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Junguiana

v.35-2, p.37-46

O quarto de Jack: tecendo símbolos da relação


primal à luz da teoria de Erich Neumann

Paulo Henrique Nogueira Lima*


Thais Cristina Rades**

Resumo Palavras-chave
Este ensaio propõe a análise simbólica da Relação primal,
obra cinematográfica “O quarto de Jack”, en- desenvolvi-
tendendo-a como uma alegoria para explicitar mento infantil,
psicologia
a relação primal entre mãe e bebê, descrita por
analítica.
Neumann. Elementos dessa história, tais como
a inconsciência do mundo externo pela criança
e o período de isolamento em que se mantém
circunscrito a seu mundo privado, semelhante a
um útero psíquico, característico desta fase, le-
varam-nos a concluir que ela pode ser considera-
da um excelente representante simbólico desta
teoria, tanto pelos aspectos visuais e linguísti-
cos quanto pelo desenvolvimento cronológico. ■

* Graduando em psicologia Centro Universitário São Camilo;


E-mail: tintrap74@gmail.com
** Psicóloga Clínica. Doutoranda em Psicologia da Educação pela
PUC- SP. Professora do curso de graduação em Psicologia do
Centro Universitário São Camilo.
E-mail: thais.rades@hotmail.com

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O quarto de Jack: tecendo símbolos da relação primal à luz da teoria de Erich Neumann

1. Introdução Quando a mente explora um símbolo, é


A ideia de produzir este ensaio se concreti- conduzida às ideias que estão fora do al-
zou pela possibilidade de exemplificar a teoria cance da nossa razão. (JUNG, 2008, p. 19).
sobre o desenvolvimento emocional da crian-
ça sob a ótica de Erich Neumann. Partindo Dessa forma, o presente ensaio ousa buscar
da proposição da disciplina Psicoterapia da nesta obra literária e em sua adaptação cinema-
criança e do adolescente, pertencente à gra- tográfica, os símbolos que expressem a ideia
de curricular do curso de Psicologia do Centro daquilo que Neumann (1995) chamou de relação
Universitário São Camilo, teceu-se a constru- primal, uma complexa ligação que se dá entre
ção de uma análise simbólica dos elementos mãe e bebê, que vai do nascimento até aproxi-
constitutivos de uma obra literária e de sua madamente seu primeiro ano de idade, quando
adaptação cinematográfica. o ego começa a nascer para o mundo. Segui-
O livro “O quarto”, de Emma Donoghue, lan- remos então uma interpretação da história do
çado em 2010 e nomeado pela revista The New quarto por meio dos pressupostos da psicologia
York Times1 como um dos 10 melhores livros de analítica de Jung e Neumann.
seu ano, assim como o filme, “O quarto de Jack”,
dirigido por Lenny Abrahamson (2015), produzi- 2. O quarto
do e indicado a quatro categorias do Oscar em Um pedaço de parede e tudo se apaga. Um
2016, inspirado no livro e com roteiro da auto- pedaço de balde e tudo se apaga. Um pedaço
ra, conta a história de Joy, uma jovem raptada e da privada e tudo se apaga. Um pedaço da pia
mantida em cativeiro por sete anos, dos quais e tudo se apaga. Um pedaço da prateleira e tudo
cinco passou com seu filho Jack, resultado de se apaga. Um pedaço de folha e tudo se apaga.
um dos estupros cometidos pelo sequestrador. Um pedaço de colchão e tudo se apaga. Acen-
Encontramos na história uma riqueza de carac- de-se o abajur, apaga-se o abajur, acende-se
teres simbólicos, sobre a relação mãe-filho, o abajur, apaga-se o abajur. O filme de Lenny
presentes tanto no livro quanto no filme, e que Abrahamson (O quarto, 2015) traz, em sua pri-
inspiraram a produção desse ensaio. Propomo- meira cena, justamente a imagem do que pode
-nos então a levar o leitor, não a uma análise de ser comparado ao início da percepção do mundo
fatores concretos, mas às suas possibilidades pelo do ego da criança, uma percepção ainda os-
de interpretações metafóricas. cilante e cambiante. Jack, ao se dar conta de que
está completando cinco anos, relembra de seus
Assim, uma palavra ou uma imagem é aniversários anteriores, fazendo uma contagem
simbólica quando implica alguma coisa regressiva: 4,3,2,1... E, então, diz “mas eu já fui
além do seu significado manifesto e ime- menor do que 0?”. Ao levantar esse questiona-
diato. Esta palavra ou esta imagem tem mento, percebemos a analogia com a pergunta
um aspecto “inconsciente” mais amplo, que estamos tentando responder nesse ensaio:
que nunca é precisamente definido ou o que éramos nós antes de uma individualidade
inteiramente explicado. E nem podemos e de termos um ego?
ter a esperança de defini-lo ou explicá-lo. Scott (1948 apud Neumann, 1995, p. 13) pa-
rece concordar com a ideia de que o desenvol-
1
http://www.nytimes.com/2010/12/12/books/review/10-best-
books-of-2010.html. vimento do ego não acontece de maneira linear

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e gradativa, mas de maneira cíclica e alternada, têmporo-espacial experimentando uma noção


quando diz que “uma parte da imagem corporal, de ser infinito quanto às suas dimensões:
do ego em desenvolvimento, consiste numa per-
cepção constantemente cambiante do mundo”. A criança tem uma imagem corporal ain-
Um lugar escuro, sem cor, sem vida e sem es- da indiferenciada e por isso mesmo tão
paço nenhum além daquele em que cabem sua grande e ilimitada quanto o cosmos. Sua
mãe e a si próprio. Uma prisão, assim é o quarto configuração particular encontra-se de tal
em que Jack nasceu e desde então nunca saiu. O forma fundida com o mundo, e daí com
espectador vivencia um contraste entre a sensa- tudo aquilo que chamamos de externo,
ção de estar sufocado e a estranha naturalidade que sua extensão poderia ser chamada
com que Jack vive lá dentro. Pelos olhos dele o de cósmica. (NEUMANN, 1995, p. 13).
quarto é um lugar aconchegante, completo e ínti-
mo. Neste pequeno cômodo encontramos então Jack, em correspondência com essa percep-
todos os elementos de um dos símbolos mais ção espacial, responde quando lhe perguntam
importantes, o qual iremos explorar. Que símbo- se o quarto não era muito pequeno – “Não, ele
lo é esse? Ora, o que pode ser mais escuro e não ia em todas as direções e chegava até o fim.
menos aconchegante, apertado e tão íntimo, va- Nunca acabava”.
zio e ao mesmo tempo tão completo, do que o Porém, não é o ego da mãe que estará pre-
útero materno? Porém, nesse caso, mais do que sente nessa relação primal, e sim, uma parte
um útero fisiológico, se trata aqui de um útero do seu inconsciente, principalmente o seu Self,
psíquico do qual nascerá o ego da criança. bem como o arquétipo da Grande Mãe. Assim,
Após o seu nascimento, a criança se en- dentro da cobra urobórica estará uma parte da
contra ainda tão conectada com a mãe que se mãe e todo o psiquismo da criança. Mais uma
infere a ideia de que seu ego esteja ausente. É vez encontramos no filme uma ótima imagem
dessa primeira conexão, desse útero psíquico, que lembra exatamente essa relação: em uma
que Neumann (1995) propõe que nascerá o ego. passagem, quando aparecerem Jack e sua mãe
Para o bebê, antes do término dessa fase, não envoltos em uma cobra de brinquedo.
existe ainda consciência do mundo externo, nem
de sua mãe ou de si mesmo. Por isso Neumann Nessa relação primal, a mãe também vive,
(1995) designou como símbolo representante da mesma forma que a criança, numa re-
dessa relação primal o uroboros, a serpente que, alidade unitária arquetipicamente deter-
engolindo a própria cauda, forma em si uma cir- minada, porém só uma parte de si entra
cunferência. O uroboros é um símbolo perfeito nela, porque seu relacionamento com o
para esse útero psíquico já que no momento em filho domina apenas um segmento da sua
que a cabeça engole a cauda, deixa de existir iní- existência total. A criança, no entanto, en-
cio e fim, e com as extremidades se unindo anu- contra-se totalmente imersa nesse reino,
lam-se as polaridades. Ou seja, por estar contida sendo que, para ela, nesse caso, a mãe
nesse uroboros, a criança não possui a sepa- representa tanto o mundo como o Self.
ração consciente-inconsciente, ego-Self, den- (NEUMANN, 1995, p. 13).
tro-fora, sujeito-mundo. Ou seja, quarto e mãe
servem como vaso urobórico, onde, imerso em Em outra cena, sua mãe tenta lhe explicar
seu inconsciente, está Jack, ainda ignorando a que nem sempre esteve dentro daquele quarto.
existência do mundo externo. Além da ausência Usando o exemplo de Alice no País das Maravi-
de polaridades, o indivíduo imerso no uroboros lhas, diz que, assim como a Alice nem sempre
apresenta também uma ausência de percepção esteve dentro do buraco, também ela teve outra

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vida lá fora. Explica que fora do quarto ela era mesmo se aplica à unidade da vida no interior
uma menina chamada Joy, que tinha pais e mo- do uroboros, que, tal como o pântano, gera,
rava numa casa com eles. Neste trecho podemos dá à luz e mata no círculo sem fim do eterno
aludir a relação do quarto com o uroboros, por- estar-enterrado-dentro-de si-mesmo”.
que fora dele está o ego e as personas da mãe, e Ao saber da existência das duas realidades,
dentro está o arquétipo da Grande Mãe. uma interna e outra externa, Jack se angustia e
Na relação primal é o arquétipo da Grande começa a chorar. Neumann (1995) diz ainda que
Mãe, juntamente com o Self da mãe, que auxi- a primeira sensação que o ego vivencia é a da an-
liam o filho a criar um ego. Dentro do uroboros gústia pela experiência conflituosa entre as po-
está o filho, mas não o seu ego, e sim o seu Self. laridades (dentro e fora, eu e tu, Self e persona).
Conforme Neumann (1995), o Self da mãe esti- Essa angústia é o cerne de todas as aflições da
mula o Self do filho para que este gere um ego de vida adulta, caracterizada pela incapacidade do
dentro de si mesmo. É justamente isso que ve- ego de se identificar por completo com nenhuma
mos no filme, a mãe de Jack preparando-o para dessas polaridades. Se o uroboros representava
que ele possa entrar em contato com o mundo então a ausência de polaridades, o ego é repre-
externo, já que é a consciência e a relação com o sentado por esse eterno conflito e incapacidade
mundo que caracterizam o ego. de conciliação entre as polaridades.
É interessante ainda pensar na imagem do Na cena seguinte, Jack estava dormindo
buraco em que a Alice cai, trazida pelo filme, quando o abajur acende sozinho, bem acima
porque, segundo Neumann (2013, p. 31), esse da sua cabeça, e permanece aceso, então ele
útero psíquico, que guarda o filho, muitas vezes repousa sua mão sobre a luz do abajur. Em com-
é representado por figuras alegóricas como bu- paração com a primeira cena do filme em que o
racos e cavernas: “Todas as coisas profundas – abajur fica piscando (onde a luz da consciência
abismo, vale, solo, assim como o mar e o fundo do ego ainda está oscilando) aqui a luz acende e
do mar, fontes lagos e poços, a terra, o mundo permanece acesa. Ou seja, o ego acordou. Agora
interior, a caverna, a casa e a cidade – são partes que há a consciência do dentro e do fora, o ego
desse arquétipo”. está aceso. Podemos dizer também que a luz do
Isso sem falar que a própria estrutura física mundo externo está adentrando a caverna do
do quarto remete muito à ideia de uma caver- uroboros e alcançando o ego.
na, tanto pelo fato de ser extremamente escuro,
quanto pela maneira como a luz entra no local, 3. A subida do ego
através de uma claraboia no teto. Neumann (1995, 2013) discorre sobre o fato
Mas, “Eu quero ter quatro anos de novo...”, de que, à medida que o ego vai se desenvolven-
é o que Jack diz à sua mãe ao descobrir a exis- do e inicia sua partida rumo a saída da caverna,
tência de um mundo real fora do quarto. Ele preparando-se para se desligar completamente
chora, resiste e diz que não quer acreditar nes- da relação primal, o arquétipo da mãe, por con-
se “mundo fedido”. Sua reação exprime exata- sequência, também se desligará desta relação.
mente o que Neumann (1995) diz ser a natural Então, enquanto o ego da criança está nascen-
atitude do Self do filho diante da eminente se- do para o mundo externo, o arquétipo da mãe
paração do Self materno. Essa resistência por está morrendo para a relação primal. Essa di-
parte do Self é quase que um instinto de au- nâmica também acontece no filme, ainda nessa
topreservação, numa tentativa de se manter cena em que o abajur fica aceso, a mãe de Jack
conectado à mãe, nesse uroboros. Neumann não encontra forças para se levantar e passa o
(2013, p. 47) traz a analogia do pântano para dia todo deitada, e Jack fala: “você é a melhor
representar o poder dessa conexão primal: “O em ler, contar histórias e em várias outras coi-

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sas, exceto quando está em um dia de morta”. meira fase da infância, a tendência que o Self tem
Ou seja, na mesma cena em que vemos o ego para relacionar-se com um ‘tu’ é ‘dada’, e do nos-
de Jack acendendo (como o abajur) e nascendo, so ponto de vista, externalizada, pela mãe”.
vemos o arquétipo da mãe morrendo. Neumann No filme encontramos justamente isso, a
descreve como necessário ao nascimento do ego mãe de Jack não só o torna consciente do mun-
para o mundo consciente e masculino (fora do do externo, como faz com que ele saia do quarto
mundo inconsciente materno) a morte simbólica e ainda diz que a primeira coisa que ele preci-
da mãe, ou, em outras palavras, a subjugação do sará fazer é se comunicar com alguém e levar a
inconsciente pelo consciente: mensagem de que existe esse quarto, essa pri-
são. A função de Jack ao sair era então levar a
Umas das partes do mito da luta do herói mensagem sobre a existência do quarto para o
com o dragão é a conquista ou o assassi- mundo externo, ou seja, a função do ego é esta-
nato da mãe. A masculinização bem suce- belecer relação e comunicação entre o mundo
dida do ego encontra expressão em sua interior e o exterior. Apavorado diante da ideia
combatividade e prontidão para expor-se de ter que deixar a sua mãe, Jack se nega a sair
ao perigo simbolizado pelo dragão. Foi a do quarto. Para minimizar a angústia do filho,
identificação do ego com o lado masculi- Joy diz que uma parte dela irá junto com ele,
no da consciência que primeiro estabele- dando-lhe um dos seus dentes. Jack o coloca
ceu a divisão psíquica em opostos, o que dentro de sua boca e, agora, pelo pedaço de sua
permite que o ego enfrente o dragão do in- mãe que ele tem dentro de si, está pronto para
consciente. Essa luta é representada como sair. Neste trecho, a simbologia percebida re-
penetração na caverna, descida ao mundo presenta outra característica da relação-primal
inferior, ser engolido, ou enfim, incesto descrita por Neumann:
com a mãe. (NEUMANN, 2013, p. 122).
Ao longo do desenvolvimento da criança, o
Mais surpreendente ainda é encontrar uma Self encarnado na mãe da relação primal,
cena em que, depois de sair do quarto, Jack brinca ou, para formulá-lo de maneira mais caute-
que está ‘sendo engolido para dentro do abismo’. losa, o aspecto funcional do Self encarna-
Podemos considerar que essa brincadeira se tra- do na mãe, que na relação primal torna-se
ta de uma re-elaboração simbólica da luta e con- experiência formativa para a criança, deve
quista sobre o inconsciente materno. gradualmente “deslocar-se” para o interior
O Self materno não apenas estimulará o Self da criança. (NEUMANN, 1995, p. 13).
do filho a gerar um centro da consciência, o ego,
como “ensinará” que a função desse ego deverá Além do dente, sua mãe diz que não preci-
ser mediar a relação entre o mundo interno e o ex- sa ter medo porque ela será como uma voz em
terno. Assim, o Self materno mostrará para o ego sua cabeça lhe dizendo o que precisa fazer, ilu-
do filho que este deve estabelecer relação com minando a ideia que nosso Self frequentemente
um “tu”. O próprio ego só se estabelece como tal se expressa através de uma “voz em nossa cabe-
a partir do momento em que ele concebe a reali- ça”, principalmente em nossos sonhos. Jung fala
dade de um “tu” e se torna apto a se relacionar sobre o caráter dessa voz:
com ele. Em outras palavras, podemos dizer que
a primeira ação do ego após seu nascimento, O que a voz diz, possui, de fato, um cará-
deverá ser a de estabelecer relação com o “tu”, ter de verdade irrefutável, de modo que é
e quem estimulará essa dinâmica será o Self da quase impossível não reconhecê-la como
mãe. Segundo Neumann (1995, pág. 14), “Na pri- uma conclusão de uma prolongada e in-

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consciente meditação e ponderação de O herói é o representante simbólico do


diversos argumentos. Frequentemente a movimento da libido. A entrada no ven-
voz provém de um indivíduo imperioso, tre do dragão representa a direção re-
de um chefe militar, por exemplo, ou do gressiva. [...] A circunstância de o herói
capitão do navio, ou ainda de um médico. ser devorado e desaparecer inteiramen-
(JUNG, 2011, p. 56). te no ventre do dragão significa o alhea-
mento completo da atitude com relação
Depois que Jack sai do quarto ele traz uma ao mundo exterior. O ato de dominar o
fala extremamente significativa a respeito do monstro a partir de dentro representa
que ele observa de diferente entre o quarto e o esforço de adaptação às condições
o mundo externo – “Tem muitos lugares nesse do mundo interior. (JUNG, 2002, p. 27.
mundo, mas tem menos tempo, porque o tempo [grifo nosso]).
tem que ser bem espalhado para ficar um pouco
em todos os lugares”. O alheamento completo da atitude com rela-
Nesse momento aparece o ego elaborando ção ao mundo exterior, que no mito corresponde
sua percepção do tempo e espaço, sendo essa, ao devoramento completo e desaparecimento
outra característica e função do centro da consci- do herói no ventre do dragão, no filme pode es-
ência, o de situar o ser no aqui e no agora. Com- tar representado pelo ato de Jack não só entrar
parado a percepção de mundo que Jack tinha no quarto, mas querer que a porta ficasse fecha-
quando estava no quarto, relatado no início do da. As adaptações às condições do mundo inte-
ensaio, com a que ele apresenta agora, observa- rior, que no mito são expressas pelo domínio do
mos que, enquanto a primeira consistia em uma monstro pelo herói, no filme pode ser simboliza-
noção infinita e cósmica das dimensões espa- do pelo pedido de Jack para que sua mãe tam-
ciais, a segunda se caracteriza pela delimitação bém se despeça do quarto, ou seja, Jack como
têmporo-espacial. um herói representante do ego, termina, na his-
O filme de Lenny Abrahamson termina com tória, da mesma maneira com que começou, de-
a mesma profundidade simbólica com que co- senvolvendo-se ciclicamente. Semelhante a um
meça. Em uma das cenas mais emocionantes corpo que, pela sua energia cinética, mantém-se
do filme, Jack, nos minutos finais, volta até em movimento, desde que percorra um trajeto
o quarto para, junto de sua mãe, se despedir senoidal adequado, o ego, aqui, atingindo o má-
dele. Se pensarmos que, do momento em que ximo de seu estágio progressivo, só poderá con-
Jack sai do quarto até o final do filme, ele está tinuar desenvolvendo-se caso se renda agora à
em um processo de constante adaptação às exi- regressão.
gências do meio externo – processo esse que
Jung (2002) irá chamar de progressão da libido 4. Conclusão
– então, o momento em que ele sente a neces- Para compreender um símbolo é necessário
sidade de entrar mais uma vez no quarto pode inclinar-se diante dele, e dar-lhe assim, o poder
ser comparado a uma necessidade de retomar de nos afetar. É dispor-se a ouvi-lo e se alinhar a
o contato com os conteúdos urobóricos do in- toda gama de expressividade que lhe é inerente,
consciente, ou, conforme nomeia Jung (2002) a dando a ele a oportunidade e autoria da exterio-
regressão da libido. Jung ao usar o exemplo do rização de si mesmo. Foi o que fizemos com o fil-
mito do dragão baleia, descrito por Frobenius me de Lenny Abrahamson, na esperança de que
nos mostra como esse processo de regressão ele se apresentasse a nós como um represen-
pode ser simbolizado como um retorno ao ven- tante alegórico da relação que Neumann (1995)
tre do inconsciente: nomeou como primal, entre mãe e filho.

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Inclinados, então, diante da íngreme desci- o famoso Fred Hoyle em Cambridge, escreve de
da que nos levaria até as profundezas do quar- modo bem ingênuo um livro sobre este motivo,
to, vislumbramos não apenas um, mas diver- uma novela, sem ter nenhuma idéia a respeito
sos símbolos que expressaram bem a teoria de do que de fato escreve”.
Neumann. Estes se manifestaram a nós por via Tanto nesta obra cinematográfica quanto em
da linguagem, de imagens e até mesmo de re- tantas outras, podemos permitir a interpretação
ferências a outras obras, encontradas tanto no simbólica e, neste caso, possibilitando a análise
filme quanto no livro. O próprio desenvolvimento de uma teoria de abordagem analítica. Assim,
cronológico da história parecia seguir os passos propusemos este ensaio que contribuiu para
e caminhar em paralelo ao nascimento do ego reflexão e ilustração da teoria de Neumann, no
para fora da caverna do inconsciente. tocante ao funcionamento da relação primal, fa-
Muito provavelmente os objetivos do livro e cilitando nossa própria aprendizagem mediante
do filme não fossem criar essas metáforas, tam- ao vasto campo de compreensão do desenvolvi-
pouco assemelhá-las às obras de Neumann, mas mento emocional humano. ■
assim como Jung (2015, p. 33) nos lembra, nem
sempre captamos o sentido dos símbolos que se
expressam através de nós: “Até um astrônomo, Recebido em: 15/08/2017 Revisão: 13/11/2017

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Abstract

“Room”: forging symbols from the primal relationship according to the Erich
Neumann’s Theory
This essay suggests the symbolic analysis of in which his world is circumscribed, similar to a
the cinematographic work “Room”, as an alle- psychic uterus of this phase - led us to the con-
gory to explain the primal relationship between clusion that “Room” can be considered an excel-
mother and baby, described by Neumann. Fea- lent symbolic nominee of this theory, as much
tures of this novel - as the child’s unconscious- by its visual and linguistic aspects as by the
ness of the external world and the confinement chronological development. ■

Keywords: Primal relationship, child development, analytical psychology.

Resumen

“La Habitación”: tejiendo símbolos de la relación primal a la luz de la teoría de


Erich Neumann
Este ensayo propone un análisis simbólico mantiene circunscrito en su mundo privado, se-
de la obra cinematográfica “La habitación”, en- mejante al útero psíquico característico de esa
tendiéndola como una alegoría para explicitar fase -, nos han llevado a concluir que esta obra
la relación primal entre madre y bebé, descri- puede ser considerada una excelente represen-
ta por Neumann. Características - tales como tante simbólica de esa importante teoría, tanto
la inconsciencia del niño en relación al mundo por los aspectos visuales y lingüísticos, como
externo y el período de aislamiento en que se por el desarrollo cronológico. ■

Palabras claves: Relación primal, desarrollo infantil, psicología analítica.

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Referências
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Verus, 2016. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015.

JUNG, C. G. A energia psíquica. 8. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, NEUMANN, E. A criança. 10. ed. São Paulo, SP: Cultrix, 1995.
2002. (Obras completas de C. G. Jung, v. 8/1).
NEUMANN, E. História da origem da consciência. 14. ed.
JUNG, C. G. (Org.). O homem e seus símbolos. 2. ed. Rio São Paulo, SP: Cultrix, 2013.
de Janeiro, RJ: Nova Fronteira, 2008.
O QUARTO de Jack. Direção: Lenny Abrahamson. Roteiro:
JUNG, C. G. Psicologia e religião. 9. ed.Petrópolis, RJ: E. Donoghue. Los Angeles: Universal Pictures, 2015. (117
Vozes, 2011. (Obras completas de C. G. Jung, v.11/1). minutos), son., color., 35 mm.

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