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A redescoberta da igreja de São

João das Covas (Sintra)


* Museu Arqueológico Pedro Mendes*
de São Miguel de
Odrinhas.
petrusmendes@gmail.com

Resumo O conhecimento da existência de uma igreja dedicada a São João das Covas em territó-
rio sintrense provinha da breve descrição nas “Antiguidades de Mafra”, de Estácio da Veiga
(1879). Desde então, entrou no esquecimento e perdeu-se a memória do lugar e do seu culto.
Neste estudo, redescobre-se o referido templo e reconstrói-se um pouco da sua história secular,
espaço, arquitetura, culto e do seu processo obscuro de desaparecimento.

Abstract The knowledge about São João das Covas dedicated church in Sintra’s territory comes from the
brief description in the “Antiguidades de Mafra” from Estácio da Veiga (1879). Since then it has
been forgotten and the memory of the place has been lost. In this study, this temple is rediscov-
ered and its secular history, space, architecture, religious worship it is a little reconstructed, as
well their obscure process of disappearance.

Introdução Procurou-se primeiramente analisar os fun-


dos documentais de arquivos e bibliotecas,
Na sequência de um trabalho de estágio com designadamente na Direção-Geral do Terri-
o tema “A destruída Igreja de São João das tório (DGT), no Arquivo Nacional da Torre do
Covas (Almargem do Bispo – Sintra): contri- Tombo (ANTT), no Arquivo Histórico de Sin-
butos para o seu conhecimento arqueológico”, tra (AHS), na Biblioteca do Museu Arqueoló-
quisemos publicar parte deste estudo, dando a gico de São Miguel de Odrinhas (MASMO),
conhecer o referido monumento. o Arquivo Digital do Ministério das Finanças
A escassez de tempo, de meios técnicos e huma- (ADMF) e o Arquivo do Patriarcado de Lisboa
nos levou-nos a empregar uma metodologia (APL), recolhendo o máximo de dados possí-
convencional não intrusiva e simples, porém, útil vel. De seguida fizemos uma recolha oral da
e eficaz na obtenção de novos dados para a memória dos habitantes mais idosos da Aldeia
História da Igreja deste território. das Covas e, noutros lugares, contactámos com

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Pedro Mendes

pessoas relacionadas com a história das paró-


quias adjacentes. Por fim, cruzando os diversos
dados, foi feita prospeção no terreno conven-
cional sem recurso a métodos intrusivos.

2. Localização e enquadramento geográfico

A área correspondente à antiga localização


da Igreja de São João das Covas pertence,
administrativamente, à freguesia de Almar-
gem do Bispo (concelho de Sintra), a cerca de
200 m da fronteira com o concelho de Mafra,
ambos pertencentes ao distrito de Lisboa. Por
sua vez, a aldeia das Covas, a qual dá o nome
à Ermida, encontra-se 600 m para norte, já na
freguesia de Igreja Nova (Mafra). Tem como
coordenadas geográficas N38º 53’ 03” e W9º dido em 22 vintenas, antiga divisão judicial do Fig. 1 – Localização
17’ 23” (WGS 84) e uma cota altimétrica de território que em Sintra foi usada ainda nos da Ermida de São
João das Covas.
227 m (Fig. 1). censos de 1527. Era precisamente na área NE
Situa-se na encosta de uma elevação orien- do termo de Sintra que o desajuste entre os
tada a sudoeste, sobranceira ao vale de Che- limites de freguesias e a organização vinta-
leiros, junto à Ribeira dos Tostões e avistando, neira era maior.
para noroeste e oeste, os relevos da Raimonda, Aqui, a aldeia de Covas pertencia à vintena
Cabeço do Lexim, Monte dos Cartaxos e subse- das Mastrontas (Azevedo, 1982, p. 159). Esta,
quentes até ao mar. Para sul e sudoeste, avista por sua vez, pertencia a três paróquias —
o vale das Mastrontas, o Cabeço do Musgo Igreja Nova, Almargem do Bispo e Montelavar.
até à linha de horizonte, correspondente à Por outro lado, a Ermida de São João estava
cumeada da Serra de Sintra. sob a administração do prior da paróquia de
São Miguel, acentuando a complexidade ecle-
siástica deste território.
3. Enquadramento histórico A própria geografia terá contribuído, pois a
aldeia das Covas encontra-se exatamente na
3.1. A dinâmica dos limites eclesiásticos cumeada de uma serrania que serviu ao longo
da história como linha fronteiriça entre conce-
Para compreender o contexto histórico da lhos, freguesias e paróquias.
Ermida de São João das Covas, é necessário Após a conquista de Sintra aos muçulmanos, em
enquadrá-la naquilo que foi a evolução do 1147, foram instituídas quatro paróquias no terri-
espaço paroquial sintrense desde a Alta Idade tório de Sintra: São Martinho, a faixa mais a oeste
Média. Ao longo de mais de nove séculos, este que incluía o núcleo da vila de Sintra, São Pedro
território foi sujeito a diversas divisões paro- de Penaferrim, que dominava parte da serra e 1
Na obra inédita de
quiais, jurídicas e senhoriais que nem sempre todo o território a sul da mesma, Santa Maria e António Mata, polico-
piado nos “Reserva-
foram correspondentes e coerentes entre si. A São Miguel. Estas duas últimas, com sede nos arra- dos” da biblioteca do
área à qual corresponde a aldeia de Covas baldes da vila, prolongavam-se para norte e MASMO na página
e a Ermida de São João foi sempre uma zona este dos termos de Sintra. Grosso modo, eram no 20 diz “Desde cedo
que os limites entre as
de fronteiras, desde a primeira divisão canó- seu conjunto territórios radiais, com as suas sedes paróquias de Santa
nica do território sintrense, no século XIII, pas- paroquiais em Sintra e arrabaldes1. Francisco Maria e de São
sando pela criação de novas paróquias, com o Costa transcreve um documento do século XIII, no Miguel geraram con-
trovérsia o que terá
desmembramento das antigas durante o século qual é referida, pela primeira vez, a aldeia de levado, em 1253, o
XVI, até, mais tarde, ao surgimento de novos São João das Covas, a propósito dos limites entre bispo da Diocese de
concelhos. Na época de Quinhentos, a região estas duas paróquias. Contudo, não é explícito Lisboa — Aires Vas-
ques — a determinar
de Sintra era constituída por 14 freguesias, que esta povoação pertença a uma ou a outra; uma nova demarca-
porém, o mesmo espaço, estava ainda divi- simplesmente encontra-se na linha de fronteira ção territorial”.

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A redescoberta da igreja de São João das Covas (Sintra)

[...] et deinde per ripariam de Cheleiros sur- descontentamento popular que levou à criação
sum ad hereditatem dos tostoens; ita quod da paróquia de São Pedro de Almargem,
Aldea de Covis totallier cum terminis suis por desanexação da Igreja de São Pedro de
contineatur infra Parochiam S. Mariae. Et Canaferrim.
hereditatem dos tostoens directe ad Caput Assim, nos séculos XV e XVI, as quatro paróquias
de Novolast [...]” (Costa, 1980, p. 106). do termo de Sintra tinham originado outras e, com
elas, novos limites eclesiásticos. É neste contexto de
Por outro lado, João Martins da Silva Marques2 mudanças, perdas e ganhos, de rendas e fregue-
elaborou um mapa com a divisão paroquial de ses, que observamos o aumento ou a diminuição
Sintra num ensaio cartográfico onde são defi- de importância e significado dos espaços religio-
nidas as fronteiras entre paróquias em 1253. sos. É dentro desta dinâmica que se enquadra a
Entre alguns dos limites incertos encontra-se pre- história da ermida de São João das Covas.
cisamente o limite noroeste da paróquia de São
2
Ex-diretor do ANTT,
que transcreveu docu-
Miguel, com o limite nordeste da Paróquia de
mentos relativos a Santa Maria a passar na aldeia de São João das 4. Origem e fundação da Ermida de São João
Sintra (1930–1940). Covas, deixando-a do lado da paróquia de São das Covas
Este corpus, encontra-
-se nos reservados do
Miguel.
MASMO. Para respei- As contendas entre diversas partes acerca dos A fundação e as fases iniciais desta pequena
tar as fontes remete- limites das paróquias foram sempre uma constante igreja são difíceis de se apurar. A ausência
mos para Silva Mar-
ques, 1930–1940, n.º
ao longo da Baixa Idade Média. Logo nas Cortes de documentação escrita e de vestígios físicos,
do volume e página. de Santarém, em 1331, os procuradores do con- como elementos arquitetónicos característicos
3
Parte do processo celho de Sintra reclamam que as igrejas da vila inviabilizam considerações sustentadas e reme-
de desanexação não estavam a ser dadas aos naturais, tal como tem-nos para o capítulo das possibilidades. A
das igrejas da Terru- obrigava o foral concedido por D. Afonso Henri- primeira referência à existência de uma igreja
gem, Igreja Nova e
da igreja Matriz de ques em 1154 (Marques & alii, 1982). de São João das Covas surge a partir de uma
Santa Maria de 1550 A dimensão dos territórios paroquiais exigia que hipótese baseada numa inquirição feita sobre
“[…] disse ao dito os fregueses percorressem grandes e penosas dis- os bens e direitos das Ordens e Mosteiros em
senhor arcebispo que
a jgreja de sancta tâncias até às respetivas igrejas matrizes, mor- Lisboa e seu termo, em 1220. Neste documento,
maria de sintra que rendo por vezes sem os principais sacramentos3. são inumeradas as Igrejas de Sintra:
he do padroado de Este facto deu origem a inúmeras queixas, contri-
sua Alteza e estaa
em suas terras tem buindo para alguma independência das Igrejas [...] hec sunt nomina ecclesia umsintrie jn
grande freguesija matrizes, através da atribuição de capelões que primis. Ecclesiassancti Michaelis. Ecclesia
pelo que em tempos celebravam os atos de culto como batizar, con- sancti Matinj. Eclesia sancti petri. Ecclesia
passados se fezerão
duas Jrmidas ou cape- fessar e administrar os sacramentos numa ermida sancti Marie. Ecclesia de chileiros nomine
las na dita freguesia e mais próxima, sem que todavia houvesse pre- sancte Marie. Ecclesia sancti johannis de
se dividirão os fre- juízo das ofertas das missas e batizados à igreja lechym. [...] (Marques, 1930–1940, I,
gueses por nõ pode-
rem hir ouujr missa paroquial. p. 101).
aa dita jgreja matriz No caso de Montelavar não se sabe ao certo
aqueles fregueses que quando deixou de ser um curato anexo e de Esta última Ecclesia sancti johannis de lechym é
morauão longe dela
as quais Jrmidas que apresentação do prior de São Miguel todavia, totalmente ignorada, quer na bibliografia que
asi fizeram se nomeão segundo o “Catálogo dos Priores da Igreja de consultámos, quer pelos estudiosos do património
hua da comçepção S. Miguel” deve ter acontecido nos princípios do eclesiástico de Mafra como pelos próprios habi-
de nossa senhora e a
outra de são Johão século XVI. Por esta altura, a Igreja de Nossa tantes da aldeia do Lexim.
da terugem e porque Senhora da Purificação, em Montelavar, encon- Alguns investigadores, nas últimas décadas, procu-
os ditos fregueses que trava-se a cerca de 4,5 km (em linha reta) de rando também pela desaparecida Igreja de São
moralão lomge da
dita matriz nõ podião Covas, a par da Igreja de Nossa Senhora de João das Covas na região limítrofe entre os atuais
asyhir aa missa a ella Rocamador, em Cheleiros, e a da Nossa Senhora concelhos de Mafra e Sintra, tentaram encontrá-
como dito he ouue- da Conceição, na Igreja Nova. -la na aldeia do Lexim, sem resultados convin-
rão licença pera que
nella lhe dissessem No século XV, o espaço geográfico de Almargem centes. É neste sentido que surge a hipótese de
missa e administras- do Bispo estava repartido entre Sintra, integrado a Ecclesia sancti johannis de lechym corresponder
sem os sanctos sacra- eclesiasticamente na paróquia de São Pedro de à Igreja de São João das Covas. Esta suposição
mentos [...]” (Marques,
1930–1940, XI, Canaferrim, e Lisboa, na parte administrativa faz algum sentido, visto que esta última se encon-
pp. 118–119). e judicial. Este desajuste esteve na origem do tra isolada das duas aldeias e, embora um pouco

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mais distante da aldeia do Lexim (3 km), é com tende-se ainda pelas palavras de Sotto Mayor 4
Aqui o
ela que tem contacto visual. Pelo contrário, o lugar que, no século XVII, o prior da paróquia de São transcrevemos:
N. 204. Montelavar
de Covas, a nordeste da Ermida de São João e Miguel seria o padroeiro daquela ermida ou seja, ou Lavar /1
muito mais próximo (1 km), não se avista a partir o administrador responsável por aquele templo. Montelavar ou Monte-
da ermida. É de supor também que, em épocas Contudo, São João das Covas estaria incluído no -lavar he aldea, e
Parochia do /2 termo
mais recuadas, a aldeia do Lexim tivesse maior território da paróquia de Montelavar... da Villa = Cintra =
importância do que o lugar de Covas, pois aquela À decadência desta ermida não deve ter sido na commarca = Alen-
foi cabeça de vintena, ao contrário do lugar de alheia a distância física do seu padroeiro, prior quer = e seo po- /3
vo consta de 315
Covas, que pertencia à vintena de Mastrontas. de uma outra paróquia e com problemas de fogos com 890 almas
A existir validade na hipótese de Ecclesia sancti afirmação face à vizinha paróquia de Santa de sacramento na
johannis de lechym corresponder a São João das Maria. Ambas, desde o século XVI, tiveram Ma /4 tris dedicada
a Senhora da Purifi-
Covas, então esta teria sido fundada no primeiro reduções drásticas de território, com a criação cação /5O Parocho
quartel do século XIII, anterior a todas as outras das novas paróquias da Terrugem, Igreja Nova, he cura appresen-
ermidas conhecidas no território sintrense, justifi- Montelavar e Almargem do Bispo. A redução de tado pelo Prior da
Matris de /6 S. Miguel
cando-se, assim, naquele documento não serem fregueses diminuiu e, com eles, as suas rendas. da villa de Cintra;
referidos outros templos. Por outro lado, se até à criação das novas paró- tem de Congrua o
Considerando o documento do século XIII trans- quias, São João das Covas poderia funcionar Pe d Altar //7ANTT
Memórias Paroquiais.
crito por Francisco Costa (1980), no qual é refe- como uma âncora de segurança na sacralização Tomo 42, Suplemento
rida, pela primeira vez, a aldeia de São João das da paisagem de uma população distante das suas n.º 204 – Montela-
Covas, salientamos que apenas a “aldeia” e não igrejas matrizes, a partir do século XVI, esse esta- var, 1722–1732,
p. 94. Cota: PT/TT/
a “ermida” é visada. Apesar de se encontrarem tuto vai-se perdendo, aproximando-se os fregue- MPRQ/42/204.
a escassas centenas de metros uma da outra, ao ses dos novos espaços sagrados de referência. 5
BNP cota do micro-
ponto de exibirem o mesmo topónimo de “Covas”, Por outro lado, novas ermidas foram criadas: filme: COD208FL11.
apenas a povoação é citada no documento de por exemplo, as do Culto do Espírito Santo, que
1253. Fosse pela sua inexistência ou pela falta teve forte expansão no século XV. No século XVI,
de propósito em fazê-lo, o certo é que só por uma constatamos que os potenciais fregueses de São
vez a igreja é referida em toda a documentação João das Covas seriam os escassos habitantes
conhecida, para além de Estácio da Veiga, per- das aldeias de Covas, Casal da Abegoaria e
tencendo ao território paroquial de São Miguel. Mastrontas.
Esta citação ocorre em 1675, por Manoel da
Pereira Sotto Mayor, prior da Igreja Paroquial de
S. Miguel de Sintra, Escrivão da Torre do Tombo 5. A ermida de São João nas Memórias
(em 1666) no “Cathalogo dos Priores da Igreja de Paroquiais
S. Miguel de Cintra em que se conthem algûas anti-
guidades da mesma Vª. Consagrado ao archanjo As Memórias Paroquiais de 1758, resultantes
S. Miguel Patrono da dita Igreja”. Aqui enumera dos inquéritos feitos após o terramoto de 1755,
todos os clérigos desde 1253, com Martim Pires, ajudam-nos a ter uma visão da estrutura ecle-
até ao século XVII, seguindo uma ordem crono- siástica e da vivência religiosa, todavia, as mais
lógica. Logo no início, e a propósito da primeira importantes, para o nosso estudo, designada-
divisão paroquial do espaço sintrense e dos bens mente as de Montelavar e de São Miguel, são
da paróquia de São Miguel, refere: as mais problemáticas. Desde logo, as Memórias
Paroquiais de Montelavar são dos casos raros
[...] Tem mais esta Igreja [de S. Miguel] que não responderam ao questionário pomba-
três hermidas a de São João das Covas lino, inviabilizando o acesso à informação res-
fundação antiquíssima da qual o prior he peitante a espaço paroquial.
padroeiro como da de S. Miguel de Odri- Existe apenas um pequeno manuscrito nos suple-
nhas, a do Espirito Santo de Montelavar mentos do “Dicionário Geográfico de Portugal”,
[…] (Sotto Mayor, 1675, p. 122). Tomo 42, respeitante aos possíveis apontamen-
tos prévios elaborados pelo Padre Luís Cardoso,
Sabemos por Sotto Mayor que se trata de uma no qual estão incluídas algumas respostas obti-
ermida e não de uma igreja, que tem o nome da das entre 1722 e 17324.
aldeia mais próxima e que se distingue de outras Sabemos, através do “Cathalogo dos Priores da
ermidas pela sua “fundação antiquíssima”. Suben- Igreja de São Miguel [...]”5 que, na dependência

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A redescoberta da igreja de São João das Covas (Sintra)

6
ANTT Memórias da Paróquia de S. Miguel de Sintra, se encontra- nor de que neste documento, na nota inicial, o
paroquiais. Tomo 19, vam “ [...] três ermidas: a do Espírito Santo de prior não assume “Arranholas” como fregue-
n.º49, pp. 395–400.
Montelavar, a de S. Miguel de Odrinhas e a de sia, evidenciando o decrescente estatuto e até
7
ANTT Memórias
paroquiais, Tomo 5, São João das Covas [...] ” (Sotto Mayor, 1675, uma certa tensão com as paróquias vizinhas e
n.º 9, pp. 607–610. p. 122), sendo por isso o prior da paróquia de por esta estar reduzida à quarta paróquia dos
Código de ref.: PT/ São Miguel de Sintra quem designava o cura arrabaldes de Sintra.
TT/MPRQ/5/9
destes templos e os administrava. Neste sentido,
as memórias paroquiais de São Miguel assumem Página 607
extrema importância para a pesquisa. N 9    Arranhollas termo Cintra /1
Curiosamente, existem dois documentos asso- [NB] não he freguesia: porquea presen-
ciáveis a esta paróquia. O primeiro, publicado teque sedes /2 creve he a 4ª Parochia da
como inédito pelo investigador Alfredo da mesma villa de Cintra.//3
Costa Azevedo que o entendeu como Emminentissimo Senhor /1 Por não faltar às
ordens de Vossa Excelentíssima magestade
[...] o original do texto enviado em 1758 em execução dellas /2 respondo aos intor-
pelo Pároco da extinta freguesia de rogatórios o Seguinte. /3 Fica esta Igreja de
S. Miguel de Sintra ao inquérito nacional São Miguel do Arrabalde da Villa de Cin-
[...] não remetido por motivos desconheci- tra Cituada /4 na Provincia da Estremadura,
dos, esse relatório paroquial não consta dos termo da mesma Villa de Cintra. Comarca
volumes manuscritos guardados, sob aquele de Alemquer. /5
título, no A.N.T.T., e era dado portanto He a dicta Igreja do Padroado Real, e
como desaparecido [...]“ (Azevedo, 1984, aprezentaçam da Fidelíssima Rainha Nossa
p. 185). Este relatório, até aqui omisso, na /6 Senhora. /7
resposta à sétima questão do questionário Tem vinte e trez vizinhos, e outenta pessoas
Pombalino diz apenas: “[...] He anexa a esta mayores, e menores treze, /8 e está cituada
Igr.ª a Hermida de S. Miguel de Odrinhas na aba da Serra debaixo do Castello pela
[...] (Azevedo, 1984, p. 195). aparte nacente /9 fica em cittio Eminente,
e della se descobrem a Villa de Mafra, a
Não havendo referência à Ermida de São João de Eiriceyra, /10 e mais terras e Lugares,
Covas, deixa em aberto a questão de se esta que. ficam de premeyo na distancia de tres
ainda estaria sob tutela do prior de São Miguel, Legoas.
tal como Sotto Mayor escrevera 83 anos antes. Tem trez Lugares por nomes, Campo razo,
Corroborando este facto, estão as Memórias Rál, e Lourel e os mais /11 vizinhos dispostos
Paroquiais de São João das Lampas, escritas por varios cittios da freguezia. /12
pelo Vigário Galrão e Sylveira, referindo que Tem quatro Altares, que são o Altar mor
entre as sete ermidas inumeradas está a Ermida de São Miguel, e os Colatrais /13 hum do
de São Miguel de Odrinhas, que diz pertencer Senhor JESÚZ, e outro de Santa Catharina,
ao reverendo superior de S. Miguel de Sintra6. e outro de São Francisco Xavier, /14 e não
No entanto, e a favor da ideia de que São João tem Irmandade alguma! /15
das Covas já não seria do prior de São Miguel, O Parocho hé Prior Collado, e terá de renda
existe um segundo documento das Memórias huns annos por outros de /16 ducti sexpensis-
Paroquiais de São Miguel de Sintra. Encontra- Sette Centos mil reis! /17
-se no ANTT7, no “Dicionário Geográfico de Por- Tem Seis Benefficiados Collados, que reve-
tugal”, Tomo 5, A 5, de 1758, pela entrada de rendo Prior aprezenta in Solidum /18 e os
“Arranholas”, e não em “São Miguel”. Não se Colla, e tem de renda cada hum pouco mais,
encontra publicado, por isso transcrevemo-lo. ou menos sesenta mil reis, ser- /19 vindo-os!
Terão sido estas as respostas ao questionário /20
entregue em 1758, contrariando a tese de José Tem no Seo distrito hum Convento de Reli-
da Costa Azevedo. Possivelmente, a diferente giosos da Santissima Trindade que pou- /21
nomenclatura usada para a mesma paróquia — cas vezes excede o numero de Sinco, e o
“São Miguel” e “Arranholas” — conduziu à ideia [ilegível] São menos de tres, cujo Convento
de que estas memórias teriam desaparecido. /22 fundaram elles no dito cittio com obriga-
Chamamos a atenção também para o porme- ção de ensinarem os filhos da terra ! /23

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Tem esta freguezia huma Ermida em Boyalvo empenhasco Levantada Legoa e meya Por exemplo, as
8

na Quinta de Ayres da Crûz /24 Couza muito pouco mais ou menos terá de /25 Largura do questões 13.ª e
14.ª do referido
especial, e bem feita, tanto pelo dourado Convento da Penha Longa até Galamares questionário.
como pelos relevedes, e fosco spin- /25 turas huma Legoa pouco /26 mais ou menos! /27 9
As cartas aqui repre-
pela melhor architetura cuja invocação he Tem esta Serra tantas e tão grande quanti- sentadas foram sujei-
da Santissima Trindade Hé a unicanes- /25 dade de Ervas medicinais /28 que no tempo tas a ampliação para
melhor leitura.
ta freguezia e a melhor que tem o termo. /26 da Primavera arebentam que só quem as
Trigo e Cevada são os fructos que se reco- conhecer se poderá servir //29
lhem nesta freguezia e mayor abundancia Página 609
//27 De suas virtudes! /1
Página 608 Há nesta Serra huma Ermida de Nossa
Está sugeita ao Juiz de fora de Cintra que a Senhora da Peninha de Romagem /2 munto
Fidelissima Rainha /1 Nossa Senhora apre- frequentada : Tem hum Convento de Nossa
senta ! /2 Senhora da Pena dos Monges /3 de São
Dista quatro Legoas de Lisboa. /3 Terentino. Tem mais huma Ermida da Glo-
Tem huma fonte celebrada da chamada da rioza Santa Eufémia muito asistido /4 de
Sabuga com agoa singu- /4 lar, de verão devotos /5
muito fria, e de Inverno tepidas por cuja Hé o temperamento desta Serra frio e
causa he frequentada /5 dos habitantes da umido. /6
terra, e parageiros, por ficar na fralda da Estes são os interrogatórios a que posso res-
Serra e o da cercada /6 de arvoredos! /7 ponder e aos mais que aqui fal- /7 tam não
Fica assima da dita Igreija hum Castello tão tenho que dizer por não pertencerem ao
emminente e sobre elle /8 humas torres tão meu Distrito. Arraholas /8 de Cintra hoje 25
Levantadas que por causa do terramoto de Março de 1758. //9
ficaram totalmente de- /9 molidas. Tem den-
tro deste Castello huma concavidade chea O Prior João Maria Spring [rubrica
[palavra sobredita] de agoa por modo a imperceptível]
/10 Cisterna. a qual por mais que os verões
sejam calidos, ou os Invernos sejam /11 chu- Deste modo, mantem-se a incógnita sobre em que
vozos nunca a dita concavidade tem mais, altura São João das Covas deixou de estar afeta
nem menos agoa ; por cuja cau /12za se tem ao prior da Igreja Paroquial de São Miguel e Fig. 2 – Localização
da igreja na Carta
questionado mitas vezes, affirmando huns para quem passou essa responsabilidade. Corographica do
que hé nativa, e /13 outros que hé da chuva Outro aspeto de referir é a discordância entre Reino (1.ª edição), à
; e não se pode fôrmar juizo certo de que as perguntas do questionário pombalino e as res- escala de 1:100 000,
folha n.º 23 H, de
modo se /14 poderá conservar a dita agoa postas do prior que indicia esse apartamento em 1856 (trecho da
tão clara, e tão Saboroza sem ter correr /15 relação a São João das Covas8. carta ampliada).
alguma! /16
Demoliu-se totalmente esta Igreija no Terra-
moto grande por lhe falta /17 rem da parte
debaxo as muralhas , sobre as quais estava
fundada ; cujas /18 muralhas que firmavam
o Adro à Roda da Igreija se acham já Com-
pletamente /19 acabadas por cuja cauza
se não podia bolir nos ellicerces da Igreija
sem /20 aquelles estavam firmados! Todas as
cazas da Rezidencia se demuliram to- /21
talmente por serem de aboboda e ferorra-
das Sobre penedos! /22

Chama-se esta Serra a de Cintra e para


os Navegantes o Cabo da Roca /23 terá de
comprimento desde o Cittio desta Igreija
até o fojo ou pedra de alvidra /24 ra do

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A redescoberta da igreja de São João das Covas (Sintra)

vermelho junto à ermida. Na legenda, estes


“Signaes Convencionaes” representam “cruzes
de pedra” (Idem). Estamos convencidos de que
se trata de dois cruzeiros, de que mais adiante
falaremos.
Encontramos um antigo postal ilustrado que
existe também no AHS sem data e com o título
de “Cruzeiro de São João das Covas” (Fig. 4).
Este tem representado um cruzeiro de pedra
partido logo abaixo onde os braços se cru-
zam, encastrado numa mó. Observando a linha
de horizonte foi-nos possível relocalizar o sítio
de implantação que confirma a informação da
carta 1:20 000 de 1902. Juntando aos dados
Fig. 3 – Localiza- 6. A cartografia oficial dos séculos XIX–XX ortofotométricos obtidos, podemos afirmar
ção da igreja e das
“cruzes de pedra”
e a ermida que este cruzeiro estava em frente da ermida
na Carta do Corpo numa encruzilhada de caminhos. Quanto ao
do Estado-Maior dos Em 1856, são editadas as primeiras folhas segundo, estaria 40 m à direita num outro cru-
arredores de Lisboa,
editada em 1902,
da “Carta Corographica do Reino” à escala zamento que dava serventia para quem viesse
à escala 1:20 000 1:100 000 sob a direção de Filipe Folque. É de sudoeste e que hoje é o cruzamento do
(trecho da carta na folha n.º 23 H que nos aparece cartogra- caminho de terra batida com a EM 1201.
ampliada).
fada, pela primeira vez, a sudoeste do lugar Será na Carta do Instituto Geográfico e
das Covas (Fig. 2)9, a Ermida de São João das Cadastral, à escala 1: 50 000, Folha 34-A,
Covas, reaparecendo na 2.ª edição de 1865, de 1936 que irá aparecer, pela última vez,
na folha 23. a indicação naquele lugar da existência de
Em escalas menores aparece na Carta do uma capela que na edição seguinte, de 1952,
Corpo do Estado-Maior dos arredores de Lis- desaparecerá.
boa, editada em 1902, à escala 1:20 000 Em 1934 são criados os Serviços Cartográficos
(Fig. 3) e a sua atualização, de 1914, pos- do Exército e publicam-se as primeiras Cartas
sui ainda a indicação de uma ermida naquele Militares à escala 1:25 000 (Gomes, 2011). A
lugar. Folha 402 (Mafra), baseada no levantamento
Uma outra informação relevante que aparece de campo entre 1931 e 1938 sai em 1941,
somente nesta cartografia são duas cruzes a omitindo também essa informação. Contudo,
no seu lugar passa a estar representado um
Fig. 4 – Cru-
zeiro em frente à casario composto por dois volumes. Dir-se-ia
porta da ermida já que a construção existe, mas foi dessacrali-
desaparecida. zada. Em nova atualização, editada em 1961,
observamos que estas casas desaparecem.
Procurando na Carta Cadastral 1:2000 de
Sintra, cujo levantamento de campo foi feito
nos princípios da década de 50, a área que
nos interessa corresponde à secção D da Fre-
guesia de Almargem do Bispo (Sintra) e ao
conjunto de prédios rústicos com os números de
artigo 20, 27, 28, 29, 30, 39 e 38; em parti-
cular este último, por estarem aí representadas
as ruínas do que foi a Ermida de São João.
Em síntese, a Ermida de São João das Covas
está representada na cartografia oficial desde
1856 até 1936, altura em que deixará de
constar em todas séries cartográficas. As car-
tas subsequentes irão substituir a capela por
uma construção agrícola.

173 Revista Portuguesa de Arqueologia – volume 20 | 2017 | pp. 167–181


Pedro Mendes

Fig. 5 – Fotogra-
7. A procura de vestígios físicos fia aérea de 1946
da ermida de São João das Covas ampliada com a
ermida de São João
das Covas.
7.1. A ermida na fotografia aérea

As coberturas aerofotogramétricas mais anti-


gas da DGT foram fundamentais para o nosso
estudo. Entre as dezenas de fotografias analó-
gicas consultadas, destacamos as dos voos de
1946 à escala 1:800 e a de 1960 à escala
1:1000. Estas duas imagens representam os
últimos e únicos vestígios físicos in situ conheci-
dos da ermida e o momento logo após a sua
destruição, volvidos 14 anos.
Fig. 6 – Fachada
Este material permitiu relocalizar com coorde- e alçado norte da
nadas absolutas a antiga ermida, reconstruir ermida de São João
a planta desta construção na sua última fase, em 1940.
balizar o período da sua destruição e confir-
mar as informações feitas na análise cartográ-
fica (Fig. 5)

7.2. Duas fotografias raras encontradas

Inesperadamente, foram encontradas duas


fotografias que se desconheciam no arquivo Fig. 7 – Vista do
interior da ermida
do MASMO, tiradas em 1940 pelo desenha- partir do altar-mor
dor Consiglieri Martins, reportando as únicas para o coro-alto.
imagens deste templo que, poucos anos depois,
seria destruído10.
À semelhança de outras igrejas, o que
observamos não corresponde à antiguidade
deste templo, mas sim à última fase de
reconstruções/alterações arquitetónicas. No
caso, a fachada é simples, com porta de verga
reta, ladeada por duas janelas gradeadas que
permitiam iluminar o interior do templo (Fig. 6).
As marcas visíveis no paramento interior (Fig. 7)
indiciam a existência do soalho de um coro-
-alto, justificando as referidas janelas como
reforço de iluminação da luz natural à entrada
da capela.
Por outro lado, a janela exterior que se encon-
tra a sobrepujar a porta principal, no para-
mento interno, é um óculo que se alarga à
superfície exposta ao sol, permitindo coar
a luz. O remate da fachada seria encimado
por uma cruz, que não sobreviveu a 1940. Por
fim, do lado esquerdo, uma sineira de per-
fil gracioso. Estes elementos descritos são de 10
Agradecemos a
uma fachada recente que corresponderá aos Lisete Antunes, biblio-
tecária do MASMO
fins do século XVIII, princípios do século XIX. A que descobriu estas
ermida original, mais antiga, teria outras carac- duas fotografias.

Revista Portuguesa de Arqueologia – volume 20 | 2017 | pp. 167–181 174


A redescoberta da igreja de São João das Covas (Sintra)

Fig. 8 – Área envol-


vente à ermida de 7.3. Prospeções arqueológicas no terreno:
São João das Covas. Informação oral e os vestígios pétreos

Após o cruzamento dos diversos dados até aqui


obtidos, e seguindo a metodologia inicial, pro-
cedemos às prospeções no terreno, tendo sido
feitas diversas saídas de campo com o objetivo
de encontrar os vestígios físicos da ermida de
São João das Covas (Fig. 8).
Observámos de forma sistemática todos as par-
celas de terreno e caminhos de pé posto, nas
construções antigas em ruína e muros de pedra
seca que servem de cercaduras de parcelas
eventuais vestígios. Com efeito, constatámos que
parte da matéria-prima utilizada provinha do
desmantelamento da ermida quando descobri-
mos alguns elementos arquitetónicos aí incluídos.
Em particular naqueles que circundam a parcela
de São João das Covas N.º 38, onde foram
identificadas algumas pedras trabalhadas que
não foram retiradas, sob pena de provocar o
colapso destes muros. A exceção foi uma can-
taria de janela (64 cm x 22 cm x 13 cm) que
seria a soleira de uma pequena janela com dois
terísticas, como por exemplo a porta sul em arco pares de furos. Uns redondos, que serviram
redondo que Estácio da Veiga refere. O autor, para encastrar um gradeamento de barras de
na sua visita em 1864, fala de um templo já ao ferro, e outros de secção retangular, que servi-
abandono, sendo por isso mais sensato apontar riam para receber o fecho de duas portadas.
esta fachada para fins do século XVIII. Eventual- Foram-nos ofertadas pelo Sr. António Pedroso
mente, ela terá sido fruto de uma reconstrução três pedras encontradas neste contexto; uma
após o terramoto de 1755. cantaria paralelepipédica com vértices chan-
Observando o interior (Fig. 7), estas alterações frados e que está partida (altura 38,5 cm x
de última fase são reforçadas pela colocação 47,5 cm de largura, tendo cada vértice chan-
de um coro-alto. Hipoteticamente, no espaço ini- frado 6,8 cm de face x 20,5 cm de espes-
cial da capela de São João pode ter sido jus- sura máxima). Esta peça está partida na sua
taposto uma capela-mor com um arco triunfal, altura e funcionaria como coluna de suporte
com capiteis-ábaco de tipo urna, de data mais de viga não observável nas fotos, eventual-
tardia. mente usada no alçado sul, visto estar meteo-
A pia que é de água benta (de grande porte), rizada pelo tempo; uma base de coluna feita
e não batismal, que se vê na Fig. 7, deixa em de um só bloco. Esta, sem plinto, inicia-se com
aberto que poderá ter existido ali esse serviço, um primeiro disco côncavo, com um diâmetro de
pois não encontrámos livros de assentos que o 31,5 cm, seguido de um segundo disco côncavo
indicassem. Porém, o templo teve na sua fase com 28 cm de diâmetro, seguido de um outro
inicial (medieval) um cemitério, não se podendo convexo com 25,5 cm de diâmetro para voltar
também excluir que tenham ali ocorrido batis- a ter um terceiro disco côncavo com 27 cm de
mos numa outra pia que não observamos. diâmetro. O fuste tem as superfícies lisas e pos-
O desnível do terreno no alçado norte, no qual sui 17,5 cm de diâmetro. Tudo indica que esta
se “afunda” a igreja ajuda-nos a perceber era uma das colunas que ladeavam o altar-
como foi fácil tapar os caboucos do templo, -mor; um bloco sub-retangular, que se encontra
destruindo a necrópole medieval através de partido e tem 60 cm de comprimento por 37,2
uma terraplanagem, razão pela qual na foto- cm de largura e 15 cm de espessura, tem um
grafia aérea dos anos 60 não são reconhecíveis perfil recortado, alternando arestas vivas, côn-
vestígios. cavas e convexas, formando um friso que evi-

175 Revista Portuguesa de Arqueologia – volume 20 | 2017 | pp. 167–181


Pedro Mendes

Fig. 9 – Estela discoi-


dal encontrada na
prospeção (desenho
de Ana Neves).

dencia, tal como a anterior peça, um traba- das Covas, embora a documentação sobre
lho de cantaria cuidado. No topo, apresenta uma necrópole de São João das Covas seja
um negativo retangular perfeitamente escul- omissa, o conjunto dos elementos recolhi-
pido, de forma a receber uma outra peça. Por dos permite-nos comprovar a sua existên-
comparação, este elemento seria a primeira cia. Desde logo, através do relato de Está-
pedra do arco do altar-mor. Por fim, desco- cio da Veiga de uma inscrição funerária11 e
brimos um esteio de cabeceira de sepultura em rodapé fala-nos em “[...] duas cruzes de
de tipo discoide (Fig. 9), encontrado no cami- pedra que deixo figuradas, as quaes desco-
nho de terra batida que divide as parcelas do bri n’uma sepultura [...]” (1879, p. 23). Estas
Cerrado de São João N.º 30 e a parcela N.º correspondem a cabeceiras de sepultura dis-
11
Estácio da Veiga
descreve uma inscrição
39 da Terra de Velhas. coides coerentes com a que descobrimos no funerária:“em frente
Diversas testemunhas contaram-nos que muitas caminho12. da porta da sachris-
das pedras foram transportadas para o Casal Os testemunhos orais mais antigos que reco- tia, […] de 175 cm de
altura [com um] epitá-
da Abegoaria, onde vivia o usufrutuário da lhemos, cruzados com a informação de Estácio fio de um tal de Braz
parcela de São João das Covas. Também sou- da Veiga, apontam para que esta se locali- Serrão, do próximo
bemos que o chão da igreja foi parcialmente zasse a oeste e a norte da ermida. sitio dos Negraes, ali
sepultado em 1619!”.
remontado para a construção de uma eira, Uma testemunha conta que viu o arrendatário
12
Mas ao das cabecei-
sendo verdade que esta possui o mesmo tipo alargar o caminho rasgando o talude paralelo ras dom cruz de braços
de pedras que podemos observar em muitos à fachada da ermida (Fig. 8), nessa altura já curvilíneos esta pos-
pisos de igrejas da região. Uma das testemu- em ruína, quando lhe mostrou o que acabara sui uma cruz simples,
simétrica, com cerca de
nhas afirmou mesmo que “o altar foi levado de encontrar: “Um esqueleto com uma caveira 37 cm de comprimento
para a Igreja de Montelavar e a pia batis- em cima de uma pedra a servir de almofada”. máximo, cujos braços
mal tiraram-na e andava a servir de come- Deste modo, a necrópole de São João das em baixo relevo, não
chegam a cruzar ao
douro para os animais, mas era comentado, e Covas estaria localizada no adro em frente à centro. Desconhece-
o homem resolveu parti-la”. Num outro depoi- fachada — a oeste — e prolongar-se-ia para -se na região uma cruz
mento recolhido, disseram-nos “que tinha uma o lado norte (Fig. 8). com esta tipologia.
pia batismal encastrada na parede da igreja Sem acesso aos livros desta igreja ou a outra 13
Não encontrámos o
e que o altar era muito parecido com o da documentação, podemos apenas apontar que acento de óbito de
Brás Serrão mas o
foto”, referindo-se à fotografia da igreja do tenha estado a uso a partir da Baixa Idade de baptismo da sua
Espírito Santo de São João das Lampas, que média e em alturas de maior mortalidade e filha: “Aos 19 dias
lhe mostrámos. E ainda outra testemunha diz devido à já referida distância das respetivas do mes de Setem-
bro de 1593 annos
que “… tinha uma torre sineira mas já não igrejas matrizes e consequente ausência de bapti /1 sei a maria
tinha o sino. A entrada tinha 3 ou 4 degraus serviços religiosos mínimos em de Santa Maria filha de bras Serrão
mas já estavam a tirar as cantarias da porta e São Miguel. e de Antonia Jorge
/2 forão padrinhos
e lá dentro o telhado já estava a cair. Ao lado O decréscimo demográfico e o surgimento Domingos Jorge mora-
havia uma sacristia que tinha o telhado inteiro de outros espaços cemiteriais, mesmo antes dor no pero pinheiro
e que “havia também uma pia para a água da Revolta da Maria da Fonte em 1846, E /3 Isabel Rodrigues
filha de mario tome do
benta em “liós vermelho”. terão levado ao fim das tumulações naquela São Miguel /4 Jorge
No que concerne à necrópole de São João ermida13. Rodrigues//5.”

Revista Portuguesa de Arqueologia – volume 20 | 2017 | pp. 167–181 176


A redescoberta da igreja de São João das Covas (Sintra)

14
Art.º 62 “In Lei de 8. A dessacralização de um espaço na conformidade com /7 o artigo 63 da Lei
Separação do Estado
e das Igrejas, Diá-
e o fim da Ermida de São João das Covas de 20 de Abril ultimo, /8 commigoJayme de
rio do Governo”, 21 Gouveia Sarmento, aspi= /9 rante de finan-
de abril de 1911, A dessacralização de igrejas e posterior des- ças, na qualidade de secreta= /10 rio por
pp. 1622–1623.
truição ou reestruturação aconteceram recor- delegação do secretario de finanças, /11
15
Arquivo e Biblioteca rentemente por diversos motivos e ocasiões. Por bem assim o cidadão Manoel da Silva /12
Digital da Secreta-
ria-geral do Minis- exemplo, a Ermida de Santa Marta do século Vistas presidente da junta de parochia/13
tério das Finanças. XVI em Casal de Cambra (Rocha & Espinha, d’esta freguesia achando-se assim consti=
Processo PT/ACMF/ 1999, p. 188). No último quartel do século XIX, /14 tuida a Comissão Concelhia de Arrola-
CJBC/LIS/SIN/
ARROL/004 – Mon- a ermida de São João ainda teria “pregado- men= /15 to a que se refere o mencionado
telavar. Liv. 62, fl. res e festeiros” (Veiga, 1879, p. 22) que ali artigo. Em /16 conformidade com o artigo
213–214. se deslocavam anualmente, mas esta periodici- 67 da mesma /17 Lei, elle cidadão repre-
dade revela já pouca vitalidade. E de acordo sentante da auctorida= /18 de ordenou se
com as testemunhas, a festa a São João deixou pricipiasse como competen= /19 te arrola-
de ser ali, devido ao mau estado da ermida mento o que sendo levado na devida /20
e passou a ser feita na Maceira, no início do consideração se principiou pela forma se=
século XX. Com esta deslocação, perdeu-se o /21 guinte: /22 Verba Nº1 /23 Um prédio
cariz religioso e os rituais. Já não há memó- urbano com umas casas an= //24
ria viva de romarias ou procissões; apenas de (a) Entregue à Fábrica da Igreja, com
festa a São João. dependências e recheio, pelo /1 auto de
entrega, datado de 24-10-1944. Processo
18.241/117 [rubrica imperceptível] //2
8.1. O Auto de Arrolamento: novas funcionalidades [Esta é uma nota de rodapé escrita poste-
riormente ao documento original referindo-
A 5 de outubro de 1910, dá-se a implantação -se ao processo de auto de entrega feito 33
da República e com ela um forte ataque à Igreja anos mais tarde]
Católica, tendo Afonso Costa responsabilidade [reverso da folha 213]
por algumas medidas polémicas, como a de 21 nexas em que habita o ermitão e uma outra
de abril de 1911, onde o Diário do Governo /1 casa onde reunem os mordomos em dias
promulga a Lei da Separação do Estado e das de /2 festa, com dois pequenos quintais uma
Igrejas (Telo, 2010). Uma das consequências é parreira /3 e arvores de fructo./4 Verba Nº2
a expropriação dos bens da Igreja Católica14. É /5Um sino /6 Verba Nº3 /7 Dois andores /8
neste contexto que a ermida de São João das Verba Nº4 /9 Uma caixa grande /10 Verba
Covas e seu mobiliário passaram, de um dia para Nº5 /11Uma cruz processional /12 Verba
o outro, para a tutela da Junta de Freguesia de Nº6 /13 Cinco capas /14 Verba Nº7 /15Um
Montelavar. caixote para a cêra /16 Verba Nº8/17 Seis
A 17 de outubro de 1911, foi elaborado o auto castiçaes pequenos de latão, com uma cruz
de arrolamento da ermida por uma Comissão e crucifixo /18 Verba Nº9 /19 Uma toalha
Concelhia de Arrolamento composta pelo escri- de linho /20 Verba Nº10 /21 Um manto da
turário Alypio Simões Alves, o representante do Senhora das Dores /22 Verba Nº11 /23 Uma
Secretário das Finanças Jayme Gouveia Sarmento lâmpada de latão //24 [anverso da folha]
e Manoel da Silva Vistas, presidente da junta de 214 Verba Nº12 /1 Trez imagens: duas de
paróquia da freguesia de Montelavar, que passa- São João, Senhora /2 das Dores /3 Verba
mos a transcrever 15: Nº13 /4 Um colar de ouro /5 Verba Nº14
/6Tresanneis de ouro /7 Verba Nº15 /8 Um
[Anverso da folha] 213 broche de ouro /7 Verba Nº16 /8 Tres pares
Auto de Arrolamento /1 de arcadas em ouro /9 Verba Nº17 /10 Tres
Aos desasete dias do mez de Outubro de pares de brincos em ouro /11 Não havendo
/2 mil e nove centos e onze, n’esta Capella mais bens a arrolar n’esta /12 Capela se
de /3 São João, aonde se achava o cida- deu por findo este auto./13 E para constar se
dão Alypio/4 Simões Alves, amanuense da lavrou este auto que /14 assignam todos os
administração /5 d’este Concelho, na quali- mencionados e as teste= /15 munhas, Felis-
dade de representan=/6 te da autoridade, berto Baumberg, casado mora= /16 dor em

177 Revista Portuguesa de Arqueologia – volume 20 | 2017 | pp. 167–181


Pedro Mendes

Cintrae José Guimarães Sarmento /17 sol- 8.2. O retrocesso inesperado


teiro morador em Cintra, e bem assim /18 e um processo pouco claro
o cidadão Antonio Joaquim Pires que serviu
/19 de oficial de deligencias nesta deligen- Com a chegada do Estado Novo, a Igreja
cia no /20 fim de lido em voz alta por mim reassume preponderância na política nacio-
Jay= /21 me de Gouveia Sarmento, secre- nal como se constata na Constituição Política
tario /22 que o subscrevi e assigno/23 Alypio Portuguesa de 1933, que aceita e reconhece
//24 [reverso da folha 214] Alypio Simões como a “Religião da Nação Portuguesa” (arti-
Alves /1 Manoel da Silva Vistas /2 José Gui- gos 43–45). Com o fortalecimento do Estado
marães Sarmento /3 Felisberto Baumberg/4 Português e a Igreja através da Concordata
António Joaquim Pires /5 Jayme de Gouveia de 1940 (Pio XII) a Igreja readquire o direito
Sarmento //6 de propriedade (Martins, 2000). E com a pro-
mulgação do Decreto-Lei 30615, de 25 de
Este documento contém as provas dos ritos reli- julho de 1940, no Diário do Governo reco-
giosos que ali se fizeram e que até aqui se nhece-se à Igreja Católica a propriedade dos
desconheciam. O espólio mobiliário descrito bens que, à data de 1 de outubro de 1910,
no auto, designadamente a existência de dois lhe pertenciam.
andores e de uma cruz processional, aponta Este volte-face gerou processos de autos de
para a existência de uma romaria e de uma entrega complexos e morosos, devido às incoe-
procissão. Esta última podia, ou não, estar rências e ilegalidades dos direitos de proprie-
relacionada com São João, visto que existe dade e usufruto que entretanto surgiram. No
uma imagem da Nossa Senhora das Dores e caso da Ermida de São João, a devolução dos
o respetivo manto. Este facto revela-nos que, a bens móveis e imóveis é feita à Fábrica da
par do culto de São João com origens na Alta Igreja de Montelavar18, como podemos cons-
Idade Média, teria existido nesta ermida um tatar na cópia do Auto de entrega de 24 de
culto mais recente à nossa Senhora das Dores, outubro de 194419. No que concerne à “Cape-
visto que a devoção aos cultos marianos em lla de São João das Covas, pode ler-se na
Portugal é mais recente, tendo uma enorme transcrição deste documento a partir do 5.º
expansão por volta do século XVI. ponto no reverso do fólio linha 4:
Por outro lado, a existência de alguns elemen-
tos descritivos sobre como seria a organização “ [...] 5º--- A Capela de S. João das
e funcionalidade daquele espaço, nos seus últi- Covas, em ruinas, com casas anexas e
mos momentos. As estruturas de anexos onde quintais com /4 parreiras e arvores de
“habita ermitão” e uma “casa onde se reúnem futo, situada na mesma freguesia de
os mordomos em dias de festa” reforçam a ideia Montelavar, que se /5 confronta ao norte
de romarias e de um espaço de acolhimento a com João Miguel ao Sul com Manuel
romeiros dos quais não se conhece registo escrito. Simões ao nascente com o /6 mesmo a
Também são corroboradas as cerimónias a São ao poente com Joaquim Velhas. Não se
Na Carta Cadastral
16

João, de que já se suspeitava existirem. encontra inscrita na matriz pre /7 dial da de Sintra, é o prédio
Quanto aos bens imóveis, como os terrenos adja- freguesia de Montelavar, nem esta des- rústico N.º38 – folha
centes, tinham potencial agrícola. Sendo o novo crita na conservatoria do regis- /8 to pre- 34 da secção A de
Almargem do Bispo.
proprietário, a Junta de Freguesia de Almar- dial desta comarca como se mostra na 17
Correspondentes
gem do Bispo16, quis rentabilizar a terra e por certidão junto --- /9 aos prédios rústicos
isso cedeu-a por algum dinheiro, numa situação Mobiliários afectos ao culto do N.º28 e N.º30, desig-
pouco clara, a um habitante do Casal da Abe- templo e devidamente arrolados: /10 nados por Cerrados
de São João.
goaria, pois seu pai já era proprietário de duas Todos os mobiliarios, alfaias, imagens,
18
Arquivo e Biblioteca
outras parcelas a sudoeste daquela17. paramentos e mais objectos destinados digital da Secretaria-
O novo proprietário tirou proveito não só do /11 ao culto, devidamente arrolados. -Geral do Ministério
terreno agrícola mas também da ermida em --- /12 das Finanças CJBC/
LIS/SIN/ADMIN/060.
ruína. Sem que houvesse autoridade interes- Pelo segundo outorgante foi dito que, na
sada pelo edifício, foi sendo desmantelada: qualidade que representa, aceita a /13
19
Arquivo da Fábrica
da Igreja de Nossa
telhas, cantarias, portas, janelas e ferragens e entrega, em propriedade, dos bens des- Senhora da Purifica-
tudo o mais que fosse útil. critos neste auto --- /13 [...] ”. ção de Montelavar.

Revista Portuguesa de Arqueologia – volume 20 | 2017 | pp. 167–181 178


A redescoberta da igreja de São João das Covas (Sintra)

9. Uma reconstituição possível:


arquitetura e religiosidade

Estácio da Veiga é a única testemunha ocular


que descreve São João das Covas quando este
espaço religioso ainda estava aberto ao culto,
embora nos dê poucos elementos sobre a arqui-
tetura, só complementados pelas fotografias de
1940 e de 1946.
As vivências religiosas de romarias e promes-
sas são feitas, preferencialmente, nas ermidas
e não tanto em igrejas paroquiais. Há diver-
Fig. 10 – Reconsti- Quando comparamos a lista de bens arrolados sas razões subjacentes, mas sem dúvida que o
tuição do alçado sul em 1911 com os bens devolvidos à Fábrica da aspeto paisagístico do local onde estão implan-
com monólito com
epitáfio a Brás Ser- Igreja de Montelavar em 1944, é notória uma tadas é uma delas. Quase sempre são lugares
rão, a porta de arco enorme discrepância e ambiguidade quanto dominantes, invulgares e aprazíveis, no fundo
redondo da “sacris- ao seu conteúdo. No auto de entrega não há mais propícios à reflexão íntima do crente. Um
tia” e o relógio de
sol. uma lista, apenas se referência vaga. outro aspeto importante do qual a ermida de
Foi nesta passagem que se perdeu todo o São João é paradigma é que o seu local de
património mobiliário de São João das Covas, implantação corresponde a um sítio sobranceiro
não tendo sido apuradas responsabilidades às paróquias e às agras envolventes. Este facto
acerca do paradeiro do mesmo. resulta da crença de que estas ermidas prote-
Questionando antigos responsáveis pela giam os campos e as povoações que avistam e
fábrica da Igreja de Montelavar, percebe- são avistadas.
mos que com contornos pouco transparentes Esta é a localização escolhida para a ermida
há omissão de informação e que o seu arquivo de São João, que, por excelência, é um lugar de
não está aberto ao público. isolamento, de domínio e de fronteiras.
Quanto à parcela de terreno onde se encon- A ermida de São João corresponderia a uma
trava a ermida, conseguimos apurar que igreja de nave única com um altar-mor inscrito,
houve um acordo entre partes: o proprietá- tal como podemos observar na planta que se
rio, que adquirira o terreno à junta de fre- reconhece na foto aumentada da fotografia
guesia de Almargem do Bispo e a paróquia aérea de 1946 (cf. Fig. 5). Inicialmente, teria
de Almargem do Bispo, nova proprietária do sido um templo de romaria simples e posterior-
terreno após o Decreto-lei de 1940. O acordo mente sofreu alterações pelo menos no fim do
passou por nova venda do terreno ao expro- século XVIII, eventualmente como consequência
priado, que inclui as ruínas da ermida, sendo de uma reconstrução pós terramoto. Mas tam-
feita no dia 6 de outubro de 1954 uma escri- bém foi ampliado algures no tempo através
tura, assinada pelo Pároco António Silveira, das estruturas anexas que foram construídas
da paróquia de Almargem do Bispo, com a para além da linha da fachada principal, con-
devida autorização do Patriarcado de Lisboa ferindo-lhe um aspeto invulgar. Estas excedem
dada pelo Cónego Honorato Crasto Nunes largamente as necessidades de uma sacristia,
Monteiro, feito pela quantia de 2000$00. estando por isso relacionadas com a logística
Também fez parte desta escritura a contra- ao acolhimento de romeiros e peregrinos.
partida e condição de devolver e transpor- Sabemos também, por fonte oral, que no seu
tar o altar da Igreja de São João das Covas interior teria existido uma pia batismal. Tra-
para a capela do cemitério de Montelavar. tando-se de um templo de nave única, seria pro-
Apesar de uma testemunha garantir que estas vavelmente no altar-mor inscrito que estariam
“pedras foram descarregadas” no cemitério, os três santos de que nos fala também o auto
não há quaisquer vestígios das mesmas. Apa- de arrolamento. Na sua última fase, sabemos
rentemente seriam poucas as pedras do mobi- que foi acrescentado um coro-alto e sineira foi
liário eclesiástico que teriam sobrevivido até acrescentada/ou alterada. Também é provável
1954, embora haja testemunhas que saibam que tenha tido um relógio de sol no alçado sul
mas não revelem o seu sítio. (Fig. 10) como nas igrejas desta região.

179 Revista Portuguesa de Arqueologia – volume 20 | 2017 | pp. 167–181


Pedro Mendes

A ermida também teve, durante a Idade reconstituição plausível da sua planta e da


Média, até pelo menos ao século XVII, no seu última fase de construção, que alterou a
exterior, um cemitério. Os terrenos virados a fachada e o interior do templo com o acres-
este e a norte são normalmente os privile- cento de um coro-alto e de modificações num
giados para utilização cemiterial, mas, em altar-mor. Mas também de espaços anexos cuja
muitos casos por necessidade, outros lados cronologia desconhecemos.
podem ser utilizados. O epitáfio de Brás Ser- Por fim, da existência de uma necrópole medie-
rão estava no alçado sul a servir de suporte val e a descoberta de dois cruzeiros, ausentes da
a uma parreira; todavia não estava no seu bibliografia. A recuperação de alguns elementos
local original. A cabeceira de sepultura que pétreos que ajudaram nesta mesma reconstituição
encontrámos no caminho em frente à fachada e a confirmação de algumas ideias arquitetónicas.
da ermida (a oeste) também não se encon- Nesta investigação percebeu-se o processo
trava in situ. Não muito longe, a cerca de 5 m pouco claro das causas da destruição da
deste achado, estaria o cruzeiro represen- ermida e trouxe-nos a informação acerca de
tado no postal. Este pertencerá a uma fase um espólio de mobiliário religioso desconhe-
tardia, eventualmente aos séculos XVIII–XIX, cido, afeto aos rituais desta ermida. Assim, foi
como outros existentes na região. possível confirmar as funcionalidades religiosas
ao longo da sua história, mas também des-
cobrir as evidências de aceitação de um novo
Conclusões culto a Nossa Senhora das Dores.
Neste percurso, encontrou-se alguma documen-
Este estudo teve um conjunto significativo de tação manuscrita inédita, tendo sido dado um
resultados que importa agora realçar pelas contributo para perceber a “inexistência“ das
novidades que trouxeram ao conhecimento memórias paroquiais de São Miguel.
do património religioso do concelho de Sintra. Por último, existem “pistas” de investigação que
Embora esta ermida seja fisicamente inexis- ficaram por esclarecer e que podem dar ori-
tente, após este artigo tornou-se numa estru- gem a mais resultados sobre a ermida, exis-
tura objetiva e concreta, que importará ter em tindo pontos aqui focados que merecem uma
conta em futuros trabalhos sobre a rede de reflexão profunda para a melhor compreensão
igrejas na história deste território. da história das ermidas no quadro do território
Para além da sua relocalização, fez-se uma mais vasto da Estremadura.

Bibliografia citada

ALMEIDA, Isabel; RAMALHO, Maria Teresa (2016) – A contribuição de Filipe Folque para a Carto-
grafia portuguesa do século XIX. Cadernos do Arquivo Municipal. Lisboa. 1.ª Série. 3, pp. 145–155.
AZEVEDO, José Alfredo da Costa (1982) – Velharias de Sintra, IV. Sintra: Câmara Municipal.
AZEVEDO, José Alfredo da Costa (1984) – Velharias de Sintra, V. Sintra: Câmara Municipal.
CARDOSO, Pe. Luiz (1747 e 1751) – Diccionário Geografico, ou Noticia Historica de todas as Cidades,
Villas, Lugares e Aldeas, Rios, Ribeiras e Serras dos Reynos de Portugal, e Algarve, com todas as cousas
raras, que nelles se encontrão, assim antigas como modernas. Tomo I e II. Lisboa: Regia oficina Silviana
e da Academia Real.
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Collares e seus arredores. Lisboa: Typographia da Sociedade Propagadora dos Conhecimentos Uteis.
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nado de Afonso IV (1325–1357). Lisboa: INIC.
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gresso Português de Sociologia – Sociedade Portuguesa: passados recentes, futuros próximos (Coimbra,
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Revista Portuguesa de Arqueologia – volume 20 | 2017 | pp. 167–181 180


A redescoberta da igreja de São João das Covas (Sintra)

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Instituto Geográfico do Exército. In IV Simpósio Luso-Brasileiro de Cartografia Histórica (Porto, 9 a
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terísticos relativos aos povos que senhorearam aquelle territórios antes da instituição da monar-
chiaportugueza. Memórias da Academia Real de Sciências de Lisboa. Classe de Sciências Moraes,
Políticas e Bellas Letras. Lisboa. Nova Série, 5:1.

Documentos manuscritos:

CARDOSO, Pe. Luís (1758) – Dicionário Geográfico. [Manuscrito]. Memórias paroquiais de Alcaínça.
1, 3, 5, 11, 18 e 42 suplemento. Lisboa: Arquivo Nacional da Torre do Tombo.
MATA, António (s.d) – História da demografia da Região de Sintra. [n.p.]. (conservada na secção de
“Reservados” da biblioteca do Museu Arqueológico de São Miguel de Odrinhas).
SILVA MARQUES, João (1930–1940) – Sintra. Estudos Históricos. 34 vol.[n.p.].( conservados na ses-
são de “Reservados” da biblioteca do Museu Arqueológico de São Miguel de Odrinhas).
SOTTO MAYOR, Manoel Pereira (1675) – Cathalogo dos Priores da Igreja de S. Miguel de Cintra
em que se conthemalgûas antiguidades da mesma Vª. Consagrado ao archanjo S. Miguel Patrono
da dita Igreja. In Memórias Geographicas e Históricas da Provincia da Estremadura. [manuscrito por
BARBOSA, José; FREITAS, Gregório de].

Fotografia aérea:

DIREÇÃO-GERAL DO TERRITÓRIO – Reprodução aerofotográfica, Mafra, Sintra, Loures, VFXIR,


Ampliação parcial da prova 477, Rolo: 46,04, Fiada: 89, coord. Aprox. Centro (ETRS 89):
X=-10440 m; Y=86380m, escala aprox. 1:800, cobertura realizada em 28-06-1946.
DIREÇÃO-GERAL DO TERRITÓRIO – Reprodução aerofotográfica, Mafra, Sintra, Loures, VFXIR,
Ampliação parcial da prova 2241, Rolo: 60.11, Fiada: 9, coord. Aprox. Centro (ETRS 89):
X=-10440 m; Y=86380 m, escala aprox. 1:1000, cobertura realizada em 10-07-1960.

181 Revista Portuguesa de Arqueologia – volume 20 | 2017 | pp. 167–181

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