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O DENTRO E O FORA: A DIMENSAO INTERVALAR DA LITERATURA* Parece corresponder ao bom senso teérico que as aproximagées as obras literdrias se * Publiado in Anas do Conese ABRALIC ~ Auxiaho Baie de Literatura Compra, Pot to Alegre 1988001 por isso mesmo, as possiveis Desta maneira, as relagdes entre aspectos internos ¢ externos so an- coradas tautologicamente em perspectivas que terminam por reforgar a ages, embora dignificadas por aquele modelo de io que encontra melhor acolhida num determinado que é sobremancira importante, o viés de leitura que ampara o critico em ambos os casos, o que se peteade é por um lado, afirmar a im- da obra para uma das dreas privlegiadas do demonstrar a viabilidade de sua andlse pela redugdo da obra a espago conciliador de contrérios, Fengas. O sobressalto que, por acaso, a obra possa provocar é amainado pelo salto te6rico que explica e reduz as co querer impor. Mais ainda: na literatura Ié-se sempre mais do que a ra deva-se dizer bem depressa que s6 € mais do que li valores = filos6ficos,psicol6gicos, ais autores sejam precur: ventado, com suas obras, 0 rilha do famoso ensaio de Jorge Luis \gbes levadas a modo, 0s capitulos I, ia de Niétotchka junto correspondem a transferéncia da depois da morte dos pais, e suas relagSes com a princesa tu los VI-e VII narram uma nova transferéncia, desta vez para a casa de Alicksandra Mikhdilovna ¢ Piotr Alickséndrovitch e a descoberta de um segredo, envolvendo as relagées entre os dois, que deveria marear um no- vo momento na existéncia da jovem Niétotchka, Envolvida pelo clima perturbador que © escritor procurara registrar desde 0 seu primeiro rom: chka Niezvénova (nome em que Boris Schnaiderman na “N. drasto, um mésico dilacerado pela ambic: pela fraqueza de ordem pessoal que 0 leva a0 al mento, a morte da mulher e, finalmente, & propri Sem davida, um dos moment inesperada do violi- e € que prepara o desenlace desta parte da 10 0 trecho em que séo descritas as reagées de Niétotchka: Mas aquilo nao era miisica... Lembro-me de tudo com nitidez, até 0 derradeiro instante, lembro tudo 0 que prendeu entdo a minha atencdo. n Nao, ndo era mitsica da mesma espécie daquela que, mais tarde, pude ou- virl Nao eram sons de violino, mas parecia que a voz terivel de alguém res- soava pela primeira vez em nossa escura morada. Quer fossem incorretas € doentias minhas impressdes, quer estivessem os meus sentidos abalados por ‘tudo que testemunhara, e preparados para impressbes tertveis, de uma tor- ‘ura indelével, o certo € que estou firmemente convencida de ter ouvido ge- ‘midos, gritos humanos, pranto; um desespero sem limites expandia-se na- queles sons e, quando ressoou 0 espantoso acorde final, em que havia tudo (0 que existe de espantoso no pranto, de torturante no sofrimento e de angus- tioso na dor sem esperanca ~ tudo isso parecia terse reunido naquele ins- tante...Ndo podendo mais suportar aquilo, pus-me a tremer,légrimas jorra- ram-me dos olhos e, lancando-me em direcdo de meu pai, com um gito horrendo de desespero, rodeei-o com os bracos. Ele gitou também e deitou ‘0 violino, Por um mamento, ficou parado, numa espécie de inconsciéncia. Finalmente, seus olhos tomaram-se saltitantes ¢ orientaram-se obliquamen- te; parecia procurar algo, agarrou de repente o violino, agitou-o sobre mins .. mais wn instante etalvez me matasse ali mesmo. Nao € preciso muita esperteza psicanalitica para ver no trecho mais, do que uma exarcebacéo de sentimentos de Niétotchka provocada pela misica do violino. Tocada pelo padrasto, a misica, resume, ou condensa, as rias relagbes entre ambos, em que amor ¢ Odio revezam-se ¥ mente, 0 que aliés € expresso também na linha final do trecho ‘A misica néo € uma metéfora para 0 softimento porque ele funciona co- mais um indice intrigante da educagdo de Niétotchka. Ela nada substi- antes expande, ao lado da dor ¢ da angiistia, as incertezas que tortu- ‘a jovem protagonista com respeito aos sentimentos que tem pelo pa- tos de uma interpretagao dependente do modo pelo qual integram «0 ficcional. Para dizer de outra mancira, a dramaticidade que resulta das ndo pode ser lida apenas co- da conn) ‘mas como articulando relagdes entre as personagens, s0- de Dostoiévski, possa ser , de que 0 proprio modo €,omovimento mesmo do signo laquilo que esté no intervalo, , depois ido castigada em lugar dda amiga, a verdadcira culpada, Niétotchka narra o sabito aparecimento de uma outra Katia, bondosa e agitadamente carinhosa ‘20 meu pescogo. Tinha as faces umede- inhas, os cachos do cabelo em desor- que se encontram apés uma separacdo prolongada. tia com tamanha forca que eu ouvia cada pancada. acariciar, beijando ¢ deixando-se beijar num tumulto de risos, lagrimas, declaragdes de amor e recriminages, um didlogo em que 0s fantasmas de cexperiéncias passadas e recentes sio elementos essenciais para a intensi- dade erética do texto. ‘Transcrevo apenas um pequeno trecho para exemplo: = Nao, tu é inteligente - disse Katia com ar decidido ¢ sério. Eu sei teira. Pensei: vou pedir a mamde que me deixe ficar em seu i morar 14, Nao quero amé-la, ndo quero! E, na noite seguinte, ‘adormeci pensando: se ela viesse como na noite passada... E tu chegaste ‘mesmo! Ah, como fingi que estava dormindo... Ah, como somos sem-vergo- ‘nha, Nidtotchka! = Mas, por que evitavas, sempre, amarme? = Assim... Mas, que estou dizendo? Sempre te ameit O tempo todo! Depois, ndo te suportava mais; pensava: vou beijé-la um dia tanto, ou be- liscdsta toda, até que morra.. tolinha! E a princesa me beliscou. = E, lembras-e?, eu te ‘0 corddo do sapato. = Lembro. = Eu também me lembro; foi bom para ti? Olhei-te: um amorzinho, pensei; vou amarrarthe 0 cordao do sapato; que também me senti tdo bem. E, realmente, eu quis te beijar..€ ndo depois, foi td0 engracado, tdo engracado! E, durante todo o ca ‘quanto passedvamos, vinha-me de repente uma vontade de rir das. Nao podia olhar-te, tanta vontade eu tinha de rir. E com ‘que ias ficar presa em meu lu ‘amo tanto! Amanhé, vou bij de ti, por Deus, ndo tive pena, apesar de ter ch = E eunem chorei fiquei contente de propésito = Nao chorasie? Ah, malvada! gritou a princesa, apertando os labios contra mim, com toda a forca. = Kétia, Kétia! Meu Deus, que amorzinho és! ~ Nao € verdade? Bem, agora, faz comigo 0 que quiseres. Judia de ‘mim, belisca-met = Belisca-me, por favor, queridinha! Belisca-me! = Brincathona! = Bem, € 0 que mais? = Tolinha. : 108, chordévamos, dévamos gargathadas; nossos lé- bios ficaram inchados de tanto beijar. Por esses exem} lise encontre em Pereebe-se como é compreensivel que a psicané- ki um de seus pre linguagem literéria foi capaz de efeti lores psicolbgicos e sociais. Neste caso, portanto, o que se constata € a existéncia de uma interdis- ciplinaridade que corresponde a0 movimento interno de configuragéo do (0 para um retorno fertilizador gia de apreensio daquele mo- vimento de configuraga Na verdade, ndo ha 2 receba as palmas da pacificagao er outro lad, estard falando de uma outra coisa (psicologia, ios) a partir dos quais € possfvel falar O naquelas textualidades. [Uma leitura nio para desfazer os paradoxos ambiglidades de toda Jo poética, como quem desfaz um n6 para ficar com “a severa forma fazer, numa outra sintaxe, a da critica, sob 0 ste modo, por exemplo, em qualquer edigo bem cuidada do poe- ma The Waste Land, de'T. 8, Eliot, além das notas eh ‘ou pardfrases incorporadas ao texto. Desde a epigrafe, ‘echo do Satiricom, de Petrdnio, onde se fala na Sibila quem Apolo garantiu a vida mas no - sando pela qualificagao de Ezra Pound, na dedicat6ria, como “il miglior fabro”, alusio ao dito de Dante acerca de Arnault Danicl, até alusdes & Biblia (Ezequih Eeeviastes Ina) a Tro ¢ Isolda, a Aldous Huxley Tempest), a Leonardo da lusdes de ordem pessoal, todas pertencent the Dead”, que se esclarece ser “uma fra- constantes da edigio preparada por para a Norton Anthology of Modem Poetry, de 1973. Nao € dificil saber também de que maneira tal processo de composigdo postica obedece a uma concep¢i0 de poesia que fora ex- individual Talent”, , em que todas as, obras dialogam com todas as obras, pela mesma época, dzia Fernando Pessoa, quando afirmava que “deve haver, no mais pequeno poema de um poeta, qualquer coisa por onde se tensdo que organiza os espagos interno ¢ ex- de Dante, do Perigilium Veneris medie- de Swinburne e Nerval, nos trés versos imediatamente anteriores, 0 daquela tensio: “The- se fragments I have shored agai £ claro, por soal e coletva, as ciéncias Mais uma vez, no ei ‘nem podem, dada’a prop como auxiliares, capazes de esclarecer 0 mento de sutura, por certo préximo cionaTidade da obra uma dimensé Falta de bom senso teérico.

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