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A criança como narradora do seu próprio

amadurecimento

Julia Murachovsky
Professor Iuri Pereira
2ºC - eletiva de literatura
introdução

“Eu não poderia ter escrito de outro jeito. Só da perspectiva de uma criança era
possível relatar toda a crueldade e imoralidade desta história”. - Agja Verteranyi

A escolha do narrador que será adotado é crucial para o desenvolvimento de


uma narrativa. Na obra ​Por que a criança cozinha na polenta, ​Aglaja Verteranyi
dispõe da perspectiva de uma menina romena, cujo nome não é dito, que relata a
sua fuga com sua família circense, na qual buscavam escapar da ditadura que
tomava conta da Romênia. É possível deduzir que existe um teor autobiográfico no
enredo pela semelhança que apresenta com a infância da autora, que como a
protagonista, também fugiu da ditadura romena e viajou pelo mundo com sua família
em turnê com um circo.
Mesmo tratando de assuntos sérios e polêmicos, o livro desfruta de uma
leveza e inocência infantil que se evidencia durante toda a leitura. Além do ritmo
constante, que é presente desde o início, construído com indagações, relatos, e
teorias da protagonista. O que reforça a ingenuidade e curiosidade da menina,
ambas características típicas de uma criança. A narração usufrui de recursos
inovadores, por exemplo, a maneira como desafia as barreiras entre prosa e poesia,
ou o uso de letras GARRAFAIS em frases de impacto, criando uma atmosfera mais
descontraída, como veremos em exemplos posteriores. Um aspecto marcante da
narração da obra é que, existe pouca ligação entre os acontecimentos, e é evidente
uma análise muito superficial dos acontecimentos, atendo-se quase apenas aos
fatos concretos. Essa falta de concatenação, foi provavelmente uma estratégia de
reproduzir a linguagem de uma criança, que tem mais dificuldade em desenvolver
suas ideias.
O livro é dividido em quatro partes, que evidenciam as mudanças drásticas
na vida da protagonista. Na primeira parte a personagem apresenta sua família ao
leitor, e conta sobre sua rotina, na segunda parte ela e sua irmã vão para um
internato, do qual na parte seguinte saem. A menina segue viagem, agora apenas
com sua mãe e seu novo namorado, mas logo, na última parte da obra, ela volta ao
internato para estudar e buscar uma profissão.

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A intenção com a elaboração deste ensaio é analisar se existem (e quais
seriam) os possíveis impactos causados por infância conturbada, na formação,
amadurecimento e na vida adulta de alguém, com base na narrativa de Aglaja
Verteranyi.

parte 1- de molho nas questões cotidianas

O livro ultrapassa uma linha tênue entre a realidade e o absurdo,


principalmente quando trata-se da construção das personagens, que destacam-se
mesmo no meio exótico que é o circo. A menina conta sobre a performance de sua
mãe, e como ela pendura-se pelos cabelos, conta também sobre seu pai, que é
palhaço e acrobata. Também é apresentada a sua irmã, que vive junto aos demais,
em um trailer que viaja com o espetáculo do circo.
Desde o início, é ressaltado o desapego em relação aos bens materiais, até
porque trata-se de uma família praticamente nômade, e ainda por cima sem boas
condições financeiras. Existe uma exaltação de tudo que é estrangeiro pela
protagonista, que, principalmente pela influência dos pais, conta como na Romênia
as condições eram terríveis.

NÃO DEVEMOS NOS APEGAR A NADA

Estou acostumada a me instalar em qualquer lugar e me sentir bem.


(...)

Aqui todos os países estão no estrangeiro.


O circo está sempre no estrangeiro. Mas, no trailer, estamos em casa. Eu abro a
porta do trailer o menos possível, para a casa não evaporar.
As berinjelas assadas da minha mãe cheiram, em todos os lugares, igual como em
casa, não importa em que país estejamos. Minha mãe diz que aproveitamos muito
mais do nosso país no estrangeiro, pois toda comida do nosso país é vendida no
estrangeiro.
(...)

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Além do mais, aqui vivemos como ricos, depois de comer podemos jogar os ossos
da sopa fora sem peso na consciência, enquanto que, em casa, temos que
guardá-los para a próxima sopa.
(...)
Aqui, as pessoas têm dentes sãos porque podem comprar carne fresca a qualquer
hora.
Em casa, até as crianças têm dentes podres, pois o corpo suga-lhes todas as
vitaminas.​ (p.22)
No meu país, as pessoas não podem pensar livremente nem em sonho, se falarem
e espiões ouvirem, são levadas para a Sibéria. (página 36)

De 1965 a 1989, a atual Romênia era Estado-satélite da União Soviética, e


era conhecida como República Socialista da Romênia. Favorecidos pelo contexto
pós-guerra, os soviéticos pressionaram a entrada do partido comunista no governo,
e em 1967 Nicolae Ceausescu tornou-se chefe de Estado. Esse era bem visto pelo
Ocidente, que apreciava sua política conhecida como independente, por esse
motivo, líderes ocidentais demoraram em se tornar contra o regime de carácter
duro, arbitrário, e caprichoso. Eram diversos os abusos aos direitos humanos, por
exemplo, foi promulgada uma lei restringindo um aborto e a contracepção, afim de
aumentar a natalidade, apenas para mulheres mais velhas do que 40 anos ou com
pelo menos quatro filhos.
No meio de todo esse ambiente familiar, nos é narrado um leque de
violências na vida dessa menina, que relata todas essas constantes agressividades
com o olhar inocente de uma criança.
A realidade é narrada tão crua e diretamente, que não há como escapar
desse caráter cruel que o livro traz tão naturalmente. As brigas entre os pais, o
abuso sexual que o pai exerce sobre sua irmã (e suas tentativas de fazer o mesmo
com a narradora), o ato de matar frangos nas banheiras dos hotéis, e mais uma
variedade de acontecimentos citados na narrativa, são preocupantes justamente por
constituírem uma parte significativa do cotidiano da família, o que faz com que não
sejam vistas como abusos ou violências, e sejam apenas parte de uma rotina.

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Minha irmã também é louca, diz minha mãe, porque meu pai a ama como mulher
(...)

MAS MEU PAI SÓ QUER MINHA IRMÃ.

Minha irmã sabe tudo melhor do que eu. Apesar de ser só alguns anos mais velha,
ela já tem um joelho machucado. Meu pai atropelou sua perna com um trator, para
que ela nunca encontre um marido e fique sempre com ele.
(p. 31)

Os abusos que a protagonista sofre ou presencia são narrados com


indiferença por nunca terem sido categorizados como agressão, ou como errados.
Não existiu em nenhum momento uma conscientização, até onde a menina sabe,
todas as famílias funcionam dessa forma.
Durante a performance da mãe no circo, a menina ouvia a história da criança
que cozinha na polenta, que sua irmã lhe contava, para que pensasse na dor da
criança cozinhando, e não se preocupasse com sua mãe que estava pendurando-se
pelos cabelos e poderia cair da cúpula. Isso repete-se durante todo o livro: sempre
que estão em uma situação de dor, medo ou experienciando qualquer sentimento
desagradável, a menina e a irmã pensam, cada vez mais cruelmente na dor da
criança que cozinha na polenta.
Essa graduação tem a função de enfatizar o amadurecimento. Mas não
qualquer um, e sim um amadurecimento em um ambiente nocivo. A dor da
narradora torna-se cada vez maior, e acumula-se cada vez mais, além do fato de
que ao crescer, torna-se mais difícil sentir a sensação de medo apenas ouvindo
uma história. Daí surge a necessidade de intensificar a história da criança que
cozinha na polenta: para amenizar a dor que crescia junto com a menina.
São diversos os trechos que evidenciam o impacto negativo que todo esse
contexto despertou na personagem principal, que demonstra momentos de uma
angústia profunda e adulta demais para sua idade.

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Queria ser como as pessoas lá fora. Lá, todos sabem ler e sabem das coisas, eles
têm alma de farinha branca.
Queria estar morta. Todos chorariam no meu enterro e se sentiriam culpados.
A tristeza envelhece.
Eu sou mais velha do que as crianças no estrangeiro.
Na Romênia, as crianças nascem velhas, porque já são pobres dentro da barriga
das mães e ficam ouvindo as preocupações dos pais.
Aqui, vivemos como no paraíso. Mas, mesmo assim, eu não fico mais jovem. (p.42)

A narradora nos conta sobre como seu pai abusa de sua irmã, e como sua
mãe se apresenta como sua irmã mais velha na frente de outros homens, e são
atitudes como essa que fazem com que a menina tenha um comportamento precoce
em relação a desejos sexuais. O sentimento de rejeição pela parte do pai faz com
que ela queira chamar sua atenção, por exemplo oferecendo o que ele tanto gosta
na sua outra filha, e a admiração que ela tem por sua mãe faz com que ela
reproduza suas ações.

UM DIA TAMBÉM ME CASAREI COM UM HOMEM RICO

Ou com dois homens, assim jamais ficarei sozinha. No dia do casamento, tocarei
suas partes proibidas por debaixo da mesa.
As pessoas vão comer bolo e ficar com inveja. Meus maridos vão me amar e me
lamber.
(p.70)

parte 2- cozinhando as desilusões em fogo alto

Minha mãe deveria morrer agora, eu pensava, assim a enterraríamos no jardim,


bem debaixo da nossa janela. No verão, os morangos teriam gosto de mãe.
(p.92)

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A narradora e sua irmã passam a viver em um internato, onde frequentam
escola e convivem com outras crianças, e não com os seus pais. Ainda assim, elas
não abandonam as habilidades circenses ou as outras influências que os pais
tiveram sobre elas.

Os meninos pequenos ficam perto das meninas. Os grandes só vem quando minha
irmã e eu mostramos nossas habilidades.
Fazemos malabarismos com pedras.
Ou fazemos movimentos de mulheres-borracha.
Minha irmã faz parada de mão, e eu faço ponte ou espacato.
Coloco algodão debaixo do pulôver para fazer de seio, como minha tia.
Daí os meninos também vêm.
Minha irmã já tem seios de verdade.
Ela também já tem alguns pelos lá.

Devido ao distanciamento da sua mãe, para menina, sua irmã mais velha
passou a desempenhar o papel de uma nova mãe, uma mãe com quem ela
beliscava os bebês até que chorassem, uma mãe que lhe contava a história da
criança que cozinha na polenta, que agora tem rosto de galinha, cortada em fatias, e
com olhos estourados. A história da criança vai ficando cada vez mais cruel e
gráfica, como se a protagonista precisasse imaginar cada vez mais concretamente
para livrar-se de pensamentos negativos.

​A criança cozinha na polenta porque maltrata outras crianças.


Captura órfãos, amarra-os ao tronco de uma árvore e suga-lhes a carne dos
ossos.
A criança é tão gorda que sempre está com fome.
Ela mora em um bosque cheio de ossos, e, em toda parte, escuta-se alguém
roendo.
De noite, ela se cobre de terra e dorme tão agitada, que todo bosque
estremece. (p.102)

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As duas meninas consideravam-se (e de fato eram) de origem,
formação e essência completamente distintas de qualquer criança naquele
internato. Ambas demonstram um sentimento de abandono por parte dos
pais, com quem no máximo falam por telefone. É provável que por carência
do ambiente familiar (por mais conturbado que fosse), e buscando por
atenção, surgiram as brincadeiras violentas que são citadas no trecho abaixo.
Até como uma forma de contradição à mãe, que a fim de garantir o futuro
circense de sua filha, que seria sua breve fonte de dinheiro, vigiava a menina
de perto.

Minha irmã e eu temos nossas próprias brincadeiras.

Subo no seu ombro e me jogo nos pedregulhos do chão.


Ela bebe água do cocho das vacas.
Eu coloco terra no meu pão com manteiga.
Ela aperta o dedo na porta.
Eu me coço até sangrar.
Ela arranca uma mecha enorme de cabelos da própria cabeça.
Eu pulo de pernas abertas sobre a quina de uma cadeira.

Queremos ir para o hospital. (p.110).

As atitudes tomadas pelas duas irmãs no internato, podem ser interpretadas


como uma provocação direcionada aos pais, uma tentativa de atrair a atenção que
uma criança precisa receber durante sua formação. Mas, logo, com a separação
dos pais, houve a separação das irmãs, o que fez com que a única companhia para
a narradora no internato fosse Anduza, sua boneca. Sem a sua irmã mais velha,
que fora escolhida pelo seu pai partir para França, a protagonista ocupa seus dias
contando à Anduza a história da criança que cozinha na polenta, e em um desses
momentos, a boneca aparece como uma espécie de metáfora para referir-se a si
mesma:

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Desde que minha irmã foi embora, conto para minha boneca Anduza a
história da criança na polenta.

A CRIANÇA COZINHA NA POLENTA PORQUE FINCOU UMA TESOURA


NO ROSTO DA MÃE.

Minha boneca Anduza agora é minha irmã.


O pai de Anduza se chama senhor Sinistro. Desde que começaram a zombar
dela na escola, ela arranca os braços da sua boneca. Às vezes, põe botões
no pão com manteiga e mastiga-os.
Anduza só chora quando tem dor de dentes.
Um dia desses, a senhorita professora bateu em Anduza por que ela fez xixi
no chão. Você ficou louca!, gritou a professora. Todos ouviram e começaram
a rir. A boneca de Anduza, desse dia em diante, passou a fazer xixi no chão.
Ela sempre apanha, e Anduza grita: Você ficou louca!

O pai de Anduza sempre põe a mão debaixo da saia da boneca. E faz olho
de peixe. E respira como debaixo d’água.
Um dia Anduza terá de jogar a boneca fora. (p.121-2)

Ao interpretarmos Anduza como a protagonista, esse trecho é muito


revelador, isso por ser primeira vez que são narradas lembranças de um abuso que
ela mesma enfrentou com seu pai. Além de fazer referência ao tema de um
amadurecimento, que aparenta ter sido compelido, precoce e traumatizante:

(...) invento o meu próprio castigo.

MEU PAI MORREU DE AUSÊNCIA.


MINHA MÃE VIVE NA IMPOTÊNCIA.
MINHA IRMÃ É FILHA SÓ DO MEU PAI.
EU CRESCI AOS POUCOS.

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E não quero filhos.
E não quero filhos.
E não quero filhos. (p.123)

A insistência da menina em não querer ter filhos, parece ter relação com seu
sofrimento como uma filha. Isso nos indicia que a menina acredita que as condições
que ela enfrenta em sua família, são vivenciados por todos filhos e filhas.

parte 3- efervescência

NÃO LEMBRO COMO ERA O CHEIRO DA MINHA MÃE ANTES (p.129)

Quando a narradora deixa o internato, são perceptíveis algumas mudanças.


Por mais que ainda exista uma preocupação em relação a sua mãe, já denunciadas
de forma mais clara a agressividade e bebedeira de sua mãe, e a aversão que a
menina apresenta nessas situações.

Minha mãe bateu na minha irmã, caiu contra uma vidraça e cortou os pulsos (p.129)

Minha mãe não está satisfeita.


Ela bebe mais vinho branco que antes.
Estes medicamentos me matam, diz, só os suporto com vinho.
Não escuto mais meu coração!
Ela não mata mais galinhas. A comida não deve mais ser tão saborosa como antes.
Desde que ela não pode mais ficar pendurada pelos cabelos, comida boa só
engorda (p.136)

Após sofrer um acidente e não poder mais realizar seu número no circo, tudo
indica que a mãe da menina enfrenta um quadro de depressão. Além da
dependência evidente do álcool, tudo que antes lhe trazia prazer em fazer, como

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matar o frango e cozinhá-lo, não lhe interessava mais. Seu apetite também parece
bastante desprovido.
A menina de 13 anos e a construção de sua carreira, parecem tornar-se a
motivação da sua mãe, que acaba expondo a pré-adolescente à situações
deploráveis.

(...) já na primeira vez aconteceu tudo errado.


Minha mãe e eu fomos recebidas, o produtor olhou as fotografias. Depois, me levou
para um quarto com uma cama de casal e ligou alguns refletores.
Minha mãe teve de esperar do lado de fora.
Imagina seu cãozinho sendo atropelado, disse-me ele.
Ali, em cima da cama!
Eu pus as mãos na cabeça, gritei e me debati.
Está bem! Está bem!, disse ele. Agora eu saio, você tira a roupa e repetimos tudo
outra vez.
Quando eu estava começando a tirar a roupa, minha mãe invadiu o quarto gritando,
pegou minhas coisas e me arrancou daquele apartamento.
Isso é a máfia, estupram crianças! Polícia!
Que mundo é esse? Uma catástrofe! Sou romena, mas não sou burra! Vou contar
na televisão o que você queria fazer com a minha filha! (p.140)

Ambas, a mãe e a menina, ganham companhia. A mãe tem um novo marido, e a


menina um cão chamado Bambi, de quem cuida como seu filho. Ela diz que quando
Bambi fica com medo, ela conta-lhe a história da criança que cozinha na polenta. A
protagonista parece querer provar sua maturidade, mas acaba admitindo a
dependência que ainda sente.

Tenho medo que me deixem sozinha em uma cidade desconhecida. Não


saberia a quem recorrer.
Estou proibida de sair sozinha para rua e, se saísse, me perderia. Não consigo
lembrar onde ficam os prédios e qual o nome das ruas, tenho a sensação de que as
ruas estão constantemente sendo montadas e desmontadas.

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TENHO A SENSAÇÃO DE ESTAR DESMORONANDO (p.143)

Sua mãe e seu marido passam a praticar truques de mágica, com


esperanças de apresentar o número em casas noturnas. Mas, pela preferência dos
proprietários, a menina substituí o marido na performance e passa a apresentar-se
com sua mãe.

Em um desses clubes, PEPITA, a diretora de um espetáculo de variedades, me


descobriu.
Agora estou no espetáculo de variedades.
No início, eu dançava com outras mulheres.
As apresentações foram ficando cada vez mais numerosas, e Pepita foi me
colocando cada vez mais para a frente.

O CORPO - é assim que sou anunciada em cada nova cidade, em cartazes de


tamanho natural.

Pepita queria que eu me apresentasse nua (p.148)​ .

A partir desse momento do livro, percebemos que a protagonista está


inserida em ambientes que não deveria frequentar com sua idade. E que a
sexualização do seu corpo é o que sustenta a família. No palco, a menina encontrou
a fama e atenção que tanto aspirava, e por esse motivo, orgulhava-se de suas
performances apelativas.

Minha mãe sempre me espera atrás do palco com um roupão.


Minha filha ainda é virgem porque a trago ali, no cabresto!
Ela não perde nenhuma oportunidade de me dizer que eu sou uma criança e que
ela me salvou do produtor que queria me violentar.

Do acidente pra cá, nasceram várias peles na minha mãe.

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Cada pele parece pertencer a uma mulher diferente.

Nenhum homem jamais me tocou lá, no lugar certo. Não penso em outra coisa.
Quero ser violada por dois ao mesmo tempo (p.149)

No trecho a cima, está claro (até para própria narradora) as contradições que
aparecem nas ações da mãe, que parece reconhecer que aquele contexto pode
prejudicar sua filha. Talvez por sentir-se culpada pela inserção de sua filha naquele
ambiente, ela em alguns momentos age como se não incentivasse que a menina se
apresentasse. Mas, logo percebemos, que é tarde demais para reparar a noção que
a menina tem de sexualidade, e até mesmo de sexo. O uso da palavra violada é
muito interessante, pois evidencia um desconhecimento do sexo como prazer, e
apenas como agressão.

Pepita é minha agente.


Sou o seu melhor produto, diz ela (p.151)

CRESÇO AO CONTRÁRIO.
A cada ano que passa, minha mãe tenta me fazer mais jovem.

Ainda sou uma criança que necessita de proteção, diz ela.


Criança! Já viu uma criança assim? (p. 155)

A narradora parece insegura com esse contato súbito com a sexualidade e


questões do universo adulto. Não se denomina mais como criança, e apresenta uma
lascividade considerável, ao mesmo tempo diz ficar envergonhada quando um
homem lhe olha por muito tempo.

Ouvi ela dizendo para seu marido que eu devo ter provocado o homem, do
contrário isso certamente não teria acontecido.

Você é como seu pai!

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O homem e a mulher apareceram de repente no espetáculo de Pepita.
Disseram que eu era linda como Marilyn Monroe.
Minha mãe me apresentava como se eu fosse uma fatia de torta. Eu tinha de
fazer voltinhas e sorrir.
Vou fazer da minha filha uma atriz de cinema! Ela tem uma beleza natural!
Ela vai se casar com o príncipe Alberto, de Mônaco. Belo homem. Quando vir minha
filha, ele vai ficar louco! Ela é inteligente, só estuda, não bebe, não olha para os
homens, nada de taca-taca, nada de putaria! (p.163)

A mãe evidencia a sua reprovação perante o envolvimento de sua filha com


homens, e responsabiliza a menina completamente. Existe um prazer imenso pela
parte da mãe em exibir sua filha para os espectadores da performance, ressaltando
sua criancice e virgindade.

Minha mãe convidava todos para comer, sentávamos à volta de uma grande mesa,
na frente do nosso trailer.
Na fotografia, parecemos uma grande família.
Depois da apresentação, os meninos ficavam dormindo no trailer, e nós saímos pra
dançar.
O homem me tratava como se eu fosse sua filha.
Ele pegava minha mão e colocava sobre seu joelho.
Minha mãe e a esposa dele riam.
O marido da minha mãe me olhava com olhos estranhos (p.164)

Nesse momento da narrativa, a única personagem que enxerga de fato a


intenção do homem é o marido da mãe, que parece ficar incomodado com a
situação. A mulher e a mãe levam na brincadeira e a menina considera aquele um
carinho paternal, e não considera que o homem pode ter intenções sexuais.

De um momento para o outro, ele abriu a calça, tirou a sua coisa para fora e
começou a esfregá-la até espirrar um líquido branco.

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Eu não tinha coragem de me mexer.
O homem colocou os dedos nos meus lábios.
Lambe, sussurrou. (p.168)

É perceptível pela narração e postura que a menina toma durante a


experiência vivenciada, que existe um despreparo incontestável. Em todas as
intimidades que experienciou com esse homem, apresentou um carácter imperativo,
preocupado apenas em satisfazer o seu prazer.
Pouco depois, a menina passa por uma experiência traumática: a morte do
seu cão. De acordo com a protagonista, ela teria fechado a porta na cabeça de
Bambi por acidente, o que teria causado sua morte. A solução que encontrou, foi
congelar o corpo do cão para que não apodrecesse. O sofrimento dessa perda é
descrito em um parágrafo, que também cita outras frustrações que vivia naquele
momento:

Meu cãozinho corre pelas ruas, ele é um esqueleto, não tem carne, posso enxergar
através dele. Todos que virem o meu esqueleto podem me castigar. Você não pode
chorar, diz a boca, senão a mãe fica com medo. A boca está sempre com fome,
boca, fome, fome, costurar a boca! Não gosto de bonecas. Minhas pernas são de
uma outra, elas enchem o quarto inteiro. Tenho um buraco, ele sangra. Isso não é
nada, diz a dos cabelos negros, você fez nas calças, diz ela, sou sua mãe, diz ela.
Encho o buraco de pão, não quero sangrar nas calças. O CÉU PARECE UMA VEIA
DE OLHO ESTOURADA. Não quero que o comediante PIPER me toque! Não
quero! Eu e minhas pernas encenamos com ele o esquete A VIÚVA ALEGRE no
show de Pepita. Amanhã, chega de comida! Se PIPER durante A VIÚVA ALEGRE
me tocar, meus seios apodrecerão. Amanhã, parar de comer, tudo tem gosto de
plástico. Assim não dá, diz Pepita, pare de comer, ela diz, você está cada vez mais
gorda, você está muito diferente do que no cartaz, assim não dá! O cão está morto.
Colocar o cão na caixa de sapato, a caixa, na geladeira. Os pelos do cão morto
crescem, cobrem inteiramente o cão, a caixa, a geladeira, a mim, o quarto. Um anjo

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veste-se de cão, cão degolado, empalhar o anjo morto. O anjo de dentes
arreganhados. Meu anjo sorri sangue. (p.176)

Esse parágrafo, que é uma espécie de homenagem feita para o cão da


menina, traz um tom macabro que lembra muito a história da criança que cozinha na
polenta. Considerando o contexto que a protagonista encara nesta parte da
narrativa, podemos assumir que essas reflexões assumem a mesma função que a
história da criança: amenizar ou tentar interpretar o sofrimento que ela experiencia.
Logo no início do parágrafo, a personagem mostra uma certa preocupação
em mostrar sua tristeza para a mãe, e parece optar por não expressar como
realmente se sente e omitir os pensamentos mórbidos.

Temos de ter uma vida boa.


Sou grata. Estou feliz de estar aqui.
Estou bem. (p.177)

A protagonista diz: ​“Pareço comigo sem mim”​ . Essa é um bom trecho para
exemplificar o momento e a sensação que vivia, que envolve sua demissão do show
de Pepita, problemas de pele (chamadas de “erupções” pela menina), e o que
parece ser uma angústia penosa, quem sabe até um quadro depressivo. Assim é
encerrada a parte 3 do livro.

parte 4 - a conclusão de um ciclo

Eu tinha imaginado a felicidade bem diferente (p.184)

A parte final da obra é onde é possível analisar a obra como um todo, e


verificar os impactos que a criação da menina gerou na sua vida adolescente. Sem
dinheiro para se sustentar, a mãe e a narradora partem para a casa da tia. A menina
retoma os estudos, mas dessa vez em uma escola de língua estrangeira, onde não
parecia se sentir nada à vontade. Essa não era a única experiência inédita para a
protagonista, ter uma casa fixa também era uma grande novidade na sua vida, e ela

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parece ficar bastante impressionada com os móveis, roupas, decorações
abundantes…

Minha mãe e eu trabalhávamos em uma fábrica de chocolates.


O marido da minha mãe não podia trabalhar. De tempos em tempos, ele tinha
de sair do país e reencaminhar o pedido de residência.
Ele e minha mãe viviam pensando em um jeito de ganharmos dinheiro.
Queríamos desviar chocolates da fábrica para vender por fora.
Mas minha tia jamais poderia ficar sabendo (...)

Minha mãe reformou algumas das suas fantasias do circo para vendê-las a
go-go girls.
Minhas fantasias do tempo de Pepita, temos até hoje.
Quando você se recuperar, poderá se apresentar onde quiser aqui, dizia
minha mãe. O público vai cair aos seus pés! O que essas go-go girls fazem você já
sabe há muito tempo! (p.188)

A mãe continua sendo um exemplo medíocre para a menina. Age sempre


com muita imoralidade, o que se evidencia na sua proposta roubar da fábrica, e
continua incentivando sua filha a entrar em um mercado que se sustenta na
exploração sexual feminina.

ANTES DE TER VISTO MEU PAI pela última vez, ele rodou um filme no qual
fazia o papel de Deus.
Minha mãe era a avó de Deus, e eu era o seu anjo da guarda.

Estou com o vestido de renda branca, com meias brancas até o joelho e
sapatos pretos de verniz. As unhas são cor-de-rosa, e as bochechas, vermelhas.

OS ANJOS SEMPRE TÊM AS BOCHECHAS VERMELHAS, DIZ MEU PAI,


PORQUE APANHAM MUITO AR FRESCO.

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No papel de Deus, meu pai veste o seu velho fraque preto.
Minha mãe enrolou-se em um pano, como as velhas camponesas romenas, e
vestiu o seu roupão floreado de tecido de cortina por cima.
No início do filme, vê-se meu pai como diretor de circo, com um fraque
vermelho.
No jardim da avó, que mora no campo, diz ele, há uma árvore debaixo da
qual sempre chove.
Então, vê-se o meu pai, no papel de Deus, sentado embaixo da árvore.

DEUS ESTÁ TRISTE.


ELE TOCA UMA CANÇÃO HÚNGARA NO VIOLINO.

A avó está na janela e acena com a mão, ela preparou a polenta para Deus.
A canção do violino é tão triste, que a grama, as flores, e as árvores do jardim
também ficaram tristes.
O diretor do circo aparece novamente e diz que a cerca do jardim, a janela a
porta e até a polenta começam a chorar.
A avó sacode a cabeça e diz uma frase que não se ouve, porque ela está
dentro da casa.
Boxi atravessa o gramado.
Traz asa de anjo cor-de-rosa na boca e levanta-se sobre as patas traseiras
em frente a um arbusto, de onde eu saio.
Coloco as asas e vou saltitando com Boxi até árvore da chuva.
A chuva cai de um regador.
O anjo da guarda e Boxi dançam a triste melodia de Deus. Mas, mesmo
assim, Deus não consegue se alegrar.
O diretor de circo aparece e diz: Deus come polenta por amor aos pobres.
Ele também é um estrangeiro e viaja de país em país. Ele está triste porque vai
partir outra vez para uma grande viagem.
A avó chora.
Boxi também chora, encolhe o rabo e abana as orelhas.
O anjo da guarda continua a saltitar.

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OS ANJOS DA GUARDA NUNCA FICAM TRISTES, DIZ O DIRETOR DO
CIRCO, ELES EXISTEM PARA ESPALHAR ALEGRIA (p.194)

Com a descrição desse suposto roteiro gravado pelo pai da garota, é


concluído o livro. É possível interpretar, com base em toda a obra, mas
especialmente esse trecho, que a menina tornou-se uma espécie de anjo da guarda
para sua família. Ela passou a sustentar toda família com o dinheiro que ganhava
com suas performances, e além disso, pressupondo que sua família já tinha
problemas demais para lidar, ela nunca demonstra a angústia para alguém. O
sofrimento da protagonista não é revelado em nenhum momento para outra
personagem apenas para o leitor.

por que é mais do que uma autobiografia?

Devido a semelhança entre a vida de Aglaja Veteranyi e a narrativa escrita


por essa, podemos deduzir que a obra dispõe de diversos aspectos autobiográficos.
Ainda sim, no prólogo do livro já é apresentada a ideia de que ele é construído por
fronteiras, sendo estas constantemente permeáveis e indefinidas. A obra quebra
barreiras entre a realidade e a imaginação, entre o sonho e a desilusão, entre a
poesia e a prosa, e claro, entre a ficção e a autobiografia.
Na linguagem também está presente o jogo de transposições e
simultaneidades, abordada ora de maneira poética, doce, ora de maneira brutal e
grotesca. Mas mantendo-se sempre concisa. Esse é um contraste muito evidente:
entre a intensidade da narrativa e a brevidade dos fatos.
Nesse momento, apropriarmos do conceito de ​devir-criança proposto pelos
filósofos franceses Gilles Deleuze e Félix Guatarri, talvez nos ajude a compreender
a perspectiva da criança nesse romance. Segundo Deleuze, escrever não tem a ver
com os problemas pessoais de cada um, a literatura teria fundamentalmente a ver
com a vida. Sendo a vida qualquer coisa superior ao que é pessoal. Escrever é
sempre se tornar alguma coisa, ou seja, escrever é devir, é se tornar.

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Devir-criança, porém, não é tornar-se uma criança, ou agir como tal, e sim
entrar em contato com esta potência que faz caminhos, percorre trilhas, explora:

Devir é um encontro entre duas pessoas, acontecimentos, movimentos,


ideias, entidades, multiplicidades, que provoca uma terceira coisa entre ambas, algo
sem passado, presente ou futuro; algo sem temporalidade cronológica, mas com
geografia, com intensidade e direção próprias (Deleuze; Parnet, 1988, p. 10-15)

O devir-criança da literatura se direciona, não para a infância do sujeito que


escreveu, mas para uma infância do mundo. Um devir é algo "sempre
contemporâneo", que portanto, é um leque muito amplo, que se aplica à cenários
diversos.
Mesmo com um fundo autobiográfico, Aglaja não recai no mero
memorialismo. Na construção das personagens, nomes próprios, características
físicas, ou qualquer coisa que limitasse a identificação com essas, foi abolido da
narrativa. Isso parece ser uma escolha da autora, que optou por não especificar
muito as personagens, a fim de abranger e generalizar ao máximo. A reinvenção de
si que Aglaja pratica nesse romance e a maneira que se arrisca na fabulação, é o
que garante a presença do devir-criança na narrativa.
Ao não se ater à realidade absoluta ou a uma análise lógica dos
acontecimentos, a autora não se prende a identidades e limites. O resultado é uma
mescla do real e do imaginário numa busca expansiva de fuga e de zona de
vizinhança com uma infância do mundo.

o impacto da infância na formação do ​self

O adulto pode ser considerado o resultado da soma de sua natureza, das


relações com a família e grupos sociais, valores, crenças, normas e práticas. Nos
últimos cem anos, o argumento de que a infância é decisiva na formação do
adolescente e do adulto, passou a ser sustentada por diversos estudos e pesquisas
científicas. Recentemente, a neurociência evidenciou que episódios precoces de

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natureza física, emocional, social e cultural permanecem inscritos por toda
existência nas conexões sinápticas do ser humano.
Experiências negativas durante a infância podem gerar um trauma, que na
visão da psicologia, ocorre pela incapacidade do sujeito de superar um determinado
acontecimento na sua vida. Os danos que um trauma causa depende da
intensidade da violência sofrida e a capacidade da pessoa de elaborar
psiquicamente a situação ocorrida.
Podemos usar como exemplo, a neurose. A neurose é causada por um
trauma, que vai gerar um conflito entre o desejo do sujeito e as repressões criadas
pelo ambiente externo (família, escola, igreja, etc) e também pelo ambiente interno,
ou seja, nossa autocensura, pois nossa liberdade de ceder aos nossos desejos,
será limitada de acordo com a nossa criação e o meio no qual vivemos.
Crianças, por serem inocentes, indefesos, carentes, e despreparados para a
vida, precisam de alguém que supra as suas carências para um desenvolvimento
ideal. Caso contrário, os traumas surgem e, na sua grande maioria, são carregados
para a vida adulta. Essas sequelas formarão um adulto inseguro, e com medo de se
aventurar, alguém que vai se ver sempre como desamparado, abandonado e
solitário.
Na origem do trauma, também consta a culpa que a criança sente por não
entender se foi responsável por determinada situação de violência. Podemos
classificar como violência qualquer acontecimento que a criança tenha vivido e
tenha sido agressivo à ela, podendo ser brigas entre os pais, xingamentos,
chantagem emocional, drogas ou bebedeiras na sua frente, tentativa de estupro,
incentivo à prostituição infantil, etc.
​ xperienciou
A protagonista da obra ​Por que a criança cozinha na polenta e
todas das violências citadas acima, portanto não seria uma surpresa caso ela se
apresentasse como uma adulta insegura e com falta de autonomia. Com nível da
intensidade e constância que as agressões se deram na infância (e adolescência)
da menina, é difícil presumir que se tornaria uma pessoa estável, livre de sequelas.
Porém, não há como confirmar essa hipótese, pois a narrativa se encerra quando a
personagem ainda é jovem.

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De qualquer maneira, a menina revela pensamentos violentos e mórbidos
desde criança, que parecem indiciar algum tipo de transtorno psicológico. E
considerando a semelhança existente entre a vida da autora e as vivências
relatadas pela protagonista no livro, não podemos ignorar o fato de que Aglaja se
suicidou, com 34 anos, afogando-se no lago de Zurique. Esse fato, de alguma
maneira reforça a ideia de que a personagem (que passou pelas mesmas
experiências que Aglaja viveu) teria sofrido algum impacto proveniente da sua
criação conturbada.

conclusão

A obra dispõe de diversos aspectos revolucionários que entram em sublime


harmonia. A escolha da narradora, a forma do texto, o carácter autobiográfico, a
crueldade escancarada, a inocência e até o vanescer da mesma; tudo consolida
mais a obra e a sua fidelidade em relação à como seria o olhar de uma criança
perante a toda essa conjuntura que a protagonista vive, e qual seriam as possíveis
repercussões que uma infância como essa geraria.
Tanto Aglaja quanto a personagem acabam por se adentrar no mundo da
exploração sexual infantil/adolescente, o que provavelmente geraria mais impactos
negativos no futuro, já que se trata de um ambiente competitivo e violento.
A infância de um indivíduo tem um grande peso na pessoa que vai se tornar
e no rumo que sua vida vai levar. É o momento de materializar nossos valores,
crenças, e objetivos que levaremos para o resto de nossos dias. É o momento
crucial que vai definir a pessoa que, aos poucos, estamos nos tornando.

Bibliografia:

VETERANYI AGLAJA.​ Por que a criança cozinha na polenta.​ São Paulo. 1. ed.DBA,
2004. 198p

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Deleuze, Gilles. "Infância". In: Abecedário. Web
Http://Stoa.Usp.Br/Prodsubjeduc/Files/262/1015/Abecedario+G.+Deleuz e.Pdf Acceso:
06/08/2016.

Kohan, Walter. “O Conceito De Devir-Criança”. In: Infância, Estrangeiridade E


Ignorância. Ensaios De Filosofia E Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.

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