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SOBRE A ARTE BRASILEIRA DA PRE-HISTORIA AOS ANOS 1960 FABIANA WERNECK BARCINSKI (ORG.) 0 WEL: ESTRANGEIRO wr Taya UH DO BRASIL ae] UML aa EACLE NLU a YUU CR teat PINES) CISSaH Ue eae mune T LS ESSN a MONCH Oe many Oa Re eae CUNT LMAA ALO TL NAS QUAIS DESENVOLVEU ATIVIDADES UNUM Ma UTAH Ta ay Lay NO NUCLEO DE PESQUISA EM CRITIC E CS ULU LE Gua Manning NRL CSU OTY aN aL Se TERRA BRASILIS (BRUXELAS, 2011) FACCHINETTI(RIO DE JANEIRO, 2004) TaN ee ND aa nay CRUE GU Cm tay Ue UCR ene ORCC nT a toneT Pom och ect tuto con ecne ets COSC CR Cone OSI Rete T em iat once OURO user c mbt Rerun emit SPT ee nanny as trocas culturais e influén entre as colénias lusas, que certamente existiram, ainda esto por merecer estudos mais aprofunda dos, é fato que nao foi interesse da Coroa portu guesa a divulgacao de noticias, fosse em forma de textos ou de imagens, das terras e dos povos sob sua soberani, PST Caner tone tc segredo de Estado e tinham alcance restrito, circu Pe a occa ee Sen Ean en cea} oe CONST Te SHOE Cece To DR eCUUea Emo is eT E TS que se manteve dominante nos dois primeiros sé culos da colonizacao do Brasil, notadamente no Peay oe ane Oe Cater oat naturais, A extracdo do pau brasil - a madeira tin CCST men ea OURO Ree Ce OR MET meira matéria-prima com potencial de comercia lizacao identificada pelos portugueses na América CMe mgr Concent renn mtr Cuero Car Emenee ORs hy SO SeU CE SURE Tenement trey ery DUR aE Cn Cee eee Soa os 4 medida que 0 conhecimento sobre ele se aperfei COMORIAN etree Tee Ente Co) Incognita ~ aparece representado neles em pequenas ee mnie STUER eee Poole et Cnet Enc neste a guerra, perfeitamente harmonizados com 0 mnundo natural ao seu redor, Papagaios gigan- tes e outros animais fantasticos surgem nos ‘mapas como evocacies de seres fabulosos da mitologia classica, enquanto as imagens des- ses homens nus sans foi, sans oi, sans loi (sem £6, sem rei, sem lei) corroboram as mistificagdes am torno da ideia do “bom selvagem”. Do outro lado da moeda, a pratica do cani- valismo, um dos primeiros habitos locais a ser notado pelos europeus, também encontra aspaco nessas primeiras representaces carto- graficas. Contudo, ganha de fato forca no ima- gindrio europeu por meio da capacidade mul- tiplicadora da gravura, sem diivida, e desde sempre, o meio mais eficaz de difusao de ima- gens do Brasil, Tém papel crucial nesse pro- cesso as ilustragdes do livro pioneiro de Hans Staden (c. 1520-c. 1580), 0 aventureiro alemao pturado pelos Tupinambds em Bertioga e testemunha ocular de um ritual antropofé- gico, mais tarde reinterpretadas com grande requinte pelo editor flamengo Theodor de Bry (1528-98) em sua Americae Tertia Pars, de 1590". 0 tema reaparece também nas obras dos cro- nistas André Thevet (c. 1502-92) ¢ Jean de Léry (c. 1534-¢. 1611), publicadas, respectivamente, em 1558 e 1578, ambos religiosos envolvidos no empreendimento de criac3o de uma colénia francesa no Rio de Janeiro. Diante da escassez de notfcias e imagens gue marcam 0 século do descobrimento, nao é deestranhar a importancia historica e artistica que se atribui as pinturas executadas pelos ho- landeses Frans Post (Haarlem, 1612-80) e Albert Eckhout? (Groningen, c. 1606-66), os artistas que acompanharam o conde Johan Maurits van 1 Apublicacao pode ser acessada em: https://archive.ora/ details/americaetertiapaoostad. [N. do] 2 Embora Quentin Buvelot aponte versoes diversas para Nassau-Siegen (1604-79), ou Mauricio de Nas- sau, no breve perfodo do governo holandés em. parte do Nordeste brasileiro, Ainda que nao te- nham tido nenhuma repercussio direta na for- magio de uma cultura artistica no pais, essas obras constituem um conjunto excepcional nao apenas do ponto de vista de uma iconografia do Brasil, como também da América colonial. As circunstancias histéricas da vinda de Nassau e sa comitiva ao Brasil esto relacio- nadas com a criacao, em 1621, da Companhia Holandesa das Indias Ocidentais (West-Indis- che Compagnie, a wic), organizacao de capi- tal privado destinada a controlar, com apoio estatal, as rotas de comércio do Atlantico, In- teressados no lucrativo negécio do agticar, os holandeses comecaram as investidas sobre 0 territério brasileiro tomando Recife e Olinda dos portugueses em 1630. Seis anos depois, a presenca holandesa jé se estendia pela area en- tre o rio Sao Franciscoeo atual estado do Ceari. O conde Mauricio de Nassau, experiente mili- tar, foi entao nomeado governador, capitaoe almirante do Brasil holandés. No perfodo em que foi governador (1637-44), Nassau transformou Recife numa cidade ca pital, A maneira das cortes principescas euro- peias, Incentivou uma urbanizacao mais racio- nal da cidade, bem como a constituicdo de um. ambiente de tolerancia religiosa. Construiu os palicios da Boa Vista (ou Schoonzit) e de Fribur- go (Vrijburg), este cercado de extensos jardins de plantas nativas e espécies estrangeiras acli matadas, além de possuir um jardim zoolégico com animais exéticos, Uma das torres do Fri- burgo abrigava um observatério astronémico completo, utilizado, segundo a historiografia, nome do artista (Albert Eckhout. A Dutch Artist n Brazil p. 109), neste texto serd utilizada a grafia Eckhout, jé esta belecida pela nistoriografia, pelo cartégrafo alemao Georg Marcgraf (Liebs- tadt, 1610-Sdo Paulo de Luanda, 1644), também membro da comitiva do conde. Totalmente destruida apés a reconquista da cidade pelos portugueses, a Recife de Nassau ainda perma- nece na imaginacao local como uma espécie de testemunho de uma era de ouro perdida. Apesar dos muitos esforcos das pesquisas sobre o Brasil holandés em épocas recentes, os motivos que levaram Nassau a constituir uma comitiva de sabios e artistas e a escolher espe- cificamente Post e Eckhout como seus pintores ainda permanecem por esclarecer. Dados sobre a formacdo desses artistas na Holanda sao até momento desconhecidos, assim como qual- quer pintura de sua autoria que seja anterior viagem ao Brasil. A falta de informacées sobre algum contrato firmado entre Nassau e seus artistas, que certamente existiu, faz supor, a partir da producio brasileira de Post, que ele tenha sido contratado para executar vistas topograficas e paisagens, enquanto Eckhout seria responsével por documentar aspectos da historia natural - espécies de botanica, zoolo- gia e etnografia -do pats. De toda forma, é fato que Post e Eckhout nao tinham ainda uma car- reira consolidada no competitivo mercado ar- tstico do século xvu holandés, sendo, ademais, jovens o bastante para enfrentar a aventura de uma viagem ao Novo Mundo, o que parece ter sido aspecto importante na decisao do conde. ‘As atividades a que se dedicaram os in- tegrantes da comitiva nassoviana nos sete anos em que viveram em Pernambuco tam- bém sao alvo de especulagdes. No caso espe- cifico de Post, estima-se que tenha executado por volta de dezoito pinturas, que ocupariam 3 Pedro e Bia Correa do Lago, Frans Post (1612-1680). Obra completa hipoteticamente um lugar de destaque no pro- jeto decorativo do Palacio de Friburgo’, Dessas, apenas sete sio hoje identificdveis, e quatro formam 0 acervo do Museu do Louvre, em Pa- ris; as demais esto no Rijksmuseum, Amster- dam, no Instituto Ricardo Brennand, Recife, ou integram a Colecio Patricia Phelps de Cis- neros, Nova York. A aura criada em torno desse conjunto de pinturas justifica-se na medida em que carac- terizam 0 momento inaugural na representa- cao da paisagem americana em pintura. Nes- sas primeiras obras de Post, prevalece o tom de uma paisagem topografica, em que importa a exatidao do registro dos pontos estratégicos do dominio holandés sobre o territério, de que é exemplo o Forte Frederik Hendrik, de 1640. A essa precisao se sobrepdem os esquemas compo- sitivos que caracterizam o género da pintura de paisagem holandesa do século xvut. O pri- meiro plano introduzido em diagonal, a con- traluz, marcado pela presenca de uma arvore a acentuara verticalidade, é solucao frequente nessas obras. Também o sao os caminhos e trios que cruzam a paisagem, conduzindo o olhar e acentuando a impressao de profundidade e ex- tensio da vista. A iluminagio uniforme e certo despojamento no colorido dessas telas sugerem uma abordagem mais direta do motivo, embo- ra ndo se deva perder de vista que se trata, an- tes de tudo, de uma composicao. E de supor que a permanéncia de Post no Recife tenha dado origem a uma série de ano- tagdes e desenhos tomados da observacio di- reta da paisagem do Brasil. Contudo, apenas um Album com desenhos de sua autoria - hoje no acervo do British Museum, em Londres ~ ¢ AANS POST OATE FREDERIK ENORIK, 1640 LEO SOBRE TELA 8X88 0M ISTITUTO RICAROO RENNANO, RECIFE conhecido, Trata-se de uma coletinea que reti- ne 32 desenhos datados de 1645, muitos dos quais guardam correspondéncia com algumas pinturas da fase brasileira, bem como com as Sravuras do livro Rerum per octenaium in Brasilia, obra encomendada por Nassau ao historiador © poeta Caspar van Baerle (1584-1648), ou Bar- laeus, como é referido. Publicado em 1647 em. Amsterdam, o livro ~ cujo titulo se pode traduzir como Historia dos feitos recentemente praticados duran- te vito anos no Brasil - 6 uma descrigao e celebra- 40 do perfodo da administracao nassoviana na colénia, aparentemente motivado pelas desconfiangas dos diretores da wic diante dos prejutzos acumulados no Brasil. A publicacio 6 ilustrada com 56 gravuras em Agua-forte que compreendem mapas e plantas de fortificacdes, paisagens e cenas de combates navais, muitas das quais portando a assinatura de Post. Nao se descarta a possibilidade de que Post, sendo au- tor dos desenhos preparatérios, tenha também. participado da execucao dessas gravuras. De toda forma, as ilustracdes inseridas no livro de Barlaeus permaneceriam por mais de um sécu- lo comoas tinicas imagens de terras brasileiras tomadas a partir da observacio a ter livre circu- lacdo nos meios eruditos europeus. Foram su- cessivamente retomadas e retrabalhadas para ilustracdo de muitas outras publicacdes até 0 final do século xvi. Em 1646, de volta a sua cidade natal, Post estabelece-se em atelié préprio e torna-se membro da guilda de pintores local. A evoca- 40 do Brasil sera o tinico tema de suas obras nos mais de trinta anos de atividade artistica que se seguiram, Suas pinturas feitas na Eu- Topa, apesar da tematica brasileira, sio ainda 4 José Roberto Teixeira Leite, “Os pintores de Nassau". In. Walter Zanini (org ), Histéria geral da arte no Brasil v. 1, pp. 347-55, mais caracteristicamente holandesas, 0 con- taste entre a paisagem luminosa, com seu ho- rizonte azulado ao fundo, e o primeiro plano escurecido intensifica-se e passa a ser povoa- do por exemplares agigantados da fauna e da flora exéticas. Serpentes, tamanduds, tatus, abacaxis, palmeiras convivem numa espécie de microcosmo, como bem notou Teixeira Lei- tet, estabelecendo um interessante paralelo com os gabinetes de curiosidades principescos. A presenca estrangeira no territério se faz re- presentar por edifica¢ées religiosas eengenhos que pontuam a paisagem, por vezes marcados por sinais da passagem do tempo, em conso- nancia com o gosto pelas rufnas na pintura europeia coeva, Personagens negros vestidos de branco cruzam a vista caminhando ou dan- cando, como reminiscéncias de paisagens pas- torais, Post parece querer condensar nessas pinturas muitas memérias de sua experiéncia brasileira, construindo assim, necessariamen- te, paisagens de fantasia. Jé foi assinalado por diversos autores 0 quanto essas paisagens de fantasia so as que de fato fundam na imagi- nacio europeia uma imagem do Brasil. Um conjunto de 21 pinturas que atualmen- te integram a colecao do Nationalmuseet em Copenhague, Dinamarca, atesta o lugar nao menos pioneiro ocupado por Albert Eckhout nesse mesmo processo. O conjunto compreen- de doze naturezas-mortas, oito retratos etno- graficos e uma cena de danca indigena. E sabida a importancia dos Pafses Baixos na constituigdo de uma cultura visual anco rada no saber cientffico advindo da observa- do direta dos fenémenos da naturezas, Sendo Eckhout, assim como Post, artista oriundo 5 Svetlana Alpers. A arte de descrever’o arte holandesa no século xv, desse contexto cultural, nao espanta que seus retratos etnograficos tenham sido, durante muito tempo, admirados mais pela correcio etnogréfica do que pelo seu valor artistico. De fato, as vestimentas, os objetos e os utenstlios sao representados com extremo cuidado, en- contrando exata correspondéncia em pecas que pertenceram a colecao etnografica de Nassau, algumas conservadas hoje no mesmo museu de Copenhague. Contudo, a andlise da compo- si¢do dessas pinturas revela também uma in- tencdo narrativa bastante explicita. Nenhum elemento é meramente decorativo, atuando, ao contrario, como atributo que serve a escla: recer as atividades em que esto envolvidos os personagens e, sobretudo, qual o seu papel na complexa hierarquia social do Brasil holandés. Assim, 0 selvagem casal Tapuia se oporia a0 quase civilizado casal Tupi, enquanto o Mu lato e a Mameluca indicariam possibilidades de entrecruzamento entre as racas. A Africana, re- presentada em solo brasileiro (como sinalizam a carnaubeira e 0 mamoeiro), seria a escrava origindria de Angola, naquele contexto, o maior porto fornecedor de cativos para o Novo Mundo. 0 Africaro estaria no litoral da Africa (como in dica a tamareira ao seu lado), sendo natural da Guing, regidoem que a wic negociava marfim e ouro. Assim, no conjunto de retratos etnografi- cos de Eckhout, 0 casal de negros sinalizaria as relagdes econémicas mantidas entre a colénia holandesa no Brasil e a Africa ocidental. ALERT ECKHOUT HOMEM MULATO, 1-4 LEO soBRE TELA 27exi70 0M MAMELUCA, 1641 LEO soBRe TELA 2nxi0 CM NATIONALMUSEET, CCOPENNAGUE Muito se tem especulado sobre o cardter decorativo dessas pinturas e qual teria sido sua destinacao original, Brienen‘ argumenta ue 0 conjunto teria sido executado ainda no Brasil para integrar 0 sofisticado projeto de- corativo de um dos saldes do Palicio Friburgo. Segundo sua hipétese, os quadros estariam dispostos em paredes paralelas, homens de um lado, mulheres de outro, As armas empu- nhadas por todos os personagens masculinos serviriam para demonstrar o apoio bélico ofe- recido ao governo de Nassau, Os cestos carre- gados por todas as figuras femininas seriam oferendas feitas ao conde tanto de produtos naturais quanto de utensflios por elas confec- Cionados. Arranjadas dessa forma, as pintu- tas serviriam simbolicamente para reforcar © papel de Nassau como elemento garantidor da civilidade e da ordem na colénia, por meio da articulagdo de aliancas com povos diversos, obtendo dos stiditos, por sua vez, a produtivi- dade da terra ea riqueza, As naturezas-mortas funcionariam como © arremate desse projeto decorativo, ocupan- do hipoteticamente uma posicio acima dos Tetratos. Os arranjos decorativos propostos Por Eckhout nessas pinturas revinem frutos e Vegetais, sementes, rafzes e inflorescéncias dispostos sobre parapeitos recortados contra um. fundo de céu luminoso, Nao sio apenas espé- Cies brasileiras, mas também oriundas das [n- dias e da Africa, aqui aclimatadas. A multipli- Cidade de formas e cores fala da fertilidade da terra, sugere cheiros e texturas. Em alguns ca- Sos, as frutas aparecem seccionadas, revelando Sua aparéncia interior, Em Mandioca, 0 artista Acrescenta a representacao um recipiente com EE & Rebecca Parker Brienen. Albert Eckhout-visdes do paroto Selvegem. Obra completa a farinha, a indicar também 0 modo como 0 alimento é consumido. Especulacdes a parte, sabe-se que Eckhout esteve envolvido ao menos em mais um proje to decorativo que teve a fauna brasileira como tema. Apés seu retorno 4 Holanda, o pintor foi contratado para trabalhar na corte da Saxénia, © por dez anos (1653-63) foi pintor dos principes eleitores de Dresden. Nesse periodo, estava sen- do finalizada a reforma do pavilhio de caca dos rincipes, o Castelo de Hofléssnitz, cujo salio de jantar ganhou um forro com exética deco- ragdo de pinturas de pssaros do Novo Mundo, Oitenta paingis compsem essa decoracdo, em ue figuram aves pousadas sobre troncos de at- vores ou no chao, tendo ao fundo uma paisagem Upicamente europeia. Sabe-se que o contrato firmado entre a corte saxdnica e Eckhout obri Bava o artista a levar a Dresden seus desenhos feitos na América, o que justifica a atribuigio das peas ao artista, ainda que nio sejam assi- nadas ou datadas. A diferenca qualitativa que se observa entre as pinturas de Dresden e as obras de Eckhout na Dinamarca explica-se provavel- mente por intervengdes e repinturas feitas em varios perfodos e sucessivas reformas no edificio. Como acertadamente assinala Brienen, as colecdes reunidas por Nassau no Brasil - que inclufam pinturas e desenhos, objetos etnogra- ficos, herbarios e outras curiosidades ~ consti ‘tufram um importante capital cultural, que foi utilizado pelo conde em troca de favores, titu- los, terras e prestigio social. As colecdes ofere- cidas como presentes, a0 mesmo tempo que dispersaram 0 conjunto original (cuja exten- ‘sao hoje apenas se pode imaginar), colocaram em circulagao uma diversidade de imagens do Brasil. Exemplo disso é o lote contendo dezes- seis telas de Eckhout, méveis de marfim enta- Ihados com temas brasileiros, além de cerca de setecentos estudos de hist6ria natural, lote que foi oferecido em 1652 a Friedrich Wilhelm 1 (1620-88), principe eleitor de Brandemburgo. As telas de Eckhout, hoje desaparecidas, po- dem ter sido usadas por Maximilian van der Gucht (1603-89), tecelao de Delft, para executar uma série de tapecarias com temas brasileiros em 1668, de que s6 se tem noticias por docu- mentacao de época. Os estudos, por sua vez, foram organizados em volumes tematicos e passaram a biblioteca do principe, posterior- mente incorporada ao patriménio da Staatsbi- bliothek Preussischer Kulturbesitz, em Berlim, onde ainda hoje se encontram cinco desenhos de indigenas de Eckhout. 0 restante dos dese- hos foi dado por perdido apés a Segunda Guer- 1a, e somente foram redescobertos no final da década de 1970, na colecao da Biblioteka Jagiel- lonska, em Cracévia. Correspondem aos volu- mes conhecidos como Libr Picturati, ou Theatrum Rerum Naturalium Brasiliae, Em 1654, exatamente quando a wic oficial- mente restituiu os territérios conquistados no Brasil aos portugueses, Nassau enviou a seu primo Frederik 111 (1609-70), rei da Dinamar- ca, um conjunto de 26 obras: nove pinturas etnogrificas e doze naturezas-mortas execu- tadas por Eckhout, dois retratos seus, possi- velmente também feitos por Eckhout, além de trés representacGes de africanos cuja au- toria tem sido equivocadamente atribufda ao artista. Todas essas obras passaram a compor a Kunstkammer, ou Camara de maravilhas, do rei dinamarqués, que deu origem a colecao do Nationalmuseet, em Copenhague. Os dois re- tatos do conde se perderam. ‘Um ano antes de sua morte, em 1678, Nas- sau enviou ao mais poderoso soberano euro- peu, Luis xiv, da Franca (1638-1715), um lote contendo 42 quadros. Estima-se que pouco mais de trinta seriam de autoria de Frans Post, dos quais restam atualmente oito no acervo do Museu do Louvre. Oito quadros de grandes dimensdes sao citados em inventarios poste- riores como sendo obra de Eckhout. 0 estagio atual das pesquisas sobre o artista permite afir- mar, com razodvel seguranga, que esses foram 05 quadros usados como modelos pataa série de tapecarias conhecida como Anciennes Indes, ow Antigas Indias, tecidas entre 1687 e 1730 pela manufatura francesa dos Gobelins’. Devido a0 progressivo desgaste desses originais ~ dos quais ainda hoje se conservam fragmentos no Mobilier National, em Paris -, o artista Fran- Gois Desportes (1661-1743) foi encarregado de reelaborar as composigdes de Eckhout, refazen- do os cartdes para que fosse tecida uma nova série, chamada de Nowwelles Indes, ou Novas Indias, fabricada pela Gobelins entre 1740 1800. Vale ressaltar que essas tapecarias por vezes sio equivocadamente consideradas figuracoes do Brasil. E certo que se baseiam em registros visuais feitos por Eckhout a partir da natureza brasileira. Entretanto, estes se mesclam a ele- mentos extravagantes de procedéncia africana ou oriental nos livres jogos compositivos pré- prios das artes decorativas. Concorrem para a construcao de uma imagem de prodigalidadee exuberancia de uma natureza exética, ou me lhor, edénica, como bem notou Belluzzo*. Bus- cam o deslumbramento do observador, pata 7 Sernpre se admitiv que as tapecarias Antigos Indias ti- vessem sido elaboradas a partir de desenhos de Eckhout, sen ter sido encontrada, entretanto, qualquer informa- ‘fo convincente para explicar como os artistas da Ma- ‘ufature Gobelins teriam tido acesso ao material produ: zidorno Brasil. Contudo, o recente restauro das pinturas do Mobilier National revels: ue ce trata da fata de telas do século xvii que haviam sofrido intervencoes an- teriores de repintura e restauro. As evidencias, portanto, apontam para a grande probabilidade de que Ecknout seja o autor das composicdes que deram origem a essas tapesarias (Brienen, 2010, p. 306). 8 Ana Maria Belluzzo, O Brasil dos viajantes. (GEORG MARCCRAF ‘apa oo Beast S06 DOMINIO OLANOCS, 1647, BURIL E ADUARELA ‘SOBRE PAPEL 7X 161 CM FUNDAGAO ESTUDAR FOTO SERGIO GUERIN fo que contribui a preciosidade dos materiais utilizados em sua confeccio: fios de seda, ouro e prata. Muitos dos motives das composicdes para as tapecarias Gobelins seriam retomados pelo pintor Johann Wenzel Bergl (1718-89) nos afrescos realizados por volta de 1763 para a de- coracio interior do Gartenpavillon nos jardins da abadia de Melk, na Austria. Georg Marcgraf viria se reunir no Brasil a outros cartégrafos no Escritério Hidrografico do Recife, organizado para o mapeamento das conquistas holandesas no Atlantico. Seus es- critos descrevem viagens de levantamento car- togratico pela costa do Brasil e incursdes pelo interior, bem como observagdes de eclipses e coutras efemérides astronémicas, a partir das qaais chegaria a determinar com precisio lon- gitudes e distancias, questao cientifica crucial naquele momento. No curso dessas viagens, 0 naturalista coletaria também animais e plantas, que seriam levados para os jardins do Friburgo el desenhados por Eckhout, dando origem aos estudos do Theatrum Rerum Naturalium Brasilia. Sua ‘morte precoce na costa da Africa, contudo, im- pediu que os resultados de sua extensa pesquisa cientifica fossem devidamente divulgados, Nos manuscritos originais de Marcgraf foi usada uma linguagem codificada, decifradana Holanda por Johannes de Laet (1581-1649), um. dos diretores da wic e também naturalista’, De Laet dedicou-se a ordenar as informagées cole- tadas por Marcgraf, as quais acrescentou suas proprias notas, e supervisionar a execucio das mais de quinhentas xilogravuras utilizadas para ilustrar a Historia naturalis Brasilia, publica~ da em Amsterdam em 1648. O livro tornou-se a principal referéncia sobre a natureza brasilei- ra, circulando amplamente pelos meios cien: tificos e artisticos da época. Foi utilizado por Lineu (1707-78) na elaboracao do seu Systema Na- turae de 1758, assim como para a composicao do painel América, de jan van Kessel (1626-79), obra de 1666 que compe o conjunto de alegorias de- dicadas aos quatro continentes, Mas a contribuigao mais notavel de Marc- graf para os estudos do Brasil viria a piblico em 1647, em Amsterdam, pela editora Blaeu, a mesma que havia publicado 0 livro de Bar- laeus: trata-se do mapa Brasilia qua parte paret Belgis (Parte do Brasil sob dominio holandés). © levan- tamento cartogrifico executado com exatidio 9 De Laet era autor ae importante obra sobre as Américas ublicada em Leiden, er 1625, intitulada Nieuwe Wereidt ‘oft Beschnjvighe van Wes-Indler [Novo Mundo ou cescrigto as Indias Ocidentais) ARTE DE Sho PAULO ASSIS CHATEAUERIANO ovo soko MUSA Rin em 1643, traz detalhadas infor- Taminhos fluvias evidrios que saa a ocupacao doincerior do pats, ve relevo, a rede urbana e de js, fortalezas para defesa da propria tomo as tribos indigenas aliadas costa, Dem os holandeses. Ao ser transposto sia, 0 mapa foi acresida de vinhe- ne : Frans Post, além de guirlandas assim como de um extenso texto jm que relata as conquistas de Nassau. ae i : assim, como lembra Bueno”, em e+ uqelatorio/cadastro das poten- vjatidades econdmicase militares” da ocupacio rijesa do Nordeste brasileio, As vinhetas, Dnoland ere apenas elementos Jecorativess Jong radicionalmente se SuPoe» colaboram come tr encao descritva do mapa, velculan- para qamagies preciosas sobre sistema de fa- do infor gdcar e abelicosidade dos natives. Draco aulsos de soldados, peauenos fan Peas outros petsonagens (Ue nio faziam iiretamente do circulo cortesao de Nas- ee sm 0 notavel conjunto ico- tegram tambél sa ee que tem orge 0 perodo de sua ad- 0B racio no Brasil Entre cles, vale destacar mi rm conhecido como Tech, de autoria do soldado alemao zacharias Wagener (Dres- foe surmsrerdam, 668), Hoe conservado ‘no Kupferstich-Kabinet de Dresden. Wagener, parece ter do gum treinamento no dese- ist fquando traballou Para 2 famosa empresa sn aires cao REROUSO Brasil ede Nassau pemanecel em Pernambuco a gan. seu manusixoréune 20 ilustracées ae a je espe da 20108, igUIAS Hr gens or Marcgtal agges sobre os ropic a‘ pre a vegerasie ropriedades ruta nas, paisagense™aP3S> muitas copiadas de ‘manas, ica Bueno Asobrasselscentistas da Cole- ia adeao Estda. Im: RDETtO Bertani jundacdo Estudar. originais de Eckhout, Post e Marcgraf. Embora obra de um amador sem grande destreza para o desenho, sao particularmente interessantes as ilustragdes em que ele registra costumes locais, como o transporte de nativos em redes, o mer- cao de escravos do Recife ou o edificio que ser- vin de residéncia a Nassau antes da construcio dos seus palacios. Depois do perfodo brasileiro, ‘Wagener seguiria carreira a servigo da Compa- nhia das Indias Orientais, tendo se tornado go- vernador no Cabo da Boa Esperanca. ‘Trajet6ria semelhante teve Caspar Schmal- Jalden (Friedrichsroda, 1616-Gotha, 1673), outro soldado alemao da wic que residiu entre 1642 € 4645 em Pernambuco e participou da expedi¢ao eaviada por Nassau ao Chile, Treinado como topografo e astrénomo na Universidade de Gro- ningen, Schmalkalden também passaria pos teriormente a servir na Companhia das Indias Orientais e viveu na Asia até 1663. £ de sua au- toria um manuscrito ilustrado que retine infor- rmagées sobre as colénias holandesas nas {ndias Ocidentais (Brasil e Chile) e Orientais (Cabo da Boa Esperanga, Java, Malaca), além de relatos ge viagens pela China, Formosa e Japio. Esse manuscrito, conservado na Landesbibliothek de Gotha, por muito tempo foi considerado um didrio, Pesquisas recentes apontam, contudo, a existéncia de outros dois manuscritos atribuf- dos ao mesmo autor na biblioteca da Universi- dade de Géttingen, Alemanha, e na Kongelige Bibliotek, na Dinamarca", A comparacao entre ales permite esclarecer que se trata de uma nar- rativa composta a partir da experiéncia da via- gem, acrescida de informagdes veiculadas nas publicacoes patrocinadas pelo préprio Nassau, como o Rerum per octennium...e a Historia Naturalis 1 Mariana Frangozo. De Olinda a Holanda GEORGE MARCGRAF EWILLEM PISO HISTORIA NATURALIS BRASILIAE, AMSTERDAM, 1648, COLEGAO BRASILIANA/ITAG CULTURAL FOTOS HORST MERKEL —Brasiliae. £ possivel que o manuscrito tenha sido organizado para o duque Ernst 1, de Saxe-Gotha ~-=Altenburg (1601-75), para quem Schmalkalden “trabalhou quando retornou a Alemanha. Ainda ‘“a cor empregada como complemento e di- trenciacdo das superficies. Finda a viagem, ‘artista tornou-se fazendeiro em Campinas, tre seus muitos inventos ~ que incluem rensas mecanicas, vefculos e diferentes mé- dos de impressao - esté a técnica de fixacdo a imagem captada pela cdmera escura em apéis sensibilizades pelo nitrato de prata, a ae chamou de fotografia em 1833, Florence reconhecido hoje como um dos pioneiros undiais na invencio da técnica fotografica. Em 1825, a missao diplomatica de Sir Char- s Stuart (1779-1845), encarregado das negociz 5es para reconhecimento da independéncia «asileira pelo rei de Portugal, chegaria ao Rio 2Janeiro, trazendo Charles Landseer (Londres, © album poce ser visto em: hetp:Hims.uol.com.brihs/ sarleslandseerhighclifealbu html. [N. do€ | 1799-1878) como seu desenhista oficial. Land- seer pertencia a uma familia de artistas e pos suia s6lida formacao académica, adquirida na Royal Academy, em Londres, Depois do periodo brasileiro, aproximou-se novamente da insti- tuigao, onde fez carreira como professor, até se tornar reitor de ensino em 1851, De sua estadia de cerca de dois anos no Brasil resultou grande quantidade de desenhos e aquarelas, que regis- tram sobretudo aspectos da paisagem do Riode Janeiro e arredores, mas também tipos huma- nos e estudos de vegetacio, Quando retornou a Inglaterra com Stuart, foi obrigado por contrato, ‘mas nao sem resisténcia, a entregar ao chefe da missio todo o material produzido, Sua obra foi, dessa forma, conservada como conjunto no él bum conhecido como Highcliffe“, hoje no acervo do Instituto Moreira Salles, Rio de Janeiro, Em parte da viagem, Landseer foi acompanhado pelo botanico William John Burchell (Fulham, 1781-Londres, 1853), também excelente dese- nhista, que revela certa preferéncia pela repre~ sentagio panordmica de cidades, Em se tratando de negociantes, represen- tantes diplomaticos e militares proficientes no uso amador da aquarela e do desenho, os de origem britanica sobressaem facil mente. Basta observar as aquarelas de Richard Bate (Londres, 1775-1856), proprietario de uma loja de instrumentos éticos na capital, em que se revela o desejo de conservar a meméria dos lu- gares familiares, em especial aqueles que cer- cavam 0 cotidiano da comunidade britanica no Rio. Outros exemplos podem ser encontrados nas obras do diplomata William Gore Ouseley (Londres, 1707-1866), também autor de um li- vro de viagem ao Brasil publicado em Londres, ou de Maria Graham (Cockermouth, 1785-Lon- dres, 1842), caso raro de mulher viajante. Entre os militares britdnicos, vale lembrar Emeric Essex Vidal (Bedford, 1791-Brighton, 1861), oficial da Marinha que esteve trés vezes no Brasil, a primeira como integrante da escolta da familia real portuguesa, em 1808, Eximio aqua relista, Vidal 6 autor de um importante panora- ma circularda bafa da Guanabara des metros de extensio, Ou também Henry Chamberlain (?, 1796-Bermudas, 1844), tenente do Exército brita- nico e filho do encarregado de negécios da Ingla: terra junto a Corte brasileira. Apés permanecer por cerca de um ano no Rio de Janeiro, retornou a Londres e publicou Views and Costumes of the City and Neighbourhood of Rio de Janeiro (Vistas e costumes da CHARLES LANDSEER STA 00 PAO DE ACUCAR TOMADA DA ESTRADA DO SILVESTRE,C. 1827 (Leo sone TELA, 60,7 x 92 cm ACERVO FUNDAGAO ESTUDAR, EM CCOMODATO NA PINACOTECA 00 ESTADO DE SAO PAULO, BRASIL FOTO ROMULO FIALDINI cidade do Rio de Janeiro e seus aredores), famoso dlbum ilustrado com gravuras feitas a partir de seus desenhos. As 36 estampas do livro combinam 0 gosto inglés pelos recantos bucélicos e pequenas enseadas com cenas de ma de tom mais aned6- tico. Estas tiltimas sao de especial interesse, na medida em que registram um curioso desfile de personagens tfpicos, como negros de ganho, vendedores ambulantes, pedintes e religiosos, fovARO WILOEBRANDT PAISAGEW COM NEGROS 645 (Leo Soune TELA, 96,9 258.204 ACERVO PINACOTECA 00 ESTADO DE SAO PAULO, BRASIL ‘COLEGAO BRASILIANA/FUNDAGHO STUDAR. DOAGAO FUNDAGAD ESTUDAR, 2007 FOTO ROMULO FIALOINI todos inspirados nas célebres figurinhas de ti pos urbanos do artista portugués Joaquim Cin- ido Guillobel (1787-3850). 0 alemio Eduard Hildebrandt (Dantzig, 1817-Berlim, 1868) surge entre os artistas viajan. tes como um caso singular pela forca poética e expressiva de sua obra. 0 pintor é um explora- dor aventureiro por exceléncia: viajou da Escandindvia 4 China e ao Japao, da {ndia as Antilhas e aos Estados Unidos, personificando © artista romantico que sai pelo mundo em busca de seus temas. Chega ao Brasil em 1844, financiado pelo rei da Prissia, e no ano e meio que permaneceu no pas produziu grande quantidade de desenhos e aquarelas, hoje con: servados no Staatliche Museen, em Berlim. Al gumas telas foram produzidas ja na Europa, com inspiracio em seus desenhos de campo. Sua obra combina o gosto pelo exético e a afini- dade com a pintura orientalista, resultado de seu contato com a escola romantica francesa. A estruturacdo da imagem por meio da incisio de focos de luz dirigidos, que submerge as ou- tras dreas da pintura em zonas de sombra profunda, confere a seu trabalho forteefeito de dramaticidade, que o distancia muito das ima. gens mais descritivas de Ender ou Rugendas. As trés telas de autoria de Francois-Augus- te Biard (Lyon, 1798-Les Platreries, 1882) dedi- cadas aos indios da Amazénia” conferem ao artista lugar de destaque entre os viajantes do Oitocentos. Com carreira consolidada na Fran- a, por obras originadas de viagem empreendi- da ao arquipélago noruegués de Spitsbergen e a Lapénia, em 1839, Biard decide-se por uma nova aventura que o traria ao Brasil em 1858. A busca pela natureza selvagem e pelo conta- to com 0s modos “primitivos” de vida do habi- tante das florestas leva o artista a permanecer apenas alguns meses no Rio de Janeiro, tempo suficiente para pintar retratos de membros da Corte e ser convidado a integrar o corpo docen- te da Academia Imperial de Belas Artes. A navegacio pelos rios Amazonas, Negro @ Madeira est narrada no livro Deux années au Brésil (Dois anos no Brasi!), que Biard fez publicar em Paris em 1862. Naquela regio, o pintor encontrou, como pretendia, povos indigenas ainda pouco aculturados, entre os quais os Mundurucu, com quem conviveu mais proxi- mamente. 0 fndio Jodo, um velho capitio e chefe de um povoado Mundurucu, chegou a convencer toda a sua tribo a se deixar fotogra- fare pintar por Biard e tornou-se o principal interlocutor e informante do artista com rela- do aos habitos dos povos amazénicos. £ Joio quem menciona que alguns indios residen- tes no alto do Madeira dirigiam preces ao sol, como faziam os antigos peruanos. 0 comenté- rio motiva a realizacao da pintura fndios da Ama- ini adorandoo Deus-Sol, apresentada no Salo de Paris de 1861, Nessa cena imagindria, o artis- ta coloca-se como um voyeur que surpreende o ‘momento de um ritual magico, encenado em meio a exuberdncia da floresta virgem. A luz do sol que penetra a floresta permite distin guir os cipés, as bromélias e uma diversidade de espécies boténicas que compdem a densa vegetacio tropical, delineada com atengao de naturalista por Biard. E importante assinalar que essa pintura foi exposta no mesmo Salo de Paris em que Victor Meirelles (1832-1903) apresentoua icénica A primeira missa no Brasil [ver p. 180], imagem da fundacao do Brasil que se 444 no ritual catdlico, observado por um grupo de ind{genas. Nao se pode considerar que a Academia do Rio de Janeiro tenha monopolizado 0 ensino ea produgio artistica durante todo o século xix, Entre os muitos pintores estrangeiros que circularam pelo Brasil, em especial na segun- da metade do Oitocentos, alguns chegaram a estabelecer ateliés no pafs, principalmente na Corte, com certeza por serem mais frequentes ali as oportunidades de trabalho. £ esse 0 caso, por exemplo, de Henri Nicolas Vinet (Paris, 1817-Niter6i, 1876), estabelecido no Rio de Ja- neiro a partir de 1856 como professor de pintura, em parceria com o artista Emil Bauch (Hambur- go, c. 1823-Rio de Janeiro, ¢. 1890). Ativo par- ticipante das Exposicées Gerais da Academia, Vinet demonstra em seu trabalho interesse por trechos de paisagem situados em recantos mais isolados, tratados com uma abordagem. mais naturalista e franca do assunto, 0 que pode certamente ser considerado um ante- cedente para as experiéncias de pintura ao ar livre empreendidas pelos artistas comandados 17 € sabido que o artista realizou outras pinturas com 0 ‘esmo tema, expostas nos Saldes de Paris na década de 860. No encanto, apenas trés so conhecidas atualmen- 12€ integram as colecdes de Z6zimo Gomes da Costa, da ‘undacao Estudar (em comodato com a Pinacoteca do ‘stado de S20 Paulo), ambas em S40 Paulo, e do Musée fuNouveau Monde. La Rachelle. Franca 18 Biard menciona no livro que havia adquirido no Rio de Janeiro uma camera escura de segunda mio e material paraa pratica da fotografia, atividade coma cual nlo tinha no entanto, nenhuma familiaridade (Biard. Cois anos no Brasil, p. 208), Faancots AUGUSTE BARD {noid 04 AMAZONIA aDORANOO 0 OfuS-SOL, C1960. OLE0 SOBRE TELA. 85.4 11.5 CM ‘ACERVO FUNDAGAO ESTUOAA, uM COMODATO NA PINACOTECA Do ESTADO DE SAO PAULO por Georg Grimm (Immenstad, 1846-Palermo, 1887) a partir da década de 1880. Os nove anos em que Grimm viveu no Rio de Janeiro, a partir de 1878, foram decisivos para a introdugdo de importantes alteracdes na cultu- raartistica brasileira. Ancorado pelo sucesso de ‘uma exposi¢do de mais de cem obras realizadas em périplos pela Italia, Grécia, Turquia, Pales- tina e norte da Africa, Grimm foi convidado a ocupara cadeira de Pintura de Paisagem, Flores eAnimais da Academia Imperial de Belas Artes, cargo que desempenhou por dois anos, entre 1882 ¢ 1884. No entanto, ao propor que seus alu- nos safssem dos ateliés e se colocassem diante da natureza para pintar, Grimm adota uma postura de confronto com o tradicional método académico, baseado na cépia de modelos con- sagrados e na subordinagao a determinadas normas de composi¢ao de uma “boa” pintura. Apés 0 rompimento inevitavel com a Acade- mia, formou-se ao redor doartista um grupo de discfpulos que se reunia para pintar preferen- cialmente em Niteréi, onde as enseadas despo- voadas e a natureza agreste eram motivos mais convenientes ao estilo e a abordagem da paisa- gem defendidos por Grimm, Forma-se, assim, uma notavel geragio de paisagistas brasileiros, entre os quais incluem-se Ant6nio Parreiras (1860-1937) e Hip6lito Caron (1862-92), menos comprometidos com as regras académicas, 20 contrario, alinhados com as pesquisas paisagis- ticas do Realismo e do Naturalismo. vale destacar, ainda, a presenga no Rio de Janeiro, a partir de 1849, do pintor Nicold Agos- tino Facchinetti (Treviso, 1824-Rio de Janeiro, 1900), cujo trabalho minucioso veio ao encon- tro do gosto nao s6 de comerciantes e diploma- tas estrangeiros, que adquiriam suas paisagens como suvenires de viagem, como também da elite agraria, que lhe encomendava pinturas para documentar suas imponentes fazendas de café. Facchinetti estabeleceu-se no Brasil como professor de pintura e, por cerca de cinquenta anos, manteve um “gabinete de vistas do Bra- sil”, como qualificava seu ateli8. Vendia a precos acessfveis quadros de pequenas dimensdes, em que as excentricidades da topografia do litoral do Rio eram tratadas do ponto de vista ceno- grafico, em vistas abrangentes que tendiam ao panorama, tingidas por efeitos de luz a0 nas- cer ou ao por do sol. Construiu uma respeitavel carreira trabalhando totalmente a margem da Academia de Belas-Artes. A popularidade de suas vedutas do Rio de Janeiro e arredores pode ser aferida pelas encomendas que Ihe foram feitas pelo Duque de Saxe (1845-1907), genro do imperador dom Pedro 11, e mesmo pela princesa Isabel (1846-1921), na década de 1870. ‘Caminho diversoe certamente mais érido foi o escolhido pelo também italiano (ou piemon- tés) Joseph Léon Righini (Turim, c, 1820-Belém, 1884), Filho de um gravador e irmao de um pin- tor, o artista cumpriu seu treinamento na Ac- cademia delle Belle Arti de sua cidade natal. Ao contrario da maior parte dos estrangeios apor- tados no Brasil, que preferiam estabelecer-se Rio, Righini desembarcou no Recife em , na condi¢do de pintor de cenografias da npanhia de épera de Giuseppe Ramonda. De Partiu com a companhia para Sio Lufs, no ranhao, onde um sério desentendimento nm Ramonda levou-o a abandonar a compa- jae transferir-se para Belém, no Para, onde ‘eu até falecer, A importancia do trabalho de shini no contexto da pintura de paisagem no ssil oitocentista decorre, sem diivida, do fato ter sido o tinico a registrar as paisagens da sido amazénica naquele periodo. Sua atuacdo como cendgrafo é visivel em as pinturas, uma vez que as paisagens pare- Testar sempre a espera da entrada de algum fsonagem em cena, O pintor revela certo gos- elas formas retorcidas das rafzes aéreas que "gem com frequéncia no proscénio de suas tas, onde sempre insere tracos da presenca mana. Lé estio uma tapera, um jirau, um queno batcoa sinalizar a convivéncia entre o mem e anatureza luxuriante da zona equato- AL, Sua notavel contribuicao para uma icono- afia de Belém passa ainda pela publicagio, em 57, do Album Panorama doPard em doze vistas. As avuras oledecem aqui aos modelos correntes vistas urbanas difundidos pelos livros de via- ns pitorescas, em que os edificios principais cidade sio tomados frontalmente ou em es- 10, @ 0s «spacos priblicosaparecem animados m™ persoragens tipicos do lugar. Interesiado no mercado de arte que se con- gurava em Sdo Paulo a partir da riqueza pro- nda da caisicultura, o pintor Antonio Ferrigno ‘aiori, 1463-Salerno, 1940), formado pela xcademicdelle Belle Arti de Napoles, estabe- reu-se natidade por dozeanos, integrando-se rapidamente ao meio local. Interessam aqui, em especial, as séries de pinturas que realizou Por encomenda de proprietarios de fazendas de café do interior da provincia de Sao Paulo. De maneira muito mais abrangente do que fizera © também italiano Facchinetti antes dele, Fer- rigno dedica obras As varias etapas do trabalho envolvido no cultivo do chamado “ouro verde”, como se pode observar, por exemplo, nas seis telas que compdem o conjunto executado para a Fazenda Santa Gertrudes - A florada, A colheita, Lavadouro, O terete, Beneficiamento do café e Café para a estagdo -, hoje pertencentes ao Museu Paulista, A série, datada de 1903, foi enviada pelo governo brasileiro ao pavilhao nacional da Exposicao Universal de Saint-Louis, nos Esta- dos Unidos, e no retorno foi exposta também em Sio Paulo. Outra série semelhante, dedica- da a cafeicultura na Fazenda Victoria, em Bo- tucatu, foi encomendada pelo Conde de Serra Negra para divulgacdo do café paulista na Eu- Topa. Astelas foram apresentadas na Exposicdo Universal de Paris em 1900, seguindo depois para outras capitais europeias. Parece sintomitico que, duzentos anos de- pois da passagem de Nassau e seus artistas, 0 Brasil se tenha feito representar nas exposicdes universais pela decantada fertilidade de sua terra e prodigalidade de sua natureza, Nesse século x1x que marcou a cultura artistica bra- sileira pela acentuada intemacionalizacio, a imagem de uma natureza generosa e de pro- porcées grandiosas, sedimentada pelo olhar estrangeiro, foi em definitivo incorporada ao imaginério nacional, tornando-se desde entao parte constitutiva dele. ANTONIO FERRIGNO A FLORADA DE CAFE 190). du€0 soBRE TELA, 96 x 147 CM ACERVD SOCIEDADE AUEAL BRASILEIRA sit PAULO

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