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A

 orientação  dos  gatos  


um conto de Julio Cortázar traduzido por Bruno Angelo

Quando Alana e Osíris me olham não posso reclamar da menor dissimulação,


do menor jogo duplo. Me olham de frente, Alana com sua luz azul e Osíris com seu
raio verde. Também se olham assim entre si, Alana acariciando o lombo negro de
Osíris que levanta o focinho do prato de leite e mia satisfeito, mulher e gato
conhecendo-se desde planos que me escapam, que minhas carícias não conseguem
rebaixar. Já faz tempo que renunciei a todo domínio sobre Osíris, somos bons amigos
desde uma distância infranqueável; mas Alana é minha mulher e a distância entre nós
é outra, algo que ela não parece sentir mas que se interpõe na minha felicidade
quando Alana me olha, quando me olha de frente igual a Osíris e me sorri ou me fala
sem a menor reserva, se doando em cada gesto e em cada coisa como se doa no amor,
aí onde todo o seu corpo é como seus olhos, uma entrega absoluta, uma reciprocidade
ininterrupta.
É estranho; mesmo renunciando entrar em cheio no mundo de Osíris, meu
amor por Alana não aceita essa crueza de coisa concluída, de casal para sempre, de
vida sem segredos. Por detrás desses olhos azuis tem mais, no fundo das palavras e dos
gemidos e dos silêncios se esconde um outro reino, respira outra Alana. Nunca lhe
disse isso, gosto demais dela para arranhar essa superfície de felicidade na qual tantos
dias, tantos anos já se deslizaram. À minha maneira me obstino em compreender, em
descobrir; observo ela mas sem espiar; a sigo mas sem desconfiar; amo uma
maravilhosa estátua mutilada, um texto inconcluso, um fragmento de céu na janela da
vida.
Houve um tempo em que a música me pareceu o caminho que me levaria de
verdade até Alana; Quando a via escutar nossos discos de Bartók, de Duke Ellington,
de Gal Costa, uma paulatina transparência me afundava nela, exposta pela música
com uma nudeza distinta, transformada cada vez mais em Alana porque Alana não
pode ser somente essa mulher que sempre me olhava em cheio sem ocultar nada.
Contra Alana, além de Alana eu a buscava para amá-la melhor; e se num princípio a
música me deixou entrever outras Alanas, chegou o dia em que frente a uma gravura
de Rembrandt eu vi ela mudar ainda mais, como se um jogo de nuvens no céu
aterrasse bruscamente as luzes e sombras de uma paisagem. Senti que com a pintura
ela era levada além de si mesma para esse único espectador que podia medir a
instantânea metamorfose nunca repetida, a entrevisão de Alana em Alana. Interesses
involuntários, Keith Jarret, Beethoven e Aníbal Troilo me haviam ajudado a chegar
mais perto, só que frente a um quadrou ou uma gravura Alana se despojava ainda
mais disso que acreditava ser, por um momento estava num mundo imaginário para
inadvertidamente sair de si mesma, indo de uma pintura a outra, comentando ou
calada, jogo de cartas que cada nova contemplação embaralhava para aquele que,
sigiloso e atento, um pouco atrás e levando-a pelo braço, via se sucederem as rainhas e
os ases, espadas e paus, Alana.
O que se podia fazer com Osíris? Dar seu leite, deixá-lo em seu novelo preto
satisfeito e ronronante; mas a Alana eu podia levá-la até essa galeria de quadros como
fiz ontem, mais uma vez assistir a um teatro de espelho e de câmaras escuras, de
imagens tensas na tela frente a essa outra imagem de alegres jeans e blusinha
vermelha que depois de apagar o cigarro na entrada ia de quadro em quadro, se
detendo exatamente à distância que sua visão requeria, virando para mim a cada
tanto para comentar ou comparar. Jamais poderia descobrir que eu não estava aí
pelos quadros, que um pouco atrás ou de lado minha maneira de observar não tinha
nada a ver com a sua. Jamais se daria conta que o seu lento e reflexivo passar de
quadro em quadro a transformava ao ponto de me obrigar a fechar os olhos e lutar
para não apertá-la nos braços delirante, em uma loucura de corrida em plena rua.
Desenvolta, leve em sua naturalidade de prazer e descobrimento, suas paradas e suas
demoras se inseriam em um tempo diferente do meu, alheio à espera crispada de
minha sede.
Até esse momento tudo havia sido um vago anúncio, Alana frente a
Rembrandt. Mas agora minha esperança começava a se cumprir quase
insuportavelmente, desde nossa chegada Alana se entregou às pinturas com uma
inocência atroz de um camaleão, passando de um estado a outro sem saber que um
espectador à espreita registrava na sua atitude, na inclinação de sua cabeça, no
movimento de suas mãos ou lábios o cromatismo interior que a recorria até mostrar-
se outra, aí onde a outra era sempre Alana se somando à Alana, as cartas se
amontoando até completar o baralho. Ao seu lado, avançando aos poucos pelas
paredes da galeria, eu a observava dar-se a cada pintura, meus olhos multiplicavam
um triângulo fulminante que se estendia entre ela e o quadro e do quadro a mim
mesmo para voltar a ela e assimilar a transformação, essa auréola diferente que a
envolvia um momento para depois ceder a uma aurora nova, a uma tonalidade que a
expunha à sua verdadeira, última nudez. Impossível prever até onde se repetiria essa
osmose, quantas novas Alanas me levariam por fim à síntese da qual sairíamos os dois
extasiados, ela sem saber e acendendo um novo cigarro antes de me pedir para tomar
alguma coisa, eu sabendo que minha longa busca havia chegado a um porto e que
meu amor envolveria desde então o visível e o invisível, aceitaria o olhar limpo de
Alana sem incertezas de portas fechadas, de personagens censurados.
Frente a uma barca solitária e um primeiro plano de rochas negras, ela ficou
imóvel por um longo tempo, um ondular imperceptível das mãos a fazia como que
nadar no ar, buscar o mar aberto, uma fuga de horizontes. Eu já não podia estranhar
que essa outra pintura onde uma cerca de pontas agudas restringia o acesso às árvores
que a margeavam a fizesse recuar como buscando um ponto de observação, de
repente era a repulsa, a negação de um limite inaceitável. Pássaros, monstros
marinhos, janelas entregues ao silêncio ou deixando entrar um simulacro da morte,
cada nova pintura arrasava com Alana despojando-a de sua cor anterior, arrancando
dela as modulações da liberdade, do vôo, dos grandes espaços, afirmando sua negativa
ante a noite e o nada, sua ansiedade solar, seu impulso quase terrível de fênix. Fiquei
atrás sabendo que não seria possível suportar seu olhar, sua surpresa interrogativa
quando visse no meu rosto o deslumbramento da confirmação, porque isso também
era eu, isso era o meu projeto Alana, minha vida Alana, isso havia sido desejado por
mim e refreado por um presente de cidade e de parcimônia, isso era agora enfim
Alana, enfim Alana e eu desde agora, desde já. Gostaria de tê-la nua em meus braços,
amá-la de tal maneira que tudo ficasse claro, e que dessa interminável noite de amor,
nós que já conhecíamos tantas, nascesse a primeira alvorada da vida.
Chegávamos ao final da galeria, me aproximei da porta de saída ainda
escondendo o rosto, esperando que o ar e as luzes da rua me retornassem ao que
Alana conhecia de mim. Vi que se deteve diante de um quadro que outros visitantes
me haviam ocultado, ficou imóvel demoradamente olhando uma pintura de uma
janela e um gato. Uma última transformação fez dela uma lenta estátua nitidamente
separada dos demais, de mim mesmo que me aproximava indeciso buscando seus
olhos perdidos na tela. Vi que o gato era idêntico a Osíris e que olhava ao longe algo
que a parede da janela não nos deixava ver. Imóvel em sua contemplação, parecia
menos imóvel que a imobilidade de Alana. De alguma forma senti que o triângulo se
havia quebrado, quando Alana voltou a cabeça para mim o triângulo já não existia,
ela tinha ido ao quadro mas não estava de volta, seguia ao lado do gato olhando além
da janela onde ninguém podia ver nada do que eles viam, o que somente Alana e
Osíris viam cada vez que me olhavam de frente.

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