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2005PauloSchn DO PDF
2005PauloSchn DO PDF
A CONTRADIÇÃO DA
LINGUAGEM
EM WALTER BENJAMIN
Agradecimentos
RESUMO
Zusammenfassung
Die vorliegende Tese beabsichtigt den Widerspruch der Sprache in seinen zwei
Dimensionen anzuzeigen, indem sie ihn als roter Faden und Kriterium für das Verständnis
des Werkes von Walter Benjamin darlegt, um zeigen zu können, dass er mit demselben
einen grossenTeil der Erscheinungen der menschlichen Kultur bewertet. Die erste von
ihnen ist das Ansehen, dass die Sprache ein Werkzeug zur Kennzeichnung der
Gegenstände ausser ihres Bereiches sei und welche der Sprecher dann anzeigt, als ob sie
von ihm getrennt seien, und so in impliziter Absicht die Subjektivität als das Begründende
der Totalität des Wissens inauguriert. Die zweite charakterisiert die Sprache als
beständiger Ausdruck der Totalität selbst, welche sie implizit und unausweichlich immer
vorraussetzt muss, ohne sie jemals bennenen zu können. Jegliche Absicht der Begründung
wird simultan von der Sprache, die ihr vorausgeht als Bereich der Aktivität und in dem sie
mitteilt, begleitet, was sie aber in der absoluten Objektivation, in der Absicht der
Subjektivierung als begründendes Prinzip, vergisst.
Der Widerspruch der Sprache ist das Paradox der Ambivalenz, in dem der Mensch
sich befindet und das ihm, erstens, das vergessene Verstehen über sich selbst als
objektiviertes Wissen ermöglicht, und dann auch das Verständnis als Erinnerung der
Begegnung in einer totaler Einheit, die er immer schon ist, die er aber nie durch
Kausalerklärungen umschreiben kann, weil auch sie selbst sich im Ausdruck seiner selbt
als Ereignis in der Sprache ergibt.
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SUMÁRIO
I. INTRODUÇÃO................................................................................................................... 6
CONCLUSÃO....................................................................................................................... 372
I. INTRODUÇÃO
A.
Outra característica de Benjamin que chama a atenção era a sua capacidade de viver
convivendo com o contraditório: cultivava a amizade com Brecht, Adorno, Buber,
Scholem, Bloch, e lia Heidegger, quando cada um desses autores entre si nutria a antipatia
mútua, a discordância explícita nas questões teóricas e práticas, ou até má-vontade e
inimizade mais grosseiras. Para ilustrar este aspecto do jeito de ser de Benjamin, Juergen
Habermas sugere uma cena inusitada, apenas possível para uma imaginação surrealista, ou
seja, em que se sentassem para um banquete pacífico Scholem, Adorno e Brecht em torno
de uma mesa, embaixo da qual estariam acocorados Breton ou Aragon, enquanto Wyneken
estaria à porta, todos reunidos para uma discussão sobre o Espírito da utopia ou até sobre
O espírito como o adversário da alma (Habermas, J., 1981, 338). Poderíamos acrescentar a
esta lista certamente Franz Rosenzweig com “A estrela da redenção” que inicia com as
palavras: “É da morte, do medo da morte, que todo o conhecer da totalidade se inicia”.
(Rosenzweig, F., 3).
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O resultado das mais variadas abordagens da filosofia de Walter Benjamin feitas até
agora não esgotou as possibilidades que acenam desde o enfoque proposto pela presente
tese. A mera afirmação corrente de que não há como sistematizar a produção intelectual do
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autor por certo não deverá desencorajar estudos de compreensão e apresentação filosóficas
de sua obra, sob pena de se estar entendendo a atividade filosófica definitivamente como
simples elaboração e apresentação de sistemas fechados. Como já se observou, o próprio
conceito de filosofia é merecedor de atenção acurada na trama de conceitos do autor,
apresentados mais à superfície, e a maior parte da escrita de Walter Benjamin pretende ser
entendida como filosófica. A sua apresentação fragmentada e multifacetada possibilita
entrever uma constelação de elementos capaz de dinamizar as relações da filosofia com as
mais diversas áreas do saber já constituídas e da cultura em seus aspectos emergentes.
Geralmente se toma por evidente que o caráter de uma dispersão dialógica, segura de si em
seu movimento, forma-se na suposição de esteios fundamentais e assumidos que o
suportam.
Desde já, porém, é possível e, quem sabe, necessário visualizar alguns parâmetros
em relação ao pensamento de Benjamin, quais sejam:
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Por isso, caso a filosofia arvorar-se a ser como as ciências, erra; pois estaria
abandonando o seu próprio aspecto enquanto âmbito descritivo à procura das condições de
possibilidade do que se apresenta como efetiva realidade exatamente através das mesmas
ciências. O aspecto construtivo da filosofia, que Benjamin por vezes menciona, deve ser
entendido pelo viés da destruição do caráter ingênuo da sua positividade científica
caracterizada pelo esquecimento de que seus próprios supostos epistemológicos e
fundamentações teóricas são possibilitados por condições que a suportam e que
desconhece. Esse caráter destrutivo é especificamente mencionado no texto intitulado O
caráter destrutivo. Por isso, explica-se o construtivo não como mera positividade
esquecida na auto-sedução da sua promoção estratégica, mas como atividade de encontros
e oferta de cenário pelo pano de fundo relacional já aventado, pela procura e descoberta de
princípios, quando não até como alargamento de horizontes além de totalizações
provisórias com falso aspecto de definição última.
É necessário atentar para o fato de que as questões teológicas não podem ser
entendidas de forma alguma como reiteração das simplificações religiosas e confessionais.
O sagrado em Benjamin é muito mais imanente ao próprio acontecer do real entendido
como operação concreta acompanhada da multiplicidade multifacetada e complexa das
suas justificações teóricas e, exatamente por isso, é muito mais distante do que a
compreensão ingênua construída pelos postulados interesseiros da fé esperançosa em
certeza e segurança num sonho em sono dogmático. A teologia constitui-se como o
conjunto das próprias condições de possibilidade da compreensão ocorrente em todas as
áreas da cultura, mas completamente esquecida enquanto origem de todas as manifestações
que fenomenalmente perfazem a sua construção positiva em forma de normalidade
naturalizada. A teologia fala construtivamente determinando as relações, os meandros e as
sistematizações do mundo da vida, englobando até as tentativas de administração geral do
mundo científico em sua dinâmica em aceleração atordoante e difícil de visualizar pela
quantidade de suas fragmentações. O anão esquecido na máquina é a farsa da inexistência
da teologia. No interior da máquina lá está a manipular um jogo desde o início já viciado
quando esquecido e transparente ao olhar. A sua descoberta é essencial, e essa é a tarefa da
filosofia como âmbito em que se possibilita a abertura de portas para a liquidação de
transparências falsas.
A arte é também uma linguagem e é tal que com mais autenticidade representa a
verdade, pelo fato de preservar a capacidade humana de nomear. Benjamin em sua análise
da linguagem considera que a faculdade de nomear sofreu uma cisão em que permanecem
separadas a imagem e a significação abstrata e que ambas podem estar unidas nas obras de
arte dependendo da sua maior ou menor autenticidade. Há que, então, constantemente
depender das análises possíveis da arte atual como se fossem acessos diretos à verdade, à
manifestação do sagrado e à origem sempre pronta a promover a ruptura com as
normalidades catastróficas de cada época. É por isso que Benjamin busca apaixonadamente
o entendimento de Hölderlin, de Goethe, do período barroco e, entre outros mais, os
movimentos teóricos e autores de vanguarda como o Surrealismo, Kraus, Kafka, Klee,
Proust e Brecht.
compreensivo tradicional no comando gerencial dos passos do atual. Assim, quem estuda
Walter Benjamin dever-se-á dar conta de pelo menos três aspectos centrais da sua obra,
quais sejam:
por todas os arcanos do universo e do ser. Além disso, quando se tem a pretensão da
análise, do diagnóstico de uma determinada estrutura do mundo, tal atividade acontece no
suposto de explicação em termos de causa e efeito na linha do tempo: a explicação
acontece e existe como produto de causas passadas pelo modelo genético de compreensão.
Porém, na relação entre filosofia e teologia, o articulador-enunciador da explicação é visto
como a autor-criador da explicação existente, mesmo quando não se dá conta disso. As
dificuldades do articulador-enunciador são as de uma cisão fundamental que
resumidamente pode ser assim descrita: a linguagem e a racionalidade ativadas ao que
vieram, num primeiro instante, têm a pretensão de excluírem a si mesmas de todas as
implicações do estatuto de dependência da presença dos resultados da explicação e
interpretação realizada. O autor não se compromete com a sua obra e relega-a a um mundo
independente de si. O autor se aliena da sua obra e não se compreende e não se vê mais
nela. Mas o autor enquanto articulador-enunciador constitui-se da sua própria explicação e
interpretação, tanto que é a totalidade daquilo que compreende que seja. Dá-se o caso,
então, que até a explicação dos fatos em termos de causa e efeito em linha do tempo
reservada à compreensão do que seja o exercício externo a si deve ser a ele aplicada, a tal
ponto de exclusiva particularidade, que a sua pretensão de ativar algum olhar fora do
mundo e além dele é inteiramente relativizada. Permanece a explicação e o sentido dado
independentemente do autor, mas de qualquer forma ele é identificado enquanto autor e
promotor de explicações e interpretações e por elas responsabilizado. Autor e autoria e
obra identificam-se completamente e não há possibilidade de ser autor independente sem
compromissos com a sua obra e os seus supostos. O autor de explicações e interpretações é
ator, agente de si mesmo a se expressar e identificar pela linguagem das suas obras.
os aspectos da amplitude e da especificidade. Mas eles devem valer por isso mesmo, ou
seja, exemplos de descoberta.
É necessário acentuar que no rol das ciências e das tecnologias também estão
incluídas as ciências humanas que abordam analiticamente outras ciências, já que se trata
em grande parte da mesma intenção de objetividade científica e de competência
tecnológica na manipulação de resultados obtidos e do seu possível aproveitamento num
mundo tido por administrável por meio dessa atividade.
natureza além daquela que segundo a CRP é produzida pelas condições transcendentais do
conhecimento humano.
dão, então, sentido a tudo, como se fossem constelações formadas do material conceitual e
fenomenal. As idéias são pensadas como um campo de forças com características de
universalidade dinâmica, conforme a terminologia de Leibniz, isto é, como mônadas: não
como realidade superior e à parte de acordo com a conhecida interpretação platônica, mas
como concretamente ligadas à linguagem como um elemento simbólico essencial à
palavra. Essa forma de ver releva imediatamente a importância do papel da linguagem na
filosofia de Benjamin, a qual efetivamente representou uma preocupação constante no
conjunto do seu pensamento. Já em 1916 havia surgido o texto Sobre a linguagem em
geral e sobre a linguagem do ser humano e, depois, em 1933, A doutrina da semelhança e
Sobre a faculdade mimética. Mais tarde ainda, em 1935, Benjamin escreveu Problemas de
sociologia da linguagem. Haman e Humboldt são nomes da filosofia alemã, que
imediatamente se apresentam como referências para esse círculo de preocupações à
procura de dar conta da concretude dos termos da linguagem sempre em perigo de se
desvincularem do seu chão para se exilarem em abstrações muitas vezes inúteis.
Ao conhecer Bloch no ano de 1919 e seu livro O espírito da Utopia, com o passar
do tempo Benjamin foi influenciado por este filósofo à leitura e estudo de História e
consciência de classes de Lukács, o que lhe abriu as possibilidades de pensar mais
acentuadamente as relações entre a teorização e a ação, assim como Marx o propunha. Os
seus esforços no âmbito do pensamento político levam-no a encontrar Bertold Brecht para
dele receber uma influência definitivamente marcante, a ponto de suscitar os protestos
tanto de Adorno, este já comprometido com uma visão de esquerda capaz de achar
soluções relacionando Marx e Hegel, como também do seu amigo Sholem, mais
interessado pelo possível viés unilateralmente teológico que Benjamin talvez pudesse
conferir à sua obra. A tentação constante do engajamento político direto não consegue
embotá-lo a ponto de renunciar às elaborações teóricas, levando-o, pelo contrário, a cada
vez mais pensar e escrever sobre a possibilidade de juntar questões teológicas, políticas e
estéticas para aproveitar, de forma criativa e por vezes chocante, os resultados da própria
cultura em que estava imerso, como mostra o livro “Rua de mão única” (Einbahnstrasse),
em que reúne idéias políticas, filosóficas, estéticas e literárias, bem como notas de viagem,
reflexões gerais sobre amor, infância, sonhos e selos postais, propondo, além disso, um
novo uso de citações, as quais, em vez de um uso acadêmico de erudição, deveriam ser
aproveitadas para surpreender o leitor desestabilizando-o dos seus hábitos de compreensão
normalizada e construída pela ideologia meramente conservadora para a manutenção do
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separado de si mesmo. Por esse viés se intenta reproduzir no pensamento e pela linguagem
algo que se apresenta como objeto de realidade em si e fora dos limites da mesma
linguagem, bem como também externa ao falante, o qual, assim, se constitui em sujeito
articulador do processo. O sujeito supõe suas capacidade de conhecer para representar em
si figurativamente uma realidade objetiva externa a si com os recursos instrumentais da
linguagem. A partir de então, necessita controlar e analisar sem cessar as modificações da
realidade externa e suas próprias capacidades quanto à eficiência da representação que faz
em termos de adequação. O sujeito tanto mais suporte e fundamento do seu discurso será,
quanto mais puder observar, calcular e analisar o que se lhe apresenta enquanto externo e
separado de si e quanto mais puder estabelecer, também por análise, as próprias condições
internas que lhe possibilitam que explique a correspondência entre ambos os pólos. Num
processo de infinita recorrência necessita, então, assegurar-se de que as condições da
fundamentação em si mesmo e o uso da linguagem instrumental estejam corretas para que
a adequação à realidade seja realizada por representação perfeita. Para tal processo de
objetivação, portanto, o sujeito deve instaurar um fundamento sempre separado de si
mesmo que precisamente o fundamente como sujeito, a fim de que seja possível o
julgamento sobre a correção do trabalho de análise e elaboração do objeto separado e fixo
em frente. A exemplo da adoração de ídolo, necessita instaurar de modo recorrente uma
divindade separada e provisória que suposta e hipoteticamente justifique e legitime como
fundamento a correção do discurso elaborado.
verdade inscrita na obra é traduzível ou não, e isso quem decide é a obra, pois é ela que por
sua própria força aspira e leva à tradução. A necessidade da tradução decorre da essência
da obra que deste modo exige a continuidade da sua existência. Numa tradução interlinear
as palavras e as frases do original tornam-se citações na escrita de vida do próprio tradutor,
pois do texto emerge a verdade que, por um lado, já o inclui na obra e, por outro, ao
mesmo tempo, atualiza a mesma na concreção da vida. A contradição da linguagem se
localiza enquanto preocupação de não se esmerar numa tradução a carregar conteúdos
como se fossem objetos de uma língua à outra.
tem a história como que por dentro, pois engloba e assume o comprometimento com toda a
forma de explicação possível. Na concepção da idéia de origem, que já traz consigo a
compreensão inevitável do ser ativo e em totalidade mesmo que sempre indefinível por
definitivo, a história caracterizada pelo viés de causa e efeito é uma imagem, um teor, um
mosaico para a contemplação, e não mais diretamente o acontecer bruto que pudesse afetá-
la. Novamente aí encontramos em outra roupagem a contradição da linguagem.
na época exata se leia corretamente? O que impede que muitos não acordem pela
rememoração nem em tempos posteriores? Há um impedimento fatal, uma dificuldade
enorme por vencer a fim de que se chegue ao entendimento considerado correto. Que
impedimento é esse?
Já esta percepção de seu próprio tempo dá a entender a razão de por que Benjamin
se contrapunha à concepção de uma razão autônoma e sugerir um conceito de
conhecimento que possibilitasse pensar a união entre mundo e si mesmo, longe, portanto,
do divórcio fundamental e necessário à racionalidade instrumental entre subjetividade
racional articuladora de um lado e, de outro, natureza tornada objeto de manipulação. Um
si mesmo abstrato, frente a um material abstrato denominado natureza e que se dá de
acordo com os critérios do entendimento, é o desenho de um esquema geral que fortalece a
vigência de uma compreensão comprometida com os aspectos da relação geral meio-fim.
Esse esquema é combatido, pois é entendido como a concepção kantiana que estipula os
princípios da experiência possível como sendo as leis gerais da natureza conhecíveis a
priori. Em seu lugar Benjamin propõe uma concepção de experiência segura da sua
unidade original na linguagem, portanto, além do transcurso por vezes triunfante de uma
consciência que se põe solitariamente como fundamental. Numa unidade entre razão e
natureza já sempre ocorrentes e em processo de efetivação, na suposição do que as
possibilita, as coisas em geral dão a sua participação, elas se revelam em sua própria
linguagem ao homem na linguagem sonora pela qual este se identifica. A totalidade da
linguagem jamais pode ser objetivada pelo pensamento sempre relacionado com a palavra,
pois se trata de um conhecimento que ultrapassa a capacidade conceitual em seu aspecto
proposicional, o qual em cada momento se dá inevitavelmente na circunscrição que deve
supor. A inevitabilidade da suposição da linguagem ocorrente dá-se como um saber de um
incondicionado que se furta a qualquer tentativa de vislumbre numa perspectiva teórica,
em fala discursiva na intenção de fundamentação por argumentos e tentativa de edificação
de meta a ser alcançada reflexivamente, pois estas mesmas intenções estariam a evocá-la
de forma imanente e imediata. A experiência da unidade no incondicionado pela sua
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como força eficiente em cada ser humano a ponto de cada um poder reconhecê-lo em si
mesmo. É claro que a vontade e a capacidade livre deste reconhecimento estava reservada
apenas a poucos escolhidos que se tornavam os guias de uma comunidade, a qual, por sua
vez, representavam a realização do espírito. O mundo burguês Wyneken caracterizava
como profano em contraposição com o mundo nobre e sagrado, ou seja, o mundo dos
interesses partidários particulares em contraste com o mundo do espírito. No mundo dos
interesses reina uma razão cunhada pelas ciências naturais totalmente organizadas por
sistemas de conceitos e sinais orientados para fins que levam à absolutização e ao
predomínio da técnica sobre o homem, à entronização dos meios sobre os mesmos fins, à
mercantilização do espírito e à descoberta da mediocridade. Em decorrência disso, a meta
do movimento cultural constitui-se na relativização e no combate ao pensar em termos de
racionalidade dirigida a fins e na substituição desta por um saber imediato da própria vida
espiritual. A falsa autonomia da razão assim deveria ser substituída pela autonomia da vida
espiritual por meio dos princípios da formação própria da vida a partir do seu centro que
possibilitaria ao mesmo a sua unidade e a sua maior abrangência cultural. Esse aspecto
poderia ser denominado de religioso à medida que visualiza a única totalidade racional
possível capaz de se fazer acompanhar por uma orientação ética. (Wyneken, G.
Weltanschauung, 1947, 234).
publicação, isto é, sobre se ela na prática não contraria as próprias idéias que promove. A
pergunta era por Benjamin respondida no sentido de que a revista Anfang (Início), bem
como a própria Comunidade livre escolar seria um símbolo, uma ação de liberdade. Se
bem que a questão neste caso seja insolúvel - pois qual a publicação que de fato não quer
convencer o leitor – ela, porém, se desloca na preocupação de Benjamin para o âmbito da
linguagem, especificamente para a apresentação da sua teoria no artigo Sobre a linguagem
em geral e a linguagem dos homens de 1916. Mas já antes do referido artigo ele já havia
recusado o convite de Martin Buber para colaborar na revista Der Jude [O judeu]
apresentando em carta a diferenciação entre um conceito de linguagem vista como
instrumento de comunicação e outra como linguagem imediatamente revelativa:
racionalidade absolutamente autônoma, esquecida em seu absolutismo por não se dar conta
das dependências das condições de sua auto-explicação, termina por aspirar à anulação de
qualquer contraposição entre mundo empírico e mundo inteligível, entre Deus e natureza.
Como se chega a uma unidade que suplanta sujeito e objeto e não permite o seu
conhecimento? Como Hölderlin, Benjamin tentará resolver a questão pela reminiscência,
sem antes, porém, conforme a Bíblia, deixar de rotular alegoricamente todo o
conhecimento sobre bem e mal como culpa e a ação como inocência. (Benjamin, W.
Briefe, 88). O aventado teor bíblico com a questão da culpa constitui-se em horizonte
teológico para um problema epistêmico e aponta claramente para o artigo sobre a
Linguagem em geral e a linguagem dos homens, onde é abordada a hipótese da queda do
espírito da linguagem e a da expulsão do paraíso. A queda acontece pela quebra da unidade
imediata de mundo empírico e inteligível por meio do conhecimento ligado à linguagem,
quando as coisas começam a ser consideradas como contrapostas em forma de objeto e um
sujeito absolutamente consciente de si.
A obra de arte deste modo atinge a condição de tornar visível o novo e se torna o
meio em que se realiza o conhecimento da religião.
Benjamin, por sua vez, já em 1910, sob o pseudônimo de Ardor, publicou Die drei
Religionssucher (Três à procura de religião) em que já dá a entender o conceito de religião
enquanto uma conexão geral de vida. O texto trata de três jovens que saem da sua pátria à
procura da única e verdadeira religião. O primeiro jovem vai em direção de uma poderosa
cidade, “pois coisas admiráveis ele havia escutado sobre as grandes cidades: todos os
tesouros da arte lá estariam preservados, poderosos livros sobre sabedoria milenar e
finalmente também muitas igrejas...Aí certamente deveria estar a religião”. (GS II-3, 892).
Fracassa, porém, o propósito de entender a religião com a ajuda da razão, apesar da
atenção dada à tradição cultural, do aporte dos testemunhos da história e do entendimento
humano. Diz o primeiro jovem: “Pois em toda a grande cidade não há uma só igreja, cujos
dogmas e princípios eu não pudesse contestar”. (GS II-3, 894). O segundo jovem propõe-se
encontrar Deus na natureza “quando se deitava na grama e observava a passagem das
nuvens brancas no céu azul, quando na floresta como um raio repentinamente via um lago
escondido obscuramente atrás das árvores, então era feliz e pensava que teria encontrado a
religião...”.(GS II-3, 992). Mas a razão não alcança o conhecimento de Deus, sendo, pelo
contrário, capaz de se deixar levar pelas suas próprias produções até a condição de se
esquecer no dogmatismo e, finalmente, terminar no ceticismo geral deixando vazio o mero
sentimento. Deste modo o segundo jovem nunca conseguia explicar o seu ponto de vista,
resumindo os seus relatos com a expressão: “Tal coisa há que sentir!” (Idem, 894).
Tornava-se, então, motivo de risos. Não havendo resposta para a questão religiosa nem
pelo caminho da razão, nem pelo caminho do sentimento, o terceiro jovem procura
descrever em seu relato uma possível síntese de ambos os caminhos. Relata que as
dificuldades materiais o levaram a desistir da procura de algo do qual nem sabia ao certo o
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que era e o forçaram a seguir a profissão de ferreiro até aos trinta anos, quando resolve
encetar o caminho de volta para a sua aldeia natal. O caminho de volta significa ao mesmo
tempo o caminho da recordação, pois tanto o caminho de volta à terra natal enquanto
recordação o leva ao cume da montanha em que, olhando para trás,
No texto Dialog über die Religiosität der Gegenwart (Diálogo sobre a religiosidade
contemporânea) Benjamin defende a necessidade de uma nova religião, dado o fato de que
a praxis racional é insuficiente, pois, ela mesma, não se constituindo como fim da ação e
não tendo por alvo a universalidade racional, esgota-se na procura de quaisquer fins. A
totalidade racional tem como causa central a coisificação da natureza pelo entendimento e
a necessidade de uma nova religião se impõe exatamente pelo fato de Kant ter interposto
um abismo entre sensibilidade e entendimento e ver em tudo a vigência da razão prática
moral.
relação com a ciência, ou seja, que ela não deveria ser considerada como um agregado
externo de conhecimentos, muito apropriada para os fins de exercícios profissionais.
Este modelo de ciência significa nada mais e nada menos do que a ruptura com a
filosofia da consciência e com os fundamentos do racionalismo moderno. A razão à
procura de algo está novamente frente à conhecida aporia do Menon de Platão que em
resumo diz: o homem não pode procurar por nada, nem por aquilo que já sabe e nem por
aquilo que não sabe, pois, no primeiro caso, não pode procurar pelo que já possui e, no
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segundo, não pode procurar por algo que desconhece (Menon 80 C). O que se procura está
além do ser e da consciência e que só se encontra na superação da relação entre sujeito e
objeto. Benjamin busca soluções em Platão quando apresenta o desejo erótico como aquilo
que determina a totalidade do homem, tanto os seus sentimentos quanto o seu intelecto.
No Symposion Eros aparece como o guia no caminho do conhecimento do belo sagrado.
Eros aí se define como a aspiração ao todo (Symposion 192 E). Eros, filho de Poros e
Penia tem a incumbência de ser tradutor e emissário entre os deuses e os homens. E Platão
considera a efetividade erótica, o espírito e a sensibilidade, o desejo que faz a mediação
entre o finito e o infinito como aquilo que proporciona sentido de forma cabal e
incondicional. Pelo Eros o homem chega à experiência da sua dependência da natureza e
nisso, ao mesmo tempo, desta união entre si mesmo e o mundo, ele pode perceber a sua
unidade, mas também liberdade, pois agora se encontra na situação de não se compreender
como absolutamente subjugado pela natureza por um lado, e, por outro, livre da ânsia de
simplesmente dominá-la pelo entendimento. A mediação do Eros é um processo criativo
que, quando suspenso, faz desaparecer a união aludida e a vida recai nas velhas oposições
fixas de sujeito e objeto, entendimento e natureza. De acordo com este processo criativo,
não pode então haver conhecimento positivo do que é divino. A consciência nunca poderá
contar o divino como posse. É apenas na ação prática que o saber da idéia se comprova e
nunca poderá ser fixado em proposições. Esta é a razão da crítica de Platão à linguagem e à
escrita. Mas Benjamin, pelo contrário, como se verá, considera exatamente a linguagem
como a circunscrição, o medium, no qual ser e consciência têm a sua morada e onde a
verdade se revela. Enquanto Eros, na acepção de mediador elaborada, ele tem uma tarefa
hermenêutica e histórica, pois a sua função não teria significado sem a suposição de uma
separação havida e que agora cumpre unir. Tendo sido quebrada a unidade original, tem-se
agora a história como conseqüência. A unidade original Benjamin denomina paraíso e ele
se entende na tarefa de restituir a imediação perdida. Conforme bem mais tarde na XIV
tese de Sobre o conceito de história citará Karl Kraus “A origem é o alvo” (GS I-2, 631),
assim o conhecimento deve especificar-se como um modo de recordação.
Nesta acepção, o futuro somente tem sentido quando toda a atividade do presente é
considerada como meio. Deste modo, porém, o presente é degradado e paradoxalmente não
consegue moldar o futuro. A história, então, não pode ser compreendida pela relação de
um meio para um fim como na técnica e, conseqüentemente não há continuidade entre
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como poderia o observador desvincular-se dos conteúdos que compreende, quem sabe
apontando para qualquer coisa na intenção de se desfazer daquilo com que propriamente,
imanente e imediatamente está a se identificar? É levado, então, a compreender que é
compreensão fática de qualquer maneira com tudo o que ela traz consigo mesma, sem
poder indicar a origem de tal atividade para, quem sabe, poder dominar inteiramente o
processo, já que percebe muito bem o fato de que as próprias pretensões de domínio
analítico obedecem ao mesmo ritmo e se afinam pelo mesmo diapasão.
A dificuldade de fato não está em que se tente e consiga dar respostas em forma de
sentido somente objetivado, mas sim, em que a fonte da luz chega a ponto de se obnubilar
e, então, confundir-se com aquele que se dá conta e pergunta no ato mesmo de
compreender. Então, possivelmente, o que chama de juventude faz-se ocorrência nele
mesmo, ou é ele mesmo de algum modo, apesar de entender que qualquer coisa que
aconteça no mundo, na sociedade, ou consigo mesmo neste exato processo, será
novamente a compreensão do acontecido. O distanciamento de si para a análise de si e a
pergunta por si para se encontrar deixam-se envolver na mesma compreensão. Quem afinal
de contas pergunta e quem responde? Quem fala e quem ouve? Qual é o estatuto da palavra
com que está a compreender a si mesmo enquanto compreensão a se perguntar pelo
mistério de tal ocorrência? Possivelmente esteja a se perceber num diálogo constante com
a totalidade do que foi elaborado e que o assusta, aponta e escolhe como interlocutor em
acontecimento de compreensão. Possivelmente, como ele, somos todos apenas falantes a
nós mesmos e aos outros e, por vezes, apenas ouvintes de nós mesmos e dos outros.
Talvez a primazia da atenção deva ser dada a uma das dimensões já aventadas e,
por isso, considerada mais uma vez: Benjamin poderia estar fazendo uso dos versos de
Hölderlin para indicar alegoricamente o acordar na manhã de um sono e sonho instituído
compreensivamente em estado de normalidade funcional e inconsciência geral, ou seja, do
fluxo geral do pensamento rotineiro, da naturalidade de uma totalidade compreendida de
forma absoluta e positiva como se o conteúdo compreendido em nada dependesse de quem
assim compreende; em outras palavras, estaria a perguntar pela luz da clarividência na
manhã da existência para além do normatizado, ou, dele tentando tomar distância, desde
que a palavra existência significasse, por correção etimológica, a saída (ex) de uma
compreensão que imediatamente se dá como sistematizada (sistência) e no esquecimento
desse fato; além disso, estaria a perguntar pelo lugar da luz, pela sua condição de
possibilidade, pelo local de seu surgimento, como a dizer que o domínio sobre ela, a qual
rompe com a tranqüilidade do ondular pacífico e rotineiro de um pensamento domesticado
pelo ofuscamento do imediato, não é possível por parte do sujeito que a si mesmo quer
supor-se autônomo, atento e desperto, porque a própria entidade chamada de sujeito já se
configura em rotineira decisão de fundamentação justificada por consenso em percurso
histórico, comprometida com determinada compreensão de si, mas esquecida da sua
precariedade na conjugação epocal em que está em uso. Não haveria método para a
arregimentação própria e seqüente auto-execução de um programa de libertação da
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Por que os místicos são lógicos por excelência? Porque já há muito tempo
compreenderam que tudo o que dizem não passa de uma grande falácia que a própria
lógica denomina ad hominem e que se procura eternizar na simulação continuada de
objetividade. É a experiência do espanto da juventude enquanto se dar conta da
compreensão e da luz como metáforas constantes a possibilitar objetivações continuadas,
gerais e inevitáveis na angustiada lembrança de si estar a acontecer assim.
Num texto que prima pelo seu hermetismo encontramos afirmações que à primeira
vista sugerem um corpo teórico-dogmático completamente desinteressado da compreensão
de quem o lê, mas que aos poucos assusta pela amplidão e profundidade do seu sentido
quando acrescido das suas possibilidades entre uma frase e outra. No primeiro capítulo de
Metafísica da Juventude temos:
respirar novos ares. Abraão migra, ou pelo mandado da voz, ou forçado pelas
circunstâncias.
Os demônios são horríveis e culpados, porque não sabem da sua condição e nunca
compreenderão; apesar de todo o universo ecoar a sua sentença e a sua culpa não
conseguem nem ouvir acusação alguma.
Benjamin lembra que no mundo de Kafka a beleza só aparece nos locais mais
ocultos e dá como exemplo exatamente os acusados: “É notável de qualquer modo, de
certo modo é um fenômeno científico...também não pode ser a culpa que os fizesse
belos...também não pode ser o castigo justo que os faz belos já agora...portanto, só pode
tratar-se do processo movido contra eles, que de algum modo adere ao seu corpo”. [II-
2,413]. Os acusados sentem-se injustiçados e estão seguros da sua inocência, porque eles
permanecem fixos, luzentes, radiantemente obedientes aos ditames das forças que
apascentam a realidade e, em sono profundo, dificilmente ouvem o comando das mesmas.
Mas a idéia é que não são como os demônios que não conseguem ouvir a acusação de
modo algum, ao contrário dos acusados que pelo menos percebem o processo. Por isso, ao
contrário dos demônios, são belos pelo fato de inevitavelmente estarem a ouvir a acusação
e este é o início do processo, o qual é mais importante do que a culpa e o castigo. Os
acusados ouvem, reagem e estão em processo. Os demônios, porém, são vítimas de um
58
embotamento definitivo. Eles pensam que não tem culpa e esta é exatamente a culpa
maior: imaginar que não se seja culpado A ação individual e coletiva da manipulação usual
de forças desmedidas, desconhecidas, inconscientes deveria induzir a se perceber culpado
como pertencente à continuidade de uma catástrofe em andamento normal. A desgraça,
porém, é que estamos na situação demoníaca de porta-vozes da catástrofe, ou, em outros
termos, somos a continuidade dela pelo que compreendemos e promovemos via um
entendimento participativo e solidário.
Pais e funcionários têm certa semelhança entre si, como menciona Benjamin a
respeito de Kafka (GW, II-2,411). “O que fazemos e pensamos está pleno do ser dos pais e
dos ancestrais”. (GS II-1, 92) São funcionários da cultura estabelecida. Eles são a própria
tradição viva a exigir repetição dos seus padrões inscritos na inconsciência da significação
dos conteúdos da linguagem em uso e dos gestos padronizados em jeito de ser. Pensar,
falar e fazer são atividade que se exercitam e se dão pela naturalidade da continuidade da
tradição que em conjunto cultivamos e somos. Todas as determinações culturais presentes
ativam-se e se manifestam por nosso intermédio a ponto de estarmos impossibilitados de
arrancar a máscara da compreensão imposta e de nos vermos diferentemente no espelho do
59
Sem sermos avisados, pelo fato de não haver quem nos pudesse avisar, e sem
cerimônia, pelo fato de nos sentirmos em casa com a alma tranqüilamente a calçar chinelos
na penumbra de uma atenção adormecida, permanecemos escravos de uma
incompreendida força concretamente ativada pela maneira com que estamos a ser como
incompreensão teatralizada. São palavras a comandar processos que se impõem na minúcia
dos procedimentos do dia a dia alegando naturalidade lógica, e o ser a se oferecer como
palavra em processo e concretude de ação em todas as instituições sociais, bem como na
particularidade de cada um. A dificuldade está em se perceber esse simbolismo
incompreendido além da compreensão normatizada. Como já se viu, a compreensão
comprometida com aquilo que para si é tem extrema dificuldade de sair da sua letargia que
exatamente desconhece. Mas “Às vezes nos lembramos, ao acordar, de um sonho”. (Idem).
bom exemplo e proveitoso alerta para a nossa opinião de que sempre nos encontramos na
situação de acordados quando descrevemos o que designamos como a realidade positiva.
Na situação de supostamente estarmos despertos se dá primeiramente o inverso do que
pensamos do sonho, isto é, julgamos o conteúdo do nosso julgamento como absoluta e
justificadamente positivo, real, veraz e desvinculado de qualquer sonhar esquecido em
atividade delirante. Quando despertos, parece que estamos certos de que o sonhar e sonho
juntos constituem aquilo que possibilitaria a lembrança necessária pela qual o sonho como
conteúdo é relacionado e relativizado como mera atividade de sonhar. Após o sonho, o
conteúdo não mereceria estatuto de realidade absolutamente objetiva e positivada, ao
contrário da situação de nossa pretensa produção julgante e positiva quando acordados.
Às vezes, pois, ao acordar, lembramo-nos de um sonho após o sono, mas isso talvez
também possa implicar a lembrança de que ingressamos em outro sonho que é a totalidade
da compreensão instituída, em que a compreensão então imersa opera no esquecimento de
si, ou seja, no esquecimento de que é compreensão de conteúdos organizados em operação
concreta. No esquecimento continuamos a repetir critérios em utilização desde sempre na
tradição e a produzir por seu intermédio a ilusão da objetividade de um conhecimento com
pretensão de validade e separado de quem o promulga. Conceber-se sujeito a participar do
sonho é ilusão que desaparece ao acordar para dar lugar à impressão de autonomia ao
sonho de uma objetividade separada de quem a professa; são reais tanto quanto uma ilusão
e um sonho possam ser. Quando despertamos? Quando podemos ser nós mesmos sem a
interferência e o peso de um passado que levamos como que às costas, ou talvez, um
passado do qual não nos podemos descolar e que, então, sempre também somos sem o
conhecer, ou somos, sem nos conhecer na profundidade das nossas raízes? Parte do acordar
possivelmente é acontecimento de se dar conta dessa dependência, ou desse
desconhecimento. Como se institui o dar-se conta? Como se sabe a respeito da situação de
estar acordado? Quem nos alcança um método clarividente que se pudesse apresentar como
critério de consciência de vigília com sobranceira tranqüilidade? “Desse modo, raras vezes,
clarividências iluminam os montes de destroços de nossa força, pelas quais o tempo passou
voando”. (Idem).
Nas nossas aplicações viciadas acionamos uma força que não conhecemos, o que
significa que há inconsciência na nossa compreensão alocada num tempo que passa como
se fosse linha em que progredimos conforme os ditames desconhecidos, mas que trabalham
com afinco em nosso próprio ser. Na maioria das vezes somos convencidos pela totalidade
do espetáculo montado socialmente de que nada valemos pelo que pensamos e, quando
convencidos, trabalhamos para tais forças estranhas que nos comandam por convencimento
normalizado em nossa compreensão ativada na socialização, coletivização, fluxo histórico
de compreensão afirmativa, organizada e estrategicamente dinamizada.
O conhecer é uma espécie de nomeação do outro que nunca pode já estar nomeado
definitivamente, pois a notícia que dá é exatamente a infinita novidade do passado nele
presente. Cada um dos personagens da conversação é cria do passado em que nessa
dimensão presente elaboram o conteúdo de si que formalmente aplicam como sendo a
costumeira realidade do cotidiano assumido simplesmente como natural. Cavoucar nas
condições de possibilidades de si tem como resultado o conteúdo da conversação, que é
conhecimento do passado presente e determinante de todos os sonhos dogmáticos. Tal
processo dialogante chama-se juventude que se ativa num acordar constante. Mas tal
processo também significa choque e pavor frente ao conteúdo elaborado, pois a descoberta
dos supostos, das fundamentações e das motivações dos discursos, das convicções e das
ações de implementação de realidade compreensiva pode parecer assustadora ao extremo.
Trata-se de ter a sensibilidade de perceber a quantidade de louça que foi quebrada para
65
apresentar aquilo que se chama de realidade concreta com toda a sua organização
funcional. A prata luzente da realidade apresenta-se minúscula no apoio que recebe
situando-se no topo de um campo de ruínas que mesmo produziu. Juventude,
conhecimento e pavor evocam na conversação um conteúdo muito além do entendimento
costumeiro: a linguagem na conversação está carregada de um passado soterrado no
presente de sua elocução, e a escuta atenta à fala da linguagem do outro e de si mesmo faz
ouvir as massas espirituais de uma riqueza inconcebivelmente esbanjada, ou seja, a
grandeza sublime do que não foi, a totalidade do que foi destruído para que se possa
compreender a necessidade da azáfama do cotidiano com suas escolhas a comando e
imposição de urgências. Mas o que não foi e não é fala na representação do que foi e é e,
por isso, sempre pode ser descoberto, re-instaurado, remodelado com os cacos à
disposição, com as massas espirituais dos campos de ruínas.
com o que foi e que agora ainda é. A cada decisão ajuiza-se: a consciência do ajuizar causa
pavor sobre o que já foi decidido, o que se está a decidir e o que se deverá decidir para ser
– formação de campos de ruína - objetivação em meio às massas espirituais que somos a
nos comandar inconscientemente talvez na maior parte. A conversação é o diálogo que
somos e, como diálogo, é a imediata juventude a ser; pois no diálogo liquida-se o
embotamento e se aguça a atenção para notícia do que vem a ser, provindo das brumas do
passado.
A fala traz muito consigo. A semântica que acontece na fala evoca as folhas e flores
da planta cujas raízes são inúmeras e vão fundo na terra do tempo já inaugurado como
seqüência infinita e da história nele já possibilitada em termos historicistas. O acontecer da
semântica (o sentido como conteúdo) é conhecimento enquanto rastro de passado, pois,
falamos do que chegamos a ser; e, como objetivações cristalizadas do que fomos e somos
externamo-nos expressivamente em forma de fala-discurso. Erkenntnis (conhecimento) é,
também, o reconhecimento de que assim seja e tal reconhecimento como clarividência
perfaz a juventude, é juventude, é o velho novo.
Isso, por outro lado, faz ver campos em ruínas feitas de massas espirituais, vida
passada parecendo perdida pela falta de sentido, pavor diante da catástrofe em andamento
que mesmo se é pelo fato de nelas participar na compreensão sonolenta no aguardo da
clarividência qual o anjo da história desta IX Tese, que reconhece não poder voar, já que
não lhe é permitido afastar-se, pois de forma imanente faz parte do processo catastrófico:
As massas espirituais dos campos de ruína são a nossa presença como compreensão
enquanto vítimas e algozes de todas as violências já havidas: a expressão neotestamentária
Filho do Homem (Marcos 14, 21) elucida a consciência que é possível ter como
compreensão ocorrente a se perceber carregada de toda a plenitude do sentido existente,
responsável por ela e decidindo inevitavelmente no tempo agora.
“Há muitos indícios de que o mundo dos funcionários e o mundo dos pais são
idênticos para Kafka” (GW II-2,411). “Nunca jamais vimos o local da luta silenciosa que o
Eu encetou contra os pais”. (GW II-1, 92).
Nunca se vê como passado, pois toda a definição objetiva já é instauração. Como mais
Tal estado de coisas parece lembrar a Aufhebung hegeliana, mas com a diferença
essencial de que é vista no imediato presente a esmagar qualquer tentativa de organização
absoluta inicial, ou início organizativo absoluto. Estamos no meio de um jogo que já
iniciou há muito tempo com regras em grande parte desconhecidas e juízes invisíveis de
quem se escutam por vezes o apito. Mas o fato de experiência é que mudamos conhecendo
e nomeando e tal experiência é como uma cabana no deserto a demarcar instante por
instante junto com os seus horizontes uma situação, ou um estado possível. Por isso
“Agora contemplamos o que sem saber destroçamos e elevamos”. (GS, II-1, 92).
entre falante e ouvinte a constituir o que mais adiante se diz da contradição da linguagem:
“No gênio Deus fala e aprecia (lauscht) a contradição da linguagem”. (GW, II-1, 93).
Mas há outra dimensão a ser considerada. Não se pode esquecer que a fala em
conversação institui-se e no ato esgota a sua possibilidade, pois como execução de
definição morre para apenas ressurgir transfigurada no acontecimento compreensivo do
interlocutor. A fala é compreensão acontecida a se lamentar pelo seu ingresso na alienação
e no vazio da objetividade; e tal objetividade é compreendida como artefato independente
da fala.
participação das mais estapafúrdias configurações teóricas que foram e são capazes de
simular praticamente os argumentos fundantes para a produção geral de ruínas. A
formação de massas espirituais dos campos de ruína foi feita com a sua participação
ajuizante, barulhenta e zangada. As palavras na conversação dão-se conta do poder que
tem em seu comprometimento com as formações teórico-explicativas de todos os tempos a
impor aquilo que é como se fosse o último ídolo de adoração possível.
O escutante que silencia não é um Eu como sujeito determinado, pois esse tipo de
escutante procura escutar também as determinações históricas do Eu de que se dá conta:
ele sabe que o Eu é um campo de forças elaborado por significações que ainda desconhece
por não ter ouvido suficientemente. A atividade do máximo da capacidade de análise dá-se
justamente no escutante silente. O silente procura silenciar as vozes de comando do
palavreado geral que configuram tenazmente o seu Eu para escutar longe dentro de si
mesmo os ecos das vozes de deuses e demônios que desconhece, mas que o dominam
concretamente pela bruxaria da sopa teórica com que o cozinharam. O escutante silente
procura ver o lado receptor das palavras que são capazes de carregar as mais diversas
misturas de líquidos semânticos como se fossem vasos à disposição. O silente na escuta
solidariza-se ou até se identifica com as palavras em seu recuo da praticidade imediata para
a análise de seu poder de nomeação. O silente está na situação do conhecimento de que
mesmo ele é feito de palavras na escuta de si e do outro em conversação: assim as palavras
retomam a sua importância enquanto consciência do seu poder de nomeação e voltam a
atenção à sua atividade desde os primórdios da criação. A essência do silente torna-se a
atividade das palavras em recuo diante do ruído das significações automatizadas para
proveito imediato no comprometimento prático-funcional. O silente na essência da
linguagem em recuo vai à direção daquilo que nunca viu, ou seja, o local da luta silenciosa
em que o Eu encetou contra os pais. O local da luta nunca é marcado visivelmente à
primeira vista. Em Experiência e pobreza os filhos só tardiamente a partir da própria
experiência e reflexão descobrem a influência da experiência dos pais:
Aquele que escuta é antes de tudo o silente. Na conversação, o primeiro que cala
em seu discurso, ou o que mais cala, é aquele que mais escuta, mais ouve, mais recebe a
revelação do uso feito das palavras, mais muda, mais rejuvenece, mais cala sobre a sua
própria construção, pois está disposto a concordar com que sua construção babélica seja
derrubada. A conversação aspira, portanto, ao silêncio, pois, pelo visto, é exatamente
também um processo de escuta, de destruição, de passagem para outra postura, ou estágio
do voltar-se, da conversão analisante de caminhos já andados. Em tal regresso, todas as
certezas retornam ao estatuto de hipóteses ensaiadas, experimentações iniciadas, mutação e
até deperecimento. Benjamin em texto posterior, em Origem do drama Barroco alemão,
utiliza uma excelente imagem para tal atividade: “Cada idéia é um sol e se relaciona com
seu semelhante como sóis se relacionam entre si. A relação sonante dessas essências é a
verdade”. (GS I-1, 218). Ou seja, a relação sonante (tönendes Verhältnis) que se dá na
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silente. É dele que o falante recebe sentido, o silente é a fonte inconcepta do sentido”. (GS
II-1, 91).
Aquele que silencia e escuta dá sentido ao conteúdo falado. Aquele que fala sempre
está possuído pelo desejo da continuidade repetitiva do sentido elaborado que imagina ser
evidente, enquanto que o escutante está fora disso, alegoriza, conserva a seu modo o que
ouve, ouvindo diferentemente, e renova a construção traduzindo e traindo por interpretação
necessariamente tendenciosa: não é o conteúdo que ouve, mas as palavras que o formam.
Aquele que escuta é o renovador, a fonte do sentido. Reordena as palavras colecionando-as
e arranjando-as de acordo com os seus parâmetros ainda desconhecidos por ele mesmo.
Dá-se uma curiosa conjugação de externo e interno. O externo está com o interno que
sempre está exposto no externo: espírito objetivo que só se realiza como subjetividade
itinerante. O colecionador de palavras do discurso alheio escuta e silencia, a catástrofe
grita, monologa em forma de discurso articulado, mas o monólogo na conversação não é
escutado como ordem aplicável e sim como a expressão do que na performance está
esquecido e encoberto.
“O silente é a fonte inconcepta do sentido” (GS II-1, 91), isto é, o sentido ocorrente
acontece naquele que escuta. Pois o que é a fonte? A explicação que alguém dá do que seja
a origem, a fonte, já é a própria fonte? Não pode ser assim, pois já é fala de novo. A
origem pode ser apanhada no sentido discursivo argumentativo em forma de apresentação
competente no próprio ato de dizer? O dizer consegue dizer a sua fonte ou é sempre
simples dizer novo e constante ficando a dever o anúncio de sua fonte que o poderia
explicar? Em suma, tudo isso significa que o dizer, qualquer que seja, nunca poderá
apresentar discursiva e objetivamente sua fonte a não ser como suposição da escuta silente
e compreensiva do outro. A recepção compreensiva do outro representa a fonte do sentido
do que é falado. A fala no vazio pode ser barulhenta, mas nada é sem alguém que a escute
e a entenda de algum modo.
Existe um âmbito interno à linguagem que não pode ser dito completamente, pois
para dizê-lo a fala é sempre necessária por suas suposições ainda a serem apresentadas. É a
zona do silêncio e da grandeza que sempre permanece, mesmo após a conversação que se
ativa na compreensão da instituição dos supostos da comunicação para fins operatórios. A
operação comunicativa instrumentalizada para a construção de artefatos teóricos e práticos
supõe um consenso a respeito de modelos subjacentes ao processo construtivo
(procedimento, bem como idealização/figura a ser construída: são problemas técnicos). A
conversação é a processualidade da apresentação de supostos da comunicação, que após a
fala e a escuta pode finalizar no silêncio do abismar-se frente ao que a compreensão é
capaz, ou em novo ruído pela decisão conjunta sobre a possível configuração de um pano
de fundo a ser escolhida.
A conversação é sempre o local da fonte do sentido pelo lado do silente pelo fato de
fazer acontecer uma ruptura no fluxo da compreensão contínua objetivada em determinada
direção. Explode com a compreensão costumeira e indica novos caminhos possíveis. A
própria possibilidade de ruptura para inícios originais supõe o interno à compreensão até
então: a conversação avança, por assim dizer, em direção ao espaço do silêncio, ou do até
então silenciado, transformando-o em significado. O silente e o silenciado conjugam-se. O
gênio como possibilidade de adveniência do que é novo é gênio por ser silencioso, isto é,
porque cria escutando o que advém na totalidade dos discursos e escuta criando a partir do
silêncio. Ele é mais silencioso do que Deus, porque Deus é a totalidade do falado da fala a
ser escutada. Além disso, Deus pode querer ter a característica da repetição eterna,
enquanto que o gênio é filho do percurso da sua descoberta no silêncio dos discursos em
que as divindades se escondem. O gênio é o que na atenção silencia explodindo o que até
agora é em efetividade compreensiva para escutar o que vem a ser. Assim, ele mesmo
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acontece como fonte em obra e vida identificadas, mas sem poder jamais dizer as últimas
palavras sobre si mesmo.
Pelo visto, a conversação pode efetivar-se na relação com outro ser humano em
forma de diálogo na conhecida e costumeira situação de prestação de respeitabilidades
mútuas quanto ao que está em jogo. Também pode concretizar-se frente à imposição
falante da tradição à disposição em todo o tipo de escrita, nos monumentos e nas
instituições instauradas em processo de funcionamento de que se faz parte.
Mas a conversação tem o poder de ir mais além: pode deslocar-se sendo produtiva com
aquilo que nos surge no pensar como desencontro com o fluxo pensante da mimese sob o
comando de determinados conceitos fundamentais já aceitos, ou uma mistura e um sistema
deles, ou até um mosaico já com eles elaborado. O curioso é que às vezes se esquece que
tal conversação elabora-se e acontece por preenchimento ou esvaziamento de cântaros que
são as palavras. A convicção no estatuto do Eu encharcado de palavras e gestos
desconhecidos e esquecido estatui-se qual fantasma temporário na noite de si e que
desaparece como por encanto frente à luminosidade da questão Onde estás tu, luz?
As palavras e as expressões, que por seu intermédio são possíveis, estão também
saturadas de possibilidade de recordação e força do passado presentificado. Palavras e
formas em que o ouvinte se revela são também força e recordação. O ouvinte silente
revela-se na compreensão captante dessas palavras e formas enquanto força renovada e
concentrada: nele se resume também ao seu modo a totalidade do passado que foi e que ele
exatamente é.
Tudo é guardado, pois o sentido acontecido na fala assim o foi por ser e para ser
erguido e guardado. Os lamentos, as queixas, os desejos de felicidade nos cântaros plenos
de sentido municiam o presente agora ouvinte com a mais variada selvageria e o mais
incompreensível sentimento de solidariedade, de acordo com toda a gama do sentido
possível.
A fala procura a revelação de si no escutante, porque ela mesma enquanto fala está
afetada pelo paradoxo da objetividade separada, alienação de conteúdo falado na intenção
de ser fundado incondicionalmente. A fala só pode procurar a forma em que se revela na
forma em que, porém, o escutante se revela ao compreender captando-a do seu jeito.
A palavra conversão traduz o termo bekehren que, por sua vez, está ligada à
mudança de perspectiva em relação ao compreendido e praticado até o momento e até ao
arrependimento por uma situação de falsa visão anterior. Conversão vem de vertere, sendo
que, então, convertere traz a imagem de verter junto. É como se a fala do falante fosse
captada, compreendida como vertida e convertida na forma dos captantes cântaros
ouvintes. O falante na conversação obriga-se a ensaiar a apresentação competente do
discurso de vida que o caracteriza de modo fixo, mas já disposto à conversão de também
ouvir os ecos do não dito naquilo que diz, já que o dito e o dizer são prova viva do não dito
que os sustenta como suposto e contrafação, como nada que possibilita a totalidade deles.
O falante na conversação fala como que ensaiando arrependimentos: a palavra
arrependimento é formada por paeniteo, ou poeniteo com o significado original de ter
insatisfação com o que foi feito, dito e pensado até então.
A fala na conversação compromete-se pelo fato de haver escuta silenciosa: ela sabe
que acontece compreensão, mas não absolutamente idêntica a si. Ela sabe que há encontro
na atividade de que participa. A fala é convertida para novos rumos possíveis pela
silenciosa compreensão. O falante é convertido no que dele foi compreendido: ele é o que
dele se pensa e diz. E o que se pensa e diz é o espelho em que vê a estatura do que é, do
que foi dito e lido dele, da nomeação de que faz parte. O espelho da compreensão do outro
sobre a sua compreensão lhe dá a dimensão de seu próprio automatismo. Há a fala disposta
à conversão e a escuta em silêncio para entendimento do rosto de ambas: objeto e sujeito
mudam constantemente de posição num movimento de imersão no desconhecido não dito.
“Ele compreende o escutante apesar de suas próprias palavras: que alguém está diante dele,
cujas feições são sérias e boas de modo inextinguível, enquanto que o falante conspurca a
linguagem”. (GS II-1, 91).
de si, o falante conta com o ouvinte a escutar as questões sobre que fala. O falante
necessariamente seciona conteúdos positivados de si e do outro como quem fala sobre
algo. No exercício da fala paradoxalmente é obrigado a esquecer que é ele mesmo o fato de
ser o que compreende como expressão falante, legível ao silencioso escutante e leitor.
Apesar das suas palavras... separadas de modo conteudista como objeto à parte, o falante
fala e compreende aquele que escuta como alguém diante dele: o silencioso, fértil e
generoso campo de frutificação de seu falar e vertente de sentido diferenciado de sua fala.
Diante dele o eterno esquecido está a lhe indicar o não esquecimento de si enquanto
criação e a lhe proibir comer da árvore da discórdia por separação de bem e mal: o outro a
ser constantemente visto é a visão de si como lembrado de que é o conteúdo do seu dizer.
Seriedade e bondade são os traços são característicos daquele que está à escuta, porque
também este sabe que necessita da fala do que diz o falante. O discurso do falante na
conversação é sério e importantíssimo ao que escuta e a sua construção é boa, porque,
fundamentada como está, oferece a oportunidade de ir cada vez mais além até pairar sobre
o abismo do possível. E é exatamente isso que o falante tende a ver comprovado no
ouvinte, o qual desempenha realmente tal papel e pelo qual é reconhecido pelo falante
como sendo caracterizado por feições sérias e boas. O ouvinte faz as honras à linguagem
indo na direção do sentido mais profundo dela: antes de tudo indicia a aparelhagem da
linguagem para a montagem significativa de conteúdos compreensivos então supostos
como fundamentados separadamente do falante e da fala. Libera o falante do peso morto
que carrega como marca identificatória de si para que seja identificada e vista. Pois nele,
em tudo que fala acontece o passado em forma de narrativa cotidiana obnubilada na
recordação das suas infinitas determinações. O que fala insere-se na contradição.
O falante agora compreende que há alguém diante dele, que é o outro a lhe recordar
a necessidade da suposição da presença de tudo, da pletora do sentido de todo o passado, e
é por isso que pode falar a respeito de tudo como num ensaio de positividade, sem pejo de
nada do que aconteceu em termos de compreensão e sua aplicação multifacetada, sem
querer poder escamotear julgamentos, decisões e veredictos, sem demonstrar vergonha do
que procura acentuar, relevar, diminuir, liquidar. O ouvinte, por sua vez, tem a
oportunidade de escutar também a voz do silêncio que possibilita a fala necessariamente
unilateral mesmo do melhor falante com os seus recortes definidores, o reverso existente
como pano de fundo do acontecido e da fala, sem o qual não há acontecido, nem fala. O
falante a expressar o passado é certamente melhor compreendido pelo ouvinte no instante
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de agora com a capacidade de escutar a sua fala, bem como também as condições do seu
existir. As falantes ruínas do passado erguem-se presentificadas com força redobrada por
meio da observação silenciosa e compreensiva do ouvinte. Nesse sentido, a linguagem
conspurcada, julgadora e ruinosa do falante passado é ampliada e redimida pelos traços
sérios e bons do ouvinte a compreender dando sentido continuado ao aparentemente morto.
Mas falante de qualquer maneira sempre conspurca a linguagem na sua fala pelo
fato de incorrer em contradição fundamental na própria construção do seu discurso pelas
suposições absolutas para tanto necessárias. Qualquer que seja o tema a ser desenvolvido, a
contradição está presente na intenção de definição de algo separado de quem o diz supondo
critério que absoluto não pode ser, o que perfaz um paradoxo na construção da fala. O
falante conspurca a linguagem porque fala e só o consegue apequenando a possibilidade
absoluta pelo delineamento definidor da construção específica. A fala em construção na
conversação não deixa de ser resolução para a continuação efetiva em alegoria de comer do
fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. Há na fala a intenção imanente de
ultimar progressivamente as explicações sobre o que é, de modo que ela está
fundamentalmente referida a alguma progressividade enquanto intenção de fixação de
conteúdo e de domínio construtivo da vida com base em suposições sempre insuficientes.
O lado falante e ativo na construção do sentido é a perspectiva da póiesij e desta mesma
característica se esquece no instante imediato em que articula a elocução.
91-92). Um passado vazio seria uma determinada narrativa dele ainda restante no presente,
ou seja, algo entendido como já não mais existente e apenas vivificado no presente na
forma da lembrança fixada como objeto. Um tal passado seria como que uma espécie de
espaço em que as ocorrências já não mais existem, pois foram recolhidas no espaço da
lembrança do presente que assim pode analisá-las, dissecá-las e defini-las como
objetivação já feita. O passado estaria completamente morto quanto às determinações que
ainda pudesse causar no presente, pois já teria sido recolhido totalmente no presente que
então o teria sempre à sua disposição. O passado seria aquilo que simplesmente passou
para nunca mais voltar dando o seu espaço apenas ao presente que com as análises do seu
conteúdo incorporado prepararia o seu próprio futuro no mesmo instante. A decretação da
morte do passado seria simultânea à sua vivificação na consciência do presente como algo
que já foi definitivamente posto e capaz de justificar plenamente agora no presente as
evoluções discursivas desse mesmo presente. O passado vazio e morto seria, enfim, a presa
fácil da compreensão autônoma competente e consciente de um presente que sabe
perfeitamente o que quer de si mesmo.
vivificar passado vazio seria repetir ao infinito as positivações presentes como se fosse o
passado por inteiro a serem repetidas de modo obediente e reverente a ponto da
inconsciência: um passado vazio, morto, mumificado e infrutífero, casca podre e inútil de
fruta já deglutida, resultado de objeto entendido como separado de quem o diz, um passado
destituído de sua infinita passagem. Tudo isso se constitui como uma espécie de fuga das
injunções da compreensão atenta de um agora sempre decisivo. “Pois o falante está
presente apesar da fuga d'alma e do vazio das palavras, seu rosto está manifesto e os
esforços de seus lábios são visíveis”. (GS II-1, 92).
Uma alma que foge do falante é a sua própria alma alienada em objetivações não
assumidas, a qual é compreendida como se estivesse apartada do falante e a viver
unicamente no reino da verdade adequativa em que vige o sistema da representação. A
alma foge junto com a construção fictícia de um mundo separado da linguagem e do
pensamento do falante. A fuga d’alma é a expressão de um pensamento que procura
duplicar-se na formação de um espelho de si em que pudesse ver-se para avaliação
autônoma e competente de sua própria figura. O pensamento entrelaçado com a linguagem
deste modo não consegue assumir-se como ocorrência de fonte a desconhecer os seus
próprios mananciais. A fuga da alma pode ser entendida como a necessária teatralização
sistematizadora do discurso, a objetivação constante do que ocorre imediatamente e que
então não é mais captável na fala.
O vazio das palavras trata da sua desvalorização como mero instrumento num
sistema comunicativo. As palavras são compreendidas como apenas veículos a carregar
uma carga semântica para uma construção cuja planta está definitivamente resolvida. A
compreensão acontecente no ouvinte então preenche o vazio morto das palavras na
adivinhação e na evocação das fontes ocultas do discurso que imediatamente se dá como
força ruidosa de uma verdade que tenta escamotear a sua proveniência. O ouvinte ouve as
palavras em forma de som como vê o rosto imediatamente manifesto e o esforço dos lábios
do falante promovendo a comunicação, mas, além disso, ouve também o que tal esforço
está a silenciar e a esquecer: a emergência do passado em força discursiva presente pela
qual o falante a si mesmo se define.
forma de verdade que tem a característica de tentar adequar o sentido que as palavras
carregam a uma realidade completamente diferente delas, necessitando para tanto de um
critério que sirva de fundamento. A linguagem como tal veículo de comunicação ao
serviço da adequação assim perde a característica de verdadeira linguagem, já que
aconteceria como intermediação representativa de dois campos distintos. Mas o ouvinte
não só ouve palavras para delas receber sentido sobre alguma realidade que lhe trazem,
mas ele se considera feito das palavras que ouve: as palavras são algo que com ele mesmo
acontece. O ouvinte sabe que as palavras ouvidas significam a ocorrência de uma mudança
de si mesmo à medida que compreende o que compreende e, ao mesmo tempo, vê o
falante, ou seja, o esforço deste em apresentar um conjunto discursivo no esforço de
sistematização lógica. Na escuta do ouvinte acontece a leitura como reorganização
compreensiva qual metamorfose, pois há suspensão de imediatismos compreensivos que
pudessem comprometer, dificultar a relação com o que se expressa o acontecimento. A
recepção compreensiva mutante do ouvinte é a possibilidade da expressão do falante de ser
lida e se firmar como expressão. O outro falante é compreendido como a se expressar num
acontecer de verdade por adequação e essa mesma recepção compreensiva é considerada
como mudança a acontecer no ouvinte. Assim, não há palavra sem escuta do que é
expressão. Não há expressão sem sentido seu organizado para sê-lo na escuta. Não há
linguagem verdadeira sem a continuada interpretação imediata a transformar a realidade do
ouvinte silencioso. O ingresso do sentido e das palavras formadores de mundo tem a sua
chave privilegiada na escuta atenta e interpretativa do ouvinte. Duas concepções de
verdade se conjugam na linguagem: o seu acontecer como expressão no falante e no
ouvinte, como também o esforço de adequação conforme um critério fixo e supostamente
inabalável.
modo também se torna compreensível que na conversa, em que há falante e ouvinte atento,
o silêncio a si mesmo se gera como dinâmica própria nos limites da conversa. A grandeza
silenciosa e dinâmica está sempre à espera enquanto um âmbito a abrigar as possibilidades
da mutação compreensiva de toda a fala que acontece. Por isso, cada grande poeta,
pensador, profeta ou santo apenas se concentra numa conversa em que fala a si mesmo
com uma coragem profundamente honesta quanto ao que já é em definição e escuta a si
mesmo de modo radical, abismando-se na transformação de si. O silêncio de um discurso
ruidoso pavoneando fundamentação definitiva gera-se na passagem para a profundeza de si
cada vez mais longínqua num constante abismar-se. Na dinâmica do silêncio gerado na
conversa desestruturam-se as forças cegas de qualquer sistema compreensivo esquecido de
si e se renovam, porque foram indiciadas em sua eficácia na inconsciência de suas
aplicações. As bordas da linguagem são a sua força maior: é o local das transformações
que afetam a totalidade da compreensão. As bordas são os limites da compreensão em
palavras e pensamento que se transformam na escuta do ouvinte atento. Cria-se o silêncio
de uma nova linguagem pela inevitável compreensão sistematizada do próprio ouvinte
desde as suas próprias condições de possibilidades também a espera de escuta muita atenta.
O ouvinte abisma-se, porque ao ouvir também é obrigado a se dar conta das condições que
tornam sua escuta possível: ele sabe que a compreensão no ouvir depende de estruturas de
entendimento ainda não tematizadas. Desse modo o ouvinte é levado a ouvir o que o
transforma e a escutar mais atentamente ainda as condições da sua metamorfose: ele é o
seu primeiro ouvinte, isso é, aquele que antes de tudo está à espreita de si mesmo.
“Silenciar é o limite interno da conversa”. (GS II-1, 92).
Por óbvio há que acrescentar ainda que a fala nunca é só, pois já silêncio é atitude
ante a fala. O limite interno delineia-se dinamicamente pelo interstício, a quebra e a ruptura
que acontece na interpretação do ouvinte interpretador, destinatário do que o falante diz e
que para ele se torna revelação para a sua própria transformação.
O silêncio como limite interno divide a conversa entre o que fala e o que escuta. Do
lado da fala pode haver simples repetição imanente de discursos solidamente já há tempo
instaurados, o que caracteriza a falta de produção de discurso e de sentido. Assim, desse
lado, essa fala não chega a se tangenciar com o silêncio, pois é ruído sem criatividade pelo
fato de repetir dogmaticamente, doutrinariamente, a mesma visão de si. “Nunca o
improdutivo chega ao limite, ele toma as suas conversas como monólogos”. (GS II-1, 92).
“Como um pregador entre os que meditam” (GS II-1, 92), assim o improdutivo
ruidoso irrompe entre prostitutas e garçons, um ambiente em que já há tempo reina o
silêncio. Trata-se do silêncio daqueles que são constrangidos e obrigados ao silêncio na
escuta de centenas de discursos da moda com conteúdos diferentes, mas todos eles
semelhantes na sua forma de apresentação ao modo da intenção de elocução de verdade
definitiva. A necessidade de sobrevivência obriga-os à tolerância constrangida, silenciando
resignadamente como que acostumados com o fato indiferente do eterno retorno do igual.
A anuência à idéia da naturalização do mundo assim estabelecido faz o resto: O ruído do
improdutivo se torna exatamente a apresentação de objetivação coagulada do que é, em
forma de uma natureza que, apesar de todo o alarido, é muda, triste e silenciosa à espera de
97
O ser versado em duas línguas, que são pergunta e resposta, refere-se à ânsia por
descoberta e explicações finais e a sua posterior implementação apenas estratégica, ou seja,
não consegue levar em conta a tranqüilidade reflexiva da participação universal, o estar no
meio, no centro, na vertente constante da própria possibilidade. A visão de totalidade
subjacente às duas línguas mencionadas é a de supor um sujeito homem, ou humanidade,
em contraposição a um objeto universo a ser elucidado, sem se dar conta de que qualquer
98
improdutivo que, além disso, compromete a sua grandeza, a qual permanece desperdiçada
como fonte possível na verificação das bases do seu próprio discurso. Ele foge de si
mesmo falando ao exercer sem cessar a fuga d’alma. Na procura de uma auto-afirmação
absoluta perde-se na objetivação como se fosse separada de si mesmo. Fugir falando é não
perceber que se está a dizer e que o que se diz é exatamente o que se é. A fala em sua fuga
é não compreender o fato de que há comprometimento de si mesmo na construção babélica
até aos céus supostamente objetivada e separada de si, além da incapacidade de observar a
grandeza presente na dispersão de si, na necessidade da constante tradução de si pela
feitura que se é a partir da pletora do sentido da tradição em geral com todos os seus
matizes. Fugir falando significa o exercício pleno do esquecimento e o pavor da recordação
de que se é apenas a expressão do amestramento em que tal fuga se cunhou. A justificação
acirradamente argumentativa que em favor dessa fuga acontece vem a ser apenas uma
faceta da própria fuga.
“Mas sempre ele afunda, liquidado, ante a humanidade no outro; ele sempre
permanece incompreensível” (GS II-1, 92). Já foi dito que o falante se dissolve naquele
que escuta com atenção silenciosa tornando-se fenômeno a ser constantemente elucidado.
Esta dissolução enquanto tradução atenciosa é a humanidade no outro que não pode cessar
em sua atividade de compreensão a não ser ao preço de se tornar também mero falante
esquecido das determinações de um discurso em formação. A postura de escuta só pode
permanecer legitimamente pela insistência do ouvinte em descobrir aos poucos a
profundidade das águas que possibilitam a evidência da fala qual onda espumante na
superfície. A fuga improdutiva e falante é a técnica do esquecimento da objetivação pura.
Há, porém, um limite, pois a fuga doutrinária afunda ante o outro que sempre vem a ser
compreensão direcionadora do dito. O outro é o que compreende no silêncio, um fato que o
falante nunca poderá dominar: precisamente a novidade emergente que o silente em
meditação possibilita a partir do instituído que o falante mesmo é. É no outro silente e
ouvinte que a humanidade sempre tem a possibilidade de renovar e exercer as suas
potencialidades criativas. “E, em atitude de procura, o olhar dos silenciosos resvala através
dele para aquele que virá silenciosamente”. (GS II-1, 92).
que aparecem sob a forma de discursos gerais e neles imerge trazendo à tona as
possibilidades do futuro. Aquele que virá aproximar-se-á silenciosamente em meio ao
máximo de escuta, reflexão, descoberta, revelação, pois será a própria atitude da força do
silêncio fazendo ver o grandioso abismo que cerca toda a compreensão humana e, assim, a
precariedade das suas fundamentações. O futuro sempre estará num passado presente em
que tudo já há muito tempo é e sempre ainda passível de ser vislumbrado na conversação
pelo ouvir atento e silencioso.
versão rítmica das suas palavras no vazio do silêncio é a permanência na grandeza. Mesmo
após a conversação há a possibilidade da sua continuidade no estágio da escuta do ritmo
relacionando as palavras num vazio, ou, talvez, nada, que representa a constante
possibilidade da grandeza. Portanto, a grandeza após a conversa é a possibilidade total no
meio do mundo que se adivinha na permanente continuidade da escuta do sentido que
emerge: grandeza é a dimensão do futuro à espera do pensar humano, o qual, descobrindo
as determinações do que já é em silêncio, é a fonte capaz de instaurar nova vida debaixo do
sol. Mas exatamente esta nova vida é a emergência da maldição do espírito criativo.
Benjamin o designa como gênio: “O gênio amaldiçoou completamente as suas lembranças
na criação. Está fraco de memória e perplexo [desnorteado]”. (GS II-1, 93).
Como se diz o silêncio sem dizer? Como se descreve a grandeza sem descrição
compreensível pela organização rítmica da linguagem? A perspectiva do gênio é a
inquietação ouvinte atenta à descoberta dos esteios da sua compreensão e se ativa
radicalmente na lembrança do que assim é. Descobre mundos avulsos e distantes em si
mesmo elaborando-os criativamente em nova figuração ao modo de linguagem
compreensiva em que muitos outros se reconhecem. A descoberta das injunções do que é
perfaz o desenho da mudança de si, e a elaboração ordenada para o entendimento disso
significa, por sua vez, a criação do novo, a instauração compreensiva do que estava
encoberto e esquecido. A descoberta e a instauração elaboradas discursivamente na criação
do gênio em mudança de si lhe fazem ver a dimensão da maldição que promove pela
lembrança do que sempre foi como força catastrófica sem se dar conta da cooptação por
adestramento retoricamente competente. Assim é instado a dizer o silêncio como maldição
paradoxal. O gênio em seu silêncio atento percebe a descoberta e a inevitabilidade da
instauração e nas bordas da linguagem é obrigado a amaldiçoar constantemente as suas
recordações em elaboração criativa e, então, objetivada. Nos limites internos da
conversação a sua lembrança vai escasseando a ponto de perplexidade e de desnorteio.
elabora em instauração criativa, de modo que o passado o define na medida em que define
o passado em intermitente passagem. O gênio tem o passado como destino e não consegue
mais se situar num presente objetivado em que pudesse descansar. Ele se encontra na
situação de responsável pela elucidação do acontecimento da compreensão que mesmo
instituiu. Na condição de gênio ele mesmo se decidiu por um caminho de determinada
trajetória compreensiva sempre no perigo iminente de fixar o esqueleto instituidor de si e
positivar o passado num presente apequenado para não mais ouvi-lo e interpretá-lo,
engessando-se assim novamente no presente mimético e improdutivo de um discurso
pretensamente autônomo em sua blasfêmia. “Seu passado já se tornou destino e não poderá
mais se tornar presencial”. (GS II-1, 92).
A perplexidade do gênio tem a sua razão de ser, pois em sua fala acontece a
revelação como um acontecer simultaneamente com a fixação de sentido compreensível
capaz de se reproduzir em aplicações sucessivas na exibição de um estatuto de verdade
como intenção de certeza absoluta. É oportuno repetir as perguntas e acrescentar mais uma:
Como se diz o silêncio sem dizer? Como se descreve a grandeza sem descrição
compreensível pela organização rítmica da linguagem? E, resumindo, por que todo o dizer
é contradição performativa?
Dizer que algo é, descrever que algo é desse ou daquele modo, implica supor que
mesmo se é no e como exercício de descrição, explicação e interpretação; implica a
veracidade do seu exercício e, mais ainda, implica supor que aquele que diz, ele mesmo
está sendo ao falar, o que poderá tentar provar na atividade explicativa em objetivação e
105
não o consegue, pois, para o conseguir, terá de mencionar algo além de si, dentro de si ou
ao lado de si, ou seja, para ser, precisa dizer algo outro dizendo a si mesmo, isto é, está na
condição de se afirmar a si mesmo no exercício de afirmar algo outro. O outro em
objetivação além de si como se fosse fora de si, e que ele intenta expressar apontando-o,
também não pode ser sem a afirmação definidora daquele que se identifica pelo ser que se
expressa ao dizer a si mesmo justamente desta forma.
Sou o significado que digo. Objetivo algo como sentido e sou tal significado que
objetivo. Sou o mundo que digo. Desse modo, tudo o que eu digo também sou em
significação, exposição de mim, estilo e modo de ser. A contradição está no esquecimento
106
disso mesmo que agora estou a dizer: denomino, ajuízo objetivando, analiso, sou o que
produzo como significado imediato. Há uma força ingente na própria linguagem que me
leva a não querer incluir-me no que digo e, ao mesmo tempo, outra que pela recordação me
inclui. O não, o limite de mim com que me identifico, a condenação de tudo o que é outro
de mim, tudo isso é a minha produção significativa pelos critérios com que sou, que me
definem no acontecer do dizer algo outro e, por isso, em constante contradição.
Por este viés a teocracia como construção política é uma balela em plena blasfêmia
impostora, pois está eternamente fora do alcance de qualquer vontade articuladora. Na há
como politizar estrategicamente a força messiânica da recordação atenta e silenciosa que
sempre é capaz de exatamente interromper uma construção compreensiva esquecida da
ocorrência que é em forma de revelação. Mas simultaneamente a força mundana da história
e da política, esquecida da suas condições a ponto de representar o contraponto à força
messiânica, exatamente por isso é sinal da aproximação silenciosa da restitutio ad
integrum, o resgate total. A inevitável continuidade da construção compreensiva e a sua
108
der Weltpolitik pode, então, ser traduzida por tarefa ou desistência (Aufgabe) da política
mundana e procura indicar a dupla polaridade que angustia o gênio: as descobertas das
determinações da sua compreensão fazem-se ritmo sonoro na linguagem em objetivação
necessária. A Aufgabe como tarefa de escuta atenciosa ao próprio discurso mundano em
geral indica a Aufgabe como desistência da política de se perceber articuladora subjetiva de
todas as objetivações a acontecerem. O coração doído, sofrido, roído e em crise pela
infelicidade do homem interior, que compreende o seu acordar rompendo constantemente
com o sonho em que se julgava feliz, é o indício da intensidade messiânica. Mas o método
nihilista para a tarefa e a desistência deve ser cultivado em atenção silenciosa como a
melhor política para a constituição do mundo.
sem precisar dizer? Resultam essas questões na concepção de que na linguagem não há
externo nem interno, mas se dá simplesmente linguagem em que o seu exercício em
pragmática só pode ser significado semanticamente, e o seu sentido semântico também. O
pretenso externo à linguagem que possibilitasse a sua condição de puro instrumento só
pode ser significado pela própria linguagem como suposição e até necessidade de
suposição, mas também dita. Tudo o que se está a dizer tece-se com os supostos já ditos,
mas o dizer é quem diz os mesmos supostos colocando-os como seus esteios, fantasmas,
deuses, bonecos que lhe possibilitam a atividade.
assim se desnorteia, porque sabe que a fala ocorrente em tempo de intenção de objetivação
só pode acontecer na escuta do silêncio nos limites da interpretação silente. Ele sabe que é
como Adão enquanto nomeador do outro de si na criação ocorrente de si mesmo, pois que
quem fala acontece falando, mas também que é o ouvinte que direciona o acontecer. O
ouvinte de si a nomear acontecendo é o sentido da própria proibição dos frutos do
conhecimento objetivado. Então, o gênio sabe que esquecer a auto-nomeação pelo nomear
acontecente é a dúvida originária sobre a objetivação separadora com a necessidade de
fundamentos como imagens primeiras justificadoras e legitimadoras a promover, além
disso também, a separação do tempo em suas três fases de presente, passado e futuro. A
apokatastasis enquanto perdão consentido pela própria situação de angústia gerada na
contradição da linguagem tem aí a sua vertente, pois qualquer sistema de julgamento, por
mais justificado que fosse, tem legalidade apenas relativa, ou provisória, pois não pode
esquecer que em seu exercício aplicativo precisamente esqueceu a entronização de uma
divindade como fundamento que, por sua vez, não consegue mais fundamentar. Por isso
tudo, o sentido e a indicação de que “Deus fala no gênio e escuta a contradição da
linguagem”, (II-1, 93), não é, de modo algum entendido pelo tagarela.
“Ao tagarela o gênio parece a evasiva ante a grandeza”. (II-1, 93). O transcendente
é a impossibilidade de se dizer o suposto de que se faz parte, pois sempre se supõe
dizendo, e é isto que o tagarela nunca entenderá. O próprio dizer faz parte do transcendente
enquanto suposto, permanecendo todo o dizer apenas a possibilidade de sua expressão. O
silêncio é o sinal da aproximação maior possível do suposto, enquanto que todo o dizer
afirmativo é intenção de afastamento além da mera nomeação. Mas o silêncio é também o
silêncio do dizer na perplexidade próxima à equivalência ao nada, já que, em não havendo
sentido, silencia-se também até o suposto enquanto sentido possível. Em relação a isso, o
tagarela fala, diz e procura tudo esclarecer em termos de uma grandeza como âmbito dele
mesmo separado e, por isso, definível por uma linguagem que imagina desvinculada e,
portanto, manipulável para os fins do seu dizer. Na ilusão de uma tal linguagem é que lhe
parecem fuga e evasiva aquilo que para o gênio é a angústia da contradição da linguagem,
a cisão em que o transcendente fala e ao mesmo tempo escuta o paradoxo de um dizer
sempre em processo de irremediável comprometimento com o pano de fundo de uma
imagem justificadora da sua ocorrência.
definição da grandeza como âmbito separado lhe parece um infinito capaz de proporcionar
a possibilidade de uma produção autônoma de sentido a qualquer preço e a qualquer hora.
Tem-se, assim, uma contraposição entre o tagarela e o gênio. Este primeiramente é
silencioso, como sabemos, escuta atentamente e é acossado pelos escrúpulos de promover,
ou não, a objetivação que, por parte do mesmo, é extremamente acurada e cuidadosa,
movimento que pode ser entendida como fuga pela própria tendência à tagarelice normal
do dia a dia.
total das presentes possibilidades oferece a dádiva que mesmo é por reminiscência. Por
isso, o gênio, manifesta-se, destruindo, desnudando e desnudando-se: o conjunto das suas
palavras é ele mesmo e ele o sabe, a sua compreensão é ele e ele o sabe; as palavras novas
recordativas são o que ele é em itinerário de si e que deixa cair a descrever a si mesmo, a
ele que é o que precisamente está a acontecer. “Ao falar, as palavras vêm caindo dele como
mantos”. (II-1,93).
Aquele que ora em atenção igual ao gênio é silencioso por que ocorre como
reminiscência e desnudamento da compreensão artificialmente consagrada e absolutamente
positivada. Além disso, conta com determinações que não estejam imediatamente à
superfície da realidade administrada pelos princípios objetivados para a recorrência do
mesmo.
A afirmação de que o gênio falante seja mais silencioso do que o ouvinte supõe o
estado em que o gênio é a voz que fala no e a partir do interior daquele que escuta, isto é, a
voz da significação possível, o todo recalcado ainda não significado, a massa escura da
totalidade do oceano em cuja superfície a luz da compreensão se faz possibilidade. Não há,
portanto a possibilidade de um afastamento para a contemplação de um objeto a ser
analisado conforme uma das perspectivas da contradição da linguagem. A voz da
significação possível a si mesmo se gesta enquanto instauração em que o silêncio é sempre
o intervalo descobridor. Trata-se da possibilidade do som significativo de acordo com o
acordo com o paradoxo da linguagem (GS II-1,93), o escutante significa, nesse caso, a
perspectiva da articulação de sentido de acordo com os seus próprios esquemas que de
forma inevitável distorcem o dito, pois apresentam inevitável interpretação tendenciosa de
acordo com a sua configuração cultural tradicional.
No ritmo da fala humana “O falante permanece sempre possuído pela presença” (II-
1,93), ou seja, está em pleno desempenho, esquecido da escuta e ocupado no ordenamento
interpretativo do que lhe advém como acontecimento de si. Todo o falante está implicado
no julgamento a acontecer de acordo com critérios e valores consagrados que supõe e, ao
mesmo tempo, está impedido da escuta. Como vimos, até o gênio precisa falar após a
escuta, o que o faz perceber a angústia original da contradição da linguagem. Ele é
possuído, enlouquecido a repetir gestos compreensivos ao infinito, ocupado exatamente na
expressão do passado de si, das determinações de que se desveste como mantos que caem
em postura de oração atenta aos comandos em si já sempre subjacentes.
acontecimento. Tudo o que for que fale está a ser acontecimento falante na articulação de
uma compreensão presente, tanto que todo o seu exercício da linguagem é sempre
percebido como comprometedor, perigoso e decisivo pelas instituições compreensivas
sempre acompanhadas da possibilidade do esquecimento das suas fundamentações.
“Portanto ele é amaldiçoado: a nunca dizer o passado que ele, porém, indica”. (II-2,
93). O presente constante é exatamente a impossibilidade do falante dizer o passado, pois
ao dizê-lo é presente e é instauração. O dizer paradoxal contraditório é exatamente o dizer
analisante, interrogativo e instituidor do que é a se tornar passado positivo na intenção. O
falante é amaldiçoado.
Não há como pedir ou exigir que se inicie algo de modo absoluto, já que o pedido
compromete a quem tenha a intenção de deixar ou partir para tal início, pois dizer o
passado é não dizê-lo como se fosse a absoluta descrição do acontecido, mas reinventá-lo
sob determinada perspectiva. A pretensão de dizer interpretando é o constante afastamento
e a expulsão de onde se está e o dar-se conta disso é a peregrinação no sentido. Há uma
constante vestimenta mascarada do novo suporte como sujeito absoluto para se justificar a
pretensão do que se está a dizer, o que é inevitável e constitui o paradoxo. A vestimenta do
deus instituído é sempre diversamente escamoteada num constante deslocamento
Parece que a questão é realmente o início, que não há, e a dependência das próprias
condições de possibilidade por parte de interações e relações já sempre havidas.
Ao falar objetivando se está na intenção de dizer sempre o passado, mas que trata
de nova inauguração, ou expulsão do local em que se esteve: “Portanto ele é amaldiçoado:
a nunca dizer o passado que ele, porém, indica”. (GS II-1, 93).
O dizer que assim é, é o instituinte para que assim seja. O dizer seria ação
inexplicável e não analisável, pois explicação e análise já seriam comprometimento com o
próprio exercício do dizer. E se há consciência do comprometimento, qual o sentido da
explicação, análise, reflexão, ou alegoria? Não seria isso o próprio exercício da contradição
da linguagem? Ou seja, dizer que o dizer é estatuinte; instituir que toda a explicação,
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O falante compromete a sua alma com um passado fixo, figura objetivada, imagem
proibida desde o início, paisagem morta, e assim ele blasfema na continuidade da
produção da catástrofe. Ele deve confiar-se à ouvinte que é dinâmica do mesmo passado
compreendida enquanto incrustada na própria compreensão presente. Vergangenheit
(passado) é um passado entendido como passagem constante a acompanhar as instâncias
do atual e, caso assim compreendido e a ser contínua e atentamente escutado e procurado,
é como que se tal infinita dinâmica, presente na compreensão, levasse o falante pela mão a
121
fim de ver o precipício em que jaz a sua alma como parte da paisagem morta e petrificada
de um passado precariamente compreendido como objetivado por fundamentações, sobre
as quais crê que possam ser cada vez mais profundas a ponto de constituir a imagem de um
buraco sem fundo desesperador. Na contradição da linguagem, o esquecimento da
ocorrência de si como compreensão ordenada por fundamentações do dizer tem um efeito
devastador. Mas Vergangenheit, ou seja, a passagem do passado como ouvinte na
compreensão presente, é capaz de levar o falante em conversação à visão do abismo, ao
vislumbre do infinito após a liquidação de fundamentos rasos demais e tendentes a se
constituírem em absolutos. A Vergangenheit como dinâmica de atração a descobrir-se pelo
ordenamento da reminiscência leva o falante pela mão para levá-lo à situação de retorno,
na qual inicia a visualizar o seu pertencimento ao todo infinitamente maior do que a
totalidade catastrófica, redutora e empedernida, em que enlouquece a sua alma
comprometendo-lhe a essência numa compreensão apequenada. O passado como passagem
presente pode ser lembrança e geração de infinitas formas de compreensão a partir da
riqueza subjacente às palavras propiciando a percepção do todo sempre maior do que as
conceituações discursivas, de qualquer modo inevitáveis e separadas por objetivação
conforme a contradição da linguagem. O gênio em conversação, que percebe a si na
contradição da linguagem, angustia-se na cisão entre um passado presente sempre falante
em termos de objetivação e um passado presente em passagem capaz de reminiscência da
ocorrência que se dá num infinito abismo suposto, o qual nunca poderá nominar, mas que
ao mesmo tempo o constitui. De qualquer modo em conversação, o gênio enquanto falante
não pode deixar de acentuar o discurso presente e pelo qual necessita polemizar. “Mas já aí
a prostituta o espera”. (GS II-2, 93). A fixação do discurso que assim se institui, apesar da
dinâmica da reminiscência, é a compreensão da história apequenada como positividade a
reger causalmente o presente sempre a ressurgir, é a explicação histórica que se coagula
em forma de sistema numa comunicação cada vez mais mimética; é de novo a história
naturalizada como passado fixo, mas que, qual prostituta, aceita qualquer parceria
interpretativa como dado somente objetivo sem a assunção da ocorrência de si; qual
prostituta é a fixação do passado que sempre se vende pela moeda alienada da
fundamentação garantida por deuses imaginários, que conseguem fazê-la esquecer dos seus
compromissos consigo mesmo. A prostituição pode curiosamente ser a ouvinte como
passado em passagem que se detém na possibilidade de nova construção fixa, ou seja, a
compreensão já comprometida com o que compreendeu e, então, definiu num novo
122
esquecimento instaurado não lhe interessa, pois há que ter sempre em qualquer processo de
origem o viés do ordenamento construtivo, pelo qual algo se sedimenta em repetição a fim
de que o próprio sentido na linguagem seja possível. A fidelidade da mulher a qualquer
projeto posto por inauguração, sem, portanto, a volubilidade da prostituta, espelha o
sentido fixo da linguagem configurada em discurso sempre necessário como parte da
contradição da linguagem, pois permanecer sempre flutuando sem ritmo algum sobre o
abismo feito de fundamentação sem fim e sem fundo de um lado, e de outro, da
compreensão enquanto ocorrência de si no suposto de uma totalidade inominável, não é
possível. Um presente capaz de flutuação sem paragens de construção, mesmo que
enganosa ou ilusória, seria como Ulisses navegando somente pelos mares, sem desvio
algum pelas ilhas de descanso e perdição, diretamente de Tróia para Ítaca, o seu lar
definitivo, mas sujeito à constante ira de Netuno. O ritmo feito de navegação ocorrente
com paradas em novas paisagens para o abastecimento de sentido a ser negado ou afirmado
é necessário à constituição da contradição da linguagem, já que o não e o sim dela são a
expressão do seu ser em ocorrência de qualquer modo. “Por isso ela guarda o sentido antes
da compreensão, ela impede o abuso das palavras e não permite que dela abusem”. (GS II-
1, 93).
Impedir o abuso das palavras é confiar no sentido de alguma forma fixo como
condição de possibilidade para que a própria percepção de ocorrência seja possível, isto é,
para que não se institua o delírio fora de qualquer órbita de um canto de sereias que
silenciaram à passagem do esperto Ulisses, conforme o relato de Benjamin sobre Kafka
(GS II-2, 415). A mulher, como representante da perspectiva central da linguagem, mesmo
em qualquer inovação possibilita a ligação do falante em palavras costumeiras com a
novidade do ainda não dito. Ela é o repositório do possível na conservação, manutenção e
lembrança da totalidade do passado, mas também da indefinição sempre possível e à
espreita de nova construção em fidelidade. Ela traz em si a lembrança do possível como as
mulheres no Processo de Kafka, as quais espiam e observam o julgamento e a execução,
isto é, são testemunhas da possibilidade existente de todo o passado que foi e que nelas se
conserva à espreita de oportunidade de surgimento de nova construção. São também como
as mulheres, criaturas hetáiricas de Kafka, (GS II-2, 428) que lembram o início da vida da
humanidade nos pântanos do passado mais remoto. Enquanto a prostituta é descrente por
relativizar qualquer construção, a personagem da mulher representa a decisão por uma
delas e a seqüente fidelidade necessária para que haja sobrevivência. “Ela cuida do tesouro
do cotidiano, mas também de todas as noites, o bem maior”. (GS II-1, 93).
“O eterno passado presente novamente será”. (GS II-1, 93) De qualquer modo se
confirma a suposição de um passado (Vergangenheit) eternamente presente como
acontecer às margens da oficialidade compreensiva em repetição somente comunicativa,
ou, um presente eternamente já sido que se descobre por auto-nomeação, portanto, por
auto-referência. Caso não acontecer a sua visão e escuta, a alma do falante permanece
presa do passado apequenado que é também um presente em compreensão apequenada,
sem grandeza, sem nomeação, sem volta a si, um presente em continuidade de queda e
somente sobre-nomeação na construção de uma catastrófica Babel. Isso significa também
que o todo entrevisto nunca pode ser a totalidade compreensiva completamente suposta,
obrigando à continuidade da descrição expressiva ou nomeação dos fenômenos que surgem
pela boca do gênio em forma dos movimentos culturais, que, por sua vez, são escutados e
avaliados na intenção da perspectiva ou da prostituição da linguagem em que tudo vale de
modo relativista, ou na perspectiva de uma tradição determinada. Aí até os sistemas
filosóficos, como também a própria filosofia é fenômeno entre outros como, por exemplo,
o Surrealismo, o Comunismo, o movimento Dadá e o Romantismo.
No limite pode dizer-se que o eterno passado presente novamente será como
dimensão do futuro que nele está inscrito como infinita possibilidade de emergência à
compreensão. O que se poderia querer mais do que o infinito absoluto, sempre suposto em
cada volteio do cotidiano? A linguagem sempre dele fará parte assinalando algo como algo
e ao mesmo tempo sendo assim a sua compreensão expressiva ocorrente, já que de forma
alguma e em momento algum pode ser prescindindo da sua suposição como condição de
127
Por isso, “A outra conversação do silêncio é gozo” (GS II-1, 93), isto é, talvez a
fruição estética da beleza, a rigidez absoluta da morte e os instantes do gozo sexual,
situações em que há uma passagem para a suspensão abrupta de qualquer possibilidade de
compreensão, como se o silêncio dela resumisse a suposição de infinito num momento só:
as luzes apagam-se num curto circuito quando a compreensão quer abarcar em
perplexidade o seu próprio suposto num gesto impossível. O suposto de se dizer na
compreensão itinerante sempre será suposto como a priori absoluto e o indizível dito será
apenas uma pálida referência a uma totalidade inaugurada que supõe o que nunca poderá
dizer em seu processo de emergência localizado. O verdadeiro futuro busca a si mesmo nas
brumas de um passado em que já sempre está inscrito e a compreensão de agora voltada
aos seus supostos é a possibilidade da sua efetividade. O gozo, a morte e a percepção da
beleza são o silêncio de tudo, após o que a compreensão, que pergunta pela luz de si,
também se dá como percepção da sua constante limitação.
esquecimento da sua positivação. Na escuta atenciosa como forma de oração, o gênio está
entre o receber o presente das intuições da criatividade de que se dá conta em sua própria
compreensão, das quais não pode indicar a procedência diretamente na linguagem, e, de
acordo com a contradição da linguagem, a inevitabilidade da positivação das suas criações,
das quais é obrigado a dizer que são suas e sobre elas ter a experiência de que muitas jazem
no chão simplesmente liquidadas: Cem crianças mortas. Ambos, gênio e prostituta são o
diálogo na suposição de interno e externo, pela qual a experiência se processa. O gênio na
contradição da linguagem intui a dádiva da compreensão em todo o cotidiano e se dispõe a
receber as reivindicações do passado presente. Por outro lado, o seu processamento em
positividade de tudo o que surge para ser construído fixamente para a repetição é a
meretriz (Dirne).
De acordo com a citação, o gênio vai à prostituta para descansar, pois na sua
condição não há descanso possível pelo fato de sua compreensão estar ativada num retorno
para si, num se volver à consciência de toda a compreensão objetivada já em andamento
em si para que seja admirada, nomeada e precisamente inaugurada como possibilidade de
futuro: não tem onde reclinar a cabeça. O gênio senta-se para conversar, toca a prostituta e
se sente como se já estivesse descansando há muitos anos, como se tudo o que o tivesse
angustiado, o que tivesse compreendido e nomeado criativamente fosse a prova do seu
sono de positivação constante, o rastro de um sonho que só agora termina quando também
percebe e leva em conta a inevitável compreensão da necessidade de positivação na
130
A prostituta pede a mão obreira do gênio e na qual então sente agora a dormência
para o pôr da poesia, para a instauração do novo e nomeável nos caminhos de retorno. Gib
mir deine Hand (Dá-me a tua mão): pegando em sua mão obreira faz o gênio esquecer-se
da sua itinerância poética, pois é a mão que figura o pôr do que é possível ser poetizado. É
como se a prostituta indicasse que agora é tempo de narrativa de tradução do que foi posto
para que a própria tradição possa ser constituída no tempo de compreensão determinada,
organizada e construtiva para a continuidade de si. Precisamente por isso o gênio recorda-
se da sua mãe, a totalidade da tradição virtualmente presente na linguagem.
A tradição viva e em processo de recordação constante no gênio como uma das suas
características é a própria possibilidade, a fonte, o nascedouro de que tudo provém. Ele
recebe notícias dela em seu próprio pensar e naquilo que compreende das outras pessoas.
Quem poderia deixar de ser um índice dela, pois todas as pessoas o são mesmo na assim
considerada menor participação no sistema comunicativo a perfazer a compreensão epocal
coletiva. A quem contará sobre a sua mãe? A narrativa só acontece pela linguagem como
uma de suas expressões nas formas de positivação na compreensão fixa por parâmetros
epocais.
mesma destruídos em favor de nova significação que surge de seu seio. Também a
prostituta não conhece os seus filhos, pois sempre muda em nova positivação. Os filhos de
ambas prostituem-se constantemente: não podem permanecer na consciência da tradição,
nem permanecer com a prostituta que sempre outros gera em detrimento dos anteriores
numa positivação sem fim.
Ninguém os gerou, porque são e sempre serão as repetições do igual, mas já agora
sob a influência do encantamento alienado das explicações pela categoria de causa e efeito,
ou seja, prisioneiros da fala estratégica para fins de convencimento de acordo com alguma
construção teórica já em funcionamento, alguma configuração ideológica ordenando todos
os fenômenos de acordo com a linha do tempo e resultando na prostituta Era uma vez
como Benjamin mais tarde dirá na XVI Tese de Sobre o conceito de história (GS I-2, 632).
A idéia da prostituição é a idéia da repetição do que se apresente como sugestão
ordenadora, em parte, porque supõe a necessidade do instinto implantado para
funcionamento automático sem necessidade de reflexão. A prostituição é a
degenerescência, decadência que se expressa pela tranqüilidade da mera inovação a se
tornar costumeira, repetição satisfeita em forma de normalidade instituída seja qual for, o
gozo da repetição nas redes do instinto sedimentado.
O gênio sabe que nasce como morte do sentido em uso inscrito nas palavras. O
gênio destrói desconstruindo a normalidade da função das palavras nos edifícios
compreensivos construídos. Mas essa mesma destruição significa precisamente o vir a ser
de um natimorto possibilitado pela linguagem sempre em uso, mesmo nas mais
tresloucadas intuições geniais. A constância do uso das palavras na efetividade do seu
exercício presente, dinâmico e jamais definível por completo é a possibilidade de ser tanto
da genialidade da linguagem quanto da sua prostituição. As palavras morrem na boca do
gênio em constante passagem devido à perda de seu sentido fixo e as próprias palavras
esperam-no em novo sentido, por sua vez fixo também em nova narrativa figurando
compreensão determinada. A genialidade é a morte que se faz presente na passagem de
uma constelação compreensiva a outra e a linguagem em uso efetivo entende-se como um
sentido de antes e um sentido de depois. Assim a linguagem sempre pariu um gênio morto
e sempre espera a sua morte como se tudo fosse a exemplo dos dois lados que sustentam a
ponte. Mas, mesmo assim, as paisagens da vida significativa necessitam da ponte como
passagem flutuante em seus interstícios.
O gênio nesses termos nasce morto, mas é ao mesmo tempo a única instância que
sabe disso: sabe que seu nascimento como ponte depende dos esteios da instituição feitos
instinto cultural, que foi produzido em série pela máquina competentemente repetidora, na
qual a formação do eu na luta travada contra os ancestrais é a luta contra a morte em favor
do nascimento do mesmo eu em outro lugar, desta vez tentando descolar-se da tradição
pelo início de nova construção. A linguagem em uso na figura de todas as mulheres, às
134
quais venho são sempre a paisagem antes e depois da ponte sobre o precipício da morte. É
precisamente por isso que a prostituta diz: “Mas eu sou a mais corajosa para a morte” (GS
II-1, 94).
recinto da compreensão estabelecida para aquilo que intenta liquidar o próprio espaço,
agora surdo para a linguagem não convencional. Quem poderia organizar o não
convencional? “A sua conversação torna-se desespero, ela ecoa no recinto surdo e
blasfemando ela se alça à grandeza” (GS II-1, 94). De algum modo a própria linguagem se
contorce rebelando-se contra o estatuto da sua naturalização na mera comunicação de
objetividade instalada e maquinal, e contra, então, a escravidão que impede o afastamento
de horizontes viciados e a travessia para novos ares: “Mas ninguém vigia quando homens
conversam”.(GS II-1, 94). São épocas de mutação e de desespero em que a linguagem se
alça à sua grandeza possível, ao repertório insuspeitado da pletora do sentido a se descobrir
como contorção na compreensão do cotidiano. É evidente, então, que a blasfêmia, com seu
hálito perigoso, bafeja a boa consciência instalada nos processos repetitivos.
Pretender alçar-se à grandeza, por outro lado, é querer alçar vôo na pretensão de se
despoluir das catástrofes em andamento em que se está comprometido: voar para se
perceber a si mesmo no vôo já em andamento, o que é impossível. Visibilidade total de si
não há, pois ela sempre estará comprometida com a condição de possibilidade da
compreensão que é o que desde sempre em totalidade já foi instaurado para qualquer
possibilidade passada ou futura. O anjo encalacrado e apavorado da IX Tese de Sobre o
conceito de história (GS I-2, 697) é também um anjo perplexo que, pelo peso da poluição
feita do que ele vê como tradição esclerosada e que lhe serve de condição de possibilidade
da compreensão que tem e que o afeta, não consegue alçar o seu vôo a alturas em que a
contradição da linguagem não se exerça. O desespero traz a revolta, podendo finalizar com
a utilização do fogo e do ferro em encrenca geral e guerra programada.
Nos percalços da contradição da linguagem surge o novo que poderia ser ouvido e
recebido pelo instituído apoiado num determinado uso. O novo para si exige em deboche o
aviltamento desse mesmo uso, a prostituição da mulher fiel ao estatuído em mutação. Pela
destruição da guarda feminina por meio de ridicularização e obscenidade o novo tem a
possibilidade de vir à luz da regulamentação cotidiana. Ou seja, não há vôo para além das
possibilidades da linguagem. O novo velho em seu retorno só consegue introduzir-se por
rupturas no ataque à inércia da força histórica por meio de embates gerais no seio da
linguagem. A interrupção que o novo representa em seu ataque obsceno à instituição
139
Uma “ambigüidade sem alma” surge porque tal “dialética cruel” escamoteia a
beleza de uma conversação possível em escuta mútua para a escavação dos fundamentos
das posições em jogo num retorno que fizesse ver a precariedade das justificações em
guerra de sentido. Na ambigüidade sem alma, uma parte acusa a outra de defesa de
posições meramente interesseiras, ou erradas, ou mal intencionadas num processo até
risível a ponto de poderem perceber a revelação diante de si, o caminho andado e os rastros
feitos e recolhidos no riso dos resultados presentes. Então há que fazer silêncio frente ao
que a linguagem em contorção pedagogicamente deu a entender. O que a linguagem ensina
é que até o seu uso guerreiro e obsceno na confusão excitada da contradição da linguagem
obriga à compreensão de que “a obscenidade vence, o mundo era construído de palavras”.
Quem vence é a derrocada da tradição segura e costumeira na mão e na guarda da mulher.
A transformação pelo deboche sobre o construído e guardado como sagrado e naturalizado
durante gerações é acontecimento destrutivo e violento, feito de criatividade e imposição,
na maioria das vezes sem a percepção de sua relação com a justificação e a fundamentação
que em novo patamar o estabelece na continuidade da contradição da linguagem. A
obscenidade a vencer é a sugestão de mudança agora efetivada, outro rumo possível pelos
sentidos em embate e a interrupção da revelação audível no silêncio da escuta. Nisso é
possível perceber que o mundo era feito de palavras, de compreensão esquecida de que o
fosse e alienada na configuração das objetividades e subjetividades. A expulsão do paraíso
continua. A obscenidade é visível e surge a vergonha do que se vê na visão em retorno:
140
rastro, história, Babel, catástrofes gerais. E não se sabia, poder-se-ia acrescentar. O mundo
era construído de sentido, de compreensão de si e não de circunstâncias externas e
inexoráveis como destino. A obscenidade que vence é a que os homens são e que eles
fazem vencer: é seu novo auto-julgamento pela sua auto-afirmação com o
acompanhamento das possibilidades da linguagem em novo uso e em nova fidelidade para
que haja compreensão. “Agora eles precisam levantar e assassinar os seus livros e raptar
uma fêmea, pois do contrário irão enforcar secretamente as suas almas”.(GS II-1, 95).
É o que precisa ser feito por ser o único a fazer: mudar todas a versões existentes e
fixadas na escrita, incrementar a nova versão, decidir-se à construção das novas
instituições e trabalhar e zelar pela reprodução. O rapto de fêmeas como metáfora da
possibilidade de introdução e implantação do sentido acentua que o mundo é feito de
palavras e que fora do sentido e das palavras não há mundo humano. Há que construir
levantando bem alto a bandeira da decisão. Enforcar a sua alma equivaleria à loucura da
falta de decisão na incompreensão total sem o aporte de qualquer linguagem em uso, um
onanismo teórico incapaz de promover a frutificação da linguagem em qualquer paisagem
compreensiva, uma guarda secreta por ocultação e negação de extroverter a sua paixão
surgida precisamente na revelação da monotonia dos dias. Assim, o silêncio da escuta que
possibilita a revelação somente pode ser identificado enquanto extroversão quando deságua
como fonte visível no prazer do encontro na conversação ou na altercação guerreira, mas
ambas responsáveis pela inseminação na guarda, no anelo e no desenvolvimento do novo
sentido do mundo em que se juntam as palavras para a formação da circunscrição da nova
constelação fundamental.
Benjamin menciona a poetisa Safo de Lesbos como falante e pergunta como falava
com as suas amigas. “Como falavam Safo e suas amigas? Como veio a ser que mulheres
falassem? Pois a linguagem as torna sem vida. As mulheres não recebem dela nenhum som
e nenhuma libertação” (Idem, 95). A questão que coloca é a de que Safo é mulher, mas é
também genial poetisa cuja lembrança permanece por todos os séculos, ou seja, fala na
consciência da contradição da linguagem sabendo do retorno da fala sobre si mesma na
auscultação do que consigo traz desde as características de todo o sentido possível inscrito
no total da tradição, em seu reducionismo epocal em configuração transitória, em suas
possibilidades guerreiras na dialética cruel, em sua atividade de uso na feminilidade da
espera, da recepção, do desenvolvimento e da conservação do antigo para o nascimento do
141
novo sentido na emergência genial, até a inevitável e, por isso, sempre presente ficção de
objetividade absolutamente fundamentada para a compreensão possível. Por isso tudo, a
poetisa Safo é escrita poética presente que na conversação ainda é capaz de ruptura pela
dinâmica do retorno que impõe como acontecimento.
A linguagem em seu uso como que apenas ainda à disposição da manipulação das
objetividades do dia a dia então não se consuma em sua plenitude, pois permanece somente
como atividade comunicativa de acordo com os critérios de julgamento subjacentes. Do
mesmo modo, mesmo que plena de possibilidade de reconstituição do esquecido sentido
dos milênios, toda a escrita necessita da reativação vibrante da escuta e do direcionamento
objetivo que se lhe dá. Sem a angústia da contradição da linguagem com todos os seus
percalços a escrita é muda e estéril, não chegando a constituir objetividade e nem
emergência do sentido de si como linguagem plena. E a escrita da qual aqui se trata não é
só a dos livros, mas a escrita fixada como compreensão ocorrente na fala da mulher no
cotidiano que Benjamin utiliza como analogia. A verdade do acontecer e a verdade da
ficção objetiva por fundamentos, o que perfaz a contradição e a angústia do gênio, não
conseguem separar-se para qualquer feitura de linguagem plena em que tais condições de
possibilidade em exercício concreto estivessem superadas.
As mulheres agora são o que os homens delas fizeram e isso indica uma analogia
com o processo ambivalente que se dá também na linguagem. Como a mulher que
continuamente se dispõe ao desvelo do novo para a sua conservação e com isso demonstra
a ancestralidade das suas múltiplas aptidões, assim também a linguagem em cada uma das
suas contorções assinala a ambivalência de no presente inovar novos caminhos de
compreensão dirigindo-se às condições de possibilidade inscritas e descobertas no passado
e atuantes no agora.
A rede que o gênio falante tece a partir da sua angústia criativa e que lhe
proporciona a consciência da mudança de si no retorno à observação e à descrição do vir a
ser a partir do cotidiano é o surgimento da linguagem para a mulher. A linguagem lhe
aparece no gênio falante que com dificuldade e muito cuidado procura cunhar com
palavras o molde da imagem da amada que o silêncio dela inspirou e ela silenciando então
escuta o que é inovação e mudança de ambos na conversação: “Mas apenas no falante lhes
143
surge a linguagem, o qual atormentado espreme as palavras, pelas quais ele cunhou o
silêncio da amada” (GS II-1, 95) O falante da conversação é criativo e retratou a amada
criativamente: ele é aceito com a sua novidade feita de deslocamento de sentido. O falante-
gênio nomeia instaurando o já dito e agora lembrado. Sem nomeação em direção ao
passado presente na admiração do já dito e entalhado mesmo na tagarelice de agora, sem a
conclamação da relação temporal ocorrente, sem um retorno ao que sempre era para a
instauração do novo em forma de futuro, as palavras emudecem: “Palavras são mudas”
(GS II-1, 95). Que as palavras sem a sua relação com o suposto que não conseguem indicar
possam ser mudas mostra a própria experiência da contradição da linguagem.
mulheres silenciam. Para o lado a que elas dão ouvidos, as palavras estão impronunciadas.
Elas aproximam os seus corpos e se acariciam mutuamente” (GS II-2, 95). No retorno aos
primevos clarões em que os seres se afagam e acalantam, o futuro ao ritmo da poesia, a
conversação libertou do objeto e da própria linguagem. Nessa condição não há mais o
esquecimento de que tudo o que se está a dizer provém de um todo que conjuga a
participação nele como suposição constante da linguagem com a possibilidade de ensaios
de fundamentação provisória e itinerante. A contradição da linguagem desmancha-se pela
recusa de um tempo de edificação absoluta, a qual fomenta a distração da fragmentação
sem relação, voltando-se para perceber a beleza do já criado e vivente para nomeá-lo como
ocorrência de uma compreensão relacionada. “A sua conversação libertou-as do objeto e
da linguagem” (GS II-2, 95).
Nesta nova dimensão compreensiva “as mulheres silentes são as falantes do falado”
(GS II-2, 96), mas já na superação de uma objetividade separada, alienada, fixa para fins
operatórios num esquecimento das suas suposições. As mulheres como representação da
linguagem são as falantes a interpretar o que ouvem sem mais ter, nesse caso, o problema
da angústia exacerbada a respeito do falar enquanto pragmática e significação. A questão
do sentido e do sentido da pragmática desanuvia-se sob o olhar da grandeza. Não há mais o
problema da fonte que se é, e então resta a tarefa do reconhecimento da implantação, da
concretização, da efetuação operatória e da adequação de uma verdade já estabelecida e em
acontecimento que mesmo se é. Há como que um entendimento de que já se é o corpo da
escrita da tradição naquilo que se compreende e o meio pelo qual a mesma tradição
desenvolve as suas potencialidades a partir da pletora do seu sentido sempre presente como
suposto em conversação ocorrente.
“O amor dos seus corpos é sem procriação, mas o seu amor é belo de se
contemplar”. (GS II-2 96). No espanto, na admiração, na permanente insistência de
interrupção do cotidiano não há lugar para constituir casa, família e frutificar filhos. O
esforço despendido na edificação objetiva de qualquer construção que se decidisse por
qualquer fundamento capaz de dar suporte à emissão de juízos definitivos, que favorecesse
a promulgação de uma rede de julgamentos para a burocratização da vida, é substituído
pela decisão a um florescimento permanente, à insistente volta num retorno à visão do que
a cada instante emerge enquanto beleza descoberta. A vida humana, feita de corpo e
palavra em relação mútua, expressa, na imediação de si, a ocorrência simultânea dos
séculos que se afundaram no esquecimento da compreensão reduzida a suas abreviações
fragmentadas em ordenamento após ordenamento entremeados de crise em crise, de susto a
susto, de interrupção a interrupção. A permanência no florescimento de um amor sempre
belo de se contemplar traduz-se pela insistência da visão da ocorrência da paixão, da
genialidade, da inteligência, do talento com que a vida se apresenta assim como ela é em
corpo e palavra, desnudando vez por vez genialmente os séculos sempre presentes e
encobertos. Suspender as oscilações entre frutificação e florescimento em favor do último
é perceber as forças reunidas e renovadas dos séculos em expressão muitas vezes
paradoxal, desarticulada e apaixonada na vida de si e do outro. Voltar-se para a beleza do
que já está assim em expressão na vida que transcorre em corpo e palavra é acontecimento
belo de se contemplar, pois é o brilho da beleza subjacente a cada manifestação de vida.
Voltar-se nesses termos é ver a configuração do agora em manifestação com tudo o que foi
e perceber o luzir de forças que geralmente não são percebidas por uma compreensão
reduzida às simples execuções dos ordenamentos em mera promoção de si mesmos.
Num artigo escrito no inverno de 1915, Benjamin propõe-se comentar duas poesias
do poeta Hölderlin e a relação entre elas a partir de um método. Antes de abordar
diretamente o conteúdo e o teor das duas poesias, Benjamin elabora uma reflexão sobre a
relação estética e filosófica entre o poetizado, o poeta, a poesia e o crítico ocupado com a
análise da obra. Nessa reflexão a contradição da linguagem transparece em sua
ambivalência quando da acentuação do pólo da linguagem e compreensão repetitiva, por
um lado, e, por outro, do pólo da notícia do poetizado que a poesia traz. Restringimo-nos à
abordagem da primeira parte do texto de Benjamin que traz as suas reflexões preliminares.
Benjamin inicia com a constatação de que por tradição a estética da arte poética
como ciência pura inicialmente deu mais atenção à identificação dos gêneros e teceu
comentários apenas sobre as grandes obras do classicismo, enquanto que o exame das obras
não pertencentes à dramaturgia clássica na maioria dos casos restringiu-se a questões
filológicas em vez de estéticas no sentido estrito. É necessário reter logo do início desse
texto a importância dos conceitos de método e tarefa:
Benjamin certamente quer dizer que se trata do fundamento último acessível à uma
análise imanente, mas não do fundamento último absoluto. A análise é um método que vai
até onde pode, sem ter o direito ou a pretensão de ultimar o seu próprio processo. A procura
do fundamento último assim é substituída por uma continuidade de análise que a si mesma
156
se põe como tarefa numa identificação com a suposição da própria poesia e a sua
possibilidade de avaliação.
“Essa esfera é ao mesmo tempo produto e objeto da investigação” (GS II-1, 105). A
análise investigativa também já se vê como comprometida em percurso e exercício, pois
diz que analisa o âmbito e ao mesmo tempo sabe que o está produzindo como método e
caminho. A análise já não se vê apenas como pura produção objetiva, mas também agora
enquanto ocorrência em decorrência da poesia, ou seja, o poetado continua a se manifestar
na atividade da própria análise.
Ela mesma não pode mais ser comparada com a poesia, mas é
antes o único verificável da investigação. Essa esfera que para
toda a poesia tem uma figura especial [feição, aspecto, molde –
Gestalt] é designada como o poetizado. Nela deve tornar-se
acessível aquele âmbito característico que contem a verdade da
poesia. Essa “verdade” que exatamente os mais sérios artistas
afirmam tão veementemente a respeito das suas criações deve ser
entendida como objetivação do seu fazer, como o cumprimento da
respectiva tarefa artística. (GS II-1, 105).
advém sem qualquer elaboração concreta cometeria uma traição à revelação concedida. De
qualquer modo é ingentemente seduzido pela novidade descoberta e como que obrigado a
por mãos à obra para dar forma à sua criação singular que vem a ser a figura de uma
unidade sintética da ordem espiritual e intuitiva.
Eis aí, então, a indicação de que a unidade extrema em extensão funcional da vida é
tarefa do poetizado, já que esse tem como função de avançar além do limite além das
162
A libertação, solução, ou soltura agora é vista como nova situação pela Aufgabe,
isto é, desistência de fixidez do posto no poema; como também a vida significa o
movimento imprimido pelo poetizado e a nova situação captada no poema. Além disso, os
termos tarefa e soltura, ou libertação, parecem novamente remeter diretamente ao
imaginário do Mito da Caverna de Platão em que as pessoas amarradas e obrigadas a ver o
movimento das sombras-cópias devem ser soltas pela tarefa do filósofo pedagogo,
provocador e evocador de constelações esquecidas por operação repetitiva. O poema como
soltura cumpriria a tarefa de perceber e criar inaugurando a constelação ideal mítica pela
qual a vida cotidiana aparentemente caótica se move.
“Nele [no poetizado] a vida determina-se pelo poema, a tarefa pela libertação” (GS II-1,
107). Não se trata de tematizar a vida assim chamada histórico-biográfica do poeta artista e
que pudesse, a partir da sua vida elucidar algo e representar o poetizado. Também não se
trata de evocar e deslindar a subjetividade criadora do artista para explicar a questão em
pauta. O que interessa é a arte que cria, produz, determina um contexto de vida numa
compreensão mais abrangente. O artista poeta como filho do seu tempo indicia as raízes da
compreensão comum.
Como no mito da caverna de Platão, que procura explicar a ascese da vida imediata
em direção ao reconhecimento das idéias fundamentais que estão a reger a mesma vida, o
poetizado enquanto tarefa e método tratam da intenção do poeta em sua arte. A expressão a
vida é em geral o poetizado dos poemas da citação a seguir está a primeiramente indicar
que os poemas são uma espécie de ascese a instituir performativamente e pedagogicamente
uma compreensão de maior abrangência do imediatamente vivido. O acontecer de tal
compreensão assemelha-se à revelação de algo que já sempre acompanha a própria vida
como fator organizador, mítico e impositivo de relações. O poetizado, portanto, deve fazer
parte dessa esfera, dessa procura, como, aliás, também a análise de Benjamin em questão,
que procura depurar o poetizado em seu momento específico como conceito-limite entre o
poema, de que o poetizado faz parte, e a vida de que o poetizado também faz parte. Nesse
contexto um poema a descrever sentimentos, lances sentimentalóides, erra por completo a
sua tarefa e vocação;
origina-se - seja um amável produto natural sem arte, seja uma obra
mal feita estranha à natureza. (GS II-1, 107).
A coisa em si, o reino do nada, o além do conceito limite não denota uma
transcendência de outro mundo, mas pode ser simplesmente entendido como o âmbito da
possibilidade enquanto vida. Sem a vida que é a unidade total, extrema e constante em que
se dá a possibilidade de ser, o próprio poetizado não se torna possível. A vida é condição de
possibilidade mesmo em estado cotidiano, amarrado, automatizado e alienado, pois não
deixa de possibilitar a partir desse estado a continuidade ou a transformação criativa de si,
o que vem a ser a tarefa do poeta artista não perdido em obtusidade.
“A vida está na base do poetizado como a sua última unidade”. (GS II-1, 107).
Quando na poesia não se depara com intuição organizada e desvelamento de um mundo
espiritual, um mundo que antes da poesia acobertava-se com o brilho das suas aplicações
repetitivas, nenhuma novidade acontece. A expressão a vida mesma na citação a seguir
denota não a vida na plenitude das suas possibilidades efetivadas, mas apenas a vida em
seu transcurso normatizado em alienação organizada. A tarefa é justamente a interrupção, a
ruptura com tal modo de vida para que em seu chão a intuição e o mundo espiritual possam
revelar-se não a partir de algo externo a si, mas do seio de si como algo sempre já presente
e só vislumbrado pela instauração criativa da arte. Note-se que a análise do poema assume
o seu papel de comprometimento com o resultado de sua atividade.
“Ela [a apresentação] não deve tratar da prova a respeito dos assim chamados
últimos elementos. Pois não há tais elementos nos limites do poetizado”. (GS II-1, 108). Não
há elementos que possam constituir-se em limites, fundamentos gerais. Caso houvesse tais
elementos o próprio poetizado perderia o seu sentido.
“Ela é reconhecida a cada vez em sua forma específica como um a priori do poema”. (GS
II-1, 108). A identidade, o tautológico em que sempre se esteve, se está e se estará, a
unidade sintética das funções: é disso que se trata. O universal dinâmico presente e visível
no poema singular ou o singular dinâmico criativo representando a unidade sintética
universal são as duas faces da mesma moeda.
Não há como falar do ponto de vista da totalidade sempre suposta, o que leva ao
reconhecimento da necessidade do exercício enquanto tal que se efetua no constante
singular. A própria movimentação analítica é aqui posta como prova ou fundamento
enquanto singularização de um suposto inevitável da própria análise. Isto quer dizer ainda
que se tem como claro que toda a fundamentação é apenas experimental, provisória,
itinerante num espaço absoluto indefinível qual abismo de Anaximandro em que há apenas
a oportunidade de pairar sobre ele. Procurar a fundamentação mais abissal não é o mal, mas
sim atribuir valor absoluto a qualquer fundamentação liquidando com o próprio processo.
O envolvimento do analisante com a sua atividade. Mesmo que o analisante tenha a poesia
por objeto da sua análise, como sujeito está diretamente envolvido diretamente na
consecução da obra precisamente por sua crítica. A sua crítica significa a continuidade da
obra que assim tem um significado maior do que a objetividade do autor, do crítico e da
própria obra individual.
Blödigkeit [Imbecilidade-Timidez]
Hölderlin I, 445
Benjamin inicia o artigo sobre a linguagem de um modo que exige atenção acurada,
pois foi construído de tal maneira que parece querer estabelecer desde o princípio a
compreensão de que ele mesmo se inclui no sentido que expressa a ponto de toda a
manifestação não poder contar com qualquer entidade ou fator externo à linguagem em
expressão, os quais pudessem observar a sua ocorrência em exposição própria.
apresenta a relação entre vida espiritual do homem sempre em forma de linguagem como
um caso particular a fazer parte da linguagem em geral que passa a explicitar em seguida.
Portanto, a vida espiritual do homem está como que imersa no âmbito da linguagem,
porém, é apenas uma espécie do total dele. O homem sabe da sua linguagem e, ao mesmo
tempo por ela mesmo sabe que é apenas um modo, mas que não representa o todo da
linguagem. Em suma, toda a vida espiritual do homem é uma espécie de linguagem no
âmbito geral do todo da linguagem e essa concepção expressa pela linguagem, por sua vez,
não pode ser entendida como algo extra-lingüístico que a estivesse analisando de algum
local afastado para uma apreciação meramente objetivada. Por isso, essa concepção
proporciona uma abertura ao modo de um verdadeiro método, um caminho que se cria e se
anda por meio das interrogações que surgem exatamente no seio da mesma linguagem.
Porém, há que se ter cuidado. O verdadeiro método que se cria e se anda é possibilitado
pela concepção aludida, que nesses termos, não induz apenas à reduzida atividade de
perguntar, mas ele mesmo já se percebe na consciência de que qualquer pergunta já está
comprometida com uma construção. Questões que se colocam já sempre trazem consigo as
preocupações surgidas do meio de que provêm. Isto quer dizer que não há porto para a
observação geral em que fossem possíveis descrições seguras de algo afastado e sem
relação com a própria pergunta, com a observação, com as descrições e precisamente com
a distância instaurada. A linguagem, portanto, não pode ser suspensa para a análise dela
mesma e, por isso, qualquer pergunta fundamental embutida na análise da linguagem sobre
si mesma deve estar acompanhada da consciência de que também este gesto faz parte da
sua expressão.
forma de participação numa totalidade desde sempre dada. É evidente que tal idéia evoca
imediatamente a filosofia pré-socrática que já nos primórdios da cultura ocidental
propunha o lógoj heracliteano ou o nou^^j anaxagórico como os ordenadores de cada uma
das infinitas partes num todo sempre suposto. Assim, a língua ou a linguagem é entendida
como o elo de ligação e, de algum modo, o próprio medium, o meio em que todas as partes
estão a fazer parte. A participação é linguagem, bem como toda linguagem é participação.
É fundamental notar que Benjamin não tem prurido algum de utilizar qualquer tipo
de material cultural para explicar as suas questões. Percebemos nesse artigo que tanto o
lógoj grego, mencionado mais adiante, como também todas as narrativas dos primeiros
capítulos de Gênesis usadas para a elaboração explicativa, já são considerados como
patrimônio lingüístico comum da humanidade, sem que se deva deixar intimidar a ponto de
prescindir do seu grande potencial elucidativo.
Tudo isso leva ao resultado de que não há conteúdo separado da sua expressão.
Qualquer conteúdo tomado como objetivamente separado da sua participação na
linguagem é esquecimento fundamental, ou seja, de que só pode ser em participação e,
portanto, precisamente em forma de linguagem. Benjamin chama à atenção para o fato de
que a linguagem humana é ou baseada, ou funda a justiça e a poesia. A justiça está
intimamente ligada à linguagem, pois sempre emitimos juízos na imediação da fala,
restando saber qual é a relação entre linguagem e juízo, o que é um dos temas centrais em
175
“Mas a palavra linguagem nesse uso de forma alguma é metáfora” (GS II-1, 141). Nada do que
podemos pensar está fora da linguagem, até mesmo o nada e o tudo que se diz. O silêncio
pode ser cheio de ruídos de vozes que nos acossam do passado presente. A representação
depende da linguagem com os perigos que ela mesma aponta: o esquecimento da
objetivação separada. Esse esquecimento está no centro da tematização sobre a linguagem
humana.
Não pode haver existência alguma à parte da relação com o todo, pois mesmo isso
que se exprime enquanto existência dá-se no suposto do mesmo todo em participação, ou
linguagem. Caso se quisesse falar de Deus, não se poderia nomeá-lo por ser infinita
suposição. Mas nem Deus, então, pode comungar da idéia de algo sem participação, ou
seja, precisamente linguagem, pois Deus é participação de modo especial. Deus se diz
participando.
“Uma existência que fosse sem qualquer relação com a linguagem é uma idéia, mas
essa idéia não permite frutificar nem no círculo de idéias, cuja circunscrição aponta aquelas
que são de Deus”. (GS II-1, 141). A linguagem é expressão participativa e é existência,
participação de conteúdos, ou seja, não de tudo e nem de tudo numa vez só: é continuidade
177
“Certo está apenas esse tanto, que nessa terminologia cada expressão deve ser
contada à linguagem na medida em que ela for participação de conteúdos espirituais”. (GS
II-1, 141). A expressão é possível apenas como linguagem, sob o risco de nada podermos
entender e ser. Mas havendo linguagem, deve-se retroceder, voltar, retornar para saber do
que se trata, de que essência espiritual a expressão provem. Sae-se do meio da linguagem
neste procedimento? Certamente não é possível, pois como se poderia deixar de participar?
Mas internamente à linguagem existem as forças coercitivas da compreensão que apenas
na atividade de elucidação hermenêutica tem solução provisória.
A língua não é instrumento pelo qual se pudesse carregar algo outro para despejá-lo
em algum lugar: não é uma essência que é carregada de um lado ao outro por um veículo
chamado linguagem, pois ela já é expressão imediata da essência. Num exemplo que se
pode dar, a língua alemã não é um veículo à parte para a transmissão da cultura, do sentido
ou do sentimento germânico, mas já é a expressão disso na imediação da sua elocução.
Pode haver tradução para outras línguas daquilo que na língua alemã foi elaborado, mas
essa tradução será, então, conforme a tarefa da tradução, uma nova criação, uma trans-
criação constante, um novo envolvimento do tradutor a quem não é permitida a condição
de mero intermediário de conteúdos, mas de quem se exige a assunção da sua expressão
realizada na leitura e na nova codificação que elabora.
fala desta ou daquela maneira, nesta ou naquela intenção está dialogando conforme o que
já foi dito no texto de Metafísica da juventude. A única forma analítica mais distante do
dizer é a escuta silenciosa, atenta e participativa. Mesmo assim, quem escuta também está
participando inevitavelmente, pois dá precisamente a direção do sentido a partir da sua
compreensão elaborada pelos procedimentos da linguagem.
“Desse modo antes de tudo é evidente que a essência espiritual, a qual se comunica
na linguagem, não é a linguagem mesma, mas algo que dela deve ser diferenciado”. (GS II-
1, 141). A hipótese de esgotar com a palavra a coisa dita, essência espiritual, a partir de
critérios absolutos esquecidos significaria esquecer que a linguagem é em participação
própria na própria confecção de tal opinião. A objetivação geralmente leva ao mal do
esquecimento de que se está a contar com critérios inatacáveis no dizer em ação dividindo
tudo em sim e não. Enquanto isso, o estado de coisas é muito mais rico em detalhes a
serem lembrados: tanto não se esgota o sentido da coisa com um dizer só, como também o
próprio dizer é eivado de pressupostos em sua ocorrência de dizer. Esses pressupostos
também levam consigo a condição de possibilidade do seu dizer, que também nunca haverá
de esgotar, pois qualquer afirmação de esgotamento já desenharia a afirmação pretensiosa
de falar de fora da linguagem participativa num local para análise que nunca poderá existir,
já que é participação. A linguagem humana enquanto participação, portanto, não pode
querer identificar-se e determinar de maneira absoluta os elementos da participação, ou as
179
coisas, querendo, quem sabe, até substituí-las. Benjamin está a indicar que a participação
em forma de linguagem é uma parte da essência espiritual, ou seja, a expressão dela,
enquanto que sempre há ainda um infinito da mesma essência a ser expresso. Esta
condição geral da linguagem geralmente é esquecida, na imaginação de que com uma
palavra se esteja definindo e dominando, de uma vez por todas, as próprias coisas em toda
a sua extensão e em toda a sua participação ainda possível. A colocação dessa hipótese na
filosofia leva a um precipício que é a queda no esquecimento excluindo-se da participação
na tentativa de permanecer do lado de fora de uma totalidade que se pretende descrever
unilateralmente, subjetivamente e à distância. A queda em tal precipício é, então, o erro de
se imaginar sem participação na totalidade que se está exatamente a descrever e nela assim
precisamente participar e, além disso, colocar a hipótese de si mesmo enquanto descrição
no início de um processo no qual, porém, já está infinitamente no meio.
Para não cair no precipício de uma objetivação absoluta, mas ingênua em sua
concepção também participativa, há que fazer uma diferença entre a essência da
linguagem, que é a participação, e a essência espiritual de todo o modo inesgotável. Tal
diferença é mais original e por meio dela se entende melhor o que se está a fazer de modo
participativo numa teorização da linguagem. É impossível alguém dizer que irá analisar a
linguagem com outra linguagem sem ao mesmo tempo assumir que esteja expressando-se
em participação na totalidade da linguagem que é precisamente participação de novo.
Sempre permanecerá no âmbito da mesma linguagem para elaborar algo que supõe melhor,
mais lógico ou mais coerente, mas nunca poderá esgotar definitivamente o sentido de
qualquer coisa, que aqui se chama essência espiritual daquilo que se expressa no dizer
enquanto intenção de objetividade e suposição geral do mesmo dizer esquecido enquanto
condição de possibilidade que o acompanha. Para repetir, a suposição da essência
espiritual inesgotável transluz do próprio exercício da linguagem enquanto atividade
também inesgotável pela fonte de que bebe sem nunca poder deixar de beber enquanto
deslocamento semântico para circunscrever melhor a expressão ocorrente. A coisa
180
ponto de referência fora da linguagem para dizer algo objetivo enquanto identidade em
termos de algo enquanto algo.
“Não há, portanto, nenhum falante da linguagem quando com isso se quer apontar
aquele que se comunica por meio dessas línguas”.(GS II-1, 142). Igual à essência da
linguagem a essência espiritual não é de fora, ou seja, a essência espiritual está junto à
participação da linguagem. A linguagem é parte da essência espiritual e nessa parte se
identificam. Não se pode, portanto pensar que a linguagem veiculasse uma essência que é
de fora para dentro de si e para então participar. O fora da linguagem desse modo não há,
pelo fato de ela ser parte efetiva da essência espiritual.
discursividade participante da linguagem humana. Há que lembrar de novo: por mais que a
linguagem se dê enquanto objetivação, sempre fará parte, isto é, participará de um todo que
no seu discurso objetivante no ritmo do tempo jamais poderá dizer definitivamente. A
linguagem participa por estar no meio e nunca no início de nada ao modo objetivo, por
mais que se esqueça das hipóteses de um abismo, sobre o qual precisa flutuar como que
sabendo que terá de gaguejar soluções continuamente, afundando, porém, num sem fundo
quando esquece querendo estaquear fundamentos sobre um sem fundo.
linguagem identifica-se de novo com as coisas que nela são participantes enquanto ditas. A
participação enquanto linguagem também participa do todo que mesmo supõe e essa é a
dificuldade da contradição.
“A linguagem participa a essência lingüística das coisas”. (GS II-1, 142). A linguagem é
uma coisa que aparece na participação e a participação é o aparecer. Como se poderia
duvidar de que há o fato da linguagem, mesmo que objetivada como coisa e que fosse à
parte de algum falante? O cético que dissesse que não há linguagem estaria a se contradizer
de forma completamente estulta, pois estaria a participar do que nega que existe. Quanto
mais negar, mais irá provar exatamente o contrário.
“A aparência mais evidente disso, porém, é a linguagem mesma”. (GS II-1, 142). A
linguagem é participação, tem o sentido da participação e só pode ser enquanto
participação. Portanto, ela não tem algo externo a si para trazer daqui para lá, um o que,
um objeto a mais do que ela mesma seja, mas participa, ela mesma enquanto essência
espiritual das coisas, identificada com a sua própria essência. O que da linguagem é o seu
próprio fato.
A linguagem das coisas é a sua essência lingüística. Isto quer dizer que há o fato de
se falar coisas fazendo-as participar na linguagem e isso é a sua essência, e essência
percebida como participação.
O todo suposto só pode ser todo apenas também pela suposição necessária da
participação efetiva e compartilhada de todas as suas partes, participação que se denomina
linguagem. Por isso, a linguagem é o meio no sentido também de ubiqüidade participante
da essência espiritual e imediação para que o todo possa ser. O medium da linguagem, o
medial, é o seu caráter de imediação e ubiqüidade participante na essência espiritual, de
inevitabilidade de participação imediatamente expressiva apontando diferenças e
identidades em seu percurso e tendo a grande identidade como pano de fundo sempre
suposto, mas a qual nesse percurso nunca poderá definir cabalmente, pois mesmo qualquer
definição dela será nova participação efetivamente posta no permanentemente suposto. A
magia positiva da linguagem é primeiramente a sua efetividade imediata do dizer, que é
uma força prática incontrolável pelo dizer, pois qualquer dizer é efetivo, mágico,
interferente na instituição de diferenças constantes que propõe no ritmo do tempo. Há
como que uma instauração involuntária enquanto verdade a acontecer, que não se pretende,
a partir de uma objetivação, a qual constantemente se pretende como verdade. É como a
situação do paraíso: o homem ouve a voz da proibição da objetivação no esquecimento de
que seu falar é efetivo, participante, criador-instaurador numa totalidade incomensurável.
Mas a voz da proibição da Grande Lei já sempre vem atrasada porque proíbe algo que já
desde sempre aconteceu como participação efetiva na objetivação da linguagem mesmo
esquecida. A tentação, ou o esquecimento da construção separada sem a assunção da magia
da participação constante continua até nova recordação envergonhada em que de novo o
homem ouve a voz que lhe pergunta sobre o lugar em que está: Adão, onde estás? E a voz
quase sempre acontece no fim de uma construção esquecida quando a recordação
melancólica sofre um processo de identificação com a ruptura do castelo de cartas: era-se
precisamente isso, sem o saber até então, pelo fato de esquecer da magia comprometedora
da linguagem.
significa, como já dito, que não há a possibilidade do início absoluto, mas que já sempre se
está no meio da participação.
“Ao mesmo tempo a palavra sobre a magia da linguagem aponta para algo outro:
para sua infinitude...” (GS II-1,143). Tudo está na linguagem e ela não é o instrumento que
traz algo de fora para dentro. Como a conhecida mônada de Leibniz que não tem janelas e,
portanto, dá a idéia de algo que não tem fora nem dentro, assim também é a linguagem
para a qual não se pode trazer conteúdos de fora para dentro, mas o que se chama conteúdo
já faz parte do espírito da linguagem e deve ser articulado de outro modo. Conteúdos
dentro da linguagem como se fossem carregados por ela estariam a indicar a sua
instrumentação e separação definitiva dos elementos para a possibilidade da objetivação. A
sua instrumentação significaria a sua redução pela possibilidade de manipulação por algo
de fora dela. Mas a incomensurável infinitude da linguagem não pode ter um âmbito de
fora, pois toda a tentativa de manipulação verbal de conteúdos ainda se dá no âmago da
linguagem. É daí que decorre o seu aspecto mágico, pois a mesma tentativa de
manipulação exterior da linguagem desde sempre está fadada ao fracasso, já que é
instauração no interior da linguagem em uso, e tal instauração nada mais é do que a
efetivação da participação.
189
É possível perguntar pela razão de tal nomeação, mas a resposta já está dada pela
própria característica da participação. O homem participa lingüisticamente nomeando, pois
190
é a sua maneira de participar. Por isso, a pergunta pela razão da nomeação equivale à
pergunta sobre com quem o homem compartilha e de que modo. Pois a sua parte é ao
modo da nomeação de todas as outras criaturas. Há a participação de todos, desde lâmpada
até raposa, e tal participação de todos possibilita a parte do homem que é nomear tudo.
A expressão indagadora alemã wie teilt der Mensch sich mit? poderia ser traduzida
simplesmente por como o homem se comunica? E, então, desta forma perder-se-ia a
riqueza sugestiva com a qual Benjamin elabora toda a questão. Por isso, essa mesma
indagação deve ser acatada na sua sugestão que traz do seu imaginário original que é:
como o homem faz de si parte? Ou: Como o homem expressa a si como parte? Ou: Como o
homem expressa a sua participação? Pois é conforme a sua maneira de participação que o
homem compartilha. Por isso, compartilhar a sua essência espiritual em nomeação das
coisas, é ele mesmo em acontecimento de participação. Isso resulta em que os nomes que
dá perfazem a sua forma de participação que, por sua vez, é a sua essência lingüística, a
qual, por sua vez, é expressão da sua essência espiritual, do seu acontecer no todo que
sempre supõe na sua linguagem em compreensão itinerante.
expressa a sua essência espiritual. Os nomes das coisas fazem parte do ser do homem que é
constante expressão nomeadora, de modo que nunca poderá dizer que está num outro local
separado da sua própria expressão participativa que assim o caracteriza. A totalidade do
que o homem nomeia é o seu mundo que ao mesmo tempo ele mesmo é.
“A outra, pelo contrário, não conhece nenhum meio, nenhum objeto e nenhum
endereço da participação. Ela diz: no nome a essência espiritual do homem compartilha
com Deus”. (GS II-1,144). A essência espiritual do homem expressa-se no nome, é a sua
linguagem. Sempre o homem será caracterizado pelo comprometimento absoluto do que
diz enquanto nome seja o que for que estiver nomeando. Sob este ponto de vista é
interessante observar o milenar desejo desesperado de lavar as mãos para preservar a
ficção da pura objetividade, como o expressa Pilatos no fim do seu famoso diálogo com o
acusado frente à multidão e se fazendo de desentendido quanto ao dito no início da
conversa frente à multidão: à pergunta – és tu o rei? – recebe a resposta – tu o dizes! Por
parte do acusado trata-se da eliminação de qualquer critério ou fundamento fora da
linguagem que pudesse oportunizar o grau zero de participação responsável no veredicto
final. O acusado indica o gesto de auto-absolvição Pilatos como participação ativa no
processo de julgamento. “Deus espera na contradição da linguagem” é uma afirmação já de
Metafísica a juventude (GS II-1, 93).
dos nomes já perfaz o encontro. Por isso, a realização desse encontro jamais poderá
desfazer-se pelo erro de querer instaurar uma diferença em que um conteúdo diverso de
algum instrumento linguagem em comunicação esteja exposto em algum lugar como
objeto absolutamente separado. A participação enquanto expressão espiritual na nomeação
dá a idéia de uma totalidade intensiva sempre em exercício: dizendo o mundo, o mundo é
nomeado, a essência espiritual do homem se expressa e o encontro simultaneamente se dá.
Expressando-se deste modo na nomeação do encontro, o homem vive desse encontro após
a nomeação, ou seja, está no nome que significa o encontro, ou no encontro que significa o
nome.
“Por isso ele é o senhor da natureza e pode nomear as coisas. Apenas a partir da
essência lingüística das coisas ele chega por si mesmo ao conhecimento delas – no nome”.
(GS II-1, 145). Dizer o mundo nomeando as coisas de acordo com a sua essência espiritual
e na continuidade do encontro dá-se a continuidade da criação. O todo, que no exercício da
participação caracterizada sempre é suposto e inesgotável neste mesmo exercício, na
linguagem da nomeação é pressuposto e, precisamente como pressuposição está presente
nessa forma de expressão que na linguagem só é apreensível como a sua contradição, ou
seja, a objetivação da linguagem enquanto participação ao modo da nomeação. A
contradição é a própria criação que continua na nomeação pelo simples fato de que, para
ser, a linguagem precisa da suposição do direito de participação em dar nomes ao que se
apresenta e encontra, o próprio direito de ser, e, simultaneamente necessita da suposição da
inesgotabilidade do seu exercício participativo como encontro nomeante. A criação de
Deus, deste modo, nunca é completa enquanto houver nomeação na lembrança da
participação ocorrente em infinitas proposições de objetivação na compreensão da sua
condição e do seu caráter provisórios. O homem continua a nomear a si mesmo em tudo o
que continua a nomear em múltiplas perspectivas. A nomeação expressa-se, então como a
linguagem das linguagens, porque abarca todas as outras.
Benjamin procura especificar melhor o que entende por linguagem dos nomes
indicando que ela é exclamação do sentido de expressão constante daquele que assim
participa por um lado, e, por outro, é invocação de si mesma, é instauração do que aí se
196
expressa. A linguagem não pode ter para si uma explicação da sua origem, pois toda a
explicação já se daria novamente no âmbito dela mesma com todos os seus recursos. O
princípio da sua origem encontra-se nela mesma como já participação desde sempre, já que
até o tempo inicia a se desenrolar a partir da contradição que lhe é inerente e que também
depende da sua expressão em seu percurso. E como já vimos, o seu percurso supõe a
contradição entre objetivação e expressão a instaurar o tempo. Ausruf (exclamação,
expressão) e Anruf (evocação, instauração) na linguagem do nome é o homem que se
expressa como exclamação de si mesmo e simultaneamente é instauração do mundo
nomeado ao qual pertence. O homem pronuncia a si mesmo como exclamação de si na
simultaneidade da nomeação ao modo de instauração do mundo, agora como encontro
participativo de si com o nomeado.
Nesta questão dos graus é necessário recordar insistentemente que Benjamin está a
bater-se com a questão da objetivação. Chegar-se a um resultado que minimamente
insinuasse conteúdos separados da linguagem seria o mesmo que ter perdido a batalha. Os
conteúdos, portanto, devem ser compreendidos como participação expressiva de quem os
propõe. As coisas são conteúdo? Benjamin resolve que não são, porque, com parte da sua
essência espiritual, estão a se expressar lingüisticamente num encontro com a nomeação da
linguagem nomeante do homem. Os antigos conteúdos que daí resultariam seriam no
nome, então, vistos como diferença entre graus em que um pode ser traduzido no outro
superior até a linguagem dos nomes como se fossem graus de ser em analogia com os
graus espirituais da Escolástica. Exatamente este estado de coisas permite que se fale de
metafísica da linguagem. Esse termo quer expressar a necessidade de se pensar para além
da objetivação, simplesmente de acordo com a etimologia grega que desde sempre sugeriu,
primeiramente, um âmbito da fu^sij como resultado de todo o conjunto de explicações
estabelecidas objetivamente e em que todos se compreendem pelas explicitações e
aplicações mais variadas do dia a dia e, depois, a possibilidade de um Metà, um além do
que foi posto, perguntando pelas justificativas da fundamentação de toda a compreensão
ocorrente. O novo que daí pode surgir é sempre revolucionário, percepção de destruição da
estrutura compreensiva de uma época, encarada por alguns como caos e por outros como
revelação de novos tempos.
Nas questões da linguagem tem-se a retidão do dito que se repete em seu sentido e
sua aplicação enquanto dizer resultando numa compreensão companheira sem maiores
sobressaltos. Pode ser de difícil decifração, mas a obstinação na fidelidade aos mesmos
critérios de compreensão representa a garantia do entendimento final. O resultado deste
movimento compreensivo é invariavelmente a objetivação mais acentuada. Apenas a
revelação do impronunciável, a partir do ainda impronunciado no velho esquema
sistêmico-compreensivo, é que pode trazer a linguagem novamente à sua pureza na
compreensão da contradição da linguagem. O conflito acerba-se a ponto de insolubilidade
200
quando se imagina poder programar o dizer do ainda não dito. Como seria possível se a
própria compreensão aferrada em toda a sua extensão à linguagem ficaria enredada ainda
até nas questões de sua auto-programação?
A especificidade do homem é que ele não foi nomeado como aconteceu com as
outras criaturas na criação, portanto, não está subjugado à palavra, mas a palavra lhe foi
confiada com toda a sua carga criativa e instauradora. Como palavra, Deus é criador em
instauração absoluta. O homem como palavra é conhecedor apenas em parte, e isto
significa que as suas palavras são reflexo da essência criativa da palavra de Deus no nome
enquanto participação. O nome participativo, como a expressão já diz, ativa-se na
participação analítica numa circunscrição que, se comparada, é ilimitadamente criativa
força da palavra de Deus. A palavra participativa em exercício analítico e hermenêutico
205
divina fora da participação nomeante com estatuto de absoluto separado para, por outro
lado, fazer o papel de fundamento para a possibilidade do julgamento. Deus é posto para
fora da própria participação nomeante e não mais é entendido como identidade na qual e
pela qual a ocorrência da participação é possibilitada, mas sem nunca a poder definir.
Agora Deus definido e de fora da participação é fundamento para a separação e
afastamento de tudo. É o esquecimento da contradição da linguagem pendendo para apenas
o lado da objetivação. O flutuar sobre o abismo cessou e o homem então inicia a queda no
mesmo abismo sempre à procura de novos fundamentos. Trata-se aqui do nó górdio da
compreensão da objetivação que deve ser cortado para a possibilidade da volta. O corte
seria as amarras da objetivação para a compreensão da contradição da linguagem com sua
ambivalência de participação em diferença tradutora no suposto da identidade já sempre
subjacente. Com a objetivação a palavra perde a sua magia tornando-se instrumento de
objetos separados uns dos outros.
O pecado da queda, por incrível que pareça é a invenção de Deus como fundamento
de tudo por separação pela qual é colocado como garantia do julgamento sobre o bem e o
mal. É a invenção da origem absoluta para possibilitar o entendimento do tempo em linha e
instituir o passado absolutamente positivado de modo objetivo. Inventa-se Deus em forma
de ídolo para poder condenar e esquecer que a condenação é também participação no todo
que sempre se supõe. A natureza perde o parentesco com o homem e torna-se um absoluto
outro no esquecimento de que também isso é participação. Inventam-se miríades de
justificativas para milhares de construções teóricas por meio da linguagem para tanto
instrumentada esquecendo-se que também tudo isso é participação do sentido de cada vez
mais afastamento de uma com compreensão da contradição da linguagem em que Deus
espera.
212
Benjamin arrisca uma terceira conseqüência desse estado de coisas que é a tentativa
de entendimento da abstração da própria linguagem como queda. Abstrair da linguagem
tentando fazer dela um objeto de análise separado da linguagem em execução é talvez
querer cumprir a tarefa mais vã de objetivação. Pois, no fim das contas, a colocação de
bem e mal significou o abandono da linguagem participativa, mas tal abandono é seu
próprio julgamento a respeito do que não existe juiz para julgar sobre bem e mal, a não ser
a eterna recorrência: a linguagem é seu próprio chão.
Tudo isto significa que todos os fundamentos postos são substituições do nome
verdadeiro que exigiria a compreensão contínua da participação ocorrente, uma
manutenção inabalável da compreensão da contradição da linguagem. Significa o desabafo
de Kant quando conclui que as fontes secretas do entendimento não são acessíveis ao
próprio entendimento. Kant, além disso, coloca as idéias como ficções que devem ser
descobertas continuamente no processo empírico, idéias que não mais se pode provar, mas
sob as quais fundamos o nosso julgamento Isso também força o aspecto dedutivo
esquecido da análise da colocação do fundamento em que a dedução se dá. Lembra
igualmente Platão quando fala de stéresij e métexij como dois direcionamentos contrários
em meio aos quais numa situação medial o pensamento se dá supondo uma totalidade
inapreensível e apenas suposta como sumo bem..
em sua ocorrência nunca alcançável e sem intenções de alcançar, pois a verdade era a
participação e não a adequação entre linguagem e coisa separada.
A natureza lamenta pela morte da linguagem, pois ela mesma se torna mais muda
do que já era antes da objetivação. A natureza iniciaria um lamento se lhe fosse emprestada
a linguagem. Mas sem linguagem, nem isso pode fazer, já que não conta com mais nada
para participar quando não nomeada na linguagem humana. Por isso Benjamin diz que
resta apenas o som de um lamento junto com o farfalhar das folhas das plantas. É um
lamento mudo e sensível sem tradução.
A leitura pela tradução dos sinais das coisas na arte para que as coisas e criaturas
tenham uma linguagem infinitamente superior e possam superar seu luto de certo também
está em contraposição com a linguagem objetivada, fadada a ser instrumento após a queda.
É evidente que as duas não coincidem.
219
Deus é a unidade da movimentação da linguagem (GS II-1, 157), eis a última frase
do texto que resume toda a contradição. Se Deus for compreendido como entidade
separada para esteios e muletas precárias na formação do mundo separado de quem o diz
com tudo o que significa, então tal compreensão promove a queda na objetivação, no
esquecimento dela e na catástrofe trágica em andamento ao modo como o anjo da IX tese
de Sobre o conceito de história a vê com olhos arregalados. Se Deus como todo for
impossível de ser dito no exercício participante de nomeação das coisas, a compreensão na
linguagem aceita a sua limitação e se propõe a prestar atenção à Offenbarung, ao que se
revela em cada gesto sedimentado pelos milênios a fora e a cada suspiro do cotidiano.
Após estas considerações permanece desse modo um conceito
purificado de linguagem, mesmo que também este possa ser
imperfeito. A linguagem de uma criatura é o Medium no qual a sua
essência se comunica. A corrente ininterrupta dessa participação
[comunicação] flui por toda a natureza, do existente mais inferior
até o homem e do homem para Deus. O homem comunica-se com
Deus pelo nome que ele dá à natureza e a seu semelhante (no nome
próprio), e à natureza ele dá o nome conforme a comunicação que
ele dela recebe, pois também a natureza inteira é perpassada por
uma linguagem muda sem nome, do resíduo da palavra criativa de
220
No universo, a importância de uma folha que cai está em se saber até que ponto é o
seu destino ou a sua liberdade: ela empurra ou está sendo empurrada?
221
O texto de Benjamin sobre o que deva ser a filosofia por vir inicia com a lembrança
ou até afirmação de uma tarefa peculiar da filosofia: supõe que ela toma, capta, ou haure
(schöpft) profundas premunições “tiradas da época e de um sentimento de antecipação de
um grande futuro” (GS, II, 157). A partir das fontes da época e do sentimento
antecipatório, a sua tarefa de captação continua com o trabalho de relacionar as
premunições com o sistema kantiano para que essas mesmas premunições possam tornar-
se conhecimento. Em outros termos, a filosofia constata as premunições da época que só
poderão tornar-se conhecimento quando organizadas pelo seu encontro com o sistema
kantiano. Vai-se direto ao ponto, ou seja, sentimentos e pressentimentos gerais enquanto
fenômenos que surgem de maneira inesperada e dispersa no tempo adquirem relevo na
paisagem da história quando captados pela atenção filosófica para serem elaborados no
âmbito de um sistema, e, nele, então, desfrutarem do estatuto de conhecimento.
É indicado logo no início do texto que a filosofia deve prestar atenção aos
pressentimentos existentes na época e ao mesmo tempo os filtre, analise, relacione com o
sistema kantiano. Pressentimentos à solta sem uma teoria sistêmica em que fossem
incorporados, ou com que fossem medidos e ordenados em favor de pelo menos uma parca
222
Como já foi dito, de acordo com essa tarefa, a filosofia deveria observar os fenômenos sui
generis que em cada época surgem, coletá-los e elaborá-los como fenômenos de acordo
com o modelo do sistema kantiano. A relação com o sistema kantiano proporcionaria a
continuidade histórica, isto é, não aconteceria a falta de entendimento dos fenômenos
enquanto fatos dispersos e, quem sabe desconexos na história, pois ele seria o único capaz
de decisivo alcance sistemático (Band II-1, 157). Alcance sistemático significa a
inevitabilidade de suposição de alguma configuração sistemática geral para a própria
compreensão seja possibilitada. Para Benjamin, algum vislumbre de sistema é possível e
até algum sistema provisório descoberto e capaz de explicar a intenção de sedimentação de
determinada realidade. O que não se recomenda é a entronização definitiva e defesa
intransigente de algum sistema absolutizante e plenamente objetivo, sob pena de recaída no
essencialismo. Benjamin fala sobre o modelo kantiano e não de uma imitação pura e
simples. Como se configura a relação do modelo com o que o autor tem em mente? É a
perspectiva da transcendentalidade, da suposição sempre inevitável e incontornável de um
critério a ser tematizado para toda a objetivação que se dá comumente na linguagem e, ao
223
mesmo tempo, a suposição fundamental de que qualquer absoluto assim o é apenas pela
sua expressão em dizibilidade, o que sempre configura a contradição da linguagem.
Os dois conceitos, “extensão e profundidade", são o que se pode querer e ter após a
ingenuidade da vontade por fundamentação última e após a descoberta da contradição da
linguagem em termos de objetivação inevitável. Extensão e profundidade descrevem o
próprio abismo a que toda a fundamentação está sujeita.
Benjamin julga que Platão e Kant dimensionam o abismo com respectivamente o mundo
das idéias e o sistema transcendental e se dão provisoriamente por satisfeitos com as
metáforas finais.
É preciso acentuar que aquilo que em Kant eram os dados imediatos dos sentidos
apanhados pela capacidade receptiva do sistema categorial para que fossem transvertidos
em conhecimento justificado racionalmente, agora em Benjamin é ampliado em termos de
pressentimentos e premunições, que surgem como fenômenos no âmbito da história e
necessitados de elaboração por justificação, numa visão de conjunto denominada sistema
capaz de promover continuidade compreensiva. Não se tratam mais de meros dados
oferecidos à capacidade receptiva da sensibilidade de forma igual em todas as épocas, mas
já de vagos sentimentos elaborados a partir de vivências históricas concretas e mutantes de
época em época.
A verdade seria a unidade sistemática sempre vislumbrada e pela qual se luta por
certeza, isto é, a luta pela certeza do conhecimento teria por meta relacioná-lo com a
sistematicidade já subjacente, o que equivaleria à verdade. A verdade, portanto, não é
considerada como uma posse que se pudesse apresentar, ou um estágio que já se tivesse
alcançado. Ela é o pressuposto de um ideal sistemático a ser descoberto e que move toda a
luta pela certeza do conhecimento por meio da procura das condições de justificação ao
molde de Platão e Kant.
talvez pudesse ser interpretado como caminho livre para o relativismo inconseqüente e
para o caos teórico. A acentuação do valor filosófico da justificação, identificado em
Platão e Kant como representação de extensão e profundidade, parece indicar já a
exigência de explicitação caracterizada por um processo de exibição continuada à procura
de máximo rigor conceitual na alocação dos fenômenos que surgem na história, os quais,
por sua vez, eles mesmos também a perfazem quando elaborados pela atividade filosófica.
Mas o autor constata que o sistema kantiano tem deficiências quanto à capacidade
de completa consecução da tarefa prefigurada. Há críticas a fazer. O impedimento de uma
aceitação cabal do sistema kantiano em si é definido como sua deficiência de uma
verdadeira consciência de “tempo e de eternidade”, ou seja, a realidade com a qual Kant
queria elaborar as condições de certeza do conhecimento é considerada como de grau
inferior, “talvez da classe mais inferior” (GS II-1, 158). Assim como toda a teoria do
conhecimento, também a de Kant teria dois lados, dos quais um apenas recebeu a devida
aclaração [explicação, Erklärung]. De um lado, estaria o movimento da pergunta pela
certeza do conhecimento que é permanente e, de outro, a pergunta pela “dignidade de uma
experiência que era passageira” (GS II-1, 158).
Fica em aberto, por enquanto, o que é que o autor entende por “verdadeira
consciência de tempo e de eternidade”. Talvez possamos arriscar a interpretação provisória
de que a eternidade represente o suposto móvel do fato descrito como a existência da
constante pergunta por certeza do conhecimento pelo critério da verdade e da unidade, e o
tempo, por sua vez, seja entendido como o local panorâmico de aparecimento caótico de
fenômenos ainda não configurados e pendentes de algum ordenamento sistemático. A
eternidade equivaleria ao absoluto suposto sistemático total, sempre presente em qualquer
atividade de sistematização discursiva em seqüência temporal e contingente.
A inconsciência desse fato teria confundido Kant. Mesmo que nos Prolegomena
tenha tido a intenção de depreender os princípios da experiência a partir das ciências,
227
Isso parece ser a própria marcha da metafísica, isto é, não negá-la, pois isso já
implicaria em má metafísica objetivada como nomeação doutrinária de uma divindade
erigida como critério para o que se diz, mas sim a constante Verwindung, em termos de
uma superação no acompanhamento do compreendido na procura do que supõe ao ser
229
Benjamin está a indicar que o transcendental é também uma experiência, talvez por
elaboração da reflexão filosófica ao modo de Kant, portanto, não um dado absoluto como
conhecimento anterior a qualquer conhecimento empírico, mas a depuração das condições
pelas quais todas as experiências da época se dão. Consciência empírica e conceito de
consciência psicológica se identificam. O autor ainda menciona a Escolástica como tempo
a ser examinado para poder talvez elucidar a relação entre conhecimento puro e conceito
de consciência psicológica.
231
Surge, então, a pergunta: por que somente a filosofia? Talvez porque apenas ela
enquanto atividade sui generis de escuta e atenção necessita do suposto da totalidade
enquanto tarefa sempre a definir; porque apenas ela como fenomenologia está preparada
para escutar e dispor-se à escuta do que está a vir a ser, entendendo-se ela mesma como vir
a ser. A própria idéia de divisão entre subjetividade e objetividade a fazer parte da auto-
compreensão é suspensa enquanto definitiva, permanecendo apenas como experiência
aplicada da modernidade.
É necessário notar que, do mesmo modo que Deus, o homem também não pode ser
sujeito ou objeto da experiência. Qual seria o estatuto do homem, então? Visto pelo lado
negativo, o homem não pode ser suporte, ou fundamento pelo fato de que a experiência é
algo que lhe transcende, mas de que faz parte (é a questão do organismo em Kant e em
todos os românticos; a questão da Natur de Hoelderlin, como interpretação do parágrafo 45
da Crítica do Juízo de Kant e motivo de celeumas entre Fichte, Schelling e Hegel com
Hölderlin a respeito da possibilidade de um fundamento que geneticamente pudesse ser
233
responsabilizado pelo todo que há); e não pode ser objeto exatamente pelo fato de fazer
parte do processo de forma possivelmente ativa em participação. Visto pelo lado positivo
trata-se da perspectiva da instauração e do saber disso.
O autor fala da verdadeira religião, na qual nem Deus, nem o homem são sujeito, ou
objeto, portanto, não susceptíveis de definição cabal por proposições, mas apenas como
possibilidade inevitavelmente sempre suposta de totalidade e de si. Em outros termos,
Deus seria o conhecimento puro apenas pensado pela filosofia, já que Deus seria a essência
do conhecimento puro, mas sem possibilidade de objetivação como se fosse a expressão do
Sou-o-que-sou veto-testamentário, ou lo/goj enquanto atividade definidora sem definição.
A filosofia tem a tarefa de pensar Deus e o homem exatamente como possibilidade? Há
que atentar para o fato da junção entre homem e Deus como percurso e possibilidade de
percurso em junção com a categoria da relação. Dá-se a lembrança de que toda a sugestão
de totalidade concreta é encarada como ensaio de abertura para muito mais. Assim, a teoria
do conhecimento vindoura deverá deixar de lado as entidades metafísicas de sujeito e
objeto procurando investigar a genuína esfera do conhecimento (GS II-1, 163). -
Mesmo que a tricotomia kantiana deva ser preservada para a divisão da filosofia,
esquemas particulares do sistema já merecem reparos, como por exemplo, da Escola de
Marburg que já iniciou com a eliminação da diferença entre lógica transcendental e estética
e o que se pode complementar com a revisão total da tábua das categorias. Exatamente
nisso se pode aspirar a uma transformação do conceito de conhecimento, angariando um
novo conceito de experiência, pois as categorias aristotélicas são arbitrárias e Kant as
direcionou unilateralmente para a experiência mecânica, além de apresentá-las
isoladamente e numa desconexão, que faz pensar na possibilidade de relacioná-las a uma
doutrina das ordens ou liga-las logicamente com conceitos originais anteriores. Uma
doutrina geral dos ordenamentos seria viável, a qual incluiria não só a mecânica, mas, por
exemplo, também os conceitos fundamentais da geometria, ciência da linguagem,
psicologia, ciência natural descritiva. Além disso, seria preciso atentar para a necessidade
de tematizar as soluções do vir a ser do próprio conhecimento a fim de encarar o problema
sobre falso e sobre erro, a sua estrutura e o seu ordenamento lógicos, bem como do mesmo
modo sobre o verdadeiro. (GS II-1, 167). “O erro não deve mais ser explicado a partir do
errar, como a verdade também não mais a partir do correto entendimento”. (GS II-1, 167).
Na filosofia moderna em geral surge o reconhecimento de que o ordenamento categorial
possa ser por graduação multiforme e também não só por experiência mecânica, para que a
arte, o direito, a história e outros âmbitos ainda pudessem orientar-se pela doutrina das
categorias. Mas no âmbito da lógica transcendental surge um dos maiores problemas, ou
seja, o das formas de experiências científicas (biologia) que Kant lá não tratou e a questão
é sobre por que não. Além disso, ainda restaria a pergunta pela relação da arte com a
terceira parte do sistema e da ética com a segunda.
A doutrina kantiana com seus princípios relacionou-se com uma ciência, frente à
qual pode exercitar-se em suas definições. O mesmo acontecerá com a filosofia moderna,
sendo que a sua transformação e a sua correção de orientação por um conceito de
conhecimento unilateralmente matemático-mecânico dever-se-á promover como relação do
conhecimento com a linguagem, como já no tempo de Kant, Haman o fazia.
Para Kant, o fato de que todo o conhecimento tem a sua expressão na linguagem, e
não em fórmulas e números, ficou em segundo plano. Na reflexão sobre a essência
lingüística do conhecimento chegar-se-á à produção de um conceito de experiência capaz
de abranger sistematicamente setores que Kant não conseguiu incluir. O setor a ser
mencionado por primeiro é o da religião. Resumindo a exigência
Não se pode deixar de conjeturar sobre o que isso possa significar. Um ponto lógico
enquanto experiência capaz de suspender a diferença entre natureza e liberdade não é nada
desprezível. Haveria mais indicações a esse respeito no texto, mesmo que o autor recue em
sua sugestão ao dizer que se trata apenas de um programa? Já anteriormente (GS II-1, 161
239
Sob esta ótica, Benjamin afirma que na elaboração de qualquer obra não se deve
levar em conta alguma consideração ou cuidado quanto ao leitor, pois não tem relevância
para a função e a tarefa da linguagem. A obra de arte não precisa minimamente levar em
241
conta o conhecimento de qualquer receptor pelo fato de que não pode haver estratégia de
conhecimento ou intenção competente na transmissão de algum conteúdo. A obra não deve
prestar-se à comunicação no sentido costumeiro e, por isso, não é necessário o
conhecimento, ou a captação do que comunica. Ela está excluída de qualquer relação
comunicativa e, assim também de qualquer relação de sujeito-objeto.
A questão então é sobre o que, então, numa construção lingüística pode ser
reconhecido além do seu caráter comunicativo. Além de todo o teor comunicativo quanto a
conteúdo concerne à linguagem o teor não predicativo que, então, se apresenta como a
tarefa precípua da tradução. Esta tarefa tem como alvo o âmbito da linguagem dos nomes,
o teor de verdade da própria obra, tudo isso bem além do que a intenção dos meros sinais.
O teor do conteúdo, isto é, o teor coisal [Sachgehalt] pertence totalmente às preocupações
de comunicação intersubjetiva com todas as suas variantes, e deve ser estritamente
diferenciado do teor de verdade [Wahrheitsgehalt], que supõe “a existência [Dasein] e a
essência do homem em geral” (GS IV, 9), o que, por sua vez, não pode ser objeto de
tematização cientificista. A tradução não deve, portanto, ter a intenção de repassar
conteúdos articulados por linguagem proposicional.
Pois, o que “diz” uma obra poética? O que ela comunica? Muito
pouco àquele que a compreende. O seu essencial não é
comunicação, não é proposição. Mesmo assim, aquela tradução
que quer comunicar não poderia transmitir nada além do que a
comunicação – portanto, algo inessencial. Isto, portanto, então
também é um sinal de reconhecimento da má tradução. Mas o que
na obra poética permanece além da comunicação – e mesmo
também o mau tradutor concorda que se trata do essencial – não
vale em geral como o inconcebível, misterioso, poético? Aquilo
que o tradutor somente pode restituir à medida que também
poetiza? Daí de fato provém um segundo indício da má tradução,
que então se pode definir como uma transmissão de um conteúdo
inessencial. (GS IV, 9).
própria questão que uma tradução não interessada em conteúdos, mas em algo que
acompanha essa dimensão material trata na verdade de uma forma e que é identificada
como sendo a tradutizibilidade da obra. Há que acentuar que se trata, então, da obra e não
do tradutor: a obra de arte é traduzível ou não, algo que a própria constituição dela decide.
Tudo depende da possibilidade de se a verdade inscrita na obra é traduzível ou não, e isso
quem decide é a obra, pois é ela que por sua própria força aspira e leva à tradução. É certo
que a obra não se transforma em algum sujeito para si mesmo, mas que simplesmente a
obra, assim como é, exige a sua tradução de acordo com a sua essência (GS IV, 10). Em
sua constituição prática, a obra é uma construção finita como outra qualquer e, portanto, é
histórica. Desse modo a dimensão do incondicionado, do poético, do misterioso em seu
teor depende de uma língua finita e histórica, estando ela em constante perigo de
desaparecer. A tarefa, então, é impedir que esse desaparecimento aconteça, pois na
atividade da tradução o tradutor mesmo se envolve com a vida da obra como se fosse a sua
própria. A necessidade da tradução decorre do encontro acontecido entre tradutor e obra e
tal teor vital de verdade exige atualização e renovação, pois significa a forma de existência
mesma da obra. Mas há que acentuar mais uma vez que não se trata de traduzir a obra
original assim como foi historicamente constituída, mas aquilo que constitui a sua verdade
em termos de um sentido que exige traduzibilidade sucessiva. E a verdade da qual aqui se
fala não depende do conhecedor que a pudesse manipular como se fosse objeto.
Os tempos em que a obra continua a se desenvolver pela forma descrita são por
Benjamin denominados de tempos de fama. Os tempos de fama, porém, denotam algo
mais, isto é, que a tradução é apenas uma das expressões possíveis da obra. A tradução
como que segue a fama da obra constituída de muito mais do que a tarefa tradutora. (GS
IV, 11).
substituída pela linguagem objetivadora numa função meramente semiótica que nesse viés
se fragmenta continuamente. A tarefa da tradução deve ser o movimento contrário que é o
da recuperação da unidade perdida quando na fragmentação alucinante ela ressalta a
dimensão do poético. A verdadeira tradução, portanto, é sempre um passo no sentido da
reconstituição do que as próprias línguas em fragmentação supõem, ou seja, uma
identidade expressiva original que representa a própria condição de possibilidade delas.
Deste modo a tradução faz acontecer algo extremamente importante, que é a suposição de
que todas as línguas têm um fundo de semelhança apesar da sua diferenciação em termos
semióticos. Além de tratar do desenvolvimento da obra original, a tradução, portanto,
indica uma mudança de relação entre as línguas, chamando à atenção para o que elas têm
de semelhante e impondo, assim, uma cesura ao movimento de fragmentação infinita. O
suposto de identidade aventado é o fato de que é possível a expressão em desenvolvimento
de um teor de verdade idêntico, apesar dos diferentes sistemas de designação pelas línguas
históricas. Pela tradução, as línguas finitas entram em relação com a linguagem dos nomes
que perfaz uma unidade virtual. As línguas finitas reúnem-se em torno dessa linguagem
como que em torno de um lugar vazio. É por este motivo que Benjamin deduz a
impossibilidade de uma tradução que fosse comum a todas as línguas, pois se trata de uma
tentativa intermitente, de um gérmen de apresentação de um significado, o qual permanece
oculto, mas ao mesmo tempo determina a relação entre as línguas na tradução. Trata-se de
uma
O parentesco das línguas não é de ordem genética e nem a linguagem dos nomes
deve ser entendida como a linguagem original no sentido histórico.
permanece como idéia regulativa enquanto ideal de toda a fala e de todo o conhecimento.
A linguagem proposicional procura constituir o mundo das coisas. As proposições que
objetivam o saber conceitual têm a pretensão de se relacionar entre si como a realidade que
supostamente captam como num mundo paralelo e como num total de estados de coisas.
Assim, neste aspecto todas elas diferem entre si tendendo a fragmentação cada vez maior.
Mas a unidade que as supõe, o mesmo teor de verdade, a mesma idéia forma um pano de
fundo que a totalidade do conhecimento proposicional com que se expressam nunca pode
ser realizado. São, portanto, diferenciadas quanto ao saber proposicional que decai na
objetivação, mas tem a sua unidade suposta pelo seu teor não proposicional. Benjamin
explica:
Cada uma das perspectivas é uma versão da totalidade, mas não a totalidade
mesma. Na forma de visar o que aparece não é algo diferente, mas é o idêntico que aparece
diverso. As perspectivas não são meramente partes fragmentadas de um infinito, mas são
expressões diversificadas do mesmo. Com essa forma de pensar já não mais se está na
linguagem de intenção proposicional que só se refere a objetos. Por isso é que na forma
diversa de visar é possível vislumbrar a complementação que cada uma significa para a
outra em relação e a partir da suposição da linguagem pura. Nas linguagens individuais em
que não ocorre a complementação para a percepção mais imediata do visado, há um longo
processo de mutação vocabular para emergir da linguagem objetal. O visado
constantemente suposto permanece velado nas línguas.
de comunicação, mas, por outro lado, se eleva à altura superior da linguagem, sem, porém,
chegar à linguagem dos nomes da linguagem pura visada pelo tradutor. Acresce-se a isso
que tal esforço em alcançar o visado apresenta uma diferença entre a palavra poética do
original e a tradução. Ao visar exclusivamente o teor de verdade contido no original, o
tradutor elabora outra relação entre âmbito do saber e âmbito da linguagem, entre teor e
conteúdo. (GS IV, 14s). Quando a tradução tem como alvo pura e exclusivamente o
poético, abandona o âmbito discursivo em que o original se encontra.
Pode uma tradução do teor de uma obra ser feita a contento sem a transmissão do
seu conteúdo? A obra em todo o caso apresenta uma só linguagem, à qual correspondem
duas formas de saber. Não poderia acontecer que as condições de tradução são destruídas
quando se deixa de restituir o sentido a fim de traduzir apenas o que se refere à linguagem
pura? De que forma o saber não predicativo está oculto na predicação das linguagens
históricas? Como pode ser compreendida uma linguagem que com os seus meios
insuficientes procura antecipar a linguagem pura? A contradição da linguagem retorna e
retoma os seus direitos de modo avassalador. A tradução como a obra, portanto,
permanecem na contradição da linguagem entre objetivação e expressão. Pela tradução as
palavras não são simplesmente reduzidas à sua condição de lexia, mas são utilizadas em
novo contexto de tal forma que se torna, então, possível que a linguagem possa visar a
linguagem pura.
determinado ponto, e que a lei da sua continuidade ao infinito é ditado pelo contato. Do
mesmo modo a tradução toca fugidiamente o original num infinitamente pequeno ponto
para, então, seguir a lei da fidelidade da liberdade do movimento da linguagem num
percurso próprio. (GS IV, 20). Benjamin também considera as traduções tardias de
Hölderlin como modelo e arquétipo de transposições que não almejavam conteúdos
conceituais da linguagem. Mas aí reside o perigo do silêncio. As traduções de Sófocles por
parte de Hölderlin foram as suas últimas. “Nelas o sentido cai de abismo a abismo até
ameaçar perder-se nas profundezas sem fundo da linguagem”. (GS IV, 21). Fato é que,
depois destas traduções, Hölderlin emudeceu na loucura. Em todo o caso, parece haver o
perigo do emudecimento quando a linguagem perde completamente qualquer alvo de
comunicação. Mas, de acordo com Benjamin, há um paradouro proporcionado pelo texto
sagrado “em que o sentido deixou de ser o divisor de águas para a linguagem caudalosa e a
revelação caudalosa”.(GS IV, 21). No texto sagrado as diversas formas de saber não estão
em conflito. E numa confiança mútua entre original e tradução aí se uniram a literalidade e
a liberdade na versão da tradução interlinear.
justificação, de crença de acerto e de cálculo quanto a efeitos lhe são impostos.Por isso, se
diz:
“Certamente em sua forma acabada será doutrina, mas ao mero pensamento não é
dado o poder de lhe conferir tal forma integral”. (GS I-1, 207). A doutrina é a forma
acabada da apresentação, pois já é um artefato, cujo conjunto engloba em si os aspectos
antes mencionados, na suposição de poder responder a todas as possíveis objeções. A
doutrina apresentada, enquanto suposição de acerto didático completo, desenha a intenção
de uma determinada totalidade compreensiva, que acredita ser inatacável a partir da sua
exterioridade, já que os seus limites externos são completamente invisíveis para ela. Tal
determinada totalidade compreensiva, didática e doutrinariamente estabelecida, recorre
necessariamente somente aos seus próprios esteios, considerados inabaláveis por ela, e à
sua repetida auto-alimentação pela sua movimentação em busca da preservação estratégica
de si. O pensamento realizado didaticamente na forma da doutrina tem já a pretensão da
completude e lhe restam, então, apenas os modos de dizer o mesmo. “A doutrina filosófica
consiste em codificação histórica”. (GS I-1,207).
a apresentações interpretativas, mas como mecanismo teórico fixo capaz de ser repetido
infinitamente nas aplicações adequadas às coisas. Não se trata, portanto, do que acontece
no âmbito da linguagem em geral, no qual, mesmo expressando doutrina historicamente
codificada, há espaço de manobra suficiente para apresentação diversificada de acordo com
nuances interpretativas.
seria esoterismo (metafísica) lhe é proibida pelo fato exatamente de ter consciência da
impossibilidade da sua repetição e da experiência da sua diferenciação frente ao
conhecimento já posto e capaz de reiteração: é vítima de insuficiência estrutural. Por outro
lado, no caso de o pensamento filosófico querer enaltecer-se do seu esoterismo estaria
julgando a si mesmo e deixando novamente de ser o que deve ser, ou seja, acontecer
imprevisível e, por isso, esotérico, pois a vanglória traz consigo intenções de estratégia e
supõe produto teórico acabado à espera de aplicação. “E isso nada mais significa que um
esoterismo lhes é próprio, que não conseguem descartar, lhes é proibido de negar e o qual
os julgaria ao ser glorificado”. (GS I-1, 207).
elemento apartado do sistema que aponta em termos de solução para a integração de todos
os conhecimentos. “A alternativa da forma filosófica, estabelecida pelos conceitos da
doutrina e do ensaio esotérico é aquela que o conceito de sistema do século XIX ignora”.
(GS I-1, 207).
O sistema entendido como rede tecida com conceitos e entre conceitos para apanhar
a verdade como se fosse objeto separado é próprio da modernidade. Os conhecimentos,
nesse caso, ocupam a função de capturar e enredar uma verdade vista como mera
objetivação enquanto alvo a ser constantemente alcançado por conquista. O pretenso
resultado é a posse da verdade pelos conhecimentos como se ela fosse coisa e manipulável
a qualquer hora. Neste raciocínio, os conhecimentos cumprem a tarefa de serem
instrumentos e possuidores da verdade, completamente separados e independentes de quem
os propõe. Uma tal verdade é presa nesse caso pelos conhecimentos instrumentados para a
sua captura em favor das mais diversas aplicações, ou seja, a verdade como adequação. A
verdade, como foi dito, não é aquela entendida pela linguagem que é a participação
(Mitteilung) inevitável num todo que pressuposto.
saber além de toda a ciência, na ilusão de que algum dia a filosofia possa fundamentar a si
mesma de modo absoluto. É exatamente esse afã que Benjamin rejeita. Mesmo que a
filosofia vise o incondicionado, o conhecimento de que aqui se trata só é possível a partir
da experiência. A experiência possibilita um conhecimento que é acessível na sua
apresentação, a qual, por sua vez, não se reduz à mediação de prova racional, mas supõe
ser imediatamente inteligível e de algum modo participável pela linguagem. A edificação
doutrinal da filosofia foi trabalho de séculos, num movimento que não pode ser reduzido
ao more geométrico que a razão como num passo de mágica pudesse reconstruir de modo
recorrente. A doutrina da filosofia não está simplesmente ao dispor do pensamento como
se fosse um objeto à sua frente, pois ele exatamente dela depende enquanto codificação
histórica. A codificação histórica da doutrina filosófica reivindica uma constante
apresentação em que a verdade não está implicada como dedução ou ordenamento por
princípios, pois de antemão há que se dar conta do fato de que a atualidade do pensamento
é profundamente afetada precisamente pelo corpo doutrinal do que já foi estabelecido nos
caminhos de um sincretismo filosófico. Mas tal sincretismo doutrinal que afeta o
pensamento da atualidade também não pode ser tecido de modo atilado como uma rede
para apanhar uma verdade que vem de algum lugar de fora. Uma rede deste tipo suporia
novamente a construção conexa de um sistema feito das partes desconexas elaboradas
desde o passado distante a fim de apanhar toda a verdade possível e subsumir todo o
particular que pudesse aparecer. Tal procedimento configuraria um “universalismo
instruído” (GS I-1, 207) que, a partir do que já sabe e resolveu quanto à aceitação de
critérios para a coesão do sistema, se exercita na prática de fazer a mediação para novos
conhecimentos. Uma filosofia expositiva em apresentação não pode entender-se como
possuidora de um sistema arrecadado passo a passo da história do pensamento para a
edificação intencional definitiva da verdade absoluta, mas deve precisamente romper com
tal intenção.
conceito de verdade em que a posição de Benjamin é a negação de que a mesma possa ser
captada pelo pensamento e explicitada conceitualmente por proposições.
Benjamin assim deixa claro como pensa a diferença entre sistema e tratado. O
caminho à verdade é vedado justamente ao logos de intenção definidora e, para não se
perder nesse caminho largo de queda livre, a reflexão interrompe a continuidade de
conceito à conceito para voltar à própria coisa. O tratado, deste modo, se elabora de
pedaços de pensamentos em justaposição a fim de tornar inteligível aquilo que
discursivamente em ligações diretamente objetivas é inconcebível. A renúncia à
argumentação diretamente explicativa e em seu lugar um procedimento de imediação
expositiva tem por conseqüência o ímpeto da apresentação. O tomar fôlego da reflexão tem
precisamente o sentido de interromper o fluxo da intenção de instrumentação e
comunicação de algo fora, e de assim voltar ao encontro das coisas em que sujeito e objeto
estão intrínseca e diretamente conjugados. Pelo tomar fôlego da reflexão a separação é
superada num passo em direção à unidade paradisíaca perdida. Na contemplação, por sua
vez, o saber proposicional passa ao segundo plano e essa inversão tem conseqüências. Na
primeira versão da introdução ao texto sobre o drama barroco Benjamin diz:
A verdade não como resultado de proposição, mas como ser é a condição para que
se faça experiência, pois é desse modo que no finito o infinito se encontra. É o que
acontece de forma inconsciente na expressão da arte, enquanto que na filosofia o mesmo se
dá de modo reflexivo na apresentação. Na filosofia, portanto, a verdade não é elocução de
conhecimento, mas apresentação, exposição, mostra do seu ser. Não sendo um apanhado
de proposições, ela forma na sua exposição uma imagem do ser apresentando a imediata
unidade do que pode ser objetivado, mas de modo nenhum na intenção de reduzir a
multiplicidade a alguma generalidade. O tratado neste caso é o modelo para se conseguir
visualizar a relação entre unidade e multiplicidade de acordo com o exemplo do mosaico.
264
O mosaico não forma uma soma de uma multiplicidade geral para chegar a uma verdade
unitária, mas ele se apresenta de tal modo que cada fragmento representa a verdade a seu
modo de maneira diversa, ou seja, de uma maneira em que os fragmentos se completam
exatamente pela diferença para forma o quadro geral.
por vislumbre para aquele que respeita a intocabilidade da verdade sem querer reduzi-la às
questões do entendimento. Platão descreve a verdade como o teor [Gehalt] do belo.
A fulguração da beleza garante a presença da verdade, a qual por sua vez não é
acessível à linguagem proposicional objetivadora. A tarefa da filosofia, então, é
precisamente a de possibilitar a verdade por exposição. Mas a sua tarefa não é nem a do
artista puro e nem cientista declarado. Não se pode imaginar que no culto à beleza a idéia
irá aparecer por si mesma, nem pode querer usar a linguagem proposicional para algo que
já lhe antecede. O filósofo desse modo está entre a intuição artística e o conceito na
intenção científica, de acordo, aliás, com as palavras de Goethe escolhidas como dístico no
início do texto “Origem do drama barroco”:
267
O conceito tem ao mesmo tempo uma função analítica e uma função sintética, pois
ele tem a faculdade de dividir o que está unido e novamente unir o que está disperso a fim
de apresentar os elementos de qualquer obra. Na primeira versão da introdução ao texto
sobre o drama barroco Benjamin explica:
objetos que mediante os conceitos são então coordenados. Mesmo assim, a reunião e o
ordenamento dos elementos dos objetos não obedece à costumeira forma abstrativa de
enfileirar o particular de acordo com características, ou notas comuns, mas de acordo com
uma conexão estrutural. Deste modo, o pertencimento mútuo não se dá de acordo com uma
regra geral, mas visa uma estrutura comum e fundamental. Como no exemplo citado, os
elementos mais diferenciados das coisas cumprem o seu papel na estrutura a ponto de que
nessa ordem de constelação o particular é conservado. Desse modo a unidade que a idéia
expressa pode ser realizada pelo que é único e até pelo que é oposto, diferentemente da
ordem estabelecida pelo conceito na ordem do entendimento, que sempre pauta pelo que é
comum para abarcá-lo sob seus cuidados.
Em tudo isso há uma inversão em que a verdade se torna real e efetiva, mas
também que a realidade objetivada não é imediatamente a verdade. Enquanto elocução da
palavra a idéia é empiria no momento da elocução e é idêntica ao mundo físico, sem antes
nunca ter sido, pois não há o infinito enquanto infinito, mas somente no finito. Esse estado
de coisas, porém, ainda não quer e nem pode indicar o Uno, pois se assim fosse, já teria
sido vítima do ordenamento conceitual proposicional ativado pela consciência, que
simplesmente o teria degradado a uma substância. As idéias são a origem do ente: num
contínuo mutante elas acontecem como estruturas. Pelo fato de não haver um mundo das
idéias separado, a própria idéia não tem oportunidade de se mostrar em algo outro que não
fosse o mundo dos fenômenos. Portanto, a idéia é origem de algo com o qual ela é idêntica,
mas ao mesmo tempo não é ela mesma. Elas se apresentam na configuração dos elementos.
271
O ser das idéias, portanto, não pode ser objeto da consciência. E quando Kant e
Fichte concebem a intuição como produto da consciência, Benjamin percebe nisso a
intencionalidade subjacente da objetivação que ele mesmo se dispõe a criticar, pois
novamente a consciência seria posta como o fundamento último, sem se auto-incluir nas
mesmas afirmações e reduzindo tudo de novo a simples objeto depurado conceitualmente.
Por isso, ele acentua a verdade como doação prévia [Gegebensein] a tudo que se possa
dizer e definir. Mesmo com a denominação da intuição intelectual como intellectus
archetipus não se deixa enganar quanto às intenções de poder da consciência. A intuição
como forma de conhecimento intuitivo malogra quanto à imediação do dado, inclusive da
consciência, e, por conseqüência, quanto à imediação da verdade. A intuição em geral
enquanto ocasião dos fenômenos originais não é ainda o verdadeiro, mas é o local de onde
o nome emerge. Como da percepção intuitiva surge o nome, que abriga o teor de verdade
da imagem surgida, assim também acontece na elaboração do tratado em que a idéia se
torna compreensível no nome. Em sua imediação o nome é origem dos fenômenos
empíricos perfazendo o seu ser e, deste modo, o tratado em sua confecção tem o sentido de
ser a exposição do nome.
A dificuldade da questão se dá pelo fato de que não há como dizer novamente o que
significa o nome já que o nome é o que sempre já significa. Caso se quisesse indicar o que
o nome significa, dever-se-ia apontar simplesmente para a exposição e permanecer calado,
pois é a apresentação expositiva que primeiramente dá acesso a um saber que não depende
da elaboração intencional nem do entendimento, nem da intuição. Precisamente esse modo
de ser sem intenção dos nomes é que carrega junto de si a possibilidade da doação prévia
das idéias.
expressivo e, por assim dizer, teológico pelo fato de restar infinitamente um suposto que a
tudo possibilita. A contradição da linguagem desse modo possibilita o conhecimento das
coisas como se fossem absolutamente separadas de quem usa a linguagem de modo
instrumental e, ao mesmo tempo, a percepção do comprometimento absoluto do falante
com o que diz já que lhe é impossível dizer-se, dizer as coisas e dizer a própria
consciência, sem a linguagem pela qual precisamente se identifica como ser humano. A
filosofia enquanto apresentação expositiva tem como tarefa tender para a elucidação do
nome nas coisas, apesar da contradição da linguagem. A tarefa da filosofia enquanto
exposição está, portanto, diretamente referida à recordação contemplativa do que já foi
elaborado e do que aí fala. A capacidade do silêncio na recordação contemplativa é a tarefa
da filosofia na escuta do dito, no ouvir do nome.
“Porque a filosofia não se pode dar o direito de falar ao modo da revelação, isso
pode unicamente acontecer pelo recordar-se que remete antes de tudo a uma percepção
original”. (GS I-1,217). O saber original ao modo da linguagem dos nomes pré-reflexiva
não é acessível à filosofia e, por isso, ela se expressa através da apresentação expositiva no
tratado prestando atenção aos conceitos e às palavras em geral quanto ao que sugerem em
termos de recordação. O saber original se dá a perceber indiretamente por desvios quando
o homem compreende que não é a sua memória em atividade transitiva a responsável pela
recordação, mas o acalento dela, que as próprias palavras lhe proporcionam. A recordação
encontra-se velada nas próprias palavras à espera da verdade.
A imagem das esferas celestes que não se tocam entre si em suas revoluções tem o
sentido de apresentar as idéias enquanto responsáveis pela configuração do real que se dá
de acordo com uma ou com outra na sucessão da história. As essências enquanto idéias
estão isoladas umas das outras como períodos históricos estão, caracterizando-se de
determinado modo diferente um em relação ao outro e configurando em sua totalidade o
céu da história. A visibilidade de uma constelação só se dá plenamente a partir de outra,
constituindo-se então em dificuldade maior a percepção precisamente daquela em que o
homem se encontra relacionado com as coisas que são. Migrar de uma constelação à outra
somente por simples vontade racional é impossível, pois a mesma é parte constituinte da
atual. Resta a relação sonante entre as essências que tem o significado da vibração da
linguagem formando em sua contradição como que a moldura de toda a imagem. Sobre a
verdade ser a relação sonante entre os sóis há que compreender que somente pelo
afastamento recordativo das objetivações de realidade em esquecimento recorrente é
possível visualizar a imagem de si no local em que sempre se esteve. O som das palavras
noticia os ecos distantes da imediação em que tudo se configura. A proximidade aparece
como o mais distante e o distante como o mais próximo e, por isso, a verdade é inacessível
ao falante em sua imediação discursiva e em sua solidão numa estrela só: ele deixa de
ouvir a relação sonante entre todas as épocas, pois se trata de atentamente ouvir.
“O que, porém, tais nomes enquanto conceitos não conseguem, eles realizam
enquanto idéias, nas quais não é o homogêneo que chega à garantia, mas o extremo à
síntese”. (GS I-1,221). Benjamin pretende reformulação, ou até a substituição dos
conceitos históricos gerais por idéias. Onde os conceitos costumeiros apenas viam
multiplicidade sem nexo, a idéia supõe unidade das diferenças e até a necessidade dos
extremos, pois o primeiro critério não é a classificação por conceitos no sentido
proposicional.
A unidade do que a idéia possibilita é uma força inteligível que sustenta a variedade
do sensível para que ele possa ser e, por isso, ela inclui em si o singular e o estranho. A
diferença que se estabelece entre a classificação conceitual e a idéia em última análise se
refere a uma concepção diversa do ser, exatamente pelo fato de que a última acentua a
necessidade do extremo e do estranho que força a consciência a perceber a sua própria
inclusão quando no processo de classificação como que os põe de lado na tentativa de
inaugurar um âmbito do não-ser descartável. A idéia não se dá imediatamente no fenômeno
para que a consciência possa implementar o manuseio científico da classificação para
dividir e descartar uma matéria à disposição. A imediação distante da idéia que conjuga
toda a realidade não pode deixar de incluir a própria atividade redutora da classificação e,
por isso, a idéia mesma não pode simplesmente ser definida como forma que a matéria
mesma dá a si. Esta também é a razão de porque se pode dizer que a unidade das coisas é
metafísica, pois toda a realidade inclui o perceptor e já sempre é conjugada por uma idéia a
ser descoberta pelo processo possível da recordação.
Como já visto, nem a idéia nem o teor de verdade podem ser objeto de proposições
articuladas pela consciência, o que leva exatamente à decisão de diferenciar Trauerspiel
[drama, representação de luto] e tragédia, que de acordo com o sistema de classificação
costumeiro podem ser considerados do mesmo gênero, mas não de acordo com o seu teor
[Gehalt]. Esse teor é capaz de reunir as obras num determinado gênero, porque ele se
expressa em seus elementos formais por meio dos conceitos. O que deste modo ele reúne
dando unidade às épocas e aos gêneros literários são as idéias que pela recordação da
experiência afloram, podendo neste movimento haver correspondência entre idéias
historiográficas e histórico-literárias. O método, portanto, não pode seguir a ingenuidade
do verismo. A metódica “pelo contrário, deve partir de intuições de ordem superior do que
aquela que o ponto de vista de um verismo científico apresenta”. Deve antes de tudo ser
decidido
A concepção durante todo o tempo defendida por Benjamin é a de que antes dos
dados científicos ordenados via indução e dedução há a idéia que tudo abarca e que não se
averiguou, permanecendo completamente deslocada a questão de “como na realidade foi
[?]” (GS I-1, 222). Essa pergunta conduz ao imponderável, dado à multiplicidade dos fatos
que não mais consente a formação de alguma unidade. Tal multiplicidade tenta-se, então,
arrebanhar numa visão sincretista pela qual paradoxalmente o que é definido aparece de
forma isolada. Tanto Croce como Burdach permanecem na concepção de ser de Aristóteles
quando determinam o universal e o particular como pertencentes a uma esfera por meio de
classificações por classes conceituais. Precisamente esta forma de classificação Benjamin
substitui pela idéia.
A linguagem das formas é elaborada pelos elementos das obras pelos quais as
idéias se exprimem e que são possíveis de serem ordenadas conforme o exemplo do
mosaico. O gênero, então, se transforma em idéia, que não mais permite a sua articulação
proposicional positiva, do que decorre a inclusão e junção de elementos diferentes entre si,
formando a unidade como no mosaico. É possível afirmar-se que, diante da idéia, as
próprias obras se tornam secundárias, pois o teor que perfaz a idéia pode estar representado
nelas apenas de modo fragmentário e, mesmo assim, formar o mosaico. Caso, porém, uma
obra tiver um teor bem diferente de todas as outras, então ela pertence a outro gênero.
“Uma obra significativa – ou ela funda um gênero ou o suprassume e reúne ambos no mais
perfeito”. (GS I-1, 225). Uma obra, por si só significativa e diferente de todas as outras,
estaria a expressar outra idéia.
A filosofia em sua tarefa crítica, portanto, não pode esquecer o seu próprio
comprometimento na atividade de escuta e recordação, bem como não pode esquecer-se do
fato de que a obra também não é um produto que se pudesse desvincular da atividade da
sua realização. Isto significa que a origem que se manifesta na obra não é externa, pelo fato
de ser idéia que se manifesta. Desta maneira, o autor não pode ser considerado como
alguém que simplesmente está alienado enquanto externo e distante da sua obra, pois
também ele é manifestação da idéia a ponto de o seu trabalho de escrita das palavras
encontrar-se bem além da sua consciência: a atividade de escrita da obra é, em última
análise, a realização da idéia. A experiência histórica em que a idéia está inscrita prefigura
a obra, que no autor depois irá desenvolver-se. Mas a idéia presente na experiência
histórica ainda é imperfeita pelo fato de não se evidenciar ao ser humano. Tornar evidente
a idéia na recordação por meio da apresentação expositiva é a atividade filosófica.
Essa forma de vir a ser, deste modo já sendo ser, não se possibilita pelo viés do
nexo causal que significaria a recaída na reduzida fundamentação de tudo pela consciência.
O nexo causal tem o seu valor na explicação de relações e efeitos múltiplos de objetos na
ciência, enquanto que o significado do conceito de origem indica o surgimento das obras
de modo não-causal.
Essa estranha expressão de Benjamin contém uma das questões centrais da sua
concepção de linguagem e história. É evidente que o homem conta com a origem como
categoria histórica para a narrativa de fatos e episódios, relacionando-os em termos de
causa e efeito. O mundo histórico da compreensibilidade normal não existiria sem esse
modo de pensar. A concatenação dos acontecimentos na história desenvolve-se pela
explicação em termos de causa e efeito. Mas estas categorias dão exatamente a dimensão
da queda no mundo objetivo e separado daquele que assim explica, comprometendo-se,
quanto à contradição da linguagem, exatamente com o esquecimento do próprio
envolvimento imediato com a explicação. Acontece simplesmente que a imediação distante
279
No exemplo, a idéia é simbolizada pelo fluxo que é infinito em relação ao finito que
em determinada época contém. O fático que surge na idéia, mostrando a sua configuração
na época e na obra, contesta o seu infinito, sem, porém, poder negar a sua atividade que
jamais se deixa limitar. O infinito e o finito em realização constitui o decorrer da história,
da qual não se pode prognosticar o seu fim, pois o infinito apresenta-se sem limitação.
Cada fenômeno é acompanhado pela presença de um infinito enquanto idéia e que é
atividade vislumbrada na recordação a partir da experiência. O redemoinho que acontece é
280
um trecho do próprio fluxo em que parte deste se acelera de forma circular provocando em
si a gênese do finito em si mesmo, na qual o infinito como que se movimenta de forma
diversa interrompendo a identidade do fluxo numa estrutura temporal. O movimento
circular do redemoinho é ao mesmo tempo o seu ritmo original que dá a forma ao que
surge e na qual o eterno fluxo enquanto idéia se torna visível em todos os diferentes
fenômenos físicos, mas idênticos entre si quanto ao seu teor. O redemoinho, portanto, em
sua aceleração forma a sua circunscrição temporalmente como se o infinito promovesse
limitação e determinação dentro de si em seu fluxo. O redemoinho não é uma formação
rigorosamente fechada em si mesma a ponto de a sua força e o seu movimento ser menor
em sua periferia, adequando-se à seqüência do fluxo geral e sofrendo a sua interferência.
Do mesmo modo são formadas as épocas históricas que no fluxo geral não tem limites
temporais rítmicos rigorosamente definidos, cabendo ao centro do redemoinho esboçar
mais nitidamente todo o movimento. Por isso é que, no exemplo, a pré e pós-história são
citadas como que a indicar que se trata daquilo que acontece na beira do redemoinho em
que ele tange ao seu próprio passado e futuro, pois os seus elementos são formados do
material em que está a acontecer de forma acelerada tornando-se mais visíveis. Assim,
elementos formais do drama barroco podem ser encontrados em todas as outras épocas,
mas não de forma tão explícita como na época determinada para tal. Pré e pós-história que
pertencem à mesma origem já apontam, como que virtualmente, para a época de torvelinho
que se dará ou que já foi num tempo acelerado. Estes mesmos fenômenos da pré e pós-
história de modo algum carecem de importância, pois dão muito maior visão ao que
acontece no centro do redemoinho. Por outro lado, o infinito incondicionado só pode ser
apresentado na infinita significação da idéia enquanto atividade sem barreiras, que assim se
expõe em sua visibilidade de redemoinho, de modo que a quantidade de fenômenos
originais, com que no redemoinho a idéia se apresenta, é também necessariamente sempre
incompleta.
A virtualidade desse percurso, que sempre deve permanecer, indica que o ciclo dos
fenômenos extremos é infinito. A idéia manifesta-se no fenômeno e mesmo que ele seja
extremo e estranho deverá de algum modo ser identificado como nela corretamente
alocado, a fim de complementar a sua fisionomia, o seu quadro, o mosaico geral. Isso faz
com que o fenômeno possa ser de caráter único, extremo e estranho, mas, ao mesmo
tempo, imprescindível por ser exatamente assim. A filosofia tem, portanto, por tarefa
também o indiciamento da totalidade no particular, sob pena de fracassar em sua razão de
ser. É quanto a este aspecto que Benjamin critica Hegel quando este, de acordo com a
lógica do seu sistema, descreve as relações essenciais do mesmo enquanto manifestação da
idéia na realidade, mas não consegue realizar a sua intenção no mundo dos fatos. Por isso,
autêntica de fato é a concepção quando consegue expor o conteúdo de todos os fenômenos
de forma imediata enquanto relacionados na idéia, sem, portanto, absolutizar o
procedimento de deduções lógicas, as quais necessariamente não alcançam a totalidade dos
fenômenos. Pelo exposto, depreende-se que as idéias enquanto origens não podem ser
qualificadas como causas que estivessem além do que surgiu, mesmo que estejam na base
do ente tendo-o como ocasião da sua manifestação. De acordo com o exemplo do
redemoinho, as idéias estão contidas naquilo de que são origem, numa contradição que se
assemelha à contradição da própria linguagem e ao mesmo tempo identificando a sua
tensão interna, ou, a sua expressão enquanto ritmo diferenciado. Elas, portanto, não
formam um mundus intelligibilis à parte, mas existem junto com os fenômenos fáticos.
Elas formam um número limitado, que consegue abarcar a multiplicidade das ocorrências
na história. Caso as idéias existissem em número ilimitado, não haveria mais a
possibilidade da atividade filosófica do reconhecimento enquanto recordação, pois numa
fragmentação infinita nada mais é possível reconhecer. Por outro lado, o aparecimento da
idéia enquanto origem de determinada totalidade se evidencia também como expressão no
fenômeno individual, mesmo que de modo fragmentado. As idéias são parte da verdade e
os fenômenos parte das idéias. Como no exemplo das pedras do Sinai ou na concepção das
mônadas de Leiniz, cada fenômeno tem a sua inscrição na totalidade do processo pelo fato
de serem unidades que em si carregam a estrutura do todo. Mesmo que em espaço e tempo
as coisas sejam percebidas como separadas umas das outras, isto apenas se constitui num
efeito de superfície, pois no todo o fragmentário forma uma unidade implícita e encoberta.
Essa forma de perceber a totalidade, por sua vez, de novo não é tributária da explicação por
causa e efeito, pois esta é referida à forma de saber proposicional típica do entendimento e
282
que, por isso, jamais alcança a idéia. Tal concepção leva Benjamin a negar que haja
história da arte elaborada pelo cálculo de efeitos e de causas. A obra de arte em si não teria
história e o nexo relacional entre as obras seria o da intensidade por meio precisamente da
interpretação para a configuração da idéia. Haveria uma relação entre as obras em termos
de história dos materiais e das formas, mas que não consegue referir-se ao essencial delas,
que é o seu teor. Aquilo que na obra se expressa está além dos fatos que se pudessem
condicionar mutuamente ao modo de causa e efeito. Existe a história referida às
explicações de causa e efeito, da qual a obra de arte faz parte, mas, como sempre, existe
também uma dimensão além dessa articulação proposicional que é incondicional e que
precisamente se faz presente nas obras enquanto o seu teor e, neste caso, quanto à sua
origem. A origem não tem história e essa origem identifica as obras, pois é nelas que a sua
expressão se dá, de modo que apenas interpretativamente o acesso a elas é liberado.
Tudo o que é limitado tem a sua origem no incondicionado e, deste modo, a própria
história elaborada e formalizada pela razão no uso de proposições com intenção de
objetivação absoluta deve poder ser ela mesma algo mais do que apenas uma concatenação
de objetos e acontecimentos finitos. A origem já contém a própria história em sua
explicação costumeira por meio da pretensa autonomia da consciência em elaborar fatos
dela separados. A origem já contém de antemão todo o devir, mas, por outro lado, o
individual contém em si a totalidade do devir ao modo da significação das mônadas de
Leibniz.
A filosofia não pode se dar por satisfeita em fundar o ser pela fundamentação de
que a consciência imagina ser capaz. Ela não pode querer organizar o ser a partir da sua
capacidade organizatória. A inovação que Benjamin aqui reputa antiga é a escuta dos
fenômenos, uma atividade em que até a suposta fundação na consciência está incluída. A
história dos fenômenos que a filosofia precisa absorver é inclusive a história de todas as
tentativas de fundamentação havidas na história pura em termos de causa e efeito. A
absorção é a contemplação e o exame reflexivo, sob o aspecto da contradição da
linguagem, de todas estas formas de expressão do ser nas peripécias da linguagem através
dos tempos. A história natural não é mais pragmaticamente eficaz, porque o seu
movimento é de retorno em direção da recordação para a formação da imagem, da idéia em
que, na passagem de uma a outra, a verdade se faz ouvir como relação sonante entre
constelações para aquele que é capaz de ouvir com atenção. Já no citado Fragmento
teológico-político a concepção era a de que há uma tensão entre a força histórico política
enquanto ordem do profano à procura da construção para o seu declínio na felicidade, e o
movimento messiânico que na imediação deste mesmo profano representa uma força
contrária, força de recordação e que percebe o
cujo fundamento forma as suas representações” (GS II-1, 161). Ele põe em questão o
dualismo kantiano, por um lado, de sensações recebidas, e, de outro, de capacidade
espontânea de articulação das mesmas pelas categorias do entendimento. Caso se trate de
mitologia, como é que deve ser, então, a relação com o mundo, na qual não são as
sensações que devem prestar-se à intuição e o entendimento, e nem o entendimento de
pensar? Surge o problema da percepção pelo fato de que se revoga a separação de intuição
e pensar. Benjamin indica de algum modo que deve tratar-se de uma percepção que supera
os limites do meramente sensível, mas na qual ao mesmo tempo possam ser recebidos
conteúdos espirituais, na qual a matéria não é simplesmente matéria e a qual é capaz de
trazer o espírito à participação enquanto palavra em elocução. O desafio está em formular
o conceito de uma intuição que seja mais do que mera percepção no sentido de uma junção
única de sensibilidade e mundo, fazendo surgir um sentido em que o inteligível se faz
perceptível diretamente e não mais pela intermediação imaginária de um pensamento
abstrato. O conceito de experiência de Benjamin, porém, indica a anulação da separação de
intuição e pensamento e a substituição deles pela percepção. Capta-se o mundo
imediatamente de acordo com uma concepção de identidade entre real e ideal. Assim a
linguagem pode tornar-se órgão da experiência, na qual ela pode expressar a percepção.
Benjamin, portanto, desde cedo até às suas últimas produções não pretendeu
estabelecer a conexão expressiva como algo provindo do interior, como se acontecimentos
que se dessem na consciência pudessem revelar-se em paralelo externamente no corpo. A
pretensão de Benjamin é o contrário, ou seja, explicitar a compreensão de que se há de
suspender o paralelismo que sempre significou a dicotomia de consciência e mundo, alma
e corpo. Neste modo de compreensão da psicologia, a linguagem torna-se ponto focal da
percepção. Na psicologia, então, a linguagem se torna como que órgão da percepção e ao
mesmo tempo objeto. A ponto de se poder dizer que no homem a linguagem olha para si
mesma, pois o homem é linguagem e ele consegue perceber-se nessa imediação. O que
aparece no corpo enquanto perceptível já se identifica com a capacidade que torna possível
percebê-lo. O nome já é imediatamente percebido na imagem, ou na figura, pois nela não
há algo sensível que fosse captado pelo pensamento para articulação posterior, isto é, ela
não é um conteúdo de pensamento, mas nome e percebido são idênticos. O nome é algo
sensivelmente evidenciado. No fim do fragmento Psicologia tal estado de coisas é assim
explicado:
mas como que uma unidade de significado intuída: não representa um sentido, mas o
expressa na imediação do seu acontecer. A imagem é a unidade original da percepção pela
interrupção do fluxo do devir estabelecido na mecanicidade do cotidiano. Há que, porém,
acentuar imediatamente o aspecto relacional deste estado de coisas, pois a compreensão de
algo substancial sempre está à espreita: “a existência individual do homem [é] a percepção
de uma relação em que se encontra, mas não uma percepção de um substrato, de uma
substância de si como o corpo sensivelmente apresenta uma igual”. (GS VI, 79).
termo aura. Na percepção de uma paisagem rural não são percebidos apenas os animais, os
pássaros, as plantas, a variedade de cores, o aroma, o azul do céu, mas, ao mesmo tempo,
também o percurso de vida numa apreciação que jamais se repetirá de modo igual como
naquela hora e naquele local em que se conjugavam recordações de ontem com saudade de
futuro. A imagem aurática formada é única e fugidia e, precisamente por isso, diferencia-se
fundamentalmente da repetição e dos retornos programados de uma imagem a ser
idolatrada. O ídolo se torna coisa enquanto objeto reproduzível à exaustão e, por isso,
reproduzível é aquilo que é objetivável, que é aproximado e fixo para ser preso à
proximidade e disponível a qualquer hora. A proximidade requerida como condição
espacial exige coisificação de um mundo físico e manipulável pelos recursos da
consciência que se quer autônoma. No mundo moderno a percepção para construção da
objetivação por proximidade significa maior dificuldade de compreensão da experiência
em imediação perceptiva. A aura é escamoteada continuamente num mundo alucinado pela
intenção de repetição da reprodução em massa de todas as formas perceptivas.
Curiosamente Benjamin tematizou o termo aura pela primeira vez no texto de Pequena
história da fotografia (GS II-1, 368). Depois do seu desenvolvimento técnico, a fotografia
representa a realização do pensamento objetivador quando intenta dominar as coisas por
meio da reprodução colocando-as ao dispor daquele que percebe. A fotografia produz
proximidade trazendo as coisas para a circunscrição dominadora do sujeito, exatamente
para o espaço em que a consciência pode deitar a mão nelas. Conforme Benjamin, esta é a
mesma estrutura do jornalismo, pois também ele trata de um saber em que a experiência
desapareceu. A intenção da imprensa consiste
Por que o camponês haveria de ter a chave dos nomes, a chave da escrita cifrada? O
agricultor é aquele mesmo que mais adiante no texto aparece como alguém que desde
séculos anda pelos caminhos da ilha, plantando e colhendo nos seus campos. É uma
indicação de que em todos os seus gestos há uma experiência que não pode ser reduzida
imediatamente a um conjunto de proposições para descrição objetiva. O viajante é
estrangeiro e se movimenta pela primeira vez naquele solo, mas o agricultor é da ilha, e
durante toda a sua vida fez parte daquela paisagem em que há muito cunhou os seus
caminhos deixando rastros bem definidos, que testemunham a sua união com aquela
natureza. Convívio duradouro, então, perfaz uma relação de mundo qualitativamente
295
diferente que engloba o seu perceptor: é a experiência. O tempo de convivência faz surgir
um saber que é o do nome que a própria vida faz transparecer. Do chão da tradição nasce a
experiência que é a outra forma de saber, pois capta o mundo de uma forma que a sensação
historicamente alheia ao lugar não percebe e o entendimento não consegue elaborar. A
tradição possibilita uma interação com o mundo frente ao que a consciência é uma
atividade extremamente reduzida: ela não pode ser conduzida pela consciência. Aquilo que
é resultado do exercício no tempo secular não pode ser objetivado por um entendimento
com intenções de manipulação. Além da separação de sujeito e objeto estende-se uma
conexão de compreensão entre o eu e o mundo na imanente realização prática da vida em
geral, à qual não se pode referir como se fosse um objeto a sua frente. Assim, a experiência
é uma forma de saber não imediatamente proposicional. O camponês em sua situação é
parte integrante da totalidade de um mundo articulado como experiência e do qual não
mais pode tomar distância para uma verificação objetiva. Mas exatamente esta situação lhe
dá a chave da escrita cifrada sobre a paisagem de que faz parte. Com essa chave ele é
necessariamente lacônico a respeito de si mesmo enquanto paisagem, porque nesse
encontro da e na paisagem teria de usar o todo da linguagem para a tradução sonora e
objetiva do que está a acontecer a ele e ao seu entorno. A linguagem do nome que conhece
e em que se encontra faz com que tenha cuidados quanto à tagarelice, pois, sobre qualquer
coisa que disser, ele sabe que ressoará como eco em seu ouvido pelas conexões do seu
entorno em que está inapelavelmente enredado. Portanto, o camponês sabe que qualquer
elocução sua não é apenas a atividade de um entendimento constituído solitariamente para
a produção de objetividades especificamente direcionadas, mas que significa já a
manifestação expressiva e total de tudo que o constitui enquanto cercania de que mesmo
faz parte na condição de falante. O camponês é lacônico pelo fato de se perceber
coadjuvante naquela sinfonia em execução em que percebe que a sua contribuição de vida
deve ser bem executada na interpretação da peça orquestral já em pleno andamento: a
solidariedade imediatamente imanente não lhe pesa como uma contribuição forçada a ser
contabilizada em termos de acertos e erros por critérios explícitos de algum agente externo
com arrogante e fictícia autoridade para tanto. Esta experiência característica do camponês
falta ao estranho que se movimenta na circunscrição da linguagem proposicional esquecida
da sua condição expressiva. A opulência do seu discurso que parece a própria clareza que
tudo torna próximo constitui-o em estranho no meio em que se encontra, pois as suas
palavras soam completamente estranhas na intenção de uso enquanto instrumentos de
296
Debaixo do sol os orientais forjaram as suas doutrinas de que são expressões, e esse
sol a queimar as costas do viajante lhe indica que toda a elaboração filosófica do ocidente
também o inscreve na expressão do que é, sem a possibilidade de realização da separação
absoluta de um centro articulador do conhecimento do ser. A ardência do sol como que
funde o eu na sua pretensão de isolamento complementando os odores da resina e do
tomilho que arrastam o seu corpo à imanência da terra obrigando-o a resfolegar e se
aperceber da proximidade do chão. Puxado para a quietitude da planura a fim de fazer
parte da paisagem, inicia a perceber a transformação que nele se opera, pois um zangão
depois de bater no seu ouvido vai-se embora lhe trazendo a enormidade do silêncio que
agora o cerca. Nisso há uma mensagem que pela primeira vez escuta e tenta elaborá-la
descritivamente, mas oscila entre permanecer rente à terra e prestar atenção para uma
descrição positiva e competente. A oscilação se dá na escuta da mensagem do entorno,
entre a sua elaboração discursiva para a manutenção do eu e a escuta interruptora
simplesmente: a mensagem pode virar escuta numa relação de imediação tradutora.
“A vereda quase apagada torna-se mais larga; rastros conduzem a uma carvoaria.
Lá atrás no nevoeiro se esconde a montanha para a qual os olhares do escalador se
dirigiam”. (GS IV, 417). A vereda do conhecimento objetivo quase apagada torna-se
paradoxalmente mais larga. Apesar de os primeiros rastros indicarem a pretidão de uma
carvoaria, o olhar daquele que sobe vê a montanha ainda distante depois do cinza de um
nevoeiro. A proximidade da representação objetiva tornou-se rastro de carvão, o que
instiga naquele que sobe, isto é, no viajante, a visão e a sede da distância além do nevoeiro.
A aura do próximo e do distante acontece. A proximidade é a objetivação faceira que se
torna rastro do que sempre supôs e sempre terá de supor em seu exercício: o distante
essencial que não está ao dispor do saber proposicional. A aproximação de ambos num
amálgama faz desaparecer a distância entre o si mesmo e o mundo: a atenção e a percepção
consciente do mundo como externo empalidecem.
298
Algo frio se torna perceptível em sua face. Ele o toma por uma
mosca e aí bate. Mas é apenas a primeira gota de suor. Logo vem
a sede. Ela não vem do palato, mas da barriga. Daí ela se
espalha por toda a parte instruindo o corpo, grande quanto é,
para ser capaz de aspirar e beber por todos os poros o mais
miserável sopro.(GS IV, 417).
O corpo começa a reivindicar os seus direitos. Ainda algo externo parecendo uma
mosca parece arriscar-se a uma interferência indevida no curso dos pensamentos em fusão
com os arredores. Quando bate contra o rosto para se desfazer do que imagina estar
atrapalhando escandalosamente as suas últimas resistências ao desmonte do controle
externo, percebe que é seu próprio corpo a se integrar no mapa orgânico da natureza: é
uma gota de suor. Primeiramente completamente absorto em reflexões, logo começa a
sentir no corpo a necessidade profundamente exigente de maior integração.
Independentemente de qualquer resolução da vontade de teorizações para a construção
autônoma de si mesmo de modo separado, surge a sede que vem bem de dentro de si
expressando o seu comando a toda a extensão do corpo até aos limites dos poros da pele,
que, na verdade, limites não são, pois pela sucção de qualquer brisa indicam dependência,
integração e reunião anteriores a tudo. O eu não perde somente o controle sobre o que
arbitrariamente estipulou como exterior, mas também sobre a interioridade corporal, bem
como a resolução imperiosa do mando da dependência e da reunião já sempre anterior a
quaisquer decisões. Os costumeiros caminhos do domínio das sensações pela consciência
estão interditados a ponto de não ser mais possível localizar ao certo a sede, pois o corpo
tomou por si mesmo as rédeas como centro de sensações. Um alheamento cada vez maior
cresce até a perda do controle sobre o que está a acontecer.
“Há muito, a camisa já escorregou do seu ombro e, quando ele a puxa para si a fim
de se proteger da ardência do sol, é como se manejasse uma capa molhada”. (GS IV, 317).
A roupa tem a função de preservar a diferença entre mundo externo e corpo, mas já nem
sentira a sua queda dos ombros e somente a sensação de ardência do sol tem a força de
ativá-lo para que instintivamente se proteja com algo que agora lhe parece uma capa
molhada do suor provindo do seu corpo e que nela depositou: recolhe ao corpo o que o
corpo exsudou numa nova forma de integração. Cada vez mais se forma uma
indiferenciação entre interno e externo. Tanto que a tematização das sensações oscila não
respeitando mais qualquer limite entre as sensações que supostamente avisam exterioridade
e as que notam interioridade. Corre solta a divagação entre tudo e todo, entre externo e
299
“Apenas com muito custo a mão se separa das cascas descaroçadas. Leva-as
durante algum tempo consigo, deixa que sejam levadas numa corrente que as arrasta para
diante”. (GS IV 418). As cascas não têm mais valor econômico e, mesmo assim,
permanecem na mão como se esta tivesse sentimento e impulso próprios, como se ela
estivesse desligando-se da centralidade da vontade orgânica que supõe comando
ferreamente insistente, ou até como se as próprias cascas na palma da mão pudessem
decidir os seus destinos externando o desejo de viagem mais longa na decisão de serem
atiradas na corrente de um córrego para levar muito mais adiante a notícia da árvore
generosa. A consciência deixou de guiar as ações, a mão deixou de reagir por suas
sensações solitárias e quem comanda o processo é o conjunto de casca, mão e
distanciamento possível pelas águas do córrego. Na desistência da pretensão absoluta da
centralidade da vontade há, assim, uma reunião do próximo e do distante que elimina a
pretensão do observador fazendo com que o viajante faça parte do acontecer geral da
árvore, da amêndoa com seu caroço e cascas, do burburinho das águas do córrego, da
proximidade e da distância que se resumem num átimo de tempo. Joga-se fora os limites
cascudos dos frutos que se formaram para proteger o que posteriormente é deglutido? Ou
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as cascas quebradas enquanto limites desfeitos exigem maior expansão dos seus horizontes
na correnteza de um córrego? Dificilmente a consciência enquanto núcleo se desfaz dos
seus limites. Mas quando acontece o rompimento das suas barreiras, quais são as águas que
as levam e qual é o corpo que deglute o seu caroço avaliando a sua madureza e diluindo-o
em si mesmo? A quebra dos limites da consciência é o processo da sua destruição ou da
ampliação dos seus horizontes? Da árvore de que nasceu como caroço e casca, a
consciência sabe da ilha e da paisagem de que faz parte como expressão?
Os objetos agora não são mais coisas simplesmente à frente para serem analisadas,
mas são imagens que se mesclam com as sensações e recordações do viajante a ponto de
este intuir a sua essência. Essa essência não é nem definível, nem exatamente descritível
por uma linguagem que primasse pela apresentação dos seus fundamentos conscientemente
postos para a produção de absoluta objetivação, mas apenas se deixa captar pela indicação
significativa dos nomes. Além das associações meramente subjetivas acontece a integração
perceptiva em que se revela a essência da coisa mesma ao modo de imagem intuitiva por
meio das sensações. O tornar-se uma unidade com as coisas conhecendo-lhes os nomes na
imediação intuitiva ocasiona um contínuo de quase alucinação no viajante: os caroços não
tão maduros, com o seu suco perceptível ao paladar, com a cor visível na sua pele, com o
seu som entre os dentes fazem ouvir fontes rumorejantes nas figueiras. No rumorejar das
figueiras diretamente ligado ao ruído da mastigação de caroços de amêndoas, o som da
origem se faz tempo agora para indicar a reunião da integração de tudo: a origem do fundo
dos tempos está presente na diversificação das sensações, pensamentos e palavras que
simultaneamente ocorrem fazendo parte do processo em andamento. As sensações, os
pensamentos e as palavras não são nem posteriores e nem anteriores ao que há, mas se
integram numa participação em que uma figueira dita é uma das perspectivas possíveis da
sua própria essência original enquanto tradução contínua da origem de tudo. A linguagem
do viajante nesse momento não é nem a validação e nem a verdade da figueira, mas a
própria continuidade de um dos seus aspectos enquanto percepção tradutora. Na origem, a
301
figueira participa irradiante de todas as sensações que possibilita para receber a marca da
linguagem humana que também passa a integrar. A percepção inicialmente fragmentária e
balbuciante do viajante ao sol faz adivinhar o que se quer dizer com a linguagem
paradisíaca em que o dom de falar era a doação dos nomes como participação da própria
essência do homem em meio à criação. A sensação, o pensamento e a palavra humana não
são mecanismos de triagem organizada entre si para a produção de verdades absolutas com
que se fez a noite do ocidente, mas o compartilhamento numa reunião em que
simplesmente o mérito das coisas se apresenta fazendo rumorejar a origem em nominação
expressiva. Assim acontece que a natureza recupera sua original vivacidade na capacidade
da participação da sua nomeação. Amêndoas quase maduras, mas figos ainda verdes e em
parte escondidos, isto é, para quem iniciou a viagem de volta na quebra da sua auto-
limitação, há promessa de continuidade de muito mais caminho de se andar. O sentido
pode tornar-se doação mútua num sentimento de mútua dependência numa relação
original.
“Os próprios bosques dispõem-se em torno dos cimos como se o ancinho do verão
os tivesse recolhido”. (GS IV, 417). As imagens conseguem ludibriar o tempo, pois no
momento da sua emergência permanecem paralisadas impondo-se às sensações e ao
302
pensamento a ponto de fazerem parte do quadro. Por isso, não é possível identificar uma
percepção racional objetivadora com uma percepção de imagem. Ambas constituem
formas diferentes de saber, pois na imagem o observador nela se dilui na percepção de uma
dependência que o torna imanente ao quadro, enquanto que no processo racional acontece
o esquecimento fundamental dessa mesma dependência na procura e na afirmação de um
fundamento separado do todo que se expressa para a fixação de um mundo de objetos
como se pudesse estar em paralelo com o mundo da linguagem. Na imagem de pensamento
“A distância e a imagem” Benjamin compara a condição da primeira forma de saber com o
prazer do sonhador: “Acaso o prazer pelo mundo das imagens não se alimenta da sombria
teimosia contra o saber?...Assim, interromper a natureza na moldura de imagens
esmaecidas é o prazer do sonhador”. (GS IV, 427). Da aparência de sonho ao perceber
parece ser apenas um passo: a forma de saber que possibilita a percepção visual da imagem
é traduzida acusticamente no nome. A intencionalidade da capacidade do entendimento se
desvanece na abrangência total da realidade da imagem, os objetos do conhecimento não
mais existem e a natureza compartilha os seus segredos quando o homem se desfaz das
grades da sua egolatria em que está preso por um esquecimento que o alucina.
Quem ingressa no mundo dos nomes recebe acenos. O viajante tem a vaga
impressão de que a folhagem das árvores lhe acena, tanto que a de uma delas até o acerta.
Ele está na situação de perceber que a natureza também o percebe e procura a partilha da
comunicação. Recorda-se do que realmente já lhe aconteceu quando se tornou uma
unidade com uma árvore e ouviu a sua linguagem.
Daquela vez tratava-se de uma árvore ornamental, sendo que agora recebe o aceno
de uma árvore rachada que se desenvolve de três partes desde o chão. Que aceno estaria ela
a dar? De que mundo invisível as suas raízes de dentro do chão ela expressaria para que o
viajante de agora o percebesse enquanto imagem? Perceber-se no subsolo para sugar a
seiva da terra é possível aprender? Como se transforma o inorgânico em orgânico? Como
seria a completa desistência na diluição de si mesmo numa escuridão vital e original
propiciando, numa fermentação e germinação primeira, a continuidade da vida em todas as
direções sob a luz do sol? Que mundo abissal e inexplorado é esse que a partir de si funda
os outros? O que é que vem antes de tudo para que o que está sendo seja? O viajante
percebe que para lá não há vereda, mas apenas a vereda da oscilação do já ser.
Experimentar o ensinamento da imagem da árvore fendida em três direções já iniciaria por
se perceber sugando a seiva desconhecida da terra a partir de três direções. São pontos
cardeais, civilizações, povos? É a dúvida sobre a proveniência de toda a dívida que o
constitui enquanto emergência de sensação, pensamento e palavra na integração suposta? É
a impossível vereda a ser trilhada, pois leva ao abismar-se sem solução na proibição de
qualquer reconhecença. O fundamento da participação sempre de novo será participação, e
a insistente procura alucinada leva ao esquecimento de que qualquer construção é apenas a
continuidade de uma paisagem já sempre à vista. Onde o eu se perde: é no reconhecimento
da sua proveniência diluída e esparsa, ou é no esquecimento crente da atividade de uma
razão autônoma? Na indecisão oscilante, a solução é seguir caminho. Mas qual?
eu, que se perde na diluição total para além da linguagem dos nomes ou no esquecimento
de uma razão que se intenta absolutamente auto-centrada, por fim encontra a sua
identificação da oscilação entre a proximidade e a distância. Ter-se ainda na mão como
homem significa, para o viajante, o reconhecimento dos rastros da cultura que o afeta. A
casa de campo na proximidade é a realização do viajante a andar a procura do
conhecimento dos nomes.
As veredas que se apresentam não são mais trilhas de caça de animais, simples picadas e
sendas, mas caminhos há muito trilhados. Apesar de fazerem parte da paisagem não pertencem
mais à natureza original, pois contam parte da história secular da atividade de seres humanos. E
306
assim são os caminhos da experiência, a qual indica o meio entre a perda da identidade
característica humana, diluindo-se completamente como só uma das suas vozes, e a assunção da
fala humana como expressão tradutora numa seqüência de milênios de história. A efetividade de
experiência já havida não permite que o homem se desligue da natureza e da história e nem que se
dilua por completo a ponto de desistir da própria capacidade da recordação. Os caminhos da
experiência conservam o meio como ambiente entre a linguagem e a natureza como se
precisamente eles fossem o fundamento em que pólos opostos se unem, mas sem perder as suas
características, ou seja, sem prescindir da afirmação das suas diferenças. Nos caminhos da
experiência não há a perda na mitificação da razão autônoma e nem o feitiço de uma imersão total
na natureza. Corresponde à idéia de experiência uma determinada unidade no tempo, uma
totalidade histórica em que a compreensão e a linguagem se dão. Neste sentido é que os
agricultores a caminho sempre voltam à casa, pois fazem parte da paisagem e da história dos seus
próprios caminhos há muito experimentados. E é este também o sentido do meio-dia como o meio
dos tempos. O meio-dia sob o sol a pino indica o meio do tempo da história e o meio entre natureza
e homem.
O chão aqui soa oco, o som com o qual ele responde ao passo faz
bem àquele que está a caminho. Com este som terra coloca a
solidão a seus pés. Quando chega a locais que lhe são agradáveis,
ele sabe que foi ela que os indicou; ela lhe destinou esta pedra
para assento, esta depressão como ninho para os seus
membros.(GS IV, 419).
O viajante chega assim à compreensão de que chão não é apenas uma metáfora,
mas fundamento que o carrega na união geral até onde consegue perceber. Quando antes
imaginava que unicamente as decisões próprias no estrito sentido racional conduziam-no
pelo caminho da vida, agora percebe uma diferença fundamental. As suas decisões já
fazem parte de todos os caminhos no chão que o carrega. A unidade da natureza há muito o
esperou, notou e contou com ele. Toda a sua situação de vida não foi e não é apenas um
fragmento de espaço e tempo completamente isolado da movimentação que percebeu e
percebe ao derredor, na proximidade e na distância. Tem a nítida sensação necessária de
307
que a totalidade do ser tem em si inserido o todo do seu próprio significado e que deste
modo a solidão, que o acometia enquanto um eu preocupado com a fixação separada de si
e de objetos de todos os conhecimentos, não tem mais razão de ser. Inapreensível é esse
estado de coisas à razão do viajante com as suas aspirações de autonomia e fundamento
articulador, e mesmo esta compreensão lhe é concedida na mesma medida em que ele
desiste das suas investidas meramente intencionais. O som da terra oca lhe revela a
existência do infinito de possibilidades de ser no regaço de uma união que desde sempre o
carregou. O som da terra lhe é um aceno indicando locais agradáveis em que o
compartilhamento em sua compreensão é mais propício. É a natureza que reivindica ser
compreendida. Na condição do meio-dia da vida, a reunião de si mesmo no abrigo do ser
leva-o à condição de êxtase que se extroverte como cansaço, mas agora sem a vertigem do
afundamento na totalidade como quando em contato com a amendoeira e a figueira. O
recado do cansaço é o de que agora consegue oscilar até a perda do controle consciente do
seu corpo e continuar mecanicamente trajetos do seu caminho liberando e deixando
alongar-se ao derredor distante a fantasia que dele como que se desprendeu.
A fantasia não deixa pedra sobre pedra ou deixa tudo como era? A fantasia é de
cunho compreensivo quando, voltada ao passado numa dimensão prática, forma o reverso
da história autônoma da razão alocando-a na unidade da expressão do ser. Do mesmo
modo a fantasia é de cunho epistêmico quando descobre a possível unidade além da prisão
férrea configurada na realidade do presente enquanto algum absoluto posto. Por intermédio
dela a constelação formada pode se abrir a novas possibilidades na relativização dos seus
fundamentos separados e esquecidos como expressão a ser descoberta. A fantasia deslinda-
se da subjetividade fantasmagórica e doentia por auto-referência crônica e se torna capaz
de acontecer captando a disformidade congênita de um mundo visto como mera elaboração
por fundamentação racional. Na relação erótica de se misturar com o mundo, formar com a
natureza uma unidade e acompanhar a oscilação até o êxtase da quase auto-diluição, libera-
se a fantasia do exílio da subjetividade fixamente centrada. A fantasia se escora na encosta
lá ao longe adivinhando possibilidades por si mesma, o que libera a existência das suas
309
limitações para aspirar também à unidade além de toda a consciência possível, à unidade
da verdade em expressão sempre parcial, ou seja, o inalcançável objeto de desejo de Eros,
conforme já Platão. Mas essa espécie de diluição não destrói desertificando tudo, não cria
um mundo completamente novo a partir do nada, mas tangencia o verdadeiro que aí
sempre já estava, mas encoberto. A fantasia liberta o verdadeiro das formulações de
fundamento fixos e disformes da realidade parcial em relação ao todo. Quando concepções
de mundo se alocam teórica e praticamente enquanto realidade, a fantasia pode recolocá-
las na direção da sua verdadeira dimensão, isto é, para além das possibilidades parciais que
se fixaram como únicas no esquecimento do que exatamente as possibilita.
O mesmo mundo pode ser visto de duas maneiras bem diversas. Uma maneira é a
realidade nua e crua como construção maquinal de acordo com uma configuração de
critérios que administram a compreensão na aplicação, no ajuizamento, na organização
ordenada de todos os fenômenos em termos de serventia ou não, e de utilidade atual. A
outra maneira é a percepção da fantasia que, vendo à distância como que através de um véu
formado de realidade, relativiza a redução do absoluto fixado para se compreender
enquanto expressão do inominado que exatamente enquanto expressão se nomeia. É apenas
um véu que a fantasia estende sobre a distância. A pretensão de fundamento, sempre apto à
construção de certezas para todas as divisões entre bem e mal, a vista desse véu se
transverte em expressão flutuante sobre o abismo em que as hipóteses construtivas podem
recordar os caminhos que já foram e, por isso, já há muito são.
desvanece ocultando novamente a imagem. Vê-se a imagem à distância como que através
do véu da realidade próxima objetivada. Algumas obras de Salvador Dali produzem
exatamente esse efeito: olhados de perto apresentam muitas figuras da realidade próxima
por vezes completamente desconexas entre si, mas, quando vistas à distância com olhar
disperso, fazem aparecer uma imagem, isto é, o seu pano de fundo subjacente como se
fosse a idéia que a tudo conjuga, tudo une, tudo relaciona. Na obra “Espanha” do mestre há
na proximidade objetiva primeiramente um cenário geral cinza-escuro com pessoas
incluídas, o qual dá a impressão de distância, mas, quando olhado à distância aparece em
proximidade distante a figura de uma mulher escorada num móvel. O mesmo efeito
proporciona um quadro seu em que aparece a figura de Cristo distante-próximo a englobar,
resumir e reunir, como se fosse a idéia geral, uma série de pequenos cenários próximos,
salientes e completamente disparatados entre si. Na proximidade o véu torna-se
intransparente pela positivação de cada coisa detalhada, indicando que a verdade não se
deixa captar como objeto do conhecimento. Pode-se compreender que o véu é a própria
realidade próxima objetivada de tal modo que o pano de fundo que a possibilita só é visto
como efeito de visão de conjunto à distância e num reconhecimento em que o próprio
sujeito, que se julgava à parte, tem a possibilidade de se entender como parte da
emergência da imagem. Na imagem de pensamento “Perto demais” Benjamin elabora a
descrição do efeito de se ter chegado perto demais da imagem.
A saudade neste caso não se satisfez com a percepção desejosa do seu objeto enquanto
imagem, mas quis ainda possuí-la e, exatamente por isso, promoveu o seu desaparecimento em
troca dos objetos desfigurados agora à sua frente. O que à distância é visível enquanto quadro
imagético, no qual o observador mesmo está incluído, não mais é reconhecível na proximidade
311
objetal. Mas a saudade, que no sonho mesmo assim permanece, faz ver a incompletude de uma
construção de tijolos para preservar a indicação da distância. O Eros nunca poderá alcançar o que
almeja e, por isso, a saudade inaudita permanece intensa, mesmo na posse do objeto e sua fixação
logo em frente. Mas, apesar de tudo, toda a significação da imagem migra para o nome. O teor
inteiro da imagem se dilui e se concentra ao mesmo tempo no nome sonoro enquanto expressão de
todo o percurso ocorrido. Mesmo não sendo mais imagem, o nome zela pelo velamento do que é
amado e nessa condição se conserva. Uma mesma palavra, portanto, pode aparecer como conceito,
mas também se metamorfosear em nome na compreensão ocorrente como recordação de imagem
em que sujeito e objeto aparecem unidos. O conceito de Notre Dame trata, como de costume, de
um objeto à vista de todos, mas a experiência do acontecimento da imagem do sonhador é
semelhante ao que o viajante ao sol também captou. O viajante também oscila entre objeto,
imagem e transfiguração aos nomes que lhe conservam a revelação.
O aparecimento dos nomes lembra uma permuta, uma mudança, uma tecedura, um
reconhecimento, uma emergência, em suma, uma imediação que mais parece doação que
se dá por revelação e em que o receptor está evidentemente implicado. Benjamin, porém,
tem outros modos de tematizar o mesmo. Logo no início da imagem de pensamento “San
Giminiano” diz:
Achar palavras para o que se tem diante dos olhos – quão difícil
isso pode ser! Quando, porém, elas vêm, batem como pequenos
martelos contra o real até que tenham extraído dele a imagem
como de uma chapa de cobre. (GS I, 364).
Benjamin não quer dizer que se trata de um esforço de algum eu manipulando instrumentos
num trabalho intencional para a produção competente de nomes. Na imediação da
dinâmica em descrição surgem simplesmente novos modos de percepção do derredor que
desvelam no mundo costumeiro objetivado um momento de imagem certamente sempre
presente e realizado no cotidiano, mas a respeito do qual os atores ainda nada atinaram.
Esse enigma que acompanha a realidade positivada só se pode descobrir à medida que “nós
o reencontramos no cotidiano graças a uma ótica dialética que reconhece o cotidiano como
impenetrável e o impenetrável como cotidiano” (GS II, 307).
em seu fluxo objetivado impondo uma cesura à continuidade da experiência assim como é
normalmente concebida. A experiência de que agora se trata não é carregada da intenção
de transmitir saberes ao modo de dominação de dados, fatos e relações de causa e efeito,
mas impõe a paralisação da forma de saber em termos de adequação de palavra e objeto
oferecendo outro modo de compreensão em que até o pensamento suspende a sua dinâmica
normalmente instituída:
Após a recordação dos nomes junto com o silêncio das cigarras, da sede que passou
e do dia dissipado, o viajante aos poucos sai do seu estado de êxtase recordativo num
mundo da fantasia. Os sons que surgem, porém, agora são sons como se fossem notícias do
314
O raciocínio em geral por semelhança está presente na forma com que o homem
apresenta a si mesmo e ao mundo que expressa em sua linguagem. A verificação de que
efetivamente o homem usa a forma da semelhança para o ordenamento do seu mundo e da
sua compreensão leva à curiosidade sobre a origem e a condição de possibilidade desta
prática. A curiosidade que surge direciona-se a um âmbito ainda oculto de cujas raízes
cresce e frutifica a árvore dos frutos da semelhança e da diferença no uso da linguagem. A
doutrina do semelhante remete, portanto, a um suposto que inevitavelmente já comanda o
acontecimento da compreensão e da fala humana.
316
homem pelo tornar-se semelhante. É por esse fato que a dimensão semiótica pode ser
considerada como carregando imediatamente consigo a dimensão mágica da linguagem,
sendo isso, porém, amiúde esquecido nas próprias teorias da linguagem, as quais propõem
desde o princípio a separação por representação, a divisão entre natureza e linguagem. A
concepção de Benjamin vai no sentido de compreender o semiótico carregando
internamente em si mesmo o lado esquecido, o lado mágico da ligação por semelhança,
isto é, a dimensão semiótica alienada já em si mesma seria expressão do esquecimento da
dimensão mágica que em si sustenta.
relação ao pouco que nos resta hoje em nosso mundo perceptível sensivelmente, isto é,
perdemos a grande capacidade sensível de perceber semelhanças e, por deslocamento,
substituímos a mesma pela fala e pela escrita numa forma automatizada da linguagem dita
apenas semiótica.
Nesse texto, Benjamin repete muito das frases e dos pensamentos, mas promovendo
algumas acentuações a mais em relação à Doutrina do semelhante.
Que proveito, porém, teria isso? A resposta está no aspecto filogenético da questão.
Em primeiro lugar, a lei da semelhança em tempos de antanho era muito mais abrangente
regendo microcosmo e macrocosmo e as correspondências naturais serviam
constantemente de estimulantes para a própria repetição no homem. Ao longo do tempo,
porém, a força mimética do homem como também os objetos se transformaram, conforme
se pode perceber na função mimética das danças que se metamorfosearam ao sabor dos
tempos, a ponto de também a capacidade de reconhecer semelhanças se modificou
enfraquecendo-se no seu sentido original. Pouco resta de semelhanças, correspondências e
analogias na cultura de hoje. Mas não significaria isso uma transformação por mero
deslocamento? Pela mediação da astrologia, das danças e dos ritos religiosos chegamos à
linguagem que é o local para onde tudo se deslocou e ainda com o acréscimo de produzir
321
Como a dimensão semiótica não pode ser apenas um sistema de signos, mas deve
incluir a semelhança percebida como recado da natureza e ao mesmo tempo a capacidade
da mesma linguagem em produzir semelhanças, mesmo que esse viés seja sensível e esteja
esquecido como semelhança não-sensível, pode-se imaginar uma imbricação, ou até
amálgama, em que o primeiro a aparecer é o portador semiótico para deixar que o segundo,
a chama apareça como recordação, ou como aura, apesar de Benjamin nesse texto não
fazer esta identificação. “‘Ler o que nunca foi escrito’. Essa leitura é a mais antiga”. (GS II
-1, 213). A linguagem como a mais alta expressão do comportamento mimético é o mais
perfeito arquivo de semelhanças não-sensíveis.
que aquele que se lembra ainda pode manter como objetos como se fossem externos num
sentido proposicional. Mas há uma outra forma de saber ligada à linguagem que é
exatamente o tesouro da escavação e que não contém conhecimentos objetiváveis. Esse
saber não podendo ser transmitido pela linguagem de modo proposicional está, contudo,
nela oculto. Os objetos lembrados estão agora no meio da linguagem, mas não no estatuto
de objetos e, sim, no modo de construções significativas que são os nomes. O
comportamento mimético primeiramente se apresenta como fenômeno na criança, a qual
percebe a sua imediação na unidade de si mesma e todas as coisas. Posteriormente essa
experiência de semelhança é transformada para aflorar no médium da linguagem enquanto
saber não proposicional em forma de recordação. A experiência de semelhanças que se deu
e que permanece indelével, mas oculta sob as camadas de sentido já articulado ao modo de
proposição, só pode aparecer indiretamente à consciência e ao arrepio das suas intenções e,
como já vimos, “A sua percepção em todo o caso está relacionada a uma relampejar. Ela
passa furtivamente, e talvez possa ser recuperada, mas não pode propriamente ser captada
como outras percepções”. (GS II-1, 206). Bem mais tarde, nos apontamentos para o seu
trabalho sobre as passagens da cidade de Paris Benjamin assim se expressa, demonstrando
que a contradição da linguagem aflora em cada uma das suas abordagens:
momento crítico, perigoso, que está na base de todo o ler. (GS V-1,
577).
Não é assim que aquilo que passou jogue a sua luz sobre o presente
ou que o presente jogue a sua luz sobre o que passou, mas imagem é
aquilo em que o que passou se reúne com o agora, como um raio,
numa constelação. Em outras palavras: Imagem é a dialética no
repouso. Pois enquanto a relação do presente com o passado é
puramente temporal, continuado, a relação daquilo que foi com o
agora é dialética: não é percurso, mas imagem, de modo brusco.-
Apenas imagens dialéticas são autênticas (isto é, não arcaicas)
imagens, e o lugar em que são encontradas é a linguagem. (GS V-1,
576-577).
327
O presente estudo trata de Franz Kafka, artigo em que Walter Benjamin procura
identificar no texto do escritor o pano de fundo da contradição da linguagem. O artigo
sobre Franz Kafka foi escrito entre maio e junho de 1934 e encontra-se em GS, II-2, 409-
438.
No início, à primeira leitura, a narrativa parece não render sentido algum. Mas há
uma possibilidade quando se leva em conta o conjunto do texto. Potemkin é o protótipo do
anão teológico a sustentar uma imensa máquina administrativa, ele é todo poderoso
funcionário e guardião dos critérios dos deuses, é símbolo e fundamento da movimentação
das aplicações pela maquinaria que determina de modo basilar a compreensão existente e o
ordenamento da vida. Ele é a figura que, como parte do fundamento responsável pela
aplicação e justificação da ordem geral, por vezes entra em depressão e, então, como
resultado disso, deixa de despachar suspendendo a sua função de critério e justificativa
para toda a processualidade social repetitiva e rotineira. Na sua situação de depressão e
melancolia, em que se pergunta pelas condições, sentido e razão de ser da máquina,
Potemkin sabe perceber muito bem que a totalidade funciona com o apoio das suas partes,
estas representadas por todos os outros funcionários que entendem a crise do chefe no
comando e do todo com ele comprometido. Ele também sabe de Chuvalkin que este ainda
permanece na continuidade do costume e do uso do critério de sempre, exigindo que o
mesmo continue a funcionar normalmente. Chuvalkin é daqueles que não chega nem a
328
vida organizada administrativamente, menos alguns incautos, estes por sua vez confiantes
na eternidade da eficiência da imagem decisiva subjacente.
Benjamin explica: “O zeloso Chuvalkin, para quem tudo parece tão fácil e que
acaba voltando de mãos vazias é K., de Kafka”. (GS II-2, 410). Em última análise entende
que Kafka pode ser identificado com Chuvalkin, porém, enquanto alguém que percebe ser
administrado e comandado por seres todo poderosos, instalados nos sótãos da
compreensão, juízes invisíveis de sistemas encastelados que por vezes parecem afundar
quando descobertos, mas que a toda hora podem ressurgir na plenitude do seu poder. A
vida, bem como todas as coisas na expressão de sua organização funcional noticiam a
ordem imposta desde a distância dos tempos de esquecimento. Tais seres parecem estar
constantemente cansados pelo trabalho de sustentação a que estão obrigados, isto é, a
sustentação do cotidiano em todas as suas circunvoluções de repetição possível. Eles estão
presentes nas palavras e nos gestos mais ordinários do dia a dia, os quais, por sua vez, tem-
nos por base incorporada ao seu movimento e geralmente invisível por falta de atenção. É
para a compreensão desses dados que Benjamin relata a opinião de Lukács, do qual afirma
que pensa em períodos históricos: “para construir hoje uma mesa decente é preciso dispor
de gênio arquitetônico de um Miguel Ângelo”. (GS II-2, 410). De acordo com a
sensibilidade de hoje, uma mesa exige a expressão da positivação estética dos gênios do
passado que assim nela estão presentes. Em vez de calcular apenas períodos históricos
como Lukács, Kafka contaria com a presença de períodos cósmicos: “Caiando um pedaço
de parede, o homem precisa pôr em movimento períodos cósmicos”. (GS II-2, 410). Isso
significa que em qualquer gesto, mesmo na inconsciência de um agora efetivo, há o
comprometimento com critérios, deuses, mitos e formas ancestrais que reivindicam a sua
sobrevida eternizando-se no mascaramento das repetições concretas do que vem a ser
considerada a realidade positiva.
arcaicos embutidos na linguagem e nos gestos contemporâneos. Mas esses princípios não
estão só embutidos como algo a mais, mas ele os vê como comandos em ação na
fragmentação multifacetada dos comportamentos atuais ativados em compreensão pela
linguagem que a tudo carrega. A racionalização apenas escamoteia arcaísmos, que no sabor
do envolvimento com a luta pela conservação de posições atuais, são esquecidos. A própria
luta é esquecida pelo fato de que é justificada pelo processo racionalizado em que o mero
aspecto teleológico à procura do sucesso na implementação prevalece, mesmo quando se
apresentam razões subjacentes e ordenadoras primordiais intentando a sua negação. As
razões teleológicas dirigidas a um futuro distante e apenas confessadas superficialmente,
por sua vez, escamoteiam seu comprometimento imediato com causas que as acompanham
como arcaísmos, ou são representações e disfarces dos mesmos.
Benjamin chama à atenção para o relato de Kafka sobre o gesto do filho ao querer
cobrir o pai na cama com a coberta no intuito de o tranqüilizar. O pai, completamente
possesso, não aceita de modo algum esse gesto condenando o filho ao afogamento. O pai
repele com a coberta o fardo do mundo.
Como se “repele o fardo do mundo?” (GS II-2, 411). Repelindo o fardo das
cobertas com que o filho o quer proteger. Com a proteção, o pai entende que o recado do
filho é o de que todo o esquema, o sistema e tudo o que foi, é agora apenas parte do
passado irreversível, pertence à antiga geração do pai que é agora objetivado e identificado
exatamente como parte de toda a obra esquemática e sistematizada. O filho impinge
responsabilidade ao pai por tudo o que foi dito e feito como se ele, como filho, pudesse
livremente objetivar separando a sua própria pessoa da construção compreensiva que está a
elaborar. O pai percebe que deste modo o filho quer liquidá-lo como influência essencial e
continuada de si mesmo para todo o sempre numa objetivação historicista. O mundo é o
fardo da compreensão objetivada e tal fardo do mundo assim percebido, explicado e
repassado é a coberta, a cobertura velada que o pai não quer aceitar. O filho, ao cobrir o
pai, tenta na objetivação afastar e eliminar a influência do pai, o mundo do pai, a genética
cultural milenar. Mas não é possível cobrir, renegar, reprimir de todo o pai, pois ele sempre
331
é uma força na compreensão fora do alcance do seu poder de a eliminar. O filho nele deve
perceber-se afogado, como, aliás, na narrativa de Kafka o filho realmente corre em pânico
após a reprimenda e se afoga, curiosamente saltando da ponte, local sempre aludido como
oferta simbólica de ligação entre margens separadas e limites interpostos.
“O pai é a figura que pune”. (GS II-2, 412) e tal afirmação indica as diretrizes
implantadas na consciência do filho e que inevitavelmente o determinam. O pai é a
sinalização da totalidade da compreensão do filho. O filho, conforme diz o pai, é inocente,
mas a verdade mais profunda é que ele se constitui num ser diabólico que constantemente
procura instituir a alternativa de si pela objetivação do passado, seja de que modo for. O
pai pune pelo fato de praticar o mesmo que quer negar ao filho: a separação de vida e obra.
“A culpa os atrai” (GS II-2, 412), ou seja, os funcionários da justiça e os pais nunca
permitem a separação que os filhos procuram fazer quanto ao processo proposicional
intentando indicação fora da linguagem e do acontecer. As rotas já estão predeterminadas e
a navegação por desvios em caminhos de fuga é proibida. Não é possível a separação
unicamente objetiva de vida e obra, pois ambas estão vinculadas como expressão mútua
como no caso da linguagem: a objetivação não pode jamais chegar ao estatuto de
independência do seu próprio acontecer.
Como Abrãao substitui a morte do que considera a sua construção objetivada, que é
seu filho, pelo carneiro, para que Isaak seja compreendido como expressão inevitável de si,
assim o pai de Kafka revolta-se com o gesto de objetivação encobridora do filho fazendo
com que entenda que com isso seria precisamente sacrificado na inconsciência do processo
de que é vítima.
O passado acompanha-os passo a passo com todos os seus rastros que aqui e ali
reconhecem e então percebem que o são. Há um constante processo de pendência e queda
no que se denomina pecado original como positivação desmembrada da obra que o homem
é quando pendura partes dela em cabides fantasmáticos que lhe parecem sustentar a ilusão
de uma separação objetiva pela contradição da linguagem, além de espelharem o
esquecimento da ocorrência que está a ser. Pecado, culpa, castigo e acusação formam o
círculo de um processo sempre pendente no âmbito do esquecimento da contradição da
linguagem.
fundamenta. “Só pode ser o processo movido contra eles, que de algum modo adere ao seu
corpo”. (GS, II-2, 413). Os acusados são sempre simultaneamente acusadores, pois não se
adaptam à redução de vida imposta e, assim, são também arautos da beleza que é
precisamente a sua verdade em ação e que advém dando notícias de mais além do que a
mera repetição que o cotidiano impõe. Acusados por suas ações, eles no fundo perguntam
por fundamentos distanciando-se do automatismo com que os mesmos funcionam
praticamente e se indignam, são outsider, diferentes de uma massa obedecendo a
comandos gerados por critérios que desconhece.
Benjamin menciona que Kafka disse a seu amigo Max Brod: “Somos pensamentos
suicidas que surgem na cabeça de Deus”. (GS II-2, 412). A pergunta por fundamentação
indica a crença de que fundamentação é possível e isso sempre é exercitado nas
proposições da linguagem. Mas sabe-se que ao mesmo tempo a fundamentação posta nem
de longe atende a todas as questões, perguntas e dúvidas, e que a investigação continuada
na busca de fundamento mais profundo deve acontecer simultaneamente, proibindo a
decisão definitiva em favor de qualquer um deles para justificar um determinado sistema.
Cavoucamos sem parar e sempre encontramos apenas a nós mesmos que nos expressamos
na procura por fundamentação: somos eternos retirantes do nosso chão. E nessa conclusão
qualquer divindade desaparece porque tem de desaparecer: o seu estatuto é o de procurada
por alguém que precisamente pela procura se define e nesse afã nunca poderá encontrá-la
objetivamente, já que agora sabe que a queda é exatamente a objetivação do que jamais
335
poderá ser objetivado. Mas como poderá não se fazer parte do chão em que sempre de
algum modo se está a acontecer? “No Gênio Deus fala e escuta a contradição da
linguagem” (GS II-1, 9) enquanto somos pensamentos suicidas na sua cabeça fazendo
parte dele, mesmo numa compreensão itinerante. Por isso, “Há esperança infinita, mas não
para nós”. (GS, II-2, 412). A esperança é para aqueles que já sabem o que podem esperar e
crêem de acordo com um fundamento posto e que lhes parece inquestionável. Mas para
quem se tornou migrante contestando em seu afastamento compreensivo qualquer
circunscrição fixa, acusado de destruir todos os fundamentos e, além de tudo, ainda vive ao
sabor da burocracia instituída, não há esperança alguma. Há tanto tipo de esperança quanto
o número de fundamentos já postos e praticados, mas para quem chegou ao fundo do poço
da melancolia e vê todos os ordenamentos como apenas jogos acirrados com regras
impostas como vida, resta apenas a atitude da visão dos objetos dispersos do anjo
melancólico de Duerer. Max Brod na citação de Benjamin chega à idéia de que o mundo é
o pecado original de Deus, ou seja, se tudo é visto a partir do ponto de vista ingênuo de
uma criação objetivada dele separada, então, ele mesmo é a própria contradição. Mas Brod
não percebe que essa solução é precisamente a objetivação dele mesmo na contradição da
linguagem, um equívoco que Kafka não cometeria.
Pode talvez existir esperança para os seres fora de qualquer ambiente familiar e
Benjamin pinça-os da obra de Kafka mencionando-os: “o vigarista desmascarado, o
estudante, os loucos, criaturas inacabadas ainda em estado de névoa, os que ainda não
abandonaram de todo o seio da natureza, em suma, os inábeis e os inacabados”. (Idem,
414). Poder-se-ia dizer que eles ou ainda estão à procura, ou estão completamente
incapacitados por embotamento total. Quem poderá dizer? Porque ao dizer isto ou aquilo
os que são pensamentos suicidas na cabeça de Deus chegam ao mesmo patamar a que já
chegaram: não tem mais direito de instaurar a origem definitiva e o exército de explicações
necessário para a sua manutenção.
“O mundo mítico...é mais jovem que o mundo de Kafka”. (GS II-2, 415) Para
Kafka o mito já seria o parar da reflexão pelo estar imanente a ele aceitando o que explica
em processo de auto-compreensão. Mas o mundo para o qual regrediu, o qual descobriu e
elaborou em esforço compreensivo é bem mais antigo do que apenas o desvelamento da
organização mitológica. Os poderes míticos já foram descobertos e inaugurados enquanto
materiais de justificação para fundamentação e agora, na atualidade, até se prestam para
336
fazer parte de um repertório, uma seleção que possibilita ir mais adiante, mais ao fundo do
passado na compreensão presente. Para os pensamentos suicidas na cabeça de Deus os
mitos são formas e teorias a serem empregadas com astúcia pela razão. Assim, além dos
judeus e dos chineses, também Ulisses é ancestral de Kafka: o grego vence os poderes
míticos reconhecendo-os pela razão e vencendo-os pela astúcia. Chegou a perceber que a
arma mais terrível das sereias não era o seu canto, mas o seu silêncio. Ulisses, conforme
Kafka e de acordo com a interpretação de Benjamin, já sabia que os mitos comandam,
organizam e batalham no silêncio e que se trata de prestar atenção a esse silêncio, essa
invisibilidade, essa naturalidade com que os ordenamentos são aceitos como se fosse a
regra eterna da vida. Perceber o comando silencioso do canto ordenador mítico é ter
descoberto o seu poder de configuração da realidade.
navegador já sabe contar com ele e utilizá-lo para os seus fins de retorno, angariando
experiência cada vez maior para poder enganar o ordenamento de rota do próprio destino,
que sempre é viagem para frente sob o seu comando e nunca para trás assumindo as suas
rédeas. Assim, astúcia e razão na vida é o direcionamento das velas da nau da viagem
apontando para o retorno. Kafka é também navegador quando escreve contos sendo
exatamente o conto a própria forma de narração de uma tradição que testemunha a vitória
sobre os poderes do mito como, por exemplo, no caso de O silêncio das sereias. Aliás,
dizer que “Em Kafka as sereias silenciam” (GS II-2, 415) equivale a dizer que o segredo
do mito está descoberto como possível expressão compreensiva e resultante organização
sonora de fuga na atividade de retornar.
Portanto, em Kafka as sereias silenciam. Nisso se anuncia que mito é mito quando
não visto em seus ordenamentos nas inúmeras formas de compreensão e vida. Mas mito
deixa de ser comando imediato na compreensão da formação de mundo quando se o
descobre e se sabe que faz parte do compreender e que, por isso, num mundo intermediário
é até uma espécie de ajudante nas circunvoluções de todas as percepções ainda inacabadas,
ainda em viagem, ainda na saudade de não ter chegado. Ao perder a sua força imediata de
ordenamento, os mitos de ontem e hoje ajudam estrategicamente dando condições no
trabalho de tecer as redes da compreensão, de reavaliação e alocação de fenômenos, de
mistura de idéias, de seleção e coleção de artefatos míticos e idéias de fundamentações
possíveis. Quando as sereias silenciam com o seu chamado mítico e objetivamente
poderoso, então o seu canto já se transverteu em expressão musical e não significa mais a
voz da morte provinda de entre os dentes de uma objetividade que se instalou como sentido
fixo e objetivo. Suspende-se a voz da objetividade e se permanece num “pequeno mundo
intermediário, ao mesmo tempo acabado e cotidiano, consolador e absurdo, no qual vivem
os ajudantes”. (GS, II-2, 416). Tal mundo parece que é inacabado, porque não tem resposta
definitiva mesmo após a descoberta dos mitos no silêncio do seu canto expressivo; é
cotidiano pelo fato de todo o dia haver deslocamento sonoro de um mito a outro; é
consolador, porque pela descoberta de que todos os mitos que o compõem são expressão;
por fim, é absurdo pela constante fatuidade das explicações intentadas pelos mesmos
mitos.
necessário andar de uma paisagem a outra, pois basta a mesma paisagem apenas vista de
outro modo. Freud, em seu estudo sobre a estranheza, procura acompanhar a linguagem
indicando que heimlich tem o sentido de familiar, do país natal, caseiro, doméstico,
indígena, mas que pode vir a ter o sentido de escondido secreto, furtivo, escondido,
dissimulado, clandestino, reservado, íntimo, oculto (Freud, GS IV, 241). Assim heimlich [a
situação caseira e familiar] pode chegar ao oposto do seu sentido como unheimlich, ou
seja, estranho e até assustador. Como situações familiares podem adquirir conotações
extremamente estranhas embaralhando o sentimento de quem nelas se encontra, mas nunca
se encontrou de fato, assim, inversamente, situações estranhas podem parecer sumamente
familiares como se fossem esperadas há muito tempo, ou até como já sempre presentes de
certo modo e nas quais pode haver uma estranha sensação de encontro como se fosse muito
familiar. Freud no mesmo estudo cita Schelling: “As horas unheimlich e terríveis da noite.
... Unheimlich é o nome de tudo que deveria ter permanecido...secreto e oculto [heimlich],
mas veio à luz”. (GS ii-2, 242). A ambivalência do termo unheimlich também pode ser
relacionada com a questão que Freud apresentada em seu pequeno estudo sobre (Freud,
GS, IV, 227): Über den Gegensinn der Urworte [Sobre o sentido oposto das palavras
primitivas]. Aí ele lembra estudos sobre antigas palavras egípcias que significavam algo e,
ao mesmo tempo, podiam significar o contrário disso como se dá nos sonhos em que
muitas vezes o significado seria o contrário da trama sonhada. A mais extraordinária
excentricidade da antiga língua egípcia ainda seria outra, ou seja, a de que dois vocábulos
de sentido oposto podiam formar um só vocábulo composto que aí teriam o sentido de
apenas um deles para lembrar a dependência do seu contrário em cada uso concreto. A
decisão entre um sentido e outro teria estado na dependência do gesto do falante.
Kafka tem especial interesse pelos gestos, pois, mesmo que em grande parte
incompreensíveis e deslocados na organização do sentido da vida administrada de hoje,
eles estão a dar agora notícia do que passou e ainda neles mesmos se movimenta.
alegrias, incompreensíveis, mas reais, e que ninguém pode extinguir”. (GS II-2, 416). É
significativo que com isso Kafka aluda a uma vida real que ninguém pode extinguir,
certamente porque depende de determinada configuração compreensiva em ação e plena
aplicação histórica e social objetivada. Eliminar a força dos mitos parecia prometer a
descoberta de um grande fundamento, mas no fim das contas encontra-se uma pequena
felicidade, mas tão real quanto o ordenamento de um pequeno mito pode ser.
Por outro lado, como no caso da ratinha cantora, a tristeza pode ser contrabalançada
pela realização da compreensão no desejo de ser índio, de identificar-se no encontro com a
paisagem a ponto de desaparecer e ser ela mesma. Para explicar, Benjamin cita: “Como
seria bom ser um índio sempre pronto e sobre o cavalo a galope...sem rédeas e sem nada
....quase sem ver diante de si o prado de vegetação rala, já sem o pescoço do cavalo, já sem
a cabeça do cavalo”. (GS II-2, 416-41). Antes de América, Kafka só se identifica em sua
341
obra pela inicial K., agora assume um renascimento compreensivo com a menção do nome
completo Karl, uma identificação direta com o personagem objetivado na obra. No desejo
de ser índio “a realização revela o seu segredo”. (GS II-2, 417). Após a tristeza da
paisagem desconexa e estranha cujas determinações míticas é necessário descobrir para lhe
entender as condições de uma objetivação que se esfacela na melancolia, agora, tornar-se
índio e se fazer terra e cenário significa a sede, a saudade do familiar que se tornara
estranho, realiza-se a compreensão de que a paisagem é o constante encontro do que
advém com o que se escuta a partir das próprias condições de recepção. Benjamin está
como que a desenhar a bipolaridade da contradição da linguagem acentuando de um lado a
objetividade sempre absolutizada que sempre poderá levar à crise com a relativização do
seu fundamento e, de outro, a descoberta de que o fundamento é uma posição possível
dando condições de uma perspectiva possível de compreensão ao liberar a mesma
compreensão para a descoberta da dimensão do acontecer no seio da própria linguagem.
No segundo caso o fundamento é percebido como já fazendo parte efetiva da compreensão
que se dá num todo sempre ainda a ser compreendido. Assim Karl é a encarnação mais
feliz de Kafka, pois ele aí percebe a objetivação enquanto acontecimento de encontro com
o que advém como paisagem da qual ele mesmo faz parte. Trata-se de ser artista, embarcar
no papel que se está a desempenhar e ter futuro na trama que se concebe.
Karl é a compreensão participante junto com aquilo que ele objetiva, tanto que o
contexto objetivado ele compreende como o seu acontecer. A vida encarada como pista de
corrida e teatro em que se cumpre um papel efetivo no jogo teórico, por exemplo, da lei de
Darwin e periferias, é a efetividade de uma compreensão que configura um enigma, pois se
posiciona em gesto de fuga da objetivação ao compreender o seu objetivar como acontecer,
mas ao mesmo tempo compreendendo que também precisamente isto é obrigada a afirmar
como nova objetivação. A compreensão ao ver-se embarcada na alternativa da vida como
pista de corrida percebe-se como Karl Rossmann simplesmente e, ao mesmo tempo, a vida
342
Com a tematização dos gestos em Kafka e a sua relação com o teatro gestual chinês
é como se Benjamin quisesse dizer que é necessário indiciar gestos e tentar decifrá-los para
que seja possível o voltar-se da compreensão em direção às suas determinações que a
escravizam num regime funcional milenar incompreendido. Nos gestos estão dissolvidos e
sempre lembrados, num viés mítico, tanto acontecimentos quanto imposições teóricas de
milênios, e que ainda no presente não perderam a sua intenção de mando. Neste sentido,
também Kafka em sua escrita estaria descrevendo gestos:
Desse modo estamos sempre a encontrar personagens nas obras de Kafka que em
seu exagero enfaticamente acentuado remetem a mundos supostamente mais distantes,
estranhos e esquecidos, mas ao mesmo tempo assustadoramente próximos, presentes e
343
como que familiares. E Benjamin dá dois exemplos em que no primeiro Kafka traz uma
justificação para o procedimento gestual, dispensando-a, porém, no segundo:
Nos contos de Kafka o parentesco com os gestos animais vai tão longe que às vezes
custa a acreditar que esteja realmente falando numa situação de animais e não de humanos,
e noutra situação de humanos e não de animais. Benjamin quanto a isso se expressa
curiosamente: “Mas isso é sempre Kafka; ele tira os esteios tradicionais do gesto humano e
nele tem, então, um objeto para reflexões que não tem fim”. (GS II-2, 420).
processo) na voz do sacerdote, mas num sentido pelo qual se entende a evolução já havida
como o desdobramento de um botão em uma flor e não no sentido de desdobrar tornando
liso um papel já amarfanhado. Desdobrar um papel dobrado: “Mas isso é sempre Kafka”
(Idem, 420), o qual vai à procura de si numa criação literária na tentativa de comentar
milenares determinações culturais compreensivas presentes nas explicitações, tidas
geralmente como objetivas, e em gestos teóricos e corporais automatizados na trama do
contexto cultural de agora. Para exemplificar tem-se a relação entre a Halaca e Agadah. A
Halaca é uma tradição legalista do judaísmo, uma doutrina religiosa que intenta construção
positivamente objetiva confrontando-se, por isso, com aspectos teológicos, éticos e
folclóricos, e voltada para a edificação do futuro sem permitir a relativização dos seus
princípios dogmáticos. A Agadah, pelo contrário, é entendida como sempre voltada ao
passado que se torna presente enquanto relato da libertação de Israel do cativeiro egípcio
por Moisés e merecedora de comentários e interpretações contínuas tendo como resultado a
atualização do seu sentido nos acontecimentos do presente. Em Kafka desapareceu a
doutrina e a história objetivada em positividade dogmática, permanecendo apenas os gestos
rituais impositivos e expressivos de algo a ser descoberto, narrado, interpretado e, assim,
instaurado. Resíduos de doutrina podem ter sustentado a sua continuidade da narrativa ou,
inversamente, preparar uma doutrina adveniente. Há que se estar alerta quanto à própria
compreensão, pois de algum modo o destino da compreensão é a organização, algo
impenetrável quando se leva em conta o viés construtivo dela pelo lado da ingenuidade
puramente objetivista e, pelo outro, a ocorrência de um comando organizatório subjacente
nunca totalmente elucidado. Toda a carga de impenetrabilidade do destino da compreensão
enquanto organização pesa-se na afirmação de que fundamentalmente se “trata da questão
da organização da vida e do trabalho na comunidade humana”. Pois, a “organização se
assemelha ao destino”. (GS II-2, 420). De um trecho de A muralha da China, Benjamin
cita.
Num grande todo em que as funções e as tarefas são infinitas o homem simples não
pode entender todo o enredo, captar todas as relações, os limites da compreensão tornam-
se evidentes e o grande enigma põe-se de novo. Há um grande todo, uma grande Muralha
da China em construção e em que o homem está incluído a participar cumprindo a sua
tarefa, pensando, compreendendo, expressando-se na linguagem, perdendo-se em algum
lugar entre a objetivação e a expressão. Objetivando o todo por meio de alguma
denominação, então o absolutiza reduzindo-o às dimensões da sua objetivação de acordo
com os seus critérios de descrição, como se pudesse dele se distanciar esquecendo-se que
precisamente a sua atividade de instauração de clarificação, mesmo por meio das mais
sofisticadas circunvoluções de análise da linguagem, deve fazer parte desse mesmo todo
suposto para poder de algum modo ser expressão no seu dizer. Qualquer definição
objetiva do todo que se queira dar deve, de acordo com a contradição da linguagem,
incluir simultaneamente a si mesma tornando, assim, relativa a própria pretensão da
objetividade da definição e tendo que assumi-la como acontecimento emergente no
mesmo todo que propõe. Na elaboração da sua proximidade com Kafka, Benjamin se
expressa:
tudo. Talvez tenha sido este o seu recado, o seu testamento definitivo para todos, inspirado
numa parábola sua sobre um homem que pede por passagem na porta da lei, frente à qual
está um guardião que não o deixa passar de modo algum, mas que deste mesmo guardião,
no fim de toda sua vida de espera, fica sabendo que ninguém mais poderia passar, pois a
entrada aí estava destinada só para ele e que agora iria fechar. É que a lei não existe como
fundamento último, e não existe deste modo pelo fato de que qualquer fundamento
explicativo da totalidade fatalmente deve já fazer parte da totalidade suposta e que está a
afirmar como sua expressão. O homem pede, espera e indaga e recebe sempre a mesma
resposta num eterno retorno indicando o mesmo local em que já sempre esteve diante da
mesma entrada que é especificamente dele pelo repertório de questões, perguntas e
reclamações que apresenta, sem jamais ter a mínima chance de querer e poder desistir. Por
isso é que: “O mundo de Kafka é um teatro do mundo. Para ele, o homem está desde o
início no palco”. (GS II-2 422).
À primeira vista a parábola traz uma série de dificuldades, pois qual relação deveria
ter a concepção de piedade de Lao Tse com a parábola A aldeia próxima? Seriam os
habitantes da aldeia motivados a não se visitarem, porque se negam à mudança de si
mesmos, a qual resultaria da relação e, portanto, como fidelidade a si mesmos? Ou seriam
motivados pela análise infinita dos enigmas de cada aldeia, portanto, sem tempo para
visitar a outra? Talvez deva tratar-se da identificação dos aldeões consigo mesmo e suas
obras no teatro do mundo? Ou, simplesmente se trata de um exemplo da dificuldade das
metáforas exposta dessa forma pelo autor no intuito de suscitar a reflexão? Vendo a vida
da outra aldeia de longe, sem os envolvimentos passionais diretos e intensos na
organização das cidades assim mecanizadas, a observação e a descoberta do que move o
todo é mais favorável a cada habitante? A contemplação tranqüila à distância favorece a
visão da armação do palco e do teatro em andamento? De qualquer modo, a ilustração da
piedade pela concepção figural de duas aldeias em que as pessoas morrem de velhas, sem
viajarem de uma a outra, tem um enigma em si, pois se trata de uma indicação de direção.
Chama à atenção a expressão: ...os habitantes deveriam morrer em idade avançada, sem
jamais...A vida toda em um lugar favorece o exame do que se dá em volta. É a manutenção
348
de um ponto de vista, de uma questão central e única, de uma pergunta fundamental como
se diz que cada grande homem sempre tem um só foco de conversação (GS I-1, 96). Neste
caso, trata-se de Kafka a propor parábolas como se fosse um instaurador de religião,
porém, sem o ser de fato, pois procura simplesmente expressar o cerne da condição
humana na contradição da linguagem, tentando insistentemente destroçar a objetividade
construída para poder permanecer na expressão dela. Assim, as suas parábolas são
construídas de tal forma que promovem o alargamento do sentido em que o próprio sentido
objetivado é a questão, e em que acontece a destruição das camadas de sentido objetivo
superficial costumeiro, pois exatamente este quer ser visto em sua profundidade em termos
de ocorrência. Kafka permanece sempre no mesmo lugar, no mesmo ponto de vista de um
aldeão embasbacado com os acontecimentos da sua aldeia, que o acossam como se eles
representassem a própria concentração de todas as forças cósmicas aí objetivadas em
ocorrência cotidiana.
Também para este contexto Benjamin evoca uma lenda talmúdica: A princesa alma
está exilada numa aldeia estranha que é o corpo, do qual ela não conhece a linguagem, mas
está a espera do noivo Messias. À notícia da vinda do Messias, a sua noiva alma prepara
um festim para o corpo aldeia, da qual não conhece a linguagem. E Benjamin interpreta:
“O homem de hoje desliza para fora do corpo e lhe é hostil”.(GS II-2, 424). Ou seja, há um
divórcio, uma cisão fundamental. O mundo como corpo e aldeia objetivado parece
completamente exterior ao acontecer simultâneo enquanto alma a ponto de não se lhe
conhecer a linguagem. A objetivação distancia inexoravelmente o corpo objetivado e a
alma ocorrência. Pode acontecer o processo de metamorfose em que o homem percebe o
distanciamento e, então, avança na seqüência de se tornar inseto em que, pela
349
compreensão, o corpo mundo dele aos poucos se apodera, ou ele o incorpora por assunção,
de tal modo que todos percebem a semelhança a chiqueiro, mau cheiro e ar pestilento.
A aldeia que não recebe a visita dos aldeões da outra seria o objeto de estudo das
almas que aí vivem? Duas aldeias, dois corpos sendo estudados pela piedade dos aldeões
atentos? Em apontamentos para a feitura do ensaio sobre Kafka, Benjamin escreveu:
Quem Kafka era, isso nem ele mesmo quereria dizer claramente –
poder-se-ia criar a lenda de que ele tenha sido um homem que
ininterruptamente estivesse ocupado com a sua pesquisa sobre si
mesmo, mas sem jamais ter olhado no espelho (GS II-3, 1196).
Assim, os aldeões estão ocupados consigo quando eles se debruçam sobre a sua
própria aldeia, cujas circunstâncias são a sua objetivação. Em vez de medirem a aldeia
distante, ou até mesmo o castelo todo, são agrimensores do seu próprio chão e do rastro
nele já imprimido. A fotografia de Kafka quando menino de olhos tristes e a escutar
atentamente os recados de uma paisagem montada como se fosse um palco para a exibição
de papéis objetivos continua como emblema de toda uma vida e de toda uma obra
enquanto vida.
Forças arcaicas atravessam a obra de Kafka, as quais ainda são identificáveis nos
dias de hoje. Benjamin diz que essas forças reivindicam a obra de Kafka como se a obra
fosse o resultado delas e como se continuassem com a sua força difícil de reconhecer até na
atualidade. Kafka não as teria conhecido, mas tais forças do pré-mundo mostravam-lhe a
culpa como se fosse um espelho em que ele constantemente adivinhava o futuro em forma
de tribunal julgador.
“Ele apenas deixou que aparecesse o futuro em forma de julgamento no espelho que o pré-
mundo colocava à sua frente em forma de culpa” (GS II-2, 435). A culpa que Kafka
constantemente abordava eram para ele forças presentes que o acossavam na própria
compreensão produtora de objetivação por meio de julgamentos e simultânea inconsciência
pelo esquecimento delas. Uma compreensão comprometida com tais forças constantemente
solidifica-as em repetição. Trata-se de uma compreensão mecânica e inconscientemente
empurrada para a produção de julgamentos, tendo por base forças do pré-mundo até então
desconhecidas, ou por demais conhecidas e invisíveis pela sua proximidade e participação
efetiva na elaboração do pensamento. Tais forças do pré-mundo apresentam-se
metamorfoseadas, disfarçadas, camufladas em forma de argumentos e justificativas para a
continuidade da construção da objetivação e, a qualquer voz que recorde disso, promovem
351
O fato de Kafka não dar resposta a essas perguntas indica que ele quer adiar a
sentença de um processo instalado no âmago da compreensão. Decidir-se pela condenação
ainda em vida significa nova auto-condenação pela objetivação julgadora que tal sentença
implica; decidir-se pela não condenação em vida significa a continuidade da justificação da
objetivação; assim, a saída é ou a morte ou o adiamento da sentença na continuidade do
próprio processo em vida. O juízo final aí se adia por impossibilidade de solução humana
constituindo a perspectiva do tempo futuro. Cavoucar nas entranhas de um passado
presente é a oportunidade de instaurar criativamente o tempo futuro por adiamento
constante do juízo final.
Como nos contos de Cheerazade, que têm a característica épica de sempre adiar de
algum modo o que está prestes e fatalmente a vir, este é um dos gestos de Kafka em sua
obra. Trata-se do adiamento da sentença final quanto mais se puder como acontece no O
processo, onde a esperança do acusado é que o procedimento judicial não leve aos poucos
à sentença. Adiar a sentença é permanecer no constante procedimento judicial entre o
esquecimento na objetivação empurrada por forças do pré-mundo na continuidade de uma
compreensão funcionária e a percepção da própria ocorrência de si nos julgamentos que
promove. Mas também essa força de adiamento está presente nos dias de hoje como
tipificação em Abraão, considerado patriarca pelo mundo judaico-cristão.
precisamente promove o adiamento da sentença, o juízo final. Abraão põe-se como juiz e
culpado no episódio do sacrifício do filho Isaak, pois compreendeu como adiar num
processo de culpa e castigo. Matou a imagem de si mesmo, isto é, a objetivação esquecida
de si mesmo, mas, simultaneamente se reconheceu na objetivação. Como Kafka no fim da
sua vida pediu que toda a sua obra fosse queimada sem ser obedecido por seu amigo Max
Brod e por todos os que se preocupam e se reconhecem em sua obra, mesmo na
continuidade de uma objetivação considerada inevitável, Abraão compreendeu a
inexorabilidade da sua condição de ser juiz e de ser acusado por o ser.
É possível imaginar um outro Abraão, ou seja, alguém que sempre tem algo a mais
a fazer e não se dispõe à obediência do sacrifício, pois é meramente construtor de uma
imagem separada, falante o tempo todo, defensor de um discurso próprio capaz de fazer
adeptos fervorosos, moto perpétuo esquecido do seu impulso inicial, alguém com trejeitos
de garçom. Ser como garçom obsequioso seria o modo de obediência cega num esquema
pré-formado em forma de objetivação implantada por forças arcaicas e teatralizada como
fé cega e esquecida em sua pura aplicabilidade. Apesar de garçom, nunca faz de fato o
sacrifício da objetivação, porque nada compreendeu e a execução pura e simples de
mandados é contra-senso, já que é simplesmente a continuidade do igual, o eterno retorno
do igual. Conforme o relato bíblico, Abraão ainda arruma as suas coisas, mas vai para o
cumprimento do absurdo que resulta na compreensão da contradição da linguagem, da
morte do discurso objetivado, da morte de si em imagem configurada em rito de
rememoração no sacrifício do carneiro, e, ainda, do compreender a ingenuidade de que
poderia ser puro acontecer. Abraão é patriarca, porque se identifica com o julgamento que
promove: ele é o processo de julgamento em que se torna visível a condição humana e é
exatamente esta compreensão que ele transfere a Isaak que em fase infantil nada disso
compreende, mas já adivinha que agora é visto como dádiva diária e não como posse de
uma vez por todas
obra, em doutrina objetivada, o que parece impossível, e o seu pedido final parece ter o
intuito de ser fiel até o fim ao que sempre procurou: a compreensão impossível da
objetivação da ocorrência em que estava imerso.
Abraão pôs em ordem a sua casa, objetivou, mas sacrificou a imagem feita
permanecendo no adiamento enquanto processo de juiz objetivador em auto-condenação,
de culpa e castigo, de esquecimento e rememoração. É o gesto de Kafka. À semelhança de
Abraão, não quer construir imagens e, por isso, procura constantemente destruí-las pela
reescrita para, num gesto de volta, indiciar insistentemente as determinações arcaicas
fundamentais que não deixam de o seduzir. As construções de imagens objetivadas
elaboradas à base de fundamento separado e objetivo devem ser sacrificadas pela
recordação, pois é esta a proibição e é esta a queda, a culpa e o castigo. Mas era sempre
“como se a vergonha devesse lhe sobreviver”. Vergonha de si, da sua família, da sociedade
e do mundo todo na condição de funcionários do repasse geral das forças cósmicas que em
sua compreensão percebe acabrunhado, já que também eles fazem parte do seu ser. Na sua
escrita instauradora de indiciamento de tais forças arcaicas na compreensão, ele movimenta
os períodos cósmicos no presente agora, que se transfiguram em culpa e castigo, juízo e
condenação, passado e futuro, objetivação e adiamento, sacrifício enquanto lembrança do
esquecer que se trata da morte da imagem enquanto insistente boneco fantasmático. Kafka
sabe que obedece aos ditames exigentes dessa família e desse mundo que o envergonham e
que lhe reivindicam a escrita. Mas no seu próprio indiciamento ele inaugura o
aparecimento objetivando e permanecendo inexoravelmente na contradição da linguagem.
O lado de baixo do rochedo de Sísifo aí se torna visível, o que primeiramente não é
agradável por significar que já não há mais fundamento absoluto, mas apesar disso, é
erguido como se fosse discurso objetivado e justificado definitivamente e, mesmo na
subida, já consciente que irá rolar ladeira abaixo. É uma vergonha o que é em mera
objetivação e em ocorrência: a vergonha sobrevive. Benjamin diz de “Kafka que os seus
romances se passam num lamaçal,...que o esquecimento o torna presente..., que
...esquecimento é enjôo em terra firme... e que é inesgotável na sua descrição da natureza
354
oscilante das experiências”. (GS II-2, 428). Tudo se passa como se houvesse fundamento,
mas ao mesmo tempo não, tanto que a condição de possibilidade e sua execução
permanecem simultâneas em sua ambivalência, e tanto que o esquecimento é a presença do
arcaico hetáirico e a recordação em seu indiciamento se torna nova inauguração. É como
que O enjôo em terra firme, expressão que é uma reflexão partindo do balanço das
experiências oscilantes, como no caso que Kafka conta sobre a irmã que bateu o portão,
mas que logo depois fica em dúvida se bateu ou não bateu. Se ela bateu ou não bateu, já
não sabe mais, ou seja, já não há mais experiência absoluta objetivada, pois sempre haverá
apenas resto e rastro do que foi e que paulatinamente se ajunta enquanto cacos de novo
acontecer. Como pode ter certeza se é acontecer de si ou nova objetivação? Como pode
querer depurar o transcendental quando dele precisamente se fala em objetivação e quando
a própria depuração que se pretende pela linguagem é uma fraude da contradição pelo seu
viés de absoluto?
Benjamin chama à atenção de que a técnica narrativa de Kafka é fazer com que se
digam coisas completamente inesperadas, como no caso de Frieda sobre o passado, como
se fosse muito simples e normal, como se sempre já se devesse saber sobre o passado
presente pantanoso, como se não fosse nada de novo e que só está esquecido nos
circunlóquios inocentemente justificativos. Por isso, o grande herói é o esquecimento, o
atributo maior do ser humano que é “o esquecimento de si” (GS II-2, 429), ou seja, o
esquecer-se do esquecimento da objetivação.
Como nos cultos aos ancestrais na China, a aglomeração dos espíritos aí emerge
cada vez mais. Ou como no totemismo dos primitivos, os animais são receptáculos do que
foi esquecido. Também a exemplo do romântico Tiecks, Kafka é incansável em perscrutar
nos animais o que foi esquecido. Assim o cavoucar galerias subterrâneas da toupeira pode
ser o gesto da reflexão, o ziguezague da borboleta em desespero lembra alguém oscilante
que foge da consciência da sua culpa, e podemos aduzir o significado de que da mera
queda na objetivação para a compreensão do acontecer sem fundamento definitivo ou,
ainda, a visão do fundamento como acontecer é apenas o dar-se conta do esquecimento.
roia por dentro. A angústia existencial é no mínimo a suspensão das explicações pela
categoria de causa e efeito, central para qualquer intenção de construção significativamente
coerente. Nessa suspensão há a possibilidade da recordação do esquecimento por uma
ruptura com os compromissos de argumentação meramente construtiva para uma
compreensão administrada. E o corpo que somos é animal simultaneamente próximo e
distante, é país estrangeiro e mudo, pois é aldeia cuja linguagem não conhecemos, a
exemplo da parábola anterior. Mesmo sendo mudo, manifesta-se no presente como pré-
mundo, por mais que se construam desvios científico-explicativos: é fome, sede, ardor
sexual e dor que o homem é, mas não sabe o que é, e, quando diz que sabe, promove a
elocução de construtos como discurso do corpo.
nada sabe disso, está sendo acusado de culpado exatamente por isso e parece não querer
entender. Em Strafkolonie [Colônia penal] a culpa e a sentença, que o culpado desconhece,
são gravadas em suas costas por uma antiga máquina de tortura até que as próprias costas
tornem-se capazes de decifrar tudo: as costas tornam-se clarividentes, talvez pela situação
pedagógica da dor, da angústia, do acostumar-se com a preocupação e, quem sabe, do tédio
mortal. A antiga máquina de tortura é a nossa velha e conhecida objetivação geral com
todos os seus resultados e em pleno vigor da contradição da linguagem. O homem culpado
leva gravado e cravado nas costas todo o peso da objetivação feita qual camelo da cultura
por um deserto sem fim. Enquanto as costas não se tornarem clarividentes a situação
permanece capaz de ser descrita pela metáfora do sono feito entorpecimento compreensivo,
quase cegado pela luminosidade ofuscante da mesma realidade objetiva que agora lhe
aparece à frente. Entre o estar desperto, mesmo numa compreensão administrada para fins
construtivos sem revisão constante dos pressupostos, e o sono para o descanso das batalhas
que parecem úteis, há semelhanças que uma compreensão não atenta desconhece. Entre
uma compreensão atenta ao seu próprio sono instituído e a capacidade de permanecer
insistentemente alerta e acordada, há deslocamentos que ela mesma não pode
compreender. E então é a vez do já célebre homenzinho corcunda de Benjamin,
assemelhado com o Odradek de Kafka, que nada explicam quando aparecem, mas só
lembram a dificuldade do deslocamento para a compreensão da precariedade de qualquer
fundamento como que zombando com um risinho debochado da inocência alheia.
Conforme um rabino, o Messias viria ao mundo apenas para retificá-lo um pouquinho por
deslocamento. Assim, o homenzinho corcunda desaparecerá. Benjamin faz questão de
lembrar de que tudo isso não trata de “pressentimento mítico” ou de “teologia existencial”,
mas de um tipo de oração cara tanto para Kafka e, certamente, para ele mesmo e que
Malebranche definia como “a atenção – a prece natural da alma” (GS II-2, 432). A força
messiânica inicia com a atenção silenciosa para a percepção do pântano presente como
condição para iniciar a existência no compreender o processo de compreensão, mesmo que
seja pela agonia da angústia.
Sancho Pansa. Benjamin apresenta uma parábola que, em poucas palavras, trata de
algumas pessoas numa estalagem que entabulam proposições sobre o que desejariam se um
único desejo pudesse ser atendido de fato. Depois de todos falarem, notam um mendigo ao
canto e lhe perguntam o que faria. O mendigo conta uma fantasia sobre ser rei, ter tudo o
que quisesse, mas depois ter de fugir apressado apenas com uma camisa e sentar então no
359
mesmo banco em que agora está. Quando lhe perguntam o que teria ganhado com isso, ele
responde: - “Uma camisa”. (GS II-2, 443).
Com a parábola Benjamin quer introduzir a intuição do tempo além da forma tópica
de abordagem em termos de deslocamento, ou de oscilação da compreensão em si mesma.
O tempo como intuição também se apresenta deformado quando somente é objetivado
como suporte de equações matemáticas e imagens geométricas. Pelo contrário, o tempo
pode expandir-se ao infinito imemorial e, senão simultaneamente, então pelo menos,
imediatamente comprimir-se num ponto só. Assim todos os períodos cósmicos ou todos os
séculos de algum modo estão presentes na atualidade de cada gesto humano, bem como
cada gesto é ínfima ressonância do tempo total. A compreensão veicula o tempo para si
mesma, para a sua própria atividade reduzindo-se ao mais entranhado infinito microcosmo
até a radiação infinitamente expansiva do macrocosmo. Nesse contexto ressurge, na prosa
de Benjamin, a estória das duas aldeias próximas de Lao Tse, cujos habitantes nunca
deveriam visitar-se como exemplo de piedade. Só que Lao Tse agora aparece, num tempo
comprimindo séculos, como avô de Kafka, o qual, porém, faz o contrário, pois se queixa da
expansão infinita do tempo da sua memória explicando:
instauração na compreensão que tem da sua situação: ele está consciente da sua situação
concreta realizada em compreensão. “Não tem tempo para um só desejo”. [Idem] O desejo
dos outros falantes na parábola aí parece a representação da construção de uma quimera no
esquecimento de que também isso é acontecer vital, enquanto o desejo do mendigo é a
narrativa de si como compreensão na sua situação de agora. A realização desta maneira é a
vida em instauração compreensiva que percebe o tempo enquanto implicado no acontecer:
o acontecer já é tempo vivo.
O acontecer do tempo vivo parece ser a excitação das criaturas de Kafka, de uma
tribo do sul muito consciente de que a vida é breve e assim não dorme e não se cansa,
porque todos são tolos, como os estudantes, as crianças, os seres ainda imperfeitos pelo
fato de talvez não serem ainda completamente definidos quanto a critérios e valores
capazes de objetivação coagulada em ordem repetitiva. Ficam sem dormir de tanta
excitação e temor difuso de perder o melhor da festa da vida ou esquecer algo que possa
ser importante. E Benjamin sentencia: “Mas o esquecimento sempre diz respeito ao
melhor, porque concerne à possibilidade da redenção”. (GS II-2, 435). E é literalmente
isso, pois, do esquecimento, do qual de fato se sabe, sempre advém a salvação,
precisamente o saber da ocorrência em objetivação. A objetivação é inevitável, mas,
simultânea a ela, o melhor de tudo pode ser a permanência persistente de se dar conta de
existir na excitação da novidade daquilo que a cada instante vem a ser. Conforme
Benjamin, há em Kafka a indicação de uma ascese mesmo que subterrânea, escondida,
velada:
O ponto alto de tudo é o estudo em andamento, cujos conteúdos não tenham servido
para nada, para o nada. Nada, o conteúdo objetivado prático como nada, pois pode ser
361
qualquer coisa por determinação social, imposição secular da família e da cultura, gestos,
correria, ativismo inconseqüente e inconsciente de rumo. Mas tais estudos “estão bem
próximos àquele nada que primeiramente torna algo útil – a saber, ao Tao”. (GS II-2, 435).
É como um martelar extremamente aplicado na consciência constante e terrível do infinito.
Que importância pode ter? Nenhuma, pois é nada entre passado e futuro e nada há para ser
relevado pelo grau assustador de mínima importância de uma atividade banal diária, cuja
obrigação para fazê-lo pode resultar num tédio atroz. A objetivação prática de um trabalho
ínfimo e inútil em meio a um infinito todo suposto faz emergir a revolta, ou a tristeza, ou o
sentimento de falta de sentido de tudo. Mas como é que pode existir um martelar que se
exibe de tal modo como se o próprio infinito dele dependesse e, por isso, é pleno de
entusiasmo? Como pode haver um quase fanatismo no apressado estudar do estudo dos
estudantes como se os segredos do universo aí se revelassem? Como pode haver
importância na enorme atenção de um escrevente a copiar as palavras ditas por um
funcionário que insiste em murmurar quase incompreensivelmente palavras que para ele
mesmo já desde muito perderam qualquer sentido: o escrevente, porém, esforça-se na
escuta como se as palavras fossem oriundas da boca da mais importante pitonisa? É que há
um segredo nisso tudo. No teatro da natureza, os atores nada podem deixar escapar, já que
seria um mau ator aquele que esquecesse uma palavra ou um gesto. O ator executa a sua
função, sempre alerta e atento às nuances do seu desempenho e se vendo em processo
numa peça teatral pré-determinada. A cada instante pode chegar a descobrir e compreender
novidades completamente surpreendentes na sua fala surrada acompanhada de gestos
repetitivos. Do mesmo modo a teatralidade de um simples martelar esforçado e diligente,
além de, com sua modéstia, já fazer parte constitutiva do infinito, pode revelar infinitos
aspectos na própria execução atentamente observada na interação de mão e martelo no
conjunto das circunstâncias em volta. É como se houvesse a compreensão de um infinito
obrigado a se deslocar por aquilo que é feito, observado e descoberto.
de estudos dando notícia de um infinito logo ao lado ou junto a qualquer ação, mas um
infinito incomensuravelmente maior do que o suposto até então como resultado da
objetivação geral de acordo com a contradição da linguagem. O martelar com o seu som e
em seu conjunto de mão, martelo e demais circunstâncias, apesar da sua aparente pouca
importância no conjunto tedioso de uma maquinaria em repetição, também movimenta
períodos cósmicos ainda invisíveis e inaudíveis, mas passíveis de serem ainda descobertos
e ouvidos. “A situação de cobaia humana desses experimentos era a situação de Kafka”.
(GS II-2, 436).
gesto ou palavra em execução. Por incrível que pareça, Bucéfalo sabe que a justiça é mítica
em seus fundamentos postos e em aplicação e, por isso, tal qual revolução no direito que se
quer em vigor para a edificação e manutenção bem administrada da ordem para todo o
futuro, recorre à discussão e relativização do mesmo. No fim das contas é também como o
astuto Ulisses na sua volta a Ítaca, tendo à sua frente sempre a ira das tempestades de
Netuno, que não quer que navegue, e as ilhas em que aporta como paragens para as
pequenas e às vezes perigosas tentativas de envolvimento com a objetivação local,
libertando-se sempre delas pela recordação do retorno, num esforço hermenêutico
decifrando a situação em que se encontra. Tal e qual guardião diante da porta da lei, ele
não quer deixar entrar ninguém do setor meramente argumentativo para objetivações
gerais: a grande lei é a tarefa da ascese na volta pelo caminho de se compreender que cada
palavra e cada gesto insignificante, maquinal e já sempre objetivado na maquinaria mítica
da objetivação costumeira, é expressão e sinal da palavra e do gesto infinitos ainda não
advindos, mas sempre em possível advento. Numa crítica ao mito do direito, o homem em
frente da porta da lei e à procura de entrada para solidificação de futuro previsível em suas
repetições, deve sempre aí permanecer em estudo de retorno intermitente a fim de não
poder transformar tudo em mito de acordo com a objetivação na contradição da linguagem.
Mas isso não significa que a justiça esteja deposta, mas é exatamente o contrário, pois é a
justiça que depõe o mito precisamente no caminho de volta. “O direito que não é mais
praticado, mas apenas estudado, é a porta da justiça... A porta da justiça é o estudo”. (GS
II-2, 327). Benjamin arrisca que Kafka tenha encontrado a lei da sua viagem bem-
aventurada pelo menos uma vez num texto seu que é uma interpretação de Don Quixote de
Cervantes:
objetividade com seus programados desejos, dos quais sabe que existem administrando-o
no mundo objetivo pela corrupção quietista reduzindo-o a apenas objeto determinado e útil
da grande máquina organizada. Sancho, - ou Kafka -, deu-lhe todas as rédeas na
imaginação realista objetivada, resolveu que o cenário seria o tempo na composição da sua
própria vida e o seguiu com atenção pacienciosa, isto é, na observação de si em tudo o que
é cotidiano objetivado em palavras e gestos e, então, descobrindo e promovendo rupturas
compreensivas num acompanhamento de um caminho de retorno ao passado, que a Don
Quixote parecia futuro, divertiu-se a valer aplicando a ascese na compreensão da
contradição da linguagem como o que é a lei da ocorrência do existir. Sancho Pansa volta
ao passado acompanhando Dom Quixote para o futuro precisamente por ele sempre
inaugurado. Por trás disso, em identificação seqüente, está Cervantes, depois Kafka, depois
Benjamin.
Szondi exlica que Infância Berlinense, uma das mais belas poesias em prosa, surgiu
em 1930, foi publicada em partes nos jornais até surgir como obra completa em 1950, dez
anos após a morte do autor. Tal qual Proust, de quem era tradutor, Benjamin estava à
procura do tempo perdido como indicam os títulos Coluna da vitória, Loggias,
Kaiserpanorama, Partida e regresso. Enquanto escrevia a obra, Benjamin confessa a
Adorno que nada mais quer ler de Proust, já que percebe nisso uma dependência que chega
às raias do vício (Idem, 242). Tal confissão leva a crer que Recherche du temps perdu
significava para ele não apenas uma simples influência casual, mas uma afinidade eletiva
que poderia explicar algo da característica da sua obra.
Mesmo levando-se em conta a grande diferença entre uma obra e outra quanto à
extensão e ao conteúdo, percebe-se a enorme fascinação de Benjamin quando diz: “Como
uma mãe que abriga o recém nascido em seu seio sem o acordar, assim a vida procede
muito tempo com a ainda suave recordação da infância” (Idem, 245). O sentido da frase
indica que quase tudo o que a infância foi permanece encoberto por anos e anos até que de
repente e casualmente reaparece como se fosse um presente.
semelhantes são narradas em Dispensa, Duas capelas de latão, O acordar do sexo, A febre,
Caixa de leitura. Em cada uma dessas cenas Benjamin encontra indícios, presságios e
rastros da sua vida futura.
Recordações que lhe advêm são as de cunho social quando os seus pais “em
sociedade” davam recepções. Primeiramente do seu quarto o menino ainda ouvia os
convidados e a sua recepção. Depois a “sociedade” que mal se formara parecia esvanecer-
se para em quartos mais distantes dar notícia de si por passos e conversas. A burguesia
com seus costumes observados pelo menino seriam objeto e motivo de reflexão social e
histórica para o adulto posteriormente.
Proust precisa contar toda a sua infância para cumprir a sua tarefa, enquanto que
Benjamin pode evocar somente aqueles momentos da infância que abrigam o prenúncio do
futuro.
O declínio que Benjamin conhece, o qual impede o olhar para o futuro e que lhe
permite ver o vindouro apenas onde já passou não é somente experiência sua na sua época.
Por isso a Infância berlinense pertence à pré-história da modernidade, um tema em que
trabalhou nos últimos quinze anos da sua vida como temática geral sob o título de Paris, a
capital do século XIX.
Como Benjamin viu a época da técnica? O fim de Rua de mão única o mostra.
Há que se comentar o fato curioso de que aqui a citação de Adorno acerta o centro
da filosofia de Benjamin no que concerne ao conhecimento. Pelo menos é o que parece na
frase sobre o conhecimento que só é possível a partir da libertação. Falta dizer o que é,
para onde se está virado e o que se entende por luz messiânica.
Na sua Estética o filósofo Hegel se expressa a respeito da cega erudição que passa
ao largo da profundeza sem a compreender, mesmo quando claramente expressa e
apresentada. Deve-se perguntar, porém, se não é inevitável errar tal profundeza toda a vez
em que se abstrai da experiência própria a favor de uma cientificidade mal compreendida,
pois a objetividade está relacionada à subjetividade. Objetividade desvinculada do sujeito é
ficção impossível. Assim, conforme relato de Adorno sobre Benjamin, a idéia central da
Origem do drama barroco alemão surgiu da visão de um rei num teatro de marionetes cuja
coroa se achava deslocada na sua cabeça.(Idem, 253). (
Nas Teses sobre o conceito de História lemos: “O passado leva consigo um índice
temporal pelo qual ele é referido à libertação”. (Idem, 252) Essa frase, por sua vez, pode
ser relacionada com a que menciona a recordação, a qual mostra a cada um uma escrita que
de modo invisível enquanto profecia glosava o texto.
370
Por fim, pode-se afirmar que Szondi percebe claramente a postura de Benjamin que
é a de se voltar ao passado de si com as circunstâncias da época a fim de vasculhar o
significado lá inscrito como se fosse uma escrita presente e póstuma ao mesmo tempo, mas
ainda capaz de acordar no tempo presente o bom leitor. A pergunta que se faz ouvir é: o
que impede que na época exata se leia corretamente? O que impede que muitos não
acordem pela rememoração nem em tempos posteriores? Há um impedimento fatal, uma
dificuldade enorme por vencer a fim de que se chegue ao entendimento considerado
correto. Que impedimento é esse?
CONCLUSÃO
Pôde-se ao longo das tematizações dos textos, que para esta tese mais de perto
interessam, perceber que tal posição filosófica vai bem mais além do que mera assunção,
discussão e defesa de grupos de conceitos epistemológicos já estruturados como sistema,
373
mas convidando a estes mesmos nesse mesmo caminho para a revisão das suas próprias
condições de argumentação para um diálogo que não esteja esquecido no desejo de
somente autoconstrução, competição e eliminação mútua.
exércitos, que defendem e atacam, confiantes no bom desempenho dos instrumentos e das
armas que utilizam mecanicamente e satisfeitos com as vozes de comando que parecem
traduzir princípios merecedores de cega obediência. A segunda delas é a volta e o retorno à
verificação e à tematização dos fundamentos, o que leva ao dar-se conta de que todos eles
são expressão de linguagem endurecida por determinadas e superpostas teceduras feitas de
conceituações carentes da recordação dos caminhos em que chegaram a vir a ser o que
agora são. A primeira delas é a concepção que caracteriza a linguagem como instrumento
de uso para a denotação, ou de sinalização objetiva e externa de algo que o falante aponta
como se fosse separado de si mesmo. Por essa perspectiva ele intenta reproduzir no
pensamento e pela linguagem algo que se lhe apresenta como objeto de realidade em si e
fora da circunscrição da linguagem como se limites houvesse, bem como também ao modo
de exterioridade daquele que fala para que o mesmo possa constituir-se sujeito articulador
do processo. O sujeito assim se supõe fundamento para conhecer e representar em si
figurativamente uma realidade objetiva externa a si pelo uso instrumental da linguagem.
Desse modo ele considera a linguagem como um mero instrumento de uso inventado
aleatoriamente para satisfazer os interesses da sua razão autônoma. Necessita, então,
exercer sem cessar o controle e a análise sobre a realidade e as suas modificações no
sentido externo, além de ainda sobre as suas próprias capacidades motivado pela
necessidade de vigilância para a eficiência da representação que faz em termos da verdade
como adequação. O sujeito julga-se suporte do seu discurso, pois considera que quanto
mais puder observar, calcular e analisar o que se lhe apresenta como externo e separado de
si e quanto mais puder estabelecer, também por análise, as próprias condições internas que
lhe possibilitam que explique a correspondência entre ambos os pólos, tanto mais firme
permanecerá em seu posto de autonomia racional. Num processo de recorrência continuada
necessita, pois, assegurar-se de que as condições da fundamentação em si mesmo e o uso
da linguagem instrumental estejam corretas para que a adequação à realidade seja realizada
por representação perfeita. Com tal processo de objetivação o sujeito procura instaurar um
fundamento sempre separado de si mesmo que precisamente o fundamente como sujeito, a
fim de que seja possível o julgamento sobre a correção do trabalho de análise e elaboração
do objeto separado e fixo em frente. Todas as fundamentações objetivadas resultam
precárias por pretenderem estabelecer a totalidade absoluta por um discurso dela separado
que nunca poderá sustentar-se. O resultado, como já dito, é a impossibilidade de
376
para onde? Também ele é só compreensão, seja do que for e a pretensão do domínio é vã.
Pois fixada a compreensão, o que é que haveria? Fixação esquecida que ao primeiro tédio
se esfuma para permanecer a mesma questão que é a questão. Pois como se daria a resposta
para a pergunta sobre o sentido da pergunta? Qualquer resposta seria traição-ilusão e
qualquer permanência na pergunta é a questão, o haver do ser em que está como
compreender, sem compreender a razão de tal ocorrência de compreender. A vaidade das
construções compreensivas é castigo em edificação, vaidade esquecida mesmo que à vista.
O reconhecimento da vaidade é o aspecto destrutivo ainda das construções que são,
enquanto que a pergunta a querer compreender as compreensões também ainda está
comprometida com projeto, pois o que surge é o rastro instituído, nova construção. Não e
nem perguntar, imergir no sonho da ocorrência da compreensão e admitir a representação
teatral a passar, pode haver isso? O silêncio da palavra, a escuta infinita, o desmonte da
pretensão é a música, o gozo e a morte? Entre a continuidade da pergunta, do ensaio de
resposta e da pretensão de compreensão conteudista e objetal, melhor é o silêncio, e
pronto? Que as bobagens, se é que são, a serem ouvidas tenham a mera compreensão de
participação no riso da vida. Não se sabe quem é e nem quem está de fato a rir, e nem o
que seja riso, ou a sua importância. Há o riso filosófico, mas também o riso da criada do
primeiro filósofo, Tales de Mileto, a tropeçar fixando estrelas lá no alto. Qual é mais
participante?
A contradição da linguagem faz lembrar, pela primeira das suas dimensões, o
deboche que se fazia a respeito da explicação da teoria da gravitação universal de Newton.
Um burguês rico e ignorante ouve com satisfação do seu professor pobre, um nobre
decadente da época, que a explicação da virtude que o ópio tem de fazer dormir é devido à
causa da chamada virtus dormitiva. Qualquer grande metáfora ativada como explicação
última funciona só enquanto desconhecida novidade instituída, numa crença de que seja
explicação segura, até novo reexame, nova pergunta, nova admiração descobridora e
filosófica, já que a resposta é elemento participativo na linguagem. A rigor, nada teria
explicação absoluta, a não ser provisoriamente e, assim, toda a explicação, para poder
funcionar, já necessitaria do esquecimento da autoridade de princípio que a instaurou como
absoluto.
Foram dez os escritos que constituíram a motivação das dez secções da presente
tese em que a contradição da linguagem é descoberta, indiciada, apresentada, suposta e
aplicada como ponto focal ou fio condutor para a compreensão da obra de Walter
382
Benjamin. A continuidade da pesquisa pode guiar-se pela hipótese de que em cada um dos
textos a contradição da linguagem esteja representada nos termos já indicados. Poder-se-á
certamente também aprofundar a verificação da sua relação mais direta com a teologia, a
história, a arte, a política, a ciência e a tecnologia favorecendo a interlocução que desde o
início constituiu-se em motivação fundamental para o presente trabalho. Além disso,
apresenta-se um leque de conceitos importantes, capaz de garantir a viabilidade e o
interesse de pesquisa futura, quais sejam: alegoria, aura, experiência, recordar, Eros, narrar,
idéia, crítica, obra de arte, mito, salvação, revolução colecionador, destino, citação,
passagens, e outros.
- Ninguém consegue escapar à contradição para falar de fora dela, porque a fala
necessariamente objetiva e pressupõe e, ao mesmo tempo propriamente se expressa
supondo um âmbito que nunca conseguirá nominar. Na objetivação ocorrente da fala há a
inevitabilidade do fundamento assumido, mas na sua verificação sempre precário.
- A forma de figurar Benjamin é tal que ocorre na compreensão do seu modo de uso
do esquadro da contradição da linguagem. Ela trata da condição humana.
384
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