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Ce UR es So oe DE PROTEGAO. ee - cenamiea Dk TRIO UABot Dos - ] RLS TROMBE so amin 046 RIO DEVANEIRO— BRAS MINISTERIO. una CONSELHO NACIONAL DE PROTECAO aos iNDIos A CERAMICA DA TRIBO UABOL DOS RIOS TROMBETAS E JAMUNDA (Contriouicae para’s sstudoida aradeciogia pré-histérica do Baixo Amazonas) PELO Dr. Jo&o Barbosa de Faria PUBLICAGAO No a9 (Bs antiga Comiesio de Linhes Teleatilicas Estratézicas do Mato-Grosso. ao. Amazonas —“Comiesio Rondon"™ 1946 IMPRENSA NACIONAL RIO DE JANEIRO — ERASIL » is Ur, coe A CERAMICA DA TRIBO UABOI DOS RIOS TROMBETAS E JAMUNDA CONTRIBUICAO PARA © ESTUDO DA ARQUEOLOGIA’ PRE-HISTORICAy BO BAIXO-AMAZONAS J. Bansosa oA (Antigo etndfogo da Gomissao Rondon). Ao egrégio Se. General Candido ‘Maciano da Silva Rondon, que incentivow ¢ patrocinow -xploracde E jicas nas quais se bascia tere ee oe cee © Auror: “La céramique est un ptissant auxiliaire pour Vetude de “réconstitution que tenta Larchéologie. Elle tui révéle souvent . :ptions et towjours les aptitudes et les coutumes dune race qui nest plus, Si forigine et le développement de cot ones apprennent une partie de Unistoice d'une société, les différentes formes et les modéles variés de céramiqie nous 7 les habitudes de ceux que tes avaient nées. “Tornamentation est, pour qui sait la comprendre, le texte des grand livre de ta vie sociale.” CHantes WiEMER« (Perou et Bolivie. Pag. 590) PARTE PRIMEIRA’ “Line race ancienne pécit plutst que de subie les transfor mations que nécessite Vadaptation des milieux nowveaux’. (Evolution des peuptes) 1 ESCORCO HISTORICO A TRIRO HABOE OU FAMUNDA Os rios Trombetas e Jamunda, no seu vale inferior, banham regies deveras apraziveis que se no perlustram sem assomos de deslumbramento. Fr noramas sei Par ¢ com as prendas de umm habitar maravilhoso : clima ameno, ares Saudaveis, solo fertile os zios & lagos, como Be Campos as selvas, sao fartos reservatérion de elementos de ste cenario de delicia e exul dominios de tim povo que se entregara a elaboracio de uma civil zagao fadada a rompetir com as mais adiantadas do Contin dotes hereditarios, guer em condicées cosmi No século XVI, porém, a historia tégistava acontecimento femeravel ~ Odescobrimento do Brasil — os qual se encadearam fatos que malograram ésses vaticinios, Trata-se da tribo Uaboi, ja desaparecida, ea qual os cronistas munca deram a merecida individuacao, Barbosa Rodrigues, 0 estrénuo enamorado da seiva @ dos selvagens, de pesquisa em pesquisa, reuni fragmentos de tradi- gees Compondo velsées que, apesar de obse on e deficientes Fevelam, todavia, certos aspectos da vice ignorada désse povo. E assim ponto averiguado que esta tribo eta constituida por “cinco hordas ow clas denominados — Uaboi, Conori, Querena Paracoima e Paracuata, (+) localizados nas paragens banhadas pela bacia inferior dos tios Trombetas e Jamunda, Na toponimia local ainda perduram denominacoes que assina- lam a situacdo de alguns désses clas. Na margem direita do rio rombetas, por exemplo, desemboca 0 Iago chamado Uaboi: na Costa setentrional do lago de Sapucua esta situada a serra Conori, Foram habitados pelas hordas homonimas, como © indicam og fragmentos de ceramica abundantes nestes dois pontos, (2) Fosse qual fosse a situacao dos clas, 0 fato é que. em certa €Poca, Os indios abandonaram coletivamente seu domicilio, concen- tando-se todos no baixo-Jamunda, sobre a foz do rio Paracatu. Esta resolugio dos Uaboi relaciona-se, provavelmente, com comenGes havides no no Tromber, yo decurso da primeira metade do século XVIII. O caso entendia-se com og indios Pauxi, da aldeia deste nome, onde eram catequizados por missionarios capuchos da Ordem to i; Bastoss Roomouss : Elorapto do. Ria Trombetas. ©) Tb. Ip. ae da Piedade. Rebelando-se contra os seus ditétores, os indigenas evadiram-se da colénia. refugiando-se no rio Trombetas, entre os Uaboi; isto, porém, — diz o Mestre de Campo José Goncalves da Fonseca — ‘depois de hayerem executado diversas enormida- des ¢ delitos, por que deviam ser punidos”, (*) Foi, realmente, ordenado 0 descimenfo ow captura dos fugiti. vos, no encalco dos quais marcharam missionarios € tropa. Nao diz o cronista como se conduziram os éxecutores do man- sabe-se, todavia, que os Uaboi se alarmaram com a dili- © apressaram-se em transferir-se para o baixo-Jamunda. Esquivavam-se, evidentemente, da gente civilizada, mas tive- ram de se avit com ela, porgue, em breve, ai irromperam os captt- chos da Piedade para catequiza-los. Apesar das prevencdes de que estavam possuidos os selvicolas contra os civilizados, tudo indica que os religiosos puderam, desde Jogo, entregar-se a realizagoes, sem encontrar qualquer relutancia por parte dos Uaboi, Uma destas realizag6es foi a transferéncia da tribo, da foz do Paracatu para © sitio depois conhecido por Algodoal. onde foi entao estabelecida a colénia de Piedade do Jamunda José Goncalves da Fonseca, ja citado, tendo visitado esta colonia, em julho de 1749, faz-he referéncias que inculeam ser promissora a obra dos missionarios. O esiabelecimento prosperava ©, por essa época, ampliava o campo de sua atividade, montando a indistria da criagao de gado vacum. A colonizacao dos Uaboi, pois, obedecia, evidentemente, a um plano de largas proporgoes :_e muito se esperava da acdo dos missionarios, quando éles foram compelidos a abandonar 0 em- preendimento, por forca das leis de 6 e 7 de junho de 1755, que estatuiram a liberdade dos indios e a secularizacio das colénias indigenas, Em 1758, com efeito, inaugurou-se o regime criado POF estas Jeis. Efetivou-se a destituigao dos catequistas e a colonia da Pie- dade do Jamunda foi elevada a categoria de vila com o nome de S. Joao Batista de Faro. Com relacao A liberdade dos indios, porém, a Cérte conveio na modificacao da respectiva lei, na forma indicada por Mendonca Furtado. O entao Governador da Capitania do Grao-Para opinou que © self-gouvernement outorgado as tribos colonizadas era prema- dado éenci Selecio de noticis para a Histiria © Geografia das Napdes Uitcamarinas. Vil. aa == foro, dada a incapacidade dos indios para geriiem °° negdcios pablicos nas suas povoasbes. Propés, por consegiiéncia, gue tran sitoriamente, fossem as povoagoes indigenas administradas por um diretor “ao qual, sem ter jurisdicao alguma coativa, jhe pertencesse 66 a dirctiva para lhes iv ensinando, nao a forma de se governarem civilmente, mas @ ecomerciarem € a cultivarem as suas terTas © tira- rem déstes frutuosos € interessantissimos trabalhos os lucros que elas sem duvida alguma hao de dar de si, e fazerem-se éstes ate agora desgracados homens pox esta forma cristAos, civis © ricos que €0 que sem divida alguma Ihes hha de suceder, se seus diretores fizerem a sua obrigacdo’. (*) ‘(Os Uabot acolheram com satisfacéo © regime instituido pox Mendonca Furtado, e a vila de Faro desfrutou longos anos de ordem ¢ trangiiilidade, Em 1798, porém, entraram em vigor novas normas administra- iivas, que colocaram 0S indigenas sob a sancao de regulamentes draconianos, *D tribo alvorogou-se e, em 1801, explodiu a insurreicdo: 08 indios abandonaram em massa 2 vila, internando-se nas florestas dos rios Trombetas e Jamunda. ‘Diz-se que, ate meado 0 sécilo XIX, foi observada a presenca déles, em certas ocasides, na sett de Arua, 3 algumas leguas de Faro, Depois desta época, porém, desapareceram definitivamente, cendo desconhecido seu paradeiro. i OS CHIBCHAS os homens vevinethos em tempos remotissimos foram divepson do que, quando pela primeira vez, nos foram E185 Pin sityos pelos conguistadores espanhsis & portuguese s” Von Martius. (© passado € ¢ futuro da rata americana): Nos anos de 1928 e 1929, percorri © examinel as tapers da tribo Uaboi, assinaladas, invariavelmente, por numerosos fragmen- tos de ceramica — restos de vasos € esculturas. Uma atividade de dezoito anos de diuturna vida sertaneja pro- porcionara-me convivio ou relagdes com indios de quase todas as Jatitudes do Brasil, uma imensa aglomeracao babilénica de linguas G Anais da Biblioteca © Arquivo’ Pablico do Estado do Parf. tome TV; pag. 186. iors e costumes. Nesta grande variedade de matizes étnicos e etnol gicos, entretanto, jamais observei nem praticas que pudessem ori- ginar destrocgos daquela ordem, nem aptidées artisticas 4 altura das eonfeccdes plasticas que eu deparara no Trombetas e Jamunda. Encarados, pois, como manifestacio de um costume, quer como expressao de cultura, aquéles despojos ceramicos definiram, desde logo, © carater exdtico da civilizacio dos Uaboi, afastando em absoluto a idéia de qualquer parenteseo entre este povo € as tribos autéctonas brasjleiras. De resto, nos proprios simbolos ¢ concepgées configiiradas na ceramica, transpareciain idéias e um estilo mui pectiliares 4 escul- tura pré-historica andina; sendo plausiyel, portanto, que se pro- curasse ai nas cordilheiras, a origem do povo dé/Prombetas. ‘As investigacdes assim orientadas positivaram, efetivamente, notaveis analogias entre a civilizacao déste povo ¢ a dos Chibcha. Na histéria antiga dos povos andinos, éste nome Chibcha ou © Muisca teve grande relevancia designando uma numetosa coleti- vidade que emerge de um passado remoto — um grande Império, certamente, que teria sido dos mais poderosos e maiores do seu tempo, Os seus dominios abrangiam todo o territério da Cundi- namarca e de Boiaeé, nos Andes Colombianos — e mais — abri- gando uma populacdo de tal sorte numerosa e densa, que foi mo- tivo do epigrama que vincou A raca e cognome — Moscas. (") Pelo lado cultural, também tiveram notoriedade os Chibcha. A sua civilizacdo, fora a dos Quichuas e Aztecas, nao foi suplan- tada por nenhuma outra da América do Sul. Esta civilizacio, porém, atravessa os séculos mesclando-se em virtude das coalisdes ¢ conquistas realizadas pelo Estado: uma desenfreada politica expansionista, que foi apanagio também dos Quichuas, Astecas e quica das nagdes teocraticas. Bste Império, em suma, que estendera a sua soberania a povos de diferentes racas, socobrou em época e em circunstancias desco- nhecidas. Os antigos povos da Cordilheina viveram sob os tormentos de graves e continuas calamidades. Ja eram os cataclismos geolégicos gue arrazayam cidades ¢ tudo destruiam ; ja as guerras de con- quista, horriveis hecatombes em que os povos se dizimavam. Nao menos funesta que todos éstes flagelos foi a invasao dos Caraiba. 4) Jiao C, Sars: Blnologia y Historie de Tierra Firme, pag, 273. Trecho daCarta do Pard mostrando as localidades onde foram encontrados depositos de ceramica indigena antiga até 1928, segundo schema que illustra o artigo do Snr Eladio Filho, publicado no Jornal “Estado doPara” em 4deSetembro de 1928 Escala: 17000080 & Depositos 8p sed ap odo == Durante largo ciclo, os Andes Colombianos"estiveram sob 0 tropel de hordas de um povo barbaro e feroz que escravizava, massacrava e devastava, irresistivel em sua furia. © Império Chibcha foi colhido, necessariamente, por uma destas catastrofes, fatores da ruina de outros povos. O fato € que, no século XVI, as chamados povos Chibchas se achavam em completa dispersio. Os espanhéis que conquistaram a Terra Firme, nesta época, encontraram-nos divididos em diferen- tes reinos, que se dilaceravam em encarnicada guerra de conquista, travada, principalmente, entre os Estados de Bogota, Tunga ¢ Traca, Francisco Orellana ¢ seu séquito, largando-se, de Quito, em 1530, pelo rio Maranhao abaixo, também depararam, no baixo Jamunda, com oS indios Conori, ja agora identificados como horda da tribo Uaboi. Mais além éstes navegantes teriam, porventura, entrado em contacto com outros povos de assinalada identidade etnografica com os Uaboi e co mos Chibcha — entre éles os chamados Art ques de Santarém, Marajé e Cunani, além de tantos outros que estavam disseminados por toda a Amazénia e pelas bacias do Tapajés e Xingu. Um €xodo assim t&o considerdvel equivale a um desbarata- mento que evidencia a dissolugio do antigo Império Chibcha. PARTE SEGUNDA ETNOGRAEIA E ARQUEOLOGIA 1 A TRILOGIA SAGRADA “Pour reconstituer par exenaple des traits d'une organisa- tion sociale disparue, on pourra, on devra, avec prudence sans doute, Saider de la considération de ce que ses atiteurs, étant donné ce quson sait des circonstances oil ils vivaient, ont da vouloie realéser””. René Wows. (Philosophie des Sciences Sociales. Vol. 1, p- 99-100). “La seligién intervenia en las mas insignificantes detalles de la vida indigena’’ Jit10 C. Saras (Btnologia y Historia de Tieera Firme, p. 48). As taperas indigenas do Baixo-Amazonas, entre as quais as dos Uaboi, sao designadas, na linguagem dos etndlogos brasilei- =o tos, pelo nome ceramio ou ceramico; vulgarmente, sio conhecidas por terra préta. A, denominagao, neste tltimo caso, foi inspirada pelo fato de estarem estas antigas estancias dos indios situadas sempre em um solo de argila negra; os cientistas, de set lado, tiveram em vista a circunstancia de existirem, nestes sitios, fragmentos de ceramica em profusao. Percorrendo estas paragens, porém, pude verificar que as taperas nao se assinalam tao sémente por aqueéles dois elementos, mas também por um terceiro — 0 lago — junto ao gual a terra préta e a ceramica se localizam, indefectivelmente, A primeira percepeao que se tem déstes sitios € a de povoa- ses extintas, das quais subsistem apenas destrogos de objetos € utensilios domésticos, representados pela ceramica. Quem perlus- trar, porém, os contornos do lago Sapucti e as ilhas do Baixo. ~Trombetas, todas sujeitas a inundacées petiédicas, descobrir: nestes lugares inabitaveis — depésitos de ceramicas, cuja origem nao comporta, portanto, aquela explicacao. Buscando, pois, outra justificacao, considerei aquéle consércio da terra préta, da ceramica e do lago como resultante de uma sorte de dependéncia miitua entre éstes elementos ; dependéncia esta decorrente de uma finalidacl: comum, como ocorre em téda relacdo de coexisténcia. HE, levando mais longe a interpretagao, nao tive divida em atribuir a esta finalidade um carater social. Assim opinando, tomei por base a participagao da cerdamica naquele consércio; porque, como elementos de procedéncia hu- mana que é ela, de qualquer modo, exprime um fato mental, uma ordem de coisas em que atuava um intento dos indigenas. A tradigao jamais féz revelacées a éste Tespeito; mas con- soante a técnica que René Worms preconiza nas investigacdes pré- chistoricas, pode-se desvendar aquela incognita inquirindo — “cle ce que ses auteurs, étant donné ce qu'on sait des circonstances ow ils vivaient, ont di vouloir realiser’”. (°) Neste particular, a visdio que se tem da tribo Uaboi é a perti- nente a uma civilizacao em pleno regime politeista, que, segundo. Augusto Comte, foi aquéle em que o espirito religioso alcancou 0 maior desenvolvimento possivel”’ : (”) um povo mistico, pois, pro- fundamente absorvido no culto dos deuses ¢ Praticas religiosas de toda ordem. ) ReNé Womns : Philosophie des Sciences. Vol. 1, pigs, 99-100, ()) Mss U, Masuseau: Philosophie Positive. pég. 236. = As esculturas ceramicas existentes nas taperas, simbolos reli- giosos que so, concernem, certamente, a ésse culto, tanto quanto © lago que, como adiante se mostrara, gozou de foros sagrados na teogonia de certos povos indigenas da América do Sul. , poranto, para concluir-se que, naquela existéncia da terra préta, da ceramica e do lago — a trilogia sagrada, — tudo se con- diciona a fins essencialmente religiosos. Nas paginas seguintes, serdo explanadas convenientemente as conclusdes que ai ficam esbo¢adas, em ordem a caracterizar o con- junto de atos e praticas que se enfeixam na idolatria dos Uaboi. rit A TERRA PRETA “Em diferentes pontos, encontram-se manchas de ferra préta muito abundantemente, e-em todos os casos, tanto quanto consegui informar-me, elas estao cheias de antigui- dades dos indios, utensilios de pedra e fragmentos de louga”. Orvitte A. D: BY. (Q Rio Trombetas, “in Boletim do Museu Paraense. Tomo Il). Terra préta, como ja ficou dito, ¢ a designacdo dada, vulgar~ mente, a uns redutos ou manchas de argila negra existentes em cer- tos pantos do vale inferior dos rios Trombetas e Jamunda. Sao, provavImente, formag6es aluvionais que sedimentaram os lagos, onde aparecem, constituindo uma estrutura de area assaz limitada, de dois a quatro hectares, se tanto, e com exigua espes- sura. Em certos pontos em que fiz escavagées, estas nao atingi- ram sequer um retro de profundidade. Estes sitios tem notoriedade por conterem, inwariavelmente, destrocos de ceramica indigena, antiga. Tanto assim que, glosando, @ste fato, a gente do Trombetas diz, até com entono de anexim : “Na terra préta, h& careta’’, — sendo éste térmo alusao as eseultu- ras ceramicas. Nas margens dos rios Trombetas e Jamunda, contam-se nume- rosas terras prétas, sendo principais as seguintes : No Trombetas, ag situadas nos lugares denominados Laranjal, Tapagem, Arrozal, Macacos, Uaboi, Caetano, Uaupés e S. Nicolau, todos a borda dos lagos homénimos — salvo a primeira, a do Laranjal, que se loca- liza mesmo a margem direita daquele rio. As de Conori, Cocais ¢ Anjos acham-se junto ao lago de Sapucua; ¢ no rio Jamunda, a da Aldeia Velha, além de outras, —15 — Eyacuadas pelos indios, ja na segunda metade do século XVIII, foram as terras prétas, cem anos depois, ocupadas por quilombolas que ai estabeleceram os seus arraiais. Posteriomente, instalaram-se nestas paragens os seringueiros ¢ outros extratores de produtos naturais. A conyergéncia déstes adventicios para éstes sitios, motivada pelo preconicio da terra préta como solo lavradio, foi extremamente funesta a ciéncia. E que, em virtude das consecutivas culturas a que Fora submetido o terreno, o seu conteudo, que era:a cera- mica, sofreu tédas as conseqiiéncias dos amanhos. . De modo que, quando cessaram as atividades daqueles indi- viduos essas antigiiidades estavam completamente desbaratadas. Em 1929, ainda existiam, no Trombetas, dois sobreviventes dos antigos mucambos, os velhos Lourengo e Antonio dos Santos, que me descreveram 0 aspecto das terras’ prétas, quando os qui- Iémbolas as ocuparam : vastos estendais de objetos de barro e de silex : vasos, esculturas, mos, machados e rocas — tudo despe- dacado ¢ em promiseuidade ; uns, apenas mutilados, outros redu- zidos a estilhacos. E Referiam ainda os meus informantes que entre os seus maiores era corrente a versao de que foi nestes sitios que os indios realiza- vam certas festividades que terminavam sempre em desenfreada bacanal. A informacaio aproveitara para conclusdo de outra ordem, mas as saturnais nenhuma relacdo tem com aquelas devastacées, estra- nhas, que sao, aos ritos dos Ulaboi. Este ponto dos costumes déstes indios sera elucidado oportu- namente; de modo formal, porém, pode-se afirmar que aquelas depredacdes foram obra de alienigenas. Nao insistirei sébre éste pormenor, mas, se se aprofundar na indagagao, ver-se-4 quea destruicao dos objetos do culto dos indios foi uma norma de conduta sistematica dos primeiros missionarios, tanto no Brasil como nas antigas colénias espanholas. Testemunho elogiiente e, a um tempo, insuspeito quanto a isso. 6 o do Padre Joao Daniel, antigo catequista no Amazonas, que justifica o procedimento dos missionarios alegando que os indi- genas “caminham para o inferno, enganados pelo deménio, por meio daquelas insensiveis estatuas, que sao o ima da sua eterna perdigao’’. (*) (©) _Padte Joho Dante: ‘Fesouro descoberto. no maximo rio Amazonas. Rev. do Instit. Hist. Beas., tomo VIL, pag. 481. a 6 Ir A CERAMICA “Pour chaque race ef pour chaque phase de l'évolution de cette race, il y a des conditions d'éxistence, de sentiments, de pensées, dopinions, dinfluences. héreditaires que imp! quent certains institutions et n'en impliquent pas d'autres G. Lz Bon (E’évolution des. peuples). ‘As artes plasticas e a arquitetura tiveram larga difusao entre ©s antigos povos andinos, muitos dos quais as cultivavam com habi- lidade notavel em todas as modalidades. No circulo da raga Chib- sha, porem, esta cultura cingiu-se 4 ceramica ¢ a ourivesaria ; pois, como observam Carlos C.,Marques ¢ Julio C. Salas. as tribos desta estitpe jamais empregaram a pedra, “nem nas suas construe goes, nem pata representar a figura dos seus herdis ou de suas divindades”, (*) m Esta negacdo para a arquitetura e para a estatuaria foi pat- tilhada pelos Uaboi em cujos dominios jamais se encontraram vestigios destas artes, tam-se os primeiros sintomas da influéncia dos Chibcha na constitui¢ao cultural dos indios do Trombetas e Jamunda; influéncia que se destaca com téda rele- vancia, quando se atenta no conjunto de idéias tepresentadas na ceramica desta tribo. Na apreciacao destas idéias, importa considerar que as civili- zagoes primitivas eram Estados associados a religiao em intima’ simbiose, da qual participavam as artes, entre elas a escultura, com funcGes que Ihes eram préprias. Os deuses, por isso, eram nacionais e, como éles, a escultura, destinada a exterioriza-los. E por via deste regime de Oficializacdo das artes ¢ da religiao, generalizado entre os antigos Estados indigenas, que considero a ceramica plastica como uma fonte fidedigna de identificagao étnica entre povos, e nela me louvo para reconhecer vinculos genealégicos como no caso das analogias que se patenteiam entre as esculturas dos Uaboi e a mitologia dos Chibcha. Uma destas esculturas. muito vulgar nas taperas do Trombe- tas © Jamunda, € a do batraquio da fig. 14, simbolo da agua segundo Jiilio.C. Salas, (') e sobre o qual Soledad Acosta de f)_ Cattios GC. Maxours = Bstidios: arqueolégicos y etnogeétieés. Vel, 1, pags 102-3 — Jai C. Sauas: Op. dit,, pag. 8S (10) Tati C. Saras: Op. off. pag, 92. sem invoear 0 seu padro: 17 Samper escreve: “Entre sus dioses los Chibchas adoraban al sapo el cual sefialan eu sus calendarios en diferentes posturas, a saber - en accion de saltar significa la entrada del aio, y con cola ou sin ella, con patas 6 n6, significaba las diferentes épocas del ato y Jas estaciones proprias para las siembras o las cosechas”,. (”) A cabeca de ave da fig. 15, outro idolo profusamente encon- trado nas taperas, foi interpretado, na teogonia dos Chibcha, pelo Professor Artur Posnansky como representacao do condor (sarcoramphus gryphus) simbolizando 0 “condutor da luz & calor solar’. ("*) A fig. 16 reproduz um idolo falico, representado por um simio do sexo masculino, exibindo o érgao genital come é da mito- logia Chibcha. (“) Na fig. 17 estampa-se uma escultura da Lua (Chia) esposa do Sol (Sua), segundo os Chibcha. ('*) A escultura da fig. 28 foi encontrada na ilha Paru, situada no lago do mesmo nome. Interpreto-a como representacao do deus Foo, cujo simbolo era a rapésas Os Chibcha consagravam-no aos esportes e diversdes de fda ordem e ofertavam-the penas coloridas. ("°) ‘ “A religiio, como diz Julio C. Salas, intervinha nos mais insignificantes pormenores da vida indigena”’, (**) sendo cada ordem de atividade presidida por uma divindade. Os decoradores de mantos e0s individuos que se dedicavam ao transporte de ma- deiras, por exemple, nao executavam os seus respectivos trabalhos D ‘ 0 — Nericatacod — gue era também o Baco dos Chibcha. + Numeroso pois, era 0 eleneo dos deuses, os quais compreen- diam duas categorias : uns superiores, como Chiminiguagua, Bo- chica, Icadanza, Cuchavira, etc. ; outros inferiores, entre os quais Chaquén, Nancatacoa ete. (") Nao encontrei, infelizmente, nos estudos dos americanistas colombianos que me foi dado consultar, elementos para identificar as esculturas den. 18 a 21, 23, 26 e 27. Chamam-se, pos ivel- () “Soigpape Acosra oe Sibir: “Los aborigenes que problacan los tervitorios de Colombia, in Anales del Congr. Intern. de Americanistas. — 'Madst. 1892, pag. 437, (12) Anrur PosNansky: "BL signa escalonado en las tdeografias americeinas, tn Broced ings of XVIII Congr. of Americanists, London, paste II, pag. 287. 09) Cantos C. Minouez: Op, cit, Vol. I. pig. 182. G9 Jlino C, Sauas: Op. eit. pig. 285 Us) Tb Tb. Ib. (18) Jattio C. Satas: Op. cif. pag. 48. (5) Ib, Tb., pag. 286 =i mente, Bochica, Icadanza, Chaquén e mesmo Fomagata os génios do mal, Considerada quanto ao estilo e a técnica, a arte dos ceramistas do Trombetas, sendo oriunda da dos Chibcha. revela, entretanto, influxos de uma orientacéo diversa daquela com a qual a escultura deste povo resvalou para os “tipos gesticulantes de fealdade siste- imatica’’ de que fala o General Bartolomeu re a propésito das artes dos Chibcha e dos Asteca. (**) As, confecgdes plasticas dos Uaboi, realmente, embora res- sentindo-Se das imperfeicdes inerentes a infancia da escultura, intepretam as figuras com esméro e propriedade, isentando-as dos exageros ¢ estravagancias que foram a voliipia de outros povos. ‘Na apreciacao da escultura do Trombetas, alias, ha uma con- sideracdo que se impde: é a sua condicao de arte hieratica, enclau- surada na tradicao € no dogma. Sob um tal regime, a arte segrega-se ao seryico do culto, eo escultor concentra a sua atividade na missdo de reproduzir a figura das divindades, “sempre representatlas sob o mesmo tipo’’ © sob as vistas do sacerdote, quando éle proprio. nao fosse o artifice. (") A escultura, como arte sagrada, medrou entre os povos de organizacio teocratica, que tera sido a condicao da tribo Uaboi. Estagnada, em suma, pelas inibicoes e reservas de arte reli-~ giosa, a.ceramica déstes indios jamais se apresentascom as pompas da escultura profana Na decoracdo, por exemplo, t6da confeccao se subordina, rigorosamente, a motivos geométricos, restritos, porém, aos ritmo: retilineos elementares, sendo todo lavor cinzelado. E de modo absoluto, nem representacoes picturais, nem elementos curvilineos, nem linhas interceptadas ou cruzadas, nem desenhos florais, antro- pomérficos ou zoomérficos. Apesar de adstritos as mais singelas combinagSes da linha reta, os escultores do Trombetas — tante quanto se pode exigir de uma arte rudimentar — nada deixaram a desejar como decora- dores, pelo bom gésto e habilidade com que compuseram as fran- jas gregas e meandros. (Figs. 7 a 10). Este tltimo género de motivo ornamental foi-lhes particular- mente favorito, tendo sido objeto de interessantes delineamentos. Dentre tantos outros, destacarei pela sua originalidade, o lavor estampado na fig. 7. & uma composicao em grande estilo, saida das maos de um mestre, sem divida. Aberrando das cons- (18) Bawrotomé Mirre: Las Ruinas de Tiahuanaco. G2) Kant Ronenr: Traité pratique de modelage ef de sculpture. Sis trugGes comuns, que consistiam na repeticao de um mesmo motivo, © desenho, aqui, apresenta o meandro em duas séries paralelas, interrompidas por um dispositivo cruciforme. © meandro, propria~ mente, € uma duplicacao da grega simples, enquanto que neste dis- positivo se adaptam cinco destas gregas, dispostas adequadamente, em sentido horizontal e vertical, em ordem a formarem uma cruz sui-generis de cinco ramos, um dos quais introvertido, ‘ Este dispositive parece ser a figura central da composicao: Na decoraco dos vasos sagrados, sobretudo nas urnas cinerdrias dos Azteca e Quichua, foi muito comum 0 emprégo da cruz, observada também em alguuns exemplares da chamada fanga do Marajo. Em ambos 08 casos, porém, o signo afeta sempre a forma da cruz grega. me Na originalidade da cruz dos Uaboi, of que ressalta, sobre- tudo, € a afirmac&o de um principio geométrico que interdita o cruzamento das linhas, Eta peca arqueologica é um fragmento de vaso achado na tapera do lugar denominado Cocais, no lago de Sapucua. A fig. 9 mostra outro fragmento de vaso, procedente da tapera de Anjos, na igarapé déste nome, afluente do lago Sapucua. A decoracdio estelar que ai se apresenta ¢ um caso tinico, segundo minhas“observagoes, na decoracdo ceramica dos Uaboi. © “signio’ escalonado”, na expressio do citado Professor Artur Posnansky (”) gozou da predilecdo dos decoradores andinos y¢ teve curso entre os ceramistas do Trombetas. Afirma-o a fig. 31, que reproduz um fragmento de ceramica desgastado pela Agua, mas restaurado, em maior escala, na fig. 32. Nos yasos e urnas votivas, os Uaboi empregavam a orna- mentacao simbélica, caso em que eram admitidas representacdes antropomérficas e zoomérfica: E 0 que se observa na urna cinerdria representada nas figs Ja4. Adornam-na um animal de aparéncia simiesca, da mito- logia Chibcha, e uma figura humana, tendo na fronte, de ambos os lados, signos semelhantes as insignias sacerdotais désse povo. Bste objeto, que é, no seu género, um dos poucos que esca- param ao furor dos destruidores de antigiiidades indigenas, foi achado pelo Sr. Dr. Joao Henrique Dinis em um terreno agreste de sua propriedade, na ilha de S. Jodo ou Botoas, sita no Baixo- ~Trombetas. @0) Arun Poswansky: Op. eff. — 2 — A pequena distancia desta ilha, existe uma outra denominada Jacopa, onde, ha tempos, foi encontrada uma escultura igualmente interessante, e até particularmente notavel, porque se relaciona com um ramo da arte plastica que enyolve elevadas Faculdades art cas; a alegoria. ‘Trata-se de um grupo representando um episédio de uma das legendas da tribo. Sébre éle, reporto-me a descricdo do Vigatio de Obidos (Para), Padre Augusto Joao Maria Cullérre feita em carta dirigida ao Barao de Solimées, proprietario da reliquia. Déestaco desta missiva os topicos propriamente descritivos, o5 Quais sao assim concebidos “O grupo singular que WV. tem a fortuna de possuir me parece ser da mesmaescola que os dois idolos de pesca que mandei ao Sr, P, de Lisle da Dreneux, conservador do museu arqueol6- gico de Nantes, cuja desericao foi publicada por éle em 1889 ¢ que comuniquei a V. “A escultura que V. possui representa uma mulher nua, assen tada e coroada com uma espécie deltiara asiaticz. Um enorme peixe, que julgo ser um béto, the servende encdsto e parece protegé-la. “O monstro nao tem a atitude de quem quemdevorar a présa, a0 contrario, 0 focinho recurvado tem alguma coisa que inculca 1 peito, O ar de quietude majestosa da mulher coroadaya sua sin- gular posicdo, sua nudez, as trangas do cabelo e os bracos rudimen- tarios aderindo de cada lado do ventre do animal, tudo me levaa | pensar que o peixe € uma alegoria representando o lago, dominio da mae do Muiraquita ou mae-d’agua dos indigena Nao me dou como infalivel; minha afirmacdo nao passa de uma simples conjetura, filha da intuicio ¢ nada mais. Penso que a mulher assentada representa Chalchibuis, mae do Muiraquiti, do México, deusa dos lagos e dos rios, a Curumu dos Caratba, a Marud-Jacu dos peruanos Enfim, a vista dos dois buracos desti- nados pelo escultor a fixar a figura na proa de uma embarcacio, me parece ser um idolo de pesca. O que me leva a pensar assim & a semelhanca que existe entre essa escultura curiosa e os idolos de pesca achados nas mesmas paragens, outrora habitadas pelos Iea- miabas. As fei¢des severas do rosto, as linhas bruscas da escul- tura, tudo indica a mesma escola e a mesma destinacao”, (*) (Al), Rev. da Sve. de Geogr. do Rio de Janeiro, tomo Vil, 4° Boletim, 1891 Bags. 282-85, ae IV © LAGO . comin es la costumbre que tienen los indios que Sirvem dé guias 0 baqulanos. de pasar silenciosamente por delante de las lagunas que se encuentran en los montes y paramos desiertos ; a veces encargan al viajero a quein sirven no haga mido ni grita, por temor de enojar a la divindad tutelar de Tas aguias encantadas’. Junio C. Sarasy (Btrologia e Histéria de Tierra Firme). O sistema religioso dos Chibcha abrangeu um conjunto de concepcdes compreendendo duas ordens de mitos: uma’ concer- nente as divindades e outra, ao totem. Por divindades entendiam-se entidades imaginatias as quais se atribuia o poder de influir sobre “os séres as coisa: e, em conseqiiéncia, os indigenas nao cessavam de invocd-las, para alcancarem os beneficios quespretendessem. Era assim na plantacio’e na colheita, nas calamidades e nas guerras, nos tentamessde' toda ordem, e mesmo nos casos mais banais. = Por uma sortésdé especializacao de funcdo, a cada divindade atribuia-se uma esfera de influéncia, sendo, por isso, ilimitado o niimero destas potestades ; mas o respectivo culto nao ultpassava, em regraj 0 citculo das tribos de consanguinidade mais proxima. Fora delas, os mitos transformavam-se. O totem, ao contrario, era uno. © seu culto consistia em uma fervorosa veneracéo, que ndo consultava, porém, 0 egoismo dos figis, inspirando-se essencialmente, na exaltaco da progénie da raca e dos antepassados, Esta veneragao; elevada ao fanatismo, universaliza-se, diluida na tradicdo, por onde quer que haja atingido os prolongamentos da taga, como um principio sagrado e inviolavel © totem, originariamente, 6 uma concepeao autropomérfica, mas os Chibcha simbolizavam-no sob a forma de um animal. Carlos C, Marquez assim se externa a respeito déste mito : ‘Los Chibchas decian que la Bachite, madre prolifica de la naci6n, habia salido de la laguna Iquaque. y despues de haber poblado la tierra se habia convertido en serpiente y se habia submergido para siempre en sus aguas, De aqui que caflaris. y chibchas consideran las lagunas como sitios sagra- dos y los tuvieran entre sus principales adoratorios” () (2) Canuos C. Marauez: Op. eit, Vol. II, pag. 131 Por tudo que ficou dito a propésito das taperas do Trombetas e do Jamunda, pode-se afirmar que éste mito nao é estranho ao costume dos Uaboi que deu lugar a formacio dos depositos de ceramica existentes nestes sitios. Qs ritos dos Chibcha, pertinentes a éste culto de Bachue, nenhuma divida, deixam a éste respeito. Ternaux Compans, no seu Essais sur Cundinamarca, fornece amplos esclarecimentos sébre éste assunto. Além das divindades — diz éste autor — cada indio venerava um lago, uma montanha, uma pedra ou qualquer outro objeto que 0 impressionasse. Quando queria implorar a assisténcia das divin- dades, éle se submetia a rigoroso jejum, durante alguns dias, no decurso dos quais’ndo comia nem carne, nem peixe, alimentando-se apenas de ervas, sem qualquer condimento, Durante esta peniten- cia, nado s6 se abstinha de banho, como nao se aproximava de sua mulher. Em seguida — refere ainda o citado autor — 0 penitente entendia-se com um sacerdote qué tivesse assistido ao jejum © entregava-lhe a sua oferenda, que era, ordinariamente, a figura de um animal em ouro. © sacerdote dirigia-Se entao ao lugar vene- rado pelo fiel e, tendo despido a sua roupa, envolvia a oferenda em algodao e fazia uma prece a divindade; lancando, por esta ocasiao, a oferenda na Agua ou enterrando-a, segundo a natureza do lugar. O devoto pagava-lhe o serviga em pecas de algodao ¢ algum ouro, reunindo ent&o seus parentes e amigos com os quais realizava uma orgia. Alude ainda Ternaux Compans gue as oferendas feitas as divindades que tivessem templo eram langadas pelo sacerdote em grandes vasos afetando a figura da divindade que néle se adorava. Uma vez cheios, éstes vasos eram esvaziados misteriosamente, em lugar conhecido sémente dos principais sacerdotes do templo. A estes sitios se dava 0 nome de Chuncho, que quer dizer — lugar santo — (*). Assinalarei, em primeiro lugar, a concordancia destas versdes com a que me forneceram os velhos Lourenco e Antonio dos San- tos, quando me informaram de que as terras prétas eram sitios onde os indios celebravam bacanais. Ja agora esta elucidado que tal pratica era peculiar ao rito dos Chibcha e andloga 4 que realiza~ yam os penientes nos Chunchos. (B) ‘Ternaux Compans: Op. city. pigs. 44-45. a Concludentemente, as terras prétas foram lugares santos, onde se celebravam atos propiciatorios. Importa discernir, entretanto, que, ao que os Chibchas situa~ vam os seus Chunchos no lago ott no monte, na pedra ou em qual- quer objeto, os Uabei, coerentes com o dogma, concentravam a sua veneracdo, ortodoxamente. no lago, CONCLUSGES: I A tribo Uabot, primitivamente estabelecida no rio Trombetas, é a prépria tribo Jamunda colnizada pelos catequistas da Ordem da Piedade, na primeira metade do século XVIII, na missao de Pie- dade de Jamunda, depois denominada Vila de S. Jodo Batista de Faro. ir Em 1801, os indiogyg@ingurgiram contra o regime administra- s indiosysé i tivo que Ihes foi imposto, dispersando-se na selva. entre os rios Trombetas, Mapueta e Jamunda. It Asvantigas estincias desta tribo so assinaladas por uma tri- Jogia constituida por um reduto de argila negra, vulgarmente conhe- cida por “terra préta’’, por despojos de ceramica ¢ por um lago. Iv As terras prétas, possiyelmente, séo massas aluvionais que sedimentaram os lagos no passado,-mero fenémeno telirico. Vv Os indios Uaboi foram habeis ceramistas, mas jamais culti- varam a estatudria nem a arquitetura. VI A ceramica déstes indios era confeccionada com uma pasta fina em cuja composicao entravam ja uma argila vermelha, ja o caulim e a cinza do cauichi, que é uma esponja fluvial, abundante no rio Trombetas em certas épocas. XVI Entre esta tribo e os antigos poyos indigénas do Baixo-Ama- zonas, houve assinalada concordancia de doutrina teolégica como © comprovam a) a existéncia de Chunchos, isto é, depositos ceramicos ou lugares sagrados, em Santarém, Marajé, Maraca, Cunani e outros pontos + j 6) as esculturas descobertas nesses lugares reptesentande ~ a cabeca do condor, o batraquio e 0 falo, que foram idelos dos Uaboi, ss XVII we. A identidade da mitologia dos Uaboi e das tribos da Ama- z6nia oriental, define a comunhdo religiosa € étnica déstes povos. XVID Nas manifestagoes cultu parece um ecletisino qu ex6tica entre os indi Matajo ¢ de Santarém trans- “interferéncia de uma influéncia patagens, f XIX A esiili#agao, as idealizacées e demasias introduzidas na escul- tura ¢ we ceramica do Baixo-Amazonas, traduzem aberra- arte hieratica, tradicional, da gual os is detentores. PARECER (*) O Sr. J. Barbosa de Faria, etnlogo da Comisséo Rondon, traz a éste IX Congreso Brasileiro de Geografia um interessan- fissimo trabalho intitulado “A Ceramica da Tribo Uaboi dos Rios Trombetas ¢ Jamunda”, que a meu ver constitui inestimavel con- tribuigdo para o estudo da arqueologia pré-histérica do Baixo- -Amazonas. Divide 0 autor 0 seu trabalho em duas partes : a primeira, um escérgo histérico em que relata ser a tribo Llaboi primitivamente (Bote parccer foi untinimemente aprovado. VIL Estes ceraniistas nao Usavam a escultuta massi¢a, sendo sem- Seas as suas confeccSes déste género. VIL A arte plastica déstes indios aleancou notavel aperfeicoamento €stético, caracterizando-se Por uma técnica refrataria as estrava- ganciasie exageros peculiares 4 esculitra dos indigenas da América do Sul. Ix A escultura ides Uaboi teve finalidade essencialmente rel giosa. : xX O decoragao ceramiea deste Povo foi sistematicamente geo- métrica, adstrita aos mofivos retilineos elementares, com exclis absoluta de delineamentos curvilineds de qualquer ordem e tam- bem de figuras antropomorfas, zoomoniag © floreais, XI Na arte decorativa desta tribo, empregava-se exclusivamente 9 relévo, sendo interdita a Tepresentac&o pictural. XII A tribo Uaboi venerava og lagas, sendo os depdsitos cerami- cos das taperas restos de praticas propiciatérias realizadas pelos indios, XT © culto dos lagos, como professavam 0s Uaboi, foi um prin-

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