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Estados liberais clássicos – Um dos Aspetos da

formação do Estado liberal oitocentista português:


O monopólio da violência legitima
Tiago Pires Marques, Crime e castigo no Liberalismo em Portugal

Parte I Filantropia e sistema penitenciário (1820 – 1852)

Introdução: Estamos em 1822 quando o outrora monarca absoluto D. João VI, regressado a
Portugal, jurou a primeira Constituição Portuguesa, colmatando o Antigo regime e instaurando a
monarquia constitucional ou liberal no país com uma agora lei fundamental que procura consagrar
os princípios da liberdade e de igualdade dos cidadãos perante a lei.
Efetivamente, no Portugal oitocentista, o triunfo do Liberalismo implicou transformações, mais
ou menos profundas, nos modos de pensar e organizar a sociedade. Uma mudança emblemática,
foi a que se operou no campo das instituições penais – matéria que vamos procurar tratar ao longo
desta apresentação.
1- O Vintismo e o mundo penal: heranças, debates e políticas
Para isso, primeiramente, enquadremos a herança deixada ao vintismo em matéria de penalidade.
Com efeito, no Portugal do fim do Antigo Regime, sobressaíram 3 vontades:

 de moderação e humanização das penas dos seus aspetos cénicos e cruéis. Prova disso foi o
decréscimo significativo da aplicação da pena capital e o desuso das formas de execução cruel
estipuladas nas Ordenações;
 Consequentemente, uma 2ª vontade de Reforma da lei penal, no sentido da sua certificação e
sistematicidade. Vale apontar, o projeto do destacado penalista desta época: Pascoal Melo
freire, (((que consagrava:
 o princípio da proporcionalidade
 rejeitando a crueldade
 ou equiparando os crimes pela sua natureza, independentemente do estatuto social
dos seus praticantes,
 Este projeto, apesar de concretização relativamente modesta, mas nem por
isso menos significativa, afetou, sobretudo, algumas práticas do processo
penal.)))
 e por fim, uma 3ª vontade: o desejo, com algumas realizações pontuais, de introduzir no
castigo penal certas lógicas disciplinares; no entanto, de incidência demasiado localizada e
desligada de uma visão geral da penalidade para que se possa falar de uma lógica
penitenciária.
De facto, só a partir da década de 1820 viria a questão da «disciplina social» a ser claramente
cruzada com os temas da reforma das penas e da legislação penal. A par de uns EUA e Europa
defensores de sistemas de correcionalismo auburniano e filadelfiano, também em Portugal, a
questão da organização interna das prisões passou, de facto, a ser considerada como uma das
questões fundamentais.
Indubitavelmente, os anos do Vintismo foram de intenso debate sobre as questões criminal e
penal, como dá conta:

 condenação do Livro V das Ordenações Filipinas.


 E logo em Março de 1821, com a supressão do Tribunal do Santo Ofício, ficava patente o
desejo de uma nova orientação em termos de política penal.
De acordo com os liberais vintistas' a penalidade deveria decorrer dos grandes princípios
estruturantes da nova ordem social que, no domínio da punição, se traduziam na: (read)

 rejeição das penas corporais e infamantes,


 na igualdade de todos perante a lei,
 no habeas corpus,
 na transparência do acto processual,
 e na graduação e publicidade das penas.
Nesta formulação, o valor considerado fundamental ao liberalismo (a liberdade) afirmava, na
prática, o primado político-normativo da lei (o princípio da legalidade) estabelecendo, no âmbito
da teoria de separação de poderes, a precedência do poder legislativo sobre o judicial cabendo aos
tribunais a conservação da ordem.
O elogio das potencialidades da prisão colocou em evidência a sua capacidade de adaptação a um
sistema de graduações das penas, o seu carácter mais igualitário e, acima de tudo, as suas
virtualidades correctivas o que implicou a sua vulgarização enquanto pena e a sua inclusão em
projectos de disciplina social.
No entanto, o tópico das prisões como focos de corrupção apontou para um uso mais cauteloso
desta forma penal. A «insalubridade» e o «perigo de contágio» constituíram a maior preocupação,
no tocante às prisões vistas como também foco de epidemias e factor de «corrupção», a prisão
representava um perigo do «contágio» que adquiria uma dimensão moral e ameaçava, não só os
criminosos ainda não totalmente corrompidos, mas toda a sociedade.
Em 1826, o então ministro da Justiça criou novas comissões para a promoção de reformas nas
cadeias. No entanto, apesar dos esforços, o período miguelista e a guerra civil viriam a determinar
um interregno na política penal do liberalismo.

2- Guerra Civil e Exílio

E são, apesar disso, a Guerra Civil finda em 1833 e o exilio, um marco forte para o movimento
reformista da penalidade.
De facto, o “terror miguelista” assentou, sobretudo, nas perseguições, na falta de garantias
jurídicas e no regime das prisões, repletas de presos políticos grande parte deles «indivíduos da
primeira sociedade>> e que após «os sofrimentos e fomes por que tinham passado», não se
esqueceriam tão cedo a realidade da prisão que agora entrava no campo da experiência social da
futura classe dirigente.
Por outro lado, o exilio em Londres ou Paris, permitiu aos liberais portugueses o contacto com
os importantes desenvolvimentos que, na esfera penal, se observavam na Europa e nos Estados
Unidos desde a década anterior. Fruto disso, foram obras como (read)
José Ferreira Borges, Instituições de Medicina Forense, D. Francisco de Almeida publicou as
Breves Considerações sobre a Necessidade e Meios de Melhorar as Prisões em Portugal, o Manual
do Cidadão em um Governo Representativo, de Silvestre Pinheiro Ferreira. E, assim, a
experiência do exílio teve impacto em três locais da articulação dos discursos e práticas penais: a
teoria jurídica da organização social, a ciência penitenciária; e as ciências médico-criminais.
3- O problema da “ordem”
Por outro lado, em 1837, o país saído da guerra civil mergulhara na desordem e anarquia
caracterizada pelo aumento de crimes contra a propriedade, homicídios, rixas, casos de justiça
popular em que se prendia e matava sem processo nem sentença e consequentemente,
insegurança.
As questões julgadas prioritárias à luz da cultura penal do liberalismo vintista foram:

 A elaboração de um código penal para a substituição do Livro V das Ordenações Filipinas a


fim de alcançar um sistema de proporcionalidade pena/crime justo e que, só seria conseguido
através da pena de Privação de liberdade. Neste sentido, de destacar o projeto nunca realmente
posto em prática, de José Manuel da Veiga que, apesar de manter a pena capital, colocava no
horizonte de progressão civilizacional a sua abolição. Ao que se sabe, a pena de morte deixou
de ser aplicada, para os crimes civis, a partir de 1846.

 o melhoramento das condições das cadeias, a sua higiene e saúde pública. Os governos
setembristas foram particularmente activos neste domínio com a regulamentação de
inspeções.

 introdução de procedimentos disciplinares no espaço prisional como foi caso a criação do


Convento dos Capuchos (1836), em Lisboa, enquanto Asilo de Mendicidade e o Convento de
Xabregas com regime de separação celular nocturna.

 Por outro lado, a criação de um sistema de informação com o objetivo de tornar possível o
rastreio das reincidências: pois para além do guarda-livros ter o cuidado com os habituais
dados sobre a identidade e ocupação dos presos, também os sinais, feições do rosto, marcas,
deformidades e alcunhas, eram organizadas tabelas de correspondência com os nomes de
batismo.

4- Da punição
Em suma, o discurso da inovação penal, neste período, foi já fortemente dominado pela ideia da
correcção. Pretendeu-se eliminar do sistema penal todo o elemento intimidatório ou puramente
punitivo. A ênfase da actuação penal deveria deslocar-se da punição para a modelação dos
indivíduos e da sociedade. Punir era essencialmente «moralizar», atribuir uma «nova educação».
5- A miragem de um sistema penitenciário
Mas não passou, de uma miragem da criação de um sistema penitenciário. A prática entorpeceu
a ideologia. Pois apesar do consenso quanto aos benefícios «civilizacionais» do sistema
penitenciário de regime auburniano, o debate terminou com a sessão legislativa, sem que o
projecto fosse aprovado.

Parte II – A sociedade enquanto “ordem” (1852 -1869)

1 – Regeneração, criminalidade e ordem

Se os anos 1830 e 1840 foram marcados pela conflituosidade social e política e relativo marasmo
económico, as décadas de 50 e seguintes se caracterizaram pela pacificação da sociedade e da
vida política e pelo crescimento da economia nacional socialmente alicerçado no
desenvolvimento das chamadas classes médias.
O período da Regeneração marcou a expansão do capitalismo agrário, algum crescimento da
indústria, maior mobilidade no interior do país e o aumento da população urbana, o que, tudo
junto, se não criou problemas de tipo novo, tornou mais premente a necessidade de mecanismos
de controlo social.
Com a estabilização da vida política e a recuperação da confiança pública, a criminalidade
tenderia a diminuir, o que, aliás, já seria visível para o ano de 1852. Em contrapartida, à redução
constante do número de homicídios, assiste-se à ascensão de uma nova categoria legal dos crimes
contra a honra, difamação, calúnia injúrias, revelando, assim, uma maior interiorização das
normas de conduta social e recurso a formas não violentas de resolver conflitos
Efetivamente, assiste-se à aproximação do padrão da criminalidade e a capacidade repressiva em
Portugal à dos países mais industrializados que se deveu às transformações estruturais no plano
económico-social e a estratégia de monopolização da violência pelo Estado.

2 – Modelos de Civilização, modelos de punição.

Se das Luzes se herdou algo, podemos apontar a ideia de constituir um internacionalismo penal
(penitenciário) que unificasse as nações ditas «civilizadas». Aquilo que começara por ser um
princípio programático partilhado conseguiu lentamente gerar uma verdadeira cultura penal
internacional graças à circulação dos textos produzidos. (Relatórios oficiais, estatísticas
prisionais, memórias de inspectores e directores em viagens penitenciárias, estudos comparativos
sobre os regimes, tudo isso, em articulação com a medicina legal e o higienismo, sob a égide da
«ciência», O que contribuiu, ainda antes do surgimento da criminologia, para a constituição de
uma ciência penitenciária.) READ
Além disso, os congressos penitenciários realizados a partir dos anos 1840, como um fórum para
troca de ideias entre peritos e curiosos, que apesar das diferenças dos regimes dos países
representados em discussão, consolidou a crença na ideia da capacidade da instituição carcerária
(penitenciárias, asilos, casas de correcção) na resposta aos «problemas da ordem».
O modelo penitenciário deste período foi a prisão inglesa de Pentonville,(1842) cujo estilo «gótico
sombrio», viria a tornar-se a «prisão mais copiada do mundo» por países como a Prússia, Saxónia,
Rússia, Holanda, França, Austria, Dinamarca e Suécia. E também Portugal embora quase meio
século depois, em 1885 com a edificação d actual Estabelecimento Prisional de Lisboa, em
Campolide.
3 – A dogmática penal:
Assiste-se partir da década de 1840, na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, um
processo de reformulação das doutrinas penais que viria a marcar as décadas seguintes.
Concretamente, professores como Vicente Ferrer Neto Paiva ou Coelho da Rocha contribuíram
para a divulgação do historicismo alemão de raiz hegeliana e de um krausismo mitigado
responsável pela introdução de um vocabulário organicista no discurso jurídico.
Mas foi nas décadas de 1850 e 1860 que o hegelianismo e krausismo consolidaram a sua
hegemonia no plano doutrinal. Para além de um estilo abstrato de fundamentação jurídica, os
temas e lógicas que introduziram — transpersonalismo, evolucionismo, organicismo,
historicismo — tocaram de forma indelével o discurso sobre as penas.

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