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---------------------~
-INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL
Data I I
Cod. 363'0 --

,
TERRA INDIGENA MORRO DOS CAVALOS

, -
RELATORIO DE IDENTIFICAÇAO E DEUMIT AÇAO
-
PORTARIA 838 / PRES FUNAI / OUTUBRO 2001

Junho de 2002
"

,
TERRA INDIGENA GUARANI MORRO [)05 CAVALOS

"TEKOA YMA"

Município de Palhoça - Santa Catarina

, -
RELATORIO DE It>ENTIFICAÇAO E DELIMITAÇAO
-
PORTARIA nº 838 PRES FUNAI / BRASÍLIA, 16 de OUTUBRO 2001

GRUPO TÉCNICO:

Maria Inês ladeira, antropóloga, consultora - coordenadora

Dafran Gomes Macário, biólogo, consultor

Flávio luiz Corne, engenheiro agrimensor, FUNAI / AER Bauru-SP

Antônio Alves de Santana Sobrinho, técnico em agronomia, consultor

Luiz Omar Correia, administrador de empresas, FUNAI/AER Curitiba

Humberto Dias Durães, técnico agrícola do INCRA / BSB

Junho de 2002

1
,
SUMARIO

APRESENTAÇÃO

PRIMEIRA PARTE - l>Al>OS GERAIS

fontes históricas sobre o território ocupado pelos guarani


nome e lugar
composição da população guarani de morro dos cavalos e modo de ocupação

SEGUNDA PARTE - HABITAÇA"'o PERMANENTE

situação de contato e contexto fundiário


terra e território Guarani
. a terra indígena Morro dos Cavalos

TERCEIRA PARTE - ATIVIDADES PRODUTIVAS

modo de vida
sazonalidade - agricultura e caça

QUARTA PARTE - MEIO AMBIENTE

caracterização ambiental da terra indígena:


relevo/ solos/ geologia/hidrografia
biomas/vegetação/fauna
áreas de uso e ocupação Guarani

QUINTA PARTE - REPRODUÇAÕ FÍSICA E CULTURAL

,
SEXTA PARTE - LEVANTAMENTO FVNDIARIO

, -
SETIMA PARTE - CONClVSOES E DElIMITAÇAO
-

2
APRESENTAÇÃO

O procedimento administrativo de demarcação de terras indígenas no


Brasil fundamenta-se no artigo 231 da Constituiçãoda RepúblicaFederativa do Brasil de
05 de outubro de 1988 e segue o disposto no Decreto n" 1775 de 08 de janeiro de 1996.
Os trabalhos de identificação e delimitação da Terra Indígena Guarani
Morro dos Cavalos, situada no municípiode Palhoça- Estado de Santa Catarina, foram
realizados pelo Grupo Técnico constituído pela Portaria n" 838, de 16 de outubro de
2001, da Presidênciada FUNAI (em anexo).
De acordo com a Portaria n" 14 de 09 de janeiro de 1996 / Ministério da
Justiça, que estabelece "regras sobre a elaboração do Relatório circunstanciado de
identificação e delimitação de Terras Indígenas': encaminhamos,à Diretoria de Assuntos
FundiáriosDAF/ FUNAI, o presente relatório.

Durante a permanência deste GT em campo, promovemos várias


reuniões na aldeia de Morro dos Cavalos, com as seguintes finalidades:
esclarecimento à comunidade Guarani sobre a função e o trabalho do GT de
identificação e delimitação;
planejamento das atividades e definição dos participantes Guarani nos levantamentos;
discussão da proposta da comunidade com as atuais lideranças das aldeia Guarani da
região (Mbiguaçu, Massiambu, Cambirela, Praia de Fora e Cachoeira dos Inácios);
apresentação da proposta e discussão conjunta entre as lideranças Guarani e
parceiros convidados de instituições afins, indicados por elas: Museu Universitário /
UFSC, CAPI - Comissão de Apoio aos Povos Indígenas, CTI, CIMI - Conselho
Indigenista Missionário, FUNAI - núcleo Palhoça;
elaboração cartográfica da proposta de área da comunidade Guarani.
Em todas as reuniões foram apresentados materiais técnicos como
fotos aéreas, imagens de satélite e plantas altimétricas.
Em razão da grave situação fundiária, e da insegurança e expectativa
das comunidades Guarani da região em relação às alternativas reais de
manutenção de suas áreas de ocupação, procuramos envolver, no processo de
discussão de limites desta Terra Indígena, lideranças de aldeias da r·egião que,
em diversos tempos e circunstâncias, contribuíram para a história e construção
desta aldeia. Desse modo, além das reuniões em Morro dos Cavalos e incursões
nas áreas que compõem a Terra Indígena em questão, foram realizadas visitas às
comunidades Guarani vizinhas: Mbiguaçu (município de Biguaçu), Massiambu,
Cambirela e Praia de Fora (também situadas no município de Palhoça), e Cachoeira
dos Inácios (município de Imaruí).
Para observar como se processa hoje a ocupação dos Guarani na área
que reivindicam, quais seus critérios de definição do ponto de vista ambiental,

3
social e cultural. foi fundamental a interação, em campo, entre os dados da
antropóloga e os do técnico ambiental. Contribuíram nos levantamentos,
conhecimentos da coordenadora do GT sobre o Grupo Indígena e a aldeia Guarani
de Morro dos Cavalos, a experiência de trabalho do GT em áreas Guarani e o
apoio e experiência de pesquisadores/ parceiros indigenistas.
Os estudos e o presente relatório, embora considerando aspectos
relevantes de documentos já existentes sobre esta Terra Indígena, procuraram,
dentro dos limites temporais e circunstanciais em que são desenvolvidos os
trabalhos técnicos de um GT de identificação e delimitação, contemplar e
fundamentar os critérios e a proposta de área da comunidade Guarani que vive
atualmente em Morro dos Cavalos.1
Este relatório fundamenta-se nos estudos e levantamentos
realizados em campo pela equipe de técnicos designados pela FUNAI (portaria
838/2001), em documentos e relatórios já existentes e, especialmente, nas
considerações e conhecimentos das comunidades Guarani que vivem na região.
Estão integrados neste relatório os produtos elaborados pelos técnicos Dafran
Gomes Macário, Antônio Alves de Santana Sobrinho e Flávio Luiz Corne,
responsáveis, respectivamente, pelos levantamentos ambientais, fundiários e pela
delimitação da Terra Indígena Morro dos Cavalos, constantes na QUARTA,
SEXTA e SÉTIMA partes. Também foi incorporada nesta Apresentação, como
peça inicial, a carta elaborada pela comunidade Guarani e endereçada às
autoridades responsáveis, contendo a justificativa da área proposta. Neste
relatório não pretendemos aprofundar preceitos teóricos da antropologia, mas
utilizá-los para melhor compreender e avaliar a situação atual da comunidade
Guarani e da Terra Indígena Morro dos Cavalos.

MARIA INES " LADEIRA*


Antropóloga - Coordenadora do GT
São Paulo, maio de 2002

* membro do CTI- Centro de Trabalho Indigenista

1
Em outubro de 1993, a FUNAI emitiu a Portaria 973/PRES, constituindo GT de
identificação e delimitação da Terra Indígena Morro dos Cavalos. O relatório deste GT, finalizado
em outubro de 1995, precisou ser adequado às exigências do decreto 1775/96. Antes de sua
publicação, representantes Guarani manifestaram-se contra os limites definidos por aquele GT,
solicitando, no início do ano 2000, diretamente ao então presidente da FUNAI e ao diretor da
DAF, que desconsiderassem a proposta de 121,8 hc para a Terra Indígena Morro dos Cavalos. O
atual GT considerou as justificativas e indicações da comunidade Guarani.

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<'

SENHOR PRESIDENTE DA REPÚBUCA


SENHOR MINISTRO t>A JVSTIÇA
SENHOR PRESIDENTE DA FVNAI

TEKOA YMA*/ TERRA INDÍGENA MORRO DOS CAVALOS, 15 de novembro de 2001.

A divisa da nossa terra segue o Rio Massiambu Pequeno desde a


nascente até o mar e o Rio do Brito desde a nascente seguindo em direção ao mar
até a BR 101. No lado leste, o Morro dos Cavalos até o mar.
Nós escolhemos essa área porque já estamos usando essa terra faz
muito tempo e é preciso demarcar. Se não fizermos a demarcação, o tempo passa,
os governos mudam, as autoridades mudam, vão chegando mais brancos para fazer
comércio da terra. Até agora nós estamos segurando um pouco, nós somos índios,
não temos dinheiro, só o dinheiro que vem do nosso artesanato. E aqueles brancos
que tem dinheiro querem ficar também com a nossa terra. Precisamos e só
podemos segurar com a demarcação. Queremos segurar a terra para ter para
sempre. Se os brancos não reconhecem que é nossa, sempre vão querer tirar.
Para fazer demarcação dizem que a terra tem que ser tradicional.
Então essa terra é nossa terra tradicional. Hoje, nós escolhemos essa área, pelo
menos essa, porque antigamente todo o continente era nosso. O descobrimento
descobriu toda nossa riqueza. E tiveram que escravizar e massacrar os índios.
Tiraram nossa terra, nossas matas, a nossa comida e, até hoje, as autoridades
não reconhecem a nossa terra, apesar das dificuldades que sofremos. Então, até
hoje, não temos a nossa própria terra.
E dizem que a demarcação tem que ser tradicional. E isso nós não
entendemos, porque antigamente tudo era nosso. Não precisava pedir para pegar
os frutos nativos, as plantas medicinais, para pescar. Tudo era livre e hoje está
tudo sendo proibido para nós. Para fazer roça, como antigamente, nós já não
podemos. Mas pelos menos esse pedaço de terra que estamos querendo demarcar
tem que ser reconhecido, porque se tirarem de nós até esse pedacinho, não
teremos mais nada.
Nós não podemos escolher todas as terras em volta, que nossos
parentes usavam. Estamos aceitando esse pedaço, porque sabemos que nós não
podemos pedir mais porque os brancos já vão reclamar. Mesmo aqui no Morro dos
Cavalos o branco diz que já é dono, e diz que é dono de muito mais. E também das
terras e dos morros que nossos parentes usavam antes até dos brancos
chegarem.
O Rio Massiambu Pequeno nós queremos porque é um lugar muito
bonito. Gostamos de andar perto da água, é um lugar bom para pescaria, onde

5
vamos buscar taquara, que tem remédio que nós usamos até hoje, remédios
antigos. E essa é a nossa medicina que nós conhecemos e queremos continuar
usando, procurando na beira dessa água onde nós costumamos andar. Nós, os mais
velhos, conhecemos os remédios da beira da água e queremos ensinar os mais
novos. E hoje não podemos usar essa água porque quando pegamos uma planta, um
pedaço de mata, o branco já diz que não pode pegar.
Entre os cursos dos rios Massiambu Pequeno e Rio Brito temos
taquara, embira, plantas para remédios, frutos para comer, palmeiras, água boa.
Aí fazemos mundéu e laços para pegar veado. Também tem um pedaço de terra
boa para plantar as nossas plantas próprias, com as nossas semente e mudas:
milho, feijão, aipim, batata doce, melancia. Tem madeira boa e quase todo o
material que precisamos para o artesanato. E também é um lugar bom para morar.
No Morro dos Cavalos ( Yvyã Porã*) é o lugar onde temos nossas
casas, nossa Opy (casa de reza). Também encontramos alguns remédios e algum
material. Quando tiramos material, palmitos e frutos no Morro dos Cavalos ( Yvyã
Porá) deixamos madurar os frutos nos outros morros. E quando usamos os morros
que ficam entre os rios Massiambu Pequeno e Brito ( Yvyã Mboae Porir), deixamos
os frutos madurar em Yvyã Porã.
Queremos a garantia da terra para viver nossa cultura com
liberdade, cultivor nossa cultura, ensinar nossos filhos e nossos netos. Porque
hoje em dia, com a falta de uma terra verdadeira para nós, não podemos viver
nossa vida e nossa cultura (nhande reko) completamente.
Para vivermos tranquilos, ensinando nossas crianças com segurança,
para não sermos mais ameaçados, massacrados e escravizados como no passado,
pedimos que a demarcação seja feita com atenção e com urgência.

AVETE XE RUVIXA. NHANDERU TUPA"' OMAE


(Muito obrigado autoridades. Que nosso pai TUPÃ lhes proteja, olhe por vocês).
*.............................

Ass: Representantes do TEKOA YMA I Morro dos Cavalos


Artur Benite (cacique) - João Antunes - Narcizo de Oliveira - Genicio Borges -
Timoteo - Nereu dos Santos - Cláudio Benite - Antonio Silveira - Tereza Brizola - Darci
Lino Gimenez - Nadir Moreira Amorim - Augustinho Moreira - João Batista Gonçalves -
Luciana Moreira - Jurema Benite - Maria Campo - Nelson Gabriel - Paula da Silva -
Adriana Benites - Arcindo Gonçalves - Tereza Tibe - Glória Benites Vilalba - Laurinda
Tibes - Lucio Benite - Paulo Cesar Antunes - Juliane Antunes - Eva de Lima Antunes -
Sueli Antunes - Ozéias Pilantir - Aldo Gonçalves - Wera Tupã - Eduardo da Silva -
Floriano da Silva - Antonio Natalício - Augusto da Silva - Mário Guimarães.

6
PRIMEIRA PARTE - DADOS GERAIS SOBRE O GRUPO INDÍGENA

fontes históricas sobre o território ocupado pelos guarani


nome e lugar
composição da população guarani de morro dos cavalos e modo de gestão do rekee

fontes históricas sobre o território ocupado pelos guarani

O debate teórico sobre a classificação dos índios Guarani, em


subgrupos ou parcialidades, parece ter se acentuado na mesma proporção que se
evidencia a imposição de limites de terras para esse grupo indígena. Em
conseqüência, os laudos antropológicos procuram justificar a presença indígena
local através da identificação da comunidade, ou de seu pertencimento a um grupo
étnico que possua vínculos históricos com o lugar. Muitas vezes, a classificação
dos Guarani segundo as denominações atuais, tem sido utilizada como forma de
negar-lhes o direito à terra, considerando-os como uma população sem vínculos
com os Guarani "históricos" e suas denominações de então.
No século XX, estudos etnohistóricos fundados nos documentos dos
primeiros cronistas definem o território ocupado pelos Tupi-Guarani e Guarani.
Segundo Saguier (1980)2, "o núcleo guarani propriamente dito se centrava entre
os rios Paraná e Paraguai, o estado ele Mato Grosso e parte ela costa Atlântica, no
Brasil e a província ele Misiones na Argentina, com algumas fixações em território
boliviano pelo noroeste e Uruguai pelo sudeste." De acordo com Clastres (1978)3
"Os Tupis ocupavam a parte média e inferior da bacia do Amazonas e dos
principais afluentes da margem direita. Dominavam uma grande extensão cio
litoral Atlântico, da embocadura do Amazonas até Cananéia. Os guaranis
ocupavam a porção cio litoral compreendida entre Cananéia (SP) e o Rio Grande do
Sul' a partir daí, estendiam-se para o interior até aos rios Paraná, as aldeias
indígenas distribuíam-se ao longo de toda a margem oriental do Paraguai e pelas
duas margens do Paraná. Seu território era limitado ao norte pelo Rio Tietê, a
oeste pelo Rio Paraguai. Separado deste bloco pelo Chaco, vivia outro povo
Guaram~ os chíriguanos, junto às fronteiras do Império Inca': Esse território era
então jurisdição da Província do Paraguai que integrava os atuais estados do

2
Saguier, Ruben - Literatura Guarani dei Paraguay. Caracas, Ayacucho, 1980.
3 Clastres, Hélene - Terra Sem Mal - o profetismo Tupiguarani. São Paulo, Brasiliense, 1978.

7
Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Mato Grosso do Sul atém de parte
do Uruguai e da Argentina {Assis Carvalho, 1981/.

Nos séculos XVI e XVII, os cronistas denominavam "guaranis" os


grupos de mesma língua que encontravam desde a costa atlântica até o Paraguai.
De modo geral, pequenas comunidades designadas pelo nome do local ou do rio às
margens do qual habitavam, ou pelo de seu líder político, compunham a "nação
Guarani".
"En los siglos XVI y XVII, los espaõoles, a medida que avanzaban en
sus viajes de exploracíóny en sus expedícíones de conquista - y los misioneros en
su 'conquista espiritual' - encontraron a los Guaraní formando conjuntos
terrítoria/es más o menos extensos, que llamaron'províncias:reconocidas por sus
nombres propíos: Cario, Tobatin, Guarambaré, Itatín, Mbaracayú, gente dei
Guairá, dei Paraná, dei Uruguay, los dei Tape... Estas províncias abarcaban un
vasto territorio que iba de la costa atlântica ai sur de São Vicente, en el Brasil,
hasta la margen derecha dei rio Paraguay,y desde el sur dei río Paranapanemay
dei Gran Pantanal,o lago de los Jarayes, hasta las Is/as dei Delta junto a Buenos
Aires"(Melià)5•
Esses conjuntos territoriais, que os europeus chamavam de
províncias, eram designados pelos Guarani por guara (Susnik, 1982)6.
"los antiguos Guaranies conceptuaban su espacío vital bajo e/
término guára, con suficiente posíbilidad de rotacíón de campos cultivados y de
abundante coza: cada guára tenia sus limites determinados por rios, riachos y
selvas tupidas" (idem).
Segundo a autora, as exigências de adaptação e adequação que
sobrevieram, converteram o antigo conceito de espaço vital em "espaço de
sobrevivência", fracionando o guára em pequenas unidades familiares, com todas
as suas consequências de penúrias e "una profunda crisis psicocultura/, no
obstante la evasiónguaraní mediante sus danzas saçradas".
No século XIX, os Guarani que tendo escapado dos colonos e dos
jesuítas conservaram sua autonomia, estabelecendo-se num território que
durante muito tempo permaneceu inacessível, foram denominados caaíguás ou
cainguásgente da floresta (Clastres, H., 1978).

4
Assis Carvalho, Edgard - Ava -Guarani do Ocoi-Jacutinga. CIMI/CJP/ ANAI-PR,1981
5
Melià, Bartomeu - EI Guarania;Experiência Religiosa. Asunción, Ceaduc-CEPAG,1991.
6
Susnik, Branislava - Cultura Material - Los aborígenes dei Paraguay, T. IV. Asunción, Museo
Etnografico Andres Barbero, 1982.

8
Em Santa Catarina, a presença Guarani foi registrada pelos
primeiros viajantes que ali aportaram. Gonneville (1504), Aleixo garcia (1515),
Caboto (1526), Cabeza de Vaca (1541), Schmidel (1552), Hans Staden (1548).
Esses viajantes sobreviveram graças à generosidade dos Guarani/Carijó que os
hospedavam, forneciam alimentos, guias e mão de obra para suas expedições
terrestres realizadas através dos caminhos indígenas. Durante a colonização,
movimentos de retirada dos Guarani/Carijó de lugares que ocupavam no litoral,
para outros, foram os meios que encontraram para manterem-se distantes dos
novos povoadores sem submeterem-se aos seus processos de "domesticação".
(Ladeira, Darella e Ferrareze, 1996:21).7
No litoral de Santa Catarina, pesquisas arqueológicas comprovam
que há grande número de sítios arqueológicos Guarani, em toda a sua extensão
(como pode ser verificado no mapa em anexo). Marco Aurélio de Mazi.
A ausência de registros históricos sistemáticos sobre a presença
contínua dos Guarani na costa Atlântica não deve se constituir em prova de
negação dessa presença indígena8• Os argumentos e a memória de famílias
Guarani que vivem no litoral paulista e catarinense que se apresentam como
descendentes dos "primeiros habitantes" da costa não podem ser contestados
pela ausência de fontes escritas (assim como a escrita por si só não mantém uma
tradição, para as sociedades ágrafas a tradição é reproduzida pela ação
provocada pela memória e pela palavra dita). Além disso, a noção de
território/mundo Guarani abrange um conjunto de regiões não se limitando às
pequenas áreas hoje disponíveis a eles. O que se observa é que a imposição de uma
vinculação entre classificação/ presença contínua do grupo num local delimitado e
o direito à terra, já provocou suficientes prejuízos ao modo de vida e à
conservação do território Guarani.
Levantamentos recentes reunindo fontes documentais e registros
arqueológicos procuram reconstruir ou reinterpretar a história da presença
indígena no litoral catarinense. Estudos pontuais sobre a ocupação territorial
Guarani em Santa Catarina, fundamentados em dados históricos, arqueológicos e
etnográficos foram intensificados a partir década de 1990, em razão do início

7
Ladeira, Darella e Ferrareze - "Relatório sobre as Áreas e Comunidades Guarani afetadas
pelas obras de duplicação da BR 101, no Estado de Santa Catarina, trecho Garuva -
Palhoça", 1996.
8
Essa questão já foi abordada em 1990, quando ao realizar levantamentos históricos sobre a
presença Guarani no litoral paranaense, deparei com a falta de fontes a partir do século XVII. Na
ocasião, também era preciso argumentar contra a tese de que os Guarani (Mbya) não teriam
direito às terras devido sua ocupação "recente". Ladeira, M. Inês - Espaço Mbya entre as águas
ou o caminho aos céus - os índios Guarani e as ilhas do Paraná, 1990.

9
dos procedimentos de demarcação de áreas para os Guarani no litoral
catarinense, provocado inicialmente por relatório do CTI - Centro de Trabalho
Indigenista, datado de 19919. Em 1996, o "Relatório sobre as Áreas e
Comunidades Guarani afetadas pelas obras de duplicação da BR 101, no Estado de
Santa Catarina, trecho Garuva - Palhoça", elaborado por M. Inês Ladeira, M.
Dorothea Post Darella e João A. Ferrareze, indica, como medidas mitigadoras
específicas, a regularização das terras então ocupadas pelos Guarani nesse
trecho, apresentando argumentos sobre a presença indígena em Santa Catarina.
Posteriormente, os relatórios "Eleição da Área a ser destinada pela TBG aos
índios Mbya-Guarani do litoral do Estado de Santa Catarina" (Portaria 290/PRES
FUNAI - 06.05.99) de Aldo Lirciff: "Aldeias, Terras e Indios Guarani no litoral
centro - norte de SC e a BR101 (Portarias 641, 699 e 922/PRES FUNAI -1998)
de Darella (1999); e o "Estudo de Impacto: as Populações Indígenas e a
Duplicação da BR 101, trecho Palhoça/Se e Osório/RS" de Darella, Garlet e Assis
(2000), apresentam, sintetizam e retomam as fontes relativas a aspectos
etongráficos, históricos e arqueológicos sobre a presença indígena em Santa
Catarina. Esses relatórios, objetivando a regularização de terras aos Guarani,
ainda relacionam e comentam especificamente todos os trabalhos que registram a
aldeia Morro dos Cavalos, até 1999/2000. Também a dissertação de mestrado
"Integração e Desintegração - Análise do tratamento dispensado pelo Estado aos
povos indígenas. Santa Catarina e Misiones no caso Guarani", de Clóvis A.
Brighenti, 2001 (em especial o cap. A resistência dos Carijó no litoral), contribui
com dados sobre a presença indígena nessa região litorânea.
Segundo os trabalhos citados, até praticamente o ínício da década
de 1990, a presença Guarani era reconhecida pela sociedade envolvente (e
registrada pela escrita) somente em Morro dos Cavalos. Este fato se deve,
talvez, em razão da coesão e fixação do grupo familiar de Julio Moreira no local e
das ligações de parentesco com o grupo familiar liderado por Alcindo Moreira, o
que intensificava a visita de parentes Guarani. Também o estreitamento de

9
Em virtude de trabalhos realizados, através do CTI, em várias aldeias Guarani-mbya do litoral
(PR SP, RJ), tínhamos ciência de outras aldeias situadas no litoral de SC, lugares que só foram
possíveis de conhecer, acompanhadas por uma família Guarani da Ilha da Catinga-PR. No litoral
catarinense, em 1991, visitamos também vários locais abandonados a procura de um rapaz cujo pai,
vivendo numa aldeia em São Paulo não tinha mais notícias. Na época visitamos 9 locais de aldeias,
incluindo Morro dos Cavalo e Mbiguaçu, todas elas já unidas por algum laço de parentesco. Os
relatórios de Rosa Maria Bott - Levantamento etnográfico de um grupo Guarani. UFSC, 1975 e
de Ligia Simonian - Notícia sobre a questão da terra e as condições de vida dos Guarani e
mestiços do Morro dos Cavalos / Palhoça, 1986, apresentados em anexo ao relatório do CTI de
1991, eram os registros escritos sobre esta comunidade que encontramos então.

10
relações com a população branca envolvente e posteriormente os casamentos das
filhas de Julio Moreira com brancos, tenha tornado-os mais conhecidos pela
população regional. Na última década, a atuação e o relacionamento mais aberto
das lideranças da aldeia de Mbiguaçu (Milton e Alcindo Moreira) com a população
regional (atitude mais evidente entre os Xiripá) tornou-a também igualmente
conhecida pelos brancos.

nome e lugar

Os Guarani que vivem atualmente no Brasil são classificados pela


literatura etnográfica em três grupos - Kaiova, Mbya, Xiripa (ou Nhandéva) -
segundo diferenças de costumes, de práticas rituais e dialetais. De acordo com
Aryon Dall'Igna Rodrigues10, Mbya, Xiripa (Nhandéva) e Kaiova são dialetos do
idioma Guarani que pertence à família Tupi-Guarani, do tronco lingüístico Tupi. As
experiências vividas pelos diversos grupos - nas reduções jesuíticas, durante o
período de colonização ibérica, com a política indigenista oficial e o contato
sistemático e diversificado com a sociedade nacional - influíram nos modos de
organização comunitária dos Guarani, promovendo novos reagrupamentos e a
miscigenação entre subgrupos diversos. Apesar de genérica, esta classificação é
aceita pelos Guarani atuais mais em função das diferenças, explicitadas e
vivenciadas entre eles próprios, do que pela auto identificação com essas
denominações.11
Com exceção dos Kaiova que se apresentam perante a sociedade
envolvente como tal, os Mbya e Xiripa se auto referem, com exclusividade, como
autênticos Guarani. O termo especificador - Mbya, Nhandéva ou Xiripa - pode ser
agregado e adotado para reiterar, aos outros (sobretudo aos brancos), a sua
condição de autenticidade e "pureza" Guarani.
Essa "divisão" entre os grupos Guarani pode ser mais claramente
observada também na disposição dos lugares e regiões que ocupam dentro de um
mesmo e amplo espaço geográfico.
As aldeias dos Kaiova concentram-se na região sul do Mato Grosso do
Sul e na região oriental do Paraguai, onde são denominados Pai Tavyterã.

10
em Melatti, Julio C. - Indios do Brasil. Brasília, Hucitec, 5ª ed., 1987.
11No Paraguai e na Bolívia, encontram-se outros subgrupos Guarani denominados Guajaki,
Tapiete, Guarayos, Chiriguano e Izozenos.

11
Os Xiripa/Nhandéva, no Paraguai, encontram-se na reg1áo
compreendida entre os rios Jejui Guazu, Corrientes e Acaray12 e, no Brasil, vivem
em aldeias situadas no Mato Grosso do Sul, no interior dos estados de São Paulo
(Posto Indígena de Araribá), do Paraná e do Rio Grande do Sul e no litoral de São
Paulo e de Santa Catarina.
Os Mbya, em sua maioria, estão presentes em várias aldeias na
região oriental do Paraguai, no nordeste da Argentina (província de Misiones) e no
Uruguai (Montevidéo). No Brasil encontram-se em aldeias situadas no interior e
no litoral dos estados do sul - Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul - e em
São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo em várias aldeias junto à Mata
Atlântica do litoral. Algumas famílias vivem em Jacundá (PA) e em Xambioá (TO).
No litoral, as aldeias Guarani estão distribuídas numa longa faixa
geográfica que se estende do Rio Grande do Sul ao Espírito Santo. Seu
contingente populacional é, salvo exceções, composto por grupos familiares Mbya
e Xiripa/Nhandéva que, historicamente, procuram formar seus assentamentos
junto à Mata Atlântica e à Serra do Mar. Desse modo, algumaas aldeias no litoral
de Santa Catarina e de São Paulo apresentam contigente populacional composto
por descendentes de casamentos mistos entre Xiripa/Nhandéva e Mbya.
Registros históricos/etnográficos (Curt Nimuendaju, Benedito
Calixto, R. Krone, Frank Goldman, Egon Schaden)13 indicam que, até as primeiras
décadas do século XX, os Xiripa constituíam a maioria da população Guarani no
litoral. Levantamentos realizados a partir da década de 1970, e a crescente
visibilidade das aldeias na atualidade, comprovam que os Mbya passaram a
predominar numericamente em toda a faixa litorânea do Rio Grande do Sul ao
Espírito Santo. Este quadro se deve, provavelmente a alguns fatores que dizem
respeito aos Xiripa/Nhandéva no litoral, como: a interrupção de movimentos
migratórios de grupos familiares (desde a década de 1950 e a diminuição da
mobilidade e reciprocidade entre famílias de aldeias de diferentes regiões, maior
número de casamentos interétnicos. Assim como observa-se maior desenvoltura
no relacionamento entre os Xiripa do litoral e a sociedade envolvente, também
algumas uniões de casamento entre esses índios (Xiripa) e indivíduos da população
regional são notadas nas comunidades Guarani de São Paulo e de Santa Catarina.
Já entre os Mbya, observa-se maior mobilidade entre as famílias de aldeias
próximas e distantes em razão de laços de parentesco que se renovam, assim

12
Perasso, Jose & Vera, Jorge - La Cultura Guarani en el Paraguay Contemporaneo. Asunción,
RP Ediciones, 1987.
13
Em Ladeira, M. Inês -0 caminhar sob a luz: o território Mbya à beira do oceano. São Paulo,
PUC- dissertação de mestrado,1992.

12
como de movimentos de grupos familiares em busca de áreas possíveis para
formação de aldeias ( tekoa). Estas relações permitem aos Mbya manterem uma
unidade cultural e lingüística bem determinada, mesmo vivendo em aldeias
separadas por grandes distâncias geográficas e envolvidos por distintas
sociedadesnacionais(Brasil, Paraguai,Argentina e Uruguai).
Na última década, de um modo geral, a produção escrita acentua-se
em torno dos Mbya, como aqueles índios que, apesar das difíceis condições de
existência, mantém seus costumes, língua e tradições. Nos levantamentos e
relatórios relativos à presença indígena atual em Santa Catarina, Uá
mencionados)elaborados nesse período, são fartas as referências sobre os
Guarani-mbya.
Comumenteem uma aldeia Guarani, ainda que tratando-se de um
mesmo grupo local, nem sempre a identificação com as denominaçõesque lhes
são atribuídas é genérica e consensual,uma vez que a noção de identidade étnica
é forjada em razão das relações interétnicas e do contexto de sua ocorrência.
Para aprofundar como os Guarani constróem a noção de identidade, seria preciso
analisar como se apresentam e identificam-se uns aos outros e como se dá a
integração entre as famílias a partir dos laços de casamento nos mesmos e em
diferentes grupos locais.
Os Guarani de Morro dos Cavalos se reconhecem como Nhandéva,
que significa "nós, nossa gente ou gente como nós". Essa autodenominaçãoé
vigente em todas as comunidadese subgrupos Guarani e em todas as regiões,
como forma de explicitar sua diferença em relação aos "brancos", que chamam
jurua, e a outros povos indígenas.

composição da população guarani de morro dos cavalos e modo de ocupação

De acordo com as classificações vigentes podemos dizer que a


comunidadeGuaranide Morro dos Cavalos atualmente é compostapor uma maioria
do subgrupo Mbya e por poucasfamílias, genericamenteclassificadas como sendo
do subgrupo Xiripa, descendentesou parentes dos grupos familiares chefiados
por Julio Moreira, falecido em 1980, e de Alcindo Moreira, líder espiritual que
vive na aldeia Mbiguaçu- municípiode Biguaçu.14
SegundoMilton Moreira (filho de Julio Moreira e morador de Morro
dos Cavalos até 1987, e hoje caciqueda aldeia Mbiguaçu)em seu texto "Contando

14Recentemente, em maio de 2002, um grupo familiar formado por maioria Mbya mas liderado por
um Kaiova (que cresceu com a família em várias aldeias do litoral) passou a residir na aldeia Morro
dos Cavalos, onde possui laços de parentesco pelo lado Mbya.

13

a História do Guarani Nato da Ilha de Santa Catarina", escrito em 1989, haviam


várias aldeias na Ilha de Santa Catarina, onde viviam índios da tribo "Chiripas e
Phaim". "Essas duas tribos eram de peles claras, por esse motivo passaram a ser
chamados de Guarani-Karijós pela sociedade branca, porque não sabiam a
definição certa/". Segundo afirma no mesmo texto, eles próprios são
descendentes dos índios "Guarani-Karijós".
Milton e suas irmãs (residentes em Morro dos Cavalos e Praia de
Fora) também se apresentaram como de origem "Pcim". Os descendentes de
Julio Moreira e suas respectivas famílias continuam vivendo na região, em aldeias
ou em locais próximos a elas, de acordo com a composição familiar definida pela
realização de casamentos entre índios ou com brancos.
Os depoimento das irmãs e da esposa de Milton Moreira confirmam e
esclarecem, um pouco, a origem e os laços de suas famílias. Segundo Nadir (irmã
de Milton) sua mãe, Isolina, e seus avós maternos e demais antepassados (que
consideram ser "Guarani/Karijós) eram dessa região de Santa Catarina (da
"grande Florianópolis"). A família de seu pai, Julio Moreira, teria vindo do
Paraguai "por volta da década de 1930". Parte das famílias de Isolina e de Julio
viveram na região do Morro dos Cavalos mas por pressões diversas (que
relacionam à "guerras") foram para oeste de Santa Catarina, morando entre
outros locais, na aldeia de Xopecó onde se encontravam parentes que compunham
a família de Alcindo Moreira16• Julio e Isolina casaram-se e retornaram à região
litorânea, sendo que os seus seis filhos nasceram na aldeia conhecida como Morro
dos Cavalos17• Julio Moreira ficou viuvo em 1960, criando sozinho todos os
filhos18• Morreu em 1980.
A versão de Roseli (filha de Alcindo Moreira, de 73 anos, e esposa
de Milton Moreira) é a de que seus bisavós do lado materno também são da Ilha
de Santa Catarina, mas seus avós, e inclusive ela, teriam nascido em Xapecó, onde
viveu até os doze anos quando retornaram todos para Morro dos Cavalos
liderados por seu pai. Segundo ela, do lado materno são Xiripa. Em 1987, já
casada com Milton e com dois filhos, juntamente com sua mãe, irmãos e famílias

15
Em Darella, M. Dorothea - Aldeias, Terras e Indios Guarani no litoral centro-norte de
Santa Catarina e a Br 101 (anexo). (GT's Portarias 641- 699 e 922 / PRES FUNAI, 1998).
16
Julio Moreira é primo irmão da mãe de Alcindo Moreira. ambos pelo lado materno, conforme se
pode ver na genealogia de 1991 - CTI. Todos os filhos de Julio são "primos" de seu Alcindo,
inclusive seu genro Milton.
17
Rosalina Moreira, irmã de Milton confirma que todos teriam nascido na região de Morro dos
cavalos, em depoimento à Maria Dorothea em 10/2000.
18
De acordo com o relatório de Rosa Bott, em 1974 Julio Moreira tinha 68 anos e Isolina havia
morrido em 1960. Julio Moreira teria hoje (em 2002) 96 anos.

14
teriam formado a atual aldeia de Mbiguaçu, sob a chefia de seu pai Alcindo.
Atualmente, Milton Moreira é o cacique de Mbiguaçu e seu sogro Alcindo é uma
liderança religiosa das mais ativas, nessa e em outras regiões de aldeias Guarani.

Conversas - Morro dos Cavalos, novembro de 2001


I - Maria Inês ladeira
R - Rosely (esposa de Milton Moreira cacique de Mbiguaçu, filha de Alcindo Moreira)
N - Nadir (irmã de Milton, filha de Julio Moreira+).

R - Meu pai (Alcindo) nasceu, disse, nasceu daqui, mas voltaram de novo para Xapecó.
Disse que nasceram por aqui. Diz que na Ilha, ninguém sabe direito, ai voltaram de novo
para Xapecó, lá para oeste. Quando se criou, com 12 anos, retornou para cá, aí, sei como
é que foi a estória, disse que foi por causa dos outros, porque disse que tem muita
guerra, que vai sair a guerra de novo, isso é complicado porque o índio tem medo dos
brancos, por causa da guerra. Aí voltaram de novo, meu pai viu isso aí.
I - Você conheceu o seu avô, o pai do seu pai?
R- Conheci, o pai do meu pai, até eu me criei com a minha avó. Quando faleceu estava
junto com nós.
I - E eles contam que o seu avô nasceu aonde?
R - Diz que meu avô, e avó, diz que nasceu lá de Argentina, de Misiones, aí retornaram
para Ilha de novo. E os antepassados, os bisavós, os tataravôs, diz que é da Ilha mesmo.
I - E a sua mãe?
R- A mãe disse, que ela nasceu por aqui, também nasceu aqui. Diz que por causa da
guerra voltaram...
I - A mãe da sua mãe você conheceu?
R - Conheci também, porque minha avó voltou quando retornamos aqui de novo pro Morro
dos Cavalos.
I - E sua avó disse que nasceu aonde, a mãe da sua mãe, você sabe?
R - Minha avó, diz que nasceu em Xapecó.
I - Seu avô também?
R - Ele nasceu também em Xapecó. Mas vieram, desde pequeno, vieram para cá. Os
bisavô da mãe, é da Ilha mesmo. Disse que tem uma ilha ali na Grande Florianópolis, uma
lagoa, na lagoa para lá, parece que é o Rio Vermelho Disse que tem uma terra
do índio lá, disse que lá é do índio mesmo, disse que viram cadáver do índio, descobriram,
viram, o índio morreu por causa da __ e foi enterrado a/í, no cemitério lá, cemitério do
índio, diz que descobriram lá.
I - Rose/!: e você nasceu onde?
R - Eu nasci, disseram que eu nasci em Xapecó. Eu não seu. ..)
I - Vocês são parentes, não é?
N - Metade parente, metade não. Porque é casada com o meu irmão, então é minha
cunhada. ( ... ) Ela é sangue do nosso, é mesma família, por parte da mãe.

15

R - O pai que é primo irmão da Nadir.


I - Por parte de quem?
R - Por parte da mãe dele.
R - A gente não parava num lugar só. Ia para São Paulo, voltava... E agora que nós
paramos. E agora, os mais novos que nasceram agora, que pensam mais, ficam, mas os
antigos não.
I - Aí quando você tinha 12 anos, veio para cá?
R - Viemos pra cá.
N - E nós retornamos para cá de novo. Pra lá e pra cá. .. (. .. )
I - Quando vocês vieram para o Morro dos cavalos, vocês já vieram desse lado, e já
ficaram morando junto das outras famílias (de Julio Moreira). E porque que falam que, a
sua família da sua mãe é xiripá?
R - Porque o paim é da raça.
I - Ele (o Milton) fala que é da parte do paim, a Nadir também?
R - Claro, é porque é da família da raça, né. Porque tem 3 etnias ali: tambeopé, paim
xiripá.
I - E por parte de quem é xiripá?
R-Édamãe.
I - Não é tambeopé?
R - Não. E o patm é da raça dela (da Nadir).

Essas relações anteriores podem elucidar aspectos da ocupaçãoGuarani e


dos laços entre grupos familiares e subgruposdiferentes, que se observamainda
hoje em Morro dos cavalos. O que se pode apreender (das conversascom os filhos
de Julio Moreira) é que o grupo local chefiada por Julio Moreira tenha se
formado da união de famílias originárias do Paraguai no início do século XX com
"índios nativos da região". (Composições similares também são explicitadas por
famílias "Xiripa" do litoral sul de São Paulo). Há ainda a versão/ memória de que
os migrantes de regiões interioranas, estariam retornando às regiões de sua
origem familiar no litoral (como afirma a filha de Seu Alcindo). Sem pretender
aprofundar esta hipótese, ou mesmo comprovar a origem étnica ou detalhar os
elos de parentesco das famílias denominadas"Xiripd" no litoral (o que creio ser
impossível)entendo que ela embasa a noção de territorialidade, ou o sentido de
pertencimento desses índios às terras que ocupam. Desse modo, não somente
mencionam mas reconhecem-se como descendentes diretos dos antigos
habitantes do litoral, que agregaram e continuamagregandofamílias de regiões
interioranas (do Brasil ao Paraguai e Argentina) compreendidas no mesmo
mundo/território. As relações com os Mbya e a possibilidade de ocupação
conjunta / divisão de áreas entre si, se processamatravés de um consensode

16
que ambos os "grupos" têm direito ao território comum, formado por várias
regiões, que seus antepassados ocupavam conjunta ou separadamente.
Famílias, hoje classificadas como Xiripa (ou Nhandéva, ou
Tupiguarani pelos próprios e pelos Mbya), dos atuais municípios de Peruíbe - SP,
Bertioga - SP, Palhoça - SC e adjacências), que afirmam ser descendentes dos
índios que já se encontravam na costa atlântica na época da conquista, não se
sentem com mais direito a possuir terra do que aquelas que, independentemente
do "subgrupo", em levas sucessivas ocuparam a região litorânea de seu próprio
território (mundo). Já no que se refere ao espaço das aldeias (tekoa), a
convivência passa a ser estendida a uns e a outros de acordo com eventuais
relações de casamentose das alianças políticas estabelecidas, observando-sea
chefia do grupo local dominante na ocasião. Portanto a composiçãoda população
pode oscilar conforme as circunstâncias não só externas, mas internas às regras
sociais das comunidadesGuarani, como se observa na aldeia Morro dos Cavalos a
partir de registros genealógicos,realizados (não sistematicamente) de 1974 até a
presente data (em anexo). (Outras relações poderiam ser verificadas em
momentosnão registrados).
O relatório de 1975 (os dados foram colhidos em 1974) de Rosa
Maria B. Bott, já mencionaa passagem e estadia de grupos Guarani,realçandoum,
de "nove pessoas",que, há três anos, segundo seu Julio Moreira, "acamparam
proximamente, mas estavam de passagem. Ficaram menos de um ano. Não
souberam informar onde foram". Na seqüência,mencionaoutros grupos que de
passagem ou à procura de casamentos paravam no lugar. O relatório de Ligia
Simoniam, de 1986, aponta que a comunidade de Morro dos Cavalos "recebe
seguidamente Guarani de outras áreas, mas especialmente aqueles que se
encontram de passagem pelo litoral, ou que viajam à Florianópolispara vender sua
produção artesanal". Nesse relatório, Simoniam classifica o próprio grupo
familiar de Julio Moreira como formado por "Mbya-Guarani" e mestiços (de
caboclose brancos) inseridos numa "prática social (visitas aos parentes em outras
aldeias) muito própria dos Mbya-Guarani". Segundo os próprios relatos dos
Guaranique vivem atualmente nessa aldeia, fica claro que esses visitas-estadias
eram realizadas pelos Guarani-mbya, em sua dinâmicasocial e territorial 19.
Do ponto de vista político-social, foi possível observar que as
famílias nucleares que são hóspedes numa aldeia, tendo (ou não vínculos de
parentesco) são cativadas a se integrarem ao grupo local, pois se constituem em

19Entrevista realizadas junto aos Guarani-mbya por M. Inês Ladeira (em 1991, 1996 e 2002) e por
M. Dorothea Post Darella, seguidamente a partir de 1996 até a presente data (alguns deles
constantes dos relatórios já mencionados) confirmam essas informações.

17
força de trabalho e possibilidade de novas alianças de casamento. Já os grupos
familiares com chefia espiritual/política própria são considerados hóspedes
passageiros e sua estadia harmoniosa depende do respeito e reconhecimento da
prevalência do grupo local dominante pois, potencialmente, dependendo de sua
composição, podem ser uma "cmeoçc" ao grupo e à chefia local, na medidaem que
podem também atrair membros para seu próprio grupo e para outros lugares.
Assim, a reocupaçãoe gestão dos lugares/aldeias por novos grupos ocorre, via de
regra, quando o grupo anterior já se fragmentou ou foi em busca de outros
locais, ou em razão da morte da chefia anterior.
No caso de Morro dos Cavalos, observa-se que, a morte de Julio
Moreira, o casamento de suas filhas com brancos, a ida do grupo de Alcindo
Moreira com o genro Milton para Mbiguaçu (1987) e a saída das filhas e genros
de Julio Moreira (Rosalinae Lurdes foram para Praia de Fora com a família no
início dos anos 1990), foram fatores que permitiram aos Mbya se fixaram e
predominarem politicamente constituindo sua própria chefia. A dinâmica de
ocupação das aldeias Guarani, de um modo geral, se insere num plano
predominantemente político. Arranjos políticos internos podem acontecer
temporariamente e são ocasionais. Desse modo, as oscilações de população
verificadas nos levantamentosgenealógicosda aldeia Morro dos Cavalos, mesmo
não contemplandotodas as relações e variantes, revelam características de uma
dinâmicasocial e territorial ativa entre os Guarani.E a aldeia Morro dos Cavalos,
pelos processos que passou nas últimas décadas, decorrentes da transformação
ambiental e fundiária da região, e das relações político-sociais entre seus grupos
residentes, exemplifica e evidencia, num pequeno espaço de terra e de tempo,
várias peculiaridades próprias dos Guarani.
A través de genealogias realizadas ao longo dos anos em várias
aldeias, pudemosentender a formação de grupos familiares e como suas relações
de afinidade e consangüinidadeinfluem na composiçãodos grupos locais, atraindo
e "cedendo" membros, e na própria espacialidade Guarani. Essa rede que se
estende por todo o seu território, pode ser observadaatravés de levantamentos
em aldeias mais populosas,ou em um complexode aldeias em uma região.
Atualmente, nas aldeias do litoral, os Mbya têm atraído, pela
proximidade e convivência,as novas gerações dos Xiripá a se integrarem nessa
dinâmica em vista das opçõesde casamentoentre Xiripa e Mbya. Nesse sentido,
não se pode avaliar ou comparar as alterações populacionais em Morro dos
Cavalos, isoladamentedo contexto das demaisaldeias e dos grupos familiares que
a integram e com eles interagem hoje. O crescimento demográfico poderia ser

18
observado, através de levantamentos contínuos num mesmo grupo local
permanente, o que parece não ser o caso de Morro dos Cavalos.
Os levantamentos genealógicos demonstram que a composiçãoda
populaçãoGuarani no Morro dos Cavalos se insere na mesma dinâmica e sistema
Guarani (incluindo-se as transgressões conscientes decorrentes de casamentos
consanguíneose interétnicos) e possui vínculosde parentesco com várias aldeias.
Portanto, na aldeia Morro dos Cavalos o aumento da populaçãoocorreu em razão
dos processos internos relacionados aos casamentos,mudançasde chefias, etc,
nos grupos familiares que povoaram a aldeia depois de 1992. Estas
condições/características de ocupação/formação das aldeias deve ser sempre
considerada na definição de limites de Terras Indígenas para os Guarani.

A população guarani estimada no Brasil é de aproximadamente


33000 pessoas entre os Kaiova (20000), Xiripa/Nhandéva (7000) e Mbya (6000).
No Paraguai calcula-se cerca de 21000, entre os Pai Tavyterã/Kaiova (9000),
Xiripa/Nandéva (7000) e Mbya (5000). Na Argentina a populaçãoGuaranié quase
exclusivamenteMbya e concentra-se na província de Misiones em torno de 4000
pessoas. Essa estimativa grosseira baseia-se em dados levantados na última
década (Chase-Sardi, 1990; Melià,1997, Dirección General de Asuntos Guaranis
da Provínciade Misiones).As dificuldades de quantificar os Guaranifoi observada
por outros autores (Chase Sardi, Bartomeu Melià, Clóvis Brighenti, entre outros).
Na realidade, entendendoque o território Guarani compreendetodas as regiões
onde encontram-se suas aldeias, e isso implica numa dinâmica social em que a
mobilidadeé inerente, tecnicamente é quase impossívelcontar os indivíduos,a não
ser que em todas as aldeias, em todos os países e regiões, num mesmo dia, ao
mesmo tempo, fosse realizado o censo da populaçãode cada parcialidade. Ainda
assim, há outras variantes, entre as quais: problemas de acessoa algumasaldeias
ou moradias, dificuldades de obtenção de informações nas comunidades,além da
aversão dos Guarani aos recenseadores, pois entendem, com razão, que a
contagemtrata-se de uma forma de controle do Estado, conforme apontado por
Melià (1997) no Paraguai, e Brighenti (2001) na Argentina. Desse modo,
levantamentos demográficos realizados isoladamente em algumas aldeias, ou
mesmo informações numéricas desconectadas no tempo, prestam-se mais a
desinformações e projeções infundadas do que benefícios aos Guarani (em
Ladeira, 2001).

19
SEGUNDA PARTE - HABITAÇAÕ PERMANENTE

situação de contato e contexto fundiário


terra e território Guarani
a terra indígena Morro dos Cavalos

situação de contato e contexto fundiário

"Os Guarani possuem uma história antiga (desde o século XVI) e


conturbada de contato, configurada pelo confisco de seu território. Além de
carregarem o estigma de índios aculturados em virtude do uso de roupas e outros
bens e alimentos industrializados, são considerados como índios errantes ou
nômades, estrangeiros (do Paraguai), etc. Esse fato, aliado à aversão desses
índios em brigar por terra, via de regra era distorcido de seu significado original
e utilizado para reiterar a tese, difundida entre os brancos, de que os Guarani
não precisavam de terra pois nem 'lutavam' por ela. Dessa forma, favorecendo os
interesses fundiários e econômicos especulativos, pretendeu-se descaracterizar
a ocupação territorial Guarani negando-lhes, sistematicamente, o direito à terra.
No litoral do Brasil, em virtude das crescentes pressões exercidas pela sociedade
envolvente, os Guarani perderam áreas que jamais poderão retomar, desviaram
sua trajetória em função das novas rodovias, mas conseguiram manter as aldeias
como pontos estratégicos e vitais que permitem manter a configuração de seu
espaço e presença junto à Serra do Mar e à Mata A tlântica"2º.
A despeito da existência de uma memória e de uma construção
coletiva de sua história de contato, encontra-se, entre os Guarani (especialmente
do subgrupo Mbya), uma minoria com domínio da língua portuguesa e inúmeras
famílias com pouca comunicação com a sociedade envolvente.
Os Guarani referem-se aos brancos como jurua. Não se sabe ao
certo desde quando empregam esse termo, porém, hoje, ele tem uso corrente e
parece destituído de seu sentido original. Jurua quer dizer, literalmente, 'boca
com cabelo', uma referência à barba e ao bigode dos europeus portugueses e
espanhóis conquistadores. De todo modo, o nome jurua foi criado a partir do
contato com os brancos colonizadores e passou, com o tempo, a ser uma
referência utilizada genericamente a todos os outros (que, segundo eles,
invadiram, chegaram depois - negros, amarelos, brancos). Os termos formais

20
Ladeira - O caminhar sob a luz - o território Mbya à beira do Oceano. Dissertação de
Mestrado, São Paulo, PUC, 1992.

20
utilizados para designar os brancos são etavakuére e yvyipokuére. Essas
expressões, embora não sejam utilizadas na linguagem corrente, são freqüentes
na "linguagem dos antigos". Yvyipokuére corresponde àqueles que foram gerados
no próprio mundo, no mundo terreno e, portanto, "não têm uma alma proveniente
da morada de Nhanderu Tenonde (Nosso Pai Primeiro) nem podem transitar nessa
morada (yvy marãey}'. Etavakuére quer dizer "aqueles que são maioria, que são
muitos no mundo" (Ladeira, 1992).
A consciente condição de "serem minoria neste mundo" leva-os a
aprimorarem suas estratégias de relacionamento com a sociedade envolvente,
evitando conflitos diretos e buscando apoio e recursos entre seus próprios
relacionamentos com pessoas e instituições diversas.
A sobreposição, muitas vezes antagônicas, de ações provenientes de
orientações, ideologias, crenças e princípios diversificados, se, por um lado
inviabiliza a articulação entre as atuações indigenistas e assistenciais, permite às
comunidades Guarani manterem-se como o eixo dessas relações, detendo o
"controle" das intervenções. Em situações de crises e indefinições, como
acontece na aldeia Morro dos Cavalos, em razão da duplicação da BR 101 e da
necessidade de demarcação de uma Terra Indígena, quando também se
evidenciam as manifestações contrárias e favoráveis à comunidade indígena,
observa-se mais claramente esse jogo de relações. Se por um lado esse "modo de
ser/estar" com os brancos, incomoda e inviabiliza algumas ações e orientações
indigenistas, é assim que os Guarani têm mantido, a longo prazo, a sua liberdade.
O que tem acontecido é que uma aldeia, cuja área passa pelo processo de
reconhecimento formal, torna-se alvo de inúmeros programas governamentais de
saúde, saneamento, educação, moradia, econômicos, etc, realizados quase sempre
sem subsídios técnicos e teóricos que levem em conta as especificidades culturais
e as circunstâncias das comunidades Guarani, nem as condições ambientais de
suas áreas. Para manterem seus padrões culturais e seus prncípios éticos e
filosóficos, os Guarani, em situações como as de Morro dos Cavalos, têm sido
equilibristas.
Os Guarani, devido às condições atuais de seu território, se inserem
num contexto onde pressões externas e internas provocam tensões e crises que
obrigam-nos a repensar e remodelar continuamente as relações de contato. Vivem
o grande paradoxo de sofrerem pressões para adotarem os sistemas da
sociedade nacional, no que se refere à educação, saúde, trabalho, moradia, etc,
ao mesmo tempo que, para terem seus direitos assegurados, devem manter-se
étnica e culturalmente diferenciados, vivendo "conforme seus costumes, línguas,
crenças e tradições". São criticados ou menosprezados quando, aparentemente

21
adotando os modelos vigentes na sociedade envolvente, assemelham-se à
população carente da nossa sociedade, da mesma forma que o são quando não se
submetem às pressões para abandonarem seu modo de vida - suas próprias
práticas de higiene e saúde, de educação, suas técnicas construtivas e agrícolas,
etc.
É importante notar que, no contexto atual, a noção do outro genérico
prevalece, apesar ou em razão das formas diversificadas das relações
estabelecidas com a sociedade dos brancos. Assim, as contradições, derivadas da
proximidade dos brancos, são trabalhadas pelos Guarani na composição de sua
identidade "pois a questão não é viver como guarani em um universo guarani, mas
viver como guarani em um contexto em que os jurua (brancos) se impõem" 21•
Talvez o desafio maior para os mais velhos seja o de conciliar a tolerância em
relação aos anseios dos mais jovens em absorver "bens" do universo dos brancos e
aos princípios do sistema de vida Guarani, contrários a muitas das expectativas
do mundo exterior.
Nos últimos 20 anos, as recorrentes disputas sobre as áreas que
ocupam, vêm forçando os Guarani a um enfrentamento que, todavia, preferem
delegar a terceiros (seus aliados). Além da briga pela terra ferir os princípios
éticos de como viver e conviver no mundo, não querem se responsabilizar pela
aceitação dos termos de ajustes que formalmente acontecem no âmbito das
regras, das instâncias de poderes e da lógica do dominador. De todo modo,
observa-se que alguns conceitos vem se acomodando ao conjunto das normas de
relacionamentos com os brancos.
Apesar da tolerância e diplomacia observadas nas relações com a
sociedade envolvente, verifica-se a recorrência explícita, nos seus discursos
internos, em atribuir aos brancos a precária situação ambiental e fundiária em
que vivem. Esta crítica não é, entretanto, apenas uma formulação retórica,
(pronunciada por seus líderes em reuniões) pois está sedimentada na experiência
de vida de todos (homens, mulheres, crianças), como observa-se nos trechos de
conversas com duas mulheres (Roseli e Nadir) em Morro dos Cavalos.

R e N - Olha, a gente tem medo, tem (Referem-se ao passado). Juruá, quando


chegava juruá já a gente esconde, antigo é assim. Não sei se hoje também é
assim. Algumas ainda, que não sai de casa, se esconde lá, não quer falar nada, é
assim. Mais medo, porque a gente não conhece. Pouco a pouco a gente vai
conhecendo um pouquinho.Primeiro chegava juruá, assim o falecido avô contava,
dizia que só o padre que chegava lá, levavaalimento para o cacique.
21
Andrade, Jose Roberto - Alma, Valor e Pinga. Dissertação de mestrado, FFLCH/USP 1999.

22
(relatam a sensação e a reação de quando experimentaram os alimentos levados
pelos brancos, que além do cheiro e do gosto ruim, jogavam fora pois os mais
velhos diziam ser veneno).
( ... ) O antigo, ninguémpegou a gripe. De doença mesmo ninguémpega. Não tinha a
gripe. Mas agora nós que estamos no meio do branco...
( ... } Aí a gente já lembra que já faltava comida. Daía gente lembra do passado que
a gente não passava fome, o pai plantava as coisinhas: melancia, mandioca,
abóbora, milho verde, e assim vai indo, fazendo aquele mbaipyzinho com farinha
de milho assim socada, fazia tudo isso aí. Depois que entraram os brancos,
levarampouquinhoe pouquinho...
(. .. ) Depois, foi depois que a gente conheceu, depois que o pai conheceu gente
branca. ... Aí que conheceu o dinheiro.
(. ..) Ninguém passava fome, tinha mais planta, assim natural mesmo, mesmo. E
tinha milho, nosso milho mesmo, tinha tudo aí... Depois que entraram mais gente
branca é que as pessoas, que aqui também plantou, saíram, e, andava para lá e
para cá, e aí depois perdeu tudo...
( ... ) Tiravamo lugar, a gente ia se afastando se afastando ... O Brancojá entrava
já tomava conta. Aí acabou, caçavam... aí acabou também nossa caça.
( ... ) Aí ensinaramnós, aí tem que levar comida, né?. Tem coisas... no mês de chuva,
aí a gente passa fome. Aí já não tinha mais caça, mais nada.
( ... ) Talvez se não entrar caçador, aí eu acho que cria um pouco, de novo, os
bichinhos: tatu, cotia, paca, macaco, bichinho que estão todos perdidos por aí por
causa do barulho da espingarda, eles fugiram, agora vão voltar tudo, pode
esperar... se ninguém(branco) entrar mais.
I - E você acha que esse barulho da estrada, também assusta os bichinhos?
R e N - Assusta, porque eles vêm um pouco, mais volta, sobe, esconde, e fica
mesmo onde não faz mais barulho. Se faz barulho, eles se afastam. ( ... ) Talvez, o
tatu, o tatuzinho as vezes vem pra cá.
I - Naquele tempo que você era criança não tinha gente do IBAMA, do Meio
Ambiente?
R e N - Olha, de criança, não tinha. Naquele tempo que eu era criança não tinha. A
gente morava, em qualquer lugar a gente morava.A gente parava e a/í não tinha
dono ainda. Não tinha nem pessoa branca que falava: que esse aqui é meu, essa é a
minha terra! Ninguém falou ainda. Mas depois, depois que eu tinha de 30 a 40
anos pra cá que eles diziam que era uma terra do branco. Quando o pai veio para
cá, qualquerlugar a gente mora. Não tinha ninguémque estava mandando.Mas de
agorapra cá tem muita gente que mandajá.
I - E nos rios tinha peixe?

23
R e N - Tinha, nos antigo, tinha também Agora terminaram. Agora caça e pesca
não tem mais nada.
I - Você acha que antigamente dava para alimentar melhor?
R e N - No antigo dava.. Pessoa branca não tinha ainda.
I - Mas vocês lembram, de quando eram crianças, se passavam fome?
N - Para mim eu acho que não, não sei se passei fome, a gente não lembra de ter
passado fome. O pai trabalhava,plantava coisinhas:batata-doce, mandioca.Para
nós, era assim. E agora ninguémplanta mais... Só vai mais a pinga. Nossa bebida
mesmo é o kagüíjy, a gente faz Agora aquela bebida de milho ninguém mais faz.
Perderam também. Não existia farinha de trigo. No passado nosso não tinha
farinha de trigo não. Mbojape (pão) era tudo com avaxi (milho). Para fazer pirão
a gente socava o milho, e depois coava com a peneira e depois fazia mbojape e
botava a quirerinha junto com a carne. Era assim. E agora tem que comprar
farinha de trigo, sem farinha de trigo, nãopassa mais...
I - Quando vocês lembram que começaram a passar fome? A sentir necessidade
de comida, ... quando o seu pai começou a falar que não tinha mais caça? ...
R e N - Depois que entraram os brancos. Aí diz que já. ... Primeiro eles vieram de
Portugal.Pessoas de Portugal...

Apesar da exigüidade das terras que ocupam, não tem sido fácil para
esses índios obter o reconhecimento formal das mesmas nem o seu uso exclusivo.
A rápida transformação da malha fundiária do litoral acarretou, a partir do início
dos anos 80, vários litígios envolvendo as comunidades indígenas. Os processos
judiciais envolvendo comunidades Guarani, em todos os estados, iniciam sua
história a partir da realização dos procedimentos para a regularização de suas
áreas. Relativa a terra Indígena Morro dos Cavalos a Ação de Reintegração de
Posse contra a FUNAI e a União Federal (processo 96 40 458 - 7), foi proposta
em 1996, após realização dos primeiro relatório de Identificação e Delimitação
(Portaria 973/PRES FUNAI 10/1993).
Em decorrência do modelo de desenvolvimento, os chamados
projetos sociais intensificam-se em toda a região sul-sudestede (saneamento,
abastecimento de água e energia, rodovias, etc.), incindindo ou afetando as áreas
de ocupação indígena e os seus recursos naturais. Os índios Guarani em Morro
dos Cavalos sofreram o que consideram como primeira invasão, a construção da
estrada, depois BR 101, gue cortou suas áreas de uso. O crescimento da ocupação
na região do entorno, a despeito da criação do Parque Estadual da Serra do
Tabuleiro em 1975, o que também foi um agente cerceador do uso tradicional
indígena, provocou a redução dos espaços ocupados pelos Guarani, desproporcional

24
às suas necessidades vitais. De um modo geral, para os Guarani, a demarcação
significa a retalhação de seu território e o seu próprio confinamento, porém
estão conscientes de que, no mundo atual (já desfigurado), esta é a única
alternativa22.
Nas regiões sul e sudeste do Brasil (do estado do Rio Grande do Sul
ao Espirito Santo) encontram-se, atualmente, cerca de 100 áreas ocupadas pelos
Mbya e Nhandéva, além de outros locais de parada provisória e/ou sistemática.
Na faixa litorânea desses estados estão cerca de 60 aldeias das quais somente 16
áreas guarani (a maioria no estado de São Paulo), somando um montante de 19.075
hectares, foram homologadas pela Presidência da República. No interior dos
estados do sul, dentre as 40 áreas onde vivem índios Guarani, as 10 Terras
Indígenas que foram homologadas são ocupadas predominantemente pelos índios
Kaingang {RS, SC, Pr) e Xokleng (SC), sendo que os Guarani ocupam pequenas
áreas dessas Terras. Apesar de diminutas, nem todas as Terras Guarani
homologadas estão livres e desimpedidas para seu uso exclusivo. (Mapa e Quadro
das aldeias Guarani nas regiões sul e sudeste seguem em anexo)23•

terra e território guarani


a terra indígena morro dos cavalos

A imposição de limites de áreas para os Guarani, remete à diferença


de natureza dos conceitos de Terra e de território indígena. De acordo com
Dominique Gallois "Terra' refere-se ao processo político-jurídico conduzido sob a
égide do Estado, enquanto 'território' remete à vivência, culturalmente variável,
da relação entre uma sociedade específica e sua base espacial" (Gallois, 1997)24•
Terra Indígena é uma categoria jurídica, definida pela Constituição
Federal e pelo Estatuto do Índio (Lei 6001 de dezembro de 1973), cabendo ao
Estado a sua demarcação e proteção. Ao assumir e concretizar essa função, o
Estado, através da FUNAI, via de regra, prioriza aspectos técnicos e
administrativos em detrimento das demandas e da participação efetiva das
comunidades indígenas no processo de definição de limites. O ato demarcatório,
em si, implica numa nova relação dos índios com a terra em que vivem e o

22
Ladeira - Necessidade de novas políticas para o reconhecimento do território Guarani, 1997.
23 em Ladeira - Espaço geográfico Guarani-mbya; significado, constituição e uso. Tese de
doutorado, FFLCH/USP, 2001
24
Gallois, Dominique - Apropriação e gestão de uma "terraH: a experiência Waãpi, 1997.

25
alijamento das comunidades, desse processo, contribui para inviabilizar a
proteção pretendida e definida pela legislação indigenista.
Trabalhar com a definição de limites das áreas Guarani é, ao mesmo
tempo, angustiante e instigante. As delimitações, via de regra, têm como
condicionante as ocupações do entorno, definidas por um modelo de
desenvolvimento e de conservação ambiental alheio aos Guarani, não abrangendo
todas as suas áreas de uso. Isso implica - além da exiguidade das áreas que
abrigam as comunidades Guarani e da consequente escassez de recursos naturais
- no comprometimento das suas categorias geográficas e ambientais, na medida
em que a configuração de seus espaços/limites passa a ser determinada por
critérios alheios e preestabelecidos por outros interesses e horizontes. Desse
modo, a demarcação preve um confinamento, pois impõe restrições à ocupação
indígena no que o grupo considera seu próprio território. Portanto, o conjunto de
terras demarcadas não corresponde, nem qualitativamente nem
quantitativamente ao conjunto de áreas ocupadas e pleiteadas por eles e que
condizem com sua noção de território25•
Nesse sentido, as condições definidoras de "terras tradicionalmente
ocupadas" segundo o artigo 231 da Constituição Federal, em seu parágrafo 1°,
ajustam-se às características do território Guarani em seu todo e não somente às
áreas atuais onde formam suas aldeias. A ocupação territorial Guarani se realiza
segundo um modo tradicional, através de dinâmicas próprias e seculares e da
manutenção da reciprocidade entre aldeias e famílias que habitam,
permanentemente, o mesmo espaço geográfico (Ladeira, 1997).
(Em linhas gerais poderíamos dizer que "tradicionalmente ocupado" é
o que constitui o território (mundo) Guarani como um todo. Já "áreas de uso
tradicional" são as áreas de mata circundantes utilizadas por duas ou mais aldeias
que formam um complexo social e econômico, à semelhança dos espaços vitais,
definidos por Susnik com guára. - p. 8 deste relatório).
Os Guarani-mbya conservam um território - que compreende partes
do Brasil, do Uruguai, da Argentina e do Paraguai - formado por incontáveis
pontos de passagem e parada, e por aldeias que se interagem através das
dinâmicas sociais e políticas e das redes de parentesco que implicam em
permanente mobilidade.
As Terras Guarani situam-se em diferentes regiões, não são
contínuas e estão entremeadas das mais variadas formas de ocupação humana.

25
Relatórios de Identificação das Áreas Guarani no RJ: Araponga, Parati Mirim, Bracui. Ladeira,
1993.

26
Portanto, quando dizemos que os Guarani mantém a configuração de um território
tradicional significa que, para eles, o conceito de território supera os limites
físicos das aldeias e trilhas e está associado a uma noção de mundo que implica na
redefinição constante das relações multiétnicas, no compartilhar e dividir
espaços, etc. O domínio sobre seu território, por sua vez, se afirma no fato de
que suas relações de reciprocidade não se encerram exclusivamente nem em suas
aldeias, nem em complexos geográficos contínuos e próximos. Elas ocorrem no
âmbito do mundo onde configuram seu território, envolvendo aldeias situadas em
regiões próximas e distantes, e exprimem o sentido da espacialidade Guarani
(Ladeira, 97). Assim, o território Guarani, enquanto um espaço de uso e
construção, não é fragmentado porque suas aldeias não sobrevivem isoladas umas
da outras. Através de seu modo de vida, os Guarani mantém uma dinâmica
sociocultural que se desenvolve em toda a sua dimensão territorial.
A configuração atual do território Guarani não é, pois, determinada
por limites geográficos mas pelas relações entre aldeias, ainda hoje estabelecidas
nas regiões tradicionais de ocupação. Porém, se não ocupam seu território de
forma contígua, este fato deve-se à expansão das sociedades nacionais e não à
perda de "tradição" desses índios com seu território. Ao contrário, os Guarani
conservam uma relação simbólica e prática com o que chamam de mundo original.
Conscientes da falta de opções, insistem em preservar suas pequenas áreas onde
foram confinados, as quais estão longe de seu ideal de existência. Sua presença
discreta, entretanto, passa a ser cada vez mais visível, na mesma proporção do
crescimento dos centros urbanos e da diminuição da Mata Atlântica (Ladeira 97).
Os intercâmbios sociais e econômicos entre os Guarani e os
movimentos migratórios em direção à costa atlântica são dinâmicas que lhes
permitem, ao mesmo tempo, preservar seu território e as regras de
reciprocidade. Nesse sentido, pode-se dizer que os movimentos dos Guarani se
operam num continuam em que as relações sociais antigas e novas se interagem,
integrando o passado e o futuro como condição do presente26•
Nas diversas regiões geográficas, as aldeias Guarani formam
complexos sociais, mantendo as regras de reciprocidade, alianças ou intervenções
políticas e religiosas, apoio mútuo nas questões fundiárias e de subsistência.
Assim como a proximidade geográfica das aldeias possibilita maiores
intercâmbios econômicos, políticos e sociais, também a ocupação Guarani nos
diversos complexos geográficos é determinada por relações de parentesco
anteriores e ou circunstanciais. Mesmo que as alianças políticas entre os grupos
familiares não sejam sempre harmoniosas, estrategicamente, os vínculos entre

26
Ladeira, 2001

27
aldeias são fundamentais, constituindo-se numa rede própria de amparo e de
proteção contra uma série de dificuldades advindas dos enfrentamentos com a
sociedade envolvente. Verifica-se assim que a aldeia Morro dos Cavalos se insere
num sistema formado por um conjunto de aldeias/ comunidades (Massiambu,
Cambirela, Mbiguaçu, Imarui, etc) que garantem a presença Guarani na região,
agindo como suportes da vida cultural e social.
Os Guarani ocupam e necessitam conservar, de modo tradicional,
uma extensão territorial sobre a qual não detêm o uso exclusivo. Desse modo,
pelo próprio fato de não deterem o uso e a posse exclusiva de todo o território
que ocupam, torna-se inviável, para eles, manterem suas aldeias e seus usos e
práticas em lugares fixos, alheios à dinâmica e ao modelo da ocupação envolvente
que também não são estáticos. Na última década, as demandas, por parte dos
Guarani, para demarcação de áreas redescobertas ou retomadas (antigas aldeias
ou acampamentos), se acentuaram, refletindo o empenho em assegurar, diante
das condições cada vez mais adversas, a base territorial de sustentação de sua
sociedade. Isto indica, ainda, como a indisponibilidade de terras afeta o modo de
viver e gerenciar sua espacialidade.
Se os Guarani estão cientes da impossibilidade de deterem a posse
e o uso exclusivo de toda a extensão territorial onde situam suas aldeias,
continuam privilegiando algumas características físicas (que fazem parte também
de seu acervo simbólico) para formarem aldeias e exercerem seu modo de vida.
Desse modo, o espaço físico das áreas onde vivem ou procuram viver deve conter
as formas e os recortes naturais, incluindo as matas e as nascentes dos rios que
as banham, sendo esta a configuração ideal na definição dos locais de uso,
independentemente das demarcações. No processo demarcatório é, pois,
necessário assegurar áreas que contenham elementos da flora, fauna e
topológicos que façam parte de seu repertório cultural, envolvendo também
aspectos míticos e simbólicos27•
Apesar da dificuldade de se eleger/estabelecer limites, os critérios
citados acima prevaleceram na definição da Terra Indígena Morro dos Cavalos.
Ao critério ambiental somou-se o do uso atual dessas áreas, segundo os moldes e
padrões culturais Guarani. Em maior ou menor grau, proporcionalmente aos
fatores de pressão externa, toda a area pleiteada para compor a Terra Indígena
Morro dos Cavalos é atualmente ocupada pelos Guarani, segundo seus usos e
tradições.

27
Relatórios de Identificação das Áreas Guarani no RJ: Araponga, Parati Mirim, Bracui. Ladeira,
1993.

28
Em resumo:
- O território ocupado pelos Guarani-mbya compreende regiões de
vários Estados Nacionais (Brasil, Uruguai, Paraguai, Argentina) e, como tal,
diferentes contextos regionais, econômicos e ambientais e instâncias diversas de
poder, políticas agrárias e legislações fundiárias específicas.
- É um território geográfico amplo, não contínuo, compartilhado por
distintas sociedades e conservado através do intercâmbio, da manutenção e
formação de aldeias em locais estratégicos, com referenciais simbólicos e
práticos. A ocupação das aldeias e a apreensão de um amplo território acontece
através das dinâmicas sociais e políticas e de movimentos migratórios.
- As áreas Guarani são pequenas, não contém porções contínuas
suficientes de mata para seu uso exclusivo e suas delimitações são definidas em
função da ocupação do entorno e do modelo dessa ocupação.
- As atividades de manejo e os intercâmbios de espécies naturais e
os culturais podem extrapolar os limites das áreas e acontecem no âmbito de
aldeias situadas num mesmo complexo geográfico / ambiental e mesmo entre
aldeias localizadas em regiões distintas e distantes28•

28
Em Ladeira, 1997 e 2002.

29
TERCEIRA PARTE - ATIVIDADES PRODUTIVAS

modo de vida
sazonalidade - agricultura e caça

modo de vida

Os Guarani buscam identificar os locais onde formam seus


assentamentos familiares (traduzidos genericamente por aldeias) com o conceito
de tekoa. Teko segundo Montoya29 significa "modo de ser, modo de estar,
sistema, lei, cultura, norma, hábito, comportamento, costume". Tekoa seria, pois,
o lugar onde existem as condições de se exercer o "modo de ser" Guarani.
Podemos qualificar o tekoa como o lugar que reúne condições físicas (geográficas
e ecológicas) e estratégicas que permitem compor, a partir de uma família
extensa com chefia espiritual própria, um espaço político-social fundamentado na
religião e na agricultura de subsistência. Além de lugar de produção de cultura, "o
tekoha significa e produz ao mesmo tempo relações econômicas, sociais e
organizaçãopolítico-religiosa essenciais para a vida guarani... Ainda que pareça um
paralogismo tem-se que admitir que sem tekoha não há teko"3º. Para que se
desenvolvam relações de reciprocidade entre os diversos tekoa Guarani é
preciso, pois, que estes, em seu conjunto, apresentem certas constantes
ambientais que lhes permitam exercer seu "modo de ser" e aplicar suas regras
sociais.
Apesar das dificuldades atuais, os Guarani têm o modelo do tekoa
como referencial de saude e prosperidade e procuram recriar, nos lugares que
ocupam, as suas condições espirituais e características físicas. Ultimamente, a
escolha de áreas ou limites apropriados ao seu modo de ser e a solicitação de seu
reconhecimento formal, tem acontecido articuladamente, pois a perda de áreas
de mata e a descaracterização dos antigos tekoa, em razão do crescimento
urbano, levou-os à adotar novas formas/tentativas de atuar junto aos poderes
públicos para garantirem seus espaços. Esta forma de reivindicar a conservação
de áreas para assegurar a existência de seus tekoa está explícita no próprio
conteúdo da carta da comunidade Guarani de Morro dos Cavalos, às autoridades
de governo.

29
Montoya - Tesoro de la Lengua Guarani, 1639.
30
Meliá,B - A terra sem mal dos guarani, 1987.

30
"(. .. )Tudo era livre e hoje está tudo sendo proibido para nós. Para fazer
roça, como antigamente, nós já não podemos. Mas pelos menos esse pedaço de terra que
estamos querendo demarcar tem que ser reconhecido, porque se tirarem de nós até esse
pedacinho, não teremos mais nada. {. .. ) Queremos a garantia da terra para viver nossa
cultura com liberdade, cultivar nossa cultura, ensinar nossos filhos e nossos netos.
Porque hoje em dia, com a falta de uma terra verdadeira para nós, não podemos viver
nossa vida e nossa cultura (nhande reko) completamente. (Carta da comunidade às
autoridades, constante da apresentação deste relatório).

As drásticas e rápidas mudanças no cenário ambiental e fundiário


onde se insere a aldeia Morro dos Cavalos, provocou alterações profundas, em
pouco espaço de tempo, no modo de vida de alguns de seus moradores vivos mais
antigos, de uma situação de autonomia econômica (como se verifica em seus
relatos) a uma situação de escassez e dependência de outros modelos. Ainda
assim, o modo de vida exercido até trinta nos atrás é a referência para sua
análise das condições atuais vida da comunidade como um todo, como se observa
nos trechos de conversa realizada em Morro dos Cavalos, em novembro de 200131,
já citados e a seguir.

I - Maria Inês ladeira


R - Rosely (esposa de Milton Moreira cacique de Mbiguaçu, filha de Alcindo Moreira)
N - Nadir (irmã de Milton, filha de Julio Moreira +)

- um pouco da cultura material (casa, roupas, artefatos)

I - E naquele tempo a casa, vocês faziam a casa com barro ou só com o pau?
R e N - Só o com barro também, antigo é com o barro. Nossa etnia, Paim Xiripa só com
barro. E agora que esquecemos tudo, e mora assim em casinha de madeira. E corta(va) a
madeirinhae enfia, faz(ia) a rodinha, e está bom para nós.

Em outra ocasião. Nadir comentou gue o sonho de seu pai era viver
numa casa de tábua e telha, e que morreu sem poder realizá-lo, morando sempre
em casa de índio. Rosa Bott. em seu relatório de 1975, faz um descrição
detalhada da casa da família de Julio Moreira (quando suas filhas já eram
adultas): "(...) O tipo de construção é de troncos de madeira cravados no chão,
com barrotes laterais, por dentro e por fora, amarrados com cipós, totalmente
coberta por palha de coqueiro, tanto na cobertura como nas paredes laterais. O
chão é de terra batida, plano.(...)". Nadir, que foi casada com branco, viveu em
casas de outros tipos de construção. Mesmo hoje. na aldeia de Morro dos Cavalos,

31
Nesta data, Nadir estva com 51 e Roseli com 45 anos de idade.

31
sua casa é de tábua e o telhado de zinco e piso de construída pela Porém,
disse que seu sonho era viver novamente numa casa barreada e de palha, pelo
conforto e onde não sentiria tanto calor ... alega, infelizmente, não ter homens na
família para fazer para ela uma casa como antigamente.

I - A roupa, vocês usavam a roupa do juruá?


R e N - Não, a roupa nossa, tem ainda nossa roupa.... , como é o nome?
(...) É xiripá, igual aquilo que o gaúcho usava. Esse aí é nosso xiripá. Só usava aquele. Por
isso que o gaúcho contava que eles usam mais xiripá. ( ..) Ninguém usava pelado mesmo,
ninguém.
I - E as mulheres usavam como?
R e N - Saia, assim aberta. (. . .)

I - Naquele tempo seus pais já faziam balaio para vender?


R e N - Não, acho que tempo de antigo, ninguém fez ainda balaio. Faz balaio, assim para
puxar o milho, para nós usar só, faz peneira.
I - E fazia também a panela de barro?
R e N - Fazia tudo de barro, fazia daquele barro azul, vermelho, assim, o barro vermelho,
assim o Guarani chama nhéum o barro vermelho, tem o azul também.
I - Esse usava para fazer panela?
R e N - É usava para panela e para o prato também.
I - E os de porongo? Yakua.
R e N - Yakua usava para fazer concha, para tirar ca/dinho.

Os artefatos de uso (doméstico, ritual, corporal) não se confundem


com os produzidos para a venda. Mas o comércio do artesanato é uma atividade
que foi incorporada pelos Guarani e implica em várias etapas de trabalho. O
produto é um bem que pertence à família (família nuclear) em todos os seus
aspectos - materiais, criação (autoria), valor - sendo de responsabilidade da
mesma o desempenho adequado em todo o processo de realização - coleta e corte
de matéria prima na época certa (observando o calendário lunar}, qualidade do
material (natural e artificial) e da confecção, guarda, preço e venda. As tarefas,
da produção à venda, são distribuídas entre os membros da família, segundo
critérios de idade, sexo e aptidão. Esta atividade também se insere na dinâmica
de troca e reciprocidade entre famílas. Até o momento, os Guarani mantém a
autonomia e controle da mesma, o que garantiu a sua inserção e incorporação no
conjunto de suas práticas tradicionais. É uma atividade que se intensificou
proporcionalmente à necessidade de aquisição de alimentos e outros bens
advinda da escassez de recursos naturais e do contato com a população
envolvente. As intervenções por parte das instituições de apoio têm se dado, em

32
algumas comunidades, na facilitação (benvinda) do escoamento e venda de
produtos diversificados. Desde que não afetem o sistema de produção do
artesanato, o controle e "gestão" da atividade permanece no conjunto das
práticas econômicas segundo os moldes tradicionais Guarani. Caso contrário, em
que os apoios tendem a desestruturar o sistema Guarani vigente - solicitação de
modelos padronizados em grande escala, imposição de datas rígidas para a
compra, vendas em consignação, delegar representante(s) para intermediar em
uma ou mais comunidades, fomento à formação de associação específica, etc - ou
a reação dos Guarani frusta os objetivos alheios pretendidos, ou corre-se o risco
de desestruturar na comunidade, a atividade em si.
A produção e venda de artesanto é uma atividade desenvolvida com
intensidade nas comunidades Guarani situadas na beira da rodovia BR 101 (assim
como na Rio-Santos). A comunidade Guarani de Morro dos Cavalos possui uma
casa para venda à beira da BR 101, construída pela .

- dos alimentos nativos

R e N - Peguaó (Referem-se a grande quantidade dessa planta que existe no morro


defronte ao Morro dos Cavalos - Yryã mboae porã) é a nossa panelinha. Se a gente quer
tomar água é com aquele também. Nós, quando a gente viaja, faz uma caçada longe, se
quer tomar água, faz igualzinho uma canequinha.
R e N - (Quando tem peguaó) a terra é boa para plantar, é boa mesmo para plantar, para
plantar melancia, é bom mesmo melancia.
I - Seu pai plantava para lá? (no morro defronte ao Morro dos Cavalos).
R - Plantava. Não sei se é a mãe do Hilário que também plantava ....
I - E fruta, tinha muita fruta então?
Re N-Nomato tem.
I - Aí quando chegou laranja ... e banana tinha também?
R e N - É, caqui, laranja, também diz que é tudo veneno, para nós era veneno.
R e N - Jaca, agora que a gente conheceu.
I - Naquele tempo não?
R e N - Ninguém conheceu. Que nós conhecemos mais a fruta, é a jabuticaba, guabiroba,
a gente conhecia já.
R e N - Como é que é? araça, palmeira, vapitã... Nosso mel, nós socava um vapitã no pilão.
Nosso suco é aquele bem docinho.
R e N - Bem docinho, vapitã socado no pilão, e tomava o caldinho. E agora esses nossos
pequenos que não conhece como é que eram as coisas.
R e N - Banana a gente já conhecia depois que as pessoas trouxeram.
I - Mas vocês mesmo não comiam?

33
R e N - Não só a banana é .... guaimbé, nossa banana. Nossa banana de antigo mesmo,
nossa banana. Nossa banana é aquele.
R e N - Também, guaimbé a gente faz assado, e tem madura e também, só que a gente
não morde, porque faz igual pimenta. Não pode morder.
I - E como come?
R e N - Só chupar um pouquinho só, não mastiga. Chupa um pouquinho e engole inteiro,
não morde porque é igual pimenta, mais ruim que a pimenta, não sai mais da boca.
I - E aí não tinha banana, pacovâ , do juruá?
R e N - Não tinha. Daí a gente conheceu um pouco e a gente plantou.
I - E jaracatiá tinha aí?
R - Não sei, não vi esse ali, o teu irmão (Milton, irmão da Nadir) disse que viu para lá,
para lá tem bastante, ainda tem. Para lá ainda tem porque ninguém mexe pra lá.
I - E aí tinha erva-mate também?
R e N - Erva-mate já existia.
I - Aí vocês usavam ela?
R e N - Usava muito. E fumo também.
I - Vocês que plantavam?
R e N - É, a gente planta, mas já tinha, já.
I - Mas não comprava?
N - Ninguém comprava. A gente fazia uma foicinha e fazia fogo embaixo e aquecia em
cima. E depois de dois dias ele seca também. Aí espremia um pouco depois soltava o_ .
Tudo isso que a gente faz. (. . .)
I - E feijão, plantava?
N - Feijãosinho a gente planta.
I-Eoarroz?
N - O arroz não, comia feijão com a canjiquinha é só isso. Nosso arroz era a canjiquinha.
R - Fazia jopará, canjica com feijão.
N - Ninguém conhecia arroz, para nós não existia.
I- E o palmito tinha?
N - O palmito já tinha, a palmeira.
I-Eomel?
N - O mel a gente faz suco, misturado com a água. E derruba a palmeira, e bota em cima
do palmito para comer.
I - E não tinha medo das abelhas?
N - Eu tinha medo, mas o falecido pai não tinha. Os homens não tinham medo. Uma vez eu
era pequena, eu sei muito bem, o pai derrubava e nós ia se meter lá no meio. Oh, pra quê!
Aquele enxame veio em cima de nós tudo, ai, desesperada nós estávamos e o mato. _
se enrolava se enrolava, mas deu picada deu, até sair água dos olhos, tudo inchado.
I - Mas tem saudade daquele tempo?
R e N - A gente fica com saudade, mas fazer o que. Mas não dá para voltar, não tem mais
ninguém. Agora não dá mais para voltar.
R e N - Alguma coisa a gente continua, não esquece a raíz de uma pessoa não se esquece.

34
- da transmissão de costumes às crianças

R - O alimento, aquele que quer a gente mostra o alimento, mostra para elas. A gente
conta aqui é nossa comida, daí eles querem experimentar um pouco nossa comida, a gente
dá, as crianças nossas são curiosas, a gente ensina, por causa disso nossas crianças são
curiosas. Assim curioso de bandidão, eles não fazem isso aí. Mas eles são curiosos para
conhecer o passado nosso, como é que é a comida. só isso que eles querem aprender. E aí
não se esquecem também. Aí a gente tem que contar; depois a gente morre, e eles vão
contar de novo para os filhos o que aconteceu como os avôs, como os bisavôs contava para
nós. Ele vai contar de novo para as famílias deles.
R - E lá, quem pergunta mais estórias, mais passado, como é que foi o nosso passado? -
nasceu pelado mesmo, se não vestia nada - esse mais curioso é o guri, o menino que
pergunta para o pai dele: como será que nós nascemos, como é que nós dormia, usava
cobertor ou não, pertinho do fogo, se não se queimava - ele pergunta tudo para o pai dele.
Ele é curioso. Antigamente, a gente dormia perto do fogo. Não tinha cobertor, não tinha
nada.

I - Aí quando você ficou morando aqui, até 1986 -7. Daí é que foi para lá?
R - Nós fomos para o Rio Grande do Sul ainda, aí nós voltamos, aí a ela (a Nadir) morava
em Mbiguaçu. Casada.
I - Quando você casou você foi para lá?
N - Fui para lá sozinha, só eu meu marido, porque nem os filhos, não tinha ainda
Depois de um ano e seis meses, eu tive essa aí, todas as três nasceram lá.
I - Daí você voltou para cá.'
N - Daí eu voltei para cá.
R - Depois que o marido dela faleceu ela voltou para cá.
I - Mas em Mbiquaçu fazem uns 15 anos que estão lá.
R e N - 14 anos, está indo para 15 anos já.

I - Você lembra se quando você era criança, seu pai fazia nheemonqarai?
R - É, e meu vÔ, minha avó fazia opy. Não é igual agora. Eles dizem - vocês não se vira
igual íuruá - eles não falam, eles só pensam mais é neles. Porque eles rezam, faz
op_yzinho só pra eles. E aqueles que não querem entrar eles não briqam. Era assim o
passado do meu avô. E agora eles brigam, porque quem não entrou, porque você virou tudo
iuruá. Eles falam agora.
.. .. . .. ... .. . .. . .. .. . .. .. ... . .. . .. .. ... ..... . .. . .... ...

35
sazonalidade - agricultura e caça

sazonalidade

O ciclo das atividades (subsistência e rituais), envolvendo a


utilização e manejo dos elementos e seres da natureza define a dinâmica e o
desenho do tekoa, e, consequentemente, do próprio território, em razão dos
novos elos de reciprocidade que se estabelecem a cada ano. Este ciclo é definido
por dois tempos que equivalem a duas estações: ara pyau (tempos novos) e ara
yma, (tempos antigos). A esses tempos correspondem o calor (verão) e o frio
(inverno)32• Em ambos (ara pyau e ara yma) a lua Uaxy) se apresenta assim:
jaxy ray ou jaxy pyau - lua nova;
jaxy endy mbyte - lua crescente (''lua de brilho pela metade";
jaxy oua guaxu - lua cheia (quando a "lua está com a cara grande";
jaxy nha pytu - lua minguante ( "quando a lua já não vem na noite".

Em ara yma (inverno) as famílias devem ficar mais recolhidas, não


sair muito, dedicando-se às reformas e construção das casas.
No começo de ara yma também se pode pescar.
Quando é lua minguante, Uaxy nha pytu) em ara yma, é tempo de
fazer armadilha. A melhor época para a atividade de caça para consumo alimentar
vai da metade ao fim de ara yma, quando os animais estão fortes e grandes. No
final desta estação, interrompem a caça pois começa o período de acasalamento
dos animais e, depois, da procriação.
No final de ara yma é bom começar a preparar a terra para o plantio:
queimar e derrubar pode ser feito em qualquer lua.

No início de ara pyau (verão /chuvas) começa o tempo do plantio. Na


primeira lua minguante dessa estação a terra deve estar preparada para os
primeiros plantios do milho tradicional (avaxi etei- milho autêntico).
No começo de ara pyau, na primeira lua nova Uaxy ray), já não se
pode caçar, mas já começa o tempo da pesca.
A colheita das diversas mudas ou das sementes, para um novo
plantio, deve ser feita na lua minguante Uaxy nha pytu).
Em ara pyau(verão), quando chegam as tempestades fortes, realizam
o nheemongarai, ritual de atribuição dos nomes-almas às crianças, revelados

32
Maior detalhamento do assunto se encontro. em Ladeira - espo.ço geogrcifco Guaran-mbya;
significado, constituição e uso. FFLCH I VSP, 2001

36
pelos Nheeru ete (verdadeiros pais das almas) aos dirigentes espirituais. Esse
ritual, realizado na casa de rezas (opy) pode ser feito junto com o batismo (ou
benzimento) do milho (avaxí ete1) e do kaa (folhas de mate). Nessa estação do
calor e das chuvasa freqüência na casa de rezas aumenta.

O artesanato pode sempre ser feito, desde que se tenha material


preparado, porque na lua nova não pode cortar (taquara, cipós, paus). As casas
também podem ser construídas em qualquer tempo, ara yma e ara pyau,
respeitando-se as fases da luas não apropriadas para o corte de plantas e
madeiras.A durabilidade dos materiais dependeda fase lunar de seu corte.

agricultura

Para os Guarani,a importância da agricultura vai além dos aspectos


quantitativo e qualitativo da produção, que, embora figurem como a perspectiva,
podem oscilar a cada ano por diversas razões. O seu significado se encontra na
sua própria realização e no que isto implica: organização interna, reciprocidade,
intercâmbios de espécies, experimentos, rituais, renovação dos ciclos. Desse
modo, a agricultura faz parte de um sistema mais amplo que envolveaspectos da
organização social e princípios éticos e simbólicos fundamentados antes na
dinâmicatemporal de renovaçãodos ciclos, do que na quantidade e disponibilidade
de alimento para consumo.
De acordo com os padrões tradicionais Guarani, a família extensa é
composta pelo casal, filhos solteiros, filhas, genros e netos (comportando as
variantes decorrentes do contexto e da dinâmicaem que se insere o grupo local),
constituindo uma unidade de produção e consumo. Porém,apesar dos mutirões e
ajudas entre as famílias e dos serviços nas roças do sogro, as roças pertencem e
são de responsabilidade da família elementar. O relacionamento entre sogro e
genros pode sua influir na divisão das áreas de roças, do trabalho e nos sistemas
de reciprocidade e mobilidade
A organização dos espaços para a atividade agrícola, numa
comunidadecom mais de uma família extensa, dependeda composiçãodos grupos
familiares (famílias extensas e/ou nucleares) e de sua força de trabalho, o que
determina também o lugar das residências.Como, em geral, são feitas no entorno
dos núcleos residenciais, a localizaçãode áreas disponíveis para as roças pode,
por sua vez, influir na disposiçãodas residências dos grupos familiares. Quando
há disponibilidade, outras áreas são abertas ao longo dos caminhos da aldeia.
Também,é possívelobservar aspectos relativos à organizaçãoespacialdo tekoa, a

37
partir da distribuição das áreas de roças de acordo com as alianças e cisões
internas (em Ladeira, 2001).
Há algumas variáveis ou condicionantes às quais a comunidade se
adapta ou ajusta a atividade agrícola. Entre elas: oscilações climáticas regionais
que atrasam ou adiantam o início do plantio; características do solo; eleição de
áreas de roça baseados em critérios de organização espacial do tekoa dada a
composição social atual do grupo local; condicionamento dos locais de roça
decorrentes de características físicas e naturais do ambiente, localização dos
montes e nascentes; disponibilidade de terra, isto é, áreas suficientes e
apropriadas para a agricultura; presença de uma chefia espiritual que estimule a
prática dos rituais; grau de organização e coesão social interna; relações de
parentesco e grau de reciprocidade com outras aldeias em outras regiões que
facilitam os intercâmbios de sementes e mudas de cultivos tradicionais. Os
fatores externos, como as pressões do entorno, a proximidade dos moradores
não índios e da cidade prejudicam não só as práticas agrícolas como o exercício
das rezas e dos rituais (em Ladeira, 2001).
Apesar de aparentar uma desordem (aos nossos olhos) quanto à
disposição das residências e roças em Morro dos Cavalos, a organização desses
espaços seguia a lógica da organização familiar interna da aldeia. Na época dos
levantamentos de campo do GT (outubro/novembro/2001), já haviam realizado os
plantios principais (pequenas roças no entorno das casas), e a produtividade
dependia sobretudo da composição familiar e do local de residência. Apesar de
exporem suas dificuldades (má qualidade da terra para seus cultivos. poucas
áreas gue pudessem cultivar com liberdade, etc) foram plantadas os seguintes
cultivos tradicionais: .
Os cultivos tradicionais merecem um cuidado maior na observação
das regras e dos períodos de plantio e colheita porque, ao contrário dos outros
cultivos de variedades dos brancos, gue chamam de tupi, se interagem com outras
esferas no ciclo de reprodução e renovação da vida e sua produtividade é
condicionante da realização dos rituais. Não devem pois misturarem-se,
precisando ser plantados em locais e períodos diferentes.
O nheemongarai deve coincidir com a época dos "tempos novos" (ara
pyau), caracterizado pelos fortes temporais que ocorrem no verão. Assim, a
associação entre a colheita do milho e a cerimônia do seu "benzimento" e da
atribuição dos nomes-almas, nhemongarai, impõe o calendário agrícola e é fator
que define o tempo de permanência das famílias nas aldeias (Ladeira, 1992).
A realidade atual de confinamento e indisponibilidade de terra/mato
força os Guarani a adaptarem as áreas de ocupação atual ao modelo conceituai de

38
uma terra adequada, cujos parâmetros são suficientemente maleáveis (e só
suficientemente) para dar conta da realidade presente. Nesse sentido os
cultivares Guarani - agrícolas e frutíferas - são decisivos para a recriação e
composição dos espaços onde formam aldeias. Por outro lado, vemos que o
prestígio das lideranças religiosas, do potencial da força de trabalho também
interferem na estabilidade, no ânimo e na produtividade da vida (em
Ladeira,2001).
"Eu quero me apresentar, apresentar minha aldeia que é 5 ha de
terra e já vai fazer cinco anos que eu estou morando lá e não foi demarcada
ainda. E assim mesmo, eu tenho as sementes do Mbya Guarani, dos antigos, que os
meus avós deixaram e que até hoje eu tenho sempre, e não quero perder porque
não era para perder. A semente sempre tem que ter, porque o nosso Deus deixou
para nós lá no mato quando não tinha nenhum dos brancos. O Deus deixou nós no
mato, e também a semente deixou para nós. Então, não devemos perder a
semente que o Deus deu para nós. Nessa ferrinha pequenina, nós somos em nove
famílias com cinquenta e seis pessoas. A terra já não sobra mais nada para
plantar, mas assim mesmo qualquer pouquinho de terra, um pedacinho, nós
estamos plantando. Por isso que nós temos, eu quero ter semente dos Guarani:
'avaxi eteí, avaxi eteií, avaxi mitaim, avaxi juí e também manduii. kumandai.'
aqui, plantando e colhendo. Então, daqui para adiante pode ser que o Deus
ajudando, nós ganhamos mais um pedacinho de terra para poder plantar um
pouquinho mais, para poder sustentar os filhos que nós temos. Porque,
primeiramente, quando nós morávamos no mato, tinha reserva grande, então ali
nós plantávamos e vivíamossó naquilo.... tenho tudo aqui (refere-se às plantações)
e não posso perder, porque o Deus deixou nós no mato e deu também a semente
para nós plantarmos nessa terra que nós temos" (cacique de aldeia Massiambu-
Palhoca-SC,durante seminário realizado pelo CTI. em 1997). E Morro dos cavalos
em .....

caça

Embora sendo fonte de alimento, a caça não é prática corriqueira


entre os Guarani.Essa atividade envolveoutros significados práticos e simbólicos
que só terão continuidade com a sobrevivência das espécies. Fazem excursões
para caçar e armam os mundéusnas mesmas trilhas que percorrem para coleta
de ervas medicinais, matérias primas para o artesanato e frutos silvestres.
Abrem pequenos locais de acampamentonas matas, usadopor pequenos grupos ou
famílias, intercaladamente. Mesmo no período de caça são mantidos os

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resguardos, assim como comer a carne de algumas espécies é evitado em vários
momentos e fases da vida, respeitando-se as distinções alimentares relativas ao
sexo e à idade. De todo modo, só ingerem a carne bem cozida ou moqueada.
Algumas partes (banha, pele, unha) são usadas para o preparo de remédios
associados ou não à espécies vegetais.

''Âs vezes o jurua vai na aldeiapara proibir de caçar, de pescar. (. .. ) e


só poucas vezes caçamos. Quando caçamos os animais, temos que repartir com
todos e aproveitar tudo, não desperdiçar nada. Senão, o dono dos animais (. . .) não
dá mais a caça. Koxi (queixada},mbore (anta}, tem que dividir. Hoje as mulheres
e os homens brigam para dividir e, assim o dono não vai dar mais a caça.
Antigamente não havia briga por causa da caça. Repartiam na casa de rezas opy e
comiamcom pãozinho de avaxí etei (milhoguaram) Depoisguardavam os ossos na
cestinho e colocavam no altar (amba): As vezes o koxi chega perto da casa, se
oferecendo, é Nhanderu que oferece pois ele se entende com mbai, o dono dos
animais, e pede um ou dois para os índios. Hoje em dia quase não há mais, nem
tatu... parece que o dono (mbai) está escondendo. E, o jurua também está
assustando. Tatu, jaixa (paca), mbore (anta}, koxi (queixada}, todos têm um dono
(mbai). (. .. ) Eu vou contar o tempo certo para caçar os animais, pois para matar os
animais tem a época certa. A época certa para fazer mundeu, armadilha, caçar
para o alimento, é no meio de ara yma. (. ..) "A época melhor para caçar é de
maio em diante. Porque nessa época todos os bichinhos, os passarinhos já
procriaram, já cresceram os filhotinhos. É de maio até julho que é bom, antes
deles acasalarem de novo. Então é a melhor época. E quando os filhotes já
mamaram tudo, já estão crescidos. No mês de outubro, novembro até o final de
janeiro, procriam os filhotes. Nessa época, deixam os filhotinhos novos, deixam
na toca para buscar alimento, então se matar os pais, os filhotinhos também
acabam morrendo. Depois tem as palavras que os antigos falavam que a gente
deve pegar só quandoprecisa. Só quandoprecisa." (Líder religioso que viveu em
aldeias em Santa Catarina, no litoral do Paraná e, desde 1987, no Rio de Janeiro).

A atividade de caça, apesar de sua importância cultural, vem


diminuindo em virtude da diminuição da fauna. A função social de dividir o
alimento ficou comprometida, na aldeia de Morro dos Cavalos (e em outras), como
se observa no final deste trecho da conversa em Morro dos Cavalos.

I - ... e vocês também ia para o mato.' Vocês acompanhava às vezes?

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R e N - Claro que a gente anda no mato. Eu acompanhava muito o pai. As vezes a gente ia
dar uma olhada no mondéu. a gente vê assim mundéu caído e o tatuzinho, mas
agradecemos, é a festa! Se não está caído a gente já fica triste porque não caiu nada.
I - Então as meninas também iam ao mato?
R e N - As meninas vão, as crianças. Agora elas também querem ir. Mas agora a gente
fala só pra dar uma olhada, por causa da cobra. Naquela época, ninguém tem medo. Se
você vê um tigre na frente você vai.
I - E você chegou a ver bicho perigoso?
R e N - Não, na minha frente eu nunca vi. Só a mãe e o pai que contava. A cobra a gente
vê. Até agora a gente vê cobra.
I - Mas o seu pai via onça?
R- Ele via...
N - Ele via, já matou. Teve uma onça que comeu parente dele, parente da família do meu
pai. Ele foi caçar e a onça pegou.
I - E o que mais vocês viam no mato? Tinha anta?
R - Anta ninguém viu. Assim na minha vista nunca vi. Pacajá vi
N - Eu já estou velha mas nunca vi a paca. Eu vi quando eu era pequenininha, eu sei que é
de listra.
I - E koxi? (queixada)
R e N - koxi, eu acho que vi, mas depois de velha a gente não vê mais
I - Eu quero saber de quando vocês eram criança?
R e N - Eu já ví. O pai já matou, porque o pai era caçador, né.
I - Porque o koxi anda em bando?
R e N - Anda em bando, e diz que é muito perigoso. O bando vem alí e __ é igual ao
porco bravo. Quem é que vai chegar? A pessoa que quer matar esse bichos tem que botar
uma madeira alta para atirar neles. E disse que vem tudo em cima da gente, e diz que é
perigoso.
I - Então como é que faz?
R e N - Tem que fazer igual a uma mesa, alto, ali vai botando comida, quando o bicho vier
para comer, aí atira com uma flecha. Se tem uma espingarda atira. O antigo não tinha
espingarda, aí mata com uma flecha mesmo. Tem que ficar em cima porque se ficar em
baixo, ele morde, é muito bravo. (. .. ) tem que fazer armadilha. Eles colocam madeira e
fazem um buraquinho na terra e bota... eles falam que é uma armadilha poderosa.
R e N - É atravessava tudo (os animais). Mas daqui para lá já não tem mais passagem para
eles .... Lá para trás dizem que viram uma anta, mataram.
Menino - E tem onça também.
I - você já viu onça?
Menino - Eu vi pegada, quando eu ia lá para cortar lenha. Eu fui com meu parente. Era
grande eu vi pegada.
N - diz que ela espia a gente.
I - Quando vocês eram pequenas, lembra se quando matavam os bichinhos, tinha que
rezar na opy (casa de rezas Guarani)?

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R e N - Tinha que rezar. Se traz de longe, tinha que fazer igual turú... já avisava que
trouxe um bicho pra família. Já avisava.
I - Como é turú?
N - É igual, faz barulho, apita. É de chifre de boi mesmo, chifre de boi daqueles grandes.
Já vinha avisando que estava trazendo uma caça grande. E a família já fazia o fogo. E já
faz a mistura, e nós já estava sabendo que traz carne pra assar.
I - Quando caçava, quem trazia o bichinho levava primeiro na opy?
R - Primeiro na opy. Faz uma roda, alí, tem uma lua(?) que a gente faz um cantinho pro
bicho mesmo. Aí fica rodeando, no meio tinha o fogo. Aí fica esperando alí. Aí a pessoa
que traz o bicho grande já bota ali no meio. Aí fica rezando.
I - Quando é koxi, tem que esperar um tempo?
R e N - Tem que esperar um tempinho, agradecer o Deus, porque tem dono (dos animais).
Tem que agradecer o dono. Porque ele já deu, não quer dar muito, aí já conta o que
aconteceu ...
R e N - {...) Tem que tirar na bacia. Agora tem bacia, no antigo não. Tinha bacia de
barro ... Fazia bacia grande. Tem que tirar tudo na panela, antes tirava na panela tudo de
barro, e todo mundo tem que rezar. E cada um tira também no prato. Não era assim
dividido, cada um tira, assim que nem tiragosto. A pessoa que faz mistura tem fazer
bastante para dar pra comunidade. Antigo era assim. Agora não, agora cada um faz na
sua casa, esconde na panelinha, e parece que não comeu nada. Ele esconde num
cantinho__ . E antigo não, ele dividia com toda a comunidade.
I - E era tudo era do mesmo jeito, jaixa, mbore, koxi, levava para a opy?
R - Do mesmo jeito. Se tirar um peixe, era a mesma coisa dividia para todo mundo. Bota
assim num pane/ão e quem quer tirar tira dalí, faz sopinha. E agora a comunidade não faz
mais isso.
I - Sua mãe andava pelo meio do mato?
R - Não anda mais, porque ela está velha. Só quando era adulta e nova que faz aquele
mondépi, para pegar namba. Depois de grande não...

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Ql/ARTA PARTE - MEIO AMBIENTE

caracterização ambiental da terra indígena


áreas de uso e ocupação guarani

caracterização ambiental da terra indígena

O local tradicionalmente ocupado e utilizado pelos índios Guarani na


região do Morro dos Cavalos caracteriza-se presença de ambientes litorâneos. Ali
encontram-se agrupadas pequenas, porem significativas, porções de vários
ambientes típicos das proximidades do litoral atlântico, como serras, estuários,
restingas e manguezais, embora bastante alterados por uma ação de
transformação antrópica históricamente causada pela colonização não-indígena.
Devido às práticas seculares de extração de madeira, caça, e,
principalmente, pela adoção de um modelo de agricultura, que tem como prática a
remoção completa do substrato vegetal natural e sua substituição por uma ou
poucas espécies de plantas domesticadas, ou ainda, pela substituição da
vegetação original por espécies vegetais exóticas, destinadas à formação de
pastagens e bosques de espécies vegetais exóticas, podemos afirmar que a região
não se caracteriza pela presença de ambientes naturais originais. Além disso, a
construção de habitações de longa durabilidade e principalmente a ocorrência
muito próxima de estradas e rodovias pavimentadas e movimentadas agravou o
impacto sobre os ambientes naturais, acentuando, em muito, sua modificação.
Apesar disto, a região ainda apresenta uma cobertura vegetal significativa e
dispõe de uma série de recursos ambientais que são importantes para os índios
Guarani, que tradicionalmente ocupam esta região.
A estrutura geomorfológica da região tradicionalmente ocupada
pelos índios Guarani junto ao Morro dos Cavalos, se caracteriza pela presença de
pequenas porções de planície costeira, vales e morros da vertente atlântica da
Serra do Tabuleiro. Uma topografia bastante acidentada constitui a forma
dominante do relevo da região. Caracterizada pela presença de pequenas porções
de planície costeira, junto à orla marinha e principalmente ao longo da baixada
formada pelo estuário do rio Massiambu, e por uma seqüência crescente de
morros dispostos ao sul da Serra do Cambirela.
A vegetação atualmente encontrada na região se compõe de
remanescentes alterados de Restingas, Manguezais e de Floresta Ombrófila
Densa da Encosta Atlântica. Esta diversidade de fisionomias vegetacionais,

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apesar de não ser caracterizada por ecossistemas naturais, constituídos por
formações de vegetação original, apresenta uma significativa variedade de
espécies vegetais arbóreas, arbustivas e herbáceas.
Nestes ambientes de mangue, restinga e principalmente de mata,
ocorre uma fauna, remanescente daquela que ocorria na região antes das
modificações causadas nos ambientes pelos não-índios, que é, nos dias de hoje,
mais significativamente representada pelas espécies de aves típicas do litoral da
Região Sul do Brasil.

Relevo

A região apresenta um "mix" de paisagens típicas do litoral sul do


Brasil, composta por praias, costões, dunas, estuários de rios, planícies, brejos,
lagoas, morros e montanhas. Porem, a transformação causada pelos não-índios
contribuiu, imensamente, para uma alteração significativa destas paisagens.
Sendo responsável, principalmente, pela alteração da cobertura vegetal original.
Através da extração de espécies vegetais de interesse comercial, como foi o caso
das madeiras "de lei", da construção de habitações e de estradas. Porém, as
maiores alterações foram causadas para a realização de agricultura, pecuária e
de plantios de espécies vegetais herbáceas para pastagens e de espécies vegetais
arbóreas exóticas, principalmente espécies de pinheiros e eucaliptos.
Morfologicamente a região é basicamente constituída de planícies,
rampas e serras:
Planícies costeiras
Compreendem todo o conjunto de formas de relevo associadas aos
sedimentos, transportados e depositados pela ação do mar, dos ventos litorâneos,
das chuvas e dos rios. Na região, estas planícies ocorrem em largura variável ao
longo da costa, sendo frequentemente interrompidas pela presença de morros e
montanhas. Sendo significativamente maiores ao longo do estuário do rio
Massiambú.
Rampas
Caracterizadas por áreas de transição entre ambientes de planície e
de serras, são fruto de um longo processo de decomposição dos morros e
posterior sedimentação do material proveniente do intemperismo nos morros.
Sendo sua ocorrência bastante significativa na região.

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Serras
As serras da região são constituídas por uma sequência de morros e
montanhas dispostas de forma paralela à linha de costa. A característica geral
deste relevo é dada pela presença de maciços rochosos, resultados de processos
erosivos que atuaram sobre a grande escarpa da "serra do mar", característica de
toda região litorânea do sudeste brasileiro. É a forma de relevo predominante na
região.
Os morros ali presentes são provavelmente um resultado da
dissipação desta escarpa tendo, como testemunho desta decomposição, grandes
maciços cuja altitude chega a ultrapassar os 1.000 m, encontrados na vertente
leste da "Serra do Tabuleiro", que recebem o nome regional de "Serra do
Cambirela".
As serras, de uma forma geral, apresentam-se gradativamente mais
baixas em direção ao mar. Suas vertentes apresentam freqüentemente muitos
blocos de rochas residuais em superfície e formam profundos vales, onde se
localizam as planícies e rios maiores.
O "Morro dos Cavalos", nome pelo qual é conhecido o maciço onde se
encontra atualmente o maior número de moradias dos Guarani, é provavelmente
um desses remanescentes que apresenta altitudes modestas devido a
proximidade do oceano.

solos

Como acontece com as unidades de paisagem, provavelmente os solos


presentes nas áreas ocupadas pelos Guarani, são um mosaico dos solos típicos da
região. Segundo caracterização dos solos da região encontrada no Diagnóstico da
Dinâmica de Recursos Naturais do Parque Estadual da Serra do Tabulero -
FATMA/SC, estão ali presentes:

> Cambissoloá/ico, distrófico e eutrâfico. Cambisso/oshúmico á/ico


> Solos litólicos óticos e solos litólicos Húmicosálicos.
> Podzólicos vermelhoamareloálico-distrófico
> Solos aluviaisdistróficos e eatrâficos
> Areias quartzosas marinhas óticas e Areias quartzosas marinhas
hídromórfícas á/icas
> Areias quartzosas álicas
~ Solos hidromõrficos - Glei Solódico
~ Solos Orgânicosá/icos, distrâficos e eutróficos

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> Areias quartzosas hidromórficas eutróficas
:;.; ,. Solos podzo! hidromôrfico
~ Solos indiscriminados de mangues

Geologia

A Caracterização geológica da região foi também baseada na


caracterização realizada no Diagnóstico da Dinâmica de Recursos Naturais do
Parque Estadual da Serra do Tabulero - FATMA/SC, de onde destacamos:
"A heterogeneidade litológica da região do Morro dos Cavalos
possibilita a evolução de diferentes formas de relevo e processos erosivos. A
litologiageral da área é representada por um complexo ígneo ácido, intermediário
e metamórfico, associado a sedimentos quaternários depositados em ambientes
lacustre/paludiais, marinhos,eólicos, torrenciais, fluviais ou combinaçõesdestes".

Hidrografia

Existem diversos rios cujas águas correm através dos vales e


vertentes de morros da região. Destes, o maior e mais significativos é o Rio
Massiambu, formado pelos rios Massiambu Grande e Massiambu Pegueno. Além
deles, o rio Cambirela e o Rio do Brito, um pequeno curso d'água que desagua na
porção central da enseada do Brito, são muito importante para este estudo pois
se tratam de referenciais para os limites propostos pelos Guarani para a
identificação de suas terras. As informações de extenção dos rios e de sua área
de drenagem também foram obitidas na leitura do Diagnóstico da Dinâmica de
Recursos Naturais do Parque Estadual da Serra do Tabulero - FATMA/SC.

Rio Massiambu

Este rio, denominado de Massiambu após a confluência de seus dois


principais formadores (os rios Massiambu Grande e o Massiambu Pequeno)
apresenta uma peculiaridade em relação aos demais corpos d'água da região, pois
sua foz se dá numa região de baixada, bastante influenciada pelo regime de
marés, responsável pelo alagamento de uma extensa área na época das chuvas.
Após esta confluência, o rio Massiambu percorre mais 3 km para desembocar na
Baía Sul, e perfaz uma área de drenagem de cerca de 137 km2.
O Rio Massiambu Grande tem uma extensão de aproximadamente 10
km, enquanto o rio Massiambu Pequeno tem uma extensão menor, com cerca de

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7,8 km. Suas nascentes apresentam boas condições de preservação ambiental,
porém, ao longo de seu percurso existem atividades agrícolas e diversos
assentamentos de não-índios que afetam significativamente a qualidade de suas
águas.

Rio Cambire/a

O Rio Cambirela é um rio de pequeno porte que apresenta suas


nascentes próximas aos maiores picos da região e sua foz na Baía Sul. Sua
extensão é de apenas 6 km, porem sua importância é bastante significativa devido
às boas condições de preservação ambiental de sua bacia hidrográfica. Suas
águas, que correm entre um vale íngreme, são utilizadas para o abastecimento das
propriedades localizadas nas proximidades de sua foz.

Rio do Brito

O Rio do Brito, é um rio muito pequeno que corre num vale entre os morros
do Cambirela e o Morro dos Cavalos e desagua no meio da Enseada do Brito. Sua
extensão não ultrapassa 4 km. Porem, é um rio muito importante para este
estudo, pois é identificado pelos Guarani como o provável limite norte de sua
atual área de uso e ocupação.

Biomas

Os biornas, ou seja, as paisagens naturais, que caracterizam os ambientes


biofísicos e bióticos encontrados na região ocupada e utilizada pelos índios
Guarani próximo ao Morro dos Cavalos são:

Praias e Costões
Estas áreas recebem influência direta do mar e ocupam terrenos que
sofrem intensa ação solar e dos ventos, originando uma grande variedade de
ambientes como praias, dunas, costões, estuários de rios e lagoas. Caracterizados
pela escassez de nutrientes, alta concentração de sal marinho e a ação contínua
de ventos, dificultam a fixação de uma cobertura vegetal contínua. No entanto,
esta zona é rica em algas e invertebrados marinhos, proporcionando importante
aporte alimentício para um enorme grupo de animais, representando uma das
bases da cadeia trófico da região.

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Restinga
As restingas, assim como as zonas de marés, são principalmente um
efeito da ação marinha. Este bioma é geralmente coberto por uma vegetação
típica, também profundamente influenciada pelo oceano e por águas pluviais. Sua
cobertura vegetal é composta por uma vegetação herbácea, próximo ao oceano, e
arbustiva, sobretudo nas dunas, formando uma série de agrupamentos
vegetacionais de acordo com as diferentes condições locais. Ali, encontram-se
também campos litorâneos e uma vegetação típica de brejo.
A Baixada do rio Massiambu representa um dos exemplos mais
típicos de ocorrência de restinga do litoral catarinense.

Manguezal
Na região, este ecossistema está localizado às margens do rio
Massiambu, nas proximidades da ponte da BR 101. Naquela localidade ele aparece
como uma pequena mancha, que provavelmente seja remanescente de um mangue
de maiores proporções, que devia haver no local e que foi removido pela
transformação causada pela construção da estrada, pela instalação de
propriedades de veraneio e propriedades rurais, onde são realizadas atividades
agropecuárias.

Floresta Ombrófila Densa


Este é o bioma mais representativo da região. Caracterizado pela
presença de uma floresta típica, comumente conhecida por Mata Atlântica, que
recobre os terrenos não inundáveis, geralmente constituídos por morros, serras e
montanhas. As características marcantes desta fisionomia fitogeográfica são
uma cobertura vegetal contínua, dividida em estratos arbóreos e herbáceas,
completados por vegetais de hábito característico, como as lianas (cipós), além de
uma grande diversidade de epífitas, musgos e líquens. Esta floresta pode ser
interpretada como sendo fruto das chuvas, abundantes o ano todo.

Vegetação

O local ocupado pelos Guarani na região do Morro dos Cavalos


apresenta, segundo o diagnóstico elaborado pela caracterização do Parque
Estadual da Serra do Tabuleiro, as seguintes tipologias vegetacionais:

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• Formação pioneira Marinha (Restingas e Dunas);
• Formação pioneira Fluviomarinha (Manguezal);
• Floresta Ombrófila Densa da Encosta Atlântica (Mata Atlântica):

A formação pioneira Marinha (Restinga, Dunas)

A expressão "formação pioneira" é utilizada para denominar o tipo de


cobertura vegetal constituída de elementos colonizadores de ambientes novos.
Estas espécies pioneiras preparam o meio para que outras espécies mais
exigentes possam ocupá-lo na escala sucessional.
As formações pioneiras são classificadas em relação ao ambiente que
ocupam, conforme a estrutura e fisionomia em: arbórea, arbustiva e herbácea.
A vegetação de praia ocupa a faixa logo após a zona das marés, e é
constituída por espécies colonizadoras, muito resistentes ao vento e à alta
salinidade.
Nos estuários encontramos um mosaico de tipos de vegetação
associados à diferentes condições de solo e relevo. A variação de altitude,
umidade, teor de matéria orgânica, influência dos ventos e insolação, condicionam
a ocorrência de tipos de vegetação dispostas em faixas, alternando vegetação de
brejo e de solo seco, apresentando uma diversidade biológica muito rica.
A vegetação de restinga compreende as plantas herbáceas e
arbustivas. As ervas localizam-se em áreas de dunas presentes na Baixada do Rio
Massiambu. Na região, a vegetação de restinga está localizada na porção leste do
Maciço do Tabuleiro. Este conjunto representa uma das maiores áreas de
restinga do Estado de Santa Catarina.
As áreas mais úmidas, ou brejos, formam um ambiente muito
peculiar, estando na maioria do tempo inundadas, e nas estiagens totalmente
secas. Devido ao excesso de água e baixo pH, estas áreas são muito restritivas à
colonização por seres vivos. Apenas espécies muito resistentes a estas condições
ali sobrevivem, caracterizando ambientes pobres em biodiversidade.
A vegetação arbustiva aparece nas planícies secas. Aí se sobressaem,
principalmente Schinus terebenthifo/ius (aroeira-vermelha), Lithraea brasiliensls
(Pau-de-bugre), Dodonea viscosa (vassoura-vermelha), Rapanea parvifolia
(capororoca) e Campomanesia littoralis (guabirobeira-da-praia). Junto a esta
vegetação arbustiva há um estrato denso de ervas composto principalmente pela
presença de Rumohra adiantiforme e Polypodium /epidopteris, espécies de
samambaias. Já nas dunas, além da vegetação arbustiva mencionada acima,
ocorrem também Cordia verbenacea (baleeira) e Paullinia trigomo (timbó). Nesta

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vegetação é comum a ocorrência de epífitos, como: laelia purpurata (bainha-de-
faca), Brassavo/a perrinii (cebolinha-da-praia) e Catleya intermedia (orelha-de-
mula) (Diagnóstico da Dinâmica de Recursos Naturais do Parque Estadual da
Serra do Tabulero - FATMA/SC).

A formação pioneira Flúvio-marinha (Manguezal)

A vegetação de Manguezal é uma formação típica da Zona Inter-


tropical que desenvolve-se na desembocadura de rios, ao longo da faixa litorânea.
Ocupa terrenos lodosos com teor salino elevado e baixa oxigenação. As espécies
vegetais que colonizam os manguezais possuem estruturas especializadas como
pneumatóforos e raízes do tipo escoras, adaptações necessárias à sobrevivência
nestes ambientes. Uma das espécies predominantes nos manguezais do sul do
Brasil é a Avicennía schaueríana (siriúba), que ocupa as baixadas lodosas
inundadas pela maré. Nos locais de águas mais profundas são encontradas mais
duas espécies: Spartína densíf/ora e S. a/terniflora, denominadas capim praturá.
Outras espécies características e importantes na fisionomia dos Manguezais e
que ocupam áreas mais afastadas do mar são a Rhízophora mangle, popularmente
conhecida como mangue-vermelho, e a laguncularia racemosa, popularmente
conhecida como mangue-branco (Diagnóstico da Dinâmica de Recursos Naturais
do Parque Estadual da Serra do Tabulero - f ATMA/SC).

A Floresta Ombrófila Densa da Encosta Atlântica

Essa região fitoecológica se caracteriza por chuvas bem distribuídas


por todo o ano (ombrófila = amiga das chuvas) e por uma cobertura contínua
(densa), formando um dossel que tem nas espécies arbóreas a forma biológica
mais expressiva. Porem, por baixo das espécies arbóreas dominantes
(macrofanerófitas) ocorrem outras espécies vegetais arbustivas
(mesofanerófitas e nanofanerófitas) e um significativo estrato herbáceo. Além
disso, ali ocorre uma abundância de lianas (cipós), samambaias, xaxins e uma
grande diversidade de espécies epífitas (orquídeas e bromélias).
Atualmente na região, a Floresta Onbrófila se constitui basicamente
de remanescentes florestais, que, apesar disso, ainda apresenta alta diversidade
de espécies vegetais características dos ambientes florestais mais
representativos de toda a região sul do Brasil.

50
Nas áreas, onde o relevo se apresenta mais suave, encontramos uma
formação arbórea de até 30 metros de altura. Árvores de copas altas e densas
formam o estrato superior da floresta.
O estrato logo abaixo, denominado de sub-bosque, apresenta árvores
com até 15 metros de altura. Uma espécie muito característica deste estrato é a
Juçara (Euterpe edulis), palmeira da qual se extrai o palmito.
Logo abaixo deste, encontramos um estrato mais arbustivo, com
pouca diversidade, mas, às vezes extremamente denso com espécies adaptadas às
condições de sombreamento.
No estrato herbáceo há um grande número de representantes das
famílias orquidáceas, aráceas, bromeliáceas, cactáceas e pteridófitas.
As plantas epífitas são muito abundantes em toda a área coberta por
floresta.
A Floresta Ombrófila Densa é subdividida em formações, que
refletem fisionomias diferentes, de acordo com as variações de altitude. Na
região habitada e ocupada pelos Guarani podemos encontrar:

Floresta Ombrófila Densa das Terras Baixas

Abrange as florestas das planícies costeiras, situadas em altitudes


desde o nível do mar a até aproximadamente 30m, que se estendem ao longo da
estrada estadual e da federal (BR 101) na baixada do rio Massiambu. Ali se
desenvolveu uma vegetação arbórea bastante uniforme e bastante característica,
devido às limitações provocadas pelo excesso de água no solo, uma vez que nessa
região o lençol freático é bastante superficial.
Este tipo vegetacional apresenta um estrato médio pouco expressivo,
onde ocorrem, principalmente, Posoqueria Iatitolia (Baga-de-macaco), Garcinia
gardneriana (Bacupari). No estrato das nanofanerófitas destacam-se algumas
espécies de Psychotria spp. e a Geonoma schottiana. Ali, geralmente ocorre a
presença de bromélias semi-terrestres, que crescem sobre as raízes das árvores.
Entre estas destacam-se Nidularium inocentiin var. paxianum, N. procerum e
Canístrum /indeníi. Este tipo de floresta é geralmente pobre em lianas, porém rico
em epífitos, principalmente da família das bromeliáceas (Diagnóstico da Dinâmica
de Recursos Naturais do Parque Estadual da Serra do Tabulero - FATMA/SC).

Floresta Ombrófila Densa Submontana

51
A maior parte deste tipo florestal está situada entre 30 e 400
metros de altitude. Devido aos solos profundos e à declividade suave as encostas,
esta é a tipologia florestal com maior diversidade dentro da Floresta Ombrófila
Densa.
Esta formação tem como espécies dominantes em seu dossel, a
Ocotea catharinensis (Canela-preta), a Aspidosperma olivaceum (Peroba) e a
Copaifera trapezifo/ia {pau-óleo). Na região devem ser particularmente
destacadas dentro desta formação as presenças de Mani/kara subsericea
(maçaranduba) e de 5/oanea guianensis (Laranjeira- do-mato), que preferem solos
muito úmidos e de baixa declividade (Diagnóstico da Dinâmica de Recursos
Naturais do Parque Estadual da Serra do Tabulero - FATMA/SC).

Floresta Ombrófi/a Densa Montano

Situada entre 400 e 1000 metros de altitude esta floresta tem,


entre as suas espécies dominantes, muita semelhança com a anterior. No entanto,
apresenta a ocorrência de algumas espécies típicas de maior altitude, como é o
caso de Ocotea pretiosa (canela-sassafrás), de Piptocarpha angustifolia
(vassourão-branco) e Vernonia discolor (vassourão-preto), C!ethra Seabra (carne-
de-vaca), típicas de altitudes superiores a 400 metros. Estas espécies podem
formar associações onde se tornam as espécies dominantes, formando uma
floresta típica das montanhas, onde geralmente ocorre Podocarpus sellowil
(pinheiro-bravo) e õrimys brasiliensis (casca-d'anta) (Diagnóstico da Dinâmica de
Recursos Naturais do Parque Estadual da Serra do Tabulero - FATMA/SC).

Tipos de vegetação encontradas na área, segundo classificação dos Guarani:

Ka "a guy ete - mato verdadeiro, mato alto, mato grande;


Ka "a guy "i - mato pequeno, mato baixo;
Ka "a guy karapé - mato baixo;
Kapi "i - capim;
Jai- mato sujo (Jai' ro güe - vegetais do mato);

Fauna

A caracterização da fauna na região está aqui associada à sua


ocorrência nos ecossistemas florestais, enquanto seções ecológicas, cuja
referência utilizada foi a cobertura vegetacional "origincl". Porém, sabe-se que

52
esta cobertura foi já bastante alterada na área em questão e, por isso, é muito
provável que a ocorrência atual da fauna esteja bem mais restrita e que muitas
das espécies relatadas não ocorram nas proximidades da BR 101 e sim no alto dos
morros maiores e em ambientes mais distantes.

A redução e fragmentação de alguns ambientes naturais, sobretudo


da restinga, das florestas de terras baixas e dos manguezais, onde o impacto
antrópico é mais intenso, causou a diminuição dos habitats das espécies animais
nativas. Impedindo sua permanência, e, até mesmo, podendo comprometer sua
sobrevivência no local.
Mesmo a Floresta Ombrófila Densa, que é a formação vegetal com
mais representatividade na região, nem por isso escapou da exploração e de uma
ocupação desordenada por parte dos não-índios, o que promoveu uma
fragmentação dos ambientes naturais, ocorrida na região em questão
principalmente pela construção da BR 101, afetando profundamente a fauna a ela
associada.
Nos ambientes transformados pelos não-índios, para a realização de
agricultura, pecuária e de plantios de Euca/yptus spp e de Pinus spp, houve uma
grande alteração na cobertura vegetal e portanto nos biomas, modificando
significativamente a fauna local. Exemplo típico de impacto negativo sobre a
fauna é a disseminação espontânea do pinus em áreas de restinga e em áreas
abertas na floresta, uma vez que se trata de uma espécie bastante agressiva e aí
encontra condições favoráveis para sua proliferação.
As estradas que cortam a região, principalmente a BR 101 que em
breve será duplicada, além de fragmentar os ecossistemas faunísticos, provocam
grande impacto na fauna, pelos constantes atropelamentos e principalmente pelo
favorecimento do acesso a novas áreas. A duplicação da BR 101 e a abertura de
novos pontos comerciais ao longo desta e de novas propriedades rurais e de
veraneio, propiciadas pelo acesso melhor e mais rápido, também põem em riscos
os ecossistemas da região e afetam diretamente a fauna, pois acabam reduzindo
e fragmentando seus habitats.
Por outro lado, a existência de ambientes alterados na região,
benefi eia uma fauna particular, que se beneficia com as transformações
ambientais causadas pelos não-índios. Várias aves - como o suiriri Tyrannus
melancholicus, o bem-te-vi Pitangus sulphuratus, bentevizinho-penacho-vermelho
Myíozetetes simttts e guaracava-de-barriga-amarela Elaenia flavogaster - se
arranjam bem em ambientes alterados, o que acontece exemplarmente com o
urubu-de-cabeça-preta Coragyps atratus. Estas espécies são atualmente

53
encontradas com frequência na região (Diagnóstico da Dinâmica de Recursos
Naturais do Parque Estadual da Serra do Tabulero - FATMA/SC).

A fauna que provavelmente ocorre na região

As espécies de vertebrados que ocorrem na região provavelmente


são o que restou de uma rica fauna que ali vivia, antes das grandes
transformações ambientais causadas pelos não-índios. A seguir apresentamos
algumas tabelas contendo listas de animais vertebrados amniota (répteis, aves e
mamíferos) que provavelmente ocorrem na região:

AVES

Espécies Nomes populares


1 Inhambus
2 Jacus
3 Mutuns
4 Perdizes e codornas
5 Biquatinga
6 Biquá-una
7 socós
8 qarças
9 saracuras
10 patos e marrecos
11 tico-ticos
12 urubu-preto
13 quero-quero
14 gavião-tesoura
. 15 qaviões
16 falcões
17 saracura-três-potes
18 pombas
20 juritis
21 rolinhas
22 guaras
23 oaoaoaios
24 periquitos
25 maitacas
26 anus
27 coruiinhcs
28 urutau

54
29 curiangos e bacuraus
30 beija-flores
31 martins-pescadores
32 a raça ris
33 tucanos
34 pica paus
35 chocas
36 arapaçus
37 tangarás
38 araponguinhas
39 bentevis
40 suiriris
41 tesourinha-do-campo
42 andorinhas
43 sabiás
44 tiês, saís, sairas e qaturamos
45 scnhcco-ozul
46 biqodinho
47 curiós
48 coleiras
49 gaivotas
50 narcejas
51 tricc-réis
52 maçaricos
53 batuíras
54 pernilonqos

MAMÍFEROS

Espécies nomes populares


1 gambá
2 morcegos
3 macaco-prego
4 buqios
5 ratos-do-mato
6 porco-espinho ou ouriço-cacheiro
7 capivara
8 paca
9 cutia
10 preguiça-de-três-dedos
11 tamanduá-bandeira
12 tatu
13 tatu-galinha
14 cachorro-do-mato-de-orelha-curta
15 quati

55
16 irara
17 lontra
18 gato-do-mato-pequeno
19 gato-maraca.iá
20 suçuarana.onça-parda
21 jaguarundi ou gato-mourisco
22 puma, suçuarana
23 onça-pintada, jaguar
24 anta ou tapir
25 queixada
26 caititu
27 veado-mateiro

REPTEIS

Espécies nomes populares


1 Lagartos
2 Calangos
3 Sucuri
4 Jibóia
5 corais-falsas
6 cobra-d'água
7 cobra-d'água
8 cobra-verde
9 Muçurana
10 Caninana
11 corais-verdadeiras
12 Jararaca
13 Cascavel
14 Jabuti
15 Tartarugas
16 Jacaré

Áreas de uso e ocupação guarani

A maioria dos núcleos residenciais dos Guarani se localiza na base


leste do Morro dos Cavalos, próxima da BR 101, e no morros ao sul do Morro do
Cambirela. Aglomeradas em assentamento precários, enquanto esperam a
definição da regularização de suas terras, suas casas, feitas de madeira e
cobertas com palha ou "eternit" estão, em questão de qualidade microclimática e
de habitabilidade, muito aquém das construções tradicionais guarani, feitas em
taipa e cobertas de palhas.

56
Os arredores das casas, os pátios, se encontram muito próximos uns
dos outros, o que não permite ou dificulta em muito o plantio de espécies
frutíferas e de plantas medicinais e de valor simbólico, muito valorizadas e
comuns nos assentamentos tradicionais, geralmente mais distantes uns dos outros
e completamente isolados dos não-índios.
As roças ali presentes são poucas e estão em estado muito
precário, não sendo suficientes para alimentar a população que ali vive. Nestas
roças encontramos basicamente algumas variedades de milho, mandioca, feijão e
banana. Isto provavelmente ocorre devido a baixa qualidade do solo nos quais os
Guarani estão sendo obrigados a plantar atualmente.
A área utilizada pelos Guarani nas proximidades do atual
assentamento se constitui num mosaico de ambientes onde eles coletam material
necessário para a reprodução de sua cultura material. Os ecossistemas por eles
usados se encontram nas áreas de planícies, como a baixada do rio Massiambu, e
nos morros circunvizinhos.
Na baixada do rio Massiambu, existem somente vestígios dos
ambientes naturais - como o manguezal, a restinga e a floresta de terras baixas -
que sofreram sérios impactos por parte dos não-índios e foram sendo
gradativamente substituídos por monoculturas, pastagens e pesqueiros em função
de apresentarem solo propício e condições geográficas ideais para o
desenvolvimento de tais atividades.
Nas praias, é notável o crescimento imobiliário que tem resultado no
conseqüente aumento do número de construções e no estabelecimento de
propriedades rurais e de veraneio, pois o grande valor cênico dos ambientes
litorâneos, sem dúvida, tem favorecido a crescente procura por terras, por parte
dos não-índios.
As serras são, portanto, os locais em que sobraram significativas
porções de ambientes naturais, onde os Guarani podem ainda encontrar locais
adequados para a realização de suas roças e de suas coletas para alimentação e
de materiais para construção e produção de utensílios domésticos e artesanato.
Para realizarmos a identificação os ambientes ocupados pelos
Guarani na região do Morro dos cavalos fizemos uma série de excursões em
conjunto com representantes da comunidade, para reconhecimento tanto da área
ocupada e visitada pelos índios, como das condições ambientais presentes na área
a ser identificada:

1. Caminhada até o alto do Morro dos Cavalos

57
(•

Nesta caminhada, feita a partir da margem da BR 101 até o alto do


Morro dos Cavalos, observamos que a floresta original, aparentemente, foi toda
substituída por vegetação secundária (capoeiras) e que somente no alto do morro
se encontra atualmente uma pequena mancha de mata mais alta, onde, no entanto,
as espécies arbóreas de valor comercial foram todas retiradas pela ação de não-
í ndios.
Neste percurso, o cacique e pajé da aldeia mostrou diversas
espécies vegetais utilizadas na confecção de remédios e importantes para a
cultura material dos Guarani. A li observamos a presença de algumas espécies de
palmeira (jerivá e indaiá) usadas na alimentação e para a cobertura de casas,
como também de espécies arbóreas (cedro e canela) e de cipós (timbopeva e
imbé) utilizados na construção de casas e para confecção de utensílios. Na
vertente do morro voltada para o oceano encontra-se uma grande mancha de
taquaras (taquaí), um vegetal de grande importância utilizado na construção e na
fabricação de artefatos de uso domésticos e de artesanato, tais como cestos,
abanos, esteiras etc. Durante a caminhada pudemos observar a presença de
inúmeras "ilhas" de taquara.
Foi o cacique quem mencionou que a maioria das espécies arbóreas do
morro foram retiradas pelos juruá (não-índios). Ele mencionou, porém, que, apesar
das alterações causadas na mata pelos "jurué", ali ainda podem ser encontrados
animais muito importantes na alimentação dos índios tais como: tatus, quatis,
cutias, alem de diversas espécies de aves.

O cacique mostrou uma série de caminhos usados pelos Guarani, além


de locais de coleta de espécies vegetais, de caça, de antigas roças e antigos
assentamentos (aldeias/pátios).

2. Caminhada no morro do outro lado da BR, em relação ao Morro


dos Cavalos

Durante esta caminhada pudemos observar a presença de uma


vegetação de maior porte que aquela encontrada no Morro dos Cavalos, com a
ocorrência de espécies vegetais importantes para a cultura material dos Guarani.
Os Guarani que nos acompanharam durante esta caminhada nos
fizeram observar a presença de inúmeras espécies de plantas medicinais, além da
presença de diversas espécies vegetais importantes para a confecção de
utensílios domésticos, de artesanato e de madeira para a construção de
habitações e ferramentas.

58
Pudemos ali identificar diversas espécies vegetais arbóreas por eles
utilizadas: na construção (cedro, canela, peroba, camboatá, guatambú, mamica-de-
cadela, guajuvira, alecrim, além de espécies de palmeira, como, juçara, tucum,
guaricanga, jerivá e indaiá) e na confecção de utensílios e de artesanato
(taquaras, bambús e caixeta).
Nesta excursão visitamos locais onde foram feitas roças pelos
Guarani que ali viviam, além de observarmos a presença de diversos locais que são
apropriados para moradia e agricultura Guarani.
Nos locais de antigas roças, pudemos notar a presença de plantas
cultivadas (goiabas, bergamotas, limão, araçá) pelos Guarani que habitavam a
região e que são, além de uma prova de sua ocupação antiga, uma ilha de recursos
para o presente e o futuro, além de serem importantes na atração de espécies
animais.
Durante esta excursão também pudemos notar a ocorrência de
animais muito apreciados pelos índios, além de algumas armadilhas (mundéus)
colocados por eles ao logo dos "ccrreiros'' de animais terrestres.

3. Excursão à baixada do rio Massíambu

Nesta excursão pudemos identificar características dos ambientes e


recursos ambientais utilizados pelos índios, além de observar e refletir sobre os
prováveis limites para a proposta de uma Terra Indígena.

Esta é uma região de especial interesse e importância para os


Guarani, principalmente pela possibilidade de acesso ao rio e portanto à água doce
e à pesca.
Nesta região é notória a presença de terrenos planos, propícios à
ocupação e atividades agropecuárias o que, portanto, explica a presença de
ambientes alterados pela ação intensa e contínua de ocupantes não-índios. Nesta
região pudemos observar a presença de diversas propriedades rurais e de
veraneio de não-índios, que tem colonizado a região, atraídos pela boa qualidade
dos solos e também pela beleza cênica do local.
Notamos que apesar da relativa invasão por parte dos não-índios na
porção mais plana desta região, as rampas e sopés das montanhas dispõem de
ambientes significativamente conservados, apresentando florestas bastante ricas
em recursos ambientais de grande importância e interesse para os Guarani.

4. Excursão ao redor do Costão dos Cavalos (24/10/01)

59
Nesta excursão pudemos observar as condições em que se
encontram os ambientes do entorno do Morro dos Cavalos.
O percurso foi em parte realizado de automóvel e em parte
percorrido em uma longa caminhada feita a pé, através da estrada que dá acesso
a algumas propriedades localizadas à beira mar, ao longo do Costão dos Cavalos e
pela estrada que sai da BR 101 e termina na última praia, próxima ao ponto mais
oriental da península formada pelo Morro dos Cavalos.
Durante as partes dos percursos realizados de carro pudemos
observar as condições de ocupação por parte dos não-índios. Neste trajeto
notamos que a ocupação desta região se dá principalmente para fins de veraneio e
que as propriedades ali encontradas não ultrapassam a cota dos 30 metros de
altitude do nível do mar.
Durante o percurso realizado a pé, ao logo do Costão dos Cavalos,
pudemos observar a presença de muitas espécies vegetais usadas como remédio,
além da presença de palmeiras e outras espécies vegetais de importância na
construção e fabricação de utensílios.
Na parte do percurso realizado na estrada que dá acesso às
propriedades de veraneio, localizadas nas encostas leste e sul do Morro dos
Cavalos, pudemos notar a presença de algumas espécies de plantas cultivadas por
antigos moradores Guarani, que ocuparam anteriormente a região (goiaba,
bergamota, limão e araça);

5. Excursão feita ao longo dos rios Massiambu Grande e Massiambu


Pequeno

Nesta excursão pudemos observar que a presença da ocupação de


não-índios, ou seja, das propriedades rurais privadas, onde são desenvolvidas
atividades agropecuárias, como por exemplo, plantações de arroz, pinus e
eucaliptos. Esta ocupação não ultrapassa a cota dos 100 metros de altitude em
relação ao nível do mar e as porções dos morros acima desta altitude se
encontram significativamente conservadas. Portanto, ainda observa-se uma
significativa riqueza de recursos ambientais de interesse para os Guarani, apesar
de ser nítida a alteração realizada na vegetação original, principalmente pela
atividade de extração de madeiras de lei.

6. Excursão aos morros do lado oeste da BR 101 (da Baixada do


Massiambuaté as proximidades do Rio do Brito)

60
Durante esta excursão pudemos fazer uma mais acurada visita a
diversos sítios de ocupação antiga dos Guarani. Segundo informação dos índios
que nos acompanharam, os sítios mais recentes datam de aproxi modamente 30
anos atrás (como por exemplo, a antiga Aldeia Takuaty - casa e roça de Seu
Hilário). Neles pudemos observar ainda a presença de vestígios de roças,
contento diversas plantas remanescentes (tais como: banana, bergamota, além de
uma significativa "molho" de taquara plantada para proteger as nascestes de
água).
Durante nossa caminhada, realizada a pé até o alto dos morros mais
próximos da aldeia, passamos por diversos caminhos abertos pelos Guarani, para a
realização de atividades de caça e coleta.
Segundo relatos de Milton Moreira (filho de Júlio Moreira, .iá
falecido, chefe do grupo familiar Guarani que habita a região desde a década de
1940), a antiga "estrade do carreador", que atravessamos durante esta incursão,
era o antigo meio de acesso para a "Vende do Paulinho e a de Pedro Amendoim",
localizadas próximo à foz do rio Massiambu Pequeno. Utilizavam, como acesso, a
estrada velha que contornava o Morro dos Cavalos, até a ponte velha e que ia para
Paulo Lopes e para o Rio Grande do Sul. Segundo a informação dos nossos
acompanhantes, a BR 101 e a ponte nova ficaram prontas em 1971.
No sopé do primeiro morro, passamos pelo entroncamento dos
caminhos que vêm dos dois lados do morro e seguimos pela vertente (pelo alto) do
morro - divisor de águas, até alcançarmos o seu cume. Durante a subida os
Guarani mencionaram a presença de animais/caça (macuco, jacu e várias espécies
de nhambú), mas disseram, porem, que antigamente havia muito mais animais do
que hoje em dia.
Num determinado momento de nossa caminhada, passamos pelo local
onde Milton disse ter sido uma grande roça feita por seu pai, a cerca de 30 anos
atrás (ele tinha na época aproximadamente 10 anos de idade) - onde haviam
plantado, milho, batata-doce, mandioca, feijão.
No alto dos morros, observamos a presença de mais espécies
arbóreas importantes para os Guarani (cedro, mamica de cadela, canela,
sassafráz, peroba, guamirim, guajuvira). Passamos por uma região onde os Guarani
colocavam muitas armadilhas para caça. Ali avistamos um jacu.
Milton explicou que as casas tradicionais dos Guarani seguem
modelos da natureza como do urupe (orelha-de-pau).

61
;

Ao longo da caminhada avistamos palmeiras de interesse e


importância para os Guarani, como a guari canga, que é usada para fazer a
cobertura de suas casas e inúmeras plantas de valor simbólico e medicinal.
Na baixada do morro (vertente norte), passamos por uma vegetação
mais baixa parecida com um capoeirão, onde Milton disse ter sido também o local
de outra grande roça feita por seu pai.
Cruzamos com uma picada que vem da estrada, provavelmente
utilizada por caçadores não indígenas que moram nas proximidades. Milton disse
que, aproximadamente 32 anos atrás, naquele local havia um grande taquaral que
foi destruído por ratos-brancos que comem as sementes e os brotos da taquara.
Avistamos o rastro de quatis num local onde a trilha ficou bem mais fechada.
Após a primeira baixada, iniciamos nova subida e passamos por um grande
taquaral. No alto do morro a mata está bem desenvolvida e limpa, sem muito sub-
bosque. Passamos sobre uma das nascentes do rio Massiambu Pequeno, onde
Milton disse haver uma região alagada, onde ocorre a presença de muita saracura.
Na baixada entre os dois grandes morros, que subimos durante esta
caminhada, passamos pela picada que vem de um sítio localizado a sul do rio do
Brito, próximo da BR 101 e que provavelmente foi aberto com o objetivo de se ter
acesso a locais propícios para a caça. Subimos até o alto do segundo morro,
localizado a norte do posto de gasolina que fica na beira da estrada e iniciamos
nossa descida pela margem sul do Rio do Brito.

7. Excursão feita ao vale do rio do Brito (proposta de limite norte)

Nesta caminhada pudemos observar as boas condições de


conservação da vegetação da vertente norte do maciço que deverá ser inserido
pela proposta de limites da terra indígena. Assim como, as condições de não
existência de ocupações de não-índios a partir da margem sul do Rio do Brito, a
não ser de um ou dois sítios localizados próximos à BR 101.

Conclusões

Os índios Guarani, como acontece com a grande maioria das sociedades


ameríndias, interagem com um complexo de ambientes, que apresentam uma
significativa diversidade de ambientes "naturais", assim como de ambientes
criados pela sua ação (aldeias, roças e capoeiras).

62
A interação dos Guarani com estes ambientes é extremamente
sofisticada. Ela pode ser reconhecida no conjunto de práticas e representações,
que, por sua vez, se configuram num conjunto de conhecimentos.
Os conhecimentos dos Guarani a respeito dos ambientes, expressos nas
identificações dos seus elementos constituintes e nas práticas de uso destes
elementos, enquanto recursos ambientais, revelam, não somente uma apropriação
destes recursos, como também uma constante dinâmica de transformação destes
ambientes e de ampliação da diversidade ambiental.
Estas transformações se realizam através da seleção, domesticação,
reprodução e dispersão de grande parte dos elementos constituintes destes
ambientes.
O uso que os índios fazem dos ambientes e de seus recursos são fruto de
um acúmulo de experiências, transmitidas oral e cotidianamente e de um conjunto
de práticas executadas sazonalmente. Porém, a manutenção deste conjunto de
conhecimentos está diretamente relacionada à manutenção das práticas de uso,
tradicionalmente reproduzidos pelos índios.
Estas formas de uso, tradicionalmente adotado pelos índios, não afetam a
conservação dos ambientes "naturais" nos quais estes elementos se reproduzem.
Isto se dá através de uma utilização de baixo impacto, que respeita o ritmo de
reprodução e recuperação dos ambientes afetados, assim como das espécies de
seres vivos, constituintes destes ambientes.
Suas maneiras de conhecer e de usar os recursos ambientais, são por sua
vez, reflexo das relações sociais de ocupação e mobilidade territorial,
responsáveis pela garantia da qualidade da interação do grupo com os demais
elementos ambientais.
Esta interação determina a riqueza e a diversidade de elementos
ambientais utilizados e reflete a quantidade e qualidade das transformações
causadas aos ambientes com os quais eles interagem.
No entanto, esta interação dos índios com os ambientes "naturais", fonte
de "recursos ambientais", só pode ser mantida se houver espaço e disponibilidade
de recursos ambientais suficientes para a perpetuação de suas formas
tradicionais de uso e conhecimento. Isto significa, que é necessário um mínimo de
espaço territorial, que possa abrigar uma rascável diversidade de ambientes e
uma significatiova diversidade de recursos ambientais, para que eles possam
realizar satisfatoriamente sua reprodução física e cultural.

63
,.

QUINTA PARTE - REPRODUÇÃO FÍSICA E CULTURAL ...2Y.


conclusão

demografia e território
áreas necessárias à reprodução física e cultural
aldeias vizinhas e entorno
(aldeias Cambirela, Massiambu, Praia de Fora, entorno)

Como foi abordado a comunidade Guarani de Morro dos Cavalos se


insere num a dinâmica social e política que envolve várias aldeias (como se observa
nas genealogias). Desse modo, não se pode precisar como se comporta a
demografia ..... Fatores diversos, internos e externos, intervêm e provocam
altreacões no quadro populacional que não deve. entretanto ser avaliado
isoladamente.
Para gue a comunidade Guarani possa reproduzir seu sistema sócio
cultural (reciprocidade, intercâmbios econômicos, apoios políticos, pajelança,
organização familiar, transmissão de conhecimentos e notícias etc) é necessário
que as aldeias vizinhas (não só elas. mas sobretudo elas) também tenham suas
áreas reconhecidas e protegidas.
A proteção ambiental prevista na Constituição Federal (artigo
231.. ) é imprescindível para gue os Guarani possam exercer suas formas de
manejo adequadamente e sem conflitos com a população envolvente. Da mesma
forma os programas assistenciais. de saúde e educação (moradias. centros de
visitação, sanitários, escola etc) devem se ater no essencial, respeitando o
scritérios técnicos ambientais, em consonância com os órgãos de meio ambiente.
Viabilizar o trânsito dos Guarani por sua Terra, de maneira segura, é
prioridade para que eles possam utilizar e gerenciar com maior eficiência. A taxa
de mortalidade devido aos acidentes fatais na Br 101, supera todos os outros
fatores.
Os levantamentos anteriores realizados para elaboração dos
relatórios relativos ao componente indígena, que compõem o EIA-RIMA
referente à duplicação da Br 101, assim como os levantamentos realizados por
este GT de identificação e delimitação, demonstram que a ocupação da
comunidade Guarani não se limita à área restrita às moradias em Morro dos
Cavalos. Segundo os Guarani esse passou a ser o local de residência após as obras
de construção da estrada que cortou a área da aldeia, em seu conjunto de
espaços. As áreas de uso extrapolavam os limites mesmo dos agora propostos,

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,,

estendendo-se até locais ho ie densamente habitados pelos brancos ("que viraram


cidades").
A drástica interferência no ambiente da comunidade Guarani se deu
com as obras de da construção da Br 101 e com a emergência da duplicação da
mesma. diminuindo e isolando dois espaços usados e entendidos como um todo.
Até agora em vários ângulos do Morro dos Cavalos ou do Morro defronte, que
designam Yvy Mbae Porã {.. ). onde situa-se o local chamado Tekoa Porã. os
Guarani privilegiam a visão que integra os dois espaços, separados pela rodovia,
porém ainda pretendido como único. (A intenção da comunidade, por ocasião dos
levantamentos deste GT, ainda era a de manter a Terra de Morro dos Cavalos.
como uma terra contígua propondo a construção de um túnel subterrâneo e
reflorestando a superfíce atual da Br101).
Desse modo, a área proposta pelos índios para compor a Terra
Indígena é vista como um espaço contínuo de uso. A divisão da mesma em duas
glebas (dos dois lados da BR) seria referendar a separação feita pela BR 101.
Mais ainda, imporia procedimentos diferenciados priorizando (ou valorizando) o
Morro dos Cavalos no local em que se encontra o núcleo residencial, onde a
presença indígena é incontestável, em detrimento da área onde se concentram as
espécies nativas necessárias à reprodução cultural e ao exercício do modo de vida
da comunidade e que. embora já reduzida fisicamente, é onde concentra maior
oposição ao reconhecimento de ser uma terra indígena. Esta oposição ao
reconhecimento formal da terra indígena decorre tanto de setores
ambientalistas e das administração do Parque Estadual da Serra do Tabuleiro,
criado em 1975 e abrangendo áreas usadas pelos índios. como por particulares
que possuem ou reivindicam áreas ocupadas pelos índios Guarani e/ou pelo PEST.
Os danos e efeitos das rodovias na comunidade já foram relatados
nos relatórios do componente indígena que constam dos EIA-RIMA referentes à
duplicação da BR 101. Para não se incorrer em danos maiores e minimizar os já
existentes (alteração no modo de vida. uso comprometido das áreas de interesse
natural, acidentes ambientais incontroláveis, atropelamentos fatais recorrentes)
é necessário orientar as medidas para seu foco central que é o reconhecimento/
respeito à definição legal de Terra Indígena, e ouvir e atender às reivindicações
da comunidade relativa à composição e integridade de sua terra indígena.
Uma terra que lhes permita viver seus usos. costumes e tradições,
uma terra cuja proteção ambiental deve ser exercida com rigor. sem o que. em
breve. será insuficiente. De modo que os programas assistenciais (moradia,
educação. saúde) não devem. dentro da terra indígena, se sobrepor à conservação
do patrimônio ambiental, nem afetar radicalmente ous usos e costumes indigenas.

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Os critérios para definição do laudo da Terra Indígena Morro dos
Cavalos foram estabelecidos em função de ocupação atual, dos usos segundo os
seus costumes e tradições. Assim. muitas áreas tradicionais de uso não compõem
a Terra Indígena pelo motivo, exposto pelos Guarani. de que não são mais
compatíveis ao seu modo tradicional de existência, pelas quais não devem "brigar",
se indispondo com seus confrontantes. Áreas ocupadas desordenadamente, como
na orla, gue tornaram-se lugares "densamente" habitados, que não possuem
recursos nem elementos naturais privilegiados. Uma preocupação mencionada
reiteradamente pela comunidade foi a da importância do entorno da Terra
Indígena. que deve se harmonizar tanto em termos ambientais como pela relação
de amizade e solidariedade com seus vizinhos. Portanto não querem pleitear mais
áreas, que consideram perdidas para terceiros, e que não se coadunam mais com
seus critérios de uso.
Considerando os critérios dos Guarani. por sua vez baseados na
realidade atual da comunidade indígena, toda a Terra Indígena de Morro dos
Cavalos proposta para regularização deve ser considerada como tradicionalmente
ocupada, devendo se assegurado a sua posse e uso exclusivo à comunidade
Guarani. segundo seus costumes e tradições.
Os Guarani chamam a Terra Indígena Morro dos Cavalos de "Tekoa
Yma" referindo-se à antiguidade da mesma, no sentido de ser uma terra de
"antigamente", por ser para eles um local que possui um sentido histórico preciso.
Yvyã Porã (Morro dos Cavalos) tem um sentido relacionado à visão ? e Yvy mboae
porã, morro .... do local onde se concentram as espécies boas. apropriadas ao uso
Guarani}. A nomeação dos lugares, via de regra, se refere às suas
características e ao sentido de utilidade e proveito.
Se os Guarani estão cientes da impossibilidade de deterem a posse
e o uso exclusivo de toda a extensão territorial onde situam suas aldeias.
continuam privilegiando algumas características físicas (que fazem parte também
de seu acervo simbólico) para formarem aldeias e exercerem seu modo de vida.
Desse modo, o espaço físico das áreas onde vivem ou procuram viver deve conter
as formas e os recortes naturais, incluindo as matas e as nascentes dos rios gue
as banham, sendo esta a configuração ideal na definição dos locais de uso,
independentemente das demarcações. No processo demarcatório é, pois.
necessário assegurar áreas que contenham elementos da flora, fauna e
topológicos gue façam parte de seu repertório cultural, envolvendo também
aspectos míticos e simbólicos33.

33
Relatórios de Identificação das Áreas Guarani no RJ: Araponga, Parati Mirim, Bracui. Ladeira,
1993.

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Apesar da dificuldade de se eleger/estabelecer limites, os critérios
citados acima prevaleceram na definição da Terra Indígena Morro dos Cavalos.
Ao critério ambiental somou-se o do uso atual dessas áreas, segundo os moldes e
padrões culturais Guarani. Em maior ou menor grau, proporcionalmente aos
fatores de pressão externa, toda a area pleiteada para compor a Terra Indígena
Morro dos Cavalos é atualmente ocupada pelos Guarani, segundo seus usos e
tradições (conforme iá abordado na segunda parte deste relatório.
Além da necessidade do reconhecimento formal da Terra Indígena
Morro dos Cavalos, não se pode desconsiderar que ela se insere em um complexo
de aldeias em que todas são fundamentais para o estabelecimento das relações de
reciprocidade e alianças políticas, e necessárias ao enfrentamento das
dificuldades advindas das relações de contato (conforme observado na 3ª parte
deste relatório). Restringindo-nos somente nas aldeias vizinhas vemos que:
a Terra Indígena Massiambu, conta com apenas 5 ha de área para seu uso
exclusivo. Os índios reivindicam uma terra maior que contenha recursos naturais,
e/ou onde possam recuperar áreas para seu uso e garantia de sobrevivência
cultural e física;
a aldeia de Cambirela. também cortada pela BR 101, deve ter sua ser definida,
com critérios que levem em consideração os usos e o modo de ocupação atual da
comunidade, além da história da presença Guarani;
Mbiguaçu - 59 ha homolog
Imaruí
Praia de Fora - regularizar a situação das famílias de Praia de Fora (ver reldoro
~

,
SEXTA PARTE - LEVANTAMENTO FVNDIARIO

SÉTIMA PARTE - CONClVSÕES E DELIMITAÇÃO

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