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SUBVERSAO E ESTADO DE DIREITO NA DITADURA MILITAR: O DISCURSO DOS JURISTAS EM TORNO DA SUSPENSAO DE GARANTIAS CONSTITUCIONAIS COMO Mateus do Prado Utzig A ditadura militar brasileira usou o direito para perseguir seus objetivos, tendo inclusive introduzido conceitos estranhos & tradigo juridica anterior, como no caso da subversio, que descrevia a ameaga comunista como um conjunto de estratégias que abrangia desde a divulgagio de ideias até a guerra convencional, passando por agitagSes estudantis e sindicais aparentemente democriticas. No inicio, a ideia de subversio lastreou a opedo preferencial pela edigdo de atos institucionais, que dava aos militares uma espécie de poder constituinte origindrio permanente, livre do controle parlamentar ou judicial ~ 20 mesmo tempo em que prejudicava a legitimagio do regime pelo critério juridico da integral submissio a uma constituig2o e a0 principio do estado de direito. Contudo, a partir do governo Geisel, a proposta de se eliminar os atos institucionais ganhou forga, como forma de qualificar o regime como constitucional. Provavelmente, o principal debate sobre o tema, fora dos circulos estritamente estatais, ‘ocorreu na VII Conferéneia Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil (VII Conferéncia da OAB), de 1978. No evento, 0 governo debateu com a oposig&o (consentida) uma alternativa constitucional aos atos institucionais que em breve seriam revogados. O que estava em disputa era a definigao do instrumento juridico a ser utilizado pelo estado para debelar crises internas, por meio da suspensdo de garantias constitucionais. O representante governamental foi Oscar Corréa, que apresentou a tese intitulada A emergéncia constitucional no estado de direito, Em contraposigao, Gofredo Telles Jiinior defendeu a sua tese O estado de sitio e as outras salvaguardas (OAB, 1978). Ao fim, a Conferéncia aprovou a segunda — e 0 governo viria a aprovar sua proposta poucos meses depois, na forma da emenda constitucional n° 11, que criou os institutos das medidas de emergéneia e do estado de emergéncia, a0 lado do tradicional estado de sitio. Neste artigo, é analisado, no ambito desse debate, o uso do conceito de subversio e a sua relagao com 0 conceito de estado de direito. Ambos sao utilizados de formas diversas, em cada discurso, resultando em diferentes propostas juridicas para o enfrentamento de crises internas e sugerindo diferentes implicagées quanto & legitimidade de cada proposta. Por meio da anélise argumentativa, busco situar a presenga dos conceitos de subverstio ¢ de estado de direito na argumentago de cada debatedor ~ inspirado no modelo de Manuel Atienza (2013, p. 427 ss.) — e compreender a fungaio desempenhada por cada um com o auxilio do modelo de Stephen Toulmin (2001; Liakopoulos, 2007). A partir dos resultados desse proce: mento prévio, fago uma avaliagdo com base em uma tipologia acerca da relagio entre emergéncias constitucionais (que incluem o estado de sitio) e estado de direito. Com efeito, o pensamento juridico moderno tem diferentes explicagdes sobre 0 papel do direito na suspensao de garantias constitucionais como forma de ampliar as possibilidades de atuagdo governamental frente a crises. Podem ser sintetizadas em 4 tipos: a) o direito regula plenamente o fendmeno (explicagdio do liberalismo clissico); b) regula de modo pouco eficaz (0 que se pode representar pela imagem de um gray hole); c) regula apenas a possibilidade de sua propria suspensio, diante de um fendmeno predominantemente politico (black hole); ou d) se torna irrelevante diante de um fendmeno que é absolutamente politico, sendo inécuas quaisquer normas (no nivel mais alto, o poder soberano atua sem constrigdes juridicas) (Dyzenhaus, 2008). Cada uma dessas visies implica em concepgdes diferentes de estado de direito, no que se refere as limitagdes juridicas do poder politico. Para desenvolver 0 meu argumento, dividi este texto em trés segdes. Na primeira, descrevo de modo breve a ideia de subversio de acordo com © Manual Basico da ESG (Escola Superior de Guerra), de 1975, pois parto do pressuposto de que essa formulagio (¢ suas congéneres, em documentos anteriores da instituigio) infTuen 10 direito ¢ os juristas brasileiros do periodo. Em seguida, analiso 0 debate ocorrido na VII Conferéncia da OAB. Na iltima parte, avalio os resultados das anilises com 0 auxilio da tipologia desenvolvida por David Dyzenhaus, acerca das emergéncias constitucionais no estado de direito. A subversio segundo a ESG No Manual da ESG, 0 temo “subversfio” nao € utilizado de modo muito preciso, Algumas vezes, indica agdes que buscam desmoralizar os valores socialmente hegemdnicos ¢ estatal (EMFA, 1975, p. 302). Em outros como forma de implantar uma nova ordem so 2 momentos, identifica as atividades proprias da chamada guerra revoluciondria, adotada pelo movimento comunista (em sentido amplo) da época (EMFA, 1975, p. 247). Neste artigo, 0 termo “subversio” ¢ utilizado na segunda acepgao. Em 1975, aE adotava o seguinte conceito de guerra revolucionsti Conflito, normalmente interno, de concepgo marxista-leninista, inspirado nesta ideologia, estimulado ¢, até mesmo, auxiliado do exterior, que, utilizando intensivamente a agdo psicoldgica e todas as formas de subversio e violencia, visa a ‘conquista do poder pelo controle progressivo da nago (EMFA, 1975, p. 304), Com apoio velado da Unitio Soviética, grupos nacionais (ou infiltrados no pais) desenvolveriam uma série de ages para derrubar o regime politico e instaurar 0 comunismo. Inicialmente, as iniciativas nao seriam violentas, consistindo, antes, na divulgagio ideoldgica, na exploragdo dos descontentamentos em relag3o ao governo ¢ na busca de apoio popular. Sua execugto seria facilitada pelos direitos e garantias constitucionais tipicas de um regime democratico. Entretanto, eriam mera preparagdo para etapas mais avangadas da guerra revolueiondria, em que haveria a deflagrago da luta armada, com o objetivo de derrubar violentamente o regime do pais. Assim, as ages violentas e nao violentas perpetradas por esses grupos deveriam ser compreendidas como etapas diferentes e indissocidveis de uma estratégia mais ampla de tomada do poder (EMFA, 1975, p. 291). Em resposta as diversas etapas da guerra revolucionaria, 0 estado brasileiro deveria adotar um conjunto de medidas preventivas e repressivas, incluida a possibilidade de operagio militar, As medidas repressivas seriam devidas diante de grave perturbagao da ordem, que incluia “agdes contestatérias que, a critério da autoridade, possam vir a comprometer a iegridade nacional, o livre funcionamento dos poderes, a lei e a pritica das instituigoes” (EMFA, 1975, p. 250). Esse tipo de resposta a subverstio, de tempo determinado, abrangia 0 estado de sitio, a suspensio dos direitos politicos e a restrigfio da liberdade de reunitio, associagdo ¢ opinido. Em casos extremos, quando tais medidas ¢ a atuag2o policial regular nao fossem suficientes para debelar a perturbagio da ordem, deveriam ser adotadas iniciativas propriamente militares — com maior vulto, no caso de luta armada (EMFA, 1975, p. 250). Contudo, a ago subversiva deveria ser discriminada da atuag3o da oposigdo demoeritica, que deveria receber protegao juridica, e no repressio (EMFA, 1975, p. 250- 251). Suponho que o eritério para essa distingo seja 0 modo como cada grupo se relaciona com os objetivos nacionais permanentes, a saber: integridade territorial, integrago nacional, democracia, progresso, paz social ¢ soberania (EMFA, 1975, p. 55-56). Ao contrario da oposigtio democritica, a ESG devia considerar que os grupos subversivos atentavam ao menos contra a democracia (p« buscariam a instauragdo de um regime totalitario) e a paz. social (pois fomentariam a luta de classes). Debate na OAB A VII Conferéncia Nacional da OAB ocorreu em maio de 1978, na cidade de Curitiba. Seu tema foi o estado de direito, em sintonia com os anseios de mudanga da sociedade e do estado brasileiro — a despeito de todas as divergéncias que havia acerca dos rumos a serem tomados. A época, a OAB se tornara um dos principais interlocutores do governo, no que concerne a sociedade civil. Em dezembro de 1977, seu presidente, Raymundo Faoro, visitara 9 presidente Geisel e 0 convidara para a abertura do evento. Como seus representantes, foram enviados Petronio Portella, arenista que presidia o senado e que negociava a abertura com a oposigdo ¢ diversos setores da sociedade brasileira (e seria o futuro ministro da justiga); Rafael Mayer, consultor-geral da repiblica (e futuro ministro do STE); ¢ Oscar Corréa, ex deputado udenista, advogado e professor universitério (e futuro ministro do STF). Como ja se mencionou, o iiltimo ficou encarregado de defender as ideias governistas quanto a pretendida reforma constitucional que revogaria 0s atos institucionais e criaria _mecanismos jonais para que o estado brasileiro pudesse se proteger da subversio, ‘A seguir, reconstruo de modo esquemético as argumentagdes de Oscar Corréa e de Gofredo Telles Junior. Utilizo-me de uma versio simplificada do modelo proposto por Manuel Atienza, que procura representar graficamente as linhas argumentativas que se desenvolvem entre a colocago de um problema e a sua solugo. Cada problema é enfrentado, em termos logicos, a partir da colocagdo de questées intermedisrias cuja resposta é necessaria para se chegar a uma solugtio. Por sua vez, tais questes serio resolvidas a partir de suposigdes que serio confirmadas ou negadas por intermédio de razées favoraveis e contrarias a0 seu contetido propositivo (Atienza, 2013, p. 427 ss.). © modelo do autor possui complexidades maiores, mas os elementos expostos até aqui serdo suficientes para a andlise proposta. Antes de se passar a apreciagaio de cada discurso, ressalto que tanto Corréa quanto Telles Jinior respondem a um mesmo problema geral: qual instrumento juridico deveria estar 2 disposigao do estado brasileiro para fazer frente a crises internas por meio da suspensio de garantias constitucion: condizente com o estado de direito? Além disso, ambos partiam do pressuposto comum de que era legitimo o estado suspender garantias constitucionais para fazer frente a determinadas crises, sem que isso o descaracterizasse, necessariamente, como estado de direito (OAB, 1978). A argumentagao de Gofredo Telles Junior (OAB, 1978, p. 237-247) prendeu-se a ilidade entre estado de di enffentamento de crises por meio da suspensdo de garantias constitucionais. Ao reconstrui-la, ito ¢ instrumentos de questées normativas relacionadas & compati identifiquei duas questées prineipais que podem ligar, em termos ldgicos, o problema enfrentado a solugdo que ele apresentou. Abaixo, segue a sintese esquematica de sua argumentagio: ‘Argumentagio de Gofredo Tel -s Janior Problema: Qual instrumento juridico deveria estar & disposigao do estado brasileiro para fazer frente a crises internas por meio da suspensdo de garantias constitucionais, de maneira condizente com 0 estado de direito? ‘Questo T: O que € 0 estado de direito? (OAB, 1978, p. 246-247) Suposigoes a) E 0 estado que se rege pela constituigdo ¢ pelas leis e em que, pela divisio dos poderes, 0 “poder detém o poder”, como no caso do controle judicial do poder executivo: € b) E 0 estado em que ha o direito dos cidadaos contestarem 0 governo ¢ manifestarem suas conviegdes ¢ ideais, quaisquer que sejam. Questo 2: O que €0 estado de sitio? (Questio subordinada & primeira) (OAB, 1978, p. 238241 © 244-246) Suposigoes: a) Instrumento pelo qual o estado suspende garantias individuais constitucionais para enfrentar crise ocasionada pelo uso das mesmas para promover grave perturbagio da ordem. Nao pode suspender normas constitucionais que tratam da separagdo dos poderes, © que inclui os controles reciprocos entre os mesmos. Razio: Consenso dos grandes doutrinadores. b) A suspensio de garantias individuais deve ser limitada, constitucionalmente, de modo expresso, no que se refere as medidas passiveis de serem adotadas, & duragdo da suspensio © & abrangéncia territorial da suspensio. Ademais, a vigéncia do estado de sitio depende da aprovagao do poder legislativo ¢ a sua execugao deve se submeter a controle judicial [nao meneiona eventual controle sobre a decretagao], ante a possibilidade de uso de medidas io previstas na constituigdo ou de abuso das medidas autorizadas. Raziio: Exigéncia do estado de direito, em que 0 poder & limitado pelas normas juridicas (constitucionais, em diltima instincia) e em que o poder limita 0 poder. 6) No que se refere as hipéteses de deeretagdo, niio devem incluir a manifestagdo de ideias comunistas. Apenas agGes violentas ~ ou sua iminéneia — justificam a decretagio do estado de sitio como resposta. Razio: Exigéncia do estado de direito, em que as divergéncias de ideias © a livre manifestago do pensamento devem ser asseguradas, devendo, inclusive, poderem ser incorporadas no programa de agdo estatal. O estado de direito & um regime aberto. Solugio: Estado de sitio, com a Timitagio das medidas que possam ser adotadas pelo governo, do tempo ¢ da abrangéncia territorial de sua vigéncia. Ademais, a decretagdo deve estar sujeita ao controle parlamentar (que poderd revogé-la) e a execugdo ao controle judicial (aparentemente, exclui a decretagao desse controle). S6 devera ocorrer a decretagao em casos de violéncia atual ou iminente, € ndo para tratar de manifestagio de ideias, reivindicagao de melhorias para vida da populagdo e a fiscalizagao do poder piblico, ainda que promovidas por grupos subversivos. Nessa argumentagiio, 0 conceito de subverstio é utilizado com o mesmo contetido semintico adotado pela ESG (no quadro mais amplo da guerra revoluciondria). Entretanto, a resposta estatal preconizada (a “agdio-resposta” do Manual Basico) & diferente, pois apenas as expressdes violentas da subversio sto hipdteses de incidéncia do estado de sitio. Por exigéncia do estado de direito, as expresses no violentas deveriam ser protegidas juridicamente ¢ integradas ao processo politico normal (OAB, 1978, p. 239-241 ¢ 244-246), Com o auxilio de uma forma simplificada do modelo de Toulmin, torna-se mais explicita essa relago entre subversao e estado de direito no discurso de Telles Jinior, Ante a questo da pertinéncia da decretagao do estado de sitio em casos de subversdo, a resposta do debatedor pode ser representada conforme a figura a Alegagio (claim Formas nio_violentas de subversio iio devem ser reprimidas por meio do estado de sitio. Dade. A subversio envolve agdes violentas endo violentas. Garantia: No estado de direito, _manifestagdes politicas no violentas devem ser permitidas e protegidas pelo dircit. Ou seja, a partir do dado de que a subversio abrange tanto manifestagdes politicas violentas quanto nao violentas, chega-se & conclusio (alegagdo) de que apenas as formas violentas podem ser reprimidas com 0 uso do estado de sitio. © que autoriza essa inferéncia & a garantia de que, no estado de direito, as manifestag6es politicas no violentas devem ser permitidas e protegidas pelo direito. Para os fins deste artigo, 0 aspecto mais importante dessa andlise é a percepgdo de que Telles Junior trata do conceito de subversio apenas para restringir a resposta propugnada pela ESG (¢ pelo governo) com base nas exigéncias normativas do estado de direito. Ou seja, as teorias militares acerca da guerra revolucionaria eram restringidas, em seus efeitos juridicos, pelo conceito de estado de direito. Na argumentagiio de Oscar Corréa (OAB, 1978, p. 407-429), nota-se uma preocupag’io bastante pragmatica, relacionada aos desafios enfrentados pelo governo brasileiro da época. Em sintese, havia 0 desafio da subversio, aferivel de modo empirico, e 0 desafio (ndo verbalizado de forma direta) da adequagao do regime militar aos pardmetros do estado de direito. O segundo aspecto pode explicar a constante énfase na inviabilidade de implantagdo de modelos politicos ou juridicos ideais (como a democracia ou o estado de direito), mesmo em paises tidos como exemplares no “mundo livre” (cita os Estados Unidos, a Franga, a ‘Alemanha Ocidental, a Itdlia e a Austrilia), Abaixo, segue a sintese esquem: argumentagao: “Argumentacio de Oscar Corréa Problema: Qual instrumento juridico deveria estar & disposigao do estado brasileiro para fazer frente a crises internas por meio da suspensdo de garantias constitucionais, de maneira condizente com 0 estado de direito? Questiio 1: 0 que fo stado de dirento? Suposigiio: Fo estado no qual “reinam as Tels”, © no os “homens”, Com Wss0, indica @ Jimitagdo juridica do arbitrio do poder politico, ou Seja, a subordinagao do poder & lei. Cita os direitos © garantias fundamentais e a separagao dos poderes como alguns dos prin elementos do estado de direito ‘Questio 2: Qual o tipo de rise enfrentada pelo estado brasileiro (da Epocay? Suposigaio: a subversio (afo sensi), ow seja, @ guerra revoluciondria (comunista), Sem perspectiva de desaparecer. Questiio 3: Como enfrentar tal tipo de crise sem violar as exigéncias normativas de um estado de direito, em que o poder deve ser limitado por normas juridicas? Suposiga a) Devem ser colocados limites. Rariio: Exigéncia normativa do estado de direito. b) Tais limites sao ditficeis de serem cumpridis no caso conereto, Razio: i) E dificil de identifiear ameaga interna (subversiva) e de haver consenso politico [parlamentar] em torno dessa identificagao. ii) Plasticidade da atuagao subversiva torna imprevistveis os meios necessérios para conté- la. ©) Os limites devem sofrer controle parlamentar e ju cemergéncias constitucionais. ial apds 0 fim da vigéneia das Solugio: Instrumento de emergéneia constitucional que tem Timites quanto &s medidas permitidas © a0 tempo de sua vigéneia. O controle parlamentar (“politico”), adm posterior ao fim da vigéncia da emergéncia constitucional. Apesar de preconizadas, tais limitagdes so de dificil observancia no caso conereto, devido a grande discricionariedade que o poder executivo necessariamente tem nessas situagdes. A decretagao depende de avaliagio discriciondria do poder exccutivo, abrangendo, inclusive, situagSes em que a subversio se manifesta meramente pela divulgagao de ideias e ndo apenas em situagdes em que assume forma violenta Ao contrario de Telles Junior, Corréa no adotou apenas 0 conceito de subverstio da ESG, mas também a “agdo-resposta” da instituigao militar: as expressdes nao violentas da 8 subversio também podem ser reprimidas pelo que chama de emergéncias constitucionais. Admite que idealmente a democracia e 0 estado de direito nao deveriam impedir a defesa de se instaurar regimes constitucionais e sociais diferentes daquele vigente (isso seria proprio de regimes ditatoriais, dentre os quais os regi nes comunistas seriam exemplos destacados). Entretanto, 0 surgimento da guerra revolucionéria (a “subversio”) exigiria a restrigfio da liberdade de propagar ideias comunistas, conforme seria demonstrado por exemplos de democracias “incontestes” como Franga, Alemanha, Italia, Australia e EUA. Hé outras ambiguidades nas emergéncias constitucionais propostas por Oscar Corréa. Em nome do estado de direito, deveriam ter limitagées quanto as medidas aplicaveis' e a0 tempo de sua duragdo. Contudo, tais limitagdes dificilmente poderiam ser cumpridas com do estado de direito rigor em virtude da natureza dessas situagdes de crise. Outra exigén cera a possibilidade de controle parlamentar e judicial das emergéncias. Porém, s6 ocorreriam apés o fim da vigéncia das medidas excepeionais, quando 0 poder executivo ja houvesse decretado e executado as emergéncias do modo que melhor the aprouvesse. Ou seja, a decretagto e execugdo das medidas ocorreriam conforme a vontade do governo, ainda que em desconformidade com as previs6es constitucionais. Uma chave para se interpretar essas restrigdes as exigéncias do estado de direito (os limites normativos impraticdveis e a auséncia de controles que pudessem obstar abusos governamentais) € 0 conceito de subverstio da ESG. Em primeiro lugar, a subversio visava a derrubada do regime para a instauragio de outro que Ihe era antitético. Assim, 0 estado de direito deveria aceitar um mal menor (a suspensio de algumas de suas normas fundamentais) para evitar um mal maior (a sua propria dissolugdo). Ademais, ao atribuir uma extrema periculosidade aos grupos comunistas (retaguarda sovigtica, capacidade de penetragaio social e grande flexibilidade de taticas, incluindo aquelas de aparéncia inofensiva), 0 discurso governista verbalizado por Oscar Corréa reivindicava para si um poder virtualmente ilimitado para combater 0 inimigo. Como estabelecer rigidos limites constitucionais ante um movimento que poderia se valer de meros discursos sedutores & guerra aberta com amparo de uma poténeia atdmica ' Cita a censura prévia a imprensa, a priso sem culpa formada, o adiamento de eleigdes marcadas, a suspensio de imunidades parlamentares, a intervengio em estado da federagdo, a mobilizagdo geral, @ requisi¢ao compulséria ¢ a suspensio do habeas corpus. Notese que a iitima medida contrariava justamente a principal bandeira da OAB, a época: a restauragao plena do habeas corpus, 9 Esses dois argumentos podem ser mais bem visualizados com 0 auxilio do modelo de Toulmin: Argumento | Dada: & subversio visa A derrubada do estado de direito e da democracia Argumento 2. Dado: A subversio possui poder extraordindrio sua aluagao é imprevisivel. Garantia: ——_Devese permitir um mal_-menor para se evitar um mal Garantia: permitir um mal-menor para se evitar um mal maior, Devese Alegagio (claim): 0 estado de direito deve admitir a suspensio de parte de suas normas, temporariamente, para conter a subversdo. Alegagio (claim): 0 estado de direito deve Permitir poderes com limites frouxos para se ‘combatera subversio. Assim, em homenagem formal ao estado de direito, eram estabelecidos limites normativos, com a ressalva de que eram de dific observiincia pritica e desprovidos de mecanismos institucionais que pudessem deter efetivamente 0 seu desrespeito (como 0 controle parlamentar ¢ judicial). Se para Gofredo Telles Jinior 0 conceito de subversio foi mobilizado para reafirmar a prevaléncia do conceito do estado de reito, para Oscar Corréa ocorreu praticamente o inverso: o primeiro, na melhor das hipéteses, foi usado para mitigar 0 segundo, 10 Por fim, registre-se que Corréa em momento algum mencionou o estado de sitio, 0 mais tradicional dos institutos de “emergéncia constitucional” e vigente na constituigo da Spoca. Ao que tudo indica, nao o considerava suficiente para conter a subversio. Excegdo e estado de direito Com base na tipologia apresentada no inicio deste texto, & possivel diferenciar as propostas dos dois debatedores. Ao preconizar que apenas o estado de sitio era compativel com o estado de direito, por limitar de forma clara os poderes excepcionais e prever 0 controle parlamentar e judicial da atuagio do poder executivo, Gofredo Telles Jinior conjugou excegiio e estado de direito nos moldes do que chamei de modelo liberal classico. Ou seja: 0 direito regula plenamente a politica, mesmo em situagSes excepeiomais. Em contrapartida, Oscar Corréa operou em chave diversa, propondo limites que considerava pouco efetivos e, 20 mesmo tempo, desprovendo-os da possibilidade de serem impostos ao governo por mecanismos institucionais de controle externo (parlamentar e judicial). Seu modelo é o que chamei, com David Dyzenhaus (2008), de gray hole: 0 direito é pouco eficaz. para regular a politica em situagdes excepeionais. ‘Antes de prosseguir, devo fazer outra distingo importante. Via de regra, os tebricos do tema propdem-se a descrever o fendmeno da excegio dentro do direito modemo, ¢ no a prescrever 0s modelos normativos de sua preferéncia. Assim, pode-se considerar 0 modelo liberal cldssico desejavel, mas nio necessariamente realizavel. Obviamente ¢ dificil de fazer essa distingio no que se refere 4 intengtio do autor do discurso. De qualquer forma, ressalto que aqui escolho o caminho mais simples, no buscando resolver esse dilema ¢ tomando os discursos como expressao de preferéncias. Uma implicagio dessa diferenga de modelos de discurso diz respeito a sua legitimidade. A opgio de Telles Jinior é a mais facil de ser legitimada pelo principio do estado de direito, pois o “governo das leis” se afirma de modo inconteste sobre 0 “governo dos homens” (a politica), Porém, a questo € mais dificil no modelo gray hole de Corréa. Com efito, a flexibilizagéio ¢ mesmo a negagao das limitages juridicas préprias do estado de direito (na concepgtio apresentada pelo proprio orador) sto justificadas, sobretudo, por elementos externos, como a guerra revolucionatia teorizada pelos militares. Ademais, parece- justificada Il me bastante problemitico 0 seu argumento de que a admissio de um mal menor se servir para evitar um mal maior. Em primeiro lugar, nao é especifico de seu coneeito de estado de direito (ou seja, & externo ao conceito), mesmo que seja apresentado como uma faculdade inerente de autodefesa do regime (¢ de qualquer regime). Além disso, nao fornece parmetros para limitar essa atuagao estatal, de modo que poderia justificar toda e qualquer medida adotada em nome do combate a um mal maior. Em uma situagio extrema, justificaria que um estado de direito se transformasse na mais sanguindria das tiranias a pretexto de se autodefender. De qualquer forma, 0 estado de direito no parece uma base adequada de fundamentagio para a proposta de Oscar Corréa, reclamando uma linha argumentativa distinta. Consideragées finais ‘A partir da andlise dos discursos de Goftedo Telles Jinior e de Oscar Corréa, percebe- se que os meios militares foram razoavelmente bem sucedidos na introdugio do conceito de subversiio na comunidade juridica brasileira, Essa assimilago, entretanto, nfo foi uniforme. Alguns, como Corréa, incorporaram tanto 0 diagnéstico acerca da guerra revolucionaria quanto a prescrig#o sobre como combaté-la. Outros, como Telles Jinior, discordavam quanto resposta apropriada para o fendmeno. De uma perspectiva normativa, isso amparou novas diferenciagdes, Corréa defendeu um modelo em que 0 governo enfrentava limites fouxos para atuar, pois a subversiio justificaria restrigées ao estado de direito. J Telles propugnou limi de serem efet s rigidos e mais suscet ados, pois, mesmo havendo a subversio, as exigéncias normativas do estado de direito se impunham, De qualquer forma, possivelmente como formulagdes como as da ESG acerca da guerra revoluciondria (que aqui sinte “subversio”) trazem um grande riseo ao estado de direito (principalmente em sua vertente democratica). Com efeito, tim uma elasticidade (decorrente da atribuigo a um grupo inimigo” de poderes enormes ¢ imprevisiveis) que pode servir de justificativa para flexibilizar restringir quaisquer normas. Se isso faz. parte, infelizmente, do cotidiano de nossos estados contemporiineos, que ao menos repensemos se devemos legitimé-los como estados de direito. 12 Referéncias bibliograficas ‘Atienza, Manuel (2013). Curso de argumentacién juridica, Madrid: Trotta. Dyzenhaus, D. (August, 21 2008). Schmitt V. Dicey: Are States of Emergency Inside or Outside the Legal Order? Cardozo Law Review, Vol 27, p. 2005, 2006. Available at SSRN: https://ssrn.com/abstract=1244562. EMFA/ESGIDE (1975). Estado-Maior das Forgas Armadas. Escola Departamento de Estudos. MB-75 — Manual Basico. Rio de Janeiro: A\ perior de Guerra. Liakopoulos, M. (2007). Andlise argumentativa. In: BAUER, Martin; G. Pesquisa qualitativa com texto, imagem ¢ som: um manual pratico. (PA. (6.¢d.). Petropolis: Vozes, p. 218-243. Suareschi, trad.). OAB. Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (org.) (1978). Anais da VII Conferéncia Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil. Curitiba: OAB. Toulmin, S. (2001). 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