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DOSSIÊ
cenários de intervenção em centros urbanos contemporâneos
No intuito de ordenar espaços e devolver aos centros urbanos o papel hegemônico perdido,
políticas urbanas contemporâneas vêm procurando fomentar diferentes modos de intervenção
designados por “revitalização” ou “requalificação”. A cidade, voltada para a valorização de seu
patrimônio histórico, torna-se então objeto de remodelações e reformas arquitetônicas, com
vistas à preservação, ensejando imagens e marcas. Refletir sobre as intervenções em centros
urbanos de metrópoles contemporâneas, incluindo experiências mais recentes realizadas em
cidades nordestinas, constitui o objetivo central do presente artigo. Com menos interesse em
fazer avaliações propositivas, o artigo analisa concepções e conflitos simbólicos que balizam
práticas de “revitalização”. A presença de consumidores variados do espaço público (turistas,
moradores, comerciantes etc.) e as polêmicas estabelecidas em torno dos investimentos cultu-
rais e econômicos servirão de baliza para as ideias presentes no texto.
PALAVRAS-CHAVE: centro urbano, “revitalização”, espaço público, turismo, metrópole.
Os centros urbanos cada vez mais apare- multiplicidade de centros exprime as característi-
cem como expressão de zonas emblemáticas de cas atuais de metropoles, tornando-os muitas ve-
cidades. Evocam o passado, momento no qual zes desconectados entre si e postos em disputa
desepenhavam o papel de agregar funções admi- pela hegemonia de atividades sociais. Refiro-me,
nistrativas e comerciais importantes, reportando- particularmente, às funções de comércio e servi-
se também a um futuro e ao presente indefinidos ços, hoje difundidas em múltiplas áreas do espa-
quanto a possíveis formas de utilização de equipa- ço urbano.
mentos e espaços considerados “históricos”. É notório observar que intervenções reali-
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mizar antigas áreas centrais, readaptando-as a fun- baseadas em concepções variadas. Algumas cami-
ções do presente, são recorrentes em discursos de nham na direção de animações culturais, incluin-
gestores e profissionais do urbanismo, ensejando do modelos de preservação de teor arquitetônico
planos e propostas de mudança na zona conside- associados à dinamização econômica do local. In-
rada como o “coração” da cidade. vestimentos em moradias antigas, construção de
No intuito de ordenar espaços e devolver ao novas e oferta especiais de serviços e lazer pontu-
centro o papel hegemônico perdido, as políticas am parte significativa das experiências que se efe-
urbanas contemporâneas vêm procurando fomen- tivam em metropoles contemporâneas.
tar ações culturais diferenciadas. Representações O circuito das ações em torno de politicas
baseadas em supostos memorais confirmam luga- urbanas não navega em águas tranquilas. Polêmi-
res emblemáticos, acionando narrativas baseadas na cas referentes a empreendimentos efetivados em
ideia de um processo urbano a ser preservado. A locais “degradados” emergem com intensidade,
cidade voltada para a valorização de seu patrimônio pondo em pauta concepções sobre o espaço públi-
histórico torna-se, então, objeto de remodelações e co e sentidos atribuídos ao que e classificado como
reformas arquitetônicas, com vistas à preservação, patrimônio histórico. É sob o signo da mudança e
ensejando imagens e marcas (Vaz, 2008). da preservação que ações materiais e simbólicas
Refletir sobre algumas intervenções em cen- passam a pautar politicas urbanas, envolvendo
tros urbanos de metrópoles contemporâneas, inclu- agentes governamentais, especialistas e profissio-
indo experiências mais recentes realizadas em cida- nais do urbanismo.
des nordestinas, constitui o objetivo central do pre- A experiência de reabilitação do Centro His-
sente artigo. Menos interessada em fazer avaliações tórico de Recife3 traz elementos importantes para
propositivas, pretendo analisar concepções e con- se pensar sobre intervenções e usos do espaço
flitos simbólicos subjacentes a tentativas de urbano associados ao tema da requalificação.
“revitalização”. A presença de consumidores varia- O plano estratégico de reabilitação do centro
dos do espaço público (turistas, moradores, comer- da capital pernambucana foi elaborado por arquite-
ciantes, etc.) e as polêmicas estabelecidas em torno tos e urbanistas ligados ao governo Jarbas Vascon-
dos investimentos culturais e econômicos servirão celos (PSDB). As concepções que animaram a pro-
de baliza para as ideias presentes no texto. posta reconheciam a necessidade da interferência
dos poderes publicos visando à reabilitação do lu-
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de sua permanência no local, a preservação dos vou polêmicas sobre os temas do “esvaziamento”,
monumentos antigos. Eram, portanto, atores rele- a presença descontínua de visitantes e as dificul-
vantes na constituição da ideia de patrimônio. dades de permanência de moradores. Discussões
Múltiplas iniciativas foram viabilizadas por sobre a possibilidade de as políticas de patrimônio
meio do projeto “memória em movimento”: a recom- incorporarem usos locais emergiram nesse momen-
posição da história do bairro por meio de entrevistas to, repondo a pauta das tensões entre ocupação e
com antigos moradores, a valorização da habitação à legitimação de zonas requalificadas. Trata-se de uma
moda modelo de Bolonha e a defesa do uso da mora- situação também presente em outras experiências
dia para camadas populares, sem abdicar, no entan- de remodelação urbana.
to, da utilização da área para fins turísticos. Em São Luís,5 o processo de investimento
A implementação posterior do projeto de no Centro Histórico foi reforçado em 1997, oca-
“revitalização” foi efetivada por meio de fases que sião na qual a cidade era incluída na linha de
incluíam assistência à população carente de saúde patrimônio mundial pela Unesco. Os primeiros
e educação, tornando-se símbolo de uma aliança trabalhos sobre o levantamento do acervo
entre governo estadual e municipal4 (Leite, 2007). arquitetônico e artístico partiram de reforços pro-
Tratava-se de uma proposta flexível, execu- movidos por essa instituição, contando com inter-
tada em continuidade, com objetivos precisos de ferência do arquiteto francês Michel Parent, tam-
transformar o bairro de Recife em Centro Metro- bém indicado para realizar relatório junto à Unesco
politano. A ideia era a de torná-lo modelo de espa- sobre o Pelourinho em Salvador. O Plano Munici-
ço público e local de atração turística nacional e pal de Gestão do Centro histórico foi adotado pela
internacional. Prefeitura de São Luís, incluindo modelos de cir-
Em que pese sua singularidade, o projeto culação viária e valorização do patrimônio imobili-
de revitalização do Centro de Recife repetiu uma ário por meio da indução de usos habitacionais,
tendência que proliferou nas últimas décadas, em culturais e turísticos.
metrópoles brasileiras e nordestinas, referente à A tentativa de incorporar à proposta de
transformação de áreas marginais em complexos “revitalização” práticas sociais diferenciadas e não
centros de lazer. As descontinuidades entre as restritas à oferta de espetáculos reconhecia a ne-
propostas voltadas para o plano de devolução ao cessidade de equacionar, de modo equilibrado, as
local da vitalidade perdida e as práticas efetivas de funções do passado e do presente. O turismo foi
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ticas e culturais que vabilizaram a efervescência centro. Em 2000, conforme dados do IBGE, havia
do Centro Histórico da capital maranhense, obser- 24.775 habitantes; em 1991, 30.000 (Cf. Jornal O
va-se que a relação complexa entre usuários, visi- Povo, 7/02/2009).
tantes e moradores permanentes apareceu com niti- As polêmicas mais recorrentes a respeito do
dez. Destaca-se assim, em São Luiz, dificuldades Centro de Fortaleza gravitam em torno da presença
comuns a outras cidades nordestinas atuais, refe- do comércio ambulante e categorias sociais consi-
rentes ao equilíbrio da oferta de bens de lazer, con- deradas expressões da desordem e da violência.6
sumo e moradia nas áreas consideradas históricas. Ao longo do tempo, o Centro tornou-se, de fato,
Reflexões sobre a necessidade de reforço ao um local de presença quase exclusiva de classes
patrimônio histórico do centro de Fortaleza foram populares, não obstante as tentativas mais recentes
também retomadas à luz de propostas de de programas de animação cultural que visam a as-
“requalificação”. Discursos sobre a necessidade de segurar a frequência da classe média no local.
conservação de espaços e monumentos apontaram A criação de áreas contíguas à zona central
a necessidade de resguardar o Centro da Cidade e de Fortaleza, como o Centro Dragão do Mar de Arte
conservar a sua “história”. Revitalizar o decadente e Cultura, objetivava inserir a cidade no contexto
e preservar o antigo vem portanto, ao longo do de reformas gerais, impedindo que a área reprodu-
tempo, se constituindo em lema de gestores ou zisse o processo de verticalização em curso (Gondim,
planejadores urbanos, preocupados em reverter 2006). O projeto original contemplava a ampliação
processos de transformação característicos hoje da das áreas de intervenção, que deveriam integrar a
maioria das metrópoles. Praia de Iracema ao centro da cidade. Essas refor-
Uma das propostas discutidas em vários mas, que se efetivaram concomitantemente a mu-
projetos que visam a dinamizar o centro da Capi- danças espaciais mais recentes – exemplificadas na
tal Cearense é a de aproveitamento de moradias verticalização, na instituição de áreas “nobres” e na
para as famílias de classe média. A hipótese de definição de zonas consideradas “históricas” –, pro-
criação de corredores culturais, facilitando passa- duziram, simultaneamente, polêmicas entre mora-
gens entre pontos importantes, permitiria a valori- dores e consumidores visitantes (Barreira, 2007).
zação de equipamentos públicos, tais como o anti- Outra experiência significativa de interven-
go Parque da Cidade e sua ligação com a Praça José ção realizada com vistas a consolidar o patrimônio
de Alencar, que abriga o teatro mais importante de histórico local ocorreu no Centro Histórico de Sal-
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co no Pelourinho, com a valorização estética da ças históricas e econômicas peculiares a cada ex-
paisagem, em contraponto à ideia de espaço para periência, existe um padrão que se torna quase
moradia, são considerados emblemáticos. A pri- um modelo. Trata-se da questão da dinamização
mazia conferida à refuncionalização turística não de áreas que subvertem as formas originais de uso
eliminou uma subversão de territorialidades locais, do espaço urbano, submetidas a operações de
como o comércio de produtos típicos baianos e a requalificação indutoras de outras formas de se-
oferta de outros serviços construídos nas brechas gregação social.
da legalidade. O programa de recuperação do Cen-
tro Histórico de Salvador, inaugurado em 1992,
passou por várias etapas. A primeira fase compre- ESPAÇO PÚBLICO, PARA QUAL PÚBLICO?
endeu a implantação de um centro comercial tu-
rístico próximo ao Pelourinho. Os imóveis foram Sennett, em livro polêmico intitulado O
ocupados por comércio, atividades culturais e ne- declínio do homem público (1999), chama a aten-
gócios ligados ao turismo. ção para o desaparecimento gradativo de experiên-
Estratégias outras, que buscavam a diversi- cias compartilhadas em espaços urbanos marca-
ficação de atividades, foram implementadas com dos pela lógica da evitação e reforço ao individua-
auxílio do Programa de Desenvolvimento do Tu- lismo. Argumenta o autor a prioridade atualmente
rismo (Prodetur). A concepção do plano de reabi- conferida à visão íntima da sociedade, sendo o
litação do Centro Antigo de Salvador, que envol- mundo impessoal dos encontros anônimos consi-
veu Governo do Estado, Prefeitura, Ministério do derado decepcionante e vazio. A crítica de Sennett
Planejamento e Instituto do Patrimônio Histórico, fundamenta-se na necessidade de uma lógica da
teve por objetivo coordenar, de forma mais inte- diversidade, capaz de permitir a vigência de expe-
grada, as diversas intervenções e projetos em cur- riências coletivas peculiares à própria ideia de ci-
so. A criação do quarteirão cultural permitiu a di- dade. A teatralidade da vida social, implicando a
versificação do público de visitantes. presença de atores e papéis desempenhados no
Recentemente, a preocupação com a perma- espaço público, viabilizaria o cumprimento das
nência da população no Centro de Salvador res- regras do viver citadino.
surge mais fortemente, considerando-se a sua Em uma outra perspectiva, baseada na ideia
importancia para a continuidade temporal do em- do espaço público como esfera de ação política,
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“zonas históricas” de cidades. Nessa direção, o ressurgem ao lado de conflitos simbólicos, ali-
centro de cidades passou a constituir um dos lo- mentados na contenda entre lugares e memórias. A
cais de produção de práticas culturais e políticas cidade cosmopolita, como palco de inúmeras inter-
baseadas em evocações à memória, simbolizando venções urbanas, promoveu uma reflexão sobre os
a ideia de um espaço público a ser ativado e temas do patrimonio cultural, incluindo a delimita-
reconstruído. ção e o uso dos espaços, as classificações e sentidos
No intuito de construir uma articulação har- elaborados no cotidiano de práticas de atores soci-
moniosa entre passado, presente e futuro, os in- ais: moradores, comerciantes, visitantes etc.
vestimentos comerciais e culturais vêm integran- Os investimentos urbanos, projetos e dis-
do estratégias múltiplas. Rituais como o carnaval, cursos que acenam com a preservação do patrimônio,
festas populares, animação de praças e eventos ligam-se a um processo que pode ser nomeado de
cívicos buscam dinamizar antigos usos do espaço “invenção das tradições” (Hobsbawm), presente em
urbano, associados a formas contemporâneas de narrativas e ícones que buscam recompor a origem
consumo. Propostas recentes de reforma de cen- e o crescimento de cidades.
tros citadinos procuram, assim, conjugar interes- O chamado “esvaziamento” de espaços urba-
ses comerciais e turísticos, almejando a frequência nos convoca uma reflexão sobre a própria ideia de
da classe média como garantia de sustentabilidade usos ou apropriações de áreas públicas. Certeau
dos empreendimentos. (1994), observando a característica diversificada do
As interferências em centros urbanos evo- consumo urbano, para além das classificações
cam a utopia da convivência coletiva, acenando hegemônicas, considera que o próprio viver na cida-
com possibilidades de recompor espaços “esvazi- de é sinalizador de uma variabilidade de práticas
ados”. A ideia de “devolver a cidade aos morado- sociais ou usanças, expressivas da dimensão criativa
res” passa a ser veiculada com frequência em vári- e relacional propiciada por moradores ou visitantes.
os dicursos, sendo as operações e reformas reali- Na realidade, o uso dos espaços na cidade
zadas em nome da virtualidade de uma história não se separa de processos, conflitos e interven-
urbana a ser protegida. ções políticas nos quais se percebe a emergência
Perspectivas mais amplas e recentes, desig- de atores no fluxo das diferentes dinâmicas
nadas por “globalização”, trouxeram referentes interativas. A cidade, nesse sentido, é múltipla,
novos para pensar sobre as cidades, elegendo a não obstante sua capacidade de “se impor” a seus
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mudanças na periferia, ocasionada pelo processo e ameaça ao patrimônio público. Sabe-se, no en-
de redemocratização, repercutiu sobre a versão do tanto, que bens materiais, ao longo do tempo, são
“centro degradado”, que é exemplificado na multi- passíveis de novos usos, e é justamente a transfor-
plicação de bares e na presença de prostituição. Em mação de funções e de formas de ocupação que
fins dos anos 1970, houve a refuncionalização de desafia o discurso da preservação e dos conflitos
zonas, separando-se áreas comerciais e residenciais, de classe aí embutidos, a exemplo dos cortiços em
interferindo a prefeitura no incremento espaciais São Paulo (Kowarick, 2009).
de cultura e zonas comerciais alternativas. A diver- Parte significativa dos argumentos de pro-
sificação no uso do espaço público em Barcelona fissionais do contexto urbano, assim como de
reproduziu, no entanto, os riscos de novas formas gestores públicos, baseia-se na existência de um
de segregação e conflito entre usos do espaço. potencial econômico, cultural e comercial “pouco
Esse conjunto de experiências põe em ques- aproveitado”, o que deixa essa zona suscetível à
tão o dilema dos conflitos simbólicos que se efeti- deterioração e ao “esvaziamento”. É caminhando
vam em torno do uso do espaço público, tornando nessa direção que políticas de intervenção urbana
os centros históricos uma espécie de termômetro em centros históricos elegem essa zona como con-
das transformações urbanas que vêm se processan- texto privilegiado de investimentos legítimos, por-
do em metrópoles nos últimos vinte anos. Destaca- que considerados salvaguardas da memória e dos
se, nessa perspectiva, o alerta já enunciado por Jacobs sentidos de totalidade da metrópole.
(2000), sobre a necessidade da articulação ente di- De fato, desde o momento em que as cida-
nâmicas e diversidades como suportes fundamen- des se tornaram policêntricas, com redistribuição
tais para a valorização e renovação de cidades. É de funções comerciais e administrativas, acompa-
importante não destruir o quadro das trocas tradi- nhadas de afastamento das classes mais favorecidas
cionais, assevera a estudiosa dos espaços de inter- para zonas mais distantes, o antigo centro perdeu
venção urbana. Os centros históricos repõem, jus- credibilidade e passou a a abrigar formas de ocu-
tamente, o drama da dinamização e preservação da pação consideradas problemáticas. Projetos e in-
vitalidade, criando tensões entre frequentadores e tervenções voltadas para conter o “esvaziamento”
modos de apropiação do espaço. ou regular formas indesejadas de ocupação inte-
Subjacente aos usos e apropriações do es- gram fortemente a agenda de políticos e gestores.
paço que fundamentam a polêmica do “esvazia- O centro da cidade é também visto como
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mento”, entra em jogo a presença do capital sim- lugar histórico, no qual se desenvolvem as fun-
bólico e comercial. ções básicas de negociação e troca. É a construção
de outros polos de aglutinação de atividades que
contribui para a difusão da ideia de “vazios”, fa-
DESAFIOS DA INTERVENÇÃO: capital simbó- zendo emergir a seguinte questão: são os centros
lico versus capital economico vazios ou ocupados de forma considerada indese-
jável? Em Fortaleza, por exemplo, a ideia de “esva-
Pensar o centro como patrimônio evoca o ziamento” está associada à presença ou ausência
sentido de passado e conservação. Supõe a urgên- da classe média. Assim como se diz que o espaço
cia de cuidar de “algo que precisa ser preservado e está “vazio” porque não é mais frequentado pela
está em risco de extinção”, tendo em vista a des- classe média, também se diz que a área está “mis-
truição de antigos imóveis, a presença de ativida- turada” quando setores populares mais ou menos
des e usuários considerados indesejados, a trans- integrados à vida citadina asseguram uma presen-
ferência de estabelecimentos importantes de comér- ça mais evidente. Ressalta-se, portanto, nessa si-
cio para outras localidades etc. Todas essas ações tuação, o princípio de dupla segregação que en-
são percebidas como sintomas de “desvitalização” volve classes populares e as camadas superiores,
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já enunciada por Preteceille no estudo da metró- sociais que interferem sobre os usos, apropiações
pole parisiense (2003). do espaço e sentidos de patrimonialização. Não
Confundindo-se com a ideia de espaço pú- deixa de ser sintomático que cidades nordestinas
blico, o centro das cidades também torna latente o tenham utilizado investimentos turísticos por meio
conflito de classes ou a contradição entre funções do Programa Prodetur, com vistas a angariar divi-
e modos de utilização da área. É na perspectiva de dendos econômicos, compensatórios de uma situ-
um sentido de “esvaziamento” do centro, na críti- ação de pouca industrialização e crise fiscal. A di-
ca à “invasão” dessa localidade por vendedores ficuldade de sustentabilidade de experiências vem,
ambulantes e nas outras formas de ocupação des- portanto, da dependência do turismo como forma
se espaço, que as tentativas de intervenção, assim quase exclusiva de dinamização de áreas urbanas.9
como os debates acadêmicos e jornalísticos, pas- Mesmo na situação de Salvador, cujo crescimento
sam a se efetivar com nitidez. Camelôs, prostitutas acelerado revelou-se superior ao de outras cidades
e consumidores de drogas corporificam presenças nordestinas na última década, ocorre uma
“espúrias”, consideradas símbolos da “degradação” reconfiguração de territórios voltada para incremen-
e da perda de credibilidade do local. to do turismo, com investimentos em eventos cul-
Se a ideia de “requalificação” presente na turais e enobrecimento de áreas, visando à difusão
maioria das proposições de reforma urbana prima de uma imagem positiva da cidade.10
pela valorização simbólica de espaços, instituindo A natureza dos investimentos associados a
narrativas com atribuições positivas dirigidas a modos diferenciados de consumo também interfe-
zonas consideradas representativos da cidade, re na destribuição, classificação e usos do espaço.
supõe também novos investimentos imobiliários, Experiências baseadas no reforço ao lazer e à cul-
tendo em vista atrair a presença da classe média. É tura, aí incluindo cenários “históricos” de visitação,
nessa perspectiva que a cultura e o lazer aparecem empreendimentos diretamente associados à pre-
como suportes fundamentais do binômio mudan- sença de visitantes sazonais, episódicos ou per-
ça e preservação. A valorização de um público in- manentes, têm implicações sobre a sustentabilidade
definido, o que aflui à cidade em momentos dos empreendimentos.
episódicos (turistas) passa também a contar na ló- Quando pesquisadores da Europa, Estados
gica das tentativas de intervenção, aproximando- Unidos e América Latina discutem os efeitos de
se de um urbanismo destinado a uma população tentativas de requalificação nas áreas centrais, re-
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das que remontam à nostalgia de um tempo anteri- depoimentos, formadores de opinião sobre os pro-
or de maior sociabilidade e intimidade com a me- cessos urbanos contemporâneos, caracterizam o que
trópole. Tempo no qual era possível ter controle venho nomeando de “diálogo entre passado e pre-
sobre os processos de mudança. sente”. Entendo diálogo não como relação cordial
Percepções sobre o que é considerado his- entre temporalidades, mas apropriações do passa-
tórico, com repercussões sobre a valorização de do acompanhadas de investimentos materiais e
monumentos e equipamentos, em detrimento da simbólicos considerados expressivos do patrimônio
moradia, induzem a formas efêmeras ou transitó- local. Trata-se de uma metáfora que visa a apontar
rias de consumo, contribuindo para o chamado as diferentes formas de evocar o passado, visto
“esvaziamento”. Nesse sentido, políticas variadas tanto sob a óptica de um tempo mítico e sem retor-
de intervenção, que se tornam objeto especulação no, como também vivido em continuidade com os
em diferentes cidades, têm em comum a tentativa usos contemporâneos do espaço urbano. Com isso
de dar unidade espacial e temporal a vivências quero dizer que a “história ou memória da cida-
descontínuas que caracterizam as metrópoles sub- de”, materializadas no conceito de patrimônio,
metidas a processos de expansão, segregação. expressam versões diferenciadas ou visões de um
Os pressupostos das reflexões contidas neste imaginário11 urbano nem sempre convergentes.
artigo partiram da compreensão da cidade em sua A perspectiva de acenos à “revitalização”
feição dinâmica e plural – resultado de investi- supõe a possibilidade de construção de liames tem-
mentos, usos diferenciados do espaço e disputas porais dotados de narrativas múltiplas. Os apelos
simbólicas mediadas por discursos ou narrativas. turísticos, as intervenções urbanísticas ou as pro-
Para além de um ideal de unidade, a cidade repre- jeções arquitetônicas buscam, cada qual a seu
senta a conjunção de dinâmicas sociais. O risco modo, fortalecer a chamada “identidade urbana”,
de essencialização ou substantivação do espaço guardando o seu quinhão de passado. É nesse
urbano existe quando pensamos a metrópole de âmbito que a ideia de patrimônio suscita uma es-
modo estático e uniforme. Trata-se de um senso pécie de afinidade eletiva com a noção de mito,
contrário à sua dimensão plástica, moldada por que “tem à sua disposição uma massa ilimitada de
práticas e interações – projeção, no espaço, das significantes” (Barthes, 1989, p.141).
relações sociais, tal como pensou Lefebvre (2000) Os discursos construídos sobre a cidade,
em inúmeras de suas reflexões sobre a perspectiva associados a diferentes práticas sociais, expressam
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relacional dos habitantes das cidades modernas. diferentes momentos históricos e experiências.
Os centros históricos podem ser vistos como Uma negociação ou conflito entre os espaços que
espaços de idealização a participar de uma produ- se preservam e os que se modificam indica o esta-
ção representacional e imagética não necessaria- belecimento de conexões que vão adquirindo ma-
mente condizente com uma política urbanística tizes diferenciadas, conforme as políticas de inter-
orientada para investimentos de longo prazo. Ima- venção urbana e o poder de imposição, parceria
gens sem conteúdo, em muitas situações, caracte- ou resistência de segmentos sociais.12
rizariam o marketing das cidades, com a criação Longe da instituição de um consenso, as
de hipercentros que se assemelham a liftings e experiências vigentes em vários contextos urbanos
outras cirugias plásticas (Peixoto, 2008). O pes- apontam processos como gentrificação, possibili-
quisador, observando experiências em cidades por-
11
tuguesas, conclui que os centros históricos mais Para o conceito de imaginário, ver, entre outros,
Castoriadis, 1992.
coloridos e mais animados não necesariamente 12
Rubino (2009), refletindo sobre o conceito de
“enobrecimento urbano”, chama a atenção para a neces-
adquirem mais vida própria, criando a distância sidade de incorporar dados etnográficos às análises, con-
entre imagem difundida e seu conteúdo. siderando a hipótese da diversidade de ocupações em
cidades e as razões múltiplas pelas quais determinadas
O conjunto de intervenções discursos e classes sociais vão morar no centro.
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Não necessariamente avesso ou imune aos confli- HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence. A invenção das
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tos, mas aberto às negociações e percursos históri- JACOBS, Jane. Morte e vida de grandes cidades. São Pau-
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ARANTES, Antonio A. Paisagens paulistanas: transfor-
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In order to sort spaces and give back to urban En vue d’organiser les espaces et de rendre aux
centers their lost hegemonic role, contemporary urban centres urbains leur rôle hégémonique perdu, les
policies have been seeking to foster different modes of politiques contemporaines cherchent à promouvoir
intervention called “revitalization” or “requalification”. divers modes d’intervention appelés “revitalisation” ou
The city, facing the valorization of its historical “requalification”. La ville, penchée sur la valorisation
heritage, then becomes the object of architectural de son patrimoine historique devient alors l’objet de
renovations and reforms, aimed at preservation, travaux de rénovations et de réformes architecturales
allowing for images and brands. The central objective destinées à la préservation, donnant lieu à des images
of this paper is to reflect on the interventions in the et à des marques. Réfléchir aux interventions qui ont
contemporary metropolitan urban centers, including lieu dans les centres urbains des métropoles
the most recent experiences conducted in Brazilian contemporaines, y compris aux expériences plus
northeastern cities. This paper, less interested in making récentes réalisées dans des villes du nord-est, consti-
propositional assessments, analyzes symbolic concepts tue l’objectif principal de cet article. Plutôt que de
and conflicts that guide practices of “revitalization.” vouloir faire des évaluations en vue de propositions,
The presence of various consumers of public space l’article analyse les conceptions et les conflits
(tourists, residents, merchants etc.) and the symboliques qui jalonnent les pratiques de
controversies surrounding the cultural and economic “revitalisation”. La présence de consommateurs
investments will serve as a guide for the ideas in the diversifiés de l’espace public (touristes, habitants,
text. commerçants, etc.) et les controverses établies
concernant les investissements culturels et
économiques serviront de jalon aux idées présentes
dans le texte.
KEYWORDS: urban center, “revitalization”, public space, MOTS-CLÉS: centre urbain, “revitalisation”, espace
tourism metropolis. public, tourisme, métropole.
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Irlys Barreira – Doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo. Professora titular de Sociologia do
Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará. Bolsista de produtividade em
pesquisa do CNPq. Prioriza em suas pesquisas o estudo dos rituais, práticas políticas e valores sócio-culturais
em diferentes contextos. É autora dos livros: O Reverso das Vitrines, Conflitos Urbanos e Cultura Política
(Editora Rio Fundo, Rio de Janeiro, 1992), Chuva de papéis, ritos e símbolos de campanha eleitoral no Brasil
(Editora Relume Dumará, Rio de Janeiro, 1998), Imagens ritualizadas, apresentação de mulheres em cená-
rios políticos (Editora Pontes, São Paulo, 2008). Entre os trabalhos que enforcam mais especificamente o tema
das cidades publicou: “Narrativas de Lisboa” (Almedina/Centro de Estudos Sociais – Coimbra, 2009); “Guias
turísticos em Berlim” (Revista Tempo Social – Universidade de São Paulo, 2005) e “Narrativas do Olhar:
Fortaleza em Cartões Postais” (Editora Universidade Federal de Sergipe, 2008).
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