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“Qual a dimensão do sempre?


San Junipero (Black Mirror S03E04)

Allan Martins Mohr (2019)

“Qual a dimensão do sempre?”, perguntou a personagem Kelly do episódio San


Junipero da série Black Mirror. Essa pergunta é de cortar a alma! Você gostaria de
viver para sempre? Sempre, eternamente? Infinitamente? Sinta o peso dessas
palavras!

Você consegue pensar o que é o infinito? Faça um esforço e verá que é no mínimo
impossível arranhar a casca do que significa o infinito, o eterno, o sempre. Gosto de
uma tentativa de explicar o infinito que é mais ou menos assim: coloque um macaco
batendo no teclado de um computador infinitamente e, em algum momento, ele terá
escrito a Bíblia. Ainda está difícil compreender o sempre? Bem vindo ao mundo dos
mortais.

É essa pergunta que a personagem de Kelly faz quando questionada sobre o “para
sempre”, viver para sempre ou qualquer coisa que o valha: “Qual a dimensão do
sempre?”. E eu acrescentaria: o quão insuportável seria o sempre?

Schopenhauer, filósofo alemão do século XIX, diz que o único afeto que pode nos
tomar numa perspectiva de eterno é o tédio. Tédio seria, então, uma boa resposta
para Kelly: a dimensão do sempre é o tédio. Imagine ter tempo suficiente para contar
todas as estrelas do firmamento infinitas vezes. Isso é o eterno. E por que, diabos,
alguém faria isso? Justamente porque ele teria todo o tempo do mundo!

O episódio San Junipero, o quarto da terceira temporada de Black Mirror, parece, a


princípio, inofensivo. Mas é de uma profundidade atroz. Em um mesmo episódio se
misturam a problemática da morte, eutanásia, bioética, sexualidade, diretrizes
antecipadas de vontade, cuidados paliativos e, como se não bastasse tudo isso,
mexe com a questão do que se pode denotar como vida e a relação essencial disso
com o corpo.

O episódio começa apelando para o corpo e termina massacrando ele. Revejam a


primeira cena: água do mar, som de ondas e, em seguida, Yorkie - uma personagem
barra raça de cachorro - anda pelas ruas enquanto o vento sussurra em sua face e
ondula seus cabelos ruivos. Na última sequência de cenas temos: cabelos ruivos ao
sabor do vento, uma eutanásia, um caixão que desce com um corpo sem vida, uma
pergunta: “Está pronta?”, e máquinas cuidando de colocar sistemas neuronais
virtualmente ligados em um corredor repleto de outros sistemas neuronais sem
corpos. Ah, tudo isso enquanto uma festa acontece em 1987 ao som de “Heaven is a
place on Earth” - “O paraíso é um lugar na Terra”.

San Junipero é o local idealizado desde Descartes pela ciência moderna. Uma
ciência que, por mais paradoxal que seja com seus próprios pressupostos, idealiza a
possibilidade de um dia tudo saber e resolver o grande problema da humanidade: o
problema da morte. A ciência sabe que sua verdade é sempre temporária,
imperfeita, restrita; mesmo assim age acreditando que um dia poderá saber tudo.
Age acreditando que o universo de Star Trek é de fato possível, um universo em que
a própria ciência não mais existe pois tudo já é sabido - universo criticado, diga-se
de passagem, pelo próprio Stephen Hawking.

Há um grande problema para a humanidade, só um (que se subdivide em dois, mas


que seja), que é a questão da morte (o sexo vem de arrasto, mas isso é tema para
outro momento). A morte é o problema e também a musa da filosofia, da ciência e
da religião. Tudo o que se passa na ordem do humano pode ser colocado na conta
da morte e tudo o que fazemos é tentar fugir dela. Nos associamos, aculturamo-nos,
criamos linguagem, matamos outros animais, temos filhos, transamos, tudo isso para
tentarmos driblar a morte. A religião, em especial o cristianismo, tem um expediente
muito curioso: seu Deus-feito-corpo-e-sangue vence a morte. Jesus Cristo dominou
a morte e, agora, ele reina sobre ela.

Em San Junipero é a mesma coisa, só que agora são as máquinas que venceram,
ou a ciência - se é que existe diferença entre elas. Aliás, um parêntese nessa
história: no primeiro livro dos Reis, em seu capítulo 19, o profeta Elias se abriga sob
um junípero, um zimbro e, esgotado, pede a Deus por sua morte. O pedido é esse:
“Já basta, ó Senhor; toma agora a minha vida, pois não sou melhor do que meus
pais” (1 Rs 19:4). Obviamente Deus nega a súplica do profeta. San Junipero faz a
mesma coisa: impede a morte. Não deixa que o morto descanse em paz e o
condena a uma segunda vida cheia de prazeres onde não existe mais dor, limite,
castração, tampouco morte; muito embora Yorkie tenha dito em algum momento do
episódio que para encerrar o jogo bastaria algo da ordem de um estalar de dedos e
pronto, seu ponto seria desconectado para sempre. Talvez essa promessa seja a
única coisa que salve do tédio todos os defuntos que festejam na cidade;
mortos-vivos que se sabem mortos... mas será que vivem?

Há muito tempo li uma coluna da Eliane Brum que dizia que nos tempos de vida
virtual somos impedidos de morrer, e isso seria um horror. Mesmo depois de mortos,
continuamos vivos nas páginas de pesquisa da rede de computadores. A internet é
nosso San Junipero. Nem mais a paz dos cemitérios nós temos como garantida.
A mesma Kelly em algum momento do episódio nos diz algo como se a vida em San
Junipero, para quem escolhesse de fato ir lá depois da morte, seria um passar à
nuvem - virtualmente falando. Seria como um paraíso. Aliás, depois que construímos
o Inferno para dar conta de nossos desejos, de nossos pecados, de nossos
sofrimentos e afetos, só restou ao Paraíso ser todo tédio - como nos disse o mesmo
Schopenhauer. Curioso pensar, aliás, como construímos a ideia de Inferno: um lugar
de castigo eterno. Mas castigo é algo do corpo; será que caberia castigos à alma?
Leiam “A divina comédia” de Alighieri e vocês verão como que nos umbrais infernais
se encontra uma placa que diz: “Vai-se por mim à cidade atormentada / Vai-se por
mim à eterna dor, vai-se por mim entre a perdida gente”. Ou seja, o inferno é lugar
de dor mas, e é nisso que almejava chegar, a dor é da ordem do corpo. San
Junipero está fadado a falhar miseravelmente em sua proposta de dar vida eterna a
seus habitantes pois propôs uma eterna vida sem dor e sofrimento. E isso é
insuportável para qualquer ser humano. A dor é o que garante nossa vida, no
sentido de que nos conecta ao nosso corpo. Não basta o vento nos cabelos, as
ondas do mar sobre os pés e o gozo do sexo. A dor é essencial. Só ela é positiva, só
ela nos chama a atenção - nos lembra nosso filósofo alemão. O inferno é um lugar
humano, extremamente humano, pois garante a dor do corpo na alma, o que faz
com que nos reconheçamos como seres vivos. Os seres vivos são aqueles que
morrem e, por que morrem, sofrem.

Posso imaginar a continuidade desse episódio com filas de pessoas pulando de


prédios para tentar sentir algo, sentir que estão vivos. Inúmeros moradores antigos
estalando os dedos implorando para que seus plugs neuronais sejam desligados. A
felicidade pura é insuportável, não fomos feitos para sermos felizes. Como já nos
disse Freud, nos planos da criação, a felicidade está ausente.

Falei antes que a morte é a essência de todo ser vivo, uma vez que o que designa
um ser como vivo é o fato que ele morre. Então, a morte não só nos designa como
seres vivos, mas é justamente o que nos faz sermos seres humanos. Ela nos
inaugura como espécie, cultura e subjetividade. Como espécie, pois somos os
únicos seres que conseguimos nomear a morte e, justamente por isso, somos a
única espécie animal para quem a morte faz sentido e, mais ainda, a única espécie
para quem a morte existe.

Culturalmente, somos os únicos que cultuamos os mortos e de inúmeras maneiras.


Mais importante ainda, nossa cultura se instala, aliás, justamente com o culto aos
mortos. A primeira religião da humanidade foi o culto dos mortos, o temor aos
espíritos, os atos para expiação da culpa dos vivos e apaziguamento das almas dos
defuntos. E como subjetividade, o reconhecimento da morte nos obriga um
posicionamento frente ao absurdo de uma existência sem sentido algum, ou ao
menos sem sentido pré-estabelecido.

Agora, ao mesmo tempo que a morte inaugura a espécie, a cultura e a subjetividade,


ela também é a marca do fim de nossa espécie, de nossa cultura e de nossa
subjetividade. Eliane Brum nos lembra, em outra coluna, que daqui a 100 anos a
grande maioria de nós estaremos mortos, o que me leva a pensar que a morte, ou
melhor, a garantia de que vamos todos morrer um dia é de certa forma um alívio. A
morte é um alívio para as lembranças, os desejos inalcançáveis e o sofrimento
nosso de todo dia.

Mas vamos suspender a morte por alguns instantes e vamos falar sobre a vida. O
que é a vida? A vida é autopoiésis, é a capacidade dos seres vivos de se produzirem
e reproduzirem. Mais refinadamente poderíamos dizer que é a capacidade de alguns
entes de replicarem seus corpos ou produzirem um novo corpo por reprodução
sexuada. Até porque um ser vivo precisa ser baseado em cadeias de carbono,
átomos reais que ocupam um lugar e um momento na tecitura espaço-temporal.
Para ser vivo é preciso, então, dentro desse nosso pobre raciocínio, no mínimo duas
coisas: um corpo e que esse corpo possa se replicar.

As pessoas em San Junipero transam, isso fica claro, muito claro ao longo de todo o
episódio. Mas não aparece algo sobre se reproduzirem. Aliás, sobre o sexo, em
algum momento uma personagem fala sobre o clube de sadomasoquismo no sentido
de um lugar onde as pessoas vão para tentar sentir algo, sentirem-se vivas. Mas
será que estão vivas? Será que a existência dentro de um mundo virtual garante a
denotação de vivo para esse ser? Ou vivo é justamente aquele que possui um corpo
que corta, sangra, rasga, sofre, se reproduz e morre?

Há uma cena onde Kelly soca o espelho, ele se trinca, a câmera foca em sua mão
trêmula mas intacta, sem sangrar e logo depois volta para o espelho
automaticamente refeito. Não há sangue nas mãos de Kelly, não há dor (pelo menos
não como seria de se esperar), não há espelho trincado; na verdade, há apenas
dados. Haveria, portanto, vida?

“Qual a dimensão do sempre?” Não sei, mas parece que para alcançar tal dimensão,
é preciso se desfazer de seu corpo mortal, finito, perecível - problemática antiga na
filosofia, aliás. E ao se desfazer desse corpo? O que resta? A alma? As correntes
neuronais? Resta vida?

O corpo é o que resta sempre quando se questiona a possibilidade da eternidade. O


corpo está aí para escancarar o fato de que, sem ele, podemos até existir, mas não
poderemos chamar tal existência de vida. O corpo é o resto da operação de soma de
dois outros corpos; é o que resta depois de um orgasmo. O corpo é o resto que faz
possível uma existência subjetiva que pode até prescindir dele porquanto toda
existência é da ordem da linguagem, mas para ser viva, essa linguagem precisa se
encarnar, precisa estar apta a sofrer. Por isso o carnaval é a festa da vida, a
celebração da carne!

San Junipero é um cemitério, como por vezes foi descrito pelas personagens. Mas
não porque seus habitantes estavam mortos e sim porque é no cemitério que vemos
a concretização da morte na evaporação, por assim dizer, dos corpos.

É claro que podemos seguir o raciocínio de Lacan e dizer que mesmo depois de
mortos continuamos vivendo enquanto falados por outros; ou seja, nossa existência
está garantida enquanto nosso nome continuar a ser declarado. Mas existir no
discurso não garante que estejamos vivos. Já existíamos antes de nosso
nascimento, isso é um fato. Existíamos no desejo de nossos pais, no mínimo. Mas
isso não nos faz dizer que vivíamos, porquanto esse discurso não estava encarnado.
Agora, continuar existindo depois da morte também não garante que possa haver
vida depois da morte.

Seja como for, San Junipero nos mostra uma realidade interessante onde a
existência se condensa em um ​plug​. As memórias continuam, mas memórias que
perdem o sentido pois não marcam o corpo. Estão nas nuvens e não mais nas
entranhas de meu submundo.

Enfim, “Qual a dimensão do sempre?”. Para existir um sempre é imprescindível que


não se tenha um corpo. Sempre é da ordem do etéreo, da nuvem, do divino, de
sphairos.​ Não é da ordem do corpo. A não ser, claro, que a ciência em algum
momento consiga inventar um sistema que deixa o corpo eterno, imortal. Mas aí
cabe um outro questionamento: “um corpo que não morre pode ser nomeado como
um corpo vivo?”.

--x--

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