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Milagre

ou coincidência?
Ou os dois ao mesmo tempo?
Sylvia Carvalho
Todos os direitos reservados 2016

Fotografia da capa: Lago da Quinta da Boa Vista, 2013


Dedicatória


Para todos aqueles que creem que nada acontece por acaso, que de todas as experiências
vividas é possível tirar uma lição e que vivemos uma experiência passageira nesta seara de
sensações e sentimentos.
Ah! E que nem sempre os milagres são as grandiosas
modificações da nossa vida. Eles estão em todos os momentos, em todos os lugares, e
sabem exatamente como se comunicar com a gente.

Basta ter ouvidos e coração abertos.

Estas crônicas foram uma maneira bem-humorada que encontrei de registrar minhas
experiências no cotidiano. Não pretendem
ter nenhum valor moral ou ético. Espero tão somente que, ao lê-las, você
se divirta um pouco e, quem sabe,
se inspire a fazer, a observar,
a criar algo para alguém ou para você, mesmo que seja apenas um telefonema de que
alguém esteja precisando!

Ei, telefonema, voz, ao vivo! Nada de e-mail ou WhatsApp!


Por que “flaneur?”

“Para compreender a psicologia da rua não basta gozar-lhe as delícias como se goza o
calor do sol e o lirismo do luar. É preciso ter espírito vagabundo, cheio de curiosidades
malsãs e os nervos com um perpétuo desejo incompreensível, é preciso ser aquele que
chamamos flâneur e praticar o mais interessante dos esportes — a arte de flanar. É
fatigante o exercício? Para os iniciados sempre foi grande regalo. A musa de Horácio, a pé,
não fez outra coisa nos quarteirões de Roma. Sterne e Hoffmann proclamavam-lhe a
profunda virtude, e Balzac fez todos os seus preciosos achados flanando. Flanar! Aí está
um verbo universal sem entrada nos dicionários, que não pertence a nenhuma língua! “
(João do Rio, A Alma encantadora das Ruas)

Sobre milagres ou coincidências. Ou seriam providências?


Estava numa reunião no centro espírita Bezerra de Menezes, em Vargem Grande, num círculo ou
curso de iniciação aos estudos espíritas, uma espécie de preparo em que nos são dadas
informações sobre a doutrina — como uma recepção para que o novo grupo que frequentará a casa
se conheça, na qual cada um fala dos motivos que o levaram a procurar a casa espírita e conta uma
história que lhe pareça mais relevante.

Acredito que não seja somente uma história, que sejam várias; mas naquele momento uma delas nos
incomoda e é a que achamos mais relevante. Dizem que a procura pela casa espírita se dá pela dor
ou pelo amor. Sim; em qualquer período da vida, se formos contabilizá-los haverá momentos difíceis,
momentos alegres e momentos tristes. Naturalmente, os nossos valores, as nossas perspectivas
sobre esses momentos dirão se foram bons ou ruins. No entanto, temos de concordar que, no
decorrer desta nossa breve passagem pela vida, algumas perdas são realmente muito mais
dolorosas e nos parecem muito mais difíceis de compreender.

Nesse curso, a leitura do livro Iniciação ao Espiritismo, de Therezinha Oliveira, orienta as reuniões.
Foi muito gratificante conviver com o grupo depois de tantos dias de solidão naquele lugar
paradisíaco, onde o silêncio ensurdecedor, a quantidade absurda de oxigênio e a água pura me
deixaram entorpecida de natureza para suportar a minha própria companhia. Sem telefone, sem TV
nem TV a cabo, sem internet, sem rádio para escolher, só me restava sintonizar duas emissoras: a
BandNews e a Roquete Pinto.

Foi numa dessas reuniões que percebi quantos milagres eu tinha presenciado.
O milagre do Dia das Mães
Dia em homenagem às mães, domingo de almoço em família. Moro na Zona Sul e me preparo para
me deslocar até a casa da minha irmã em Sulacap, onde foi combinado o almoço daquele ano. Do
Catete até Sulacap, mesmo num fim de semana — pode contabilizar —, são cerca de duas horas de
viagem, entre esperar a condução e efetivamente rodar pelas ruas da cidade. Então, respiro fundo
e, solitária, tomo o rumo para estar presente no almoço em família. Após descer do coletivo, para
chegar efetivamente à casa da maninha andam-se uns 300 metros até a entrada do condomínio e
mais 300 metros da entrada do condomínio até o seu apartamento. Tudo por um almoço em família!
Ao subir as escadas, como não havia movimento nenhum no apartamento, só me ocorreu uma coisa:
teriam mudado de ideia, e o almoço seria na casa da mãe do meu cunhado, em outro bairro, a mais
uns vinte quilômetros dali, em Turiaçu, o que me exigiria pegar mais dois ônibus, pois não há
condução direta. Infelizmente, o Rio de Janeiro, embora continue lindo, tem uma coisa de feio: a
maneira como as pessoas se locomovem. Desde sempre, o sistema de transporte nunca beneficiou o
cidadão. É mal servido, caro, violento e elitista. Bem, só de lembrar já fico cansada, mas a paciência
é a minha rainha no Dia das Mães, na certeza de que tudo passa e tudo tem um propósito na vida.
(Pensar resignadamente é melhor, senão vou viver chutando latinhas; afinal, a culpa deve ter sido
minha, que não me lembrei da remarcação de local.) Retorno ao ponto de ônibus — lembre-se: 400
metros até a portaria, mais 400 até o ponto de ônibus —, onde duas mocinhas sorridentes,
acompanhadas de uma menina de aproximadamente dois anos e meio, aguardam a condução. Elas
resolvem se sentar no canteiro, embaixo de uma amendoeira, e estão muito empolgadas, entre
cochichos e risinhos, enquanto a menina brinca com uma amêndoa.

A calçada divide as duas pistas da avenida. À minha esquerda passam os carros, motos e outros
veículos. A pista da direita é exclusiva de ônibus. Como o lugar fica perto de uma curva, é mais fácil
ver a aproximação dos coletivos quando se está mais próximo da pista da esquerda. É o que concluo
enquanto ando de um lado para o outro, observando a criança que, de repente, corre atrás da
amêndoa que caiu no chão e rolou para rua.

Ergo o olhar e percebo a aproximação de um carro. Na velocidade em que costumam vir por ali, a
tragédia parecia inevitável. A menina desce a calçada e vai para rua atrás da amêndoa. Sem
pestanejar, corro atrás dela, estico os braços e, com uma das mãos na sua cabeça e outra no ombro,
consigo trazê-la de volta para a calçada. O automóvel, mantendo a mesma velocidade com que vinha
em nossa direção, esfacelou a amêndoa que a menina buscava, sem sequer perceber o ocorrido. A
menina começa a gritar, assustada; as adolescentes enfim se viram e deparam com uma cena um
tanto inusitada: Eu abraçada à menina que chora, muito assustada.

Voltei para casa. Perdi o almoço do Dia das Mães, mas uma mãe não perdeu o almoço do seu dia.
O milagre da bola
Estava eu aguardando minha carona à beira da rua numa esquina de Vila Isabel, bem cedo, para
passar um fim de semana no aprazível sítio de uma amiga, quando me ocorreu o pensamento de
que, com tanto espaço para correr livre, não tínhamos providenciado ainda uma bola para jogar com
os filhos dela. A rua estava vazia e era muito cedo. Eu só pousava um olhar distante quando vi um
carro se aproximar. Debaixo dele, percebi que algo se soltou, mas, com velocidade, o carro
continuou pela extensão da avenida até se perder de vista. Foi-se. Atrás dele, veio correndo,
saltitante, uma bola. Sim, uma bola de futebol de couro. Só tive de dar um passo para o lado e
imobilizá-la com um dos pés, como fazem os jogadores antes de resolver a próxima jogada. É claro
que minha primeira reação foi devolvê-la ao dono, mas o carro de onde ela se soltou não estava
mais ao alcance da vista.

O episódio me fez lembrar: quando criança, jogávamos bola na frente de casa e, por descuido, ela
foi parar outro lado da calçada, na estrada onde passavam coletivos. Logo um ônibus parou no
ponto; um passageiro desceu, pegou a bola, retornou ao ônibus e, com a maior cara de pau, como se
ela fosse um troféu, ainda sacudiu a bola, exibindo-a. Enquanto isso, nós, crianças do outro lado da
rua, com os olhos atônitos, sem poder reagir, vimos o coletivo partir com o mau-caráter levando
embora a nossa diversão.

Meu sentimento é de um aprendizado doloroso. Dolorosa a sensação de impotência, dolorosa a


maneira de aprender a nunca subtrair nada de ninguém. Não quero provocar dor, muito menos às
crianças, aprendizes da vida. Aprendi a não subtrair, mas poderia ter aprendido o contrário. A
verdade é que, durante poucos momentos, talvez raros na vida, possuí uma bola de couro, mas
nunca me faltou conhecer alguém que me convidasse para um bom bate-bola com uma dessas
redondinhas e macias.

Certa ocasião, ganhei de presente do Sr. Daniel uma bola dessas, bem gostosa de chutar. Ele
tomava conta e organizava os torneios do campinho de várzea da Rua Eurípedes, atrás da escola
Aspirante Carlos Alfredo, em Turiaçu. Ele amava tanto o futebol que era capaz dessas atitudes
generosas.

E, ao certo determinada por essa força divina da natureza, a bola voltou, como se saísse de uma
dimensão onde ficou presa todos esses anos.

O milagre da bicicleta
Uma coincidência na chegada, outra na partida.

Eu voltava de metrô do centro da cidade pensando nos tempos idos, quando pedalava pelo subúrbio
carioca, entre Madureira e Pavuna, visitando as amigas de colégio e ostentando uma bicicleta que,
na época, era o que havia de mais moderno. Sim, eu pedalava uma Caloi Sprint 10, emprestada do
meu primo que nunca gostou muito de pedalar, de soltar pipa nem de colocar disco na vitrola, mas
com quem e por meio de quem tive acesso a tudo isso, inclusive a campeonatos de botão e
autorama. Começo a recordar a sensação de pedalar uma bicicleta daquelas, com câmbio no
guidom, a alternar as marchas pesadas para a velocidade e as leves para aliviar as subidas. Não
fazia muito tempo que a minha bicicleta tinha sido subtraída por dois sujeitos esquisitos no aterro
do Flamengo, e eu ainda não tinha juntado moedas suficientes para ter outra, muito menos uma
igual, já que passei cinco longos anos trocando as peças da bicicleta que me roubaram para que
chegasse ao nível de qualidade a que chegou. E pensava: que bom seria ter uma Caloi 10, uma
relíquia, sem muito interesse para os ladrões... Eu me sentiria mais segura e ainda teria os prazeres
da pedalada do passado: aquela postura meio “US-Top” (jeans cujo jingle fez sucesso no final dos
anos 70, início dos 80, e que sugeria um comportamento relaxado. O jingle, chamado Liberdade,
dizia: “Liberdade é uma calça velha, azul e desbotada, que você pode usar do jeito que quiser. US-
Top, desbota e perde o vinco!”) — afinal, eu pedalava de jeans e sapato, porque a bicicleta pedia;
não com uma postura atlética, mas com um quê de requinte urbano.

Saltei na estação de acesso à minha casa e, quando comecei a descer a rampa, vi ao longe, na
calçada em frente a uma loja de velharias, uma tabuleta que chamava a atenção, estrategicamente
colocada no guidom de uma bicicleta, com letras garrafais: “VENDO”. Sem acreditar no que via, ao
passear os olhos pela bicicleta oferecida cheguei a me arrepiar: era uma Caloi 10, 80% original.
Não, eu não estava sonhando, era ela ali, materializada na minha frente. E o que mais me alegrou: a
um preço que eu podia pagar.

Curti como nunca o retorno ao passado, dando rolê em Copacabana de Caloi 10, trajando calça
jeans e “dockside”, fazendo o estilo “bad girl” dos anos 80. E essa Caloi 10 não era uma Sprint, o
modelo mais simples das “10”; era uma Elite, com “flip-flop” nas rodas, coisa realmente fina. Mais
fina ainda seria se eu tivesse acesso a ela 35 anos antes — me bateu aquela tristeza —, mas quem
dá bola para o tempo? O tempo somos nós aqui, oh! — com o dedo em riste na cabeça — e agora.
Vamos pedalar.

Mas, como tudo chega ao fim, veio o momento de vendê-la. Sem renda e sem trabalho, temos que
lançar fora os saquinhos de areia para que o balão continue voando. Anunciei a Caloi 10 e logo um
interessado me telefonou: foi o anúncio que teve o retorno mais rápido em toda a minha
experiência. O interessado não levou dois minutos para ligar, e também não demorou para nos
reconhecermos. Meu camarada, baterista de uma quase banda em que toquei na adolescência e que
agora continua a ser meu camarada de pedal. Fiquei feliz, porque só assim, em mãos de quem
realmente cuida, tive certeza de que ela não seria canibalizada e continuaria cada vez mais amada e
original.


O milagre do abacate
Dia de pedal. Na véspera, comer um bom carboidrato, dormir cedo, preparar a bike. Pneus e
câmaras adequados ao terreno, aconselhada a não ir de sapatilha, porque o terreno era difícil e eu
ainda não dominava a arte de “desclipar”. Tudo certo para o pedal até Maricá, começando a trilha
em Pendotiba, Vila Progresso — a entrada dessa Vila é um corredor de árvores, figueiras
deslumbrantes, é um custo acreditar que haja lugares tão bonitos no meio desse caos que está a
nossa cidade — e atravessando os bairros de Santa Isabel e Rio d’Ouro. O final da trilha será em
Itapeba, um trajeto recomendado e guiado pelo colega experiente, dono de uma bicicleta
Specialized de causar inveja. Lá vamos nós. Meu desjejum: meio abacate, na certeza que pelo
caminho seria possível parar e fazer um lanche mais substancial, comer um “joelhinho” de queijo e
presunto, tomar um suco qualquer. É muito comum que os líderes de passeios avisem quais são os
últimos lugares para se fazer um lanche quando estamos prestes a entrar numa área “de sombra”,
ou seja, onde não há acesso à água e comida.

Pois confiar em alguns líderes pode provocar grandes problemas na hora de pedalar. Esse foi um
deles. Já no meio da trilha, com apenas mata ao redor, após algumas horas pedalando, começo a
sentir falta de alguma coisa para comer e me manter em pé. Pressinto uma crise de hipoglicemia.
Para piorar, a trilha é uma merda, cheia de chagas provocadas por pneus de motocicleta e com
vários trechos “impedaláveis”, motivo pelo qual, diversas vezes foi necessário descer da bicicleta,
empurrar e até sair da trilha para dar passagem a motocicletas furiosas em alta velocidade. Para
meu desespero momentâneo, percebi que o local não tem acesso para ambulâncias, por exemplo.
Ou seja, não era um passeio, mas uma das maiores roubadas em que já entrei na vida.

Mas eis que um verdadeiro milagre acontece: Numa das esquivadas para dentro da mata para me
proteger das motocicletas furiosas, depois de quase três horas de pedal com apenas meio abacate
no estômago, fui agraciada pelos anjos ao olhar para o mato e me deparar com um abacate inteiro.
Isso mesmo! Um fruto ali, me esperando para ser comido e repor o potássio e as calorias
necessárias para continuar. Metade do saboroso verdinho estava meio pretinho e foi descartado,
mas a outra metade estava uma delícia. Sem pudor, comi o abacate, e a sobra pretinha, muito
madura, dei para um solitário cavalo que encontrei no caminho. Foi o suficiente para me dar forças
para continuar. Um milagre! A colega que pedalava conosco, exímia conhecedora de árvores,
afirma: não havia nenhum abacateiro por perto.
O milagre do limão
Dos pecados que já cometi, um que me envergonha um pouco é ter comido carne de suíno. Não
porque a carne não seja das mais saudáveis, se é que carne realmente é necessária e saudável (uns
dizem que sim, outros que não). Há partidários das duas correntes nutricionais, outros ainda das
questões espirituais. Eu não comeria cachorros, por exemplo, pela amizade que nutro por eles. Mas
demorei a perceber que os suínos também podem ser bons amigos. Enfim, enquanto ainda faziam
parte do meu cardápio, eu tinha algumas bistecas para o jantar. Depois de um dia inteiro de
trabalho, o apetite já me fazia imaginar todas as formas de prepará-las: primeiro descongelar,
depois como temperar, e eram inúmeras as possibilidades, imaginadas durante a viagem de ônibus,
arrastada por todos os pontos de engarrafamento da avenida das Américas e que me faria chegar no
horário em que todo o comércio estaria fechado para comprar o ingrediente essencial,
indispensável, principal da receita, o tempero-chave: limão!

Como imaginado, ao descer do coletivo só era possível escutar o coaxar do festival de sapos naquela
esquina próxima ao comércio, com pouca luz a iluminar o ambiente. Foi por água abaixo a
esperança de fazer as comprinhas para a janta. Mas se a leitora acha que me senti derrotada,
esqueça. Segui firme os passos para casa, com certeza de que, naquele dia, não haveria de faltar o
suficiente para preparar as bistecas, mesmo que sem limão.

Obediente à rotina da casa, levei o meu amigo cachorro para passear, dar as suas farejadas e
marcar os caminhos com suas pingas de xixi e outras necessidades. Debaixo da lua, com muito
oxigênio e silêncio, partimos para a volta no quarteirão com o coração quieto e a certeza do dever
cumprido — e as bistecas fora da geladeira, em cima da pia.

No retorno para casa, meu amigo resolve dar sua marcadinha num muro por onde caem diversos
galhos. Uma linha de pipa me incomoda o rosto. Olho para cima para retirá-la do caminho e eis que
avisto, solitário, lindo e maduro, um limão!. Colhi-o e levei-o para temperar as bistecas.

O milagre da fã da Falzoni
Um sábado qualquer, na saída do trabalho, senti vontade de dar uma volta na Zona Sul, visitar uma
amiga, jogar conversa fora — motivo para pegar um coletivo na Barra da Tijuca e apreciar a beleza
da vista para o mar na orla da Cidade Maravilhosa. E tome avenida Niemeyer, e ondas a buscar as
rochas, e nuvens brancas a salpicar o céu azul. Ao longo da avenida principal, tudo parecia igual na
hora de pedir ao motorista para saltar.

Os bairros de Leblon e Ipanema têm essa cara de caneta Bic: as ruas e esquinas parecem todas
iguais. Desci, provavelmente um ou dois quarteirões antes. Mas que importa? Estou convencida de
que descer errado é o certo; vamos andar pelas ruas internas e dar um passeio; o atraso, com
certeza, será perdoado. De olho à frente para atravessar a rua Prudente de Morais, o sinal está
aberto para atravessar; mas quando chego à esquina, ele fecha.

É, definitivamente algo não quer que eu vá por ali com tanta pressa. Talvez eu tenha que olhar para
os lados. E, olhando para um dos lados, avisto uma senhora de cabelos vermelhos na varanda do
restaurante na esquina. Parei. Ela percebeu que estava sendo observada e me olhou de volta. Então
balbuciei seu nome com os lábios mudos, a me perguntar se ela era mesmo a pessoa que eu
imaginava. “Renata? Renata Falzoni?” Ela confirmou com a cabeça, acenou para eu me aproximar e
perguntou:

— Você me conhece?”

Respondi que sim, claro:

— Renata Falzoni, sou fã do seu trabalho e pedalo também. Aliás, acabo de vir do trabalho e fiz um
post no meu blog sobre a nova bicicleta que leva o seu nome, uma edição limitada fabricada pela
Caloi.

Ela estava acompanhada da mãe, que me convidou para sentar com elas. Mas não me senti digna a
ponto de atrapalhar o almoço em família. Renata comentou seu desejo de fazer novas imagens para
um filme com as belezas do Rio e que não se sentia uma celebridade; mas para nós, ciclistas que
acompanhamos o seu trabalho e que tanto aprendemos com suas ideias e seus estudos, ela é, sim,
uma grande celebridade. Despedi-me pedindo, ingenuamente, que ela viesse pedalar conosco no Rio
mais vezes.

Continuei minha caminhada e concluí que, sim, desci no ponto errado que estava certo e o sinal
fechado estava aberto para eu olhar para os lados — . e conhecer gente com quem a gente se
importa. Adoro flanar pelas ruas do Rio de Janeiro; sempre encontro pessoas, não importa se
conhecidas ou não, pessoas que ajudam a abrilhantar os meus dias.
O milagre das Sílvias
Caminhada no calçadão, sem destino, sem objetivo: os melhores passeios, nada de especial, nada
programado, talvez uma cerveja, talvez um sanduíche, quem sabe uma esfiha. Sim, displicente, e
por precaução é bom comer alguma coisa antes de ir a algum aniversário; na areia da praia, nunca
se sabe o que será servido, e não gosto de sentir fome.

Estou sendo atendida e ouço meu nome. Não me lembro de ter dado o nome para as atendentes, e
elas estão fazendo aquele jogo de pedidos e palavras de ordem. E quantas esfihas para Sílvia? Antes
de cometer um engano, tento prestar atenção. Sou distraída mesmo, por isso é melhor “me ligar”
antes de tomar decisões. Chamo a minha atendente: “Sílvia!”. Ela olha, e descubro: ah, você
também se chama Sílvia, sou sua xará! Até aí, nada demais; trocamos sorrisos e lhe desejei um bom
trabalho. A caminhada continuou. Uma picape da Guarda Municipal passou lentamente pela avenida
Atlântica e pude perceber que a motorista esticou o pescoço para olhar algo na minha direção.
Achei diferente, mas não parei de andar. Dali a alguns segundos, toca meu celular e uma voz
feminina dispara a falar comigo, coisas muito camaradas. E a voz simpática se identificou:

— É Sílvia, Silvinha, quanto tempo! Você está bem?

— Quem? Sílvia? Sim, sou eu, Sylvia, que está falando! Quem é?

E ela insiste:

— Sou eu, xará: Sílvia!

— Ah, nossa! Hoje é dia das Sílvias.

E levei algum tempo para perceber e juntar as peças. Quem passou esticando o pescoço na picape
da Guarda Municipal era Sílvia. A leitora vai dizer: ah mas o celular tem identificador. Sim, mas não
enxergo de perto sem óculos, por isso atendo sem selecionar pelo identificador.

Em dia de festa, comemoração de aniversário, que coisa boa imaginar as pessoas em comunhão,
sentadas na areia de Copacabana a bebericar sucos e a comer frutas, bolos e salgados,
delicadamente distribuídos e arrumados numa mesa improvisada e protegida por uma dessas
barracas altas de quatro pés. Pois não imagine nem tente fazer igual: é proibido! Sim, é proibido!
Aprendi com a Sílvia: é ordem do prefeito, e, sendo proibido, se insistir você vai ser convidado a se
retirar da praia junto com todos os convidados e quitutes do piquenique.

É bom reencontrar amigos e é sempre bom comer alguma coisa antes de ir a aniversários.

O milagre do bife de fígado


Você sabia que vísceras de boi, como rim, coração e fígado, possuem uma proteína chamada purina
que, ao ser processada pelo nosso fígado, se transforma em ácido úrico, que é uma substância que
todos temos no corpo? No entanto, quando ingerimos em excesso alimentos com purina corremos o
risco de aumentar o nosso nível de ácido úrico, o que põe em risco a saúde com doenças como a
gota e problemas renais. Essa proteína é absorvida de maneira muito melhor por cães e gatos. Para
o nosso fígado, seu processamento é uma tarefa muito cansativa, por isso não devemos abusar do
consumo de vísceras e carne vermelha.

Ah, mas basta um ser humano precisar de uma fonte urgente de ferro para sapecar o próprio fígado
com fígado bovino e saturar o pobre coitado. Por falar em sangue precisando de ferro e gente
precisando de sangue, você costuma doar sangue? Não custa nada, não dói e é um ato muito
generoso; você pode salvar vidas e nem precisa ser bombeiro para isso. Eu mesma já doei sangue
periodicamente. Uma das vezes, após a doação, senti uma vontade enorme de comer bife de fígado.
Cheguei a pensar: será que meu organismo precisa de sangue, será que foi demais? Fiquei
imaginando que as grávidas sentem falta de alguma substância no organismo, falta que se traduz
naqueles desejos inusitados. Eu só queria comer um bife de fígado. Coisa fácil.

O bairro do Grajaú é um local aprazível da Zona Norte do Rio de Janeiro; para mim, o bairro mais
cheiroso desta região. É muito arborizado, porque foi planejado, ao contrário de outros tantos da
cidade. O bairro inteiro orbita em torno de uma praça onde está concentrado o comércio bem
servido, com dois supermercados, e onde ficam os pontos de ônibus e a igreja.

Fui ao açougue do primeiro supermercado. Não tinha! Fui ao segundo supermercado: também não!
Oh, desespero, só porque você está com muita vontade de comer fígado, os bois resolvem fazer
greve! Ora, não há de ser nada, os bois não chegaram a tempo ao Grajaú ou a vizinhança toda teve
a mesma ideia para o almoço de sábado!

Ainda acho fácil satisfazer este desejo e vou fazer uma visita à maninha, que mora longe, lá em
Maricá, município predileto de algumas estrelas da música, famoso na região oceânica. Escolhido
por certos políticos para dar exemplo de local desagradável para investimento imobiliário, lá existe
um supermercado, onde farei a compra e ela preparará para nós uns bifes suculentos para o
almoço.

Então está resolvido: viagem concluída (são 67 km de ônibus) com alguns engarrafamentos e,
finalmente, chega a hora de comprar os bifes de fígado; iscas, não, bifes acebolados — não, na
brasa! Já pensei numa nova receita. Iscas de fígado com batatas coradas... a vontade de satisfazer o
desejo vai aumentando e ficando mais sofisticada.

Vamos ao supermercado “Sol Central”. Com um nome bonito desses, não faltaria variedade e oferta.
Ledo engano. Nada de fígado! Não tem! Como assim? Viajei três horas e não tem? Não tem!! Ora,
vamos esquecer tudo isso. Não há jeito. Deve ser um desabastecimento, um complô, qualquer coisa
do gênero; algo simplesmente não quer que eu satisfaça meu desejo. (A esta altura já estou até
concordando com o prefeito!)

Resignada, sem me opor, acatei o destino, novamente sem chutar latinhas. Caminhei já sem
protestos até a casa da maninha. Ao encontrá-la na cozinha ocupada com os preparativos para o
almoço, avistei de longe uma tigela transparente em cima da pia, com algo marrom dentro. Antes
mesmo de cumprimentá-la, com um ar surpreso e desconfiado, como um agente secreto a se
esconder do inimigo, puxei-a para mim e apontando para a tigela sussurrei: O que é aquilo? E ela
responde assustada: É fígado! Bifes de fígado, comprei para almoçarmos!


Sobre a autora:


Sylvia Carvalho, 51, é Carioca, nasceu em Marechal Hermes, cresceu em Turiaçu, viveu entre
Catete e Leblon e atualmente mora na Pavuna. Jornalista, Violonista, e Licencianda em Música pelo
Conservatório Brasileiro de Música.

Se desejar colaborar para que a autora escreva mais crônicas:

Banco do Brasil

Agência São Pedro D ´Aldeia no. 2657-3

Conta poupança no. 33.445-6 variação 51

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