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a6 MARTA ©} progresso de Marilia toma consisténcia na oulorieacio que exerce enquanto filha, me e profissional, isto 4, toma simbdlica uma divida impagével, antericrmente vivida como divida real que the demandava parte de seu corpo, através do uso da droga ou da enirega da filha. A Mae encarnava o credor da divida, como Outro Real. © teabalho com esia paciente foi no sentido de dar ouvidos ao sujelio que n4o conseguia nunca se validar, possibilitando-Ihe uma imagem sobre a.qual pudesse arriscar-se a enunciar sua verdade. Corno psicanalista, o melhor a fazer na clinica de foxicémanos é oferecer uma escuta, um superie, um corte simbédlico que pade sex através da hospitalizagéo,.mas néo cabe fazer cargo de uma respon- sabilidade de indicar 0 que seria o bem do paciente. Para finalizar, gostaria de situar que 0 ato de drogar-se ou de abster-se s6 tomar algum sentido na seqiiéncia da axticulagao sig- nificante do paciente, portanto, « posteriori. Bibliografia LACAN, Jacques. O avessa de psicanétise, Rio de Janeiro: J, Zahar, 1992. MELMAN, Charles, Alcooliswio, delingtiéncia ¢ toxicomanie: uma outre forma de gozar. Si Paulo Escuia, 1992. PERIT, Patrick. Toxicomania # fungéo paterna, In: OLIEVENSYEIN, C. A clinica do toxichmano: a faite de falta, Porto Alegte: Artes Médicas, 1990. A psicandlise na transdisciplinaridade Jaime A. Belts" Bom dia, eu: sow psicanalista ¢ fags parte da APPOA. Gostaria de falar hoie a respeito de um tipo de trabalho com o qual a psica- nalise tema muito a ver. E um trabalho que caracterizei aqui como: “A Psicandélise na ttansdiscipiinaridade”, e para falar sobre isso, gostaria de apresentar a vocés, talvez néo conhecam ainda, uma insituicdo da qual sou um dos fundadores e que implica justamente a transdisciplinaridade. Trata-se do Instituto da Mama do Rio Gran- de do Sul, fundado hd mais ou menos um anoe meio; é uma entidade gem fins lucrativos ¢ evidentemente o gue esid implicade ai é a questac da satide nos aspectos da mulher especificammente relacio- nados & mama. Obviamente o problema de fundo, a preocupagao ynaior em relacio a isso, 6c cancer de mama que, como yocés sabem, éum problema importante em termos de satide piiblica, sendo a doencs que mais mata mulheres entre os vinte e os quarenta anos de idade. F, nés, ne Bio Grande do Sul, com relagiia a essa deenca, alcancamos niveis de Primeito Munda, Isso quer dizer que, estatis- ticamente falando, a probabilidade de vir a ter cancer de mama ao longo da vida, aqui na nossa realidade, no Rio Grande da Sul, é de 1 Membro da Associagdo Psicanalitica de Porto Aiegre, RS. 68 JARGE 4. MEPs um para doze. Fouma probabilidade bastante grande, mas isso nao quer dizer que uma em doze tem a doenga. O Institute da Mama é para quem quiser se engojar nesse trabalho com atividades volunté- rlas ow profissionais nas muitas dreas possivels. A gente pode se perguntar o que a psicandlige, ou um psicana- lista tem a ver com um problema desse tipo. Ocorre que abordar um campo especifice do sofrimento humano numa perspectiva trensdis- ciplinar, implica que as diferentes disciplinas que se ocupam desse problema, no caso, a medicina, a fisioferapia, @ antropologia, a psicandlise, a terapia ocupacional, enfim,a educag&a, é fundamental que elas possam dar lugar a uma interpelacdo de sujeito. interpelar umn sujeite requer que nao se use o saber do nosso campo de atuagao profissional para calar a boca’ das “pessoas que 65 16 ali, e que precisam falar ¢ ser ouvidas. Q mais facil é se utilizar do saber médico, psicolégico, psicanalitico, educative, quidlquer que seja, e usé-lo para calar o sofrimento humano da mulher, dos familiares e do cifculo mais atnplo dé amigos, parentes e pessoas préximas. Acredito que isso seja da ordem da experiéncia de vida de todos vocés. Certamente vocés conhecem alguém. que ja ieve um cancer e sentiram essa vealidade. A repercussio queo problema tem nos {lacos socials e familiares. O mais comum 6 que se pegue wm saber qual- quer para botar uma pedra em cima daquela angtistia. Como é que geralmente as coisas acontecem? A mulher sente alge no seio, vai ao médico, faz exames e pergunta; “Doutor, o que € que ev ferthe?” Ho doutor diz: "Tu fens cancer de mama", “Doutor, 9 que é que ex fago?" E o médico prescreve um tratamento. Eo sofrimento daquela pessoa, como o esté encarando e suportando a indagacde, a interpelacdo, via de Tegra rio tém lugar. Ela freqtien- temente nao tem chance de falar sobre isso. Pelo comtrario, a tendén- cia é entrarrem certo jogo, e tam dos piores possiveis $0 que a gente chama de compié do siléncio. E aquela histéria, vaio casal e a familia para consuliar, e alguém j4 sabe o resultado, Entio o médico esté ali com a paciente, com. o familiar por detrds dela gesticulando para o médico nao dizer o diagnéstico “pois ela nao ira suportar a noticia”; ou entdo, antes da consulta, a Paciente esté com o médico e diz a ele: “Doutor, nao diz para o meu marido, porque ele no ird agtientar!”. fas vezes se entva nesse jogo, nesse complé, onde se silencla o que esta ocorrendo, nado dando lugar a fala e & expressaio da angristia de quem est4 colocade diante de uma doenca potencialmente mortal, mas implica gozo, o goze do Outro. Ejustamente o que mais apavora PSICANALIGE EB SINTOMA 8 TE é9 as pessoas, fszendo com que se silencie de um jeito ou de cute. Pode Set essa maneira mais caricata, ou pode ser usando um saber para calar a boca de tode mundo, em. que o profissional tex @acalmar aos ovtros usando esse saber. Bem, o que é grave nessa situacas é que aquilo que é silenciado, 0 que nde encontra lugar para ser dito, de alguma maneira vai se manifestar. E, conforme o recurso utilizade para silenclar o que est4 em questao, isso vai retommar, ndo no Simbdlica, ¢, sim, no Real do corpo. O que ¢ uma perspectiva transdisciplinar, entio, diamte de um contexto destes? Trata-se de uma abordagem em que, tanto a area instrumental e médica possam tomar o corpo de um sujeito, assim como 4 psicandlise possa tomar ao sujeite falante, sem negarem o real do corpa, mas tomando esse corpo como receptaculo de olhar do Outro. © grande Outro é o lugar da linguagem, de onde vem e pata oride vai aquilo que a gente diz, capturando esse corpo numa rede simbélica. O olhar da mame sobre o seu bebé fornece a esse corpo uma imagem e inscreve sobre © corpo uma marca com a qual esse sujeito possa se identificar. O corpo, enquanto receptaculo do olhar do Ouivo, da marca que o Outro inscreve sobre esse corpo, instaura nesse corpo bioldgice um funcionamento outra, instaura um regime de duplo funcionamento. © corpo pode perfeitamente ser abordade do ponte de vista biolégico, que 6 o que a cléncia faz. A biologia estida o corpo. Os corpos sdo todos iguais. Obedecem as mesmas leis e ndo ha sujeito ali; é um corpo bielégico. Posso fazer meus experimerttos com urna cobaia e que, se der certo muma cobaia, provavelmente vai dar certo na cobaia humana. Desse ponto de vista, para a cléncia somos todos cobaias, e cancer é uma area em que a gente encontra bastante disso. Quando se esgotaram os recur- sos habituais, coloca-se para o paciente: "Otha, tem essa draga nova, a gente pode experimentar.” ¢ a pessoa, desesperada, se submete & droga que for para ver se isso resolve seu caso ou ndo. da marca do Cutro, do olhar do outro sobre esse corpo biolégico instaura outro funcionamento, que é o funciona- mento e um corpo pulsional, de um corpo erégens, ¢ esse corpo é bastante diferente do biolégico. Na verdade ele subverte o corpo biolégico, fazendo com que a succdo do bebé, por exemplo, seja algo que zapidamente deixe de ser simplesmente uma succdo de alimen- tagdo para passar a ser algo que implica toda uma erogeneidade e uma satisfac&o pelo préprio succionar. H4 um deslocamerito de uma FO JAIME A. BEFITS necessidade biolégica er direcSo a algo que extrapola, que subverte este bioldgico, transformando este corpo num. corpo erdgeno. Trabalhar numa perspectiva de transdisciplinaridade implica que, no trabalho, ndo sé os pacientes, mas também os profissionais estejam confrontados, colocados diante de uma interpelagdo da sua_ subjetividade. & acoisa mais comum do mundo, diante de uma coisa pesada como uma paciente, uma familia frente ao problema do cancer, se defender com o saber, nado dando lugar a essa interpelagao. © trabatho da transdisciplinaridade implica justamente ir além do saber de cada area profissional, interpelando o sujeito, seja a pacien- te, os familiares, seja o profissional também. Por exemplo, alguns cirurgides plésticos tém um prazer todo seu, que é¢ ir no corpo de alguém e fazer uma série de modificag6es que eles consideram um melhoramento sobre a natureza, e afirmar que os problemas das pessoas podem ser resolvides dessa maneira. Dizem que, modifican- do a posicio do seu nariz, isso vai tornar a pessoa mais realizada, mais feliz e de bem com a vida. Agora, em se tratando desse campo do qual eu estou falando para vocés, a questao é um pouco diferente do que a cirurgia plastica estética, pois entramos na linha da recons- trug&éo da mama que foi mastectomizada, que foi extirpada, toda ou em parte. Trata-se entao de uma cirurgiareparadora, que coloca algo ne lugar do que foi perdido. O médico diz: "Tu perdeste a tua mama, mas eu te dou outra e fica tudo bem", Se vocés pensarem na questéo um pouquinho, verdo que se colocou algo no lugar, melhor isso do que ficar o vazio em relagdo A mama que foi retirada, mas no se esta colocanda de volta o que se perdeu. Pode-se usar 9 saber cientifico e dizer: "Tu perdeste isto, mas eu te dou uma outta mama. A gente faz assim, bota silicone, ou pega o muisculo reto-abdoiminal erecons- tréi, etc”. Pode-se fazer o que a ciéncia possibilita e teutar tapar o buraco, Um irabalho transdisciplinar implica que o cirurgiao plasti- co possa oferecer essa aliernativa a sua paciente, mas sem qu coi isso, ele ¢ ela se iludirem que o que esta sendo colocade ali veri’ realmente substituir o que se perdeu. E a questdo do que se perdeu é singular paya cada mulher. ff muite facil para os psicdlogos ou analistas pegarem um saber e generalizar sobre o que se perdeu, sobre o que é a mama. Entrar nos lugares comuns do que os seios topresentamt hoje na nossa cultura. Outra coisa é perguntar a uma mather o que foi que ela pexdeu e por que a doenya surgiu naquela parte do seu corpo nesse momento da sua vida. Outra coisa é perguntar-se dentro de que rede subjetiva isto esté colocado, tanto PSICANALISE 8 SINTOMA SOCIALIG 7t para G médica, como para 6 psicanalista ou qualquer que seja o profissional; de como é defrontarem-se com isso que é tio angustian- te eponto de estigmatizacio na nossa sociedade, como é 0 casodessa doenga, que é temida, até porque, além de implicar 0 gozo do Outro, a ciéncia nao deu respostas definitivas para sua cura. Aliés, entre parénteses, a ciéncia esté se defrontando com sua propria castracdo, porque considerava ter debelado uma série de moléstias ¢ eis que descobre que as mutagées jé nao sdo detidas com as drogas que a ciéacia inventou, j4 ndo rescivem mais coisas que eram consideradas banais e superadas, como a tuberculose, por exemplo. Hoje formas mutantes de tuberculose nao so mais atingidas com os antibidticos conhecidos. HA outra coisa com relagio & transdisciplinaridade que é impor- tante levar em consideragio. Ocorre que um projeto de saber é contraditério com o projeto da psicandlise numa pratica transdisci- plinar, pois toda construcdo e saber se apdia, é fundamentada, na exclusio do sujeito, exclusdo justamente disso que faz cultura, que esta dividido. O projeto de construgao de um saber se ap6ia justa- mente na exclusdo do que é da ordem da subjetividade. O que interessa ao analista na pratica transdisciplinar é que as muiltiplas formas de exclusiio do sujeito e as conseqiiéncias que a exclusdo tem sobre a subjetividade, sejam incluidas dentro do trabalho da trans- disciplinaridade. Aquilo que wm. saber exclui para delimitar o seu campo, retorna de alguma maneira para dentro desse campo. Uma prdtica da transdisciplinaridade implica levar em considerac&o as formas de exclusiio, o que é ser excluido do campo do saber, de que maneira retorna e que conseqizéncias isso traz. Um exemplo pratico disso é a resposta médico-cientifica que, via de regra, diz o seguinte: "No teu caso, no estégio do desenvolvimento do ieu cancer, tu tens 86% de chances de sobrevida em 5 anas livre da doenga", Dessejeito, come 6 que o excluide retorna na cabega do sujelto? Hle fica atoonen- tado, se sentindo diante de uma roleta russa onde ele nado sabe nunca quando é que vai tex a bala no tambor que vai pegar nc corpo dele. CO sujeite que fica exclufdo, nessa estatistica, retora, na subjetivida- de da paciente, como uma loja de horrores. O que ndo esté colocado nessas perguntas é como scfremos, por que isse foi acontecer nesse rnomento da vida, por que em relagac a essa parte do corpo? Nao se dé lugar para que o sujeito possa falar. Ent&o, segundo Leclaire (1979), a contribuicgdo da psicandlise é poder interrogar a natureza disso que foi exclufdo, essas cercas do 72 JAA A. BEPTS saber. A. delimitacio de um campo do saber tem wna dupla face: wm, lado instauvra um campo determinado do saber, e o outro, essa exclusio que eu mencionei. Mas em relacdo a essa exclusdo esse limite, 0 que se faz na verdade é tentar extrapolas, ir além, oferecer préteses, extensGes ou alternativas, por assim dizer, a interdicao que instaura a exclusio e um gozo, que no caso é 0 gozo do Gutro. Dito de outro modo, a questiio para o analista é examinar de que modoa ciéncia desloca ou extrapola o limite fundamental da interdigao do gozo, fazendo dessa extrapolacio uma cerca para o seu proprio campo de saber. Acontece que todas as tentativas de delimitagaio de um campo de saber fracassam de algum modo, pois sempre falta algo para que esse saber seja a verdade. Retomando a questio da transdisciplinaridade, ela implica que, em todo saber, se possa pen- sar no proprio funcionamento deste saber, o que falta para que seja verdade, porque a verdade nao esta do lado de saber. Do ponto de vista da psicandlise, justamente a verdade é algo que s6 pode ser semidita, s6 surge no dizer do sujeito, a verdade teda, como tal, a falta. A especificidade do campo analitico é justamente o sett inte- resse na alteracdo que pode realizar sobre esse texto literal, que é a prdpria interdic&o. Para caracterizar 0 que estou chamando de texto literal, vou dizer, simplificando, que o texto literal é aquela malha simbélica que o sujeito percorre na sua existéncia e que os pontos de cruzamento sao as balizas em relac4o as quais o sujeito manobra no decorrer da vida. Esse texto literal éjustamente o que interdita 0 g020 do Outro e lida com o gozo possivel, um prazer possivel, de ordem félica, que 6 0 gozo que a linguagem propicia. O ponto de interven- Gao e operagio do analista 6, em relag&o a esse texto literal, subjetivo nas suas articulacSes justamente com os campos do saber. Essa articulagéo a gente chama de social, e esse texte literal, que é a propria intexdigic, é ¢ que constitui o campe da verdade, pois ele possui, came acabei de mencionar, uma acdo direta sobre o gozo. O enlendimento analitice nesse sentido n&o propée, no que se diferen- cla de outras cigncias, nem um acréscimo, nem um floreio, nem uma prétese, nenhum aparelho ou apéndice de gozo que passa ser apre- sentado como sendo mais vaniaioso, ou que tornaria o mal-estar e viver algo suprimivel. © analista vai trabalhar justamente em cima do texto literal, das problemas em telagio a essa interdic#o, de que inaneira se tenta extrapelaz, ulixapassar esse texto literal, essa inter- digiio e as conseqii@ncias que isso waz na vida de uma pessoa. Quando una mulher, um casal, uma familia procura um médico em PSICAINALISE F GINTOMA SOCIAL IT 73 funcio de que foi detectado um cancer de mama, se faz urna dupla pergunta, uma dupla demanda ao médico: pede-se, de um. lado, o conserto desse corpo, que o médico dé um jeito, que ele conserte o que est errado nesse corpo ¢, de outro lado, vem.a pergunta: "O que queeu tenho, doutor?" ea resposta é completamente taxativa: "éisso, éaquilo outro.” Quando o médico tem essa resposta diagnéstica para dar, ele determina o que vai ser feito, buscando a melhor reabilitagao possivel desse corpo. Mas o que faz da pergunta "9 que que eu tenho?" Surgem, ao mesmo tempo, perguntas desse tipo: “Por que eu? O que sera de mim? Quem sou eu? O que fiz para merecer um castigo desses? "Af vocés véem que se abre um outro leque de questées que nao é interessante tentar tapar. Pelo contrario, é 0 caso de dar lugar a essas indagages para que possam ter lugar e haja quem possa escutd-las. H nfo se trata de fazer de todos os profissio- nais envolvidos analistas, mas sin que possa haver uma escuta inicial para essas questées e que ele possa saber entdo fazer a indicacdo e, muitas vezes, tomar a paciente pela mao e leva-la até onde possa ser ouvida por um analista naquilo que essas perguntas implicam sua subjetividade. L4 podera expor as turbuléncias e os problemas que possa ter havide em relacao a esse texto literal e a interdicéio que falhou pontualmente na interdigao ao gozo do Outro em relacéo a esse problema somatico que surge no set corpo. Estou situando esse tipo de fenGmene dentro do campo psicos- somatico, em relagdo a um gozo do Outro que nae ficou pexelido em. relacio aquela parte do corpo, aquele ponto do corpo enquanto receptaculo da demanda do Outro. Esse texto literal que interdita o gozo pontualmente, essa castragao, essa interdigio é falha e resulta nesse tipo de curto cixcuito no funcionamento do corpo. Ha outros problemas que se desdobram em relagao ao fato de receber uma coisa nesse tipo de curto circuito no funcionamento do corpo. Ha outros problemas que se desdobram emi relagae a0 fato de receber umia noticia dessas. Ela é por si s6 uni elemento traumatico, causa uma desorganizacao psiquics maior, além da desorganizacéo psi- quica que é causa do surgimento de um problema sorndtico dessa natureza. O resultado, para usat uma expressdo de Ferenczi, é uma comosiic psiquica, o sujeits entra em estade de choque. & a neurose traumitica, tal qual Freud jA descreve em Além de principio do prazer (1920g). Com relaco a isso, indo em direciio a minha conclusdo para passarmos ao debate, vou ler um trecho de O Feiticeiro ¢ sua magia, de Claude Lévi-Strauss que diz o seguinte: "O individuo, consciente 74 JAIME A, BETES de ser objeto de um maleficio, é intimamenite persuadido pelas mais solenes tradigdes do seu grupo, de que esta condenado; parentes, amigos partilham dessa certeza.” (1985, p. 193) Vejam a semelhanca com a questéo do cancer, é o que esié colocado no grupo social: cancer é igual 4 morte, esta colocado na cabecga de todo mundo, embora racionalmenie a gente possa pensar e saber que ndo é bem assim, que existem recursos, etc. O que fica na cabeca é que o cancer é igual A morte e, portanto, o sujeito esta condenado. Continuando a citag&o: "Desde ent&o a comunidade se retrai: afasta-se do maldito, conduz-se a seu respeite como se fosse, ndo apenas ja morte, mas fonte de perigo para seu circulo; em cada ocasio e por todas as suas condutas, 0 corpo social sugere a morte & infeliz vitima, que n3o pretende mais escapar Aquilo que ela considera como seu destino inelutavel.” (1985, p. 194} Vocés véem como isso esté colocado no proprio discurso médico quando afirma, por exemplo, que alguém tem 50% de chances de passar cinco anos livre da doenca. Esta dizendo a mesma coisa, embora com um discurso diferente. Logo, celebram-se por ela os ritos sagrados que a conduzirao ao reino das sombras. Incontinenti, brutalmente privado de todos os seus elos familiares e sociais, excluido de todas as fungées e atividades pelas quais 0 individuo tomava consciéncia de si mesmo, depois encon- trando essas forcas tio imperiosas novamente conjugadas, mas so- mente para bani-lo do mundo dos vivos, 0 enfeitigado (ou doente) cede a acdo combinada do intenso terror que experimenta, da retira- da subita e total dos miltiplos sistemas de referéncia fornecidos pela conivéncia do grupo, enfim, a sua inversis decisiva que, de vivo, sujeito de dircitos e obrigacées, o proclama morto, objeto de temores, de ritos e proibicées. A integridade fisica nao resiste a dissolucio da personalidade social. Qual ¢ a eficdcia simbélica nas sociedades marcadas pelo indi- vidualismo, como s&o as sociedades ocidentais? Retomando esse texto, podemos dizer quea dissolugao e ruptura da rede literal social, dos sistemas de referéncia, expée 0 sujeite ac gozo do Quire sem meciagio. Esse gozo do Outro, Lacan o desenvolve no semindrio. Aluda, fala que esse gozo do Outro é um gozo que énocorpoe,sendo nu corpo, é mortal. Por que entdo as pessoas, a partir do momento em que se descobrem portadoras de uma doenca incuravel e que, além do mais, & um estigma social, por que elas ndo mortem sim- pleamenty em seguida, por puro e simples colapso do corpo, como arontece na magia do feiticeiro? © feiticeiro, quando esconjura al- PSICANALISE E SINTOMA SOCIAL 75 guéin que estd sob esta tradigas, em pouce tempoele definhae more mesmo. Por que isso na nossa realidade nao acontece? Se no estigma, que uma doenca como o cancer representa, existem todos estes elementos, mas a pessoa nao definha de uma vez € morte antes mesmo que o cancer seja causa de morte, qual o motive? Ocorre que, como en mencionava antes, as seciedades holistas se caracterizam por serem regidas por uma légica da razao objetiva, ou seja, onde a sociedade come totalidade é valorizada, e os individuos estao completamente subordinados a essa realidade social. Para tomar um exemple classico do peso que isso tem na vida de quem vive numa sociedade holista, vejamos a opgao que faz Sécrates: "Diante de néo pertencer mais a pélis, ele prefere a morte.” Sua vida nao tem mais razao de ser, nao tem mais sentido, se ele nao fizer parte de sua comunidade. Essa é uma realidade que n4o nos toca muito, a gente diz: "Bom, aqui nao me querem, aqui n4o dé para ser, vou para outro lugar, eu sou mais eu, vou para outro lugar”. Nés temos esse recurso que a ideologia individualista nos propicia, mas isso traz outros proble- mas. Entao, na sociedade marcadamente mdividualista, a questao dos direitos individuais subordina a totalidade social, nds os consi- deramos inaliendveis, estado acima de quaisquer outros direitos; edai uma série de coisas vem se “legitimar" com a sociedade sancionando @ "Lei do Gérson”. S6 numa perspectiva completamente individua- lista pode-se dizer: “Eu quero levar vantagem em tudo”. Ou seja, a tinica maneira de levar vantagem em tudo é As custas do vizinho. Se nao fosse essa perspectiva, a eficdcia simbélica da estigmatizacio social teria um efeito bem mais mortifero que ela manifesta hoje. Mas, ao irabalhar com as pessoas que sdo atingidas por esse problema, vemos perfeitamente bem que aquelas que encontram em seu meio social uma rede de acolhimento ¢ de apoio que as acompa- nhe nesse sofrimento, buscando as safdas nos mais diferentes niveis do cotidiano, que vocés possam imaginar as pessoas que conseguem articular ou que tm isso a sua volta, encontram melhores perspec- tivas de solugdo do problema que surgiu no seu corps. Sao perspec- tivas muito melhores do que aquelas de pessoas que se defrontam com uma estigmatizagio muito mais direta, ocorrendo muitas vezes entre a prépria familia, como fregiientemente cuvimes falar no nosso trabalho dentro do Institute da Mama: “Agora tu estds carun- chada, eu nao te quero mais". Isso acontece com muita freqliéncia, bem mais do que se possa imaginar, sao ambientes familiares que 76 JAIME A. BETTS empurram em diregdc & morie, gE possivel fazer intervengSes em relacao a esse nivel da comunidade social, em mlagao a essa estig- tmatizagac. Também podemos intervir dixelarnente em relagde & mulher com a doenga ¢ trabalhar com eficacia simbélica do ponte de vista de uma andlise. Nestas duas vertentes, ent&o, trabalhamos com os elementos simbélicos, com eficacia simbdlica, buscando a tendén- cia dessa balanga que esté indo na diregdo de uma organizacao psiquica progressiva, caracteristica dessa enfermidade. Através do Instituto da Mama, as pessoas sho encaminhadas a equipes de profissionais que trabalham dentro dessa perspectiva que etl procurei caracterizar rapidamente para vocés. Tenho certeza de que ha muitas questées ¢ facetas para discutir, hd pontos polémi- cos que eu acabei de colocar; terei muito prazer em trocar idéias com vocés sobre esse assunto. Bibliografia LECLAIRE, Serge. O corpa erdyeno, S20 Paulo: Escuta, 1979. LEVI-STRAUSS, Claude. O Feiticeiro e sua magia. In: . Antvopologis estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985, Hierarguia necessaria ow ilusdo igualitaria Ricardo Stiirmer! Vivemos em um mundo marcado por ilusdes igualitarias. Os pais querem apenas ser amigos de seus filhos. Os professores dese- jam somente ser facilitadores da aprendizagem dos altmos, apreen- cer o mundo junic com eles. Os alunos devem e querem, todos, aprender os mesmos contetidos no mesmo momento. Os bens de consumo, geralmente produzidos em série, nos dado a ilusio de que todas os objetos saidos de uma determinada linha demontagem sao iguais. Quando estava escolhends o titulo deste trabalho, pensei em: "A necessidade de hierarquia". Logo desisti, pois imaginei que, com tais palavzas, espantasia aqueles que, por acaso, pudessem cogilar em rae ler ou escutar. Vocés certamente jé perceberam que, em determi- nado tempo e lugar, algumas palavras encarnam o sumo bem ou © sumo mal. Por exemplo, algum tempo atras a educagao libertadora era fop em certo meio educacional de Porto Alegre. Hoje talvezja nao seja a mesma coisa. Da mesma forma, hierarquia me parece uma palavra que representa iodo o mal para a minha geragio, que votou pela segunda vez a presidente do Brasil. Falar em hierarquia talvez 1 Especialista em Teoria Psicanalitica, pela UNISINOS.

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