Alice Debaixo da Terra (Alice’s Adventures Under Ground) e
datada de dezembro de 1864 (em 1886, a MacMillan a
editou pela primeira vez, tal qual o original), continha 37
ilustrações feitas por Carroll. Além disso, o próprio texto da
versão manuscrita é distinto do texto que ficou consagrado,
pois Alice Under Ground é bem menor que Alice no País das
Maravilhas, publicado em julho de 1865, que conta com
dois episódios a mais, o do Chá Maluco e o do Gato de
Cheshire. Na versão original, é ainda possível observar
que diversas palavras são sublinhadas, diferentemente dos
recursos do itálico e das maiúsculas utilizados na versão
impressa. Nesta, por sua vez, temos a originalidade da
conjugação entre o texto de Carroll e as 42 ilustrações de
John Tenniel, num projeto cuja relevância do tratamento
gráfico está próxima daquela hoje acolhida pelo design,
visto não apenas em sua função estética mas centrado na
informação, com a criação de conceitos visuais para que
cada livro possua uma identidade que venha a condizer
com o seu conteúdo.
Outro fato relevante é que foi o próprio Lewis
Carroll a fazer aquela que seria a primeira adaptação de sua
obra. Em 1890, já depois dos êxitos alcançados com Alice
no País das Maravilhas e Através do Espelho, ele publica The
Nursery “Alice”, uma versão de Alice no País das Maravilhas
Outros
países das Maravilhas para Alice... 141

para crianças de zero a cinco anos, conforme explica no


prefácio. São utilizadas vinte das ilustrações originais
de Tenniel e uma nova capa é assinada por E. Gertrude
Thomson (amiga de Carroll). Nesta versão, iniciada com
o reconhecido “era uma vez”, além dos capítulos serem
mais curtos, com menos descrições e diálogos reduzidos,
há uma simulação da contação de histórias e da oralidade,
com o narrador estabelecendo um diálogo mais direto
com o leitor, para captar-lhe tenazmente a atenção.
Assinala-se, ainda, o uso de recursos gráficos que simulam
a modalização da voz, como o emprego do itálico, e a
presença de ilustrações coloridas e ampliadas, que ajudam
a atrair o olhar das crianças e em muito contribuem para
a popularidade do livro.
Aliás, outra particularidade de Carroll que se
revelou crucial para o êxito de Alice no País das Maravilhas
e de Através do Espelho foi o seu olhar fotográfico,9 que
potenciou não só a acuidade visual do livro bem como uma
construção da narrativa atenta à visualidade – são comuns
o que Henrique Sampaio (2012) chama de “brincadeiras
9
A fotografia (na altura, o
daguerreótipo estava em fase visuais”, com a descrição de personagens que crescem
embrionária) era outra grande e diminuem de tamanho, cenários de ponta cabeça e
paixão de Charles Dodgson,
que começou a desenvolver em
corredores em espiral, por exemplo –, o que depois em
1855, quando então tinha 23 muito veio a favorecer a adaptação cinematográfica.
anos. Foi nesse mesmo ano, Para mais, boa parte da popularidade de Alice deve-se ao
aliás, que conheceu as irmãs
Lorina Charlotte, Edith Mary cinema, a única arte alvitre do século XX, que facultou a
e Alice Liddell, então filhas atualização da narrativa ao longo de várias gerações, tendo
de Henry George Liddell,
que havia acabado de assumir a sua primeira adaptação se confundido com a própria
o cargo de deão no Christ história do cinema.
Church College, onde Dodgson
trabalhava como bibliotecário e
O filme Alice no País das Maravilhas, dirigido por
onde viria a se tornar professor Cecil M. Hepworth e Percy Stow, foi lançado em 1903,
de matemática. No início apenas oito anos depois de os Irmãos Lumière terem
de junho de 1955, Dodgson
faz um ensaio fotográfico apresentado publicamente o cinematógrafo. Trata-se de
com as três irmãs e, a partir um curta-metragem com pouco mais de oito minutos,
daí, desenvolve com elas,
especialmente com Alice, uma naturalmente em preto e branco e sem som, em que
longa amizade. Inclusive foi cada cena é precedida de um excerto da obra literária,
num passeio de barco pelo rio
Tâmisa que ele, de improviso, apresentando o que o espectador verá na cena seguinte.
contou para as irmãs a história Aqui, as imagens filmadas funcionam como ilustrações,
que mais tarde resultaria
no livro Alice no País das
numa tentativa de adaptação “fiel” dos desenhos de
Maravilhas, dedicado a Alice John Tenniel, numa época em que o cinema ainda estava
Liddell. descobrindo sua linguagem e sua estética. Contudo, a
142 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

obra já apresenta efeitos de edição, como na cena em que


o bebê se transforma em porco, com recortes literais nos
negativos, e efeitos especiais, como quando o filme de
um gato é inserido em meio ao filme original, entre as
árvores, evidenciando a importância da cena para a obra e
a tentativa de reproduzir o livro da forma mais fidedigna
possível.

(Fig. 3) Aos 5’18’’ do curta, aparece a cena em que Alice


encontra o Gato de Cheshire, em primícias do que hoje pode
se chamar de efeito especial. A película foi restaurada pelo
BFI National Archive e pode ser assistida em <http://www.
youtube.com/watch?v=zeIXfdogJbA>.

Para Marcelo Spalding, a relevância de olhar com


acuidade para essa primeira versão fílmica de Alice é
que, como o curta-metragem foi realizado pouco tempo
depois da invenção do cinema e a versão de Alice para
iPadfoi feita no mesmo ano de lançamento do aparelho,
“se pensarmos no quanto a linguagem do cinema e
suas potencialidades evoluíram ao longo de cem anos e
projetarmos essa evolução para aparelhos digitais como os
tablets, entenderemos a importância e o potencial do livro
digital para as próximas décadas e as próximas gerações”
(SPALDING, 2012, p. 171).
Spalding está a se referir ao Alice for iPad, o primeiro
livro digital a explorar as potencialidades do tablet, tendo
Outros
países das Maravilhas para Alice... 143

sido lançado pela AppStore em abril de 2010, pouco mais


de dois meses depois do lançamento do aparelho. O que
quer dizer que o livro já estava a ser desenvolvido pela
Apple para ser promovido junto com o iPad (o próprio
nome Alice for iPad já é promocional), numa tentativa de
tornar o produto uma das imagens centrais do potencial
do novo aparelho que estava a ser inserido no mercado.
Os criadores, o designer Chris Stephens e o pro-
gramador Ben Roberts, conseguiram promover os recursos
multimédia do iPad ao animarem desenhos baseados nos
de John Tenniel e permitirem que o utilizador manipule
as ilustrações movimentando o tablet ou movendo com as
mãos determinados objetos que vão surgindo ao longo da
história. O que ficou por resolver e que ainda continua
a ser a grande parábola do livro digital é a antítese entre
os vetores resultantes da exploração das propriedades
do meio, cujo movimento e celeridade requerem ação
constante do utilizador e evocam a dispersão, e o texto,
que exige tempo, atenção, concentração. Em Alice for iPad
há uma clara competição entre as animações e o texto,
e este é que sai perdendo. Perde também o utilizador,
que pode ter bons momentos de entretenimento com as
imagens animadas e a possibilidade de manipulá-las, mas
que não consegue, de fato, entrar no universo profundo,
complexo e reflexivo que Lewis Carroll propõe.
Como podemos ver, por exemplo, na cena das cartas
de baralho pintando as rosas, que inicia o oitavo capítulo.
Na versão condensada para iPad, manteve-se o começo do
primeiro parágrafo, quando o narrador conta que Alice
entrou em um jardim muito bonito, mas logo a seguir é
suprimida a discussão das cartas de baralho sobre a cor
das rosas e passa-se direto à narração do momento em que
elas percebem a presença de Alice, “deslocando na frase o
advérbio suddenly para justificar uma mudança tão rápida
na narrativa” (SPALDING, 2012, p. 192).

Versão original
“Seven flung down his brush, and had just begun ‘Well,
of all the unjust things — ‘ when his eye chanced to fall
upon Alice, as she stood watching them, and he checked
himself suddenly: the others looked round also, and all
of them bowed low.”
144 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

Versão condensada
“Suddenly their eyes chanced to fall upon Alice as she
stood watching them.

(CARROLL e STEPHENS apud SPALDING, 2012, p.


192)

Outro grande entrave dos livros digitais até agora


concebidos é justamente este: não conseguir que as
propriedades dos meios singularizem a narrativa, isto
é, as propostas de animações e manipulações de Alice
for iPad podem ser feitas para qualquer outra história e
em nada inscrevem as singularidades de Alice no País das
Maravilhas, com todos os elementos que somente nesta
história podemos encontrar. Aliás, a questão pode ser
colocada como um problema de inscrição, pois o que torna
determinada história única tem que estar inscrito no livro
digital também. Agora, se a natureza do meio irá permitir
avanços nesse sentido, apenas com as possibilidades
trazidas com o desenvolvimento tecnológico é que pode-
remos saber, assim como tem sido com o cinema, quando
observamos o comportamento do medium, por exemplo,
do filme de 1903 à famigerada adaptação de Tim Burton
em 2010.10
E por falar em Tim Burton… Também é importante
ressalvar que a escolha da Apple em adotar Alice no País
das Maravilhas para promover o iPad não foi, em primeira
instância, pela narrativa, muito menos por todos os
meandros geniais que ela apresenta. Aliás, a primeira
versão da Walt Disney Pictures para Alice, em 1951,
também não foi alvitre de uma escolha pela singularidade
da história: na altura, já se havia lançado pelo menos dez
filmes de animação de grande sucesso (sendo A Branca de
Neve o primeiro deles, em 1937) e o êxito de Alice no País
das Maravilhas deveu-se mais ao conjunto de inovações
que a animação 2D proporcionou a toda uma geração do
que pela história em si (a ver a adaptação completamente
infantil, sem qualquer ambiguidade ou aprofundamento,
que a Disney faz na altura). Lembremos que a nova versão 10
Existem mais de quinze
da Walt Disney para Alice no País das Maravilhas, agora adaptações de Alice para o
apostando na visão de Tim Burton, foi lançada a 25 de cinema, sem contar com as
séries televisivas.
Outros
países das Maravilhas para Alice... 145

fevereiro de 2010 em Londres e a 05 de março de 2010


nos Estados Unidos, e que o iPad teve o seu lançamento
mundial a 12 de abril de 2010, o que nos faz ter aqui um
dos mais recentes exemplos do que Henry Jenkins chamou
de Cultura da Convergência.

Se o paradigma da revolução digital presumia que as


novas mídias substituiriam as antigas, o emergente
paradigma da convergência presume que novas e antigas
mídias irão interagir de formas cada vez mais complexas.
O paradigma da revolução digital alegava que os novos
meios de comunicação digital mudariam tudo. Após o
estouro da bolha pontocom, a tendência foi imaginar
que as novas mídias não haviam mudado nada. Como
muitas outras coisas no ambiente midiático atual, a
verdade está no meio-termo. Cada vez mais, líderes da
indústria midiática estão retornando à convergência
como uma forma de encontrar sentido, num momento
de confusas transformações (JENKINS, 2008, p. 31).

Se para Jenkins a convergência é, nesse sentido, um


conceito antigo assumindo novos significados, também o
é o País das Maravilhas, que nessa cultura da convergência
transfigura-se em Países das Maravilhas (por isso o título
deste ensaio, em alusão ao novo mundo instaurado por
uma complexa rede de mídias). A convergência das mídias,
contudo, não se refere apenas a mudanças tecnológicas ou
a um fim que deva ser alcançado com as novas tecnologias
de informática e de telecomunicações; trata-se de um
processo que altera, sobretudo, a relação entre tecnologias,
indústrias, mercados, gêneros e públicos, na demanda de
um sistema que é tanto corporativo (num deslocamento
de sinergias de cima para baixo, isto é, das empresas para o
público) quanto um processo de consumidor (no sentido
oposto, de baixo para cima). A convergência institucional
(no caso da Alice em games, por exemplo) coexiste com
a convergência alternativa, em versões produzidas pelos
próprios consumidores (como a Alice no Second Life), e a
isto tem se chamado de inteligência coletiva, que reitera a
importância da comunicação interpessoal, especialmente
dos formadores de opinião das comunidades. Com a
primazia da produção e da troca de informação não
146 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

somente ocorrendo das instituições para o público, mas


entre os membros do público, torna-se cada vez mais difícil
distinguir os produtores dos consumidores, ambos antes
com papéis bastante definidos.

Empresas midiáticas estão aprendendo a acelerar o fluxo


de conteúdo midiático pelos canais de distribuição para
aumentar as oportunidades de lucros, ampliar mercados
e consolidar seus compromissos com o público.
Consumidores estão aprendendo a utilizar as diferentes
tecnologias para ter um controle mais completo sobre o
fluxo da mídia e para interagir com outros consumidores
(JENKINS, 2008, p. 44).

A convergência, assim, não deve ser compreendida


apenas como um processo tecnológico que une múltiplas
funções nos mesmos aparelhos (com a proliferação de
canais, acessibilidade e portabilidade), mas um processo
que representa uma transformação cultural, à medida
que consumidores são incentivados a procurar novas
informações e fazer conexões em meio a conteúdos
midiáticos dispersos. O filme de Tim Burton, aliás, retrata
bem essas mudanças profundas nas formas de consumo e
na produção midiática, com a promoção de novos níveis
de participação dos espectadores/utilizadores para tentar
formar laços mais fortes com os conteúdos (com o excesso
de oferta e a pluralidade de meios e canais, a sobrevida
de um produto cultural é cada vez menor) e novas
práticas narrativas adotadas para entreter essas audiências
fragmentadas e dispersas.
A propósito, nessa versão de 2010, com um roteiro
assinado por Linda Woolverton, a história é deslocada
no tempo e mostra Alice treze anos depois, já aos 19,
retornando ao País das Maravilhas e encontrando-o em
guerra. Lá ela se depara de novo com o Coelho Branco,
o Dodô, o Dormidongo, os gêmeos Tweedledee e
Tweedledum, as flores falantes e o Chapeleiro Maluco
(que ganha grande destaque ao se tornar o personagem em
que todo o ar enigmático da trama é centrado), além da
Rainha de Copas e da Rainha Branca; o problema, porém,
é que ela não se lembra de nada do que viveu nesse lugar
mágico quando lá esteve aos sete anos. É a partir daí que se
Outros
países das Maravilhas para Alice... 147

cria no enredo a “deixa” para uma grande discussão sobre


a identidade de Alice, se ela seria a “verdadeira” Alice uma
vez que não se recorda de absolutamente nada – e aqui
parece ser o ponto forte do enredo, que aproveita a crise
de identidade proposta por Lewis Carroll atualizando-a
para a crise da passagem da adolescência para a vida adulta
na cultura pós-moderna; a alusão surge logo no início
do filme, quando Alice está numa festa da nobreza em
Londres, onde vive, e ao ser pedida em casamento, foge
seguindo o Coelho Branco.
A obra de Carroll é utilizada apenas como referência,
como universo simbólico e ficcional, um ponto de partida
para a criação de narrativas, representações e efeitos
orientados para novos leitores, que além de espectadores
são, agora, na perspectiva de uma convergência midiática,
utilizadores de diferentes media em concomitância. O
afastamento do roteiro da história de Carroll demonstra
que a adaptação não está mais restrita à transposição
direta da versão original, mas requer uma espécie de
recriação consoante a linguagem da mídia trabalhada. O
filme, dessa forma, não é nem precisa ser uma extensão
do livro e de suas ilustrações (como tentava ser a versão
de Alice de 1903, como vimos) e nem mesmo, em tempos
pós-modernos, precisa manter as estruturas narrativas
nucleares da diegese.

O jogo combinatório de possibilidades narrativas


ultrapassa rapidamente o plano dos conteúdos para
mandar ao tapete a relação de quem narra com a matéria
narrada e com o leitor: ou seja, estramos na mais árdua
problemática da narrativa contemporânea. Não é por
acaso que […] o escrever já não consiste no contar mas
no dizer que se conta, e o que se diz vem a identificar-se
com o próprio ato de o dizer (CALVINO, 2003, p. 209).
148 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

(Fig. 4) Na versão de Tim Burton, o Chapeleiro Maluco


ganha grande destaque na trama. Podemos observar, por
exemplo, que nas imagens de promoção do filme ele
está sempre centrado na cena.

Não obstante, a mesma autonomização da narrativa


também pode ser observada em Alice in New York (a versão
seguinte de Alice for iPad), lançada em abril de 2011, um
ano depois da primeira adaptação da história para iPad e do
lançamento do filme de Tim Burton. Em Alice in New York,
o segundo volume da obra de Carroll, Através do Espelho e
o que Alice Encontrou por Lá, é adaptado para se passar na
cidade de Nova Iorque, com todos os seus monumentos
míticos e o seu ar cosmopolita. As ilustrações originais de
John Tenniel são novamente utilizadas como referência
para as animações, num processo de composição que
surge bem mais amadurecido. Aliás, logo que acessamos o
trabalho percebemos que se trata de uma segunda geração
de livros para iPad, fazendo uso de novos instrumentos e
explorando mais afundo recursos que não haviam sido
aplicados na primeira versão – como o uso de músicas
rigorosamente escolhidas para acompanhar determinadas
animações (vale ressalvar que a música não serve de
ilustração sonora, mas tem o papel de avivar as sensações
que a animação deseja transmitir).
Outros
países das Maravilhas para Alice... 149

(Fig. 5) Capa de Alice for iPad. (Fig. 6) Capa de Alice in


New York. Já nas capas percebemos a diferença entre as duas
edições, a começar pelo traço, nitidamente mais próximo do
de Tanniel no primeiro e de maior independência autoral
no segundo, com linhas negras mais delineadas, textura não
envelhecida e referências à pop art.

O autor Chris Stephens (o programador Ben


Roberts, que havia desenvolvido com Stephens a primeira
obra, já não participou desse segundo trabalho), além de
possibilitar que o utilizadoruse as mãos para movimentar
objetos e participar das animações, conforme já propunha
na primeira versão, cria nesse segundo livro o ponto alto
de interação entre utilizador–narrativa–máquina quando,
na última cena, o utilizador tem que sacudir o iPad para
que a Rainha se transforme em gata, como Alice o faz no
capítulo XI. Diferente da lívida cena do relógio, em Alice
for iPad, em que o utilizador podia balançá-lo conforme
balançava o iPad, o novo mecanismo apresentado é
importante porque traz algum indício de que é possível,
com o desenvolvimento das ferramentas do meio, reduzir
os défices ocasionados pela falta de inscrição do texto
nos mecanismos de animação e manipulação, conforme
enunciamos.
A linguagem do meio, com todos os seus recursos
tecnológicos, mais do que ser encaixada nas convenções
da narrativa tradicional, tem que ser assumida enquanto
a linguagem da própria história, pois uma das grandes
150 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

diferenças entre o suporte impresso e o suporte digital é


que este potencializa a linguagem medial. Não há aqui,
portanto, a demanda de uma hierarquização entre a
dimensão visual e a expressão verbal, mas a proposta de
uma relação intersemiótica, uma integração amalgamada
de resultado uníssono, de forma tal a contribuir não só
sinestesicamente mas idiossincrasicamente11 com o que se
tem chamado de experiência de leitura.
Porquanto, o que parece haver nas adaptações de
Alice para iPad é que Chris Stephens tem um pujante projeto
autoral, mas condicionado pelo conflito entre a dimensão
visual e a expressão verbal em função de o autor não saber
redimensionar a história de Carroll em seu projeto. Tim
Burton parece ter razão quando diz que, ao ver mais de 60
versões, entre filmes, seriados e quadrinhos, ao longo de
sua investigação para fazer o filme, percebeu que a maioria
não funcionou justamente por ser “muito apegada ao
original, por ser muito “literária” (The Guardian, 06 de
março de 2010).

11
Isto é, não só a partir de um
ludismo centrado na irrupção
de sensações, sob a guarida
do entretenimento, mas,
sobretudo de uma ludicidade
(Figs. 7, 8 e 9) Página de Alice in New York, no responsável por transformações
momento em que o utilizador sacode o iPad para que a Rainha no processo de apreensão
Vermelha se transforme na gata de Alice. (Figs. 10 e 11) idiossincrásica e perceptiva do
utilizador, enriquecendo-o.
Ilustrações de John Tanniel.
Outros
países das Maravilhas para Alice... 151

Aliás, Tim Burton realmente levou o “literária” a


sério, uma vez que a sua versão não é nada literal nem
tampouco denotativamente literária, de modo que o foco
não está na narrativa mas na criação estética – eis o núcleo
de originalidade do filme (sendo a debilidade para uns
críticos e o ponto forte para outros) e da franqueza da criação
de Tim Burton para com o seu marcado e reconhecido
estilo. Na adaptação, temos uma exaustiva exploração das
linguagens visual e sonora, numa dispendiosa produção
de cenários, figurinos e efeitos especiais,12 a contar com a
exibição em 3D, sendo o primeiro filme da Walt Disney a
fazer uso da tecnologia tridimensional.13 Por isso, podemos
dizer que, do ponto de vista da redimensão dada à obra
original fronte ao que se anseia criar em um novo meio, o
filme de Tim Burton é bem mais sucedido do que a versão
12
No Oscar 2011 foi indicado
a «Melhores Efeitos Visuais»,
para iPad de Chris Stephens.
«Melhor Direção de Arte» Pois que vemos o projeto autoral de Stephens em seus
e «Melhor Figurino», tendo pontos de êxito, sem ser suplantado pelo entrave textual,
vencido nestas últimas duas quando ele cria um cenário para determinadas ilustrações
categorias.
13
A questão que se coloca é de John Tenniel, como na primeira animação de Alice in
se o uso do tridimensional New York, em que Alice, sentada em uma poltrona, segura
realmente foi uma escolha um novelo de lã. Em Tenniel, a cena é restrita à menina
estética de Tim Burton ou
uma decisão da Walt Disney e à poltrona, mas na obra de Stephens o cenário criado
Pictures, uma vez que no ano mostra livros, jornais, cartas de baralho e até um controle
anterior havia sido lançado, remoto jogado no chão, atualizando a temporalidade da
pela 20th Century Fox, Avatar,
o primeiro filme da história
cena, além de uma enorme janela que permite o leitor ver
a utilizar as novas tecnologias os flocos de neve caindo na cidade, demarcando a estação.
em 3D e o de maior bilheteria
até então, arrecadando quase
três bilhões de dólares em
todo o mundo. O que nos
leva a pensar na possibilidade
do 3D ter sido adotado em
Alice de Tim Burton como
uma tentativa de não ficar de
fora da “onda” do mercado é
que as filmagens foram feitas
com câmeras convencionais
e transformadas em
tridimensionais, com o auxílio
dos cenários virtuais, apenas na
pós-produção – o que parece
demonstrar que inicialmente
não estavam preparados para
filmagens em 3D. Para mais, (Fig. 12)Ilustração de John Tenniel, no início de Através do
vale ainda ressalvar que a
versão arrecadou mais de um
Espelho. (Fig. 13) Versão de Chris Stephens, que constrói um
bilhão de dólares, estando simbólico cenário à volta da personagem, na cena que melhor
entre os quinze filmes de maior representa a transição de espaços e de tempos, quer entre as
bilheteria da história. narrativas, quer entre as produções.
152 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

Outros momentos autorais de grande força é


quando o autor assume em sua adaptação a Rainha
Vermelha como sendo a Estátua da Liberdade e a cidade
como que um tabuleiro de xadrez, ou mesmo quando faz
alusão à conhecida fotografia Lunch atop a Skyscraper, tirada
em 1932 por Charles Ebbets, que flagra funcionários
almoçando sentados, sem equipamentos de segurança,
numa barra de ferro suspensa em uma construção (caso
o utilizador mova a estrutura em que as personagens
estão sentadas, elas “voam” pelo ecrã). Nesses momentos,
Stephens dá à narrativa, através da linguagem da mídia
que adotou, as facetas do tempo em que vive, como Lewis
Carroll o fez no processo de criação de Alice. É pena que
esses momentos sejam pontuais e que prevaleça, desde a
obra digital anterior, a forçosa inserção do texto original
retocado, fazendo com que mais uma vez a atenção à
narrativa falhe.
Se em Alice for iPad os diálogos, as descrições e os
poemas foram suprimidos e a própria narração reduzida
a menos de um terço, alterando não apenas o texto, mas
também o ritmo e o jogo de linguagem de Carroll, o que
temos em Alice in New York é o texto original editado
para encaixar, quase que à força, na adaptação proposta,
inclusive na integração com as ilustrações. Trechos do
original foram recortados e emendados, bem como novas
frases foram enxertadas entre frases do texto original ou
frases de determinado mote do capítulo foram inseridas
noutra parte. O texto resultante, condensado e editado,
“faz sentido, embora seja empobrecido em relação à riqueza
linguística e lúdica do texto de Carroll” (SPALDING, 2012,
p. 227). Texto este, aliás, que aqui está suplantado pelas
imagens, estando à serviço delas, enquanto devia ter sido
reescrito para estar em consonância com a nova história,
com o novo tempo e com o novo cenário, na unidade que
propomos a partir da assumição da linguagem medial.
As dificuldades do enlace narrativo (ao contrário do
que vemos nas soluções tão bem resolvidas apresentadas
nas ilustrações) são visíveis logo no início da trama, com
a ida de Alice para Nova Iorque. Em instância alguma o
texto faz referência à nova condição da Rainha Vermelha,
ao fato de ela não ser uma peça de xadrez mas uma estátua
Outros
países das Maravilhas para Alice... 153

bastante simbólica da contemporaneidade. Além de que a


cidade-xadrez que se diz ser Nova Iorque, numa perspicaz
analogia às complexas estruturas das metrópoles, perde toda
a sua potência referencial quando o autor, conservando
integralmente o texto de Carroll, simplesmente troca o
nome de um lugar no texto original pelo nome de um
lugar famoso da cidade de Nova Iorque. É o que ocorre
com o Bosque das Coisas sem Nomes, que na versão de
Stephens é o Central Park. Ora, fazer simplesmente uma
troca sintática sem desenvolver na narrativa a importância
semântica dessa substituição não permite que a quebra
da verossimilhança possa ser melhor trabalhada, afinal há
muito o que se pensar sobre o detrimento do lugar onde
as coisas não têm nome pelo Central Park.
O que permaneceu no trabalho de Stephens foi a
ideia da ilustração, só que agora é o texto que ilustra as
animações, precisamente ao contrário do filme de 1903,
em que as cenas é que são colocadas em prontidão do
texto. Também percebemos que de Alice for iPad para Alice
in New York propôs-se uma complexização da adaptação
narrativa, embora a interação entre recursos técnicos e
texto continue cingida. A originalidade de um universo
estético próprio que Chris Stephens conseguiu a partir
dos desenhos de Tenniel não foi alcançada na intervenção
sobre o texto de Carroll. Nesse sentido, o criador de Alice
para iPad parece ter aprendido pouco com a lição sobre
intertextualidade que Carroll nos dá ainda no século XIX,
ao se revelar mais preocupado em criar novas roupagens
para contos, canções e poesias já existentes do que
propriamente em se manter fiel a eles.
Talvez a saída aqui, aquela a que a natureza do
cinema não permite e que, assim, jamais poderíamos
ver no filme de Tim Burton, fosse criar para o iPad uma
obra em aberto, onde os utilizadores pudessem decidir
caminhos, fazer a(s) sua(s) própria(s) história(s) dentro
da história – aquilo que Françoise Holtz-Bonneau (1986)
chama de “interatividade de seleção”, em que o utilizador
não só seleciona os conteúdos, como intervenciona sobre
eles. Quer dizer, em vez de ter optado por um projeto
espargido sobre a linearidade, o trabalho com o hipertexto
permitiria usufruir de uma estrutura multilinear e em
154 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

rede que proporcionasse uma nova intertextualidade e um


novo diálogo entre o autor e o utilizador, entre a máquina
e o utilizador, quebrando a noção de totalidade orgânica.
Tanto em Alice in New York como em Alice for iPad há
um índice em que é possível saltar diretamente para
determinada páginas, mas o leitor não pode fazer esses
saltos dentro da própria narrativa e a própria divisão do
menu em páginas, e não em capítulos, ou em personagens,
não permite que o usuário faça saltos para ler determinado
trecho em detrimento de outro.
A autonomização da narrativa em Alice in New York,
na verdade, é uma ressonância do filme de Tim Burton,
mas poderia ter sido levada, enfim, muito mais longe
com todas as possibilidades de dimanam da plataforma
digital. Certo é que a análise da obra criada para iPad nos
deixa ainda mais atentos para perceber o fenômeno de
confluência midiática, tendo em vista que o filme de Tim
Burton é o carro-chefe de toda a promoção de Alice no País
das Maravilhas realizada em 2010, com vários produtos de
valor agregado. O projeto Alice In WonderSLand Performed
Live In SL, aliás, é um dos maiores exemplos desse efeito
cascata. Criado em abril de 2010, dois meses depois do
filme ter sido lançado, trata-se da adaptação de Alice no
País das Maravilhas para o teatro, só que em ambiente
virtual. O grupo Avatar Repertory Theater, sob a direção
artística de Jubjub Forder, realizou seis apresentações ao
vivo no Second Life, durante todo o mês de maio, seguindo
a estética sinistra, obscura, enigmática que pudemos ver
no filme de Tim Burton. “This is a little girl’s dark fears
of growing up” (CNN, 25 de abril de 2010), explica Forder.
Mas o apelo estético de Tim Burton e de Jubjub
Forder, com as suas criações em 3D, encontra refugo em
outra mídia: os videogames. Dentre um dos casos mais
paradigmáticos, e de baliza extrema das tendências em
curso na cultura pós-moderna, está o American McGee’s
Alice, lançado em 2000 pela Eletronic Arts em parceria
com a American McGee, para aparelho id Tech 3. No início
do game, um narrador em terceira pessoa conta que Alice
(que aparece com vestido azul e olhos claros, mas em vez de
loira tem agora o cabelo em tom castanho, numa espécie
de indício de transição entre a personagem consolidada
Outros
países das Maravilhas para Alice... 155

loira e a que viria depois desta versão primeira do jogo),


ao perder os pais num incêndio, passa a ter crises de
catatonia (uma espécie de esquizofrenia) e tenta cometer
suicídio cortando os pulsos. A menina órfã, então, é
internada num hospício (construído sob o imaginário de
como seriam os manicômios na era vitoriana), onde por
uma década é torturada. Já adulta, o Coelho Branco vai
buscá-la para que ela possa retornar ao País das Maravilhas
(marcado por imagens de escuridão e morbidez) e livrá-lo
das regras despóticas da Rainha de Copas. É a partir daqui
que o jogador se torna a Alice, com os seus artefatos de
luta, incluindo facas e bombas.

(Fig. 14) Imagem do Rutledge Asylum, onde Alice é internada


depois de tentar suicídio, conforme a história narrada no
início do jogo American McGee’s Alice. O hospício foi
pensado sob o imaginário dos manicômios no século XIX.

Fato é que, apesar de chocante para a maior parte


das pessoas acostumadas à versão de Carroll, as ilustrações
de Tenniel ou mesmo as animações da Disney, o sucesso
do jogo foi tamanho (com mais de um milhão de cópias
vendidas em três meses, tornando-se um dos jogos
mais vendidos da história) que, em 2011, chegou sua
continuação: Alice Madness Returns, lançado para Windows,
PlayStation 3, Xbox 360, iPhone, iPod e iPad. Dois anos antes,
porém, em 2009, já tínhamos no Second Life o projeto Alice
156 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

in Wonderland Ride, de autoria desconhecida, que em vez de


game funciona como uma plataforma de exploração, onde
encontramos a mesma atmosfera taciturna de American
McGee’s Alice, com personagens de expressões doentias ou
semblantes maliciosos. Lemos no conviteaopasseio: “Hop
aboard one of the most elaborate rides in Second Life.
The Alice in Wonderland ride is full of dark, whimsical
surprises”.

(Fig. 15) Snapshot de Alice in Wonderland Ride,


no Second Life.

O que há de similar, porquanto, nesses produtos


que assumem uma identidade tétrica, que perpassa do
sombrio, como em Tim Burton e Jubjub Forder, à estética
do horror, latente em American McGee’s Alice, é que eles
catalisam as angústias de um cenário distópico na pós-
modernidade, um mundo de “Ambição, Subversão,
Desembelezação e Distração” (CARROL, 2009, p. 113),
para utilizar as palavras da Tartaruga Falsa, na passagem
em que Carroll faz uma paródia ao sistema de ensino.
Quer dizer, esses produtos assumem a exploração de um
“mundo esquizofrênico sob os sintomas de um tempo
líquido” (1998, p. 10), como diria alimentada e atualizada.
A ver a leitura que podemos fazer de Alice Madness Returns,
com a continuação do game American McGee’s Alice, em
Outros
países das Maravilhas para Alice... 157

que a luta de Alice (agora bem mais velha, com grandes


olheiras e com o cabelo definitivamente negro, como o é
tudo ao seu redor) contra a sua demência é, na verdade,
uma tentativa de salvar o seu mundo interior da destruição
– e tanto o seu mundo interior quanto a destruição estão
simbolizados e, mais, confinados no País das Maravilhas.14
Como disse, no sexto capítulo, o Gato de Cheshire a Alice:
“somos todos loucos aqui, eu sou louco, você é louca. […]
Ou não teria vindo parar aqui” (CARROLL, 2000, p. 84).

Alice no País das Maravilhas faz explodir impetuosamente


as traves mestras da lógica aristotélica, por se tratar da
irrupção de um processo inconsciente de múltiplas
virtualidades, indo ao encontro do inconsciente de
sucessivas gerações dos seus leitores e, eventualmente, da
sua “loucura” (ANTUNES; SAMPAIO, 1978, p. 31).

Contudo, há, evidentemente, outros games baseados


em Alice no País das Maravilhas que procuram manter o
aspecto soft encontrado no filme da Walt Disney de 1951
e mesmo no Alice for iPad. Dentre eles está o jogo Alice in
Wonderland produzido pela Disney Interactive (e lançado
juntamente com o filme de Tim Burton, também da
Disney, em 2010), ofertado para PC, Wii, Nintendo DS e
Zeebo. Como são habitualmente os games da Nintendo, o
que temos é a Alice e os principais personagens do País
das Maravilhas num jogo de exploração, com caminhos a
serem abertos, objetos a serem descobertos e uma tabela
de pontos e bônus. Já no Kinect Disneyland Adventures, de
2011, também desenvolvido pela Disney mas agora em
parceria com a Microsoft, o utilizador comanda com o seu
corpo, através do videogame console Xbox 360, um avatar
14
Repare que tanto em e passeia (caminha, voa) pelo parque da Disney, interage
American McGee’s Alice quanto
em Alice Madness Returns há com seus personagens e encontra mini-jogos, alguns
uma junção da violência física baseados em Alice, onde o utilizador tem que se desviar de
da era vitoriana, operada
pelo utilizador que se assume
objetos enquanto cai pela toca do coelho ou dar direção à
Alice, à violência psicológica bola no jogo de croquet com a Rainha.
manifestada sob a forma de Portanto, quando falamos nesse universo que
medo que prevalece no mundo
pós-moderno, uma vez que não compete a diversas plataformas, do livro ao cinema, do
se prescinde, em cada uma das iPad ao Second Life, também estamos a falar da relação que
versões, de trazer uma história
que contextualize o jogo. existe entre a convergência dos meios de comunicação,
158 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

a cultura participativa e a inteligência coletiva, numa


profusão que perpassa pelo fluxo de conteúdos através
de múltiplos suportes midiáticos, pela cooperação entre
variados mercados de mídia e pelo comportamento
migratório dos públicos dos meios de comunicação, que
buscam hoje sobretudo experiências de entretenimento.

Alimentar essa convergência tecnológica significa uma mudança nos


padrões de propriedade dos meios de comunicação. Enquanto o foco da
velha Hollywood era o cinema, os novos conglomerados têm interesse em
controlar toda uma indústria de entretenimento. A Warner Bros produz
filmes, televisão, música popular, games, websites, brinquedos, parques de
diversão, livros, jornais, revistas e quadrinhos (JENKINS, 2008, p. 42).

Ao observar, no caso de Alice no País das Maravilhas,


essa circulação de conteúdos – por meio de diferentes
sistemas midiáticos, sistemas administrativos de mídias
concorrentes e fronteiras transnacionais – vemos que as
experiências de entretenimento convergem cada vez mais
com as experiências de leitura, num processo de transdução
da narrativa e, sobretudo, de seus personagens. Nesse caso,
não se trata somente de uma tradução endosemiósica,
na perspectiva de Susan Petrilli (2004), em que os níveis
envolvidos encontram-se todos no mesmo código, ou
de uma tradução intersemiótica ou transmutação, que
Roman Jakobson (2001) aplica ao diálogo entre diversas
artes, num tipo de tradução que consiste na interpretação
dos signos verbais por meio de sistemas de signos não
verbais. O que a noção de transdução nos traz de novo
é que ela, com a passagem de um nível de código para
outro, subtrai a ideia de tradução e envolve o meio como
principal agente de transformação não só do objeto
transportado para esse meio, mas do transdutor que o
transportou. Sob a proposição de Jesús G. Maestro, em
seu Novas Perspectivas em Semiologia Literária, “transdução é
a transmissão (ducere, “levar”) de algo através de (trans-) um
determinado meio que atua sobre o objeto, provocando
nele certas transformações” (MAESTRO, 2002, p. 65).
Outros
países das Maravilhas para Alice... 159

(Fig. 13) Imagens de algumas «Alices» associadas a


determinados media. É importanteobservar como, ao longo
das décadas (ou mesmo de séculos), Alice vai ganhando traços
cada vez mais adultos, como se o público acedente fosse
mais velho do que o da geração anterior. Na verdade, o que
temos é a constatação das mudanças, viabilizadas inclusive
pelo desenvolvimento tecnológico e pela inserção de públicos
consumidores, na mentalidade e no comportamento de
crianças e jovens, cujo acesso a ferramentas do mundo adulto,
antes rigorosamente confinadas nele, dá-se mais cedo. É
curioso ainda observar que as transformações diegéticas vão
potenciando, com o passar do tempo, o crescimento de Alice,
muito mais infantil em Carroll e em Tenniel (apesar dos traços
adultos que ele lhe dá), por exemplo, do que em qualquer
outra adaptação realizada no século XXI.

Quer dizer, se observarmos a personagem Alice em


todo esse percurso de migração entre mídias, vamos ver que
ela, enquanto transdutora de uma narrativa (o objeto que
transmite ou leva a algum meio) é transformada justamente
por esse objeto ter sido transmitido, em consequência da
interação com o meio pelo qual passa a se manifestar. Ou
seja, o transdutor é transformado pelo médium e, ao mesmo
tempo, essa transformação corresponde indubitavelmente
a uma função de mediação, ou melhor, de transdução
entre a mensagem, que sai das mãos do autor, e o público
receptor, que está a assistir a essa transformação. Motivados
pela ideia de transdução, então podemos dizer que,
ao observar o caso de Alice, não se trata apenas de uma
narrativa crossmidiática, no sentido adotado por Hannele
Antikainen (2004), isto é, um cruzamento entre mídias em
que um veículo direciona ou indica o utilizador para outro,
para que se possa consumir determinado conteúdo ou
160 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

interagir em referida plataforma. Em Alice, o diálogo, mais


do que ocorrer entre as mídias, dá-se entre os conteúdos
e as suas transformações operadas pelo meio, e por isso o
que temos é uma narrativa transmidiática, segundo o que
propõe Henry Jenkins (2008).
Para ele, é possível desenvolver diversos aspectos
de uma narrativa que não cabe numa só mídia e, assim,
pode-se formar um circuito (em vez de matriz, como na
crossmedia) que integra múltiplos textos, em que cada
utilizador sustenta, mesmo sem saber, a atividade do outro.
É como se tivéssemos um merchandising (que, ao contrário
da propaganda, é uma publicidade implícita ao conteúdo,
e não anunciada) continuamente latente em cada mídia,
que aponta para outra não através do suporte midiático,
mas em função da troca de conteúdos. Segundo Jenkins,
cada acesso a uma franquia dos múltiplos suportes deve ser
autônomo, para que não seja necessário assistir ao filme do
Tim Burton para gostar do game da Disney, por exemplo.
As particularidades de cada mídia sustentam uma singular
experiência que motiva mais consumo, mas o media não
deve ser redundante ao oferecer o que já foi ofertado em
outros canais ou media; explorar novos níveis de revelação
e experiência renova a franquia e sustenta a fidelidade do
consumidor. Afinal, mídias diferentes atraem nichos de
mercado diferentes.
Assim, se unirmos as noções de narrativa
transmidiática e transdução, veremos que, enquanto
mecanismos de produção estética, os fenômenos artísticos
frequentemente transitam nas fronteiras da linguagem
e os processos de transmissão dinâmicos (dentre eles,
a intertextualidade, a transferência intercultural, a
percepção crítica, a paródia) entram em conformidade com
as propriedades do medium. As fronteiras da linguagem e
os processos dinâmicos de transmissão, então, acabam
por catalisar a narrativa e os personagens em migração.
Como num processo químico, a narrativa transmidiática
transdutora opera sob o efeito de uma catalisação,
em verdadeiras transformações diegéticas, alterando a
composição das substâncias (em analogia à narrativa); ao
contrário, a narrativa crossmidiática seria um processo
físico, que não altera a natureza do material que sofre o
Outros
países das Maravilhas para Alice... 161

fenômeno, somente muda o aspecto físico ou o estado das


substâncias, que permanecem as mesmas.
Desse processo de catalisação das narrativas
transmidiáticas propomos o surgimento do que vamos
chamar de “leituras transmidiáticas”, em que o foco está
no utilizador e na soma de experiências que registra ao
aceder a narrativas de um mesmo mote em diferentes
media. Para quem assistiu a Alice no País das Maravilhas
na versão de 1951, brincou com o livro digital de Chris
Stephens e jogou American McGee’s Alice, a Alice não pode
jamais ser somente a de Carroll, uma vez que o que está
na apreensão cognitiva do utilizador é uma profusão de
Alices e a sensação resultante que a ela ficou associada
e que é resgatada sempre que o indivíduo se encontra
diante do símbolo “Alice”. A própria construção do
pensamento – não apenas em termos ideológicos mas
em apreensões cognitivas – depende cada vez mais das
mídias que caracterizam determinadas gerações. O
feedback (no caso, dependente dessa sensação resultante
das Alices que povoam os media) da leitura transmidiática
também funciona em movimento de retroalimentação
com o sistema de mídias, pois a resposta do utilizador
comparticipa da reconstrução das narrativas atualizadas a
cada época e conforme as propriedades dos meios.
Nessa instância é importante entender a literatura
como mídia, ou a “mídia “literatura”“, como propõe
Gumbrecht (1998). Para o filósofo, ela teve a sua expressão
máxima no Iluminismo, à medida que se conseguiu
discernir na literatura o texto autoral dos processos e das
formas literárias, e que de suas crises resultou a literatura do
século XX. Afirma ainda que, atualmente, a concorrência
com outros media põe em causa a sobrevivência dessa mídia
“literatura”, que não conseguiria mais assegurar os dois
processos que ele julga fundamentais na comunicação: a
presença à distância e as relações de troca entre autor e
leitor. No entanto, Gumbrecht está a considerar somente
a literatura impressa, pelo que podemos afirmar que é
justamente por um entendimento cada vez mais aplicado
da literatura enquanto mídia que a literatura conseguirá
sobreviver não somente junto mas nos novos meios
digitais, a saber a própria literatura eletrônica, como
162 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

a de Chris Stephens e o seu Alice para iPad. As leituras


transmidiáticas, aliás, agem nesse nível, vigorando sobre
uma panóplia de acesso às mídias e de possibilidades
de leitura, e depois sobre a conjugação entre essas
possibilidades, resultando numa imagem multifacetada,
com vários enxertos de narrativas compostas sob a remissão
a um núcleo simbólico.
Por fim, depois de todo o trajeto desenvolvido
neste ensaio, da correlação da narrativa de Alice com as
Materialidades da Literatura à análise do comportamento
da história em vários media, podemos chegar à conclusão
de que há em Alice no País das Maravilhas, bem como em sua
continuação Através do Espelho, peculiaridades que fazem
com que a obra seja uma das mais exploradas em diferentes
media e que consiga ser atualizada em conformidade com o
avanço tecnológico e, consequentemente, das mídias, em
seus distintos estágios de desenvolvimento. A explicação,
ao fim e a cabo, exige-nos um retorno à própria narrativa,
fechando ciclicamente este trabalho iniciado com um
olhar apurado sobre a história de Alice.
Numa leitura transmidiática de Alice no País das
Maravilhas, então, poderíamos dizer que a obra traz consigo
um “passado de imagens que nos governa”. Afinal,

Não é o passado literal que nos governa, mas as


imagens do passado: com frequência tão intensamente
estruturadas e tão imperativas como os mitos. As imagens
e as construções simbólicas do passado encontram-se
impressas, quase à maneira de informações genéticas, na
nossa sensibilidade. Cada época histórica contempla-se
no quadro e na mitologia ativa do seu próprio passado ou
de um passado tomado de empréstimo a outras culturas
(STEINER, 1992, P. 13).

Segundo George Steiner, houve uma “Idade de


Ouro”, que vai de 1820 a 1915, portanto, período da
Inglaterra vitoriana e altura em que Alice foi escrito, cuja
convergência de condições vindouras nunca voltou a
ocorrer em outra época da história da cultura ocidental.
Uma realidade considerada frutífera não exatamente por
sustentar um cenário virtuoso, mas por apresentar uma
conjugação de sintomas sociais que, em seus progressos e
Outros
países das Maravilhas para Alice... 163

em suas mazelas, proporcionaram uma produção social,


cultural, humana e política sem igual.
Para Steiner, o “longo Verão”, como ele denomina
esse interstício, corresponde à abertura de um passado mais
civilizado, mais confiante, mais humano do que tudo o que
depois dele conhecemos. “É contra a memória viva desse
longo Verão, e em função do nosso conhecimento simbólico
desse mundo, que hoje sentimos frio” (1992, p. 16). Quer
dizer, por trás de todas as atitudes de autocondenação que
pautam a cultura da pós-modernidade – com o resvalar do
sentimento de desorientação, de recaída na violência e de
perda na insensibilidade moral que dela dimana; a viva
impressão de uma quebra profunda no campo dos valores
da arte e no da decadência dos códigos pessoais e sociais;
os receios de uma nova “idade das trevas” em que a própria
civilização, tal como a conhecemos, possa desaparecer ou
se restrinja a pequenas ilhas de preservação arcaica – há a
presença, largamente inobservada por tão esquiva, de um
passado muito particular. Quer dizer, “a nossa experiência
do presente, os juízos, tantas vezes negativos, que fazemos
acerca do nosso lugar na história, vivem continuamente
contra o fundo daquilo a que eu gostaria de chamar “o
mito do século XIX” ou “o jardim imaginário da cultura
liberal” (STEINER, 1992, p. 15).
Essa perspectiva justifica as expressões taciturnas,
sombrias, sinistras com que Alice no País das Maravilhas
passa a ser retratada ao longo do tempo. Justifica,
inclusive, que possa existir uma exposição como Who is
Alice?, apresentada no Pavilhão da Coreia na Bienal de
Veneza 2013. Com a curadoria de Chu-Young Lee, é a
única mostra patente na 55ª edição da bienal que gira
em torno de um tema – e este tema é justamente a Alice,
não tão somente a de Carroll mas todas as Alices que há
nessa Alice pós-moderna, multimidiática, transduzida (se
havia na narrativa de Carroll o sonho dentro do sonho, o
jogo dentro do jogo, a ficção dentro da ficção, as histórias
dentro da história… agora, possibilitado e potenciado
por essa cultura de uma modernidade tardia, temos as
Alices dentro da Alice, conforme propomos com a leitura
transmidiática).
Na exposição, a estranheza – traço pujante da pós-
164 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

modernidade e fagocitado pela arte contemporânea – é


trabalhada sob as perspectivas sociais, culturais e políticas
e resulta numa visão uníssona, que revela os olhares
dos quinze artistas e os fragmentos patentes nas obras
a afluírem para um mundo adstringente e entrópico,
marcado sobretudo por crises de identidade, de valores
e de posicionamento cultural. A ver, por exemplo, as
fotografias de Hein-Kuhn Oh, em que numa temos o 15
A principal referência que
enquadramento do rosto de uma menina oriental (a Alice se tem de Alice no País das
neste século XXI também ou já é oriental) e na outra Maravilhas em países orientais
é o Fushigi no Kuni no Alice,
vemos uma menina oriental vestida à Ocidente, com um animê produzido pela Nippon
short curto e uma blusa de mangas curtas. Ou, ainda, as Animation e que fez sucesso
em 1983. No desenho,
sombrias pinturas de Jung-Wook Kim, numa das quais Alice não tem qualquer
aparece uma menina com os espaços oculares preenchidos caracterização oriental: aparece
por negro e uma espécie de pele a descascar do rosto, loira e de olhos azuis, embora
seja mais nova e mais “infantil”
formando uma máscara sutil. Taciturna também é a casa de do que a personagem do
transparências, o Dreams of Building, que Myung-Keun Koh filme da Disney de 1951. A
criou, onde sombras e luzes se interceptam na estrutura de sua roupa é que ganha novas
cores, passando a ser vermelha
acrílico em que é impressa a imagem de uma construção e branca em referência à
inglesa do século XIX. Há ainda a obra The Time, de Young- bandeira do Japão e ao
Geun Park, que faz referência ao relógio do Coelho, numa comunismo. O único elemento
da adaptação que realmente
pintura formada por duas telas, uma com o fundo negro e nos remete à cultura japonesa
a tinta em branco, outra com o fundo branco e a tinta em é a lúdica música eletrônica, ao
negro. Se neste trabalho temos os traços desorientados, estilo que se popularizou em
todo o mundo com os games.
quase que numa impressão afixada de um espectro, a fazer 16
Em meio a uma «cultura
alusão a um tempo confuso, é em The Wing, de Xooang soft power», a Coreia vem
Choi, que a esse tempo se junta a liberdade, com as suas promovendo na Ásia a vaga
hallyu, como tem sido chamada
asas formadas por mãos de súplica. a política voltada para as
Uma das singularidades da exposição é que Alice e culturas de massa, como prova
o sucesso de Gangnam Style
o seu universo são agora retratados por artistas plásticos e em todo o mundo. Contra a
fotógrafos de um país15 que, além de bastante representativo expansão desse movimento
da luta travada no século XX entre Ocidente e Oriente, de ocidentalização (que inclui
o ritmo musical de Psy, o
agora atravessa uma forte crise cultural com a crescente K-Pop, a comercialização de
ocidentalização.16 E aqui se revela a assertiva escolha cosméticos que prometem
curatorial em adotar o poder simbólico e transdutor de “ocidentalizar” os traços
orientais e até mesmo a
Alice para que, através dele, a peculiaridade de cada obra construção de um bairro
possa integrar uma concepção coletiva que indicie quem é em Seul aos moldes de
essa Alice do século XXI. Hollywood), desde 2006 a
China colocou restrições
A exposição corrobora, portanto, a universalidade aos programas televisivos
de Alice no País das Maravilhas, alcançada, primeiro, pela importados da Coreia e Taiwan
maestria intrínseca à narrativa, em que Carroll conseguiu impôs quotas às suas rádios
para controlar o número de
tornar universal particulares experiências e contextos vezes que músicas coreanas são
localizados (o que faz de uma obra uma obra-prima, afinal, transmitidas (cf. Revista Visão,
24 de janeiro de 2013).
Outros
países das Maravilhas para Alice... 165

é a sua capacidade de conseguir alcançar tamanho nível


de abstração que torna o singular universal). A saber,
inclusive, de como nesse processo foi imprescindível o
temperamento esquizóide de Charles Dodgson, que o
permitiu manipular ferramentas do mundo adulto ainda
que apresentasse a maturidade de uma criança, o que em
muito contribui para que Alice seja uma narrativa bastante
peculiar (no fundo, foi escrita por uma criança com acesso
a todas as possibilidades operacionais de um mundo
adulto).17 Num estudo incluído na obra O Momento e
Outros Ensaios, de 1948, Virgínia Woolf sublinha: “As duas
Alices não são livros para crianças; são os únicos livros
em que nos tornamos crianças”. E mais adiante arremata:
“Uma vez que a infância permaneceu inteira nele [Charles
Dodgson], pôde fazer o que mais ninguém conseguiu –
regressar a esse mundo; pôde recriá-lo de tal forma que
17
Defendemos essa ideia também nós nos tornamos crianças de novo” (WOOLF
com base no enquadramento
clínico que António Lobo apud ANTUNES; SAMPAIO, 1978, p. 30).
Antunes e Daniel Sampaio
apresentam em Alice no País das
Maravilhas ou a Esquizofrenia
Ao contrário do que habitualmente sucede com outros
Esconjurada, artigo de 1978 escritores, que ao longo dos anos logram uma evolução
que revela Charles Dodgson progressiva da forma e dos conteúdos narrativos, as
como portador de uma psicose
(por isso, em suas cartas
características das suas criações afirmam-se imutáveis
enviadas ao cirurgião Paget, desde o início: subversiva invenção formal, alterações
revela-se sempre preocupado da estrutura narrativa, neologismos, episódios sem
em ter alguma doença
cerebral) com a qual conseguia
nexo aparente, ao passo que os seus desenhos da altura
lidar ao escrever histórias se caracterizam por distorções corporais, violenta
(supostamente) infantis. É conflituosidade dos personagens e pela perplexidade
assim que nasce Lewis Carroll, ansiosa dos seus olhares, comum aos seus retratos da
que se manifestava sob a
existência de uma criança do juventude (ANTUNES; SAMPAIO, 1978, p. 23).
sexo oposto ao do seu núcleo
adulto. Dodgson, na verdade,
era Carroll, e Carroll, Alice.
Por conseguinte, podemos dizer então, para
O que justifica porque junto concluir, que a universalidade de Alice também é fruto
ao matemático, com toda
a sua rigidez, monotonia e
do advento de uma pós-modernidade prenunciada pela
pouca criatividade, coexistia obra; pós-modernidade que, por sua vez, potencializa a
o genial e inovador escritor. E obra em um mundo globalizado, convergente e rumo à
o que demonstra, ainda, que
a amizade de Dodgson com homogeneidade inclusivade mercados consumidores.
meninas entre os 7 e os 11 Com Alice observamos que os livros que permanecem
anos de idade, que fotografava
seminuas ou em atitudes de numa continuidadecultural são aquelas que trazem
abandono, em nada tinha a consigo marcas de leituras precedentes já enraizadas na
ver com pedofilia, mas com
o reconhecimento de uma
cultura, como diria Italo Calvino (1993), mas que também
entidade autônoma criada para permitem que essas marcas indiciem leituras atualizadas
invetivar a sua doença. da sociedade presente ou daquela que se avista. Assim,
166 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

se não existem “primeiras leituras” de obras-primas, mas


apenas “releituras”, Alice possibilita que estejam sempre a
ser feitas releituras de valores sociais, culturais e políticos,
quer seja pela narrativa quer seja pelos próprios meios em
que a sociedade se inscreve dia a dia.

(Fig. 14) Sem título, de Jung-Wook Kim; tinta da china sobre


papel, 162 x 112 cm, 2012. (Fig. 15) The Time, de Young-Geun
Park; tinta óleo sobre tela, 226 x 182 x 2 cm, 2004. (Fig. 16)
Da-won KANG, age 19, August 13, 2007, de Hein-Kuhn Oh;
C-print, 155 x 122 cm, 2007. (Fig. 17) Su-ra KANG, age 18,
July 19, 2008, de Hein-Kuhn Oh; C-print, 155 x 122 cm, 2008.
Outros
países das Maravilhas para Alice... 167

(Fig. 18) The Wing, de Xooang Choi; tinta óleo sobre resina,
56 x 172 x 46 cm, 2008.

(Fig. 19) Dreams of Building, de Myung-Keun Koh; filme


plástico, 64 x 139 x 79 cm, 2002. Feita em acrílico com grau
de transparência, a obra nos permite ver a casa por dentro,
em que sombras e luzes se interceptam. O matiz sombrio,
literalmente espectral, e a reprodução da arquitetura inglesa
do século XIX permitem o diálogo com o Rutledge Asylum, de
American McGee’s Alice.

Aliás, talvez até hoje falemos da obra de Carroll


porque ela nos fala sobre um futuro que chegou. Um
futuro de largo presente preenchido por múltiplos
passados, em que na “presentificação do passado”, como
diria Gumbrecht (2010), é reproduzida a sensação de
que os mundos de outrora podem se tornar de novo
tangíveis, especialmente a partir de técnicas obtidas com
as novas mídias e aparatos tecnológicos (eis aqui mais uma
vez o Steiner e a ideia de que vivemos à sombra, num
inconsciente coletivo que constrói uma nova realidade ao
passo que persegue tentativas de se chegar novamente ao
168 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

longo Verão). Pois que, bem-vindos aos novos Países das


Maravilhas, com os seus encantos e suas seduções, com as
suas crises e suas nevralgias, em fragmentos ressonantes
de várias culturas em pontos diversos do globo. E por
onde, entre diferentes narrativas, meios e contextos,
continuamos a questionar… Quem é Alice. Ou melhor,
quem somos enquanto Alice. Enquanto Alices.

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171

Amor e morte em Dido,


a Rainha de Cartago, de
Christopher Marlowe,
e Eneida, de Virgílio

Maria da Conceição Oliveira Guimarães*

Resumo: Este artigo investiga a recepção do poema de Virgílio,


Eneida, pelo dramaturgo inglês Christopher Marlowe, em seu
drama, Dido, a rainha de Cartago. A peça de Marlowe foi
escrita no século XVI e foca, na essência, o Livro IV da Eneida.
A transtextualidade dessas duas obras permite demonstrar que
todos os prismas de amor-paixão desde os gregos e romanos
emerge como Mania (loucura) e Hedonê (prazer), fato que
leva para Thanatos (morte). Levando em consideração o poder
destrutivo desta tríade perseguida por Dido, pode-se pensar
que, tanto no épico de Virgílio como no drama de Marlowe,
o amor, o prazer e a morte também acompanham Eneias desde
Troia até sua busca pela costa da Hespéria.
Palavras-Chave: amor, loucura, prazer, morte.

Summary: This paper investigate the reception of Virgil’s


poem, Aeneid, by the English dramatist Christopher Marlowe,
in his drama, Dido, Queen of Carthage. Marlowe’s play,
written in the 16th century, focuses, in essence, Aeneid’s book
IV. It should be noted that all prisms of burning amatory among
the Greco-Romans, the love emerges as Mania (Madness) and
as Hedonê (Pleasure), fact that bringing them to Thanatos
(Death). Taking into consideration the destructive underbelly
of this constituent triad of steps followed by Dido, it allow to
think that in both poems, as Virgil’s epic as Marlowe’s drama,
the love, the pleasure and the death also run with Aeneas since
Troy until his search by Hesperia’s coast.
Keywords: love, mania, hedonê, thanatos.
*
Faculdade Estácio, Natal –
RN. Pós-doutoramento em
Coimbra, com Bolsa CAPES.
172 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

Convergências e divergências intertextuais entre


as obras Eneida, de Virgílio, e Dido a Rainha de
Cartago, de Marlowe

O cotejamento de obras que atravessam fronteiras


nacionais e linguísticas permite revelar a diferença ou
a semelhança de tom, estilo e assunto entre elas. Parte-
se, então, do conceito de literatura comparada por
Remak, para se compreender a presença ativa do estudo
comparativo entre literaturas. Segundo Remak (1994, p.
3):

A literatura comparada é o estudo da literatura além das


fronteiras de um país específico e o estudo das relações
entre, por um lado, a literatura, e, por outro, diferentes
áreas do conhecimento e da crença, tais como as artes (por
exemplo, a pintura, a escultura, a arquitetura, a música),
a filosofia, a história, as ciências sociais (por exemplo, a
política, a economia, a sociologia), as ciências e a religião,
etc. Em suma, é a comparação de uma literatura com
outra ou outras e a comparação da literatura com outras
esferas da expressão humana.

Da confrontação das obras de Virgílio e de


Christopher Marlowe, mediada pela presença dos
pressupostos da comparatividade, ter-se-á a oportunidade
de “localizar na obra comparada o que foi mantido, o que
foi rejeitado, o porquê e o como”, da obra em comparação,
como defende Remak (1994, p. 176).
A Eneida de Virgílio é um texto épico-lírico escrito
no século VII a. C. e Dido, a rainha de Cartago, de Marlowe
é um drama contextualizado no século XVI d. C. Há que
se notar que nem o caráter estético-formal nem a qualidade
de gênero invalidam ou diminuem o seu valor temático,
apenas marcam uma reflexão a respeito da beleza sensível e
do fenômeno artístico dos textos de Virgílio e de Marlowe.
Em geral, os estudos sobre a Eneida apresentam uma
estrutura cindida em duas partes. Essas partes, como refere
Marques Júnior (2006, p. 17), estão relacionadas à Odisseia
e à Ilíada, ou seja, os primeiros seis livros, que tratam
da errância do herói troiano ligam-se à Odisseia e os seis
últimos, que prendem-se às ações do herói conquistador
Amor
e morte em Dido, a Rainha de Cartago... 173

de terras e gentes, assemelham-se à Ilíada. No entanto,


para este artigo, elege-se a estrutura triádica da Eneida
desenvolvida também por Marques Júnior, com particular
interesse pela Parte I,1 “Provações”. Nessa parte estão
identificados os Livros I ao IV. O Livro terceiro marca com
denodada atenção os ritos de passagem, elegendo-os como
1
Marques Júnior apresenta
uma estrutura triádica para
temática principal e no Livro quarto refere-se ao furor e
a Eneida, a saber: Parte I, à paixão que tomam conta da rainha de Cartago. Com
“Provações”, livros I-IV; Parte referência à Eneida, Marques Júnior (2006: 17) alude ao
II, “Rituais”, livros V-VIII e
Parte III, “Combates”, Livros trágico destino da personagem ao se submeter ao deus do
IX-XII. amor: “[…] amores de Dido e Eneias, com o herói vendo-
2
Refiro-me às obras de Sêneca,
cujas peças eram objeto de se obrigado a deixar a rainha, para cumprimento do seu
grande interesse para autores destino. O desdobramento de amor e fuga de Eneias leva
ingleses do século XVI, pois
introduzia cenas de violência
Dido à morte”. É especificamente no livro IV da Eneida
e crueldade no lugar da que Marlowe vai buscar inspiração para compor a obra
verdadeira história narrada Dido, a rainha de Cartago.
por seus testemunhos. Foi,
então, a versão italianizada, na Não obstante Shakespeare ser considerado
qual o mal era representado o precursor do teatro elisabetano, foi Marlowe, seu
com toda sua intensidade, o
que encantou os dramaturgos contemporâneo, o mais expressivo representante desse
elizabetanos e encontrou teatro do século XVI e, como tal, suas peças possuem
interesse do público. Vê-se no
drama de Marlowe que todas
um caráter passional, aproximativo da catarse da tragédia
as personagens que amavam greco-latina,2 mas, ao mesmo tempo, dela se afastando.
Dido cometerem suicídio em
“solidariedade” à heroína
Se não segue os ditames estéticos da tragédia clássica
numa pira construída pela teorizada por Aristóteles, por outro lado escolhe um dos
própria Dido, evento que não temas mais relevantes da mitologia greco-romana cantada
ocorre na “Eneida”.
3
Essa “pausa” compreende por Virgílio, a fundação de Roma. O dramaturgo inglês
o período de descanso entre centra-se com profundidade na “pausa”3 que foi concedida
a partida de Eneias de Troia
e sua chegada à Hespéria pelos deuses a Eneias, depois de um périplo marinho
para cumprir seu destino, a cheio de sobressaltos, para retratar o amor e morte entre
fundação de Roma. Segundo a
lenda, ele teria de sofrer uma
as duas personagens. É nesse hiato entre as errâncias e o
“pausa” no seu périplo, ou seja, descanso que o herói goza do amor de uma rainha numa
gozar um período de descanso evidente aproximação literária com a Odisseia, quando
em virtude das muitas
tribulações que sofrera durante Ulisses descansa em Ogígia nos braços de Calipso e na
o período de circunavegação e Ilha de Circe.4
foi Cartago o lugar escolhido
por sua mãe para esse merecido O drama que escreveu Marlowe goza dos mais
descanso. destacados elementos caracterizadores do teatro
4
Assim como Ulisses, durante
seu périplo de retorno à casa,
elisabetano, tais quais os descritos por Berthold:
descansa em Ogígia com
Calipso, Eneias descansa do […] o teatro elisabetano caracteriza-se pela mistura
trajeto entre Troia e Hespéria
em Cartago, nos braços de sistemática do sério e do cômico; pelo abandono das
Dido. unidades aristotélicas clássicas; pela variedade na escolha
174 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

dos temas, tirados da mitologia, da literatura medieval e


renascentista e da história […] (BERTHOLD, 2000, p.
157).

Entretanto, Marlowe não se deixou influenciar


pelos temas ligados à história política da Inglaterra de
Elisabeth I, apesar de esse período ter sido próspero em
todos os setores da sociedade, inclusive com destaque para
a literatura e a poesia e com expressivo apoio ao teatro.
A recepção do tema grego por Marlowe além de
realçar elementos comuns ao teatro elisabetano, o texto do
autor inglês ainda faz uso de outro recurso caracterizador
dos dramas originários daquela época, a mistura do sério
e do cômico. Ao se rever a passagem no ato IV, cena 5 do
drama de Marlowe, em que a ama de Dido joga com as
palavras e tenta seduzir Cupido, tem-se um elemento grave
adicionado a uma pitada de humor o que contribui para
um momento menos tenso na peça. O dramaturgo inglês
interpola em sua peça o estilo sério advindo da tragédia
clássica com um estilo menos nobre, satisfazendo o gosto
popular.
A influência do teatro elisabetano torna-se a
explicação possível para que as cenas de amor em Marlowe
sejam bem mais expressivas do que as que ocorrem na
Eneida. Ademais, algumas ações que acontecem na peça
marlowiana não ocorreram no poema de Virgílio e esse
fato só pode ser explicado pela preponderância que o
teatro elisabetano exerceu sobre os dramaturgos da época.
Em “Dido, a rainha de Cartago”, as personagens ganham
espaço grandioso, como Iarbas, um dos pretendentes de
Dido. Essa personagem, rei da Gaetúlia, no poema de
Virgílio, é concebida como figura de menor expressão.
Outro fator importante a ser observado no drama
marlowiano é o sutil e aberto tetrágono amoroso: Ana
ama Iarbas que ama Dido que ama Eneias que não ama
ninguém. Na sequência de amores não correspondidos
surge a morte. No final da peça marlowiana, Dido comete
suicídio e arrasta com ela para o reino dos mortos a irmã
Ana e Iarbas, ações que não acontecem no poema de
Virgílio. Fazendo convergir o seu texto para as bases em
que se assentava o teatro elisabetano, Marlowe carrega nas
Amor
e morte em Dido, a Rainha de Cartago... 175

tintas da paixão e na complexidade da relação deste casal


que o mito da fundação de Roma descrito na Eneida já o
tinha fadado ao desenlace.
Logo, há que se ressaltar as diferenças textuais da
obra de Virgílio e da obra de Marlowe, mesmo que entre os
textos haja um vínculo comum: o mito greco-romano com
indissociável tema trágico do par que se ama e se separa
em razão do cumprimento do destino que os deuses lhe
impuseram. Como se demonstra no poema de Virgílio,
o amor entre Dido e Eneias está encoberto pelo véu do
lirismo, é um amor lírico, poético, quase se pode afirmar
que seria um amor que existe apenas pela conspiração de
duas figuras divinas, Vênus mãe de Eneias, e Juno, deusa
que está em eterna contenda com Vênus. Desde logo, em
Marlowe, apesar de o amor entre os dois ser nas mesmas
bases de conluios divinos, torna-se desmesurado e a paixão
da rainha é exacerbada pela rejeição do herói, levando-a à
loucura e à morte, posto que sua estética estrutural é de
teatro e não de poesia.
Outro aspecto divergente entre os textos, e que se
sobressai logo à partida, é a maneira de como Marlowe
constrói o caráter relacional entre o par Dido e Eneias. O
herói de Marlowe, por foça de uma ação divina, enamora-
se da rainha e por causa desse sentimento, perde-se.
Deslumbra-se com as possibilidades de que a Cartago
de Dido lhe possa oferecer a glória que lhe foi destinada
pelos deuses, ignorando por completo a Hespéria. Por
vezes sucumbe diante do amor de Dido, tornando-se fraco,
cedendo facilmente à sua vontade. O herói de Virgílio
tem sempre em mente o objetivo traçado pelos deuses e
não esquece que tem de chegar à costa da Hespéria e lá
fundar uma nova Troia. Para ele a costa da Líbia é apenas
um lugar de pausa para um merecido repouso depois do
tumultuado périplo.
Assim sendo, Virgílio apenas cita o evento arranjado
por Vênus e Juno para que o casal se encontrasse a sós
numa gruta e lá ocorresse um enlace. No texto de Marlowe
não há juras de amor em nome dos deuses da hospitalidade
nem jura de fidelidade conjugal pela espada. Em prolepse,
os versos de Virgílio (Livro IV: 228) apenas antecipam o
motivo da morte da rainha, quando anunciam que a sua
176 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

vida está selada à vida do troiano para, em seguida, fazer


uma referência à causa que arruinou Cartago:

Lhe foi aquele dia a causa toda


da morte que ela teve, das desgraças,
pois nem conveniência nem a honra
a podem defender, já que não pensa
ser um amor furtivo: é casamento,
com este nome cobre a sua falta.

Já no drama de Marlowe, o protagonista,


intermediado por Vênus e Juno, jura amor à rainha sob
os mais venerados símbolos de um herói: a hospitalidade
e a espada. Promete nunca abandoná-la diante dos mais
sagrados elementos míticos de origem: a terra, os céus e a
água de cujas entranhas surgiu sua mãe, Vênus:5

Alguém tão sem valor quanto Eneias


Com esta mão dou-te meu coração
E aos deuses da hospitalidade juro
Por céus e terra e pelos meus irmãos
Pelo mar púrpura, Cápis e Pafos
De onde minha radiante mãe surgiu
Eu juro ainda por esta espada
Que me salvou de várias gregas mãos
Nunca estas muralhas abandonar
Enquanto Dido sobre elas reinar
E ninguém além dela amarei.
(ato III, cena 4, versos 42-51)

Sabe-se que a um herói mítico, como é o caso


de Eneias, jamais será consentida a hesitação diante
de uma missão delegada por um deus, sobretudo não
lhe é permitido conspurcar a imagem dos deuses da
hospitalidade, sob pena de lhe ser subtraída a condição
sagrada de herói. Sendo inabitual que um herói guerreiro
quebre o excelso laço firmado com o divino, como acontece
ao Eneias de Marlowe, tal fato só poderá ser explicado
através da divergência de focos de interesses entre os dois 5
Todas as citações de Dido,
autores, seja pela diferença de gênero textual, seja pela a rainha de Cartago de
Christopher Marlowe, aqui
distância temporal, sejam pelos diferentes objetivos ao referidas, são colhidas na
qual se propuseram. tradução de Thais Maria
Giammarco.
Amor
e morte em Dido, a Rainha de Cartago... 177

Elucidando a asserção acima, vê-se que o objetivo


eleito por Marlowe em Dido, a rainha de Cartago difere
do fim que pretendia alcançar Virgílio com a Eneida. O
propósito do poeta mantuano é cantar a glória de Roma
e o projeto do dramaturgo inglês é evidenciar um drama
amoroso com consequências funestas. Apesar de todas
essas razões, não se pode afirmar que Marlowe rompe
com Virgílio ao escrever seu drama, embora pontos de
distanciamentos entre as duas obras estejam óbvios.
Acresçam-se aos distintos objetivos escolhidos pelos dois
autores o caráter estético-formal, os gêneros textuais e o
espaço temporal, já referidos.
Além da temática abordada por Marlowe indicar
uma transtextualidade advinda do livro IV da Eneida,
como já foi mencionada, há outras passagens em Dido, a
rainha de Cartago que certificam a recepção do texto latino.
De acordo com Genette, a transmissão ou a aceitação de
um texto por outro ocorre de várias maneiras. No entanto,
esse teórico ressalta que, de um modo geral, esse fenômeno
se realiza sempre em “tout ce qui le mette en relation, manifeste
ou secrète, avec d’autres textes” (Genette, 1982, p. 7). Nesse
aspecto, há que se notar, logo de início, que a temática greco-
latina já se configura numa incontestável intertextualidade
defendida pelo teórico francês. Por outro lado, é inevitável
que se observe outros pontos de influência literária que
sofreu o texto de Marlowe. Para tornar mais claro esse
ponto, demonstrar-se-á, brevemente, a divisão de tipos da
transtextualidade apresentada por Genette em Palimpsestes.
No desdobramento de sua teorização, o estudioso especifica
o quarto tipo de transtextualidade que a denomina de
hipertextualidade, “J’entends par là toute relation unissant
un texte B (que j’appellerai hypertexte) à un texte antérieur A
(que j’appellerai, bien sûr, hypotexte) sur lequel il se greffe d’une
manière qui n’est pas du commentaire” (Genette, 1982, pp.
11-3). Sob o ponto de vista de Genette, Dido, a rainha de
Cartago, é um hipertexto da Eneida, assim como a Eneida
é um hipertexto da Odisseia e da Ilíada. Portanto, é seguro
afirmar-se que as diferenças e convergências textuais
encontradas na obra de Marlowe em relação à obra de
Virgílio confluem para uma hipertextualidade entre as
obras Eneida e Dido, a rainha de Cartago.
178 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

Um dos exemplos mais explícitos de hipertex-


tualidade, em que parece haver uma divergência textual, na
obra de Marlowe, surge pela voz de Eneias, quando decide
permanecer em Cartago e anuncia sua determinação aos
nautas, seus companheiros:

Triunfo, homens, não mais vagaremos


Nova Troia aqui fundará Eneias
Mais poderosa que a devastada
Pelas mãos dos Atridas
Suas diminutas muralhas Cartago
Não mais ostente como sua glória
Moldura ainda mais bela lhe darei.
(ato V, cena I, versos 1-5)

Vê-se no drama de Marlowe o júbilo de Eneias,


em relação à construção da cidade de Dido, jamais
visto no texto de Virgílio. Na Eneida, é mencionado
apenas o contentamento de Eneias em relação a esse
empreendimento.
Ainda assim, o poema de Virgílio não deixa de ser
a fonte de onde emana a hipertextualidade encontrada na
peça de Marlowe. Pode-se demonstrar a recepção do tema
latino em Dido, a rainha de Cartago quando Mercúrio, o
mensageiro de Júpiter, recrimina Eneias e chama a sua
atenção ao encontrá-lo em êxtase a construir as muralhas
de Cartago.

Aqui estás tu
a lançar alicerces de Cartago,
uma altiva cidade que será
bela também, que tu assim constróis
como se fosses só um bom marido
quando afinal és príncipe esquecido
do reino seu e de altaneiros fados.
O próprio rei dos deuses me enviou,
ele que faz girar o céu e a terra,
de seu ilustre Olimpo me mandou
para através dos ventos te lembrar
que não deves passar tempo ocioso
neste país da Líbia que não pode
a ti fazer raiar uma esperança.
Se não te move a ti alto destino
Amor
e morte em Dido, a Rainha de Cartago... 179

vê como Ascânio cresce e que esperança


há para teu herdeiros, aquele Iúlo,
a quem pertencerá Itália e Roma.6
(Virgílio, 2008, p. 232)

O que se pode notar é que Virgílio é bem mais


enfático quando se trata da responsabilidade do herói.
No caso de Marlowe, o mensageiro de Zeus apenas faz
uma advertência a Eneias de que chega de jogos amorosos
e brincadeiras de reconstrução de muros, pois o que interessa
ao dramaturgo inglês é o embate amoroso, sem, contudo,
deixar de sublinhar que o deus todo-poderoso tem planos
mais nobres para os descendentes de Troia. Frise-se que
o objetivo maior do poeta mantuano é a construção de
Roma por Eneias e a reconciliação entre troianos e gregos,
conforme Grimal (2005, p. 136), por isso Eneias precisa
retomar as responsabilidades às quais foi incumbido
realizar pelas hostes divinas.

Amor, sentimento que destrói tanto quanto a


morte

Desde todo o sempre, o amor e a morte são pares


indissociáveis nas tragédias e nos dramas que envolvem
casais em diferentes épocas e autores. Os pares Medeia e
Jasão, Hércules e Dejanira, Helena e Páris, Dido e Eneias
são os exemplos que se destacam neste paper, pois a
literatura, seja clássica, medieval ou moderna, está plena
de casais que sucumbem diante de um amor-paixão não
correspondido. Não importa que sejam amores lícitos
ou ilícitos, a destruição do casal e de suas casas reais
necessitam tão-somente de uma dose de Hedonê e outra
de Mania misturadas à rejeição de uma das partes. Esse
processo resulta numa porção química sedutoramente
perfeita para atrair Thanatos.
A Hedonê do grego arcaico Ἡδονή é a deusa latina
6
Segundo Grimal, Ascânio ou Volúpia, filha de Eros e Psiquê. Por derivação, ‒ Hedonê
Iúlo, filho de Eneias, fundará
Alba Longa, a metrópole de
transformou-se no hedonismo, em que o prazer é o
Roma. Outras lendas falam supremo bem da vida e, na atualidade, essa virtude se
de Eneias como fundador de pode expressar pelo culto ao prazer. Já a Mania, segundo
Roma.
180 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

Grimal, é a personificação da loucura. A deusa grega


Mανία é quem conduz as personagens às catástrofes, aos
assassínios e à Thanatos (θάνατος), que, por sua vez, é a
personificação da morte. Percebe-se que essa tríade está
em perfeito acordo no teatro de Marlowe, embora apareça
no poema virgiliano, mas de forma diluída, porque o que
interessa no poema virgiliano é a gesta e a glória do herói.
Eneias representa um amor ilegítimo e destruidor
para Dido, semelhante ao amor ilícito entre Páris e Helena,
que serviu de móbil originador da disputa bélica que levou
Troia à ruína. O fogo, particularmente na peça de Marlowe,
transforma-se em outro elemento de aniquilamento,
tornando-se símile do amor-paixão. A rainha de Cartago
foi picada pelo amor e pela paixão ardente que a destruiu
e, por consequência, teve seu império aniquilado. Basta
lembrar que Dido, na peça inglesa, ao se sentir possuída
pelo amor, enfraquece, e sua liderança torna-se débil.
Pensa, vive e morre pelo amor de Eneias, esquecendo-se
quase que completamente de seus deveres para com sua
Cartago.
No poema de Virgílio o fogo é igualmente um
simbólico de evidente destruição. Nas duas obras a
chama representa a força centrípeta da exterminação, da
higienização de tudo que representa o mal. Dido é o mal
para Eneias, pois, se o herói optar por ficar em Cartago,
gozando da Hedonê do amor de Dido, colocará em perigo
a construção de uma nova Troia; Eneias é o mal para
Dido, porque, se a rainha preferir o amor de Eneias em
detrimento ao de outros admiradores, inclusive de Iarbas,
seu protetor e pretendente, esquece-se de sua função maior:
manter a prosperidade, a expansão e a união do reino de
Cartago. Esse fato encontra-se mais evidente no texto
do dramaturgo inglês, quando Dido fica acometida pela
Mania. Numa autopunição, a rainha se compara à mulher
que os troianos jamais haveriam de perdoar: Helena.

“Segunda Helena” chama-me o mundo


Por de um estrangeiro me enamorar
Ao menos fosses fiel como Páris
Caia Cartago como outrora Troia
E que me chamem de “segunda Helena”
(ato V, cena 1, versos 144-8)
Amor
e morte em Dido, a Rainha de Cartago... 181

Ressalte-se que essa similaridade amorosa destrutiva


do amor entre os casais Páris-Helena e Eneias-Dido os
aproxima da destruição de suas casas reais. Helena não
morre por amor como acontece a Dido, mas tanto no
poema de Homero, quanto no poema de Virgílio, como
também no drama de Marlowe, por causa de um amor
inconcebível, os reinos são destruídos.
O aspecto avassalador do amor que arruína Cartago
também aniquila a vida da rainha, pois ele é automutilante,
é um amor causa mortis, é “o amor não correspondido
que arrasta o ciúme, o ódio e a morte”, como afirma
Ferreira (2004, p. 43). Tal amor transporta consigo força
e destruição física e moral. Esse sentimento dominador
e possessivo atrai para a morte o ser amante ao mesmo
tempo conduz à ruina o ser amado. É assim que a fenícia
se comporta na peça de Marlowe. Veja-se que, por causa
de seu amor ensandecido, Dido quis transformar Eneias
em um novo Siqueu, demolindo sua identidade heroica,
e, por extensão, a moralidade de seus atos.

Valente amor em meus braços terás


A tua Itália, onde reinarás
Siqueu seja teu nome, e não Eneias
Rei de Cartago, e não filho de Anquises
(ato III, cena 4, versos 57-60)

Entretanto, o fogo do amor-paixão de Dido não é


capaz de derruir o destino de Eneias, pois há a intervenção
divina que chama o herói à razão. Já a loucura amorosa
da rainha provoca sua própria ruina física e moral. A
ação devastadora do amor em Dido, tanto no poema de
Virgílio quanto no drama de Marlowe, tem um sentido
diferente do amor que envolve o par Medeia-Jasão. Presa
pelo amor de Jasão, Medeia, figura de paixões violentas, de
possessividade incontrolável e de personalidade tão forte
quanto Dido, perde-se de ciúmes. Jasão, ao preteri-la em
razão mais de interesse e ambição do que de amor pela
filha do rei, concorre para o desvario de Medeia, que não
vê outra saída a não ser a da vingança: comete infanticídio.
A rainha de Cartago não tem filhos para se desforrar do
mal causado pelo amante, todavia pede às divindades que
182 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

consiga o que há de mais cruel para Eneias durante o seu


trajeto em direção à costa da Hespéria,7 Os versos a seguir
assim fazem referência à sua insânia:

Atribuí que mesmo chegando a Itália


Sejam atormentados sem descanso
E possa de minhas cinzas surgir
Um tal conquistador que vingará
Tamanha perfídia a uma rainha
Seus países com a espada revire
Paz nunca haja entre esta terra e aquela
(ato V, cena 1, versos 303-9)

Com a perceção de que Eneias prefere a glória, a si


destinada pelos deuses, ao seu amor incondicional, Dido
decide morrer e de uma forma velada insere a vontade dos
deuses no seu desejo. No drama de Marlowe (ato V, cena
1), os versos 130-1 descrevem, em prolepse, a sua decisão:

Quem são os deuses que morta me querem?


De que maneira a Júpiter ofendi
Que de meus braços Eneias arranca?

Dido é assaltada por uma loucura amorosa próxima


do desvario que acomete Dejanira, esposa de Hércules, na
tragédia, As Traquínias, de Sófocles. Dejanira, em virtude de
seu ciúme, provoca a morte do ser amado. Sente-se culpada
e, em razão disso, comete suicídio no leito nupcial com
a espada de Hércules. Observa-se uma transtextualidade
entre o drama construído por Marlowe e a tragédia de
Sófocles na cena do suicídio de Dido. A rainha de Cartago
escolhe entre os pertences de Eneias a espada, objeto que
não deitará fora nem queimará, transforma-a, contudo,
em símbolo do rompimento do amor e da vida. Assim
como a esposa de Hércules, Dido faz uso de objeto igual
ao que Dejanira utilizou para dar fim a vida.
7
Hespéria, hoje toda a região
da Itália. Na véspera da partida
Esta é a espada, que, naquela gruta de Eneias da Troia dizimada,
Desembainhando, ser leal jurou os numes tutelares apareceram
Pior teu crime, queimarás primeiro e disseram-lhe que ele deveria
ir para o local de origem de
(ato, cena 1, versos 295-7) Dárdano, antes chamado
Hespéria agora Itália.
Amor
e morte em Dido, a Rainha de Cartago... 183

Dido não está tomada de ciúme por Eneias, mas


encontra-se tomada pelo desejo de posse. A fenícia é
vencida pelas armas letais de um amor Mania que foram
ampliadas pela rejeição de Eneias.
Na peça de Marlowe, antes de consumar o ato, Dido
é acometida pelo “furor da paixão”, como afirma Marques
Júnior (2006, p. 35) a respeito da personagem do poema
de Virgílio, de tal maneira que tem alucinações e entra em
cena transtornada:

Farei asas de cera como Ícaro


E, acompanhando seus navios no mar
Até bem perto do sol voarei
Para que, então, derretam minhas asas
E eu caia para sempre em seus braços
Ou uma prece às ondas farei
Possa, como a sobrinha da Tritão
Ao encontro de seu navio nadar
Oh, Ana, busca a harpa de Arion
Para que eu possa encantar um golfinho
Que em seu dorso, até Eneias me leve
Olha, irmã, os navios do meu Eneias
Vê como ao alto o arremessam as vagas
E agora caem rumo às profundezas
Ó, minha irmã, essas rochas remove
Ou seus navios elas destruirão
Ó, Júpiter, Netuno, e Proteu
Salvem Eneias, amado por Dido!
Agora vem à costa são e salvo
Mas vê, Acates quer que volte ao mar
Os marinheiros vibram de alegria
Mas, à minha memória, ele recua
Vede, retorna, sê bem-vindo, amado.
(ato IV, cena 5, versos 243-60)

A disputa entre Juno e Vênus torna o amor de


Dido e Eneias inconciliáveis, o que se transmuta em um
paradoxo. Juno, a deusa que protege a licitude da união
entre os casais pretende que Eneias e Dido fiquem juntos
e Vênus, a deusa que incita toda a espécie de amor, quer
ver seu filho feliz. No entanto, se por um lado Vênus não
deseja que seu filho abdique da felicidade com Dido na
bela Cartago, por outro não quer que ele renuncie ao
184 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

destino glorioso que lhe foi prometido. Desconstruindo-se


o que se apresenta como antagonismo na forma litigante
dessas divindades, percebe-se que há uma intenção sub-
reptícia nesse jogo divino entre Juno e Vênus, como bem
percebe Marques Júnior (2006, p.39-40):

Em cada uma, os interesses são diversos: para Juno,


a união de Dido e Eneias […] é a garantia de que
Cartago não será destruída pelos troianos. Para Vênus,
que reconhece a astúcia de Juno, é a oportunidade de
proteger seu filho em terra estranha, que celebra Juno, e
fazê-lo repousar e se refazer da tempestade e do naufrágio
de treze dos vinte navios que o acompanhavam desde a
saída de Troia.

A questão é crucial para uma explicação sobre o


acordo tácito firmado entre as divindades em relação ao
destino do pio Eneias, uma vez que andaram em conflito
desde o famoso julgamento de Páris no Monte Ida.
Celebrada a paz entre as duas, tudo parece ir bem até que
Eros é impelido a provocar Thanatos, assentido por um jogo
lúdico em que a pulsão de vida provoca a pulsão de morte.
Amores doentios, obsessivos e destruidores são
encontrados em vários autores clássicos, mormente nas
tragédias gregas. Não seria despropositado afirmar que
Virgílio sofreu influências das tragédias de Eurípides
e de Sófocles para compor seu poema Eneida. Já o
dramaturgo inglês, em termos literários míticos, é devedor
de Virgílio e dos gregos, de onde recolheu os traços dos
descomedimentos heroico-divinos provocados pelo ciúme,
para compor seu drama.
Embora as duas obras, Eneida e Dido, a rainha de
Cartago, não se particularizem pelas linhas de uma tragédia
clássica nos moldes recomendados por Aristóteles, um
aspeto relevante deve ser ressaltado na leitura que ora se
empreende: o erro. O erro trágico é o móbil desencadeador
da ruína do herói, como teoriza Aristóteles em Poética
(1453a, 1453b).
Não se afirma, contudo, que Dido se configura,
no poema de Virgílio, como heroína trágica dentro dos
padrões das tragédias gregas, porém, a partir do drama do
autor inglês, escrito segundo os pressupostos do drama
Amor
e morte em Dido, a Rainha de Cartago... 185

elisabetano, pode-se inferir um erro cometido pela rainha


fenícia, como aponta Silva (2006, p. 57):

O erro de Dido foi sobrelevar a paixão por Eneias ao seu


cargo de soberana e condutora de um povo, pois ao se
envolver intensamente com o estrangeiro, açula a ira do
general Iarbas, que a desejava como esposa, e desperta
o interesse que a veem em um momento de fragilidade,
pondo em risco a paz de sua nação.

É verdade que, sob o ponto de vista defendido por


Silva, Dido cometeu um erro, sobretudo no que respeita ao
drama Dido, a rainha de Cartago, de Marlowe. No entanto,
em sua defesa, há que se observar a trama urdida pelas
duas deusas que os impeliram a inevitabilidade do amor.
Dido foi levada a amar Eneias e, em razão desse amor,
esqueceu-se dela própria e de suas obrigações para com
Cartago.
A partir dos elementos abordados neste paper,
chega-se a um ponto conclusivo. Está-se perante a um tema
de amores frustrados que acarretam destruição e morte.
Tal experiência afetiva que viveram Eneias e Dido, em que
se conjugam pesar e alegria, prazer e desprazer, felicidade
e tristeza, não é única no mundo da literatura clássica
ou moderna, porque tal faculdade também faz parte da
condição humana.
As personagens amam-se e rejeitam-se numa cadeia
de não reciprocidade, que levam todos os seus elos à morte.
Sob a criação poética de Marlowe, o amor é ampliado, a
relação torna-se contraditória, assim como também são
contraditórios os vínculos que unem os amantes: Ana
ama Iarbas, que ama Dido, que ama Eneias, que não ama
ninguém. Todos decidem morrer por amor, menos Eneias,
porque seu amor por Dido é um simulacro conspirado
por duas deusas com interesses próprios em razão de um
litígio. Sendo assim, a Hedonê habita o coração do par
Dido-Eneias, mas o troiano não corresponde ao desafio
da Mania desencadeada pela fenícia, por isso Thanatos é
convidado a participar apenas do banquete preparado por
Dido para ela, atingindo diretamente quem a ama.
Através da temática do amor, os dois poetas
186 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

demonstram que o amor entre Dido e Eneias é um


sentimento que inflama as índoles e dispõe em êxtase as
almas. Observa-se também que Marlowe fez acréscimos
significativos em sua peça em relação ao poema de Virgílio,
no que trata do furor amoroso que se abateu sobre a figura
feminina. Esses aspectos apresentados entre os textos de
diferentes séculos, mas que expõem a mesma temática,
demonstram que o estudo comparativo de literaturas
recupera a importância da transtextualidade, permitindo,
assim, que obras clássicas ressurjam na modernidade com
novo perfil, todavia não negando os seus predecessores.

Referências

ARISTÓTELES. Poética. Lisboa: Fundação Calouste


Gulbenkian, 2008.
BERTHOLD, Margot. História mundial do teatro. São Paulo:
Editora Perspectiva, 2000.
FERREIRA, José Ribeiro. Amor e morte na Cultura Clássica.
Coimbra: Ariadne Editora, 2004.
GENETTE, Gérard. Palimpsestes: la literature au second degré.
Paris: Éditions du Seuil, 2004.
GIAMMARCO, Thais Maria. Dido, a Rainha de Cartago:
Uma Proposta de Tradução para a Obra de Christopher Marlowe.
Campinas-São Paulo, 2009. Dissertação (Mestrado) Faculdade
de Filosofia e Letras da UNICAMP – Universidade Estadual de
Campinas-São Paulo.
GRIMAL, Pierre. Dicionário da Mitologia grega e romana. Trad. De
Victor Jabouille. 5. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.
MARLOWE, Christopher. The complete plays. London:
Everyman Paperbacks, 1999.
MARLOWE, Christopher. Dido, a rainha de Cartago. Adaptação
de Luiz Antônio Aguiar. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009.
MARQUES JÚNIOR, Milton Viana, Helena Tavares de Silva,
Leyla Thays Brito da Possebon, Fabrício (orgs) Eneida – Canto
IV: a morte de Dido. João Pessoa: Ed. Universitária/PB, 2006.
REMAK, Henry H. H. Literatura comparada: definição e
função. Trad. Monique Balbuena. In: COUTINHO, Eduardo
F. e Carvalhal, Tania Franco. (orgs.) Literatura Comparada:
textos fundadores. Rio de Janeiro: Rocco, 1994, p. 175-90.
Amor
e morte em Dido, a Rainha de Cartago... 187

SILVA, Leyla Thays Brito da. Dido: uma heroína trágica na


Eneida de Virgílio. In: Eneida ‒ Canto IV: a morte de Dido. João
Pessoa: Ed. Universitária/PB, 2006, p. 55-63.
VIRGÍLIO. Bucólicas, Geórgicas, Eneida. Trad. de Agostinho da
Silva. Lisboa, 2008. Temas e Debates.
188 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013
189

Literatura comparada ainda:


facetas e eclipses disciplinários

Paulo Sérgio Nolasco dos Santos*

Resumo: Este artigo propõe-se a reler a proposta disciplinar


da Literatura Comparada em sua longa trajetória nos estudos
literários, procurando, sobretudo, acompanhar o caráter
em “difração” da prática comparatista, sob as mais diversas
conceituações do rótulo disciplinar, especialmente hoje em
dia, quando tanto a teoria como a prática disciplinar ainda,
e cada vez mais, demandam perspicácia articulatória aliada e
resultante de um processo de produção de sentidos.
Palavras-Chave: literatura comparada; pesquisa em
literatura; comparatismo hoje; crítica literária.

Abstract: This article aims to reread the disciplinary proposal


of Comparative Literature in its long trajectory into the literary
studies, searching mainly to follow the diffraction’s character of
the comparative practice, underneath the several compilations
of the disciplinary title, specially nowadays, when both the
theory and the disciplinary practice still, and more and more,
demand an articulated perspicacity allied to and resultant from
a process of meaning production.
Keywords: comparative literature; research in literature,
comparatism today, literary criticism.

Os efeitos da globalização são sentidos em todo lugar, até


mesmo nas vilas do Nepal através das antenas parabólicas,
mas o contrário não é verdadeiro, essas vilas não existem
para o Primeiro Mundo, pois o detalhe cultural da vida
cotidiana, condição e efeito da sedimentação do idioma
* Universidade Federal da cultural, não chega aos países donos dos satélites. O fato
Grande Dourados - MS.
é que [...] existe uma imensa heterogeneidade de línguas
190 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

Os efeitos da globalização são sentidos em todo lugar, até


mesmo nas vilas do Nepal através das antenas parabólicas,
mas o contrário não é verdadeiro, essas vilas não existem
para o Primeiro Mundo, pois o detalhe cultural da vida
cotidiana, condição e efeito da sedimentação do idioma
cultural, não chega aos países donos dos satélites. O fato
é que [...] existe uma imensa heterogeneidade de línguas
subalternas e culturas periféricas que não se comunicam
e não se conhecem, e a literatura comparada não pode
se omitir de seu papel nesse cenário. Esse papel seria
suplementar não somente em relação às ciências sociais
com seus informantes locais, mas também à toda
engenharia transnacional de benevolência social, desde
a instituição dos Médicos Sem Fronteiras à cultura das
ONGs, que não tem condições de acessar a densidade
misteriosa dos idiomas e das linguagens dos povos que
buscam ajudar.
Rita SCHMIDT. “Alteridade planetária: a reinvenção da
literatura comparada”.

O corpo da literatura é imenso, mas inapreensível em


sua totalidade. Como respira, como se desloca? Pode-se
constatá-lo unicamente de modo metonímico, admitindo
que o menor recanto do mundo reflete todas as escalas do
jogo dos valores. A literatura é poliglota. Fala centenas,
milhares de línguas.
Wladimir KRYSINSKI. “Narrativas de valores: Os novos
actantes da weltliteratur”

Palavras iniciais

No quadro das ciências humanas, a “disciplina”


Literatura Comparada, nas três perspectivas de abordagem
– “histórica”, “teórica” e “crítica” –, que geram inúmeras
formas ou vertentes de análises, não só reformulou suas
metodologias enquanto démarche de um rótulo mutante,
como também fez-se remontar às origens de uma prática
de pesquisa ancorada em um conceito sempre deslizante,
“work in progress”, resultante da quebra de paradigmas
Literatura
comparada ainda: facetas e eclipses disciplinários 191

e simultâneo questionamento das relações sujeito versus


objeto. Entre a caudalosa produção de conhecimento
nesta área e a crescente se não efervescente discussão nas
constantes e diferenciadas reformulações do conceito
e sua prática (o comparatismo em âmbito planetário),
torna-se ainda pertinente reposicionar o “lugar” de uma
“disciplina”, que, a meu ver, tendo assistido ao vaticínio de
sua própria morte, parece ainda mais revigorada, hoje em
dia, como a Fênix –, a ave fabulosa da mitologia egípcia,
que, tendo vivido muitos séculos, quando queimada,
renascia das próprias cinzas.1

I.
Ao redigir estas “palavras iniciais”, duas preocupações
teóricas, e próprias do comparatista, soaram, desde o
início, inquietantes, e, pior, parecem ter-se justificado até
o final deste artigo, que, por isso mesmo, necessitam já da
sua explicitação antes que avancemos na discussão e/ou
desenvolvimento das ideias que se formularão em torno
do propósito de refletir sobre a literatura comparada hoje.
A primeira das preocupações já se antepunha na redação
propriamente dita dessas “palavras inicias”, ou seja,
procurar materializar, na desafiadora acepção de vocalizar
algo ou alguma coisa, neste caso o “rótulo” e a capacidade
plástica da literatura comparada enquanto método de
trabalho que, se, por um lado, é depositária de uma
tradicional prática de estudos no campo da literatura, por
outro lado, trata-se, ao mesmo tempo, de uma disciplina e
de um campo de estudos que têm, de maneira vocacional,
1
Estas “palavras iniciais” são assumido o mais complexo espectro de transformações,
o corpo do resumo de nossa mutações e reformulações, desde as suas primeiras práticas
intervenção, através do projeto
“Percurso de uma disciplina: e textos fundadores, com exclusivos efeitos deletérios
Literatura Comparada Ontem nas últimas décadas, fruto do quadro mais geral e da
e Hoje”, que foi submetido
ao Projeto coletivo intitulado insurgência de novos e reposicionados objetos de estudo,
“Plano de Trabalho do GT mormente resultantes da globalização cultural e das mídias
de Literatura Comparada da
ANPOLL, julho 2012/julho
em geral. Neste nível, não só o livro, as condições de leitura,
2014”, particularmente para a conceitualização e a função da literatura acederam a
o Encontro ENANPOLL
2013, realizado no período de
outros “lugares” inesperados e de inusitadas experiências
28 a 30 de Agosto de 2013, de fruição, ou seja, as práticas culturais mudaram de lugar,
sob os auspícios da UFSC/ mas, também, e talvez em consequência, a própria ideia de
Florianópolis.
192 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

contemporaneidade e de sujeito aí implicado puseram em


demanda uma outra mundivivência, diferenciadora, que
conclama à reverificação dos antigos lugares de saberes
ao mesmo tempo em que se indaga acerca de toda a
contemporaneidade, de que é ilustrativo o livro de Giorgio
Agamben (2009), O que é o contemporâneo?.

II.
A segunda preocupação que queremos assinalar,
e que já está implicitamente envolvida na primeira, é
resultante do fato de termos evocado a palavra “disciplina”,
ainda mais uma vez em nosso exercício de metalinguagem,
na tentativa de responder a eterna pergunta “O que É
Literatura Comparada?”,1 logo após o amplo e histórico
debate sobre a “crise da literatura comparada”2 e a
radicalização desta crise, hoje tornada aporética, segundo
outro recente livro de Gayatri Spivak, Death of a Discipline.3
Diante desta preocupação, confrontados com o vaticínio
da morte e da dilacerante condição de refletir hoje sobre a
natureza e função da literatura comparada, o que de alguma
forma nos fora legado por forte tradição humanística,
baseada numa grade esquemática das disciplinas e bem 1
Trata-se do famoso
ensaio “O que É Literatura
caracterizadas pela visão realista-naturalista cartesiana Comparada?”, de Steiner,
da realidade, à la século XIX, portanto, queremos, nos proferido como Aula Inaugural
na Universidade de Oxford,
próximos subitens/parágrafos deste texto, pontuar alguns em 1994.
aspectos que parecem substantivos enquanto linhas de 2
Cf. Wellek, René. “A crise da
literatura comparada”, 1994.
força (campo de pesquisa) e imprescindíveis quando 3
“A literatura comparada
voltamos, hoje, à rediscussão do lugar e função da literatura está morta.” Eis a frase que
inicia a alentada discussão
comparada nos processos de integração cultural. da ensaísta brasileira Rita
Schmidt, ao confrontar o livro
III. de Gayatri Spivak (2003) com
a ideia de que “A literatura
O aludido fórum de discussão do GT de Literatura comparada ainda está por vir.”
Comparada, dentro do ENANPOLL 2013, refletia, a Cf. SCHMIDT. “Alteridade
planetária: a reinvenção da
partir da convocatória de sua proposta, um ambiente literatura comparada”, p.
bastante familiar ao grande número de comparatistas 113-129.
4
Nossa participação na
brasileiros que integramos este Grupo há pelo menos duas linha “Limiares Críticos”,
décadas.4 De um modo geral, as discussões e papers ali coordenada por Tania
Carvalhal, deu-se a partir
gerados e publicados, frequentemente de modo coletivo, do “Encontro em Salvador”,
têm se voltado para a potência e validação das diversas conforme divulgou o
Informativo/ANPOLL nº 5,
formas de abordagens e metodologias em literatura out. 1997.
Literatura
comparada ainda: facetas e eclipses disciplinários 193

comparada, dentro de um largo interesse pela natureza e


funcionamento dos textos literários e uma repetida prática
de inter- e transdisciplinaridade a envolver o fato e o texto
literários – tudo isso decorrendo da natureza da questão
ou questões levantadas pelo investigador de literatura.
Selecionando uma dessas discussões, parece ser a que
recobre o “rótulo” de literatura comparada a que, de uma
forma ou de outra, mais tem servido à ampla produção
de sentidos, talvez por ser ela – a literatura comparada – a
que ainda nos reúne e congrega em grupos e associações
e em sua prática no ensino de graduação e pós-graduação,
quando não pela motivação do caráter plástico, polimorfo,
tributário de um não-lugar epistemológico privilegiado, de
amplíssimos horizontes e versátil atuação do comparatista,
mas, sobretudo, talvez pelo exercício da polêmica, per se, da
vitalidade do olhar intelectualizado e fortalecido por uma
tradição humanística das letras ou belas-letras.

IV.
De fato, ainda hoje se sublinha, digamos “assinala-
se”, o vigor prospectivo da palavra disciplina, na medida
em que sua circunscrição semântica resulta e ganha
ressemantizações, aliás, como todo seu escopo teórico-
crítico também ganhou ressignificações operadoras, como
se numa necessária atualização do aparato crítico que,
assim, se remodela em função das démarches implicadas seja
na historicidade ou nas textualidades contemporâneas.
Assim, a ideia que interessa repercutir provém da
retomada de certo modo de pôr-em-relação (“relacionar”
já detém lugar de cidadania como terminologia e lugar
axiomático do comparatista) os objetos de conhecimento
segundo perspectivas ou scripts de análise “assinaladas”,
ou, também “assinadas”, pela prática comparatista. Com
isto, queremos dizer, seguindo a reflexão de Giorgio
Agamben, em Signatura rerum – Sobre el método (2009), que
a referência mesma à palavra-signo “disciplina”, remissão e
retomada de sua tradução espanhola, “asignatura”, vem ao
encontro, na reflexão do filósofo, da ideia-signo-referência
de “assinatura”, sinalizando, por assim dizer, o horizonte
significativo do campo disciplinar e consequentemente
194 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

da prática comparatista no quadro das ciências humanas,


hoje em dia. Nesse processo, a assinatura5 passa a ser um
elemento essencial; a assinatura, os vestígios, os traços,
aquilo que resta, nessa perspectiva é o fio de Ariadne: a
assinatura não é o sinal, mas é aquilo que faz com que
o sinal possa ser inteligível. Está-se, assim, em atitude
“retroativa”, quer dizer, o “anacronismo que pressupõe
não mais uma estaticidade e sim um movimento (ou
movimentos), que compõem os fios da delicada, imbricada
e complexa trama. Um tempo, portanto, que não é mais
aquele lógico, da cronologia, mas se apresenta analógico,
kairológico.” A literatura e a crítica como agenciamentos.
Um pensar que é também inventar. É nesse sentido que,
“a estratégia do exílio como lugar do intelectual, ao obrigá-
lo sempre a descentrar-se de sua própria casa, certamente,
pode construir um profícuo “entrelugar” em que as coisas
nunca sejam vistas de maneira isolada [...]”.6 Agambem
explica que a relação expressada pela “signatura” não é
uma relação casual, antes é algo mais complicado que se
impõe à compreensão: “Suele entenderse la relación entre
la signatura y lo signado como una relación de semejanza,
[...]. La lengua, que custodia el archivo de las semejanzas
inmateriales, es también el cofre de las signaturas”
(AGAMBEN, 2009, p. 51). Daí o filófoso evocar a
relação, o caráter analógico, entre as plantas e os efeitos
terapêuticos que delas decorrem a partir de seus nomes
(assinatura), já impressos em suas próprias formas, como
resultante da relação entre a palavra e a coisa.7 Como o
“satyrion” [Traducida al castellano como “satirión”, es la
raíz de una planta orquidácea que posee cierta similitud 5
Referência ao segundo texto
con los testículos masculinos] e a “eufrasia”: enquanto da coletânea Signatura Rerum de
a “signatura” da primeira mostra que pode restituir ao Giorgio Agamben (2009).
6
Projeto “Literaturas em
homem “sua virilidade perdida e a luxúria”, a segunda, trânsito: deveres das linguagens
que mostra uma mancha em forma de olho, desvela deste na contemporaneidade”, do
GT de Literatura Comparada
modo sua capacidade para curar as enfermidades da vista. da ANPOLL, 2011-2012,
(p. 52) A citação de Agamben acentua a complexidade da coordenação Angela Maria
Dias.
relação (nome/palavra versus coisa), ainda mais por revelar 7
Alusão ao título do ensaio
o trabalho adâmico (Adão) de batizar nomeando: de Fernand Baldensperger,
“Literatura comparada: a
palavra e a coisa”.
Literatura
comparada ainda: facetas e eclipses disciplinários 195

Reflexionemos sobre la particular esctructura que


tambén en neste caso define a la signatura. La relación
de signatura, en la eufrasia, no se establese, como podría
parecer, entre la virtud terapéutica oculta y la mancha
en forma de ojo sobre su corola, sino directamente entre
la eufrasia y los ojos. “Por qué la eufrasia cura los ojos?
Porque tiene en sí la anatomiam oculorum”; ella “tiene en
sí la forma y la imagem de los ojos, por lo tanto, deviene
toda ojos”. La signatura pone a la planta en relación
con el ojo, la disloca en él, y sólo de este modo revela su
virtud oculta (AGAMBEN, 2009, p. 52-3).8

V.
Em recente publicação, o comparatista Edgar
Nolasco (2011), apoiando-se em vigorosa bibliografia,
elaborou exaustivo levantamento dos conceitos
disciplinares da literatura comparada, sobretudo a dos
autores reunidos no livro Literatura comparada: textos
fundadores, organizada pelos comparatistas brasileiros
Eduardo F. Coutinho e Tania Franco Carvalhal. E em
“Conceitos indisciplinados”, subcapítulo de “O que é,
afinal, Literatura Comparada?”, pudemos contabilizar,
apenas nesta publicação, vinte e três possíveis articulações
que, ou abordam o rótulo da disciplina ou reelaboram
intrincadas metalinguagens acerca de sua prática e/ou
metodologia, às vezes entrecruzando ambas as perspectivas,
grosso modo. De uma forma ou de outra, a presença desses
autores em um livro de “textos fundadores” não deixa de
sugerir a construção de um paradigma próprio do campo
8
As citações no texto de da literatura comparada. É de grande produtividade ler
Agamben são de um dos livros os ensaios dos consagrados autores, nossos conhecidos:
do “tratado” de Paracelso. Que
assim explica o objetivo do Hutcheson Macaulay Posnett, Joseph Texte, Louis Paul
livro: “Si en este libro se trata Betz, Benedetto Crocce, Fernand Baldensperger, Paul
de filosofar de signatura rerum,
entonces sería ante todo útil y Van Tieghem, Marius-Fraçois Guyard, René Wellek,
conveniente precisar de dónde Robert Escarpit, Claudio Guillén, Henry H. H. Remak,
derivan los signata, cuál es su
signator y cuántos existen”.
René Etiemble, Vitor M. Zhirmunsky, Claude Pichois &
(apud Agamben, 2009, p. André M. Rousseau, Simon Jeune, Jan Brandt Corstius,
48). Em rodapé, a nota do
tradutor: “Signata: las marcas
A. Owen Aldridge, Werner Friederich, Harry Levin, S. S.
de las cosas, serían los signos. Prawer, Ulrich Weisstein e François Jost. E, ampliando a
Signator: el signador, el que lista, o comparatista René Wellek aparece com dois textos
marca”. (Ibidem, p. 48)
196 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

fundadores, além da explicação-conceito dos próprios


organizadores do livro, os quais também são comparatistas,
e ambos têm formulado importantes contribuições em
torno do assunto. Assim, como se depreende, seja no
livro dos “textos fundadores”, seja no de Edgar Nolasco,
que comenta o primeiro, as ideias-conceitos formuladas
não apenas fracassam na laboriosa vontade e inteligência
de descrever o espaço e lugar da atividade comparatista,
malgrado o imenso esforço, mas, por assim resultarem,
oferecem flancos para outras produções de sentidos que
ainda procuraremos contemplar, porquanto são reflexões
que brotam dos últimos esforços do comparatismo na
atualidade. (Cf. NOLASCO, 2011, p. 21-5). A partir daí,
a atividade crítica passaria a corroborar a da pesquisa,
fazendo com que a articulação do campo literário
com outras disciplinas, como a etnologia, a filosofia, o
marxismo, a psicanálise, a teoria da escrita e do texto,
contribuam para os avanços das práticas pós-estruturalistas
como os estudos da tradução, os dos pós-coloniais e os dos
Estudos Culturais –, aliás, como se registra em “Limiares,
passagens e paradigmas: o curso da pesquisa”, um ensaio
decisivo de Tania Carvalhal, publicado em 2002.9
Tendo em vista a importância da contextualização, 9
Neste sentido, como sublinha
lembro de Tania Franco Carvalhal, que, em texto de Carvalhal, a alteração de
paradigmas reflete-se nas
abertura do Seminário Internacional “Culturas, contextos, propostas e títulos de trabalhos
discursos: limiares críticos no comparatismo”, evoca o que já modificaram, à época,
tanto o perfil da universidade
esforço comum de vários integrantes de um projeto de como algumas estruturas
pesquisa, do qual fui membro e depois coordenadora, com sociais, cuja orientação não
a notável participação de Lisa Block de Behar, em cujo era só de superfície, mas
correspondia à variedade de
texto de justificativa da linha de investigação “limiares orientações teórico-críticas
críticos”, então coordenada pela Professora e colega Tania com que um estudioso
da literatura se deparava:
Carvalhal, diz o seguinte: Douwe Fokkema publica “A
literatura comparada e o novo
paradigma”, Eva Kushner
Se as definições epistemológicas questionam os limites publica “Em direção de uma
disciplinares, teóricos, metodológicos; tipologia dos estudos de
literatura comparada” e Gerald
se as dúvidas taxonômicas impugnam a rigidez de Gillespie, “Rinoceronte,
inventários que não abarcam a variedade dos objetos a unicórnio ou quimera?
Visão polissistêmica de uma
classificar ou cujas diferenças não justificam as oposições possível tipologia da literatura
que ultrapassam as classificações ou as entrecruzam; comparada no próximo
século”. Cf. CARVALHAL,
se a atualidade literária, estética, teórica, crítica e
2002, p. 149.
Literatura
comparada ainda: facetas e eclipses disciplinários 197

hermenêutica hesita diante de um conhecimento que,


em movimento, se instala no intervalar, abarcando a
uma só vez espaços distintos, julga-se que se deva dar
mais atenção, além da requerida por centros e periferias,
a zonas limiares onde os gestos de iniciação propiciam a
formação de conceitos, onde os limites vão penetrando
progressivamente espaços que não se determinam com
nitidez.
Do mesmo modo, as oscilações verificadas nas instituições
literárias, acadêmicas e mediáticas, o questionamento
de suas categorias, de outras instituições com as quais
guarda limites tão afins quanto difusos, dão lugar a
diversos entrecruzamentos e controvérsias que, como as
discussões sobre o cânone, sobre gêneros, sobre a vigência
da própria instituição literária, fazem dos marcos um
espaço de luz e sombra, um umbral que habilita o acesso
a uma interioridade sempre enigmática ou que avança
em direção de uma exterioridade que não se subtrai às
inscrições de uma escrita, que filtra tanto a realidade
quanto a ficção, representando-a e configurando-a.
Contrariamente, estas preocupações com o limite, a
fronteira, a margem, o contorno, se encontram no centro
das reflexões literárias que transformam a localização
em tema e matéria de seus objetivos disciplinários onde
a comparação, a articulação entre culturas, as linhas de
contraste e coincidência se constituem na topografia destas
investigações (CARVALHAL, 1999, p. 10-11).

VI.
Entrementes, os aspectos que vimos alinhavando
– se não na tentativa de esboçar uma possível e criativa
formulação do exercício de comparar, enquanto operação
ainda validada para os dias de hoje, porém mais consciente
do caráter provisório, de autofagia contumaz de nossa
capacidade de reinventar “saberes” e modos de saber –, é
hora de evocar o prefixo “pós”, de “pós-modernidade”, que,
em sua forte rentabilidade sustentou outros, tais como:
pós-crítica, pós-teorias, pós-autônoma, que, se referindo
ao lugar (ou condição?) da “literatura” hoje, terminou por
reposicionar esse objeto, a literatura, sob uma perspectiva
198 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

que deve ser considerada hoje em dia. Assim, deriva do


atual contexto cultural a ideia compartilhada de que a
literatura transpôs-se de um lugar previsível e de matriz
de saberes na tradição ocidental para um “não-lugar”
que, contemporaneamente, é compartilhado com outros
discursos, tornando rarefeita a sua legitimação segundo
uma ideia de cultura. Principalmente com a ideia de
cultura letrada. Aliás, esta ausência de lugar fixo, “não se
circunscreve apenas ao discurso literário, pois a questão
abrange todo e qualquer tipo de discurso. Por isso, o
debate em torno dos lugares disciplinares tem cheiro de
fruta passada e já deveria estar produzindo outros frutos
que enriqueceriam os estudos literários comparatistas e
culturais.” (SOUZA, 2002, p. 85). Em outra passagem,
afirma a ensaísta: “O objeto literário deixa de ser privilégio
da crítica literária e se expande para outras áreas, numa
demonstração de estar a literatura se libertando das
amarras de um espaço que a confinaria para sempre no
âmbito das belles-lettres” (p. 115). Também Josefina Ludmer
propõe chamar escrituras ou literaturas “postautónomas”
às literaturas cujas práticas provêm de territórios do
cotidiano, que assim se fundariam em dois repetidos,
evidentes “postulados sobre el mundo de hoy. El primero
es que todo lo cultural [y literario] es económico y todo lo
económico es cultural [y literario]. Y el segundo postulado
de esas escrituras sería que la realidad [si se la piensa
desde los medios, que la constituirían constantemente] es
ficción y que la ficción es la realidad.” (LUDMER, 2013).
Com efeito, diríamos que, vigente a atual reformulação de
paradigmas em relação ao nosso objeto, hoje subsumido
pela abrangência das disciplinas e pela inoperância e
retrógada separação entre domínios de saberes específicos,
resta o convite ao desafio perseverante de fazer do campo
da pesquisa o lugar e ponto de partida e de intersecção
das práticas de conhecimento, onde o saber resultará nas
e das interrogações que o estudioso seja capaz de elaborar.
Como enfatiza Tania Carvalhal, ao retomar o percurso
da obra barthesiana, atravessada pela noção de seuil, de
trânsito e principalmente pela ideia de transgressão e de
ultrapassagem. Assumindo a perspectiva sugerida pela
Literatura
comparada ainda: facetas e eclipses disciplinários 199

ensaísta, sublinha-se que o mais importante no conjunto


da obra barthesiana é a insistência com que o crítico ensaia
soluções para seu próprio métier: “o trabalho do crítico
não é descobrir o significado secreto de uma obra – uma
verdade do passado – mas constituir o inteligível de nosso
tempo”, ou ainda, “o que sempre me fascinou na vida é
o modo como as pessoas tornam seu mundo inteligível”
(BARTHES, 1981, p. 15, apud CARVALHAL, 2002, p.
150).

VII.
Interfaces, transições: faces sígnicas do conhe-
cimento. Ou, como nos ensinam as epistemologias do
nosso tempo, todo conhecimento passa a residir na
articulação dos suportes, no agenciamento das interfaces;
se os mais diversos agenciamentos compósitos podem
interfacear – tradução, transformação, passagem, o que
é da ordem da interface – é porque todo conhecimento
reside na articulação dos suportes, na arquitetura da rede.
Com efeito, está-se no campo de uma operação cognitiva,
que ilustramos com o comparatismo em suas multifaces,
em que a capacidade de “relacionar” compartilha com
a de “articulação”, talvez o ponto cego de um trompe-
l’oeil raramente perspectivado, no qual o conhecimento
resultaria da capacidade de articulação dos saberes e de
igual competência para proporcionar o diálogo entre os
métodos de abordagem segundo a natureza da questão levantada
pelo investigador (Machado; Pageaux, 1988, p. 17). Assim,
todas as formas e práticas possíveis do que chamamos
literatura comparada e produção do conhecimento decorreriam
de um indecidível que constitui a seleção e o olhar de cada
investigador/observador, segundo a ardilosa arquitetura
com que cada um entra e sai de Babel. Se retomarmos
a clássica conceituação que começava por ensinar que “A
literatura comparada é arte metódica” (BRUNEL, 1995, p.
139), hoje, essa analogia só pode ser produtiva em sentidos
quando “a ‘arte’, como toda a ‘Arte’, é a do trompe-l’oeil...”:

– A pintura é uma gaia-ciência, uma máquina de produzir


anjos e quimeras, objectos que são e não são objectos; é
200 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

uma máquina carnal cujo mistério reside na pele, à flor


da pele, e cuja profundeza reside na superfície. A pintura
baralha todas as categorias, pintura que pensa de um modo
necessariamente possessivo e reflecte o próprio gesto
de pensar e representar. Pintura e dinâmica de forças
e secretas pressões que a consciência não alcança. Um
castelo da alma que produz visões, cartas e epifanias,
falsos espelhos e enigmas (COSTA, 2013, p. 461).10

Noção essa, do trompe-l’oiel, que vem da filosofia
contemporânea, em ensaio intitulado “Zeuxis e Babel –
Imagens de Filosofia”, cujo autor inicia dedicando-o a
George Steiner, significativo paratexto dessas reflexões.11
Ao reunir Babel e trompe--l’oeil, duas imagens portentosas
de “confusão”, o filósofo põe em cenário a potência da
“articulação”, como própria do conhecimento, sem
esquecer que Babel é o observatório que tenta unir os
mundos subterrâneo e cavernoso, a terra e os céus. A
palavra “Babel”, diz o filósofo, em hebraico, quer dizer
Porta de Deus (Bab-Ilu/Bab--Porta e El-Deus), Porta
do Céu, e “bâlal” aponta para “confundir”; “baralhar--
embrulhar”:

Em suma, a marca da contemporaneidade, se é que existe


contemporaneidade(s), reside então nessa explicação-
complicação de cruzamentos e escritos. [...]. E isto porque
a maravilha das maravilhas já não é que o Ser seja, mas
sim que as metáforas, os transportes e as diferenças,
persistam e se reflictam infinitamente, como num
caleidoscópio ou no modelo reticular de Penélope,
infatigavelmente urdindo e desurdindo a sua teia, até a
10
A citação foi extraída
do ensaio “Zeuxis e
exaustão. Contemporaneidade que nos assiste também Babel – Imagens de
na distribuição, circulação, tradução e na criação do que Filosofia”, cujas linhas/
entrelinhas desconstroem
alguns chamaram provocatoriamente de artrologia – não e ressignificam a aventura
astrologia, mas que sei eu disso – ou aquela ciência dos viva da contemporaneidade.
Disponível em: <http://
articuli, das articulações entre dispositivos de saber, de ler.letras.up.pt/uploads/
poder saber (COSTA, 2013, p. 461). ficheiros/1930.pdf>. Acesso
em: 11 jun. 2013.
11
Trata-se do famoso ensaio “O
VIII. que É Literatura Comparada?”,
de Steiner, referido
Como se vê, um sentido trágico está a envolver a anteriormente.
Literatura
comparada ainda: facetas e eclipses disciplinários 201

situação da literatura e conhecimento no cenário atual.


O desafio da contemporaneidade é continuar repetindo
e repondo questões candentes como se a leitura literária
ainda significasse não apenas abertura ao mundo, aos
livros, mas à biblioteca infinita que constitui, hoje, o
patrimônio cultural como um todo. Assim expandida, a
condição da contemporaneidade torna-se gesto radical a
envolver, inclusive, a noção de hipertexto, quando textos
de caráter mutante se encontram com leitores que esboçam
caminhos possíveis e acidentais. Assim como observou o
crítico em “Identidades atravessadas”:

Nesta situação, de certo modo incomensurável, reaparece


de forma nova a figura do paradoxo. E esse é um
lembrete para a teoria da literatura que precisa aprender
o seu sentido alterado, não para salvaguardar, mais uma
vez, um lugar singular na esfera cacofônica da cultura
de contextualização veloz, mas para, de algum modo,
colocar à prova e legitimar a sua própria importância e
sobrevivência (OLINTO, 2001, p. 111 et seq.).

Com efeito, uma das características essenciais de


nosso tempo, que estaria na construção do pensamento
científico, diz respeito à inter-relação dos saberes,
noção que está na base do pensamento e das práticas
interdisciplinares. Por outro lado, outra característica de
nosso tempo associa-se à anterior, ou seja, à universalização
do saber, que se refere à disseminação e à apropriação do
saber. A disponibilização dos livros em rede de Internet,
como o projeto realizado pela Biblioteque de France, do
qual Roger Chartier é um de seus mentores, objetiva a
disponibilidade universal do patrimônio escrito que se
torna, assim, universal, num certo sentido invalidando
e tornando obsoleta a própria existência da Biblioteca
Nacional. No entanto, todas as alterações, por mais
fantásticas que sejam, têm seus riscos, pois, como afirmou
o próprio Chartier, citado por Carvalhal (2005, p. 3): “A
transferência do patrimônio escrito para a tela inaugura
202 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

imensas possibilidades, mas será também uma violência


contra os textos, separados da forma que contribuíram
para construir as suas significações históricas”. Assim a
lição de nosso tempo parece ser substancialmente esta:
que a “universalização do saber”, facilitada pela tecnologia, 12
Neste livro, de recente
especulação sobre o
não provoque a “separação entre os saberes”, mas, antes, contemporâneo, Agamben
pontua uma adjetivação
para o termo, e o ressignifica
[...] estimule a interação entre linguagens, o inter- na imagem “das vértebras
quebradas do século” (p.
discursivo, o interdisciplinar. Essas exigências ou desafios 61), e que “o presente que a
encaminham para a necessidade de formulações de contemporaneidade percebe
tem as vértebras quebradas. O
projetos pedagógicos que sustentem a aplicação das novas nosso tempo, o presente, não é,
tecnologias. Que o fascínio exercido sobre nós por esses de fato, apenas o mais distante:
não pode em nenhum caso
recursos, que aparentemente introduzem facilidades em nos alcançar. O seu dorso está
fraturado, e nós nos mantemos
nossas rotinas, não nos impeça de ver seus riscos nem de
exatamente no ponto da
atentar para seus limites. Que o adestramento necessário fratura” (p. 65).
13
Neste aspecto, convergem
para que pilotemos esse novo instrumental não nos palavras de Rildo COSSON
disperse do essencial cultivo da arte de voar, nem que as ao enfatizar “o futuro das
Letras”: “Os estudos literários
experiências com o mundo ‘virtual’ não nos distanciem têm passado por profundas
do mundo real (CARVALHAL, 2005, p. 5). transformações nos últimos
anos. Questões como abertura
do cânone, quebra das
oposições entre alto e baixo,
Desse ângulo de observação, torna-se constante popular e erudito, ampliação
na ordem do dia a reposição de natureza especulativa, do corpus literário para além
das coordenadas estéticas,
“interrogativa”, como no título O que é o contemporâneo?, apagamento de fronteiras
de Agamben,12 dentro de um contexto que pugna pela da literatura em relação a
disciplinas como a história,
alteração de paradigmas, pelo deslocamento do conceito a sociologia e a antropologia,
entre tantas outras, têm
e prática das noções de conhecimento, ciência, teoria colocado em discussão
e compreensão articuladas no período moderno; pela as noções tradicionais de
exegese, interpretação e
“redefinição” de campos disciplinares enquanto legado do avaliação do texto literário.
cogito moderno, que selecionava e hierarquizava o saber Os novos aportes teóricos e
metodológicos – a exemplo
segundo uma grade de disciplinas; pela evocação enfim do pós-estruturalismo,
desconstrução, crítica
do conhecimento como prática transdisciplinar, de trasn/ feminista, psicanálise, novo
versões (AGAMBEN, 2009; MIGNOLO, 2003; SOUZA, historicismo, teoria do
discurso, pós-colonialismo,
2007; Domingues, 2004).13 etc. – não apenas renovam
os conhecimentos da área,
como também desafiam a
IX. própria maneira pela qual ela é
constituída” (COSSON, “2000
Ter consciência da função germinativa e rizomática palavras: O futuro das Letras”,
da “intertextualidade” tornou--se praticamente sinônimo p. 11-28).
Literatura
comparada ainda: facetas e eclipses disciplinários 203

da Literatura Comparada enquanto método de trabalho.14


Aliás, tanto os teóricos quanto os escritores-ensaístas,
esses inclusive denunciando grande “ansiedade” no
processo criativo e no ato criador, têm frequentemente
oferecido o respaldo necessário aos trabalhos acadêmicos
e às pesquisas realizadas sob o amplo rótulo de literatura
comparada. A escritora Virginia Woolf, por exemplo, já
chamou a atenção para este aspecto, acentuando vastíssima
caixa de ressonância entre diferentes artes e a atividade de
interconexão entre diversas esferas da expressão artística e
cultural:

Sem dúvida as artes são todas próximas. Que poeta


coloca a pena no papel sem antes ouvir uma canção
em sua mente? E o escritor de prosa, mesmo que ele
faça crer que anda sobriamente, obedecendo à voz da
razão, nos intriga com permanentes mudanças de ritmo
acompanhando as emoções com que lida. [...] Eu li uma
vez uma carta de Walter Sickert na qual ele dizia: “Eu
sempre fui um pintor literário, ainda bem, como todo pintor
decente” (WOOLF, 2009, p. 207, grifo nosso).

Desta perspectiva, a constatação woolfiana, que


poderia parecer uma simples “impressão” da famosa
escritora e ensaísta britânica, reaparece em diferentes
reformulações entre teóricos da literatura comparada
e estudiosos de várias vertentes deste campo de estudo,
como é o caso em particular dos chamados estudos
interartes /interartísticos. É bem oportuno retomar o
que diz o teórico-crítico francês, Daniel Henri Pageaux
14
Dentre as mais pertinentes
discussões acerca da teoria
(2011), quando retorna à discussão, hoje em dia, sobre
da intertextualidade como a “atividade” inter-relacional dentre diferentes e vários
operacionalização teórica e
de formidável produtividade
textos, inclusive prolongando-se através das diversificadas
na prática comparatista, mídias contemporâneas. Ao sublinhar o teor significativo
o conceito formulado por da palavra “relações” enquanto operação de leitura,
Gerard Prince (1987, p. 46)
ganha relevo ao enfatizar que: sublinha-se uma reflexão fortemente marcada pelo sentido
“‘L’intertextualité’ sigifie les de “trânsito”, tão enfatizado pelo crítico comparatista, pois
relations entre um texte donné
et d’ autres qu’il cite, re-écrit, que, “A ‘passagem’ (trânsito?) é uma noção que define com
absorbe, prolonge et en général bastante clareza a atividade comparatista, intermediário
transforme afin de devenir
intelligible”. e conciliador à sua maneira”. Assim, com perspicácia
204 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

teórico-crítica, Pageaux restabelece o vigor de uma prática


comparatista herdeira de Paul Van Tieghen, noção máxime
ainda hoje plena de originalidade: “Todo estudo de
literatura comparada tem por fim descrever uma passagem”
(VAN TIEGHEN, 1951, p. 68, apud PAGEAUX, 2011,
p. 39); noção esta que se prolonga e deixa filamentos em
longa “passagem” do instigante ensaio “O comparatismo:
entre tradição e renovação”, no qual se discute, hoje, a
tradição e renovação da prática comparatista, transcritas
nas seguintes palavras de Pageaux:

A palavra “passagem” encontra-se destacada em itálico e


relembra, de forma bastante proveitosa, que o comparatista
traz do mundo uma imagem aberta, ou porosa, para ser
mais preciso: sempre há uma possibilidade de passagem
(“poros”, em grego). Van Thieghen complementa sua
imagem do objeto comparatista: “o fato de que qualquer
coisa de literário é transportada (sublinho) para além
de uma fronteira linguística”. Sem mais delongas,
relembremos agora a célebre máxima de Michel de
Montaigne: “Eu não pinto o ser. Eu pinto a passagem.”
[...]. Entendamos: é preciso apostar na força criativa da
passagem, do transporte, da transferência. Da passagem
como mudança de formas... e de ideias: metamorfose.
O ideal do diálogo faz da literatura comparada uma
espantosa máquina de produzir transitividade. Tornar
transitivo aquilo que não o é, ao mesmo tempo em que
se preserva a sua singularidade (PAGEAUX, 2011, p. 39-
40).

X.
À guisa de conclusão, são decisivas as enfáticas
palavras do comparatista Henri--Pageaux (2011) ao postular
“por um novo humanismo”, o qual não se confundiria
com a ideia de herança, de patrimônio, ou, ainda, com a
mistura de saber e ética que servira para defender e ilustrar
“com força e nobreza, uma certa ideia do homem”; nem
se confundiria com a erudição ou o ideal enciclopédico ou
de cultura geral que formataram nossa história das ideias:
“O humanismo comparatista no qual estou pensando
Literatura
comparada ainda: facetas e eclipses disciplinários 205

tem o dever de considerar o homem como tema de


reflexão e análise.” – diz ele (PAGEAUX, 2011, p. 253). E
especialmente na bela e provocativa passagem da síntese
que propõe:

É preciso se voltar para nosso mundo, tal como ele é [...].


Diante da proliferação das informações e da fragmentação
das questões e dos saberes, o comparatismo pode assumir
a função difícil, mas exaltante, de disciplina de síntese, não
com o fim de alinhar belas conclusões gerais, mas para criar
meios de se pensar um pouco acerca da totalidade na qual
estamos imersos. (PAGEAUX, 2011, p. 255, grifo nosso).

E, assim, da lição do mestre, sendo verdade


que não nascemos comparatistas, mas tornamo-nos
comparatistas, e que é preciso poder, ou querer, continuar
sendo comparatista depois de sê-lo, aprenderemos
que: “O novo humanismo, o comparatismo renovado
devem dar novamente a palavra aos criadores, além de
tentar conciliar reflexão e criação, abordagem teórica e
perspectiva poética, já que certas práticas universitárias as
dissociaram” (PAGEAUX, 2011, p. 263).
De resto, procuramos concluir com três belas,
insinuantes e não menos criativas “produções de sentidos”
que respondem pelo nosso desejo de pensar a literatura
comparada hoje. Ainda, a comparatista Tania Carvalhal
(2005, p. 177), que, ao refletir sobre a atualidade dos
estudos comparatistas, observa: “entendemos, então, cada
vez mais que não é possível pensar em campos de saber
estanques, conclusos e fechados em si mesmos, pois o que
se acentua é a natureza híbrida dos diversos domínios do
conhecimento e da expressão artística, sua inter-relação”. E
com perspicácia acrescenta: “A literatura comparada, como
prática crítica, se inscreve no movimento de mudança das
demais modalidades críticas, delas se distinguindo não
pelos objetos que estuda, mas pelas perguntas que formula
e pelos modos de aproximação de que se vale” (p. 178).
Já Rita Bittencourt (2010), ao retomar a discussão sobre
o comparatismo hoje, assim chama a atenção para o que
206 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

recobriria contemporaneamente a prática de “comparar”


enquanto método de trabalho:

Comparar, então, significa fazer do próprio fim um
objeto de leituras, dramatizando-o e tornando-o capaz
de, no limiar do impossível e da morte, gerar textos,
combinações, relações que considerem a própria ausência
de linhas estáveis, de receitas e de respostas totalmente
visíveis e coerentes, como lugares de produção de sentido
(BITTENCOURT, 2010, p. 145).

Prolongam-se os versos finais, em adágio, metáfora


e prática tradutora, com os quais Tania Carvalhal, em
mais recente reformulação de uma prática e em sensível
reflexão, lança longe o desafio do comparatismo de
hoje: “Sob égide do cavaleiro errante, em suas múltiplas
variações, a literatura comparada vive a aventura dos
tempos e enfrenta, na formulação de perguntas, a sua
permanente validação” (CARVALHAL, 2006, p. 17).

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210 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013
211

Afrontando fronteiras da literatura


comparada: da transnacionalidade
à transculturalidade

Zilá Bernd*

Resumo: O trabalho se dispõe a problematizar a disciplina


Literatura Comparada no momento atual em que vivemos,
em que tudo se desloca, tudo muda de lugar, e em que as
constantes Mobilidades étnicas e culturais nos obrigam a
repensar o conceito estável de Literatura Comparada, à
luz de conceitos de multi, inter e trans-disciplinaridade e
multi, inter e trans-culturalidade.
Palavras-chave: fronteiras da literatura comparada;
transculturalidade; transnacionalidade, nomadismo
intelectual.

Abstract: This work wishes to problematize the subject


of Comparative Literature at the moment within which
we live, where everything dislocates itself, everything
chances place and where constant ethnic and cultural
mobilities force us to rethink the stable concept of
Comparative Literature under the light of concepts as
multi, inter and trans-culturality.
Keywords: the frontiers of comparative literature;
transculturality; transanationality, intelectual nomadism.

* Professora do PPG-Letras da
Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, Professora do
Mestrado em Memória Social e Le transculturel pénètre ainsi les écrits par tous leurs
Bens Culturais do Unilasalle/
Canoas e bolsista PQ/CNPq.
pores car il ouvre non seulement à des savoirs établis
1
O transcultural penetra, mais aussi à des savoirs en gestation, à une ignorance
desta forma, os escritos por positive (IMBERT, 2012b, p. 16).1
todos os seus poros, pois ele
abre não apenas para saberes
estabelecidos, mas também
para saberes em gestação, a
uma ignorância positiva.
212 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

Introdução

Dany Laferrière2 é um dos principais autores da


Literatura Migrante, denominação aplicada aos escritores
cujas temáticas e imaginários situam-se no entrelugar
entre o país natal e o Quebec, país de adoção de inúmeros
escritores vindos das mais diferentes geografias como
o Haiti (caso de D. Laferrière), China, Irã, Brasil, Itália,
França, entre outros. Autor de numerosos romances,
muitos deles premiados inclusive na França, D. Laferrière
é um dos autores francófonos mais lidos da atualidade,
tendo algumas de suas obras adaptadas para o cinema
como Vers le sud (2006).
Em 2008, publicou um livro com o estranho título
de Je suis um écrivain japonais.3 O romance inicia com
o narrador, que vive em Montreal e é leitor assíduo de
Mishima e Basho, afirmando a jornalistas japoneses que
escreverá um livro seguindo o estilo dos mestres japoneses.
Sob esse estilo jocoso e bem humorado, D. Laferrière
discute mais uma vez a questão das etiquetas que os
críticos e historiadores da literatura costumam colar aos
escritores. Ele mesmo recusa-se a ser considerado escritor
quebequense, haitiano ou mesmo migrante. Prefere dizer
que é um escritor americano (no sentido amplo que
designa as três Américas) que escreve em francês. Em outro
romance, intitulado Je suis fatigué4 (2005) ele se declara
cansado das nomenclaturas e dos constrangimentos
a que são submetidos os escritores para que definam
suas pertenças nacionais. Praticando o ir e vir cultural
entre Haiti e Quebec, mas também viajando através da
imaginação por diferentes culturas, como as orientais,
o autor sente-se mais confortável auto-proclamando-se
escritor americano ou universal: “Je suis trop ambitieux
pour appartenir à un seul pays. Je suis universel”5 (2005, 2
Nascido no Haiti em 13 de
p.222) abril de 1953, é escritor e
Estamos aqui diante do questionamento da jornalista radicado na província
do Quebec (Canadá).
impossibilidade, em um mundo globalizado, onde as 3
Sou um escritor japonês. Esse
mobilidades, os trânsitos, os fluxos migratórios e culturais livro ainda não possui tradução
são constantes, de se pensar as literaturas de forma para o português.
4
Estou cansado. Sem tradução
estanque, como fazíamos até bem recentemente, e de par ao português.
estruturar os cursos de letras de nossas universidades, 5
Sou muito ambicioso para
segmentando (e confinando) as literaturas ao espaço pertencer a um só país. Eu sou
universal.
Afrontando
fronteiras da literatura comparada... 213

nacional ou linguístico. Diante do ritmo vertiginoso com


que proliferam as transferências culturais, sobretudo com
o advento da internet e de novas formas de comunicação via
redes sociais, urge que (1) enfrentemos as questões ligadas
ao alargamento das fronteiras, que colocam em xeque o
conceito de identidade nacional; (2) repensemos conceitos
e práticas da Literatura Comparada.
Nesse sentido, o comparatista hoje deve ficar atento
a novas propostas que ampliam, esgarçam e afrontam as
fronteiras do pensamento humano, como as de Kenneth
White, que nos fala de nomadismo intelectual, em busca
de um novo campo cultural onde “as energias circulariam
mais livremente” (White, 1987, p. 9). Para o filósofo, o
intelectual nômade

[…] n´est pas l´intellectuel universel, dont le dernier grand


représentant était, bien sûr Hegel. Il n´est pas non plus
l´intellectuel social (on peut penser à Sartre). Il est mondial. Ne
visant ni la possession d´un “univers” ni une efficacité socio-
politique immédiate, il s´éjouit dans un monde qui a ses failles,
ses béances, ses abruptitudes, ses surgissements subits (1987, p.
14).6

Voltemos então à provocação de D. Laferrière que


se quer, sem dúvida, um nômade intelectual, podendo
eleger livremente sua ancestralidade intelectual, como o
estilo dos escritores japoneses que ele admira. O autor
não admite ficar preso a etiquetas que determinariam de
antemão sua temática e regeriam o estilo de seus romances.
Na mesma linha de raciocínio, o poeta e também
crítico literário do Quebec, Pierre Ouellet, faz o elogio do
“esprit migrateur” (espírito migrante) no qual ele amplifica a
denominação de migrante (restrita aos escritores imigrantes
6
Não é o intelectual chegados ao Quebec), considerando que todo e qualquer
universal, cujo último grande
representante foi, com certeza,
escritor é um migrante, mesmo os mais sedentários, já que
Hegel. Também não é o as viagens da imaginação, a visitação a autores de variadas
intelectual social (podemos geografias e os movimentos intersubjetivos entre o eu e
pensar em Sartre). Ele é
global. Não visando nem a
o outro caracterizam uma forma de migrância. Para o
posse de um “universo” nem autor, a noção de migrância é preferível à de hibridação
uma eficácia sócio-política ou mestiçagem, pois migrare em latim designa, ao mesmo
imediata, ele se rejubila em um
mundo que tem suas fendas, tempo, “mudança de lugar”, “transporte de um lugar a
suas aberturas, suas situações um outro” e também o ato de transgredir (cf. OUELLET,
abruptas e ressurgimentos
súbitos.
2005, p. 18-19).
214 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

A Literatura Comparada, hoje, deve, portanto, levar


em conta a extraordinária movência da contemporaneidade
e as passagens inter e transculturais que estão na gênese
das literaturas em escala planetária, mas, sobretudo,
das literaturas das Américas, cujo passado colonial e
escravocrata foi marcado por intensas transferências multi,
inter e transculturais, de onde extraíram características de
heterogeneidade e inovação.

Literaturas migrantes, transnacionais, braconagens


ou littérature-monde (globalizada)?

Literaturas Migrantes

Face às dificuldades de atribuir critérios de


territorialidade ou linguísticos, a autores como Nancy
Huston, por exemplo, que nascida no Canadá, vive na
França onde escreve em inglês e francês; ou aos autores
desterritorializados devido a processos de exílio ou
imigração, teorias contemporâneas começam a propor
diferentes apelações para estas literaturas surgidas dos
trânsitos territoriais e linguísticos e das mobilidades
culturais. A apelação “literatura migrante” tornou-se
a mais usual a partir da publicação de L´écologie du réel,
de Pierre Nepveu, em 1988. Para o poeta e ensaísta de
Montreal, o imaginário migrante é aquele que se apresenta
dilacerado entre o “próximo e o longínquo, o familiar e o
estrangeiro, o semelhante e do diferente” (1988, p. 199-
200). Esta apelação irá impor-se, sobretudo, no âmbito da
cultura francófona do Canadá.

Literaturas transnacionais

No contexto anglófono do Canadá, Janet Paterson,


da Universidade de Toronto, em texto publicado em 2008,
pergunta-se se a melhor denominação seria “literaturas
migrantes” ou “literaturas transnacionais”. Segundo
Paterson, as literaturas ditas migrantes se constituiriam
em discursos da perda identitária, tendo como light motif a
lamentação pelo desenraizamento ocasionado pelo exílio.
Já as narrativas transnacionais se caracterizariam menos
Afrontando
fronteiras da literatura comparada... 215

por uma postura nostálgica em relação a perdas, e mais


pela tentativa de vislumbrar, na nova vida no país de
acolhida, ocasiões para trocas e enriquecimentos propícios
à formatação de identidades híbridas.
O que constatamos, no estágio atual dos
estudos culturais, é que tais discussões esvaziam-se
progressivamente de sentido na medida em que todo
escritor é nômade no plano de seu imaginário. Face à
rapidez vertiginosa com que ocorrem os deslocamentos
culturais, para além da fragilidade da noção de fronteiras
e de nacionalidades, o melhor seria falar do surgimento
de estéticas transculturais, abertas a interações e, por
consequência, à criação do novo.
Situa-se nessa mesma linha de argumentação, M.
Krzykawski, em publicação recente (2013), em que se
posiciona em defesa de uma escritura desterritorializada.
“Nesse mundo que se quer ‘glocal’, onde os estados-nação
pertencem ao passado, a identidade torna-se uma palavra
pesada e os centros cedem lugar às margens, o migrante
é aquele cuja situação identitária incerta seria digna de
inveja” (p. 335).7
Já em 2005, Simon Harel, em Passages obligés de
l´écriture migrante, e Pierre Ouellet, em L´esprit migrateur,
ao afirmarem que todos os escritores são migrantes,
decretaram, ao menos tempo, o fim dessa denominação
que, embora tenha tido a importância de valorizar a
alteridade, acabou lançando sobre os autores “venus
d´ailleurs” (vindos de fora) um olhar que tangenciava o
exotismo.

Braconagens

Se toda literatura atual é feita de braconagens, ou


seja, de apropriações do que está além das fronteiras, e
se a literatura hoje é forma privilegiada de afrontar toda
sorte de fronteiras: identitárias, territoriais, linguísticas
7
“Dans ce monde qui se veut
‘glocal’ dês que les états-nations e culturais, o que se verifica, é a fragilidade das teorias
appartiennent au passé, e da própria Literatura Comparada em abarcar essas
l´identité est um mot lourd et manifestações heterogêneas que se entrecruzam nas
les centres cèdent la place aux
amrges, Le migrant est celui produções literárias atuais. É preferível, portanto, pensar
dont la situation identitaire o literário não em termos de pertença identitária a uma
seriat digne d´envie”.
mesma origem ou filiação, seja ela familiar ou nacional,
216 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

étnica, ou linguística, cultural ou religiosa, mas em termos


de partilha de vestígios memoriais, de imaginários e de
sensibilidades que não pertencem a uma comunidade
em particular, mas que foram sendo adotados e/ou
apropriados por artistas e escritores ao redor do mundo,
constituindo um formidável palimpsesto (cf. BERND,
2011, p. 155).

Littérature-monde (global)

Seria interessante pensar em como reagiria um


comparatista tradicional, vinculado às categorias de “uma
nação, uma língua”, por exemplo, ao recente “manifesto”
da Littérature-Monde que pretende, em última análise
liberar a língua de seu pacto com a nação. Em suma,
quarenta escritores premiados e editados por editoras
de prestígio na França (como Nancy Huston, Edouard
Glissant, Maryse Codé, Jacques Godbout, Tahar Bem
Jelloun, Dany Laferrière, entre outros) se insurgem contra
a centralidade francesa de chamá-los de “francófonos”,
porque são originários dos países onde a língua francesa
é língua oficial. Reivindicam que a literatura que
produzem seja considerada “global” (mondial em francês),
pois consideram uma espécie de preconceito só serem
considerados como fazendo parte do cânone francês os
escritores nascidos na França. Se a Francofonia, de fato,
abrangesse todos os que falam e escrevem em francês,
teriam que ser incluídos aí também os autores da chamada
Literatura Francesa. Proclamando-se parte da Littérature-
monde, os autores signatários do manifesto, liderados por
M. Le Bris, declaram o fim da francofonia, “se definirmos
por esse termo, um espaço sobre o qual a França, mãe das
artes, depositária do universal (vejam quanta ironia!!),
dispensaria suas luzes. Fim desta francofonia e nascimento
de uma literatura-global em francês” (Le BRIS, 2007,
p.45).8 8
“Oui, si on entend par lá um
Semelhante postura adota o S. Rushdie, em Pátrias espace sur lequel la France,
imaginárias (1992), reivindicando o estatuto de escritor mère des arts, dépositaire
internacional por não aceitar as etiquetas de “escritor de l´universel, dispenserait
sés lumières. Fin de cette
britânico de origem indiana”. Como escritor internacional, Francophonie là, et naissance
estaria livre para assumir como seus ancestrais escritores possible d´une littérature-
monde em français.”.
huguenotes, irlandeses, judeus etc., ou seja, o escritor
Afrontando
fronteiras da literatura comparada... 217

reivindica uma identidade ao mesmo tempo plural e


parcial, já que os escritores diaspóricos têm a sensação de
estarem a cavalo sobre duas ou mais culturas.
Tal seria a missão da Literatura Comparada hoje:
imaginar as literaturas como produtos de comunidades
baseadas não mais no princípio de identidade (nacional,
linguística, cultural etc), mas na “experiência da alteridade
mais radical” (OUELLET, 2007, p. 26).9

Literatura comparada ou estéticas transculturais?

Patrick Imbert salienta a importância do caráter


relacional compreendido no conceito de transculturação
ou de transculturalidade que visa à “recomposição do
mundo no reconhecimento das exclusões cometidas
pela dominação dos mitos das origens como do mito
do progresso” (2012b, p. 27)10. De onde a valorização
que o autor faz da perspectiva transcultural que nos
permite avaliar os processos relacionais que ocorrem
na aproximação das culturas, nos quais é possível
perceber o impacto da cultura A sobre a cultura B, mas
também o seu contrário: o quanto a cultura B impacta
por sua vez a cultura A, gerando processos culturais até
então inéditos. Se optarmos por essa via de análise, nos
colocamos em uma posição privilegiada que viabiliza
releituras e recontextualizações, flagrando o lugar de
encontro das culturas e o processo dialógico que esse
encontro propicia, ou seja, a perspectiva transcultural nos
autoriza a acompanhar nos textos literários os processos de
negociação que se estabelecem quando duas linguagens,
duas maneiras de ver o mundo e dois estilos se cruzam.
Lembremos que o prefixo trans está também presente em
vocábulos como transação, ou seja, negociação, “lógica de
base contratual, baseado em concessões recíprocas” (cf.
9
L´expérience même de
l´altérité la plus radicale. FERREOL; JUCQUOIS, 2003, p. 339).11
10
“La recomposition du A perspectiva transcultural (trans: ir além,
monde dans la reconnaissance ultrapassar) favorece a implosão dos binarismos implícitos
des exclusions commises par
la domination des mythes des a um conceito tradicional de Literatura Comparada,
origines comme du mythe du promovendo o entrecruzamento fertilizador, a valoração
progrès.”
11
“logique de type contractuel,
da diversidade, o reconhecimento de alteridades e,
basé sur des concessions sobretudo, ensejando dinâmicas relacionais. Nesse
réciproques”. sentido, mais importante do que rotular as produções
218 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

ficcionais migrantes ou transnacionais é acolhê-las como


estéticas transculturais que emergem da travessia das
diferentes culturas e da utilização criativa dos vestígios
e rastros memoriais, cujas brechas são preenchidas pela
força imaginativa dos escritores.

Concluindo

Nos idos de 1992, Wlad Godzich, à época professor


do Departamento de Literatura Comparada da Université
de Montréal, se questionava sobre a viabilidade do
exercício da Literatura Comparada, tomando como
corpus o Brasil e o Quebec. Ele se perguntava se, no
âmbito da Literatura Comparada como disciplina estável,
a perspectiva comparada interamericana poderia se
desenvolver. Segundo o autor, a Literatura comparada é
eurocêntrica, assumindo as “grandes” literaturas europeias
(francesa, alemã, espanhola, portuguesa) como paradigmas
e suas práticas estilísticas como o tertium comparationis.
Na comparação com literaturas em emergência, como as
literaturas das Américas, que têm sua origem nessas mesmas
literaturas, mas mestiçadas com as culturas autóctones, os
estudos comparados tradicionais, alicerçados nas “fontes
e influências” que as literaturas dos grandes centros
hegemônicos exerciam sobre as da periferia, tenderiam a
considerar as literaturas periféricas como “inferiores” em
relação às do centro.
Leyla Perrone-Moysés (1992) aponta as teses de
M. Bahthin, sobre o dialogismo, e posteriormente as
de J. Kristeva, sobre a intertextualidade, as quais, no
seu entendimento, tenderam a subverter a Literatura
Comparada de base tradicional por substituírem o
esquema tradicional de buscar diferenças e semelhanças
entre as obras analisadas, pela ênfase bem mais profícua nos
“produtos e processos” (1992, p. 183). A culminância para
tal ruptura foram os pressupostos contidos no Manifesto
Antropófago, de Oswald de Andrade, que nos perdoava
(a nós, americanos) do pecado original de haver copiado,
privilegiando a busca das “diferenças, das transformações,
12
No original em francês: “des
différences, des transformations,
das absorções e das integrações que tornam secundária des absorptions et des intégrations
a noção de influência” (1992, p. 183).12 Muito sábios os qui rendent secondaire la notion
d´influence”.
ensinamentos de Perrone-Moysés, na medida em que
Afrontando
fronteiras da literatura comparada... 219

a análise dos “produtos e processos” desloca o eixo da


centralidade, fazendo com que as literaturas das Américas
se declarem centrais a si mesmas. O que importa são os
“produtos”, necessariamente híbridos ou mestiços, e os
“processos”, necessariamente transculturais, pois, do
contato entre culturas autóctones, africanas e europeias,
surge a inovação e a imprevisibilidade.
Em uma etapa ainda mais recente com as
releituras das teorias sobre a transculturação, a Literatura
Comparada em suas formas teóricas e pedagógicas “tende
a enfraquecer-se, abrindo-se a pesquisas ligadas aos estudos
culturais” (IMBERT, 2012b, p. 10).13 O que assistimos
presentemente, sublinha P. Imbert, escritor e pesquisador
da Universidade de Ottawa, é um grande encontro de
poéticas, de imaginários, resultando em um processo
de mestiçagem de formas e de gêneros. Cita também,
com base em releituras de textos de Édouard Glissant, a
crioulização, a hibridação progressiva e a interpenetração
de gêneros literários na contemporaneidade, de modo
que um ensaio pode conter trechos ficcionais ou poéticos
e um romance pode intercalar passagens ensaísticas ou
jornalísticas, entre outras mesclas possíveis.
P. Imbert, em Le transculturel et les littératures des
Amériques, cujo objetivo foi justamente o de problematizar
e repensar a Literatura Comparada no âmbito das relações
literárias nas Américas, conclui que

[...] la littérature comparée ne peut rendre compte pleinement


des dynamiques des Amériques car elle ne permet guère de mettre
en valeur les instants de coïncidence, les instants ou quelque
chose peut se produire, car dans le Nouveau Monde on s´attend
toujours à ce que quelque chose se produise (2012b, p. 14).14

Constatamos que o paradigma estável da Literatura


13
No original em francês:
“tend à s´étioler pour ouvrir à Comparada, tal como surgiu no século XIX, não
des reherches liées aux études responde mais às contingências da pós-modernidade e
culturelles”.
14
A literatura comparada não
da globalização. Saliente-se, contudo, que a maioria dos
pode dar plenamente conta das pesquisadores da pós- modernidade já propõe outras
dinâmicas das Américas, pois definições da disciplina com base, sem dúvida, na
ela não permite a valorização
dos instantes de coincidência, observação das práticas contemporâneas:
dos instantes onde algo pode se
produzir, pois no Novo Mundo A Literatura Comparada pode ser compreendida como
espera-se sempre que algo se
produza.
um campo interdisciplinar cujos “praticantes” estudam
220 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

literatura transversalmente às fronteiras nacionais,


ao tempo, às línguas, aos gêneros, aos limites entre a
Literatura e as demais artes, assim como qualquer outra
disciplina (literatura e psicologia, filosofia, ciências,
história, arquitetura, sociologia e política).15

Fica evidente que é na transversalidade que deve


ser praticado o viés comparatista, devendo inserir-se em
uma rede aberta que privilegia os questionamentos em
detrimento de respostas definitivas; os rastros e os detritos
memoriais, isto é, o que ficou à margem, em detrimento
do que está no fluxo principal (mainstream). É preciso,
hoje, valer-se de um oxímoro para falar de Literatura
Comparada: trata-se de uma disciplina, ou melhor, de um
vasto campo inter, multi e transdisciplinar pautado por
paradigmas inquietos...
Afrontando as fronteiras da Literatura Comparada,
efetuam-se passagens do nacional ao transnacional, e da
transnacionalidade à transculturalidade, que pode ser
definida como

[...] o entrelaçamento das identidades culturais que se


definem e se transformam em ressonância umas com
as outras, bem como a competência dos indivíduos
em interagir simultaneamente em vários fluxos ou
universos culturais ao mesmo tempo, os quais não
15
Literatura comparada.
Verbete da Wikipédia.
podem mais ser entrevistos na sua separabilidade ou Disponível em: <http://
diferenciação intrínseca, mas são considerados como pt.wikipedia.org/wiki/
sendo comunicantes. (BENESSAIEH, 2012ª, p. 85).16 Literatura_comparada>. Acesso
em 24/05/2013
16
L´entrelacement des
O valor agregado da transculturalidade em relação identités culturelles qui se
à multi e à interculturalidade, por exemplo, é que, enquanto définissent et se transforment
em résonnance les unes avec les
essas últimas consistem em uma visão clássica da cultura autres, ainsi que la compétence
como entidade fechada, “diferenciada e estável e sobretudo d´individus à interagir
simultanément dans plusieurs
separável de qualquer outra”17, a transculturalidade flux ou univers culturels à
focaliza as culturas como “trajetórias coletivas altamente la fois, lesquels ne peuvent
permeáveis e em contínua mobilidade”18 (BENESSAIEH, plus être entrevus dans leur
séparabilité ou différenciation
2012ª, p. 85) . intrinsèque, puisque consideres
Se a Literatura Comparada hoje vier a realizar comme étant communicants.
essa ultrapassagem do enfoque tradicional estável das
17
Différenciée, stable et surtout
séparable de toute autre.
nacionalidades para o enfoque móvel e aberto à diversidade 18
Trajectoires collectives
e à relação, representado pela transculturalidade, então aux contours hautement
perméables et em continuelle
penso que podemos continuar a nos considerarmos mobilité.
comparatistas. Caso não o faça, deixando de alargar as
Afrontando
fronteiras da literatura comparada... 221

novas fronteiras transculturais, deixará de ser competente


para analisar os constantes processos de crioulização e as
relações hipertextuais que são metaforizados pelos textos
ficcionais e poéticos de nossa contemporaneidade.

Referências

BENESSAIEH, Afef. Après Bouchard-Taylor: multiculturalisme,


interculturalisme et transculturalisme au Québec. IN:
FONTILLE, B.; IMBERT, P (Orgs.) Trans, multi, interculturalité;
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IMBERT, Patrick, org. Le transculturel et les littératures des
Amériques: Le Canadá et les Amériques. Ottawa: Université
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KRZYKAWSKI, Michal. (Im)migrant vs. Nomade. Pour eu
théorie de l´écriture déterritorialisée. IN: ERTLER, K.D.;
IMBERT, P. (éds.) Cultural Challenges of Migration in Canada/Les
défis de la migration au Canada. Frankfurt: Peter Lang, 2013. p.
333-342. (Collection Canadiana, 12).
LAFERRIERE, Dany. Je suis um écrivain japonais. Montreal:
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_________ Je suis fatigué. Montreal: Typo, 2005.
LE BRIS, M.; ROUAUD, J. (Orgs.) Pour une littérature-monde.
Paris: Gallimard, 2007.
222 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

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em: < http://pt.wikipedia.org/wiki/Literatura_comparada>.
Acesso em maio de 2013.
MOYSÈS, Leyla Perrone. Littérature comparée, intertexte
et anthropophagie. IN: PETERSON, M.; BERND, Z.
(éds.) Confluences littéraires: Brésil-Québec, les bases d´une
comparaison. Candiac: Balzac, 1992. p. 177-187. (Collection
L´Univers des Discours)
MORENCY, Jean. Do centro às margens: a experiência das
fronteiras no romance americano e quebequense. Trad. Luciano
Passos Moraes. In: Cadernos do Programa de Pós-Graduação em
Letras da FURG, Série traduções. Rio Grande, n. 4, jan. 2009.
19 p.
NEPVEU, Pierre. Écritures migrantes. IN: ........ L´écologie du
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VLB, 2007, p. 7-43. (Col. Le soi et l´autre).
PATERSON, Janet. Identité et altérité: littératures migrantes
ou transnacionales? Interfaces Brasil-Canadá, n. 9, Rio Grande:
FURG/ABECAN, 2008, p. 87-102. Disponível também on
line: <www.revistas.unilasalle.edu.br/index.php/interfaces>.
WHITE, Kenneth. L´esprit nomade. Paris, Grasset, 1987.
Parecerista
ad hoc 223

Pareceristas ad hoc

Amador Ribeiro Neto (UFPB)


Genilda Azeredo (UFPB)
Luiz Antônio Mousinho Magalhães (UFPB)
Maria Goretti Ribeiro (UEPB)
Marilene Weinhardt (UFPR)
Mário César Lugarinho (USP)
Sandra Margarida Nitrini (USP)
224 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013
225

Normas da revista

Normas para apresentação de artigos

• Só serão aceitos trabalhos enviados pela internet para o


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outro idioma. Devem ser produzidos em MSWord 2007 (ou
versão superior), com uma folha de rosto onde constem os
dados de identificação do autor: nome, instituição, ende-
reço para correspondência (com o CEP), e-mail, telefone
(com prefixo), título e temática escolhida. A extensão do
texto deve ser de, no mínimo, 10 páginas e, no máximo,
20, espaço simples. Todos os trabalhos devem apresentar
também Abstract e Keywords. 
• O espaço para publicação é exclusivo para pesquisadores
doutores. Eventualmente, poderá ser aceito trabalho de
não doutor, desde que a convite da comissão editorial –
casos de colaborações de escritores, por exemplo. 
• Após a folha de identificação, o trabalho deve obedecer
à seguinte sequência: 
- Título – centralizado, em maiúsculas e negrito (sem
grifos);
- Nome(s) do(s) autor(es) – à direita da página (sem
negrito nem grifo), duas linhas abaixo do título, com mai-
úscula só para as letras iniciais. Usar asterisco para nota de
rodapé, indicando a instituição à qual está vinculado(a).
O nome da instituição deve estar por extenso, seguido da
sigla;
226 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013


Resumo – a palavra Resumo em corpo 10, negrito, itálico
e maiúsculas, duas linhas abaixo do nome do autor, seguida
de dois pontos. O texto-resumo deverá ser apresentado
em itálico, corpo 10, com recuo de dois centímetros de
margem direita e esquerda. O resumo deve ter no mínimo
3 linhas e no máximo 10;
- Palavras-chave – dar um espaço em branco após o re-
sumo e alinhar com as mesmas margens. Corpo de texto
10. A expressão palavras-chave deverá estar em negrito,
itálico e maiúsculas, seguida de dois pontos. Máximo: 5
palavras-chave;

Abstract – mesmas observações sobre o Resumo;
- Keywords – mesmas observações sobre as palavras-
chave;
- Texto – em Times New Roman, corpo 12. Espaçamento
simples entre linhas e parágrafos. Usar espaçamento duplo
entre o corpo do texto e subitens, ilustrações e tabelas,
quando houver;

Parágrafos – usar adentramento 1 (um);

Subtítulos – sem adentramento, em negrito, só com a
primeira letra em maiúscula, sem numeração;
- Tabelas e ilustrações (fotografias, desenhos, gráficos
etc.) – devem vir prontas para serem impressas, dentro do
padrão geral do texto e no espaço a elas destinados pelo
autor;

Notas – devem aparecer ao pé da página, numeradas de
acordo com a ordem de aparecimento. Corpo 10.
- Ênfase ou destaque no corpo do texto – negrito. Palavras
em língua estrangeira – itálico.

Citações de até três linhas vêm entre aspas (sem itálico),
seguidas das seguintes informações entre parênteses: so-
brenome do autor (só a primeira letra em maiúscula), ano
de publicação e página(s). Com mais de 3 linhas, vêm com
recuo de 4 cm na margem esquerda, corpo menor (fonte
11), sem aspas, sem itálico e também seguidas do sobre-
Normas
da revista 227

nome do autor (só a primeira letra em maiúscula), ano de


publicação e página(s).As citações em língua estrangeira
devem vir em itálico e traduzidas em nota de rodapé.
- Anexos, caso existam, devem ser colocados antes das
referências, precedidos da palavra ANEXO, em maiúsculas
e negrito, sem adentramento e sem numeração. Quando
constituírem textos já publicados, devem incluir referência
completa, bem como permissão dos editores para publi-
cação. Recomenda-se que anexos sejam utilizados apenas
quando absolutamente necessários.

Referências – devem ser apenas aquelas referentes aos
textos citados no trabalho. A palavra REFERÊNCIAS
deve estar em maiúsculas, negrito, sem adentramento,
duas linhas antes da primeira entrada.

Alguns exemplos de citações 


• Citação direta com três linhas ou menos 
[...] conforme Octavio Paz, “As fronteiras entre objeto e
sujeito mostram-se particularmente indecisas. A palavra é
o próprio homem. Somos feitos de palavras. Elas são nossa
única realidade, ou pelo menos, o único testemunho de
nossa realidade.” (PAZ, 1982, p. 37)
• Citação indireta 
[...] entre as advertências de Haroldo de Campos (1992),
não há qualquer reivindicação de possíveis influências
ou contágio, ao contrário, foi antes a poesia concreta
que assumiu as conseqüências de certas linhas da poética
drummoniana.
• Citação de vários autores 
Sobre a questão, pode-se recorrer a vários poetas, teóricos
e críticos da literatura (Pound, 1977; Eliot, 1991; Valéry,
1991; Borges, 1998; Campos, 1969)
• Citação de várias obras do mesmo autor
As construções metafóricas da linguagem; as indefinições;
a presença da ironia e da sátira, evidenciando um confron-
to entre o sagrado e o profano; o enfoque das personagens
228 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

em diálogo dúbio entre seus papéis principais e secundários


são todos componentes de um caleidoscópio que põe em
destaque o valor estético da obra de Saramago (1980,
1988, 1991, 1992)
• Citação de citação e citação com mais de três linhas 
Para servir de fundamento ao que se afirma, veja-se um
trecho do capítulo XV da Arte Poética de Freire: Vê, [...]
o nosso entendimento que a fantasia aprendera e formara
em si muitas imagens de homens; que faz? Ajunta-as e,
de tantas imagens particulares que recolhera a apreensiva
inferior [fantasia], tira ele e forma uma imagem que antes
não havia, concebendo que todo o homem tem potência
de rir [...] (FREIRE, 1759, p. 87 apud TEIXEIRA, 1999,
p. 148)

Alguns exemplos de Referências


• Livro
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Vira e mexe, nacionalismo. Para-
doxos do nacionalismo literário. São Paulo: Companhia das
Letras, 2007.
• Capítulo de livro 
BERND, Zilá. Perspectivas comparadas trans-americanas. In:
JOBIM, José Luís et al. (Org.). Lugares dos discursos literários
e culturais – o local, o regional, o nacional, o internacional,
o planetário. Niterói: EdUFF, 2006. p.122-33.
• Dissertação e tese
PARMAGNANI, Claudia Pastore. O erotismo na produção
poética de Paula Tavares e Olga Savary. São Paulo, 2004.
Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciên-
cias Humanas, Universidade de São Paulo.
• Artigo de periódico
GOBBI, M. V. Z. Relações entre ficção e história: uma bre-
ve revisão teórica. Itinerários, Araraquara, n. 22, p. 37- 57,
2004.
Normas da revista 229

• Artigo de jornal 
TEIXEIRA, I. Gramática do louvor. Folha de S.Paulo, São
Paulo, 8 abr. 2000. Jornal de Resenhas, p. 4.
• Trabalho publicado em anais 
CARVALHAL, T. F. A intermediação da memória: Otto Ma-
ria Carpeaux. In: II CONGRESSO ABRALIC – Literatura e
Memória Cultural, 1990. Anais... Belo Horizonte. p. 85-95.
• Publicação on-line – Internet 
FINAZZI-AGRÒ, Ettore. O comum e o disperso: história (e
geografia) literária na Itália contemporânea. Alea: Estudos
Neolatinos, Rio de Janeiro, v. 10, n. 1, jan./jun. 2008. Dis-
ponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid= S1517-
106X2008000100005&script=sci_arttext>. Acesso em: 6
fev. 2009.

Observação Final: A desconsideração das normas implica


a não aceitação do trabalho. Os artigos recusados não serão
devolvidos ao(s) autor(es).
230 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

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