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Decameron - Giovanni Boccaccio

FUNÇÃO E PROVEITO DA NARRATIVA


A obra de Boccaccio não é moralista em si, mas um exemplum (vivência da moral cristã). Sua crítica é
à Igreja enquanto instituição, e não ao Cristianismo como religião. O Decameron, destaca as devoções e
misticismos exagerados (martírio, sacrifícios, penitências, abstinência sexual, etc) e faz a crítica de uma
religião mais voltada ao medo e ao terror.
A literatura medieval tinha preferência pelo ensinamento cristão: no exemplum, o mal é demonstrado
e depois criticado ou apenas se mostra o bem. Estava embutido aí um conceito moral, e o proveito que se
tirava dos textos era de moralidade. Essas eram as características primordiais da “literatura de proveito”, que
traz sempre a possibilidade de experiência (tornar presente algo que não se vivenciou), podendo-se aprender
com ela. E o Decamerão não foge a isso, e se direciona ao ensinamento cristão.

PRIMEIRA JORNADA, NOVELA 01


Pânfilo quer deixar patente, “de acordo não com o juízo de Deus, mas seguindo o dos homens”, que
Deus atende a todos os que lhe enviam preces, considerando mais a pureza de coração que a estupidez do
orante.
A primeira novela é a história de um homem (Ciappelletto) que estando a serviço de seu patrão, na
Borgonha, e sendo perverso enganador dos homens, era “materialista”, falsificador, mentiroso, bêbado,
semeador de discórdias, e blasfemador contra Deus um dia encontra-se em perigo de morte em casa de dois
irmãos que o acolheram mais por apreço ao patrão deste homem.
Vendo-o morrer, e preocupados pelo escândalo que tal morte podia lhes custar aceitam tomar parte
nos planos de tal homem: chamam um santo frade, de vida corretíssima, para lhe confessar os pecados (ele
que nunca se confessara!). Enganando o padre, se passa por homem casto e puro e é enterrado, com as
devidas honrarias, na capela do convento e sendo, logo após seu enterro, venerado como santo, São
Ciappelletto.
Pânfilo diz que tudo é possível a Deus, mesmo tornar beato Ciappelletto, mas como isso é inacessível
a nós, o cria nas mãos do demônio, por isso crê que a bondade se dá menos em função dos erros dos homens,
que pela pureza de sua fé. Se Ciappelletto foi tornado intercessor dos homens diante de Deus (ele que fora
Seu inimigo), isto que dizer que Deus ouve os homens como se esses recorressem a um “santo de verdade”.
Nessa primeira novela, a estória está sendo narrada no sentido de mostrar toda a monstruosidade da
vida de Ciappelletto e sua “conversão” em santo após a morte – que a todos redime. Boccaccio expõe de
início todos os seus vícios, sua perversidade e gosto pelo erro; sua falta de piedade cristã e sua vida de
blasfemador. Parece querer marcar muito bem quem é o homem que, por uma confissão mentirosa,
abusando da fé de outrem, se faz santo e digno de honrarias. Com isso parece ter a intensão de deixar bem
visíveis os limites da santidade para Deus – que a todos, por sua Graça, pode redimir e santificar – e para os
homens, que julgam pelas tênues aparências da vida.
Boccaccio aqui, aponta para grandes temas como a morte (o horror e medo que causa a morte fora
dos sacramentos; a falta de caridade com um homem doente em perigo de morte, e a censura advinda do
não acolhimento de um homem doente que está em vias de morrer; o horror que causa um corpo insepulto;
os ritos que cercam a ocasião da morte), a vida urbana (os tipos que aí viviam; o ódio do povo a certas
“profissões”, como a de usurário; o convento dos frades dentro da cidade; a piedade franciscana –
imaginando-se que se trate de um frade franciscano; o espaço reservado aos mortos, monopolizado pela
Igreja).
No parágrafo um do prefácio o autor sugere a compaixão pelos aflitos e a amizade ligada à ideia de
consolação e retomada da razão (ragionamento). Ele fala de “limites convenientes” demonstrando o
contraste entre a sua baixa posição e o seu modo de falar( compõe sua obra em estilo médio). O autor dedica
sua obra às senhoras, mulheres pertencentes à nobreza, que se encontra em transição para a burguesia(
oscilação das classes se reflete na obra). No ato de oferecer a obra às senhoras ocorre a distinção entre a vida
ativa e a vida ociosa, sendo que o lugar da mulher é não ter acesso à vida prática, somente à doméstica.
Quando refere-se a um “honesto grupo”, o autor refere-se a virtudes sociais que equivalem a pecados
divinos;o deleite, o prazer. Rompe, assim, com o teor religioso e moral de outros tipos de narrativas da época
AMOR, ENGENHO E FORTUNA são os três grandes temas do livro. FORTUNA no sentido de Destino.
Para ele, é necessário o equilíbrio na relação amorosa marcada pela mediação( lembrar do estilo médio) da
razão.
É condição para o surgimento do estilo médio de Bocaccio o aparecimento de burgueses no século XIV
interessados nas tendências humanistas de características pessoais e visão realista. Sua narração não clama
pela piedade divina, e expõe que ela não surtiu efeito diante da peste. Ou seja, as questões humanas
sobrepõem-se às questões divinas. O prólogo demonstra que se tratará dos assuntos dos homens, e não dos
assuntos de Deus. Vemos a descrição fisiológica dos sintomas da peste, quase que uma análise científica,
observação, totalmente distante da fantasia ( DESCRIÇÃO OBJETIVA DE ROSENFELD- ÉPICA). Levanta-se a
questão da inutilidade do conhecimento humano frente as imprevisibilidades da vida; o saber nunca é tão
vasto que não possa falhar em sanar as questões que se apresentam. O contágio da doença reitera a
fragilidade humana e transmite a ideia de que afetaria a todos, sem distinção de classe ( todos em pé de
igualdade). E estratificação não importa mais, pois a peste corrói a ordem divina natural. Existe também uma
metáfora do declínio da condição humana na descrição dos fatos. O Homem é visto como espécie pior que as
demais, contagiosa. Se a ordem cristã não mais vale, se o Homem não mais vale, existe a ausência de um
código moral unificador. Nesses fatos está presente o prenúncio da filosofia burguesa, nesse conflito entre as
filosofias cristãs vigentes e a realidade da peste. Laços civis, laços sociais e laços familiares se desfazem. Ocorre
a bestialização do homem e a racionalização dos animais.
Em alguns momentos, Bocaccio apresenta um tom lírico para falar da saudade dos mortos e da
desgraça ( ROSENFELD- SIGNIFICADO ADJETIVO DOS GÊNERO). A reunião entre os jovens é uma tentativa de
restabelecer a ordem perdida, e a fuga da cidade é um Idílio, um contraste entre a peste e um momento de
jovialidade. Toda a descrição do acordo entre os jovens e seu exílio é uma moldura para as novelas que se
seguem.
A primeira novela se dá nos moldes de um Fabliaux( tempo impreciso, assunto baixo, crítica ao clero,
final moralizante). Discorre sobre a imprevisibilidade da vida e apela para a providência divina, retoma a
questão da peste nos moldes de uma fábula moralizante, ou seja, uma paródia. No que tange a forma, é
importante apontar que o narrador não está preso às representações prévias das personagens, mas modela
a narrativa à sua vontade.
Bocaccio, na primeira novela, inicia com uma rubrica, um resumo. O primeiro parágrafo remete á
invocação da musa nas epopeias clássicas. Lembrar que o estilo médio está refletido também na figura dos
santos, os quais são um mezzano entre os homens e deus. A todo o momento, na obra, percebe- se a
referência ao estilo médio. É inovador, em Bocaccio, os personagens caracterizados na sua individualidade.
São dotados de aspectos próprios, mais que o arquétipo que representam. Além disso, as classes
representadas apresentam características que lhe cabem.
Na primeira novela, Ciappeletto padece enquanto os agiotas calculam o que irão fazer (mentalidade
burguesa de calcular os ganhos e as perdas). Ciappeletto negocia com os agiotas ( novamente a mentalidade
burguesa, negociação, troca) para que aqueles chamem um frade para sua confissão. Ciappeletto é um
falsário, e em sua confissão apresenta-se como santo. A relação entre o que é o que aparece é dialógica. A
dubiedade de um homem de moral duvidosa que é canonizado se reflete em toda a obra, e funciona como
uma crítica ao Clero. Ou seja, uma instituição que aparenta guardar a moral e os bons costumes, mas na
realidade se vende inescrupulosamente.
Em Ciappelleto prevalece o conflito entre o Essencialismo( mundo como retomada do mundo das
essências universais) e o Nominalismo (o universal não existe, e se existe, a ele não temos acesso. cada coisa
é particular, e tudo vale por si mesmo). A novela coincide com o nominalismo. A falsa confissão representa a
hipocrisia da conciliação entre religião e mercado
Bocaccio questiona a ideia de que uma fábula deva transmitir a Verdade. Em sua obra prevalece a
sugestão da reflexão sobre o que consideramos absoluto e imutável. O poeta não assume um compromisso
com a Verdade, mas sim com a reconstrução das dinâmicas da história. Seus narradores são a expressão de
uma nova elite cultural. Por que? Porque o distanciamento da cidade representa o distanciamento entre a
tradição oral e a escrita. O que é essencialmente novo em Bocaccio? A institucionalização da narrativa, a
leitura solitária e em silêncio. A cada dia, um novo rei é proclamado entre os jovens. A isso corresponde a
ideia de autoria. Além disso, cada um ESTÁ rei, introduzida a noção de democracia. Os jovens dialogam,
solucionam seus conflitos por meio de tal recurso, e a discussão racional é um modelo burguês. Por fim,
existimos por nós mesmos em Bocaccio, o humanismo aflora.

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