Você está na página 1de 369

Comentários à edição brasileira de

A crise do movimento comunista

"O livro relido hoje, depois de devorada


a edição francesa de 1972 como autêntica
revelação, se ressente, aqui c ali, de algum
esquemntismo ao atribuir muitas viradas do
Comintern aos ditames da política externa
de Moscou. Na verdade, a pesquisa histórica
posterior demonstrou que muitas decisões,
como a virada de 1934-1935, da tática classe
contra classe (socialistas igual a fascistas) pa­
ra a frente popular, deveu-se a algumas revi­
sões autônomas dentro dos próprios partidos.
Comentário injusto porque o próprio Claudín
se reviu no seu belo ensaio ‘La politica di
fronte popolare nell’Internazionale Comu­
nista’ (in Problemi dell’Internazionale Co­
munista, 1919-1939, Einaudi, 1974). E
também no seu último livro, prolongamento
direto daquele agora lançado, A oposição no
‘socialismo reai’ (Marco Zero, 1983) — in-
competentemente passado em brancas nu­
vens no debate brasileiro — , onde desvenda
as lutas contra os sucessores do Comintern
nas tiranias da URSS e do Leste europeu.
É uma bênção — sacrifiquemos aos tem­
pos natalinos — despencar, nesse final de
ano chocho, esse livro de scholar e comba­
tente que ajudará a espantar as velharias que
os partidos comunistas de várias procedên­
cias continuam a fazer circular aqui.”

Paulo Sérgio Pinheiro


‘‘Daí a importância de um livro como
A crise do movimento comunista, de Fer­
nando Claudín, recentemente lançado em
ferrando dautti
português pela Global. Esta obra se impõe
como um marco na reflexão crítica da es­
querda. Talvez o grande mérito de Claudín
a crise
tenha sido, ao lado da análise cuidadosa e
rica das questões teóricas e filosóficas de
fundo, a capacidade de identificar as ex­
do movimento comunista
periências e os fatos mais significativos,
documentando-os solidamente, de forma a
torná-los propriamente ditos. Sim, porque a
historiografia oficial comunista procura
negar e ocultar os próprios fatos, com um
discurso generalizador.” Este volume corresponde à segunda parte de A crise
do movimento comunista (“O apogeu do stalinismo”), onde
Claudín analisa o período que marca a absoluta dominação
da política staliniana em todo o movimento comunista inter­
nacional, desde os anos imediatamente anteriores à eclosão
da Segunda Guerra Mundial, com o pacto germano-so­
Carlos Eduardo Carvalho viético, passando por todos os acontecimentos da resistência
ao nazi-fascismo, o “cisma iugoslavo”, e culminando com
o período do pós-guerra, com o abandono e o fechamento
do Kommintern e sua transformação no Komminform, no
‘‘Mas, de qualquer maneira, a leitura do auge da guerra fria.
livro de Claudín é de uma importância ines­ Completa-se assim o ciclo histórico estudado por
timável, e não apenas para o conhecimento Fernando Claudín em sua monumental obra a respeito do
da história. As questões em debate na época movimento comunista internacional, que constitui o tomo I
continuam atuais: a crise do capitalismo, a de sua pesquisa.
possibilidade do socialismo, a necessidade
da construção mundial de partidos capazes
de trabalhar nesta direção, etc. E, para esta
discussão, o material reunido por Claudín
e suas reflexões são uma ajuda preciosa.”

João Machado tÿ0


Ziobaí editora
Dados de C atalo gação na Publicação (C IP ) Internacional
(C âm a ra B rasileira do Livro, S P , B rasil)

C la u d ín , F e rn a n d o , 1 9 1 3 -
C 553c A c r i s e d o m ov im en to c o m u n is ta / F e rn a n d o C la u d ín ;
v .1 - 2 tr a d u ç a o e i n t r o d u ç ã o J o s e P a u lo N e t t o . — S ao P a u lo :
G lo b a l , 1 9 8 5 -1 9 8 6 .
(C o le ç ã o l u t a de c l a s s e s )

C o n te ú d o : v . 1 . A c r i s e d a I n t e r n a c i o n a l C om unis­
t a / p r e f á c i o de J o r g e S erap rú n . — v . 2 . 0 a p o g e u do
s ta lin is m o .
ISBN 8 5 -2 6 0 - 0 0 4 1 - 1 ( v . 1 ) . —
ISBN 8 5 - 2 6 0 - O lO il- 3

1 . Comunismo - H i s t ó r i a 2 . I n t e r n a c i o n a l C o m u n ista
I . S erap rú n , J o r g e , 1 9 2 3 - I I . N e t t o , J o s e P a u l o , 1 9 4 7 -
I I I . T í t u l o . IV . T í t u l o : A c r i s e d a I n t e r n a c i o n a l Co­
m u n i s t a . V. T í t u l o : 0 ap o g e u do s t a l i n i s m o . V I. Se­
rie .
1 9 . C D D -320.53209
8 6 -0 2 2 8 ___________________________________ _____ ____________ - 3 2 4 .1
Índices para catálogo sistem ático:
1 . Comunismo : C i ê n c i a p o l í t i c a : H i s t o r i a 3 2 0 .5 3 2 0 9
2 . I n t e r n a c i o n a i s c o m u n is ta s 3 2 4 .1
tornando claudín
a crise
do movimento
comunista
vol.2-0 apogeu do stalinismo
TRADUÇÃO E INTRODUÇÃO
JOSÉ PAULO NETTO

Ziobai editora
1986
© Fernando Claudín

Título original: La crisis del movimiento comunista


1. De la Kommintern al Komminform
Editoração: Presser & Bertelli
Consultoria Editorial
Produção gráfica: Hélio Daziano
Revisão: Alice Aparecida Duarte
Carlos Umberto Martins
Carlos Luiz Pompe
Capa: fotacê (projeto)
Marco A. Â. Gianella (arte-final)

Direitos reservados:

g l o b a l e d i t o r a e d i s t r i b u i d o r a 1tda .
Rua França Pinto, 8 3 b - Cx. Postal 4 5 3 2 9 Rua Mariz e Barros, 39 - conjs. 2 6 / 3 6
Fone: (0 1 1 )5 7 2 -4 4 7 3 Fone: (0 2 1 )2 7 3 -5 9 4 4
Cep 0 4 0 1 6 - V. Mariana Cep 2 0 2 7 0 • Tijuca
Sào Paulo • SP. Rio de Janeiro ■ RJ

N.° de catálogo: 1716


ISBN 85-260-0104-3
SUMÁRIO

II. O APOGEU DO STALINISMO

1. REVOLUÇÃO E ESFERAS DE INFLUÊNCIA


Da Internacional Comunista ao Centro de Informação dos
Partidos Comunistas, 329
A revolução frustrada (França), 338
O pacto germano-soviético e o Partido Comunista
Francês, 339
A renúncia à alternativa socialista, 342
A restauração da “França eterna”, 350
A revolução frustrada (Itália), 363
A viragem de Salerno, 364
Da união nacional ao monopólio democrata-cristão, 371
Revoluções sem permissão, 387
A revolução realizada (Iugoslávia) e a revolução estran­
gulada (Grécia), 389
Crítica iugoslava do oportunismo franco-italiano, 397
Da “grande aliança” aos “dois campos”, 403
A grande mistificação, 405
A divisão das “esferas de influência”, 411
O naufrágio do oportunismo staliniano, 438
Interrogações e conjecturas, 448

325
2. O CENTRO DE INFORMAÇÃO DOS PARTIDOS
COMUNISTAS
As revoluções na área de projeção soviética, 485
O Centro de Informação dos Partidos Comunistas e a nova
tática, 494
Retrocesso geral do movimento comunista no Ocidente, 502

3. A FRATURA IUGOSLAVA
Instauração da ditadura burocrática e policial na área de
projeção soviética, 511
A revolução herética, 517
Os processos, 545
A campanha contra o titoísmo nos partidos comunistas do
Ocidente, 565

4. O PANORAM A ORIENTAL
Revolução chinesa e “grande aliança”, 589
Guerra revolucionária ou “união nacional”, 594
O espectro de um “titoísmo chinês”, 599
A aliança sino-soviética, 604

5. NOVO EQUILÍBRIO MUNDIAL


Os “combatentes da paz”, 617
Empate na “guerra fria”, 626
Balanço do período do Centro de Informação dos Partidos
Comunistas, 630

PRIMEIRO EPÍLOGO, 641


1 REVOLUÇÃO E ESFERAS DE INFLUÊNCIA

Apoiar o movimento de libertação da


China? Não será arriscado? Não nos con­
frontará com outros países? Não será m e­
lhor estabelecer nossas “ esferas de influên­
cia” na China em conjunto com outras
potências “avançadas” e tirar dela algo em
nosso benefício? [. . . ] Apoiar o movimento
de libertação da Alemanha? Vale a pena
correr este risco? N ão será melhor che­
gar a um acordo com a Enterite sobre o
Tratado de Versalhes e obter algo a título
de compensação? Manter a amizade com
a Pérsia, a Turquia e o Afeganistão? Não
será melhor restabelecer as “ esferas de in­
fluência” com alguma das grandes potên­
cias?
Esta é a “concepção” nacionalista de
novo tipo com que se tenta substituir a
política externa da Revolução de Outubro.
[. . . ] Esta é a via do nacionalismo e da
degeneração, a via que conduz à liquidação
total da política internacionalista do prole­
tariado, pois aqueles que são vitimados por
esta doença não vêem em nosso país uma
parte do todo que se chama movimento
revolucionário mundial, mas apenas o prin­
cípio e o fim deste movimento, conside­
rando que os interesses dos outros países
devem ser sacrificados em prol dos interes­
ses do nosso país. Stalin, 1925.

Da Internacional Comunista ao Centro de Informação dos


Partidos Comunistas

Os quatro anos que se estendem entre a dissolução da Interna­


cional Comunista e a criação do Centro de Informação dos Partidos
Comunistas1 demarcam um período de auge espetacular do movi­
mento comunista, sobretudo nos principais palcos da guerra — Eu­
ropa e Ásia. O mundo que emerge do grande drama conta, em finais

329
de 1945, com catorze milhões de comunistas organizados fora das
fronteiras soviéticas, contra o escasso um milhão das vésperas do
conflito e menos ainda — não é possível determinar a redução, mas
ela foi drástica, particularmente na Europa — do período do pacto
germano-soviético2. Nesta progressão geral, cuja exceção mais signifi­
cativa são os Estados Unidos, sobressaem-se nitidamente uns poucos
partidos que, juntamente com o da União Soviética (mais os do
Vietnã e de Cuba, nos últimos anos), serão, até hoje, sob um ou
outro ponto de vista, os centros nevrálgicos do movimento comunista
mundial: o Partido Comunista da China, os das “democracias popu­
lares” européias e os da França e da Itália.
O partido chinês, no curso da guerra antijaponesa, passa de
40.000 membros, em 1937, para 1.200.000, em 1945, consolidan­
do-se como dirigente da grande revolução asiática. Em fins de 1947,
conta já com 2.700.000 membros e, no verão do mesmo ano, um
pouco antes da decisão de Stalin de criar o Centro de Informação
dos Partidos Comunistas, o exército de libertação passa à ofensiva
contra as tropas do Kuomintang — inicia-se a viragem decisiva no
rumo da guerra civil e a vitória revolucionária se perfila no hori­
zonte 3.
Às vésperas da guerra, todos os partidos comunistas das futuras
“democracias populares” estavam na clandestinidade e, salvo o da
Tchecoslováquia, vinham de anos de precária existência. Suas forças
organizadas estavam reduzidas a uns poucos milhares de militantes,
e na Romênia e na Hungria a sua influência política era ínfima. O
partido polonês fora praticamente destruído pelos expurgos e repres­
sões stalinianas do final da década de trinta, que — embora em
menor medida — tinham afetado também os partidos da Iugoslávia,
Hungria e Romênia (veja-se a nota 17 do capítulo 3 do primeiro
tomo). Em 1947, estes partidos reuniam, no total, mais de sete
milhões de membros e eram donos do poder ou estavam a ponto
de conquistá-lo.
Na França e na Itália se formavam os dois “grandes” do
comunismo no interior da área capitalista desenvolvida. O partido
italiano salta de 5.000 membros, nos começos de 1943, para
2.000. 000, em 1946, e o francês, mais modestamente, passa de
300.000, nas vésperas da guerra — que se reduzem bastante no
período do pacto germano-soviético —, a cerca de 1.000.000, em
1946. Ambos se convertem no partido hegemônico no seio das res­
pectivas classes operárias e estendem a sua influência a outros

330
setores sociais, especialmente aos círculos intelectuais. Os dois par­
ticipam dos governos que se sucedem da Libertação aos inícios de
1947.
O crescimento numérico e, especialmente, o papel político de
outros partidos comunistas ficam muito aquém dos níveis que aca­
bamos de citar, mas são notáveis numa série de casos. Em pequenos
países europeus da área capitalista desenvolvida (Suécia, Noruega,
Dinamarca, Holanda, Bélgica, Suíça, Áustria e Finlândia), o con­
junto dos efetivos comunistas passa de menos de 100.000, nas
vésperas da guerra, a uns 600.000 em 1946-1947. E até o sempre
minúsculo Partido Comunista inglês, que contava com uns 18.000
membros em 1939, já beira os 50.000 em 19444. Os partidos co­
munistas da Áustria, Finlândia, Bélgica, Dinamarca e Noruega par­
ticipam de governos no imediato pós-guerra.
O Partido Comunista da Grécia (17.500 membros em 1935,
72.000 em 1945) converte-se, durante a guerra, no principal organi­
zador e dirigente da Frente Nacional de Libertação (EAM) e do
Exército Popular (ELAS). Somente a intervenção in extremis do
corpo expedicionário inglês (coberta pelo acordo secreto Stalin-Chur-
chill de outubro de 1944 5), em dezembro de 1944, impede o triunfo
da revolução. Em 1946, o Partido Comunista grego organiza a luta
armada, cujo ponto mais alto se situa nos últimos meses de 1947,
coincidindo com a criação do Centro de Informação dos Partidos
Comunistas. No outro extremo do Mediterrâneo, o Partido Comu­
nista da Espanha reconstrói, sob o terror fascista, a sua organização
e impulsiona um importante movimento de guerrilhas.
Na Ásia, o Partido Comunista da índia passa de 16.000 mem­
bros, em 1943, para 90.000, em 1948. O partido japonês, que antes
da guerra estava na clandestinidade, duramente perseguido e tinha
cerca de mil membros organizados, obtém, em 1946, dois milhões
de votos e elege cinco deputados; em 1949, os votos são três milhões
e os deputados, trinta e cinco (não há dados sobre os efetivos do
partido). O fenômeno é o mesmo em quase todos os partidos asiá­
ticos: crescem os pequenos núcleos comunistas que existiam antes
de 1939 e se criam partidos onde não existiam. O Partido Comunista
do Vietnã inicia a sua longa epopéia revolucionária. Ainda que em
menor escala, progride também a influência comunista em alguns
países do Oriente Médio (Irã, Síria). Os comunistas do Irã, durante
um curto lapso de tempo, participam do governo (1946).

331
Os partidos comunistas da América Latina, em 1939, tinham
90.000 membros. Em 1947, este contingente salta para meio milhão,
destacando-se os partidos brasileiro, chileno e cubano que, entre
1945 e 1947, tinham, aproximada e respectivamente, 200.000,
60.000 e 40.000 militantes. Os comunistas chilenos e cubanos che­
garam a participar de governos e o movimento comunista interna­
cional depositava grandes esperanças no partido brasileiro; comen­
tava-se que “o Brasil pode ser, logo, a Rússia da América”.
A exceção mais significativa, como já observamos, deste auge
geral do movimento comunista nos primeiros anos do pós-guerra são
os Estados Unidos. A superpotência do capitalismo mundial conti­
nuava impermeável ao marxismo e seu pequeno partido comunista
só experimenta um efêmero crescimento em 1944 quando, por ini­
ciativa de Earl Browder, secretário-geral, decide transformar-se numa
ambígua “Associação Política Comunista”, disposta a “colaborar
para garantir o funcionamento eficaz do regime capitalista no pós-
guerra” 6. No entanto, apesar da crise do partido comunista, também
nos Estados Unidos se produz uma certa evolução do movimento
operário no sentido da esquerda. Se a Federação Americana do
Trabalho nega-se a participar da criação da Federação Sindical
Mundial (FSM), a outra grande organização sindical do proletariado
americano, o Congresso dos Operários Industriais, ingressa na FSM
com os sindicatos soviéticos e outras centrais sindicais dirigidas por
comunistas.
A reconstrução da unidade sindical se generaliza em escala
nacional e, com a criação da FSM, em fevereiro de 1945, realiza-se
— pela primeira vez desde a Revolução de Outubro — a unidade
sindical em escala mundial. A radicalização do movimento operário
se expressa também na progressão da ala esquerda nos partidos so­
cial-democratas e em tendências favoráveis à unidade de ação com
os partidos comunistas.
No centro deste desenvolvimento mundial das forças do movi­
mento operário e do rápido crescimento dos partidos comunistas
erguem-se o Estado e a sociedade nascidos da Revolução de Outubro,
aureolados com um novo prestígio. Desmentindo os augúrios pessi­
mistas de Trótski, o sistema soviético saíra-se airosamente da terrível
prova e a opinião mundial reconhecia a contribuição decisiva da
União Soviética para a derrota do imperialismo hitleriano. O efeito
produzido nos operários e nos povos de todos os continentes pelas
vitórias militares soviéticas pode ser comparado ao eco que, em
seus primeiros tempos, teve a Revolução de Outubro. Com uma
diferença: a União Soviética não aparecia apenas como a encarnação
exemplar da revolução socialista — diante de grandes setores sociais
alheios ao comunismo, a União Soviética passava a ser o símbolo
máximo de todas as causas progressistas, da independência das
nações, da paz entre os Estados. Os partidos comunistas capitaliza­
vam esta renovação e esta ampliação do prestígio da União Soviética
e este foi um dos principais fatores do seu crescimento naquele
período, ao lado do papel destacado que tiveram na luta contra os
ocupantes alemães.
Os comunistas — e, com eles, os setores mais radicalizados do
movimento operário — viam, então, com eufórico otimismo as pers­
pectivas revolucionárias no mundo inteiro. A impressionante demons­
tração do poderio militar soviético infundia-lhes ilimitada confiança
no desenlace vitorioso da luta pelo socialismo, tanto onde ela to­
mava a forma de combates armados (China, Grécia), como onde se
desenrolava sob a presença protetora do exército vermelho libertador
(os países do Leste europeu) e onde parecia que o caminho ia abrir-se
por uma via inédita — a conquista do Estado pelo mecanismo da
democracia burguesa (Itália, França). Os comunistas estavam con­
victos de que toda ação revolucionária, armada ou pacífica, haveria
de encontrar a assistência decisiva da “fortaleza invencível” do so­
cialismo. É verdade que a impunidade com que se desenvolvia a
intervenção anglo-americana contra a insurreição grega não era um
bom sinal. Mas esta nota dissonante não se mostrava suficiente para
ensombrear o quadro. Sabia-se que a Iugoslávia auxiliava os guerri­
lheiros gregos. Quem podia imaginar que, por detrás da Iugoslávia,
não operava a grande potência soviética? Não era isto o que apre­
goava a reação internacional?
Em resumo: depois do refluxo sofrido entre as duas guerras,
a revolução mundial parecia retomar a sua marcha com força irre­
sistível. É certo que, uma vez mais, se detinha nos países capitalistas
desenvolvidos (com a exceção da pequena zona ocidental da Tchecos-
lováquia e do Leste alemão); novamente seguia um curso diferente
do previsto por Marx. Mas o crescimento sensacional dos partidos
comunistas na França e na Itália, as tendências de esquerda que se
desenvolviam na social-democracia e no movimento sindical, a ro­
tunda vitória trabalhista na Inglaterra — tudo isto não anunciava a
irrupção do socialismo no berço do capitalismo? Vanderberg, ao

333
saber da derrota eleitoral de Churchill, anotou no seu diário: “O
inundo inteiro gira à esquerda” 7.
Os êxitos reais ou aparentes do comunismo, naqueles anos, na­
turalmente contribuíam para reforçar a imagem apologética da sua
trajetória sob a direção de Stalin, imagem posta em circulação pelos
corifeus stalinistas na década de trinta. A crítica de Trótski parecia
infirmada. Era possível acreditar-se na degeneração burocrática do
sistema soviético diante da vitalidade, do heroísmo e das qualidades
combativas que o povo e os comunistas da URSS revelaram durante
a guerra? A teoria do socialismo num só país e suas implicações
estratégicas, o monolitismo como condição ótima da eficácia comba­
tiva de todo partido comunista — estes e outros postulados gestados
nos tempos da IC não estavam brilhantemente confirmados pelo
“julgamento da história”? A liquidação do trotskismo e do bukhari-
nismo, os processos de Moscou, todas as repressões stalinianas, o
pacto germano-soviético, a subordinação sistemática do movimento
revolucionário ao interesse supremo do Estado soviético, o holo­
causto da Internacional no altar da “grande aliança” não foram
outras tantas exigências inexoráveis da “necessidade histórica”, sa­
biamente interpretada pelo gênio staliniano? O nacionalismo de
grande potência que impregnava toda a política mundial de Stalin
ficava suficientemente ocultado sob o real conteúdo libertador das
vitórias militares soviéticas.
Esta “comprovação” empirista da justeza das teses e decisões
stalinianas teve imenso impacto sobre o novo contingente comunista,
constituído a partir dos núcleos formados pela IC. Nos veteranos,
potenciou os reflexos adquiridos nos tempos do “partido mundial”,
proporcionou-lhes novas e eficazes justificações ideológicas para seu
comportamento anterior; nos novatos, facilitou a rápida assimilação
dos mesmos reflexos e a aceitação axiomática da herança recebida.
A mentalidade acritica, dogmática — cultivada no seio da IC du­
rante o período staliniano —, transmitiu-se assim às novas gerações
comunistas que, a partir de 1945, representavam (como se infere das
cifras atrás apontadas) a esmagadora maioria de cada partido. O
mundo entrava na era do átomo, iniciava-se uma nova revolução
técnica e científica, o desenvolvimento do capitalismo e a emanci­
pação das colônias logo colocariam problemas inéditos, assim como
a “construção do socialismo” em novos países — mas nunca foi tão
pobre o pensamento teórico dentro do movimento comunista como
na década seguinte ao fim da Segunda Guerra. É o período em que

334
culmina ii clericalização do movimento. Stalin é divinizado e o fa­
moso compêndio de História do Partido Comunista (Bolchevique) da
URSS se converte na bíblia dos comunistas. O bom comunista não
precisa esquentar os miolos na decifração de Marx ou Lênin: Stalin
condensou a quintessência do marxismo, tudo o que realmente é ne­
cessário saber, no pequeno manual redigido de forma simultanea­
mente “acessível” e “profunda” para que todos os homens — tanto
o sábio quanto o “homem simples” — possam trilhar sem desvios a
rota que conduz diretamente ao comunismo. A partir de 1945, suce­
dem-se as edições, em todos os idiomas e em milhões de exempla­
res, deste Pai-Nosso dos povos.
A grande vitória soviética na segunda guerra mundial propor­
cionou, conseqüentemente, novas justificações ideológicas e políticas
ao monolitismo e ao dogmatismo stalinianos, mas a guerra e a pró­
pria política de Stalin engendraram igualmente fatores e processos
de sinal contrário. A guerra antifascista exaltou os sentimentos nacio­
nais dos povos, as suas aspirações a uma vida independente — sen­
sibilizou-os contra quaisquer menosprezos a seus direitos nacionais.
Os partidos comunistas, dado o papel que desempenharam na luta
contra as potências do Eixo, não podiam ficar “imunes” a este re-
vigoramento dos sentimentos e dos objetivos nacionais. Ademais, a
política de Stalin — atenta à salvaguarda da “grande aliança” — in-
duziu-os, na maior parte dos casos, a relegar a um plano secundário
os objetivos sociais revolucionários, ou mesmo à renúncia à sua co­
locação, donde derivava que os ingredientes “nacionais” e “patrió­
ticos” passavam a adquirir um peso enorme no comportamento dos
partidos, na formação dos seus militantes (não nos esqueçamos que
rapidamente os novos adeptos constituíram a grande maioria dos
efetivos de todos os partidos comunistas), tomando facilmente tona­
lidades nacionalistas. Esta substantivação do “nacional”, logicamen­
te, continha em germe a contradição com o chovinismo grão-russo
que animava a política de Stalin. No entanto, enquanto esse nacio­
nalismo oportunista favorecia a conservação da aliança entre a URSS
e os Estados capitalistas anti-hitlerianos, a referida contradição per­
manecia soterrada. Em troca, ela se manifestou desde o primeiro
momento onde os partidos comunistas uniram as aspirações nacionais
aos objetivos revolucionários — China, Iugoslávia, Grécia —, por­
que esta política nacional revolucionária perturbava a alta estratégia
staliniana.

335
Assim, a “nacionalização” dos partidos comunistas, consagrada
formalmente com a dissolução da IC, foi tomando aspectos inquiétan­
tes para o monolitismo staliniano. Todos os partidos, de fato, conti­
nuaram considerando-se — na maioria dos casos sinceramente, em
alguns “maquiavelicamente” — sob a direção de Moscou. Não pu­
nham em dúvida a função dirigente suprema do partido soviético
nem a infalível sabedoria de Stalin mas, pela própria dinâmica das
coisas, tiveram que começar a atuar por sua conta, a desenvolver
uma iniciativa maior em função das diversas realidades nacionais.
E surgem os primeiros sinais de indisciplina ou “heterodoxia”. Os
comunistas chineses aparentam ceder às pressões de Stalin para che­
gar a um acordo com Chiang Kai-Chek, mas seguem firmemente na
sua guerra revolucionária. Em fins de 1946, os comunistas vietna­
mitas iniciam a guerra de libertação contra o colonialismo francês,
também em contradição com a política staliniana do momento. Os
partidos comunistas da França e da Itália falam de uma via especí­
fica, não soviética, “francesa” e “italiana”, para o socialismo. Nos
Estados Unidos, Earl Browder, seguido por uma fração importante
do partido, transita abertamente para o reformismo, sendo excomun­
gado em 1946. Entretanto, o mais inquietante para Stalin era o que
se passava na sua àrea de projeção européia — particularmente a
evolução iugoslava.
Como se constata, a situação interna do movimento comunista
no periodo que vai da dissolução da Internacional Comunista à cria­
ção do Centro de Informação dos Partidos Comunistas era complexa
e contraditória. Fortaleciam-se os fundamentos ideológicos e políticos
do monolitismo staliniano, o prestígio e a autoridade de Stalin toma­
vam proporções avassaladoras, assim como os do Partido Comunista
soviético; mas, ao mesmo tempo, gestavam-se tendências centrífugas
e Surgiam atitudes conflitivas, que punham em perigo a coesão “mo­
nolítica” do movimento. A rebelião iugoslava de 1948 abriu a pri­
meira grande brecha no edifício mundial do monolitismo staliniano
e pôs a nu o caráter radicalmente antagônico da contradição entre o
nacionalismo grão-russo e os movimentos revolucionários enraizados
na realidade nacional. Mas a rebelião iugoslava, enfim isolada total­
mente no movimento comunista, também pôs em relevo a imensa
força que conservavam os suportes ideológicos e políticos do mono­
litismo no conjunto do movimento. Por outro lado, a luta contra a
“heresia” iugoslava serviu para reforçar tais suportes e torná-los mais
agressivos durante todo um período.
In untes do caso iugoslavo, num terreno mais conhecido, fami-
llni piiru os veteranos da IC, fora posta à prova, com pleno êxito, a
«m mui monolítica do movimento comunista saído da guerra: referi-
mu iui:, á grande “viragem” de 1947, determinada pela crise das
iillnnçns antifascistas. De fato, esta crise desnudava tudo o que hou-
vem de oportunista na política staliniana desde 1941, tanto em
( m ala internacional, no marco da “grande aliança”, como em escala
mu ional, na política da maioria dos partidos comunistas. Mas a
" viiagem” realizou-se sem que, nos partidos comunistas, se travasse
pieviamente uma discussão fundamental sobre a política seguida até
então - na etapa crucial da guerra e no imediato pós-guerra — ou
sobre a que se seguiria depois. Foi uma decisão de Stalin e seus
colaboradores diretos, imposta ao conjunto do movimento, sem que
sc levantasse uma só voz de protesto contra este procedimento ou
que surgissem divergências sobre as teses e diretivas soviéticas. En-
liv estas últimas estava a constituição do Centro de Informação dos
Partidos Comunistas. Da noite para o dia, o movimento comunista
sc viu a braços com um novo centro dirigente, sem ter participado
da sua criação. Tudo se resolveu numa reunião secreta — celebrada
na Polônia, em setembro de 1947 — de representantes dos nove
partidos que, por vontade de Stalin, deveriam formar o novo orga­
nismo (os partidos da União Soviética, Polônia, Tchecoslováquia,
Hungria, Romênia, Bulgária, Iugoslávia, França e Itália)8. Nem se­
quer os órgãos centrais destes partidos haviam discutido previamente
as questões que se trataram na reunião: a nova situação internacio­
nal, a política que no seu marco o movimento comunista implemen­
taria, a criação do Centro de Informação dos Partidos Comunis­
tas, etc.
A problemática relativa à nova linha do movimento comunista
adotada na reunião constitutiva do Centro de Informação dos Parti­
dos Comunistas será abordada no próximo capítulo, mas antes é pre­
ciso analisar o processo que determina a viragem de 1947 — a evo­
lução da situação internacional desde o fim da guerra — começando
por uma questão que o encontro na Polônia viu-se obrigado a tratar,
ainda que de forma mutilada, escamoteando o elemento essencial
(a política de Stalin) e sem reconhecê-la explicitamente na sua reali­
dade: a questão da frustração da revolução na França e na Itália.
Mesmo que deste modo espúrio, a reunião na Polônia teve que en­
frentar tão espinhoso problema porque aquela frustração foi um
componente capital do processo político que desembocaria na situa-

337
ção de 1947, quando as enormes ilusões semeadas pela “grande
aliança foram substituídas pela "guerra fria”, quando as esperanças
de uma via pacífica, democrático-parlamentar, para o socialismo na
Europa revelaram-se vãs.

A revolução frustrada (França)

É evidente que, nas condições de 1945, com o exército vermelho


no Elba, a confirmação da possibilidade revolucionária criada na
França e na Itália seria a vitória da revolução na Europa continental
e a radical modificação do equilíbrio mundial de forças contra o
imperialismo americano, o único grande Estado capitalista que saíra
fortalecido da guerra. E, inversamente, é difícil exagerar o efeito ne­
gativo que a frustração desta possibilidade teve para o desenvolvi­
mento ulterior do movimento revolucionário mundial. Frustração que
pode comparar-se, com toda razão, às conseqüências advindas da
derrota da revolução alemã de 1918-1919.
“Como estaria o mundo — perguntava-se Dimitrov em novem­
bro de 1937 — se, depois da revolução socialista de outubro, no
período de 1918 a 1920, o proletariado da Alemanha, da Áustria-
Hungria e da Itália não tivesse se detido a meio caminho em seu
impulso revolucionário? Como estaria o mundo se as revoluções
alemã e austríaca de 1918 fossem levadas até o fim e se, em seguida
à vitória da revolução, a ditadura do proletariado se instaurasse no
centro da Europa, nos países altamente desenvolvidos?” 9. Algo se­
melhante pode hoje ser indagado a respeito do auge revolucionário
de 1944-1945 na França e na Itália. Naturalmente, Dimitrov não
deixa de assinalar que os responsáveis pelo fato de o proletariado
da Europa central e da Itália se haver “detido a meio caminho em
seu impulso revolucionário” foram os chefes social-democratas que
se “aliaram à sua burguesia”. Mas, em 1944-1945, quem deteve
“a meio caminho” o impulso revolucionário do proletariado francês
e italiano? Naqueles anos, este proletariado estava, em sua grande
massa, sob a direção dos partidos comunistas. E não só o proletaria­
do, como mais tarde reconheceria Togliatti: “A classe operária em
sua grande maioria e parte considerável da opinião pública não ope­
rária agruparam-se em torno dos partidos operários avançados, ins­
pirados pelos marxistas, o que distinguia a situação, em nosso país,
como na França, da situação de outros países da Europa ocidental” 10.

338
I him,I IMiliivru. apenas os partidos comunistas podiam, em 1944-1945,
mu,a o impulso revolucionário do proletariado. E, de fato, tra-
>ui m u i nu A verdadeira pergunta, pois, não é quem travou, mas sim:
f u i Icglllino (sob o ponto de vista, é claro, dos interesses do prole-
lhi lull,,, Jn revolução) este comportamento dos partidos comunistas
tin I .... ça e da Itália? Para responder a esta questão é preciso ana-
llM.,1 a ilida que rapidamente, a política dos dois partidos na Resis-
i, in ia r na Libertação. Começaremos pelo partido francês.

i >imi to nermanosoviético e o Partido Comunista Francês

t) Irances é o único partido comunista importante da Europa


qui i bega il guerra em situação de legalidade, com mais de 300.000
ml In untes e influência majoritária na classe operária. E chega com
i bandeiras do antifascismo desfraldadas. A Alemanha hitleriana:
vnihi iennemi. O partido denuncia a política capitulacionista de
1blindici e da direita francesa em função, exatamente, da luta contra
Unici, L os elementos mais reacionários clamam pela dissolução do
1'iulUk) Comunista porque o vêem como o maior obstáculo a um
i iiiiipromlsso com a Alemanha. Nestas circunstâncias, explode a
In mil m do pacto germano-soviético, que pega de surpresa os dirigen-
i, . d,, partido (Stalin, naturalmente, não levara em conta os chefes
, iniiiiiiistus de outros países, nem mesmo os do país mais imediata-
iiicntc afetado). Num primeiro momento, a direção do partido justi-
Ia a o pacto como tentativa suprema para salvar a paz, mas mantém
|i|ciuimente a sua posição de defesa nacional contra a agressão hitle-
i luna A 1." de setembro, o grupo parlamentar comunista “proclama
Iiiii unanimidade a inquebrantável resolução de todos os comunistas
paia ocupar a primeira trincheira da resistência à agressão do fas-
i l ino hitleriano” e, no dia seguinte, os deputados comunistas votam
•is créditos de guerra11.
O governo interdita a imprensa comunista e, a 26 de setembro,
pne o partido na ilegalidade. Esta perseguição aos comunistas, ao
mesmo tempo em que os partidos burgueses revelam-se incapazes
pum organizar a defesa nacional (quando não se orientam claramen-
ii para a capitulação), poderia ter se traduzido num rápido cresci­
mento do prestígio do Partido Comunista Francês se este se manti-
vcs.se firmemente à cabeça da luta contra a agressão hitleriana,
unindo-a ao combate contra a impotência ou a traição da bur-

339
guesia — se ele tivesse traçado uma diferenciação nítida entre a sua
política e a política soviética. Mas logo a posição do partido se alinha
incondicionalmente à de Moscou. Depois de haver proclamado que
a França tinha razão para sustentar a Polônia e de votar os créditos
militares requeridos pelo governo para uma eventual intervenção em
favor dos poloneses, o partido declara que “a Polônia dos latifundiá­
rios não merece ser defendida” e louva a ocupação da sua parte
oriental pelo exército soviético. Justifica, igualmente, a ocupação dos
países bálticos pela URSS. Estes fatos poderiam ser explicados como
medidas militares de sentido antialemão, mas a direção do partido
assume a versão mistificadora oferecida pela diplomacia soviética.
Quando Molotov apresenta a França e a Inglaterra como as potências
agressoras e a Alemanha como movida por intenções pacíficas, o
partido assume esta posição que, além de falsear grosseiramente a
realidade, era suicida nas condições francesas. Numa palavra, o par­
tido comunista entrega de bandeja, à reação, os argumentos ideais
para situá-lo como partido da traição nacional. A burguesia francesa,
assim, pode matar dois coelhos com uma só cajadada: acentuar o
isolamento dos comunistas (o que facilita a repressão) e dissimular
a sua própria política de capitulação.
Consumados o desastre nacional e a ocupação, o partido insiste
na mesma política: dedica-se a atacar Vichy, mas não toma em suas
mãos a bandeira da libertação nacional, não organiza a guerra na­
cional revolucionaria e antifascista, como o fazem os comunistas
iugoslavos e gregos. Deixa a bandeira da libertação nacional nas
mãos de típicos representantes do nacionalismo burguês, como de
Gaulle. Definitivamente, o cego reboquismo que o Partido Comunis­
ta Francês exercita diante da política de Moscou no período do pacto
germano-soviético causou-lhe três graves prejuízos: em primeiro lu­
gar, impediu-o de capitalizar, desde o início, a bancarrota do Estado
francês, de utilizar a fundo o sentimento nacional numa perspectiva
revolucionária; em segundo lugar, permitiu que a iniciativa da luta
pela libertação nacional caísse nas mãos dos nacionalistas burgueses;
em terceiro lugar, e conseqüentemente, a repressão contra o partido
foi facilitada 12.
É importante mencionar que, neste período, o partido coloca,
como solução para a crise sem precedentes da França burguesa, a
única saída que um partido revolucionário poderia propor: a revo­
lução socialista. No documento programático intitulado “ Pela sal­
vação do povo francês”, difundido em março de 1941, se diz que,

340
,iiuiws das lutas parciais, preparam-se “as grandes batalhas sociais
,1, 1111e resultará a República popular, a França nova, a França livre
<l,i , <ploração capitalista, a França socialista, em que haverá, para
i.idos, pão, liberdade e paz”. No entanto, falar de revolução socia­
li Mu. na França ocupada pelo exército hitleriano, sem convocar à
guerra de libertação, não tinha sentido. Porém, o partido insinua a
possibilidade de um “governo do povo” saído apenas da luta contra
O listado de Vichy. De fato, o documento, sem dizer uma só palavra
sobre a organização da luta armada contra o ocupante, convoca os
operários, camponeses, camadas médias, intelectuais, etc., a “consa­
crili todas as suas forças” à “organização metódica de uma ampla
Irente de luta para preparar a ação cotidiana, os movimentos de
massa que varrerão a camarilha capitalista de Vichy e darão lugar
ao povo, ao governo do povo”. A independência nacional seria ne­
gociada depois por este governo, como se deduz do ponto 1 do
programa incluído no documento: “Libertação nacional e de todos os
prisioneiros de guerra. Para levar a cabo esta tarefa, o governo do
povo fará tudo o que for necessário para estabelecer relações pací­
ficas com todos os povos; apoiar-se-á na potência que lhe conferirão
a confiança do povo francês, a simpatia de outros povos e a ami­
zade da União Soviética”. Eis o que reza o ponto 2: “Estabeleci­
mento de relações fraternais entre o povo francês e o povo alemão,
recordando a ação realizada pelos comunistas e pelo povo francês
contra o Tratado de Versalhes, contra a ocupação da bacia do Ruhr,
contra a opressão de um povo por outro povo”. E o documento não
diz uma só palavra sobre a necessidade, para estabelecer tais rela­
ções fraternais”, de derrubar a ditadura hitleriana. Que sentido po­
deria ter esta política, salvo na hipótese de um acordo global dura­
douro entre a Alemanha hitleriana, nesse momento a dona da
Europa, e a União Soviética? Esta posição do PCF não estava em
estreita conexão com os intentos que, nesse período, o governo
soviético fazia para consolidar seu entendimento com a Alemanha de
Hitler, como sustentam — já o vimos — historiadores soviéticos?
Vale a pena notar que o documento fora elaborado, na União Sovié­
tica, por Maurice Thorez ,3.
A luta por uma França socialista era, sem dúvida, o objetivo
que se devia propor o partido revolucionário do proletariado naquela
crise histórica da França burguesa, mas a colocação feita pela direção
do PCF era apenas o verniz “esquerdista” de uma política que, para
não entrar em contradição com a do governo soviético, renunciava

341
à única via capaz de conduzir à solução socialista da crise: a guerra ml..... da França, agrupem-se sob a sua direção16. Nos meses se-
nacional, antifascista e revolucionária contra a ocupação hitleriana. ........ru, o PCF adere ao Comitê de Londres e designa Grenier seu
O citado documento não só não convoca para esta guerra, mas dá a h |>i• .ontimte. Numa carta dirigida ao Comitê Central do PCF, de
entender, com suficiente clareza, a sua oposição a ela. O povo da 10 ili laiieiro de 1943, de Gaulle registra a adesão e define, sem
França — diz-se no texto — “repudia vigorosamente todos os cha­ unhlguidade, o princípio da subordinação do partido à sua direção:
mamentos dos belicistas”, “não deseja, novamente, participar da \ ! lu-guda de Fernand Grenier — diz a carta — , a adesão do Par­
guerra imperialista” u . ia I,, Comunista ao Comitê Nacional que ele apresentou em vosso
......... a colocação a meu dispor, enquanto comandante-em-chefe das
loiças francesas, das valentes formações de Francs Tireurs que haveis
A renúncia à alternativa socialista mnsliluído e animado, estas são manifestações da unidade fran-
i csa 1 . .] Estou convencido de que os representantes que eu desig­
Quando os soldados hitlerianos cruzam a fronteira soviética, o nei encontrarão nos responsáveis do PCF uma vontade de cooperação
PCF cruza também a impalpável fronteira que o separava dos “beli­ que será levada ao espírito do sacrifício e a mesma disciplina leal
cistas”, coloca-se resolutamente na pointe du combat pela indepen­ .//a- já existe no interior de vossas organizações.” E, a 21 do mesmo
dência nacional. Mas é evidente que o atraso com que o faz e os me:., Grenier escreve em L’Humanité: “Expressamos o sentimento
efeitos da sua política anterior só poderiam pesar negativamente na do. franceses proclamando nossa confiança no general de Gaulle,
balança final. Agora, depois de “esperar” dois anos, o partido critica que primeiro levantou o estandarte da Resistência” 17. Em fevereiro,
a posição attentiste do Estado-Maior de de Gaulle, que aconselha a niIo libertados os deputados comunistas que Vichy encarcerara na
suspensão das ações armadas. O partido convoca à ação armada prisão de Argel (e que continuavam presos, embora desde 11 de
imediata, organizando-a sem poupar riscos e sacrifícios. A iniciativa novembro de 1942 a Argélia estivesse em mãos das tropas anglo-ame­
e a coragem dos comunistas, sua capacidade organizativa, conquis­ ricanas). E, em junho do mesmo ano — poucos dias depois, casual­
tam progressivamente a simpatia do povo para o partido. Acorrem mente, da dissolução da IC —, o Comitê Francês de Libertação Na­
às suas fileiras os elementos mais combativos dos operários, dos es­ cional (CFLN), que acabava de se constituir, sediado em Argel,
tudantes, dos intelectuais. Mas, no plano político, o partido incorre anula o decreto de setembro de 1939, pelo qual Daladier declarara
no erro oposto ao da primeira fase da guerra. Se, durante esta fase, ilegal o partido comunista. A composição do CFLN, presidido pelos
a Inglaterra e os Estados Unidos eram qualificados como inimigos generais de Gaulle e Giraud, não podia ser mais reacionária. Reúne
do povo francês, a partir do 22 de Junho a propaganda comunista "os homens enviados a Argel pela grande burguesia para se apre­
renuncia a qualquer crítica aos que passam a ser grandes Estados sentarem como ‘resistentes’ e cuidar da salvaguarda dos seus inte­
democráticos aliados. Até o 22 de Junho, de Gaulle era um simples resses” — como se diz na história da Resistência escrita por uma
agente da City, com o gaullismo definido como um “movimento de comissão presidida por Jacques Duelos. Mas isto não impediu a
inspiração reacionária e colonialista, à imagem do imperialismo bri­ direção do PCF de saudar a criação do CFLN com a seguinte decla­
tânico”, cujo objetivo é “privar [a França] de toda liberdade na ração: “Todos os franceses esperam do Comitê Francês de Liberta­
hipótese de uma vitória inglesa” 15. A partir do 22 de Junho, natu­ ção Nacional a organização da ativa participação da França na guerra
ralmente, de Gaulle passa a ser o aliado e a crítica da essência “rea­ contra Hitler, mobilizando todos os recursos, todas as energias, todas
cionária e colonialista” do gaullismo desaparece dos documentos do as vontades francesas fora da metrópole e sustentando, material e
partido. Este, no entanto, ainda mantém uma atitude reservada em moralmente, a ação dos lutadores que, no território pátrio, levam a
face do general. Mas, em maio de 1942, Molotov se entrevista com cabo um combate difícil e glorioso” 18. Neste período, o PCF con­
de Gaulle em Londres e, contanto que ele apóie, junto aos aliados, sidera fundamental para a sua política a entrada no CFLN, desde
a exigência russa de uma segunda frente, Molotov se põe de acordo que este aceite uma plataforma cujo ponto mais avançado é o se­
com o general para que todos os franceses, bem como os povos das guinte: "Desenvolvimento de uma política democrática e social que
342 343
galvanize todas as energias francesas e crie o entusiasmo pela parti­
cipação de todos na guerra de libertação”. Embora esta declaração
genérica não comprometesse ninguém, antes podendo ser útil aos
representantes da “grande burguesia para se apresentarem como ‘re­
sistentes’ ”, de Gaulle não aceita nenhuma condição (sem dúvida
para que sua liderança não sofra o menor risco), nem concorda em
que os representantes comunistas no CFLN sejam designados pelo
próprio partido — têm que ser nomeados por ele. Finalmente, o
partido passa a participar do CFLN sem que de Gaulle subscreva
qualquer compromisso 19.
O partido, certamente, desenvolve ao mesmo tempo uma intensa
atividade para aumentar as suas próprias forças, a Frente Nacional
(movimento unitário sob a direção dos comunistas, que adquire rela­
tiva amplitude), e seu braço armado, os FTP. E preconiza a coorde­
nação das diversas organizações e tendências da Resistência no in­
terior. A primavera de 1943 assinala, neste aspecto, uma etapa
importante. No MUR (Movimentos Unidos da Resistência) agru-
pam-se organizações como “Combat”, “Franc-Tireur” e “ Libéra-
tion”, na clandestinidade se reunifica a CGT e, a 27 de maio, se
constitui o Conselho Nacional da Resistência (CNR), onde se repre­
sentam todas as organizações e tendências. No curso das negocia­
ções que conduzem à criação deste organismo se coloca um problema
de particular interesse. O único partido organizado que existe no
interior da Resistência é o comunista. Num primeiro momento, de
Gaulle tenta impedir que o PCF, enquanto partido, esteja repre­
sentado no CNR. Mas, ante a impossibilidade de consegui-lo, dado
o papel que o partido já desempenha no conjunto do movimento,
procura outra solução, assim apresentada na obra de Duelos, que
citamos: “Para que o partido comunista não seja o único designado
como partido resistente [de Gaulle propõe] que outras formações po­
líticas figurem na organização que se pretende constituir”. A recom­
posição dos antigos partidos deve, por seu turno, “reforçar a causa
gaullista aos olhos dos Aliados” e instaurar “a única barreira à in­
fluência comunista”. “Mas esta pretensão — diz-se na mesma obra
— choca-se com a violenta oposição dos movimentos da Resistência.
Muitos políticos se desacreditaram com o regime de Vichy. Se, de
todos os partidos, alguns indivíduos participam das organizações da
Resistência, nenhum partido, exceto o comunista, se reconstruiu na
clandestinidade. [. . . ] Os movimentos da Resistência se opõem ener­
gicamente a esta reaparição dos partidos”. “Se se considera normal

344
( insto — escreve o periódico clandestino Défense de la France
. | iic os comunistas estejam representados no Comitê de Liberta­
d o , porque participam vigorosamente da luta comum, dificilmente
. aceita a presença de representantes das antigas tendências”. A
qtu-stSo, sem dúvida, era essencial. No fundo, o que estava em jogo
ei ii ii saída que se apontava para a luta: ou voltar ao sistema político
inidicional que levara o país a uma catástrofe nacional ou criar uma
nova força unitária, inspirada no espírito da Resistência, na qual se
rei onhecia aos comunistas um papel preeminente. Apresentava-se
pura o partido uma oportunidade única de encabeçar esta corrente
M-novadora e orientá-la para a transformação profunda da sociedade
francesa. Mas o partido jogou a favor do passado, apoiando a solu­
ção gaullista. Duelos explica: "É inegável que, na França, a vida
política se expressa tradicionalmente em grandes correntes, que são
um dos traços específicos da democracia burguesa francesa; na
I rança, o apoliticismo e a condenação dos partidos sempre foram
instrumentos reacionários. Levando isto em conta e a necessidade
de chegar rapidamente a uma união eficaz no combate nacional, o
partido comunista aceitou a constituição do CNR sobre as bases
propostas por Jean Moulin [representante de de Gaulle] que, num
informe ao Comitê de Londres, louvou a disposição unitária do par­
tido comunista” 20. Efetivamente, os “traços específicos” citados cons­
tituíam algo “inegável”. Outro dado “inegável” era que a reação
explorara, mais de uma vez, a impotência dos partidos políticos so­
cial-democratas e pequeno-burgueses radicais. Mas um terceiro dado,
não menos “inegável” e que é desprezado pela argumentação de
Duelos, é que os partidos políticos tradicionais, a “democracia bur­
guesa francesa”, haviam sofrido a maior bancarrota da sua história e,
agora, não eram repudiados pela reação, mas pelas novas forças revo­
lucionárias que nasciam sob o fogo da Resistência; a reação, pelo
contrário, agarrava-se agora desesperadamente aos “traços específicos
tradicionais da democracia burguesa”. O quarto dado “ inegável”
— como os acontecimentos ulteriores demonstrariam — é que o PCF,
apoiando a solução gaullista, preparava o caminho para a restauração
do capitalismo francês. O louvor que se lhe enviou ao Comitê de
Londres estava plenamente justificado. “Necessidade de chegar rapi­
damente a uma união eficaz no combate nacional”? Tudo dependia,
naturalmente, de como se entendesse este combate e seu objetivo.
Se ele devia conduzir à restauração da tradicional democracia bur­
guesa francesa, a “união” escolhida por de Gaulle, com o apoio do

345
PCF, era, sem dúvida, a mais “eficaz”. Com esse tipo de “união”
que Stalin também tentou impor-lhes —, os comunistas iugos­
lavos teriam dirigido a sua Resistência para a restauração da mo­
narquia tradicional e não teria se realizado a única revolução socia­
lista que, na Europa, não resultou da divisão das “esferas de in­
fluência” — e que triunfou apesar desta divisão.
No curso de 1943, e sobretudo nos primeiros meses de 1944,
a rede unitária da Resistência desenvolve-se grandemente em toda a
França e, nela, os comunistas ocupam posições-chaves, o que, no
plano da organização, dá-lhes a chance de obter uma função diri­
gente. Mas a possibilidade de realmente exercer esta função nas
batalhas decisivas que se aproximavam — de exercê-la em sentido
revolucionário — e conseguir que a Libertação desembocasse numa
transformação radical da sociedade francesa, esta possibilidade não
era apenas questão de postos no aparelho da Resistência nem da
capacidade de organização da luta armada (neste terreno, o par­
tido — como anos antes o fizera o Partido Comunista Espanhol
— já dera excelentes provas de sua eficiência), nem, muito menos,
do espírito de sacrifício e de coragem na luta (nisto também os co­
munistas franceses foram exemplares; merecidamente, o PCF ganhou
o título de “partido dos fuzilados”. Infelizmente, o mesmo não se
pode dizer quanto ao título de “partido da revolução”). Primeiro e
antes que tudo, era uma questão de orientação política e dependia
da existência, na direção do partido, da vontade em favor de uma
tal transformação revolucionária.
A insurreição nacional que se segue ao desembarque aliado na
Normandia colocou praticamente na ordem do dia o problema do
poder. A maior parte da França, Paris inclusive, é libertada pelas
forças armadas da Resistência, com o apoio das massas e sem a
intervenção direta dos exércitos aliados. Os comitês de libertação
se convertem, por todo lado, em órgãos de poder, e as milícias
patrióticas adquirem caráter massivo2'. O Partido Comunista é a
força política predominante deste grande levante popular. O seu
prestígio e a sua influência não encontram rivais nos sindicatos
e nas empresas, nos comitês de libertação e nas milícias patrióticas,
entre os intelectuais e a juventude — sem falar das forças armadas
criadas durante a Resistência22. Só este fato prova o caráter revolu­
cionário da situação — porque o Partido Comunista, ainda que os
acontecimentos fossem infirmá-lo, era para as massas o partido da

346
revolução. Entrando em colapso o Estado de Vichy e o poder dos
ocupantes, a maioria do proletariado e amplos setores de outras ca­
rnudas sociais trabalhadoras depõem suas esperanças no partido a
c|ue associam a idéia da revolução e na União Soviética, cujo pres­
idio — este é outro dado fundamental da situação — entre os fran-
i oses alcançou então um nível que não voltaria a repetir-se.
De Gaulle, como revelam as suas Memórias, tinha perfeita
consciência de que “a direção dos elementos combatentes estava nas
mãos dos comunistas”. Pensava que o PCF — e, anos depois, contra
Iodas as provas, continuou atribuindo-lhe esta intenção — tinha o
propósito de aproveitar o momento da libertação para dirigir as
forças da Resistência para a tomada do poder. “Aproveitando o
tumulto da batalha, empolgando o Conselho Nacional da Resistên­
cia, do qual vários membros, além dos que estavam sob o seu con­
trole, poderiam ser vulneráveis à tentação do poder; usando da sim­
patia de que gozavam em muitos círculos, derivada das perseguições
de que eram objeto, das perdas que sofriam e da coragem que de­
monstravam; explorando a angústia sentida pela população em razão
da ausência de qualquer força pública; jogando, enfim, com o equí­
voco, exibindo a sua adesão ao general de Gaulle, [os comunistas]
pretendiam aparecer à frente da insurreição como uma espécie de
Comuna, que proclamaria a República, estabeleceria a ordem, admi­
nistraria a justiça e, por conseqüência, cantaria a Marselhesa e des­
fraldaria a bandeira tricolor” 23. Este plano, atribuído por de Gaulle
aos comunistas, não existia na realidade — mas há que reconhecer
que era um plano excelente. De Gaulle percebe lucidamente as mag­
níficas cartas que o partido tem nas mãos e a engenhosidade com
que podem ser usadas. De fato, a questão, para um verdadeiro par­
tido revolucionário naquela situação, não era uma colocação abstrata
da conquista do poder pelo proletariado, mas a tomada do poder
pela Resistência, pela autêntica Resistência — não a de Londres ou
Argel; a questão não era um enfrentamento direto com de Gaulle
— era fazer com que de Gaulle se confrontasse com a Resistência.
Não consistia em provocar o choque com os exércitos “libertadores”
anglo-americanos, mas colocar tais exércitos frente à realidade do
poder da Resistência e mobilizar, contra qualquer atentado a este
poder, os sentimentos nacionais exaltados pela Libertação. Estes
poderiam ser os primeiros passos para a revolução socialista na
França de 1944. De Gaulle percebeu-o com clarividência. Mas,

347
lamentavelmente, de Gaulle nao era o secretário-geral do Partido
Comunista Francês.
Cônscio da explosiva situação criada, de Gaulle manobrou
habilmente. Começou a instalar o seu dispositivo e a isolar, limitar,
os poderes dos comitês de libertação. Foi avançando cada vez com
mais segurança ao comprovar que os comunistas cediam o terreno
sem opor grande resistência. Até que fez a surpreendente descoberta
de que, no Partido Comunista, tinha a grande força “patriótica”
capaz de cooperar, mais eficazmente que qualquer outra, para a
restauração da França eterna. Este processo foi rápido.
Nos primeiros meses seguintes à instalação do governo de de
Gaulle, a direção do PCF, sob a pressão do movimento espontâneo
das massas e das correntes revolucionárias que operavam no seu
seio, aplica uma linha ambígua, defendendo os comitês de libertação
e as milícias patrióticas, mas sem promover uma ação de massas
decidida, sem colocar os problemas de fundo relativos à transfor­
mação democrático-socialista da sociedade francesa. A 27 de outubro
de 1944, numa assembléia do partido, Duelos declara: “As milícias
patrióticas devem continuar sendo o guardião vigilante da ordem
tepublicana, ao mesmo tempo em que devem ocupar-se ativamente
da educação militar das massas populares”. Esclarece que, em cada
localidade, a milícia deve englobar milhares de “cidadãos-soldados”
e subordinar-se aos comitês de libertação, permanentemente enqua­
drada e com arsenais de armas e munições. No dia seguinte, de
Gaulle responde assinando o decreto de dissolução das milícias.' Os
dois ministros comunistas protestam, mas permanecem no governo.
A direção do partido dá instruções internas para manter a organi­
zação miliciana e não entregar as armas, estruturando arsenais clan­
destinos; porém, não mobiliza o povo contra esta direta agressão aos
poderes da Resistência, que identifica nitidamente os propósitos do
general24. Este dá uma no cravo e outra na ferradura. A 6 de no­
vembro, no Journal Officiel, aparece o decreto da anistia a Thorez;
sobre isto, em suas memórias, escreve de Gaulle: “O interessado mé
dirigiu inúmeras petições. Muito deliberadamente, creio que é meu
dever anistiá-lo. Considerando as circunstâncias passadas, os acon­
tecimentos que ocorreram posteriormente, as necessidades atuais,
creio que o retorno do Sr. Thorez à cabeça do PCF pode comportar
atualmente mais vantagens que inconvenientes”. As “necessidades
atuais”, como o próprio general escreve, consistem em “aparar as
348
yiirrus dos comunistas”, “retirar deles os poderes que usurpam e as
minas que exibem”. Seus cálculos sobre as vantagens que pode ter
o regresso de Thorez são acertados. A 27 de novembro, chega o
secretário-geral do partido. Sua primeira palavra de ordem é “um
m> listado, uma só polícia, um só exército!” De Gaulle anota: “ Des-
tlc o dia seguinte ao seu retorno à França, Thorez ajuda a pôr fim
iís últimas seqüelas das ‘milícias patrióticas’. Ele se opõe às tenta-

livas usurpadoras dos comitês de libertação e aos atos de violência


intentados por grupos superexcitados” 25. De fato, desde a chegada
de Thorez, as organizações do partido recebem, por via interna,
instruções para dissolver as milícias e entregar as armas. E o secre­
tário-geral, no informe que apresenta ao Comitê Central, a 21 de
janeiro de 1945, preconiza publicamente a dissolução das milícias e
de todos os grupos armados “irregulares”. Argumenta que tais orga­
nizações eram justificadas antes e durante a insurreição contra os
hitlerianos e os homens de Vichy, mas que, agora, a segurança
pública deve ser garantida pelas forças policiais regulares. No mesmo
informe, insiste (já o dissera, a 14 de dezembro de 1944, discursando
no comício organizado pelo partido no Velódromo de Inverno) em
que os comitês de libertação locais e departamentais não devem
substituir, de modo algum, as administrações oficiais 26.
O momento escolhido por de Gaulle para anistiar Thorez,
segundo todas as probabilidades, não atende apenas a motivações
de política interna. O general preparava a sua viagem a Moscou e
chegar lá com o “caso Thorez” ainda pendente seria, realmente,
très fâcheux27. A anistia ao prestigioso discípulo de Stalin repre­
sentava um excelente “cartão de visita”. Com efeito, tudo foi per­
feitamente coordenado: a 6 de novembro se publica o decreto, a 27
do mesmo mês Thorez chega a Paris, a 2 de dezembro de Gaulle
está em Moscou, reunido com Stalin. O objetivo do general era
reforçar suas posições frente à Inglaterra e aos Estados Unidos me­
diante u n pacto bilateral com a União Soviética — o que consegue,
depois de uma demorada negociação. Se a anistia de Thorez facilita
o entendimento de Gaulle-Stalin, o pacto franco-soviético facilita o
entendimento de Gaulle-Thorez. As contundentes observações deste
último contra quaisquer discussões acerca da autoridade do novo
Estado francês, feitas ao Comitê Central em 21 de janeiro de 1945,
não são estranhas, sem dúvida, ao feliz resultado das negociações
de Moscou28.
349
A restauração da “França eterna”

Ao mesmo tempo em que coopera eficazmente na liquidação das


tendêncjas usurpadoras” dos comitês de libertação nacional e das
“últimas seqüelas das milícias patrióticas”, o partido põe inteira­
mente as forças armadas da Resistência que controla à disposição
do alto comando gaullista e aliado, funde-as ao “grande exército”
francês, cuja formação Thorez preconiza ardorosamente desde que
pisou o solo pátrio. Numa palavra, o partido liquida as forças arma­
das populares forjadas durante a Resistência, em todas as suas for­
mas. Simultaneamente a esta destruição geral das bases políticas e
militares de um novo poder popular, criadas no curso da Resis­
tência e da Libertação, o partido se lança a outra grande batalha
pela restauração da França eterna: a famosa — tristemente fa­
mosa batalha da produção”. A coisa começa imediatamente
depois da libertação de Paris. Num informe a uma reunião de mili­
tantes sindicais, a 10 de setembro de 1944, Benoit Frachon con­
voca os trabalhadores a “reconstruir nossa grande indústria sobre
bases mais racionais e a assegurar o seu pleno rendimento”. A re­
construção, esclarece, “não deve operar-se em proveito das oligar­
quias financeiras e industriais , mas este é um problema a resol­
ver-se quando o povo for consultado sobre o regime que deseja”
então, afirma, nos daremos nossa opinião sobre a desaparição
dos trustes e os métodos adequados para substituir a sua dominação
por uma economia a serviço da nação”. Por agora, sem esperar o
que digam as urnas sobre os beneficiários da “reconstrução”, os
operários devem trabalhar duro. O secretário da CGT e dirigente
do Partido Comunista aconselha-os a constituir “comitês patrióticos
de produção”. A 24 de março de 1945 informa sobre isto ao Comitê
Nacional da CGT. Entrementes, concedeu-se aos operários um pe­
queno aumento salarial, inferior à modesta reivindicação de 50%
formulada pela CGT na clandestinidade — mas os preços subiram.
“Durante este período [da Libertação a março de 1945] — diz Fra­
chon em seu informe —, germinou na classe operária um legítimo
descontentamento. Se, apesar disto, as greves foram quase inexis­
tentes, o fato se deve apenas à alta consciência nacional dos traba­
lhadores, bem como a autoridade da CGT e seus militantes” 29.
Realmente, o partido, liderado por Thorez, não poupou energias para
inculcar nos operários comunistas e filiados à CGT a “alta consciên­
cia nacional”. Num primeiro momento, invoca-se o “esforço de guer-

350
ui mino principal justificação, porque ainda não está consumada
H .1, iioin da Alemanha. Na verdade, a sorte da guerra já está deci-
.li.lu ionio Stalin dá a entender em seu discurso de 6 de novembro
,1, c a produção francesa de armas teria pouca influência nos
....... .mentos. Em troca, o que não está decidido é se a luta e os
q,i, i il mios dos trabalhadores franceses terão como resultado a con-
. •11•I.i*,.i, > do capitalismo francês “sobre bases mais racionais” ou
..... economia a serviço da nação”. O “esforço de guerra”, situado
uh contexto de toda a política do partido, que estamos descrevendo,
■i podia contribuir para paralisar e desmoralizar as forças capazes
,l, Impor u segunda alternativa — e foi o que ocorreu. A “batalha
,Li produção” não se interrompe com a derrota da Alemanha; ao
contràrio, chega ao seu clímax. Thorez encontra outro argumento,
,|iic mio se distinguia propriamente pela originalidade. Todos os
pui lidos social-democratas, cada vez que participaram de um go­
mmo burguês, como agora participava o PCF, haviam-no utilizado:
operários não devem apresentar reivindicações excessivas nem
11,/ci greves, mas elevar a produção, porque o interesse da grande
burguesia é criar dificuldades a um governo com ministros socialis-
i,i | ui seu informe ao X Congresso do partido (junho de 1945),
1'horez não desmerece em nada os seus precursores e contemporâ­
neo. social-democratas; antes, os ultrapassa: “Onde está o perigo
mortal para o nosso país? Está no terreno da produção [. . . ] Se
os trustes e seus agentes se opõem ao esforço de reconstrução e de
produção, o interesse do povo, o interesse da classe operária, é tra-
bnlhar e produzir, apesar e contra os trustes.” Naturalmente, aquilo
cm que menos pensavam os trustes e seus agentes era em se opor a
que os operários “trabalhassem e produzissem”. Thorez não pode
rxpor ao congresso uma só prova convincente da “vontade que atri­
bui aos trustes. A estes, o que não seduzia era a “democracia libe­
rada dos trustes”, que Thorez apresenta como a perspectiva do par-
lido. Mas nem isto os preocupava muito: era um objetivo ao qual
sc deveria chegar pela via da legalidade parlamentar, sob condições
de autoridade e estabilidade. “A perspectiva mais feliz para nossa
nação — afirma Thorez no mesmo informe — é a manutenção
prolongada de um governo de ampla unidade nacional e democrática,
que viabilize as melhores condições de autoridade e estabilida­
de [ .. .]” Só assim se pode assegurar a “grandeza da França”, porque
só assim a produção pode ir de vento em popa. Diz Thorez: Hoje,
são a extensão e a qualidade da nossa produção material, e nossa

351
posição no mercado mundial, que dão a medida da grandeza da
França” . O povo deve “entrar na batalha da produção como entrou
na batalha pela libertação; trata-se de recuperar a grandeza da Fran­
ça, trata-se de assegurar — de forma não retórica — as condições
materiais da independência francesa”. A alusão se dirige a todos os
que, dentro ou fora do partido, criticam com “frases revolucioná­
rias” a linha seguida pela direção do PCF: “Temos que combater as
concepções esquerdistas de alguns sectários que pensam, ainda que
não o expressem claramente, que ‘talvez tenhamos abandonado a
linha revolucionária’ ”. Felizmente, o Comitê Central, sob a clarivi­
dente direção de Thorez, desbaratou “o plano da reação, que tendia
a empurrar os elementos mais avançados da democracia e da classe
operária para aventuras, a fim de dividir o povo”. Em todo este
informe, Thorez só menciona os conceitos de “revolução” e “revo­
lucionário” em sentido pejorativo. Já no seu discurso de janeiro,
diante do Comitê Central, chegara ao limite de denegrir o uso do
conceito, vinculando-o subterraneamente ao de “revolução nacio­
nal” utilizado pelos homens de Vichy: “Nós, que somos comunistas,
atualmente não formulamos exigências de caráter socialista ou co­
munista. Dizemos isto com o risco de parecermos fracos aos olhos
dos que constantemente têm nos lábios a palavra revolução. Está
um pouco na moda, mas quatro anos de ‘revolução nacional’ sob a
égide de Hitler preveniram o povo contra o emprego abusivo e
demagógico de certos termos, deformados em seu sentido”. Thorez
põe em circulação a expressão “hitlerotrotskistas” e convoca à vigi­
lância para identificar e expulsar do partido os “elementos suspeitos,
os provocadores, os agentes do inimigo, hitlerotrotskistas, que fre-
qüentemente se ocultarão sob frases ‘esquerdistas’ ” 30.
A “batalha da produção” alcança seu auge com a viagem de
Thorez pela zona mineira do Norte. Apesar da campanha do partido
e da CGT, em alguns casos os mineiros recorreram à greve, e Thorez
adverte os comunistas que delas participaram: “Aqui, queridos ca­
maradas —- diz, em 21 de julho de 1945, em Waziers, num discurso
para um auditório de mineiros comunistas —, com toda a responsa­
bilidade, em nome do Comitê Central, em nome das decisões do
congresso do partido, afirmo-lhes com toda a franqueza: é impossí­
vel aprovar a menor greve, sobretudo quando ela se dá, como
ocorreu na semana passada, nas minas de Bethune, à margem do
sindicato e contra o sindicato”. Na greve perderam-se umas 30.000
toneladas de carvão, e Thorez clama: “É um escândalo, uma ver-

352
liMiilm, uma falta grave contra o sindicato e contra os interesses dos
......lios"3'. Um ano depois do “apelo de Waziers”, Thorez louva
........ nllndos obtidos: “A produção carbonífera aumentou em mais
•l> Com quase 160.000 toneladas diárias, ultrapassamos em
M' i o nível de antes da guerra. Um êxito notável! A França, com
i • rçm> da União Soviética, é o único país que pode apresentar
Iluiiite resultado. [ . . . ] Cabe cumprimentar nossos mineiros,
•111< ii.io pouparam nem suor nem esforço” 32 (lendo-se os discursos
.1. Thorez deste período, tem-se a impressão de que se está cons-
111iludo o socialismo na França e que a tarefa central dos trabalha-
I H c erguer uma economia que passou às suas mãos). Em dezem-
Iii11. ii organismo dos trabalhadores nos serviços públicos decide
iiigimizar uma greve de advertência e, para prepará-la, tem lugar no
Vcludromo de Inverno um comício-monstro. Os oradores preconizam
ii greve geral, inclusive os da SFIO. A única voz discordante é
llniri Raynaud, dirigente comunista da CGT: “Nas circunstâncias
iiliittis — afirma —, uma greve geral seria catastrófica; resultaria,
a >lii ctudo com a paralisação das ferrovias, na fome nacional”. Dez
11111s mais tarde, Thorez assegura no Conselho de Ministros que não
i pode ceder a pressões intoleráveis e que, com algumas correções,
u projeto do ministro da Fazenda deve ser aprovado33. Referindo-se
no ano de 1945 — que, com a linguagem cubana de hoje, o PCF
poderia ter batizado como “o ano da produção” —, de Gaulle
cm reve nas suas Memórias: “Quanto a Thorez, mesmo se esforçando
paru levar adiante as questões do comunismo, em várias ocasiões
prestou serviços ao interesse público. Não cansa de passar a pala­
vra de ordem de trabalhar o máximo possível e de produzir a
qualquer preço. Uma simples tática política? Não vou discuti-lo.
Iiusla-me que a França saia ganhando.” Logo ficaria claro que
"as questões do comunismo” não avançavam muito, mas que a
f rança — mais exatamente: a burguesia francesa — sairia ganhando.
Em junho de 1946, Thorez viu-se obrigado a declarar ante o
Comitê Central: “A situação é muito séria [refere-se ao fato de o
resultado negativo do referendum sobre o projeto de Constituição
apoiado por comunistas e socialistas, bem como as eleições legisla­
tivas de 2 de junho, haverem revelado um nítido deslocamento dos
eleitores para a direita]. A grande burguesia francesa, forte em sua
larga experiência e dotada de enorme capacidade de manobra, usou
hábil e alternadamente de todos os seus métodos e de todos os seus
homens para chegar até este ponto e, se possível, para fazer-nos

353
retroceder ainda mais. Quando da Libertação, não se enfrentou dire­
tamente com o movimento popular. Procurou ladeá-lo, deslocá-lo,
desagregá-lo. Impediu a união das forças da Resistência e pouco a
pouco reduziu a influência do Comitê Nacional da Resistência e
dos comitês locais e departamentais de libertação” 34. Declaração
reveladora, porque dela se deduz nada menos que o seguinte:
a) dois anos de Libertação, dois anos de participação dos co­
munistas no governo, não fizeram avançar na França o movimento
popular saído da Resistência, mas avançou a grande burguesia, que
fortalecia as suas posições econômicas e recuperava a sua influência
política. A original tática thoreziana de lutar contra os trustes à base
de um esforço para que os operários trabalhassem mais e melhor,
apertando os cintos, conduzira ao fortalecimento dos trustes. A con­
tenção do movimento de massas, a renúncia às ações que atentassem
contra a ordem legal, a fim de não colocar em risco a “união nacio­
nal”, conduziram à reinstauração da ditadura burguesa sobre a na­
ção. A linha de travar as reivindicações proletárias para não assustar
as camadas médias resultara na inclinação destas para a direita, para
os partidos da burguesia — que iam revelando, em contraste com
a pusilanimidade e a debilidade do partido proletário, sua maior
determinação —, como o reconhece Thorez no mesmo informe. A
via para avançar no sentido da “nova democracia”, baseada exclu­
sivamente na conquista da maioria parlamentar, conduziu à restaura­
ção da mais “velha democracia”, a democracia tradicional da França
burguesa. O cretinismo parlamentar comunista dava os mesmos frutos
que o cretinismo parlamentar social-democrata. Inutilmente a direção
do PCF lançava sobre a SFIO a responsabilidade da não formação
de um governo socialista-comunista, apoiado pela maioria parla­
mentar reunida pelos dois partidos. Todo mundo sabia que os diri­
gentes socialistas de direita só aceitariam semelhante coalizão sob
uma irresistível pressão das massas, mas a direção thoreziana fizera
todo o possível para paralisar o movimento de massas nascido da
Libertação. Quanto aos quadros socialistas e sindicais de esquerda,
susceptíveis de apoiar sinceramente um governo socialista-comunista,
eles alimentavam legítimas reservas sobre o futuro que esta solução
podería lhes oferecer. É claro que, durante esse período, Thorez
mencionou, em algumas oportunidades, uma possível via francesa
ao socialismo, diferente da seguida pelos bolcheviques. Mas estas
colocações eventuais não se acompanhavam de nenhuma fundamen­
tação teórica séria — reduziam-se. na realidade, a generalizar o caso

354
•Iti» democracias populares do Leste europeu, esquecendo o pequeno
ili hillic do papel ali desempenhado pelo exército vermelho e por
mil ms instrumentos do poder soviético. Ademais, a sujeição do PCF
n nliii direção stalinista, a seus dogmas, era tão evidente que as
i Moiregadelas heterodoxas de Thorez dificilmente poderiam ser to-
mndiis por algo mais que manobras táticas35;
lo icconhecendo que, “quando da Libertação [a grande burguesia]
mio sc enfrentou diretamente com o movimento popular” e “pro-
' m i o u ladeá-lo, deslocá-lo, desagregá-lo”, Thorez estava dando razão
mo . que então preconizavam, dentro e fora do partido, uma política
olensiva, revolucionária, orientada ao desenvolvimento do vigoroso
movimento operário e popular que a insurreição nacional deflagrara.
• a “grande burguesia” não se atreveu a atacá-lo frontalmente era,
precisamente, porque percebia a sua potencialidade revolucionária.
Mus quem “pouco a pouco reduziu a influência do Comitê Nacional
•lo Kcsistência e dos comitês locais e departamentais de libertação”?
\ “grande burguesia” ou a política defendida e imposta por Thorez
desde o seu regresso de Moscou? Noutra passagem do mesmo in-
Iurine, Thorez refere-se novamente à “tática sinuosa [das forças
burguesas], da qual hoje ousam se orgulhar, tática destinada a
conter, a ladear o povo, ao qual não podiam atacar de frente em
agosto de 1944” 36. E não era lógico esse orgulho? Não tão lógico
cia que o secretário-geral do Partido Comunista, por sua vez, se
■agulhasse da política que tão maravilhosamente se ajustara à “tática
.limosa” da reação burguesa. No entanto, Thorez defende como inte­
gralmente justa, perfeita, a linha seguida desde a Libertação. Se
houve pequenos defeitos, estes se localizam no trabalho de federações
e seções. Com a maior naturalidade, como se não tivesse nenhuma
responsabilidade nisto, Thorez censura “alguns camaradas que não
estão livres de ilusões parlamentares”. Mas esta censura, no contexto
do informe, funciona apenas para equilibrar formalmente o alvo
verdadeiro do ataque, a esquerda. O mal-estar diante dos resultados
da linha seguida, realmente, se generalizara muito nas fileiras do
partido e Thorez, ainda que minimizando-o, se vê obrigado a reco­
nhecê-lo. Cita casos particulares: a resolução de uma célula do
Yonne reprova à direção “colaborar no governo, fazendo concessão
atrás de concessão”, e outra dos Altos Pirineus, que acusa a direção
de “colaborar com a reação, acumpliciando-se com leis antidemo­
cráticas”. Thorez convoca o partido a combater energicamente estas
posições. Aqueles que as sustentam “ainda não compreenderam que

355
nos convertemos num partido de governo, colocam em dúvida a
nossa linha geral”. E, para convencer esses recalcitrantes, Thorez
exibe — pela primeira vez, ao que sabemos, publicamente — o
grande argumento, o argumento irrecusável, que continuará utilizan­
do por anos e anos para justificar a política do PCF na Liber­
tação: os que criticam esta política, diz Thorez, “nem sequer leram
o artigo do jornalista norte-americano Walter Lippman, que escreveu,
em Le Figaro, que as tropas anglo-americanas estavam prontas a in­
tervir se os comunistas ascendessem ao poder na França” 37. Acerca
desta justificação suprema, e aparentemente tão “sólida”, voltaremos
mais adiante. Antes, porém, concluiremos este sumário esboço da
política do PCF até a sua exclusão do governo.
Nem a “séria” situação criada, nem o descontentamento nas
fileiras do partido — que, ademais, é facilmente controlado pelos
métodos tradicionais de intimidação ideológica e medidas adminis­
trativas — são suficientes para que a direção do PCF introduza
mudanças na sua política. Pouco depois da reunião do Comitê Cen­
tral que acabamos de mencionar, Thorez faz a declaração, acima re­
produzida, louvando o aumento da produção carbonífera conseguido
com o “suor e esforço” dos mineiros. E o partido se resigna com o
congelamento de salários decretado pelo governo de que participam
seus ministros. Contudo, o mais escandaloso — se é possível esta­
belecer gradações nisto — é a atitude do PCF diante da luta dos
povos oprimidos pelo colonialismo francês. Desde que, no encontro
de maio de 1942, Molotov concordou com que todos os povos das
colônias francesas deveríam agrupar-se sob a direção de de Gaulle,
a política do partido francês consistiu em preconizar a manutenção
das colônias (com certa autonomia, ou uma independência formal)
na União Francesa — e, nisto, apenas retomava a política já pratica­
da no período da Frente Popular. Em seu informe ao X Congresso
(junho de 1945), Thorez define o programa do partido neste campo:
“Criar as condições da união livre, confiante e fraternal dos povos
coloniais com o povo da França”. O partido sustenta o princípio
da livre determinação, mas “o direito ao divórcio não significa a
obrigação de divorciar”. A prática desta política colonial — que
seria subscrita sem hesitações por Van Kol e os outros líderes da
Segunda Internacional que, no Congresso de Stuttgart, propuseram
uma política colonial “socialista” — traduziu-se em que o partido
foi associado a todas as repressões colonialistas exercidas pelos su­
cessivos governos franceses, com ministros comunistas, da Libertação

356
mu I'i47. Depois da selvagem repressão à insurreição de maio de
IM .. no Constantinois argelino, com um saldo de milhares de
..... os ministros comunistas continuam no governo e, no
i ongresso do Partido, um mês após a matança argelina, Thorez
.h/ o seguinte: “Falando de democracia, não podemos esquecer
.i,111uma das suas exigências é uma atitude mais compreensiva e mais
111 i.i cm face dos povos coloniais. Como em Aries, diremos que há
,|iK reconhecer as reivindicações legítimas dos povos coloniais, pri-
....... no interesse destas infelizes populações, segundo no interesse
,l,i I rança. Na Argélia, depois dos dolorosos acontecimentos do mês
IiiimsikIo, nada é mais urgente do que melhorar o abastecimento,
ir,pender o estado de sítio, demitir os funcionários de Vichy e
, nr,ligar os traidores que, após haverem abastecido o inimigo por
<I,ir, imos, provocaram os motins com a fome; desmobilizar e de­
volvei às suas casas os soldados, suboficiais e oficiais argelinos que
i„ iicncem às categorias não mobilizadas na metrópole; enfim, apli-
, .li a ordem de 7 de março de 1944 sobre a ampliação das liberdades
democráticas na Argélia”. Eis tudo. Mais esta conclusão: “A França
democrática deve colaborar com o desenvolvimento da nação arge-
linii cm formação” . O PCF não reconhece que já exista a nação
iiigclina; enquanto ela “se forma”, os argelinos, como os marro­
quinos e tunisianos, devem permanecer, na opinião de Thorez, uni­
dos à França: “Nós nunca deixamos de mostrar que o interesse das
populações do Norte da África residia em sua união com o povo
dii França” (o sentido desta passagem se torna ainda mais claro
c sc leva em conta que ela vem em seguida àquela já citada, se­
cundo a qual “o direito ao divórcio não significa a obrigação de
divorciar”). Thorez lamenta também a recente repressão contra os
povos da Síria e do Líbano, que reclamam a independência; o par-
lido apóia o seu direito à autodeterminação, mas não se esquece de
llics recordar a máxima sobre o divórcio. Por isto — diz Thorez,
icferindo-se à repressão lá efetivada —, “lamentamos ainda mais o
golpe assestado ao prestígio secular e aos interesses de nosso país
no Oriente Médio” 39.
Em finais de 1946 vem à tona o Vietnã. Depois que o exército
francês restabeleceu praticamente o regime colonial no Sul do país
(sem que o PCF organizasse qualquer ação de protesto), a frota
bombardeia Haiphong a 23 de novembro de 1946 e começa a guerra
do imperialismo francês contra o povo vietnamita. O PCF se mantém
na passividade e inclusive, segundo fontes comunistas, a direção do

357
partido chega a considerar, num momento, se deve ou não imputar
a responsabilidade da guerra a “provocadores vietnamitas”. De qual­
quer forma, durante seis meses, a guerra colonial contra o povo
vietnamita, dirigido por comunistas, é conduzida por um governo
no qual figuram cinco ministros comunistas, entre os quais o secre­
tário-geral do partido, vice-presidente do Conselho de Ministros. E
durante quatro meses (a partir de janeiro de 1947), o ministro da
Defesa Nacional deste governo é um comunista. Quando, em março,
a Assembléia Nacional vota os créditos militares para a guerra co­
lonial, o grupo parlamentar comunista se abstém, mas os ministros
comunistas os aprovam, a fim de manter a “solidariedade governa­
mental”, e ratificam as instruções ao novo Alto Comissariado no­
meado pelo governo para dirigir a guerra no palco de operações40.
Duelos contribui com um “argumento de peso” — diz J. Fauvet
— em prol da manutenção da “solidariedade ministerial”: a Con­
ferência dos Quatro (União Soviética, Estados Unidos, Inglaterra e
França) se inicia em Moscou, e “nosso ministro de Relações Exte­
riores defende a causa da França” 4'. A causa do Vietnã pode espe­
rar. Enquanto se celebra a Conferência dos Quatro, as tropas fran­
cesas reprimem a insurreição dos malgaxes com os mesmos métodos
utilizados no Constantinois argelino dois anos antes 42. O partido se
limita a alguns protestos de praxe e a exigir o respeito à imunidade
parlamentar no caso dos deputados malgaxes encarcerados. O essen­
cial é continuar salvaguardando a “solidariedade ministerial” porque,
para poder advogar na conferência de Moscou pela “causa da Fran­
ça”, Bidault deve falar em nome de uma nação unida. A causa de
Madagascar, assim como a do Vietnã, também pode esperar.
A “causa da França”, tão cara a Thorez e Duelos, tem, neste
caso, um conteúdo muito preciso: as reivindicações da França ven­
cedora sobre a Alemanha vencida. Toda a flexibilidade que o PCF
mostra ante a burguesia francesa converte-se em inflexibilidade
quando se trata do “problema alemão”. Nesta questão, a política
thoreziana parte de uma posição de “princípio” : “O povo alemão
carrega a terrível responsabilidade de ter seguido Hitler em sua
guerra de extermínio contra os outros povos. [ .. .] Deve sofrer as
conseqüências, deve reparar” (as outras “terríveis responsabilidades”
são apagadas da história: a responsabilidade dos povos da França e
da Inglaterra, tolerando o Tratado de Versalhes e a política que
levou a Munique; a responsabilidade das duas Internacionais na po­
lítica que possibilitou a ascensão de Hitler ao poder; a responsabi-

358
Ii.lmli' tia política staliniana, que perdeu a grande oportunidade para
.lii inr o curso dos acontecimentos europeus e conduziu à derrota
•hi república espanhola, etc.). O que agora preocupa Thorez é que
o I miiido de Versalhes cometeu o erro de exigir as indenizações ale-
Mui-, cm dinheiro, quando é muito mais eficaz outra variante, “as
iin leni/,ações em espécie e, em primeiro lugar, a utilização da mão-de-
. In a nlemã”. O PCF exige a internacionalização do Ruhr e a inte-
(iiiii.no do Sarre no sistema econômico francês. O carvão do Ruhr
de ve servir à reconstrução econômica da França. E tudo isto bem
iiMiegurado mediante uma “ocupação prolongada da Alemanha”. Mas
.1 ui exageros, no entanto. O patriotismo de Thorez é realista: “Não
lim o s contrários — esclarece — ao desenvolvimento de algumas
Industrias pesadas na Alemanha. Não somos ingênuos. Sabemos que
im o é possível reduzir a Alemanha ao nível de uma tribo primitiva,
mus queremos um controle”. Thorez, contudo, é inflexível no que
■ rclere à utilização da “mão-de-obra alemã” — já na sua viagem
prlii região mineira do Norte, recomendou que se exigisse um maior
rendimento dos prisioneiros alemães. E na sua entrevista concedida
.1 agencia Reuter, publicada em The Daily Mail de 15 de novembro
tf 1946, adverte os ingleses sobre a sua contemporização nesta ma-
irria: “Resta-nos a impressão de que os britânicos têm le coeur
ifiidre em face dos alemães, quando deveriam obrigá-los a tra-
balhar” 43.
Pela primeira vez na história do PCF, desde que Thorez assu­
miu a secretaria geral, surge uma divergência pública com a política
dc Stalin. O sensacional acontecimento não se relaciona com nenhum
problema da luta revolucionária na França, nem deriva de um incô­
modo qualquer que aos dirigentes comunistas franceses tenha cau­
sado a façon cavalière44 com que Stalin decidira, com Roosevelt e
Churchill, o destino de cada povo europeu, resolvendo que à França
competia permanecer na área capitalista. Não: a divergência surge
em função do Ruhr. Na citada entrevista à agência Reuter, Thorez
reconhece-o publicamente: “Nossos amigos soviéticos dizem: ‘Con­
trole interaliado no Ruhr’. Nós dizemos: ‘Internacionalização do
Ruhr’. Devemos encontrar uma fórmula de acordo”. O conflito eclo­
dira meses antes, em outra conferência entre os Quatro. Molotov se
opusera categoricamente ao desmembramento da Alemanha e à colo­
cação do Sarre sob autoridade francesa. O PCF manteve as suas
posições, merecendo as envenenadas felicitações de León Blum:
“Nossos camaradas comunistas aproveitaram, muito legitimamente,

359
esta ocasião para demonstrar, com fatos, que o seu nacionalismo é
verdadeiramente um nacionalismo francês, autêntico, sólido e de boa
têmpera, de têmpera suficiente para resistir a esta ducha” 45. Real­
mente a divergência entre a “política externa” do PCF e a soviética
era de pouca importância: atinha-se às formas de impedir o ressur­
gimento do imperialismo alemão, não ia ao fundo. E no próprio
terreno das formas, as duas posições tinham em comum o fato de
nada terem em comum com um enfoque internacionalista e prole­
tário do problema. Mas isto não retira significação a que o primeiro
gesto de independência do filho diante do pai se manifestasse, preci­
samente, no âmbito do nacionalismo. Outros conflitos de muito maior
peso iriam logo desvanecer este breve sinal de divergência entre o
incipiente nacionalismo comunista ’ francês e o todo-poderoso na­
cionalismo “comunista” grão-russo.
Com efeito, a “grande aliança” deixava praticamente de existir.
O imperialismo americano decidira-se resolutamente a instaurar a
sua dominação mundial. Oferece à burguesia européia, em troca da
sua liderança, o maná dos seus dólares. Oferece-lhe também proteção
militar — e tem o monopólio da bomba — contra o “perigo ver­
melho . E enquanto Thorez e Duelos não economizam concessões
— já vimos de que magnitude — para manter a “solidariedade mi­
nisterial”, a fim de que Bidault, respaldado pela “unidade nacional”,
possa defender em Moscou a “causa da França”, o ministro de Re­
lações Exteriores conclui na capital soviética um acordo em sepa­
rado sobre o carvão do Ruhr com Bevin e Marshall. Em troca do
maná que se chamará Plano Marshall, a burguesia francesa abandona
as suas “reivindicações alemãs” e se orienta decididamente para a
integração no bloco americano. Mas, para soltar os dólares, Washing­
ton exige que os partidos comunistas desapareçam dos governos bur­
gueses da Europa. E, realmente, a operação se leva a cabo com
rapidez e sem dificuldades. Em cada caso se recorre a um pretexto
que dissimule a ordem do novo amo, mas o resultado é o mesmo:
a 19 de março Spak forma um governo sem os comunistas belgas,
a 5 de maio Ramadier despacha os franceses e a 30 do mesmo mês
de Gasperi reforma seu governo sem os comunistas italianos.
No caso francês, o pretexto é a grande greve da Renault. Ao
fim de quatro anos na “batalha da produção” e de política (cege-
tista-comunista) “antigreve”, no altar da “união nacional” e da “gran­
deza da França ; ao cabo desses quatro anos, que desembocaram no
congelamento dos salários por um governo no qual predominavam

360
uiInlhlroN comunistas e socialistas — ao fim desses quatro anos, toma
, i m|ii >entre os operários a idéia de travar a sua própria “batalha”.
I. mundo canalizar o descontentamento, a CGT, em março de 1947,
,'int ncntara uma série de modestas reivindicações, mas sem empreen­
di i qualquer ação real — e desaconselhando que se o faça. A 25
ili iiIh il, os operários da Renault vão à greve, iniciada, ao que parece,
i . Km irotskistas, e secundada imediatamente por sindicalistas socia-
luimi e cristãos. Nos círculos governamentais, o PCF é acusado de
u i o instigador e Ramadier coloca a questão da confiança sobre a
{Miluiia econômico-social do governo na Assembléia Nacional. Ante
.i. fluis de milhares de operários em greve e o profundo mal-estar
que sc gesta entre aqueles que ainda não cruzaram os braços, o
|wittido não pode aprovar tão ostensivamente a continuidade do con-
liimento salarial, sob pena de se desacreditar gravemente diante
■li.. irnbalhadores e sob o risco de estes deslizarem para a esquerda
deslizamento já em curso na Renault. Se Ramadier aproveita a
. qiortunidade para cumprir a ordem americana sob a aparência de
um imperativo de política interna, tampouco o PCF deixa escapar
.1 ocasião de matar dois coelhos com uma só cajadada: pôr em crise
um governo que acabava de dar um perigoso passo para alinhar-se
nos americanos (a direção do partido pensava que sua atitude deter­
minaria a crise ministerial) e revalidar seus títulos de partido de-
Icusor dos interesses proletários. O primeiro golpe falha porque Ra­
madier se limita a reorganizar o seu governo sem os ministros comu­
nistas (confirmando, assim, que o problema de fundo não residia na
política interna, mas era outro). Entretanto, o voto contra a política
econômico-social do governo não significa que o partido se proponha
organizar as massas contra ela. No parlamento, Jacques Duelos tran-
qiiiliza Ramadier, que teme a extensão das greves: “Somente os
imbecis falam agora de greve geral” 46. Mais do que nunca, o partido
:,e apresenta como “partido de governo”. Ainda pensa que o acordo
Uidault-Bevin-Marshall sobre o carvão do Ruhr é um episódio aci­
dental, perigoso, mas reversível. E inclusive depois do niet47 que
Molotov opõe ao projeto do Plano Marshall, nos últimos dias de
junho, a direção thoreziana seguirá embalando-se em suas ilusões
sobre a continuidade da “grande aliança”, cuja influência benévola
permitiu-lhe ser, durante quase três anos, “partido de governo”. E
até a reunião do Centro de Informação dos Partidos Comunistas, em
finais de setembro, não compreenderá que chegara a hora da “vi­
ragem”.
361
No intervalo, Thorez não perde ocasião de exibir as irrefutáveis
provas que durante três anos o partido deu de ser um autêntico
“partido de governo”, e não pára de lamentar que tais méritos sejam
desdenhados pelos outros partidos da República. Eis uma pequena
amostra, de 8 de junho de 1947: “Em 1944, se se toma o índice
100 para antes da guerra, o nível da produção geral estava em 35.
Em finais de 1946, chegava a 90. E em relação à outra guerra? Em
1919, o nível da produção era menos baixo, estava em 57. Em
1920, era de 62; em 1921, 55; em 1922, 78; em 1923, chega a 88.
Assim, graças à classe operária, o país se reergue em dois anos,
enquanto foram necessários mais de cinco anos para obter o mesmo
resultado depois da primeira guerra, embora então as dificuldades
fossem menores.
Este é o grande mérito da classe operária e do nosso partido,
porque fomos nós, os comunistas, que dissemos, com franqueza e
sem demagogia, o que era necessário dizer à classe operária, aos
ferroviários, aos mineiros. Enquanto isso, quando se falava da uni­
dade num congresso socialista, o atual ministro do Trabalho comen­
tava: ‘Unidade para produzir carvão? Ah! Isto é socialismo?’
No entanto, depois da guerra de 1914-1918, o nível de vida
da classe operária se elevou. Em 1921, o índice dos preços no varejo,
com relação ao período anterior à guerra, era de 337, e o dos salários
era de 472. Houve, portanto, uma elevação de 40% no poder aquisi­
tivo dos salários. A tendência só se inverteu depois da crise finan­
ceira de 1925. Hoje, o que se passa? Em outubro de 1944, os preços
estavam em 291 e os salários em 321; em abril de 1946, os preços
haviam subido a 491 e os salários continuavam em 321; em outubro
de 1946, os preços chegaram a 851 e os salários a 417. Há, pois,
uma redução de 50% no poder aquisitivo real dos salários em rela­
ção a 1938” 48.
Vale dizer, a colaboração do partido comunista no governo de
1944 a 1947 tivera efeitos mais favoráveis para a restauração da eco­
nomia capitalista e mais desfavoráveis para as condições materiais
das massas que o governo reacionário da chambre bleu horizon de
1919-1921 49. Contraste sem mistério, se se recordar que, enquanto
em 1919-1921 a classe operária lutou energicamente, recorrendo à
greve, em defesa das suas condições de vida, em 1944-1946 aceitou
disciplinadamente as consignas contra as greves e para elevar a pro­
dução, consignas que lhe ofereceu o PCF. Evidentemente, a bur-

362
i ui ui cru injusta com o partido comunista e é compreensível que,
tu * \ l Congresso (junho de 1947), o velho Cachin se perguntasse,
iludindo a Thorez, “em razão de que absurdo se prescindiu de
iiiulhante homem de Estado?” 50. De fato, somente o desconheci-
...... das realidades européias que caracterizava os políticos ameri-
. iiiuri c o servilismo em relação a estes revelado pelos seus colegas
iimii cses explicavam tamanho “absurdo”.

A revolução frustrada (Itália)

A política do Partido Comunista Italiano (PCI) durante a Resis-


it’iu ia, a Libertação e os primeiros anos do pós-guerra não difere,
■ i iicialmente e no tocante à sua orientação geral, da política do
imitido francês. É a versão italiana da linha ditada aos partidos
minunistas pela alta estratégia staliniana, expressa na resolução tes-
lumcntária da IC. No entanto, houve certas diferenças significativas
11jI maneira de aplicar esta linha, determinadas em parte pela natu-
ie/.a dos problemas que objetivamente se colocavam na Itália e,
<m parte, pelas características peculiares do partido italiano e de
seu núcleo dirigente. A incondicionalidade do PCI, em sua inevi-
lável subordinação a Moscou, nunca chegou a ser tão incondicional
como a do PCF no seu período thoreziano. Trata-se, afinal, do
partido de Gramsci e Bordiga, que, embora a partir de posições
diferentes, convergiram na luta pela autonomia e pela especificidade
do partido em face da prepotência do centro moscovita. Apesar de
que Togliatti finalmente enquadrou o PCI na ordem da IC, esta
tradição — sobretudo a marca gramsciana — nunca desapareceu
completamente. A formação intelectual de Togliatti e a sua complexa
personalidade se ajustavam mal ao molde staliniano. Com a sua
especial capacidade para o compromisso e a manobra política, e
aproveitando-se do seu alto cargo na IC, Togliatti conseguiu esta­
belecer um difícil equilíbrio entre a subordinação à direção sovié­
tica e as exigências — segundo a sua interpretação — da realidade
italiana. No período que estamos considerando, a preservação desse
“equilíbrio” se viu facilitada porque entre a alta estratégia stali­
niana e a visão togliattiana dos problemas italianos existia uma coin­
cidência fundamental. As divergências começaram a se manifestar
mais tarde, ainda que, neste período, tenham se registrado certos
“ desajustes”.
363
O pacto germano-soviético, e o alinhamento às posições da IC,
custou ao PCI a ruptura do acordo unitário com o Partido Socialista,
mas não repercutiu em sua política e em sua situação com a mesma
gravidade com que operou no caso francês. O PCI se adaptara à
clandestinidade há muitos anos e, sobretudo, naquele momento não
se lhe colocou o problema da agressão hitleriana. Não houve solução
de continuidade em sua política interna: para ele, “Vichy” era o
Estado fascista tradicional e a sua ação continuou sendo nitidamente
antifascista. Quando a Itália entra na guerra (junho de 1940), o
partido acusa o governo mussoliniano de “vender o povo ao imperia­
lismo alemão ’. Em maio de 1941, outro documento do partido ataca
violentamente o imperialismo alemão e declara que a Inglaterra e
a França não ameaçam a Itália — exige a ruptura do pacto com a
Alemanha e a saída do país das tropas germânicas51. Como se vê,
a posição em face do “imperialismo alemão”, de um lado e, de outro,
em face dos Aliados era bem diferente da expressa nos documentos
elaborados na mesma época pelo partido francês.

A viragem de Salerno

A entrada da União Soviética na guerra permite reconstruir


rapidamente (outubro de 1941) o pacto de unidade com os socia­
listas e estendê-lo ao grupo antifascista “ Justiça e Liberdade” (que,
pouco depois, toma a designação de “Partido de Ação”). Ao longo
de 1942, a luta antifascista envolve toda a península, especialmente
o Norte. Na primavera de 1943, os operários de Turim tomam a ini­
ciativa de um vigoroso movimento grevista, que se propaga a Milão
e Gênova, englobando mais de cem mil operários. A derrota alemã
em Stalingrado, o desembarque anglo-americano na Sicília e as gre­
ves operárias no Norte fazem com que os círculos dirigentes da bur­
guesia italiana compreendam que chegou a hora de se descolarem de
Mussolini e colocar-se à sombra protetora dos aliados. Seu principal
objetivo, naturalmente, é prevenir uma saída revolucionária para a
crise do regime, e desde o primeiro instante o governo Badoglio revela
a sua face verdadeira; numa circular governamental, se dão as se­
guintes instruções: “Todo movimento deve ser liquidado inexoravel­
mente, até suas raízes. [. . . ] As tropas atuarão em formação de
combate, abrindo fogo a distância, inclusive com morteiros e artilha­
ria, sem aviso prévio, como se procedessem contra o inimigo. Em

364
utMiluiiu caso sc disparará para o ar: visar-se-á o corpo, como em
...... Se for cometido algum ato de violência, mesmo que iso-
IhiIm i outra as forças armadas, os culpados devem imediatamente
, | miv.ndos pelas armas” 52. Mas a queda do ditador rompera os
.Ihiui que ainda continham o movimento de massas. Saem à lega-
t h lo,I. os partidos antifascistas, os sindicatos oficiais passam às mãos
,la , ninissários designados pelos comitês unitários antifascistas que
, oMNlitucm por todos os lados. Multiplicam-se as greves pela liber-
d,- presos políticos. Nas fábricas, por eleições, formam-se co­
mi operárias (os primeiros organismos eleitos que surgem na
liulla depois da queda de Mussolini).
I ii Ire mentes, os alemães, que já tinham sete divisões na Itália,
„> iiluim por enviar para lá mais dezoito, ocupam de fato o Norte e
( entro do país — sem que o governo Badoglio tome qualquer
medida defensiva. Ao que parece, o rei, o marechal e a grande
Iiiiigiiesiu nutriam a ilusão de sair da guerra e consagrar-se à patrió-
i, i tarefa de combater o inimigo interno utilizando o aparato do
I í,tudo fascista; pensavam que alemães e anglo-americanos, vincu-
Imlns pela preocupação comum de prevenirem-se contra o perigo
vermelho, patrocinariam a operação53. Mas a reação dos alemães
interdita esta perspectiva. A única saída que resta ao governo de
Sun Majestade é refugiar-se no Sul, ao amparo das tropas aliadas,
deixando aos hitlerianos a missão de reprimir o movimento antifas-
eista no Norte e no Centro do país. A 9 de setembro, depois de
anunciar o armistício concluído secretamente com os aliados, o rei
e a família real, o marechal e um distinto cortejo de generais e fun-
, ionários fogem de Roma, sem haverem tomado a menor medida
defensiva contra os invasores — e ainda passará um mês antes que
Badoglio declare guerra à Alemanha: fará isso a 13 de outubro, sob
pressão do alto comando aliado. A Itália ficará dividida em duas
zonas: a ocupada pelos alemães, que, até a primavera de 1944,
compreenderá o Norte e o Centro da península e, no verão desse ano,
reduzir-se-á ao Norte; e a ocupada pelos aliados, que, inversamente,
até a libertação de Roma nos primeiros dias de junho, só compreende
o Sul do país (a frente passa um pouco ao Norte de Nápoles), in­
cluindo, a partir do verão, o Centro.
Desde novembro de 1943, o movimento de massas e a ação
armada começaram a adquirir grande envergadura na zona Norte.
Eclodem importantes guerras no Piemonte, Lombardia, Ligúria e
Toscana. Por iniciativa da direção comunista do Norte e com o apoio

365
do Comitê de Libertação Nacional da Alta Itália (que inclui os
partidos comunista, socialista, de Ação, liberal e democrata-cristão),
em março de 1944 se declara a greve geral no território ocupado
pelos alemães. O Partido Comunista e o Partido Socialista lançam
uma convocação conjunta. Mais de um milhão de trabalhadores par­
ticipam do movimento — o mais importante do gênero, durante a
segunda guerra, na Europa ocupada —, enfrentando todos os riscos.
Em Turim, a greve dura oito dias. Simultaneamente às ações gre­
vistas e outras formas de luta de massas, o movimento guerrilheiro
se desenvolve rapidamente. No verão de 1944, nas unidades comba­
tentes já estão em armas cerca de 100.000 homens. Longo faz esta
descrição da situação na Itália setentrional: “ Graças à envergadura
do movimento de massas, em muitas regiões existia, de fato, duali­
dade de poderes: os organismos das autoridades fascistas, que se
desacreditavam cada vez mais, e os organismos de poder antifascistas,
que existiam ilegalmente, mas gozando de grande prestígio entre a
população. E, além dessas regiões onde havia a dualidade de poderes,
durante todo o período de ocupação nazista existiram outras zonas
no Norte da Itália completamente libertadas das autoridades fascistas,
alemãs ou italianas. Eram dirigidas por organismos democráticos de
poder, eleitos livremente sob a proteção das forças guerrilheiras” 54.
Comunistas e socialistas — com o indiscutível predomínio dos pri­
meiros — constituíam o núcleo dirigente deste vigoroso movimento,
cuja força decisiva era a classe operária da Itália industrial e cujo
espírito revolucionário foi sublinhado por numerosos protagonistas
e historiadores comunistas55. No entanto, se no Norte industrial
começava a tomar corpo este poder popular, no Sul agrário se ges-
tavam as estruturas de um novo poder político da burguesia italiana.
No momento seguinte à queda de Mussolini, os líderes da es­
querda tentam chegar a acordos com Badoglio para organizar a luta
contra a ocupação alemã; mas o entendimento é impossível, dada a
cumplicidade tácita do rei e do marechal com os hitlerianos e a sua
política repressiva antipopular. Depois do abandono de Roma, o
problema da criação de um governo representativo do antifascismo
e disposto a conduzir com firmeza a luta contra os nazistas se coloca
no primeiro plano. Entretanto, os “três grandes” reconheceram de
facto o governo Badoglio e, na sua “Declaração sobre a Itália”,
publicada nos finais de outubro de 1943, depois de umas quantas
fórmulas gerais sobre a futura democratização do regime político
italiano, se faz uma expressa recomendação: a inclusão, no governo,

366
1.. ii iHi hciiUintcs daqueles setores do povo que sempre se opuseram
MM 1.1 . I mo". A 12 de novembro, o Pravda publica um artigo de
i i llnill (rIc ainda se encontrava na União Soviética: empreende a
i , ni di- regresso à Itália em finais de fevereiro de 1944 e desem-
i ........ ui Nápoles a 27 de março); escreve o chefe do PCI: “As
didn'1 que se indicam nesta declaração [das três potências] corres-
im l, m i-Milumente às aspirações e interesses do povo italiano. Cons-
11111• ui o programa em torno do qual devem unir-se todas as forças
....Ilnm ÍMiis democráticas do país, a fim de conquistar a sua rápida
. ..11 i. ,iu" A Ê supérfluo esclarecer que a essência deste “pro-
i i.iin,i . Mibscrito pelos representantes de Churchill e Roosevelt, era
, ui i miiiçào de uma democracia burguesa na Itália. E, para come-
iii a li.i implementação, o “programa” exigia o compromisso entre
!■iilidos antifascistas e Badoglio — e os partidos antifascistas con-
idiMiivnm este governo, justamente, como uma sobrevivência do
fwndiimo.
A posição de Togliatti, inteiramente alinhada à transação a que
1., I ii.mi os ministros de Relações Exteriores dos “três grandes” na
i milm-iicia de Moscou, divergia claramente daquela que, nestes dias,
ui .m.ii-ntada pelo PCI na Itália. Um documento interno da direção
dii pmtldo que atuava na Itália ocupada, de finais de outubro de
l'i |t, luz a seguinte colocação: “No momento atual, a função e a
11■i ...ui da classe operária consistem em situar-se na vanguarda da
1,11,1 pda libertação nacional e, através desta luta, conquistar tal
inlluôncla no povo italiano que lhe permita converter-se na força
dhlgcnte em prol de uma efetiva democracia popular. Esta deve ser
„ política do partido”. O documento adverte contra dois erros. Um
di Us consistiria em identificar os objetivos da Resistência com a
ii-volução proletária, caindo num “extremismo infantil”. “Mas seria
mu cito ainda mais grave subestimar, em sentido oportunista, a im­
portância do problema da direção política no complexo de forças
nu interior do qual atua a classe operária e, através de uma unidade
mal entendida, capitular ante as exigências das forças reacionárias,
, ujos representantes são Badoglio e a monarquia, às quais se pode
reconhecer uma função auxiliar, mas não dirigente, na luta contra
u fascismo e pela libertação nacional” 57. É sintomático que este
documento interno tenha sido publicado na imprensa ilegal do par­
tido, sob a forma de artigo, no mês de dezembro — depois que a
rádio de Moscou dera a conhecer a posição de Togliatti. Neste
período, a política do Partido Socialista não se situava à direita da

367
do PCI — bem ao contrário; e até o Partido de Ação acentuavu
que os objetivos da Resistência não podiam se limitar à instauração
de uma democracia burguesa 58.
No Sul, o Partido Comunista — juntamente com o Socialista
e o de Ação — impulsiona energicamente a campanha contra o rei
e o marechal. Em fins de janeiro de 1944, reúne-se em Bari um
congresso conjunto de todos os partidos antifascistas, com a presença
de delegados do Comitê de Libertação Nacional (o CLN constituí­
ra-se em Roma a 9 de setembro de 1943, depois da fuga do rei e
do governo, mantendo ali a sua sede clandestina até a libertação da
capital, em junho de 1944 — mas a sua atividade prática era muito
limitada59). O Partido de Ação propõe ao congresso uma série de
medidas, que são apoiadas por comunistas e socialistas e pelos dele­
gados do CLN: exigir a abdicação imediata do rei; constituir-se em
Assembléia representativa do país, até a eleição de uma Assembléia
Constituinte; designar uma junta executiva encarregada das relações
com as Nações Unidas. Os liberais, encabeçados por Benedetto Croce,
manobram com habilidade. O filósofo reconhece que o rei é o “ so­
brevivente representativo do fascismo”, mas argumenta que as pro­
postas do Partido de Ação só poderiam ser viabilizadas por um atto
di forza, impossível dada a presença dos aliados. A única saída —
afirma — é pressionar o rei no sentido da abdicação. O congresso
vacila. Nomeia uma junta executiva, mas não se constitui em assem­
bléia representativa nem toma medidas para mobilizar o povo. No
entanto, os partidos de esquerda não renunciam às suas posições.
Em resposta ao discurso pronunciado por Churchill a 22 de fevereiro,
ironizando as resoluções antimonárquicas e antibadoglianas do Con­
gresso de Bari, os operários de Nápoles anunciam uma greve que,
ante a oposição das autoridades militares aliadas, é substituída por
um grande comício popular onde só intervêm os partidos de es­
querda. O comício é realizado no dia 12 de março. A 14, quando
a agitação contra o governo está no auge, Badoglio anuncia o reco­
nhecimento de seu governo pela União Soviética e o restabelecimento
de relações diplomáticas entre òs dois países (os aliados ainda não
haviam dado este passo).
Esta é, em grandes pinceladas, a situação com que se defronta
Togliatti ao desembarcar em Nápoles, a 27 de março, disposto a apli­
car o programa italiano dos “ três grandes”. Não surpreende que sua
avaliação sobre a política dos partidos antifascistas de esquerda, e
especialmente sobre a de seu partido, tenha sido tão severa. Anos

368
ui* ........ lilngi alim que o PCI se metera numa “via peri-
min i i i n h i Ii. piiiido uo extremo de “organizar comícios
< ||.,i mu . , imltii, com outros partidos antifascistas, a possi-
......... . uniu consulta popular, não por iniciativa do
...............no 111U Io11vii dos partidos” 60. Num abrir e fechar de
i ............... um uiii o PCI do atoleiro para o qual deslizara
| u i....IhI...... 1'i’ln estrada, pródiga em perspectivas, da união
jKlpIttl!a1 ' <"» ili março, reúnem-se os dirigentes do partido na
iHffl I ui . I .iHllottl "agarra o touro pelos chifres” : propõe “adiar
(. 11 m ........In liiNiltulçfies até que se possa convocar uma Assem-
plfla • iiii«llliiliiti\ colocar em primeiro plano a união de todas as
,,, 11, , i | >111o ,i nu guerra contra a Alemanha e avançar imediata-
Hi»n> ....... ,i criação de um governo de união nacional”. Inicial-
,11/ *.i■ na mesma biografia —, “a maioria dos presentes
ffo ,, . 1111■ ■lula", mus Togliatti “expôs suas proposições de modo
i| i »I.... .. ,, 'iivmeente que ninguém pôde fazer objeções” 61 (segundo
.............. . uiiiiçõcs, alguns dos dirigentes veteranos do partido não
i , num convencer tão facilmente, mas Togliatti, além do seu
lM| ui ,|, iHilcmista, tinha atrás de si todo o prestígio da Interna-
......... i nimmlsta e da União Soviética. Acabava de chegar de Mos-
çnii i ........... que Stalin poderia saber o que convinha ao povo
...........1 v a União Soviética reconhecera o governo Badoglio, era
li ti 1111•11iivoI que o interesse da causa assim o exigia. . .62).
\ vIrugem de Salerno — la svolta de Salerno, como passará à
i,, ....... ,Ki PCI — permitiu finalmente vencer a resistência de socia-
H..I.I , ,1,, l'urtido de Ação. O “sacrificio” de Vítor Emanuel III —
i......... lendo às pressões de Benedetto Croce e de Roosevelt, anun-
i.ni » un decisão de afastar-se e nomear seu sucessor o príncipe
i ml m io -, uma vez que Roma fora libertada, abriu o caminho
....... o compromisso. Apesar disto, o parto do governo de união
,, » i. uni foi bem árduo. Na última hora, os liberais e o Partido de
\, in qiiuse o abortam, mas Togliatti “dirigiu o contra-ataque, com
■ iipoio de Badoglio, do socialista Lizzardi e dos democrata-cristãos
Iludi nó e Jervolino e, para encontrar uma saída para a situação, teve
■Itu- aceitar a sua inclusão no governo”. Depois, Jervolino chegou
i , omentar que, não fora a questão religiosa, poderia fazer-se comu­
ni.ia e se congratulava pelo espírito de sacrifício demonstrado pelo
lldor comunista assumindo um posto ministerial: “ Se não o acei­
tasses — observou a Togliatti — , diriam que o consideravas um
governo de imbecis e por isto recusaras participar dele” 63. Não sa-

369
bemos se, com estas palavras, o político democrata-cristão aludia ao
papel pouco lúcido que os líderes antifascistas estavam represen­
tando: até a véspera, denunciavam o rei e Badoglio como sobrevi­
vência do fascismo; denunciavam a sua tácita sabotagem contra a
guerra à Alemanha — e agora aceitavam ser ministros do rei, sob
o comando do marechal, em nome do “esforço de guerra” contra o
invasor e para liquidar as sobrevivências do fascismo. Não era pedir
demasiado que o máximo paladino da operação, no qual o prole­
tariado via o seu representante e o representante da União Sovié­
tica, avalizasse com a sua participação a sinceridade dos ideais anti­
fascistas e democráticos do apaixonante governo de união nacional
presidido por Badoglio, que assumiria logo que prestasse juramento
ante o monarca.
Nos documentos do PCI, ou nas interpretações influenciadas
pelo ponto de vista do partido, apresentou-se a constituição do
governo de união nacional presidido por Badoglio como uma opera­
ção essencialmente italiana, cujo artífice principal foi Togliatti. Na
verdade, foi uma operação dos “três grandes” e, segundo fontes
soviéticas, o mérito da iniciativa cabe ao governo da URSS. A Grande
Enciclopédia Soviética o diz com extrema clareza: “Por inicia­
tiva da URSS, que a 11 de março estabelecera relações diretas com
o governo italiano, o gabinete Badoglio foi reorganizado a 22 de
abril de 1944, incluindo-se nele representantes dos seis partidos da
coalizão antifascista” 64. A “iniciativa” é facilmente compreensível
a partir do ponto de vista dos interesses soviéticos. Embora houvesse
na Comissão Consultiva para a Itália (criada na Conferência de Mos­
cou dos três ministros de Relações Exteriores e sediada em Argel)
um representante da URSS, na prática quem mandava e desmandava
no território italiano era a Comissão Militar Aliada, na qual não
estavam representados os soviéticos. O reconhecimento diplomático
do governo Badoglio conferia a Moscou a possibilidade de somar-se
a essa intervenção. O problema, para Stalin, não consistia em o PCI
formular uma estratégia capaz de facilitar uma solução revolucio­
nária para a crise do capitalismo italiano; tal problema, na ótica
de Stalin, era descartado a priori desde o momento em que a Itália
era “libertada” pelos exércitos aliados. A questão era situar, desde
o primeiro instante, no tabuleiro italiano, as peças suscetíveis de
enfrentar a influência dos fraternais aliados (em 1947, durante
a reunião de fundação do Centro de Informação dos Partidos Co­
munistas, os comunistas italianos serão duramente criticados por

370
/ l i ....... porque não souberam impedir a inclusão da Itália no
ii, .......icrleuno — e não pela ausência de uma política orientada
, n.i dm uma saída revolucionária ao grande movimento proletário
, |,,,|>.11..i que fora deflagrado desde a queda de Mussolini). Como
r i ...... .1 "iniciativa” de Stalin de reorganizar o governo Badoglio
•i iM.illii viiibilizar-se mediante um acordo com os anglo-americanos.
i M,.i. i.indo que exatamente neste mesmo período, para satisfazer
. Iímm lilll e a Roosevelt, Stalin exercia toda a pressão possível sobre
I iih imii ii que se chegasse a um modus vivendi com o rei Pedro,
....... t,ni preendente que Churchill e Roosevelt pressionassem o rei
\ .... I inimuel para que chegasse a um modus vivendi com To-
, ...... Como dizem os franceses, tout se tient. . .66.

/ /
», ii ii mo nacional ao monopólio democrata-cristão

A união nacional se pôs em marcha. O partido comunista,


•liipliimcnte aureolado — “partido da revolução”, “partido de go-
■. mu" —, começou a crescer rapidamente. E, com ritmo igualmente
volli/, lui vez até mais, começaram a se constituir as novas forças
pollili ns das velhas classes dirigentes, explorando a fundo a magni­
li, u cobertura que lhes proporcionavam as forças de esquerda, a
i... 11>iIidade única que se lhes oferecia de amalgamar a ideologia
iimhdonal, o ópio religioso, com as renovadas aspirações por liber-
ilmlr c democracia e até mesmo com o socialismo (o socialismo
i! mo, naturalmente). Estas novas forças políticas das velhas classes
diligentes começaram a se adensar, assimilando os resíduos do fas-
. Indio, incorporando a antiga e experimentada burocracia civil e a
iiinls mitiga e mais experimentada burocracia clerical, bem como os
........mentos armados do velho Estado. Desenvolvimento paralelo
■ i mplurmente equitativo, porque, no final das contas, o sol da união
mu lonal, do secondo risorgimento67, devia brilhar igualmente para
I. ni. »*i os italianos, independentemente das suas convicções religiosas
. tendências políticas (apenas os fascistas, como justo castigo pelos
mi . pecados, ficavam excluídos da comunidade política nacional;
in.i lhes restava o recurso de mudarem de pele para reingressar
itola).
Depois da libertação de Roma, o governo de união nacional
rd orça os seus títulos antifascistas e democráticos com a substituição
.1. Badoglio por Bonomi — social-democrata reformista na juven­

371
tude, expulso do Partido Socialista em 1911 por seu excessivo social-
chovinismo e chefe, em 1921, de um dos governos que abriram o
caminho ao fascismo. Na biografia de Togliatti, revisada por ele
mesmo, diz-se de Bonomi: “Apesar de transcorrido tanto tempo,
nele ainda permaneciam marcas do período de sua existência em
que militara no movimento operário, conhecendo seus problemas e
seus impulsos. E provavelmente isto o conduzia a identificar na polí­
tica dos comunistas uma forma do seu velho possibilismo reformista.
Daí a sua simpatia por Togliatti e as excelentes relações que man­
teve com ele, mas daí também a origem de frequentes e graves desa­
cordos. O que, nele, punha tudo a perder era a sua exagerada preo­
cupação pela sorte do velho aparelho de Estado e pelas formas
exteriores da ordem governamental” 68. Efetivamente, Bonomi tra­
balhou zelosamente para salvaguardar o velho aparelho de Estado,
cujas peças essenciais estavam sendo metodicamente integradas no
novo aparato. Em troca, a sorte das massas trabalhadoras não
lhe perturbava o sono. O dever destas era suportar estoicamente,
com espírito de união nacional, o “esforço de guerra”. Il rinnova­
mento sociale69 que todos os partidos — é claro! — inscreviam em
seus programas seria realizado quando se vencesse o inimigo externo,
quando saíssem de cena as armas e entrassem as urnas. Como dissera
univocamente Togliatti em seu primeiro discurso depois que pisara
o solo pátrio: “Hoje não se coloca aos operários italianos o problema
de fazer o que se fez na Rússia”. Hoje, a questão é derrotar a Ale­
manha hitleriana e, para realizar esta tarefa — a “mais revolucio­
nária deste momento, esclarece Togliatti —, “nós devemos garantir
a ordem e a disciplina na retaguarda dos exércitos aliados”. Os
problemas sociais de fundo serão tratados quando se reunir a Assem­
bléia Constituinte. Quando chegar esta ocasião, o programa do par­
tido será claro, incluindo uma “profunda reforma agrária” e outras
reformas económico-sociais e políticas, cuja realização impedirá que,
na nova democracia”, “um pequeno grupo de homens rapaces,
egoístas e corrompidos, possam, uma vez mais, concentrar em suas
mãos toda a riqueza do país e servir-se dela para suprimir a liber­
dade e impor uma política contrária aos interesses nacionais”. Aos
que acusam o partido de “renunciar à revolução”, Togliatti replica:
“Deixem-nos em paz! Não se preocupem; este assunto é nosso e o
conhecemos um pouco melhor que vocês!” 70. Realmente, era muita
pretensão querer dar lições sobre este “ assunto” ao que fora um
dos mais eminentes dirigentes do “partido mundial da revolução”.

372
i i putido — é de justiça ressaltá-lo — exigia que se tomassem
,,, .Utili Imediatas para melhorar a situação das massas, para travar
H ,1. i uiinidu especulação que enriquecia uma minoria às custas
,i„ ....... dos que lutavam e trabalhavam. Mas os principais especu-
IhiIum estavam bem protegidos. “A força do grande capitalismo —
.........Invìi Togliatti —, as grandes organizações dos industriais, dos
i .1111111111iirios e dos banqueiros, estão de pé; não sofreram nenhum
........ durante o fascismo e tratam de conduzir a vida econômica e
|u >|ti li o do país numa direção que não tende a satisfazer os inte-
i. , . dos trabalhadores num espírito de solidariedade nacional [sic],
um li ..itisfazer os interesses desta casta de possuidores em prejuízo
do povo c da nação” 71. Numa situação como a em que se encon-
Iinvìi o puís, de ruína e caos econômico, só era possível melhorar a
Htnii.uo das massas atacando a fundo os interesses dessas classes
..... Ics do “espírito de solidariedade nacional”. Mas justamente isto
• i,i o que a política de união nacional interditava. Os sindicatos se
d. i nvolviam impetuosamente, surgia um vigoroso movimento cam-
...... no Mezzogiorno, o partido comunista e o socialista — e, em
urini, toda a esquerda antifascista — se fortaleciam dia a dia. Mas
n política de união nacional exigia que sua ação não ultrapassasse cer-
1.1 limites, além dos quais se punha em perigo a “solidariedade gover-
11.imental” e a. . . solidariedade de classes. Nos finais de 1944, a
d, ,ilusão das massas com o governo Bonomi era evidente.
Na História da Resistência Italiana, de Battaglia e Garritano —
, 111c não põem em dúvida, em nenhum momento, a justeza da política
d. união nacional do partido, mas que registram os fatos —, assina-
1.1 se que “um dos argumentos da propaganda neofascista dirigida
u n s guerrilheiros e às massas populares, para fazê-los desistir da

oposição e da resistência, era a desilusão que, ao sul da Linha Gótica,


i omeçava a se generalizar em face do governo democrático” (chama-
vu-se Linha Gótica a frente dos Apeninos, que permaneceu estável
entre setembro de 1944 e abril de 1945; a aludida propaganda neo­
fascista é a do regime fantoche de Mussolini — a “república de
Salò” —, instaurado na zona ocupada pelos alemães). “A desilusão
explicam os mesmos autores — devia-se principalmente ao fato
de que o governo não correspondera às esperanças de renovação
do povo italiano. O governo Bonomi deveria ser o governo do CLN,
dos partidos antifascistas, substituindo o governo Badoglio, que era
o governo dos generais enfeudados ao rei. Mas os generais, mesmo
encontrando-se sob o efeito da derrota, estavam dispostos a colaborar

373
com o esforço militar contra os alemães; em Roma, porém, a sua
influência foi substituída pela da alta burocracia estatal e a dos
resíduos da classe dirigente fascista, que começaram a minar a
unidade do CLN e do próprio governo, paralisando a ação demo­
crática” 72. De fato, não era apenas a influência da alta burocracia
estatal e dos “resíduos” da classe dirigente fascista que paralisava
a “ ação democrática” do governo. O fundamental era que as classes
dirigentes, reagrupadas por detrás da democracia cristã, sustentadas
por todo o aparato da Igreja e pelos aliados, consideravam possível
— e, ao mesmo tempo, necessário, prevendo a entrada na cena polí­
tica, quando da libertação do Norte, das poderosas forças populares
organizadas na Resistência — reforçar seu controle político em
toda a Itália meridional e central, constrangendo ainda mais as
massas populares à passividade. Em novembro, a direção do partido
democrata-cristão lança um virulento ataque contra o partido comu­
nista, acusando-o de fomentar a “violência”, a “arbitrariedade” e a
“anarquia” 73. Bonomi renuncia. Após uma crise intrincada, forma-se
o segundo governo Bonomi. O Partido Socialista e o Partido de Ação
negam-se a participar do novo governo que, evidentemente, vai pros­
seguir — em condições mais degradadas — com a política do ante­
rior. Mas o PCI aceita formar o governo com liberais e democrata-
cwstãos. Togliatti é designado vice-presidente do governo, cargo
(como consta em sua biografia) “sobretudo honorário e represen­
tativo”, mas considera que esta solução da crise é uma vitória da
política de unidade nacional. Para convencer-se desta vitória —
argumenta —, basta levar em conta apenas um fato: a crise tinha
por objetivo a formação de um governo sem os partidos do CLN,
e no novo governo só há membros destes partidos. “ Na primeira
batalha que tentaram travar [as forças antidemocráticas] foram plena­
mente derrotadas e nós desempenhamos nesta batalha um papel de
grande relevo [. . .] Se se deixassem excluir do governo, os par­
tidos do CLN, e particularmente os mais avançados, teriam compro­
metido as poucas conquistas realizadas por eles; teriam novamente
abandonado o aparelho de Estado às forças conservadoras e reacio­
nárias. Assim procedendo — segue Togliatti — , continuamos com
a linha de guerra, de união nacional e de ação democrática constru­
tiva, à qual está ligada a sorte da classe operária e a própria sorte
do nosso partido” 74. Como diz o provérbio popular, no se consuela
el que no quiere 75.

374
Ah forças antidemocráticas, explica Togliatti no mesmo texto,
mio "forças escusas que não ousam mostrar-se à luz do dia”. E, de
i no mostravam-se apenas através dos aliados, da Igreja, dos liberais,
.In democracia cristã, do aparelho de Estado (burocracia civil, forças
iinmidas, polícia). Nesse período, a sua tática não era excluir do
governo os partidos operários — eram suficientemente inteligentes
pnru compreender que a presença “honorária e representativa” de
um Togliatti na equipe governamental lhes proporcionava uma ex­
celente cobertura diante do povo, atrás da qual poderiam continuar
reforçando as suas posições em todas as estruturas do Estado e da
sociedade. Não lhes interessava, em absoluto, que os partidos anti­
fascistas “abandonassem” o aparelho de Estado, por cuja integridade
zelava cuidadosamente um Bonomi (e os seus ministros — os de
esquerda, claro, já que os democrata-cristãos e liberais comparti­
lhavam do mesmo sagrado respeito pelo inamovível aparelho estatal,
independentemente do seu “rejuvenescimento” com novos elementos
que não alteravam a sua essência; os de esquerda ou se solidari­
zavam com esta cuidadosa conservação da máquina estatal ou punham
em perigo a unidade governamental, peça-chave da sacrossanta unida­
de nacional). O que lhes interessava justamente, às forças conservado­
ras e reacionárias, era que o “novo” Estado, que continuava sendo o
seu Estado, não fosse “ abandonado” pelos partidos operários e popula­
res até que se fortalecesse suficientemente, até que o país superasse
a perigosa crise política, econômica e social em que se debatia. E
os partidos operários, a esquerda antifascista, deveriam respeitar
escrupulosamente — e este era o fundo real da crise do primeiro
governo Bonomi — o contrato de solidariedade nacional concluído em
Salerno. Coisa difícil: a pressão do descontentamento das massas e
as suas iniciativas espontâneas tendiam constantemente à ruptura do
contrato. Eram necessárias toda a capacidade de manobra política
de Togliatti, toda a sua dialética justificativa em face dos comunistas
e das massas italianas, todo o seu savoir faire nas esferas da alta
política e, muito especialmente, todo o prestígio revolucionário do
Partido Comunista, toda a sua virgindade anti-reformista para poder
manter o equilíbrio entre as exigências da solidariedade governa­
mental (que incluía, em primeiro lugar, a submissão aos aliados)
e a solidariedade com as massas trabalhadoras. O virulento ataque
lançado pela direção da democracia cristã contra o PCI era, evi­
dentemente e como diz a biografia de Togliatti, uma “enorme calú­
nia”. Acusar de fomentador da “violência”, da “arbitrariedade” e

375
da “anarquia” o partido que vinha predicando sistematicamente a
necessidade de manter “a ordem e a disciplina”, que estimulava no
povo italiano a crença nos objetivos libertadores, democráticos e
pacifistas dos Aliados, que cultivava nas massas proletárias a cons­
ciência da sua missão nacional, precisando bem que esta não devia
ser entendida como o foi pelos proletários russos em 1917 — lançar
uma acusação como esta contra este partido não era apenas uma
“enorme calúnia”, era algo aparentemente sem sentido. Mas a polí­
tica é a política. A direção da democracia cristã não queria ofender
o seu aliado; simplesmente, queria obrigá-lo a apertar um pouco
mais o freio imposto às massas populares. Os comitês de libertação,
por exemplo, demonstravam uma perigosa propensão — entenda-se:
em escala local e provincial — para fortalecer o seu poder, para
tomar iniciativas independentes do governo, para, numa palavra,
criar uma situação de dualidade de poder. E este era o caminho
russo, não o que se combinara percorrer na Itália. Tratava-se de
tendências tanto mais perigosas quanto mais próxima estava a hora
do Norte, baluarte dos comitês de libertação e dos partidos operários,
que dispunham do exército guerrilheiro. Pouco antes da crise minis­
terial, a direção do Partido Comunista definira a sua posição em
relação aos comitês de libertação: “Os comitês de libertação nacional,
em lugar de serem mantidos à margem, como pretendem fazer certas
autoridades, devem ter as suas funções reconhecidas e ampliadas,
evitando-se certamente um desdobramento de poderes, mas assegu­
rando-se a ativa participação de todas as forças democráticas e
antifascistas no esforço organizado que o país deve realizar” 76. O
ataque da democracia cristã ao PCI e a crise ministerial tinham por
objetivo assegurar um rumo político no qual as tendências ao “des­
dobramento de poderes” se eliminassem mais radicalmente e a “ativa
participação” das forças democráticas e antifascistas se enquadrasse
mais estritamente no marco determinado pelo governo. Em contra­
dição com o canto de vitória que entoa imediatamente à resolução
da crise ministerial, Togliatti reconhece pouco depois que os “acon­
tecimentos da última crise governamental significam, em vários as­
pectos, o travamento do movimento em direção à nova democracia,
determinado pela necessidade de terminar a guerra e assegurar a
unidade nacional” 77.
As concessões políticas feitas pelo partido para poder continuar
no governo não se limitam ao sul da Linha Gótica — maiores, sem
dúvida, são as que faz ao norte deste limite. Como já dissemos
i('polidamente, o que mais inquietava as classes dirigentes italianas
r im aliados era a eventualidade de uma explosão revolucionária no
i lia ic, quando se consumasse a derrota alemã. A primeira medida
(losiinada a destruir o movimento guerrilheiro foi a paralisação do
avanço aliado, no outono de 1944, permitindo, durante todo o in-
vcrno, que as tropas mussolinianas e hitlerianas se consagrassem à
lula contra a Resistência. O general Alexander, comandante-em-chefe
das forças aliadas, ordenou aos guerrilheiros que suspendessem todas
as operações até a primavera, enterrando as armas e limitando-se a
escutar as emissões de rádio do quartel-general aliado (tais ordens
foram transmitidas por rádio, de forma que o comando alemão tivesse
inteiro conhecimento delas)78. O Comitê de Libertação Nacional da
Alta Itália (CLNAI) e o estado-maior do exército guerrilheiro não
acataram as ordens de Alexander e decidiram prosseguir na luta.
Mas o CLNAI atuava também na linha da união nacional (a direção
do PCI para o Norte da Itália rendera-se à viragem de Salerno e,
apesar da oposição dos socialistas e do Partido de Ação do CLNAI,
prevaleceu a posição da maioria comunista, liberal e democrata-
cristã79). Para chegar a um acordo com o comando aliado e com o
governo de Bonomi, o CLNAI enviou à capital uma delegação que,
a 7 de dezembro, firmou o chamado “protocolo de Roma”. Os guer­
rilheiros se comprometiam a acatar as instruções dos anglo-ameri­
canos no curso da guerra, a nomear como chefe militar do exército
guerrilheiro um “oficial secreto” dos aliados e a seguir as suas ordens
até a libertação do território. “Parece que, com este acordo — diz a
História da Resistência Italiana, várias vezes citada — , o movimento
de libertação foi constrangido a duras concessões; realmente, os
Aliados obtinham, de fato, a confirmação de que o movimento guer­
rilheiro ‘não faria a revolução’, o que evidentemente era o objeto
da sua preocupação”. “Na verdade — afirmam estes historiadores
comunistas — , o êxito não era da parte aliada, mas da parte italiana:
o CLNAI era reconhecido oficialmente como governo, não só de
facto, mas de jure, no Norte da Itália” e, “como conseqüência do
reconhecimento aliado, o governo Bonomi reconhecia, por sua vez,
o CLNAI como seu ‘delegado’ no território ocupado — estabelecia-se
assim uma ponte entre as duas Itálias, que as forças hostis à Resis­
tência, já reorganizadas na Itália libertada, tentavam obstruir até
então” 80. Como se vê, as forças democráticas e operárias, providas
com o maravilhoso talismã da união nacional, caminhavam de êxito
em êxito. Depois de “derrotar plenamente” as forças antidemocráticas

377
que procuravam excluí-las do governo, conseguiam agora — mediante
a simples “confirmação” de que não se propunham “fazer a revo­
lução” — o reconhecimento como “governo legal” do Norte. Os
aliados e o governo Bonomi concediam-lhes generosamente o direito
de exercer este “governo legal” batendo-se contra hitlerianos e mus-
solinianos (aos quais, por seu turno, os aliados ofereciam todas as
facilidades para liquidar o “governo legal” e suas valorosas unidades
guerrilheiras).
Todos os interessados se esforçaram para cumprir fielmente o
compromisso expresso ou tácito que firmaram. As tropas alemãs, au­
xiliadas pelos neofascistas, desencadearam ofensiva atrás de ofensiva
contra o exército guerrilheiro, ao passo que os aliados observavam
rigorosamente a pausa que se haviam concedido até a primavera.
O governo Bonomi e os partidos antifascistas, ao sul da Linha Gótica,
nada fizeram para mobilizar o povo contra esta cumplicidade crimi­
nosa dos aliados. O exército guerrilheiro e a combativa classe operá­
ria do Norte enfrentaram sozinhos as ofensivas fascistas e o duro,
interminável, inverno de 1944-1945. E, nesta prova, demonstraram
ser não apenas o “governo legal”, mas o poder real na Itália indus­
trial81. Em meados de abril de 1945, quando a Alemanha já está
praticamente derrotada, os aliados iniciam a ofensiva sobre a Linha
Gótica. O exército guerrilheiro e a classe operária se antecipam,
com a insurreição geral. Combinando as ações armadas com as greves
insurrecionais, libertam todas as grandes cidades e a maior parte
do território antes da chegada das tropas aliadas. Concedamos a
palavra a Longo, que foi um dos principais dirigentes da Resistência
e da insurreição no Norte da Itália: “Mais de 300.000 guerrilheiros
iniciaram, em princípios de abril de 1945, ativos combates no Norte
da Itália e libertaram seguidamente Bolonha, Módena, Parma, Pia­
cenza, Gênova, Turim, Milão, Verona, Pádua e toda a região de
Veneza, antes da chegada das tropas aliadas. Os guerrilheiros sal­
varam as empresas industriais e as comunicações, que os alemães se
preparavam para destruir, fizeram dezenas de milhares de prisionei­
ros e se apoderaram de considerável armamento. Os guerrilheiros
estabeleceram em todos os lugares o poder dos Comitês de Libertação
Nacional e executaram os principais chefes do fascismo italiano.
[. . . ] Durante dez dias, até a chegada das tropas e das autoridades
aliadas, os comitês dirigiram toda a vida econômica, política e social
no Norte da Itália. Os serviços policiais ficaram a cargo das unidades
guerrilheiras liberadas das operações militares de perseguição e de-

378
Mil nu' das unidades alemãs” 82. Assim, portanto, durante dez dias a
■111■.’•c operária e as massas populares do Norte da Itália tiveram o
lii hIr i cm suas mãos, controlaram as principais empresas industriais
.1.. país, contaram com 300.000 combatentes organizados (que pode-
lÍMiti scr rapidamente multiplicados) e dispuseram de considerável
uiimimento tomado aos alemães. Na fronteira Leste, tinham o exército
ievolucionário da Iugoslávia, dono do poder. Na fronteira austríaca,
o exército soviético. Mas havia o “protocolo de Roma” , a política
dc união nacional e. . . Ialta. Longo termina laconicamente esta
parle do seu informe, apresentado na reunião que constituiu o Centro
dc Informação dos Partidos Comunistas: “Quando as autoridades
nliadus chegaram ao Norte com suas tropas, começaram a expurgar
dos curgos importantes os homens da Resistência, nomeados pelos
comitês de libertação nacional, substituindo-os por funcionários do
velho aparelho administrativo. No que se refere ao governo de Roma,
quando os aliados lhe transferiram a direção de todo o país, apres­
sou-se a substituir todas as pessoas designadas pelos comitês de liber­
tação nacional para cargos de responsabilidade por supostos ‘espe­
cialistas’, vale dizer, por funcionários do velho aparelho administra­
tivo” 83. Um historiador soviético resume, da maneira a mais com­
pleta, o que ocorreu: “A administração militar anglo-americana de­
clarou o estado de guerra no Norte da Itália. Aboliu todas as dis­
posições democráticas dos comitês de libertação nacional e destituiu
do aparato dirigente os elementos que contavam com a confiança do
povo, substituindo-os por funcionários reacionários. Devolveu aos
monopolistas e aos latifundiários a propriedade que lhes fora con­
fiscada. Os ocupantes desarmaram os destacamentos guerrilheiros e
dissolveram o comitê de libertação nacional do Norte da Itália” 84. O
historiador soviético só se esquece de que, no Conselho Consultivo
para a Itália, havia um representante soviético e, ao que se saiba,
até hoje o governo da URSS não protestou — nem neste organismo,
nem em qualquer outra instância — contra o comportamento dos
“ocupantes” no Norte da Itália. Esquece-se também de que o PCI
foi o primeiro a facilitar o desarme dos guerrilheiros, como recordou
Togliatti no V Congresso do partido (dezembro de 1945): “Estamos
todos unidos no acordo de não recorrer à violência na luta entre
os partidos. Este acordo exige o desarmamento de todos, e fomos
os primeiros a fazê-lo, providenciando a sua realização nas unidades
guerrilheiras” 85.

379
A insurreição da Itália setentrional suscitou uma onda de entu­
siasmo e esperança entre o povo. Como então se dizia, contra o
“vento do Sul” — a política reacionária, travestida de antifascismo,
das classes dirigentes tradicionais — levantou-se o “vento do Norte”
— a aspiração de milhões de operários, camponeses e intelectuais por
profundas transformações sociais e políticas. No curso de 1945, todos
os partidos antifascistas de esquerda se converteram em partidos de
massas. O comunista saltou de 400.000 membros, em abril, para
1.700.000, em dezembro. Já nesse mês, o socialista contava com cerca
de 800.000 membros. E o Partido de Ação, que expressava as ten­
dências da pequena burguesia radicalizada e, particularmente, de
importantes núcleos intelectuais, chegava à cifra de 250.000. Inclu­
sive na democracia cristã — que, como observava Togliatti, eram
dois partidos num só, abrigando “duas almas opostas” — as cor­
rentes de esquerda, especialmente entre a juventude do partido,
cresceram consideravelmente. A Confederação Geral do Trabalho,
que unificava, no plano sindical, todas as tendências políticas da
classe operária, chegou a reunir rapidamente mais de 5.000.000 de
filiados. No Mezzogiorno se desenvolvia um vigoroso movimento de
jornaleiros e camponeses. Os comitês de gestão constituídos em todas
as grandes fábricas do Norte, em defesa da insurreição, mantinham-se
organizados, embora não fossem legalmente sancionados. E, sobre­
tudo, os operários tinham consciência de sua força e estavam dis­
postos à luta86. Apesar das medidas governamentais e dos aliados,
voltadas para depurar os comitês de libertação e preparar a sua
liquidação, estes órgãos unitários do antifascismo (nos quais, em
escala local e provincial, predominavam geralmente as tendências de
esquerda) defendiam tenazmente a sua sobrevivência. Do mesmo
modo, apesar de todas as medidas tomadas para o desarmamento,
muitas armas foram escondidas e a possibilidade de criar, em grande
escala e sobre a base dos combatentes da Resistência, organizações
paramilitares de autodefesa era indiscutível — só dependia da
disposição das forças antifascistas de esquerda. Ao mesmo tempo, a
ruinosa situação econômica do país exigia objetivamente — se a
restauração econômica se direcionasse segundo os interesses dos tra­
balhadores — a urgente realização de radicais reformas de estrutura,
o ataque profundo contra a propriedade dos grandes industriais,
banqueiros e agrários. Ademais, continuava presente o fator nacional.
O comportamento colonialista dos novos ocupantes feria os senti­
mentos nacionais exaltados pela guerra contra o ocupante alemão.

380
I stava dada, portanto, urna sèrie de premissas políticas, econômicas
c sociais e de tipo organizacional muito favoráveis para que a es­
querda antifascista e operária, rompendo com a linha de compro­
missos e composições com a direita “antifascista”, instrumento poli­
tico das classes dirigentes tradicionais, pudesse passar a uma estraté­
gia ofensiva, mobilizando milhões de trabalhadores manuais e in­
telectuais para uma democracia avançada, de conteúdo socialista. O
"vento do Norte” significava a possibilidade latente de organizar
uma luta enérgica de massas pela defesa e fortalecimento de múl­
tiplas formas incipientes de um novo poder democrático, que vieram
surgindo durante a guerra de libertação, e a favor da insurreição de
abril. A palavra de ordem lançada pelo Partido de Ação — levar
a termo a “revolução do Comitê de Libertação Nacional” — refletia
a disposição de um amplo setor da pequena burguesia (sobretudo das
camadas intelectuais e profissionais) para caminhar, junto com a
classe operária, no sentido de uma transformação democrática so­
cialista.
Em junho de 1945, sob a pressão do “vento do Norte”, forma-se
um novo governo da coalizão antifascista, presidido por F. Parri
(a personalidade mais destacada do Partido de Ação, presidente do
CLN da Alta Itália), mas até as posições vagamente socializantes
dos homens do Partido de Ação eram consideradas como excessi­
vamente esquerdistas pela direção togliattiana. O PCI — sem cuja
iniciativa e concurso era impossível o reagrupamento da esquerda e
a passagem a uma estratégia ofensiva — continuava aferrado à
política de união nacional aberta com la svolta de Salerno. Aqueles
que, no seu interior, preconizavam uma nova viragem, desta vez à
esquerda, eram rotulados como “aventureiros” ou “esquerdistas” ;
segundo o diagnóstico oficial, contraíam a “ doença infantil” e não
compreendiam a “relação de forças”. Em nenhum documento — da
época ou posterior — do PCI se pode encontrar uma verdadeira
análise desta “relação de forças”; o pressuposto de que ela não
permitia uma solução socialista para a crise do capitalismo italiano
era manipulado pela direção do PCI (tanto como a do PCF fazia
em relação à crise do capitalismo francês) como um princípio meta­
físico, ou um axioma matemático, a partir do qual toda a política
do partido ficava justificada, assentada numa consideração rigorosa
da “situação objetiva”. Mais adiante, voltaremos a esta famosa
questão da “relação de forças” existente no cenário italiano — bem
como no francês — durante o biênio 1944-1945. Por agora, interessa-

381
nos apenas registrar que, para a direção togliattiana, tal “relação”
impunha a submissão a dois imperativos, cuja transgressão poderia
acarretar as maiores desgraças para a classe operária e para o partido:
manter a coalizão com a ala burguesa do antifascismo e evitar qual­
quer conflito com os Aliados (cada um desses imperativos, forçosa­
mente, implicava o outro: não era possível conservar a coalizão
com a direita do antifascismo se se entrasse em choque com os
Aliados e reciprocamente).
Sujeitando-se a estas coordenadas, o partido deixava a iniciativa
nas mãos da direita, condenando-se ao exercício exclusivo de uma
função de pressão. Reclamava, exigia, propunha, mas nada fazia para
desenvolver na ação o potencial revolucionário do formidável mo­
vimento operário e popular que fervia no país. A Itália vive uma
“revolução democrática” — escreve Togliatti no verão de 1945, de­
pois de formado o governo Parri — e a classe operária “exige” um
papel dirigente: “A classe operária e a massa trabalhadora reivindi­
cam marcar com o seu selo a mutação democrática que está se pro­
duzindo e, dada a bancarrota das velhas castas dirigentes reacioná­
rias, exigem um papel dirigente de primeiro plano na solução de
todas as questões colocadas pela revolução democrática e, em geral,
na direção do país. Daí resulta, como conseqüência inevitável, que
os problemas da emancipação econômica e social dos trabalhadores,
e todas as questões conexas, tendam a receber um começo de solução,
conforme as aspirações populares, no próprio curso da revolução de­
mocrática’’ 87. Pois bem: em virtude de que mágico mecanismo o fato
de a classe operária “reivindicar” na revolução democrática a marca
do seu selo, de “exigir” um papel dirigente, acarretará, como “con­
seqüência inevitável”, o início da solução socialista (a “emancipação
econômica e social dos trabalhadores”)? O mistério não é esclarecido
por Togliatti, nem neste nem em outros trabalhos. Mas, em dezembro
desse mesmo ano, ele explica o que ocorria na prática, qual o
destino das “exigências” operárias e como se começava a resolver
o problema da sua emancipação econômica e social; diz no seu
informe ao V Congresso do partido: “Não é possível avançar com
um regime cujo governo está paralisado porque, quando é preciso
tomar medidas eficazes em qualquer domínio, os partidos de es­
querda que desenvolvem uma ação democrática conseqüente con-
frontam-se com uma contínua chantagem, que os obriga a submeter-se
à inércia governamental e, inclusive, a aceitar medidas antidemocrá­
ticas para evitar crises que levariam o país ao caos” 88. Como se

382
depreende do texto, a “paralisia” afetava a “ação democrática conse-
q U e n t e a s medidas antidemocráticas se aplicavam, ao passo que
ir. democráticas ficavam nas resoluções dos partidos de esquerda ou
nos discursos dos seus dirigentes. Diante da “chantagem” — ameaça
de ruptura da coalizão governamental ou de intervenção aliada —, o
PCI e, atrás dele, os outros partidos de esquerda resignavam-se com
o curso reacionário da direita, aceitavam compromissos que seria
difícil incluir entre os que Lênin considerava admissíveis para um
partido revolucionário. E, segundo uma lógica bem comprovada em
todas as crises sociais, quando não há um partido revolucionário
capaz de colocar-se decididamente à frente das massas, as camadas
intermediárias, flutuantes, começam a evoluir para a direita.
Em dezembro, produz-se a crise do governo Parri. Enquanto a
classe operária “exige” um papel dirigente, a burguesia — velhas
e novas “castas” — consolida as suas posições no Estado e põe de
tiasperi à cabeça do governo. Registram as Crônicas da Vida Ita­
liana, dos biógrafos de Togliatti: “ O vento do Norte sofreu um golpe
decisivo; todo o debate centrou-se sobre o problema de república ou
monarquia, com o embate social estimulado pela insurreição de abril
sendo contido. O vento do Norte e o vento do Sul chegaram a um
compromisso” 89. Com efeito, no lugar do inquietante tema capitalis­
mo ou socialismo que, desde abril, tendia a situar-se no centro da
luta política, todos os partidos se puseram de acordo para colocar
em primeiro plano a questão monarquia ou república, bem menos
perigosa para as classes dirigentes e muito adequada para inflamar
a imaginação meridional. Simultaneamente, o desmantelamento dos
comitês de libertação e a liquidação da Resistência a todos os níveis
prosseguiam metodicamente. Os centros efetivos do poder burguês
e dos Aliados não perdiam tempo. A “depuração” não avançava
um passo, mas o secretário-geral do Partido Comunista continuava
gerindo com exemplar competência o Ministério da Justiça90.
A 2 de junho de 1946, as urnas darão maioria à opção republi­
cana e, ao mesmo tempo, consagrarão a hegemonia da Democracia
Cristã (DC) na política italiana. Nos dias de Salerno, a DC era apenas
um — e não o mais influente — entre os partidos da coalizão anti­
fascista que entraram no governo Badoglio. Em dois anos de “união
nacional”, converteu-se no primeiro partido político da Itália. As
eleições para a Assembléia Constituinte (realizadas simultaneamente
ao referendum sobre a forma do regime) conferem-lhe 8.000.000 de
votos (35,2% dos sufrágios), contra 4.300.000 (18,9%) dados aos

383
comunistas e 4.700.000 (20,8%) ao Partido Socialista. Nesses oito
milhões de votos se incluíam a maioria da massa camponesa e da
pequena burguesia e até um percentual de operários — massa que
votava no partido manipulado pelos grandes industriais e agrários
porque não via diferença substancial, quanto aos objetivos sociais,
entre ele e os partidos operários — com a vantagem da conciliação
com a Igreja e a religião. Os democrata-cristãos — observa um
dirigente do PCI — apresentaram-se às eleições constituintes “com
um programa social e de reformas estruturais que respondia às aspi­
rações dos trabalhadores católicos e era substancialmente idêntico
ao dos comunistas e socialistas” 91. Togliatti assinalou este fato ime-
diatamente depois das eleições, reconhecendo que comunistas e so­
cialistas haviam cometido um erro ao não se distinguirem nitida­
mente: diante das generalizadas declarações dos democrata-cristãos,
segundo as quais “seu programa econômico e social não se diferen­
ciava em nada do programa dos socialistas e dos comunistas, estes,
em geral, limitavam-se a exigir daqueles que se pronunciassem cla­
ramente a favor da república” 92. Mas não havia qualquer novidade
nisto. Desde a queda de Mussolini, durante a guerra de libertação
nacional, ao longo de 1945, quando o “vento do Norte” agitava o
país, o PCI, antes de tudo preocupado em salvaguardar a “união
nacional”, facilitara a demagogia social do novo instrumento político
das classes dominantes. E não só reduzindo o seu próprio “programa
social” a reformas compatíveis com a democracia burguesa, mas
ainda renunciando a promover uma luta efetiva, de massas, em prol
da realização daquelas reformas; renunciando, sobretudo — e isto
era o decisivo — , à luta por afirmar e consolidar o novo poder
democrático que a Resistência trazia em si, a partir do qual teria
sido possível um avanço real para o socialismo. Numa palavra, a
política do PCI facilitara que o “programa econômico e social” da
DC não fosse questionado em sua sinceridade pelas massas.
É verdade que as eleições para a Constituinte realçavam a enor­
me força reunida pelos dois partidos operários — os 40% de votan­
tes que se pronunciaram por eles incluíam a grande maioria do
proletariado industrial e agrícola, importantes setores do campesinato
e das camadas médias urbanas e, também, da intelectualidade. Mas
esta força, depois das eleições, continuou desempenhando, na prática,
um papel secundário, brilhante porém não de protagonista, no pro­
cesso político. Com toda razão poderá escrever Maurice Vaussard,
historiador da democracia cristã européia: “No fundo, enquanto du-

384
mu n iripurtidarismo, Togliatti e Nenni, mesmo resmungando de vez
■in <111:itido, sempre cederam diante do chefe da democracia cristã” 93.
\ "uTortnas estruturais”, novamente, foram adiadas. De acordo com
d iiK Nino historiador, as direções dos partidos antifascistas acertaram,
mil cs das eleições, que as atribuições da Constituinte se limitariam
a elaboração e à votação da Constituição. Ele observa: “Em suma,
ludo transcorre como se, desde o princípio, estivesse firmada uma
mielite tacite94 entre os dois grandes partidos de massas”, o PCI
c a DC, a fim de que “de Gasperi pudesse vencer as duas maiores
dificuldades com que se defrontava após a libertação: o voto do
traludo de paz e a nova Constituição que, em particular, ratificaria
un não os acordos de Latrão”. “De Gasperi obteve do seu próprio
partido e dos comunistas, que, reunidos, formavam a maioria da
Constituinte, a ratificação do tratado de paz; esta maioria, com a
oposição dos socialistas, do Partido de Ação e de muitos liberais,
inseriu na nova Constituição a essência da Concordata, inseparável
dos acordos de Latrão, proclamando o catolicismo como religião de
listado, concedendo valor legal ao matrimônio religioso, proscreven­
do o divórcio e assegurando os emolumentos do clero” 95 (a dureza
das condições do tratado de paz imposto pelos “três grandes” pro­
vocara a repulsa geral da opinião pública italiana; se não houvesse
a estreita subordinação da direção democrata-cristã aos anglo-ameri­
canos e da direção comunista aos soviéticos, a ratificação do tratado,
pela Itália, tropeçaria em sérias dificuldades). Tudo foi ocorrendo,
de fato, como se os compromissos expressos ou tácitos referidos por
Vaussard existissem realmente. É difícil acreditar que, entre as
concessões do PCI à consagração constitucional do tradicional papel
da Igreja na sociedade italiana e as concessões da DC ao “conteúdo
social” da Constituição, não houvesse uma relação de toma-lá-dá-cá96.
Isto não exclui o interesse específico do PCI nas concessões à Igreja
— por ele justificadas como concessões à religiosidade do povo — ,
mediante as quais o partido pensava conquistar ascendência sobre as
massas católicas; nem exclui o interesse específico dos democrata-
cristãos nos princípios e disposições “sociais” da Constituição, que
proporcionavam uma excelente fachada popular, e até socializante,
para a restauração do capitalismo italiano97.
“A revolução democrática que está se realizando em nosso país
deverá culminar, em sua primeira fase, na Assembléia Constituinte”
— dissera Togliatti em seu informe ao V Congresso. Nas fases
sucessivas, avançar-se-ia para o socialismo nos marcos de uma “re­

385
!

pública organizada sobre a base do sistema parlamentar-represen-


tativo”, com “toda reforma de conteúdo social se realizando com o
respeito ao método democrático” 98. O que “culminava” com a As­
sembléia Constituinte, entretanto, era a grande operação política das
classes dirigentes italianas iniciada com a eliminação de Mussolini.
Referindo-se à situação criada nos começos de 1947, dizem as Crô­
nicas da Vida Italiana: “O pior passara, a revolução e o vento do
Norte foram contidos. Agora o que faltava era dar a guinada decisiva,
orientar resolutamente o navio do Estado para a ‘boa’ direção, o
que excluía qualquer participação das forças de esquerda no poder” 99.
Em maio de 1947, pouco depois da sua viagem a Washington, de
Gasperi demite os ministros comunistas. Esta decisão parece injusta
e errônea aos biógrafos de Togliatti, dado que a presença dos comu­
nistas no governo demonstrara ser “um elemento de segurança e de
estabilidade”: “Togliatti fora o ministro da Justiça e, em lugar das
matanças anunciadas pela reação, promulgou-se uma anistia que
contribuiu notavelmente para a pacificação. [. . . ] Scoccimarro e
Pesenti foram ministros de Finanças e da Fazenda e a lira, longe de
naufragar, resistiu bem. Gullo foi ministro da Agricultura, e dele
só podiam reclamar os conhecidos barões do Mezzogiorno, contra
os quais se aplicaram, pela primeira vez, algumas medidas relativas à
grande propriedade latifundiária, exigidas há decênios, antes mesmo
do fascismo, pelos próprios elementos burgueses do Sul da Itália” 10°.
Togliatti comentou o fato nos seguintes termos: “Um adversário inte­
ligente e capaz não nos excluiria do governo. Ao contrário, levando
em consideração nossas palavras relativas às nossas posições e deter­
minações, talvez nos pudesse conduzir — trabalhando para criar
uma situação que nos encurralasse — a um dilema do qual só nos
livraríamos com muito desgaste. Para compreender isto e levá-lo à
prática não é preciso ser inteligente. Mas de Gasperi é um medíocre,
possivelmente menos que medíocre” 101. Significativo reconhecimento
no que toca às posições e determinações do partido e desabafo pouco
elegante quanto à inteligência de de Gasperi. Não fora a brutal
intervenção de Truman, ele talvez pudesse extrair ainda mais da
política de “união nacional” do PCI; mas é notoriamente injusto
não admitir que de Gasperi aproveitou esta política ao máximo, uti-
lizando-a para levar a bom termo a difícil tarefa que lhe confiara
a burguesia italiana. De Gasperi não frustrou a confiança e as
esperanças nele depositadas pelas velhas classes dirigentes italianas.
O mesmo poderia ser dito acerca da confiança e das esperanças que

386
.1 imilfliiiiudo italiano depositou naqueles que o representavam quan-
dn ■ produziu a maior catástrofe nacional da Itália moderna, a
iiitdoi crise política, social e econômica do capitalismo italiano? Era
ii miriMio histórica do partido revolucionário contribuir para preparar
im miidições econômicas e políticas do “milagre italiano’’?
I verdade que os trabalhadores italianos obtiveram uma série
■I. conquistas que não podem ser menosprezadas: em lugar do fas-
■ i mui ), a democracia burguesa; em lugar da monarquia anacrônica,
i m publica democrática, com uma Constituição tão avançada quanto
p o d e sê-lo uma Constituição burguesa — e um conjunto de melhorias
io d a i s . Em resumo, algo parecido ao que o proletariado alemão
obteve depois da primeira guerra mundial, com a sua “revolução
democrática” sob a direção da social-democracia. É inevitável que
sc recorde o provérbio camponês — “para esta viagem, é desnecessá­
ria u bagagem”. Por que Livorno? E, no caso francês, por que
Tours?,02.

Revoluções sem permissão

Na reunião que constituiu o Centro de Informação dos Partidos


Comunistas, a política dos partidos comunistas da França e da Itália
foi severamente condenada como oportunista pelos representantes
dos outros sete partidos. Duelos e Longo viram-se diante de um
tribunal que os acusava de governamentalismo, parlamentarismo, le­
galismo e outros “ismos” característicos do “oportunismo de direita”.
A julgar pelo comportamento de Duelos na reunião, os franceses
foram colhidos de surpresa; mas Togliatti já devia temer algo, uma
vez que fizera à delegação do PCI a seguinte recomendação: “Se
nos censurarem porque não soubemos tomar o poder ou porque nos
deixamos excluir do governo, retruquem que não poderíamos trans­
formar a Itália numa nova Grécia — e não só pelos nossos interesses,
mas pelos dos próprios soviéticos” 103. De fato, as duas censuras caí­
ram sobre as cabeças de italianos e franceses. A primeira foi apre­
sentada pelos iugoslavos, cuja crítica tinha motivações sinceramente
revolucionárias; a segunda foi formulada pelos soviéticos, cuja irri­
tação não advinha de que a política dos partidos comunistas da
França e da Itália pudera levar ao malogro possibilidades revolu­
cionárias, mas provinha do fato de revelar-se incapaz para impedir
a integração de ambos os países na nova estratégia anti-soviética do

387
imperialismo norte-americano. Stalin, inclusive, temia que Thorez e
Togliatti, havendo gostado tanto da colaboração governamental,
fizessem concessões ao rumo pró-americano dos outros partidos da
ex-coalizão antifascista para retornar ao governo. E o temor tinha
certo fundamento, porque, depois da defenestração dos ministros
comunistas — conforme a feliz expressão de um historiador ociden­
tal —, Thorez continuava apresentando o PCF como partido de
governo e Togliatti propugnava um novo governo dos partidos de
esquerda com a democracia cristã104, enquanto a necessidade de
Stalin consistia numa luta vigorosa de ambos os partidos contra o
Plano Marshall e os outros aspectos da integração da França e da
Itália no bloco americano.
Os soviéticos não estavam na posição moral mais confortável
para atuar como juízes dos franceses e italianos porque, na realidade,
Thorez e Togliatti não fizeram mais que aplicar, com escrupulosa
fidelidade, a linha geral de Stalin no período da “grande aliança”
— se erraram, foi por excesso de zelo. Mas provavelmente esta
não foi a razão pela qual Zdhanov e Malenkov confiaram aos
iugoslavos o papel principal na crítica do oportunismo franco-ita­
liano. De acordo com posteriores declarações de Kardelj e Djilas,
os soviéticos estavam interessados em “abrir um fosso profundo entre
o partido iugoslavo e os partidos da França e da Itália” 105. Os
acontecimentos ulteriores parecem abonar esta versão, mas, em todo
o caso, existiam duas outras fortes razões para que os soviéticos
se valessem do procedimento que utilizaram. Em primeiro lugar,
tudo lhes sugeria operar com prudência: não podiam ter qualquer
segurança sobre a reação dos chefes dos dois grandes do comunismo
ocidental, ambos cheios de si com seu prestígio e significação na­
cional; não lhes interessava entrar em conflito com os dois partidos
comunistas mais poderosos do mundo capitalista, dos quais espera­
vam uma contribuição importante na luta contra os projetos ameri­
canos. Em segundo lugar, o partido iugoslavo era o candidato ideal
para o papel de fiscal, dada a autoridade que lhe conferia a sua
exemplar ação revolucionária. Por outro lado, não era preciso um
grande empurrão para que os dirigentes iugoslavos desempenhassem
esta tarefa. Durante a guerra e no período imediatamente posterior,
insistiram reiteradamente aos dirigentes do PCI para que modificas­
sem sua política. A frustração da revolução na Itália implicava graves
perigos para a revolução iugoslava, simultaneamente ameaçada ao
sul pela intervenção anglo-americana na Grécia.

388
Mus antes de passarmos à crítica de que foram objeto, na
i•união que fundou o Centro de Informação dos Partidos Comu­
ni i.i. os italianos e os franceses, é conveniente abrir um parêntese
Iui ui expor, ainda que muito esquematicamente, os traços essenciais
<!u política do Partido Comunista Iugoslavo durante a guerra de
libertação e na sua conclusão, bem como a oposição que encontraram
diis dirigentes soviéticos. Ambos os dados são necessários, tanto para
captar melhor o significado da crítica iugoslava quanto para apreciar
o virtuosismo do jogo dos dirigentes soviéticos, que utilizavam as
posições revolucionárias dos iugoslavos (que avançaram contra a
vontade de Stalin) para corrigir as posições oportunistas de franceses
e italianos (que foram a direta emanação da linha staliniana). Corri­
gi-las — fique claro — naquilo que concretamente interessava à
nova política internacional de Stalin, o que significou (como veremos
na ocasião adequada) a passagem de um oportunismo a outro. Por
outro lado, a experiência iugoslava, assim como a grega (a que só
podemos nos referir incidentalmente), há que considerá-las para
completar a análise da frustração da revolução na Itália e na França.

A revolução realizada (Iugoslávia) e a revolução


estrangulada (Grécia)

A direção do Partido Comunista da Iugoslávia, desde o primeiro


dia da ocupação hitleriana, elaborou e aplicou uma política que
associava estreitamente a libertação nacional e a transformação revo­
lucionária do país106, considerando este último aspecto não como
um objetivo para depois da vitória sobre o invasor, mas a realizar-se
no curso mesmo da guerra. Na medida em que se ia libertando o
território, instaurava-se o poder do povo, baseado em órgãos criados
com a participação direta das massas e dos combatentes. A carac­
terística central desta orientação revolucionária não era tanto o traço
avançado do programa — de conteúdo até moderado, mas orientado
para a transição ao socialismo: sua meta mais imediata era a revo­
lução agrária, que se efetuava no próprio processo da guerra — como
a construção deste novo poder popular. A unidade antifascista foi
concebida, à diferença da França e da Itália, sobre este fundamento:
agrupar todos os partidos, núcleos, tendências e pessoas que se pro­
nunciavam claramente pelos objetivos do programa e pelos métodos
para realizá-lo e excluir não apenas os cúmplices do invasor, mas

389
também aqueles que preconizavam a restauração do regime monár­
quico e até os que pretendiam conservar o sistema capitalista no
marco de uma democracia burguesa parlamentar. Disto derivava,
inevitavelmente, que a guerra de libertação tomasse, ao mesmo tempo,
um caráter de guerra civil contra a burguesia e os latifundiários.
Uma luta desta envergadura precisava de meios à altura das suas
ambições revolucionárias. Os pequenos destacamentos guerrilheiros,
as ações locais de fustigamento e desgaste do inimigo, não eram
suficientes para decidir a sorte da revolução. Podiam bastar, como
na França e na Itália, para preparar o terreno e facilitar as operações
dos exércitos das grandes potências — mas não bastavam para que
o povo decidisse, por si mesmo, o seu destino. Por isto, desde o
primeiro dia, o Partido Comunista da Iugoslávia colocou-se a questão
da criação de um exército regular revolucionário, capaz tanto de
derrotar os invasores quanto de fazer-se respeitar pelos “ aliados”.
Esta orientação, conduzida apesar de ingentes dificuldades, foi um
dos fatores-chave da vitória da revolução iugoslava107.
À luz da lógica unitária thoreziana ou togliattiana, esta política
dos comunistas iugoslavos parecia puro aventureirismo — e assim
foi visualizada pelas altas esferas da Internacional Comunista até a
sua dissolução (ou seja: durante o período mais duro da luta iugos­
lava). Esta política, ao invés de reunir o máximo de aliados contra
o invasor, não jogava aos seus braços parte deles? Para os braços do
invasor seguiu o coronel Draja Mikhailovitch e seus tchetniks, corpo­
ração armada, no interior do país, do governo real exilado reconhe­
cido pelos “três grandes” (em janeiro de 1942, Mikhailovitch foi
nomeado ministro da Defesa pelo rei Pedro). O coronel iugoslavo
seguiu nesta direção não porque fosse menos anti-hitleriano ou
menos patriota que de Gaulle ou Badoglio, mas porque a política dos
comunistas iugoslavos perseguia, desde o primeiro momento, os obje­
tivos revolucionários a que renunciaram, também desde o primeiro
momento, os partidos comunistas da França e da Itália. Tito tentou,
repetidamente, chegar a acordos com Mikhailovitch para empreen­
der ações comuns contra os invasores, mas sobre bases políticas
que garantissem as aspirações revolucionárias das massas — com o
que, naturalmente, não concordou o ministro da Defesa do rei Pedro.
Mas este confronto do nascente poder popular e do exército de liber­
tação com forças que uma política de união nacional gênero Salerno
poderia conservar como aliadas dos comunistas (mais exatamente:
uma tal política colocaria os comunistas como aliados daquelas for-

390
i,as) não isolou nem o Partido Comunista da Iugoslávia nem a Frente
Popular Libertadora (assim se denominava o movimento unitário
unti fascista) — isolou Mikhailovitch e seus tchetniks, obrigados a
manifestar diante do povo os objetivos reacionários, a conservação do
ve lho regime social explorador, que ofereciam como perspectiva aos
sacrifícios e ao heroísmo dos combatentes. O crescimento do exér­
cito revolucionário e a instauração do novo poder nas zonas liber­
tadas empurravam progressivamente Mikhailovitch a uma aliança tá­
cita — e, em certas ocasiões, aberta — com os ocupantes, o que
contribuía para o seu descrédito e isolamento. Daí resultava, simul­
taneamente, a perda da base armada do governo real exilado em
Londres, em torno do qual se agrupavam os principais líderes bur­
gueses liberais e social-democratas — perda que, obviamente, afe­
tava também Churchill.
Esta política do Partido Comunista da Iugoslávia foi, logica­
mente e desde o primeiro momento, um elemento perturbador da
“grande aliança” — e, por isto, encontrou a decidida oposição de
Stalin. Os chefes aliados não podiam suspeitar que a orientação
política dos comunistas iugoslavos era independente de Moscou e
pressionavam constantemente o governo soviético para que obrigasse
Tito a entender-se com Mikhailovitch. Stalin toma providências para
atendê-los. Embora a direção comunista iugoslava informasse regu­
larmente Moscou acerca da situação de guerra civil existente entre
o exército de libertação e os tchetniks, a propaganda soviética atri­
buía a Mikhailovitch o comando de todas as forças da Resistência
iugoslava, silenciando sobre o papel dos comunistas e da Frente Po­
pular Libertadora e ignorando, igualmente, a emergência do novo
poder revolucionário nas zonas libertadas. Cumprindo ordens de
Stalin, Dimitrov enviava mensagens a Tito, apressando-o para mo­
dificar a sua política. Como amostra, citemos a que está datada de
5 de março de 1942: “ Diante das informações que vocês nos reme­
teram, parece que os ingleses e o governo iugoslavo têm razão para
suspeitar que o movimento guerrilheiro adquire um caráter comu­
nista e tende a sovietizar a Iugoslávia. Por que vocês criaram, por
exemplo, uma brigada de choque proletária? No momento atual, o
dever essencial e imediato é unir todas as correntes antinazistas,
liquidar os invasores e levar a termo a libertação nacional. Como
acreditar que os amigos da Grã-Bretanha formem unidades armadas
para combater os destacamentos guerrilheiros? Não existem, de fato,
além dos comunistas e seus simpatizantes, outros patriotas iugoslavos

391
com os quais vocês podem se unir na luta comum contra o invasor?
É difícil admitir que o governo iugoslavo e o de Londres se alinham
com os invasores. Aqui deve existir uma grave confusão. Franca­
mente, pedimos a vocês que reflitam bem sobre a sua tática e a:
suas ações; que pensem se fizeram todo o possível para criar uma
frente nacional única, reunindo todos os inimigos de Hitler e Mussoli
ni com um objetivo comum: a expulsão dos invasores. Se algo ainda
puder ser feito neste sentido, tomem as medidas necessárias e nos
avisem”. Na mesma carta, pedia-se a Tito que não considerasse a
sua luta “unicamente sob o ponto de vista nacional, mas também
sob o ponto de vista internacional, da coalizão anglo-soviética-ameri-
cana” 108. Na verdade, não havia nenhuma “confusão” — havia duas
políticas radicalmente distintas. A de Moscou, de acordo com a qual
a guerra contra a Alemanha hitleriana devia ter como único obje­
tivo a independência nacional e, em todo o caso, a democracia bur­
guesa. E a dos comunistas iugoslavos, que fundia a independência
nacional e a democracia com a revolução socialista. Isto não tornava
a sua política menos “nacional”; ao contrário, tornava-a mais pro­
fundamente nacional — e daí os seus resultados — que a dos co­
munistas franceses ou italianos. E, ao mesmo tempo, o Partido
Comunista da Iugoslávia não perdia de vista o aspecto “internacional
da coalizão anglo-soviética-americana” — apenas, ele era tomado
numa perspectiva diferente da de Stalin, a perspectiva dos comunis­
tas iugoslavos. Estes, como logo o demonstrariam, souberam ma­
nobrar inteligentemente em face do jogo anglo-americano — obtive­
ram sua ajuda e, simultaneamente, impuseram-lhes a revolução iugos­
lava. Neste sentido, ofereceram uma excelente lição de tática revo­
lucionária ao guia genial. Mas sobre este documento tão esclare­
cedor — e não só em relação ao problema iugoslavo — voltaremos
mais adiante.
Outra forma de pressão utilizada por Moscou consistiu em res­
ponder negativamente aos pedidos de armas e munições feitos pelos
combatentes iugoslavos. Claro que se invocavam dificuldades técni­
cas para tais negativas — dificuldades que existiam, sem dúvida,
e eram grandes; entretanto, como se soube posteriormente através
dos arquivos do governo real, transferidos para Belgrado depois da
guerra, no mesmo período em que negavam armas e munições ao
exército de libertação, os chefes soviéticos ofereciam ajuda material
aos tchetniks e o envio de uma missão militar ao quartel-general de
Mikhailovitch,09. Durante mais de dois anos, o exército de liber-

392
lação lutou sem qualquer ajuda exterior contra os exércitos alemães
e italianos, as tropas de Neditch e Pavelitch (os quislings da Sérvia
c da Croácia) e os tchetniks de Mikhailovitch, suportando seis ofen­
sivas germano-italianas.
No outono de 1942, quando o exército de libertação já contava
com 150.000 combatentes, agrupados em dois corpos de exército de
nove divisões (no total, 36 brigadas e 70 batalhões), o Conselho
Antifascista de Libertação Nacional da Iugoslávia (AVNOf) deci­
diu reunir-se em Bihac, capital da Bósnia, recentemente libertada, e
criar um governo provisório. Moscou opôs-se rotundamente e, desta
vez, os iugoslavos cederam — mas, um ano depois, arregaçaram as
mangas. Em outubro de 1943, levando em conta a Conferência dos
Ministros de Relações Exteriores da URSS, da Inglaterra e dos Esta­
dos Unidos, convocada para aquele mês em Moscou, Tito enviou um
memorando aos três governos informando-lhes que o AVNOJ não
reconhecia nem o rei nem o governo exilado em Londres, conside-
rava-se o único representante do povo iugoslavo e se propunha criar
uma república democrática baseada nos comitês de libertação nacio­
nal. A Conferência fez caso omisso da informação e os “três gran­
des” continuaram reconhecendo o governo do rei Pedro como o único
representante legal da Iugoslávia. A resposta dos iugoslavos consistiu
em reunir uma segunda assembléia do AVNOJ e formalizar a cria­
ção do novo Estado. Enquanto Stalin, Churchill e Roosevelt confe­
renciavam em Teerã e começavam a grande divisão das “esferas de
influência”, os delegados dos comitês de libertação, vindos de todos
os rincões da Iugoslávia, reuniram-se em Jatse, a antiga capital dos
reis da Bósnia, e declararam deposto o governo exilado em Londres.
O rei Pedro e os membros da dinastia dos Karageorgevitch foram
condenados a um “exílio perpétuo” (a assembléia decidiu proibir seu
regresso ao país sob qualquer forma), mas a questão monarquia x re­
pública foi deixada para depois da guerra (como se vê, os comu­
nistas iugoslavos também sabiam manobrar em face dos aliados;
porém, à diferença dos italianos, começavam por assegurar o novo
poder popular — a negociação viria em seguida). A assembléia de­
cidiu conferir ao novo Estado uma estrutura federal e elegeu o
governo provisório. Quando estas decisões chegaram ao conheci­
mento de Moscou, Stalin encolerizou-se. Manuilski enviou a Tito
uma mensagem informando-o de que o “chefe” estava “extrema­
mente descontente, considerando os fatos uma traiçoeira punhalada
na União Soviética e uma manobra contra a Conferência de Teerã”.

393
A emissora Iugoslávia Livre, que transmitia a partir do território
soviético, perdeu ipso facto a liberdade e não pôde difundir a reso­
lução da assembléia de Jatse proibindo o regresso do rei Pedro;
foram censuradas as emissões elaboradas pelo representante do Parti­
do Comunista da Iugoslávia em Moscou"0. Contudo, tanto Washing­
ton quanto Londres, com informações sobre a efetiva correlação de
forças, o descrédito e a impotência de Mikhailovitch e o vigor do
exército de libertação, decidiram render-se ao fato consumado e
dirigir-se para um compromisso com Tito por outras vias. Só então
o governo soviético reconheceu as decisões de Jatse. Molotov fez
uma declaração que assinalava este “seguidismo”: “ Os acontecimen­
tos da Iugoslávia, já aceitos pela Grã-Bretanha e pelos Estados Uni­
dos, são considerados pelo governo soviético como susceptíveis de
contribuir para o êxito da luta dos povos iugoslavos contra a Ale­
manha hitleriana. Tais acontecimentos são um indicador do modo no­
tável como os novos chefes iugoslavos souberam unir todas as forças
do país” 1". De fato, era um “modo notável” que não correspondia,
absolutamente, ao “modo” que Moscou tentara impor durante dois
anos e meio. Ao mesmo tempo, o governo soviético decidiu enviar
uma missão militar ao quartel-general de Tito — coisa que os
aliados já haviam feito — e, nos primeiros meses de 1944, os iugos­
lavos, enfim, começaram a receber algum armamento soviético, in­
clusive uns poucos aviões. Mas a ajuda devia ter uma contrapartida.
Churchill e Stalin, cada qual por um lado, intensificaram a pressão
política e diplomática para que os comunistas e o governo exilado
chegassem a um compromisso. A fim de facilitá-lo, Churchill traba­
lhou para que se colocasse à frente do governo do rei Pedro, em lugar
de Bozidar Puritch, Subachitch, considerado “mais democrata”.
Mikhailovitch deixou de ser o ministro da Defesa e o governo inglês
declarou suspensa toda ajuda aos tchetniks. Em face desta pressão
anglo-soviética, a direção comunista iugoslava manobrou: em agosto
de 1944, Tito concluiu um acordo com Subachitch, pelo qual se
estabelecia uma colaboração entre o governo exilado e o governo
do interior do país, com a perspectiva de chegar a um “governo
misto”. Tito diria mais tarde: “Aceitamos este acordo porque conhe­
cíamos a nossa força, sabíamos que a grande maioria do povo estava
conosco. [ . . . ] Ademais, tínhamos um forte exército, cuja impor­
tância era desconhecida por nossos rivais”" 2. Em fins de setembro,
Stalin se encontra com Tito e o pressiona novamente para que aceite
a restauração da monarquia do rei Pedro e faça concessões à bur-
yiiesia sérvia — mas não consegue alterar a disposição do chefe
iugoslavo. “E o que vocês farão, no caso de um desembarque inglês
ua Iugoslávia?” — indaga Stalin. Tito responde: “Resistiremos por
Iodos os meios”. Stalin ouve a réplica num silêncio glacial. Dias
depois tem lugar a famosa entrevista Churchill-Stalin, na qual se
realiza a cínica divisão das “influências” nos Balcãs. Sem ter dito
uma só palavra a Tito, Stalin acerta com o primeiro-ministro de Sua
Majestade a divisão ao meio da “influência” sobre a Iugoslávia113.
Hm Ialta, esta “divisão” foi revalidada e concretizada. A 12 de
fevereiro de 1945, as missões militares russa e britânica em Belgrado
informaram aos dirigentes iugoslavos que na sessão de 10 de feve­
reiro, os três chefes de governo concordaram em fazer as seguintes
"recomendações” ao marechal Tito: d) o acordo Tito-Subachitch de­
veria entrar em vigor imediatamente, com a criação de um novo
governo; b) formado este governo, ele anunciaria: l.°) que o AVNOJ
admitiria em seu interior os membros da antiga Assembléia Nacional
iugoslava que não tinham se comprometido ou colaborado com o
inimigo e que o corpo político assim constituído tomaria o nome de
Assembléia Provisória; 2.°) que a legislação promulgada pelo AVNOJ
seria submetida a ulterior ratificação da Assembléia Constituinte114.
Esta decisão provocou a mais viva indignação entre todas as ten­
dências dos combatentes, particularmente a referida à aceitação, na
Assembléia Provisória, dos membros da Assembléia de 1938, eleita
sob o regime de Stoyadinovitch, partidário do Eixo. Mas, outra vez,
os dirigentes revolucionários iugoslavos manobraram com habilidade.
A necessidade de conjugar a firmeza com a prudência, de não ceder
no essencial e jogar com o acessório, a fim de ganhar tempo para
consolidar a revolução e, sobretudo, fortalecer o exército, ficou espe­
cialmente clara para os dirigentes iugoslavos desde os últimos meses
de 1944, quando a total passividade de Moscou diante das operações
de guerra contra a Resistência grega, empreendidas pelo corpo expe­
dicionário inglês, conferiu a exata significação do silêncio glacial
com que Stalin recebera a resposta de Tito à pergunta — “E o que
vocês farão, no caso de um desembarque inglês na Iugoslávia?”
A direção comunista iugoslava decidiu, pois, “aplicar” as “recomen­
dações” de Ialta de forma tal que as forças populares não cedessem
nada de seu poder efetivo, mas fazendo com que Churchill e a bur­
guesia iugoslava conservassem esperanças na restauração da velha
ordem. Convém recordar que um núcleo importante de políticos
burgueses iugoslavos (entre os quais se contavam dirigentes social-

395
democratas) não aceitava o compromisso Tito-Subachitch e, de Lon­
dres, apoiado pelos círculos mais reacionários do imperialismo inglês,
reclamava o envio de um exército anglo-americano para restabelecer
a ordem na Iugoslávia 115. A tática adotada pela direção comunista
revelou-se eficaz. No curso de 1945, a revolução se consolidou.
Quando compreenderam que o método do “cavalo de Tróia” fracas­
sara, Subachitch e outros representantes do “governo misto” das
velhas classes dirigentes. .. e dos 50% reservados à “influência” in­
glesa pelo acordo Churchill-Stalin se demitiram dos seus postos mi­
nisteriais. E já era muito tarde para que oS anglo-americanos pudes­
sem aplicar o remédio “grego” à questão iugoslava.
Como observamos antes, no âmbito deste estudo não podemos
dedicar ao caso grego a atenção que sua importância reclama. Vamos
nos limitar a um breve esboço. A Resistência grega teve o mesmo
caráter revolucionário da iugoslava e adquiriu um vigor comparável
ao desta. Em finais de 1944, era praticamente a senhora do país.
A direção do Partido Comunista Grego, porém, não soube ter a
mesma firmeza, em face das pressões de Moscou, dos iugoslavos.
Fez graves concessões à política de “união nacional” e aceitou com­
promissos com os aliados que facilitaram o êxito da intervenção
armada inglesa contra a revolução grega. O acordo Churchill-Stalin,
de outubro de 1944, encarregou-se do resto. A 7 de novembro de
1944, Churchill enviava a Eden as seguintes instruções: “Dado o
alto preço que pagamos à Rússia para ter as mãos livres na Grécia,
não devemos vacilar no emprego de tropas britânicas para sustentar
o governo real de Papandreu. [ .. .] Antevejo o choque com o EAM
e não devemos evitá-lo, com a condição de escolher bem o nosso
terreno” 116. A batalha entre as tropas britânicas e as forças da Re­
sistência durou dos primeiros dias de dezembro de 1944 a 12 de
fevereiro de 1945, quando se firmou um armistício que desembocou
no acordo de Varkiza, considerado posteriormente pelo Partido Co­
munista Grego como um “compromisso inaceitável e, de fato, uma
capitulação ante os imperialistas ingleses e a reação grega” ,17. A
22 de dezembro, Churchill, protegido pelos tanques ingleses, pôde
entrar em Atenas e, numa entrevista com os chefes da Resistência,
a fim de levá-los à capitulação, declarou que “os britânicos chega­
ram à Grécia com a aprovação do presidente Roosevelt e do mare­
chal Stalin”. O chefe da missão militar soviética (que, enquanto o
povo de Atenas se batia com as tropas inglesas, permaneceu no
quartel-general britânico, cercado pelos guerrilheiros) assistia a esta

396
entrevista e confirmou a declaração de Churchill. Dois dias depois,
Mispensas as negociações entre a Resistência e o governo monár­
quico, enquanto os aviões ingleses metralhavam a população ate­
niense, o governo soviético nomeava um embaixador junto ao go­
verno monárquico grego. E, na Conferência de Ialta, mal terminado
o combate entre os intervencionistas e os resistentes, Stalin decla­
rava: “Confio na política do governo britânico na Grécia” 118. O
acordo de Varkiza foi utilizado pelos imperialistas ingleses e a rea­
ção grega para restabelecer o poder monárquico e desencadear uma
repressão terrorista contra as forças operárias e democráticas. Em
tinais de 1946, o Partido Comunista Grego e outros núcleos da
Resistência decidiram empreender novamente a via da luta armada,
iniciando-se a guerra civil. Sentindo-se débil para enfrentar a situa­
ção, o imperialismo inglês cedeu o papel de gendarme ao imperialis­
mo norte-americano e, a 12 de março de 1947, Truman anunciou
que os Estados Unidos assumiam a “proteção” da Grécia e da Tur­
quia — era a primeira aplicação da “doutrina Truman”.

Crítica iugoslava do oportunismo franco-italiano

Naturalmente, os dirigentes comunistas de Belgrado viam na


intervenção armada do imperialismo ianque na Grécia uma ameaça
direta à revolução iugoslava. E, sob a mesma ótica, consideravam a
evolução reacionária da situação política na França e na Itália,
acompanhada da implantação militar dos americanos nos dois países.
Neste contexto tem lugar a crítica de Kardelj e Djilas, na conferência
que criou o Centro de Informação dos Partidos Comunistas, à polí­
tica dos comunistas franceses e italianos. Os termos exatos da crítica
permanecem secretos até hoje, mas é possível formar-se uma idéia
bastante aproximada dela através de algumas revelações posteriores
dos iugoslavos e, sobretudo, dos apontamentos tomados ao longo
da reunião por E. Reale (representante, junto com Longo, do PCI),
que foram publicados em 1957. Estes dados podem ser comparados,
ademais, com as referências indiretas que se encontram nos informes
e documentos da reunião que tiveram divulgação pública — parti­
cularmente o informe de Kardelj sobre a atividade do Partido Co­
munista da Iugoslávia m . A síntese que apresentamos a seguir foi
elaborada a partir destas fontes.

397
Os iugoslavos consideravam que, no movimento comunista in­
ternacional, durante a guerra e depois da vitória sobre o hitlerismo,
se configurara uma tendência à revisão do marxismo-leninismo, cuja
expressão mais nítida era o “browderismo” 12°. Segundo esta tendên­
cia, com o fim da guerra se abria um período de desenvolvimento
pacífico, de amenização da luta de classes, tanto em escala interna­
cional como nacional. A política dos partidos comunistas da França
e da Itália — sugerem os iugoslavos — é uma expressão particular
desta tendência. Parte da possibilidade de uma via pacífica, legal e
parlamentar para a tomada do poder pela classe operária. Trata-se da
repetição, sob certo aspecto, da via assumida pela social-democracia
depois da primeira guerra mundial. Os comunistas italianos e fran­
ceses qualificaram os regimes de cujos governos participavam como
um começo de democracia popular, o que — segundo os represen­
tantes iugoslavos — é profundamente errado. Enquanto corria esta
qualificação, estava em marcha o complô para expulsar os comunis­
tas dos governos. A burguesia se interessara em colaborar com os
comunistas enquanto se sentia fraca, e os comunistas italianos
e franceses deveriam ter aproveitado esta situação para ocupar
posições decisivas — mas não o fizeram. Em troca, com a sua teoria
de que os regimes de colaboração com a burguesia significavam um
começo de democracia popular, a partir dos quais esta se desen­
volveria por um caminho legal e parlamentar, só conseguiram desar­
mar as massas e semear ilusões na democracia cristã e em outros
partidos burgueses, bem como na social-democracia. Os comunistas
franceses e italianos deveriam ter compreendido que sua coabitação
com a burguesia e a social-democracia não duraria muito tempo. Só
podia ser uma luta na qual a vitória caberia a quem tivesse mais
audácia, mais clareza, menos ilusões nas coalizões parlamentares e
se mostrasse capaz de conquistar o apoio das massas para tomar o
poder.
Com os camaradas italianos — afirmaram os iugoslavos — tive­
mos estreitas relações durante a guerra. Convidamo-los a estudarem
a nossa experiência, o caminho que nos permitiu libertar grande parte
do território e criar um exército. Mas eles se recusaram à via da
insurreição. Disseram que era necessário travar a evolução revolu­
cionária do Norte para evitar a ruptura com o Sul. Togliatti consi­
derava que os comunistas só poderiam tomar o poder numa parte
da Itália, com o país se dividindo e perdendo a sua unidade e inde­
pendência.

398
Ao invés de constituir a unidade antifascista por baixo, com
iuK.ilos emanados das massas, integrados por todas as tendências real-
nu-nte dispostas a seguir o caminho da luta armada e da instauração
ili uni poder autenticamente popular, os dirigentes comunistas fran-
i eses e italianos cometeram o erro de constituir a frente antifascista
pelo alto, fundada na representação paritária dos diferentes partidos,
operários e burgueses, quando o objetivo de alguns destes partidos
eia travar ou excluir a luta armada e impedir a efetiva transfor­
mação do país. No texto que se divulgou do informe de Kardelj
sobre a atividade do partido iugoslavo, há a seguinte passagem,
obviumente alusiva aos comunistas franceses e italianos: “Alguns
supunham que a formação dos comitês de libertação nacional e a
u-alização das reivindicações democráticas e revolucionárias das mas-
populares acabariam por afastar da frente antifascista certas ca­
madas sociais e certos grupos políticos. O Partido Comunista da
Iugoslávia combateu firmemente tais concepções. Se a Frente Popular
da Iugoslávia adotasse estes pontos de vista não ganharia as massas
ou, mais exatamente, as massas populares não teriam lutado, de
armas na mão, com a abnegação que demonstraram. Lutaram abne-
gadamente porque sabiam que o faziam tanto pelas suas aspirações
democráticas e sociais quanto pela libertação nacional. A prática
i omprovou que a estreita associação do movimento de libertação
nucional com o processo da revolução democrática do povo, longe
de debilitar a força combativa do levante nacional, conferia-lhe uma
atração excepcional entre as massas populares” 121.
Os iugoslavos censuraram duramente o PCF por ter permitido, e
até facilitado, o desarmamento e a dissolução das forças da Resistên­
cia em finais de 1944 e princípios de 1945 e não aceitaram como legí­
timo o argumento dos dirigentes franceses, segundo o qual a guerra
não terminara e uma ação decidida contra a política de de Gaulle
teria significado um enfrentamento com os aliados, prejudicando as
relações entre estes e a União Soviética. Este argumento — susten­
tam os iugoslavos — é equivocado, porque a ajuda mais eficaz à
União Soviética consistia em reduzir a influência dos americanos
sobre o povo francês. Análogas censuras foram dirigidas aos italianos
por sua política nos meses seguintes à insurreição no Norte da Itália.
Kardelj e Djilas opunham à postura dos italianos o exemplo dos
gregos, que partiram para a luta armada contra os ingleses sem que
a guerra contra a Alemanha terminasse, e ainda o seu próprio exem­
plo — o combate contra o governo do rei Pedro e seus tchetniks,

399
instrumentos dos aliados. Em geral, os iugoslavos censuraram a ati­
tude adotada pelos dirigentes comunistas franceses e italianos em
face dos anglo-americanos; a sua renúncia efetiva a criticar aberta­
mente a política destes, orientada para restabelecer as posições impe­
rialistas; as suas ilusões e o fomento delas nas massas — ilusões
sobre a “democracia” imperialista e um “melhoramento” deste mes­
mo imperialismo.
Os partidos comunistas da França e da Itália foram também
acusados de não respaldar com ações eficazes a luta armada que,
desde finais de 1946, fora empreendida na Grécia pelos comunistas
e outras forças de esquerda. E não a respaldavam — diziam os
iugoslavos — porque as direções de ambos os partidos acreditavam
que a guerra civil grega estava perdida para as forças populares, que
logo seriam esmagadas. O argumento dos dirigentes franceses e ita­
lianos — os imperialistas desejavam que na França e na Itália se
criasse uma situação como a grega, para melhor liquidar as forças
operárias e democráticas dos dois países — era denunciado como
falso por Kardelj. Ao contrário, os americanos temem que na França
e na Itália se produza uma luta similar, porque isto ameaçaria gra­
vemente as suas posições. E os delegados iugoslavos propuseram
(mas a sugestão não foi aceita) que a reunião de fundação do Centro
de Informação dos Partidos Comunistas examinasse a organização
de uma ajuda eficiente à luta do povo grego.
No essencial, esta foi a crítica do Partido Comunista iugoslavo
à política seguida pelos partidos comunistas da França e da Itália
no período 1941-1947. A julgar pelas informações disponíveis, entre
os participantes da conferência que criou o Centro de Informação
dos Partidos Comunistas, somente Gomulka formulou uma avaliação
próxima à dos iugoslavos, no sentido de que os comunistas franceses
e italianos tiveram — e não aproveitaram — a oportunidade de
impulsionar uma transformação radical em seus países no período
da Libertação. A fase na qual “a administração do invasor era liqui­
dada no próprio processo da sua expulsão” — observou o dirigente
polonês — foi um “período decisivo” para a “criação de um novo
aparelho de Estado” : se, nos países libertados pelo exército sovié­
tico existiram “condições mais propícias que naqueles onde estavam
os exércitos anglo-saxões”, também nestes últimos países “houve
grandes possibilidades de proceder a mudanças essenciais na orga­
nização do novo Estado, sobretudo ali onde os partidos operários
tinham estruturado uma grande luta de libertação nacional e dispu-

400
ultimi de destacamentos guerrilheiros armados” — vale dizer, na
I timi,ti e na Itália 122. Zdhanov e Malenkov, como já dissemos, man­
ti w unii se discretos num segundo plano, concentrando suas críticas
nu Iilio de que, depois de excluídos dos governos, os dois partidos
......limavam adotando uma postura governamental e parlamentar,
■in lugar de mobilizar as massas contra a política pró-americana de
umilir, os governos. Fundamentalmente, os outros participantes da
umilino se ativeram à pauta soviética. Nenhum fez qualquer obje­
ção á crítica iugoslava e, igualmente, nenhum abordou os problemas
cruciais nela contidos. Os franceses e italianos compreenderam
•ini isiavam diante de duas censuras formuladas com intenções
limilo diferentes e a que deveria ser levada em conta, naturalmente,
riii a dos porta-vozes de Stalin. Não se tratava de analisar a fundo
ui. musas que levaram ao aborto da revolução na França e na
11ti Iia ; tratava-se de aprovar a “viragem” proposta por Zdhanov.
Oliando Longo e Duelos cumpriram com o ritual da autocrítica, re-
i oiiliccendo em termos gerais que seus partidos cometeram alguns
i mis oportunistas ao não combinar suficientemente a ação governa-
mcntul com a ação de massas; quando admitiram não ter compreen­
dido a tempo o alcance da nova política americana, nem que a
i Mbisão dos comunistas dos governos devera-se precisamente ao
novo giro anti-soviético de Washington; quando prometeram levar
ii cabo uma luta sem quartel contra o Plano Marshall e aplicar
escrupulosamente a nova política que Stalin exigia — então Zdhanov
deu por encerrado o “debate” e passou a outro assunto.
Uma vez alcançado este resultado, os soviéticos não tiveram o
menor interesse no aprofundamento da análise do oportunismo fran­
co-italiano. A mesma atitude foi compartilhada pelos outros parti­
dos. Todos os presentes à reunião eram suficientemente hábeis para
compreender que a crítica dos iugoslavos colocava em questão, impli­
citamente, a política ditada por Stalin ao movimento comunista no
período da “grande aliança” — e todos sabiam muito bem que isto
era um tabu. Longo e Duelos poderiam utilizar este argumento em
sua defesa e acusar os iugoslavos de uma crítica oblíqua a Stalin,
mas como era evidente que Kardelj e Djilas atuavam de acordo
com Zdhanov e Malenkov, semelhante "defesa” apenas agravaria
ainda mais a sua situação. Numa entrevista reservada, Longo expli­
cou a Kardelj e a Djilas que a política do partido italiano durante
a guerra fora ditada por Moscou123 — nas sessões oficiais, porém,

401
cada qual se atinha ao papel que lhe cabia desempenhar: uns, o
de bodes expiatórios; outros, o de fiscais e juízes.
Na medida em que ia se evidenciando a ruptura da “grande
aliança”, pareciam dissipar-se as razões de atrito entre a política de
Moscou e os interesses da revolução iugoslava. Enquanto durou a
lua-de-mel dos “três grandes”, a intransigência revolucionária dos
iugoslavos foi vista em Moscou como um fator “negativo”; depois
que Londres e Washington iniciaram a nova cruzada anti-soviética,
converteu-se em fator “positivo”. A Iugoslávia dos guerrilheiros, com
seu exército nada desprezível e a sua estratégica situação geográfica,
passou a ser um espaço importante da zona de projeção soviética
que Stalin começava a organizar na Europa. E vice-versa: em face
da ameaça que a “doutrina Truman” representava para a revolução
iugoslava, a proteção soviética parecia a Tito e seus colaboradores
como mais necessária.
Logo se veria que esta convergência política não repousava
sobre sólidos pilares. A intransigência iugoslava era útil aos russos
na medida em que se submetesse à nova política soviética. Mas os
iugoslavos tinham seus próprios objetivos nos Balcãs, e estes não
coincidiam com os da diplomacia soviética. Por outro lado, os planos
de Stalin referentes à sua zona de projeção colidiam com a resolu­
ção iugoslava de preservar a independência nacional. No entanto,
no momento da criação do Centro de Informação dos Partidos Co­
munistas, os iugoslavos não tinham nenhum interesse em se chocar
com os russos — bem ao contrário. O que, na sua crítica ao opor­
tunismo franco-italiano, atingia implicitamente a política seguida
anteriormente por Stalin, provavelmente não era premeditado (se o
fosse, os iugoslavos tê-lo-iam afirmado depois da sua ruptura com
Stalin); antes, resultava inevitavelmente do fato de a política dos
comunistas franceses e italianos ter sido um eco fiel da alta estra­
tégia staliniana.
Uma das debilidades da crítica iugoslava a franceses e italianos
residia, precisamente, em que se detinha ante a questão-chave, sem
cuja análise era inútil pretender esclarecer as causas da frustração
da oportunidade revolucionária criada na França e na Itália: a
política de Stalin no período da “grande aliança”. A esta já nos
referimos várias vezes ao longo da nossa exposição, mas sempre
de maneira fragmentária. Nas páginas precedentes, ao examinar a
política dos partidos comunistas da França, Itália e Iugoslávia,
assim como na breve remissão ao caso grego, registramos efeitos

402
l oiinctos, localizados, das diretivas e orientações vindas de Moscou.
Ao csiudar as causas da dissolução da Internacional Comunista, bem
iniiiii cm outras passagens anteriores deste trabalho, referenciamos
iilguns dos traços gerais desta política staliniana 124. Mas até agora
imo procedemos à sua análise global, absolutamente necessária para
compreender, de modo igualmente global, por que a revolução abor-
lou no Ocidente europeu. A esta análise dedicaremos as próximas
páginas.

Da “grande aliança” aos “dois campos”

A política de Stalin durante a Segunda Guerra Mundial é


dominada por duas regras estratégicas, a cuja gênese, fundamen-
luçáo e primeiras aplicações práticas em conjunturas internacionais
que precederam o segundo conflito mundial nos referimos em ca­
pítulos anteriores ,25. A regra número um, surgida nos finais dos
anos vinte, depois do refluxo do movimento revolucionário iniciado
com a revolução russa, e derivada da teoria do “socialismo num só
país”, consiste na subordinação da ação revolucionária em qualquer
lugar do globo aos interesses do Estado soviético. A regra número
dois, surgida no decurso dos anos trinta, depois da liquidação do
proletariado alemão pelo nazismo, e derivada da perda de confiança
na capacidade revolucionária do proletariado ocidental, consiste na
priorização do aproveitamento das contradições entre as potências
imperialistas, subordinando a este aproveitamento toda ação revo­
lucionária.
Esta segunda norma é apenas a aplicação operativa da primeira,
uma vez suposta a mencionada incapacidade revolucionária do pro­
letariado ocidental: dado que o objetivo supremo é garantir a segu­
rança do Estado soviético e que a revolução fora da URSS parece
aleatória, o recurso que resta é aproveitar as rivalidades interimpe-
rialistas. Exemplo característico da aplicação desta dupla regra de
ouro foi a política de Stalin em face da revolução espanhola e da
Frente Popular francesa. Mas a sua primeira aplicação em grande
escala, levada às últimas conseqüências — sem retroceder ante a
monstruosidade de intentar um pacto de largo alcance com o fascis­
mo e de travar a luta dos povos contra ele, precisamente para faci­
litar tal pacto —, encontra-se na política de Stalin durante a primeira
fase da Segunda Guerra Mundial,26. E as mesmas normas regem

403
integralmente a política de Stalin a partir da invasão do territòrio
soviético pela Alemanha nazista. O modo de conceber a coalizão
anti-hitleriana; as motivações políticas que presidem à articulação
das operações militares; o conteúdo dos objetivos políticos fixados
para a guerra — todos os aspectos essenciais da política staliniana
no contexto da “grande aliança” sujeitam-se rigorosamente àquelas
duas normas.
Por outro lado, no decênio que medeia entre o pacto franco-
soviético de 1935 e os acordos de Ialta, o objetivo supremo — a se­
gurança do Estado soviético — foi adquirindo uma significação cada
vez mais diversa da que possuía nos tempos de Lênin. Na segunda
metade dos anos trinta, ele equivale, essencialmente, à manutenção
do statu quo europeu — vale dizer, a ordem de Versalhes. No
período do pacto germano-soviético, começa a incluir a expansão
territorial, a revisão das fronteiras, as anexações, a conquista de
“esferas de influência”. Na guerra contra o Eixo, este novo con­
teúdo — cuja substância imperialista e colonialista só se revelará
muitos anos depois, com a invasão e a ocupação da Tchecoslo-
váquia — impõe-se completamente. O “objetivo supremo” toma
uma forma concreta na política de Stalin: a busca de um compro­
misso duradouro com o imperialismo americano para assumir em
comum a direção do mundo.
A guerra contra as potências do Eixo teve um conteúdo progres­
sista, libertador, desde o momento em que levava à destruição do
regime fascista, à liquidação de uma forma de opressão nacional
— aquela que o imperialismo hitleriano ou japonês implantaram
numa série de países e pretendiam instaurar em outros. Esta guerra
tendia a se transformar em guerra revolucionária, a partir do mo­
mento em que a lógica da luta antifascista conduzia ao enfrentamen-
to com as classes dirigentes que se serviram do fascismo para con­
servar a sua dominação; e desde o momento, também, em que a
guerra punha de pé a luta das classes proletárias, quando estas
tomavam as armas e adquiriam confiança em sua força. Mas a
política de Stalin — sem falar na de Roosevelt e de Churchill — não
era a expressão fiel deste conteúdo. Se Roosevelt e Churchill, por
trás das grandes proclamações e promessas que evocavam as aspira­
ções de liberdade e independência dos povos, perseguiam objetivos
essencialmente imperialistas (a posição mais aberta e liberal do pri­
meiro não afetava esta substância imperialista da política americana),
Stalin, com promessas e declarações análogas, perseguia os objetivos

404
(In eumada burocrática que substituíra o proletariado revolucionário
iK Outubro na direção do Estado soviético. O novo autocrata de
ilidas as Rússias e a burocracia conservadora que ele encarnava não
podiam levar a revolução a outros povos depois de abastardá-la em
cu próprio país; não podiam favorecer a liberdade e a democracia
cm outras latitudes quando as negavam aos trabalhadores da União
Soviética. A política externa do stalinismo não podia deixar de re-
lletir a sua política interna. Os exércitos soviéticos — como os alia­
dos — cumpriam uma função libertadora na medida em que des­
truíam os regimes fascistas e liquidavam o imperialismo hitleriano.
Simultaneamente, porém, traziam um novo tipo de opressão. Os an­
glo-americanos levavam consigo a conservação do sistema capitalista,
a instauração (ou a pretensão de instaurar) da sua dominação mun­
dial, a perpetuação do colonialismo sob uma forma ou outra. Os
exércitos soviéticos levavam consigo a instauração de um novo
regime social, segundo o modelo staliniano, no qual a liquidação da
propriedade privada capitalista não significava a transferência, para
as mãos dos trabalhadores, dos meios de produção, mas o seu usu­
fruto por um novo grupo social privilegiado, cujo reinado burocrático
se apoiava na mistificação ideológica, na privação de liberdades
políticas e no mecanismo policial mais gigantesco de todos os tem­
pos. Nos seus furgões, os exércitos soviéticos levavam também os
planos de expansão e dominação do nacionalismo grão-russo. Chegava
a hora em que os temores de Lênin sobre a reaparição do naciona­
lismo russo coberto com a bandeira de Outubro seriam pienamente
confirmados.

A grande mistificação

Como é natural, se os objetivos antifascistas e libertadores da


guerra podiam ser abertamente proclamados, os “outros” objetivos
dos capitalistas anglo-americanos e da burocracia staliniana deviam
ser cuidadosamente dissimulados. Nesta arte, velha como a história,
de encobrir com os mais nobres ideais os atos mais regressivos, cada
um dos líderes das três grandes potências tinha a sua própria expe­
riência — e a de Stalin não desmerecia em nada a dos seus emi­
nentes colegas. Imediatamente encontraram o que se chama uma
“linguagem comum”. As inevitáveis divergências surgidas entre eles
não afetaram os princípios: os três estiveram sempre de acordo para

405
exaltá-los no momento mesmo em que os espezinhavam. As diver­
gências procediam da muito natural inclinação para levar a melhor
parte na nova distribuição do atlas mundial. Quando um deles con­
siderava que seus interesses eram menosprezados, então clamava
aos céus pelos princípios e acusava os outros de transgredi-los. Mas
quando se chegava a um acordo equitativo, cada um avalizava com
seu prestígio, frente aos setores sociais envolvidos, as nobres
intenções dos seus colegas. Neste sentido, o papel mais proeminente
coube, sem dúvida, a Stalin. Seu crédito imenso como personificação
da Revolução de Outubro, do socialismo, entre as massas trabalha­
doras do mundo inteiro prestou um serviço inestimável aos repre­
sentantes do imperialismo na segunda grande crise mundial do
sistema capitalista. Wilson, Clemenceau e Lloyd George não tiveram
tanta sorte na primeira. As intervenções públicas de Stalin durante
a guerra, as versões que a propaganda soviética dava das relações
e acordos entre as três grandes potências contribuíram poderosamen­
te para fomentar em milhões de homens, nas forças avançadas da
humanidade, a credulidade nas intenções defnocráticas e libertadoras
dos aliados capitalistas e imperialistas da URSS. A propaganda dos
partidos comunistas, salvo raras exceções, teve análogo resultado.
E o mesmo se pode dizer da sua política de alianças. Esta manipu­
lação dos povos era a condição necessária para que a grande divisão
das “esferas de influência” entre o capitalismo anglo-americano e a
burocracia soviética, o toma-lá-dá-cá de interesses econômicos, polí­
ticos e estratégicos pudesse ser levado a cabo com a maior docilidade
possível das vítimas.
Quando, em 1947, em seu informe à reunião que criou o Centro
de Informação dos Partidos Comunistas, Zdhanov anuncia que o
mundo se dividiu em dois campos, e qualifica de “imperialistas ra­
paces” os aliados da véspera, ele se vê obrigado, de algum modo,
a explicar tão radical mutação. E tanto mais que, também na vés­
pera, Stalin continuara expressando a sua confiança num arranjo
mundial com a outra surperpotência (em dezembro de 1946, afir­
mou que um acordo de largo alcance entre os Estados Unidos e a
URSS era “pienamente realizável” ,27). A divisão do mundo em dois
blocos e a metamorfose dos aliados — que, durante cinco anos,
tinham sido apresentados pela propaganda soviética e comunista
como co-edificadores de um mundo unido, justo, democrático e pací­
fico — em imperialistas rapaces ou em agentes do imperialismo
americano (se se tratava da social-democracia e dos partidos bur-

406
gucses europeus) não podia ser fruto de um ato mágico no verão
de 1947. Forçosamente, tinha que possuir uma história. E os porta-
vozes de Stalin se viram compelidos a dar uma nova versão do
período da “grande aliança”. Versão mistificadora, também, mas
na qual se trazia à luz algo até então zelosamente ocultado. Agora
se traziam à luz os objetivos reais das potências imperialistas aliadas
da URSS, mas se continuava a mistificar os objetivos perseguidos
pela direção staliniana. Na Declaração adotada pelos nove partidos
se diz, com efeito, que já no curso da guerra “existia no campo da
coalizão anti-hitleriana uma diferença na determinação dos objetivos
da guerra, bem como na fixação das tarefas relativas à organização
do mundo depois do conflito”. Enquanto a União Soviética se pro­
punha assegurar a todos os povos a democracia, a independência
nacional e a paz, guiando-se pelo mais estrito respeito ao princípio
da autodeterminação, os objetivos dos Estados Unidos e da Inglaterra
eram “a eliminação dos seus concorrentes [Alemanha e Japão] nos
mercados e a instauração da sua própria hegemonia”. As duas potên­
cias se propunham “reforçar o imperialismo e esmagar a demo­
cracia” 128.
Esta versão 1947 era incompatível com a versão vigente du­
rante a guerra. Então, Stalin afirmara repetidamente que existia uma
coincidência essencial entre os objetivos das três grandes potências.
Em novembro de 1944, quando a derrota da Alemanha era visível
e se colocam em primeiro plano os problemas da “organização do
mundo” que sairá da guerra, Stalin formula a seguinte tese, que
serve de eixo a toda a estratégia do governo soviético e dos partidos
comunistas nesse momento crucial: “Na base da aliança da URSS
com a Grã-Bretanha e os Estados Unidos não estão motivos for­
tuitos e efêmeros, mas interesses vitais e duradouros” 129. Se os obje­
tivos das duas potências ocidentais durante a guerra eram os defi­
nidos pela declaração do Centro de Informação dos Partidos Comu­
nistas — e, quanto a isto, não há nenhuma dúvida — , a tese de
Stalin era falsa, a menos que por “interesses vitais e duradouros” da
URSS o Kremlin entendesse algo muito diferente do que proclamou
publicamente durante a guerra e se repetia, em 1947, na declaração
daquele Centro. Fora desta hipótese, a única que resta é o come­
timento, por Stalin, de um grosseiro erro em 1941-1945, pela incom­
preensão dos reais interesses e objetivos das potências imperialistas.
Mas o marxismo de Stalin não era tão rudimentar. . . Como veremos
adiante, ao analisar a situação concreta em que foi feita esta afir-

407
mação, Stalin verbalizava algo efetivo: os arranjos secretos entre os
três grandes haviam chegado muito longe. O erro do grande estra­
tegista foi acreditar que estes arranjos proporcionariam uma base só­
lida à aliança entre a burocracia dirigente da URSS e o capitalismo
anglo-americano, especialmente a aliança com a superpotência ame­
ricana.
Uma vez explicada a situação internacional de 1947 como um
resultado da contradição entre as puras intenções de Moscou e as
espúrias intenções de Londres e Washington, a reunião do Centro
de Informação dos Partidos Comunistas tinha também que explicar
por que os malvados puderam, com tão surpreendente rapidez, con­
solidar as velhas forças burguesas (as mesmas que conduziram à
guerra e facilitaram, de uma forma ou outra, o fascismo) no Oci­
dente europeu; por que os ministros comunistas puderam ser tão
facilmente exonerados em Paris, Roma e Bruxelas; por que as po­
tências imperialistas podiam empreender novas guerras coloniais. De
acordo com Zdhanov, os resultados da segunda guerra mundial equi­
valiam a “uma brusca mudança na correlação de forças entre os
dois sistemas — o socialista e o capitalista — em favor do socia­
lismo”; “o sistema capitalista mundial sofrera um novo e sério
golpe”; “cresceu incomparavelmente o prestígio e a influência da
classe operária no povo”; “produziu-se um considerável fortaleci­
mento dos partidos comunistas” 13°. Se as coisas eram estas, por que,
ao invés de se exonerarem os ministros comunistas, não foram demiti­
dos os ministros burgueses? Por que, ao invés de a iniciativa estar
nas mãos das forças mundiais do capitalismo, ela não cabia às forças
revolucionárias para aprofundar e desenvolver os resultados da vitó­
ria antifascista? Como já vimos, na parte secreta da reunião do
Centro de Informação dos Partidos Comunistas, a solução foi tomar
como bodes expiatórios os dirigentes franceses e italianos; nos do­
cumentos públicos (salvo discretíssimas alusões de Longo e Duelos,
segundo as quais a presença dos exércitos aliados impedia aos res­
pectivos partidos comunistas avançar mais), o problema da causa
de o grande auge do movimento operário e democrático desembocar,
rápida e facilmente, na contra-ofensiva das forças burguesas e do
imperialismo, este problema foi praticamente eludido. No entanto,
no informe de Zdhanov e na declaração adotada pela reunião se
assinala um fato de importância capital. Zdhanov afirma que, no
curso da guerra, os imperialistas anglo-americanos “não se atreveram
a intervir revelando os seus objetivos contra a União Soviética e

408
u . Imi,us democráticas, compreendendo bem que ao lado destas es-
<11\ .mi todas as simpatias das massas populares de todo o mundo;
mu:., nos últimos meses que precederam o término do conflito, a
iluiição começou a mudar”. E a declaração, referindo-se ao período
. uc se abre com a vitória, observa que, para alcançar seus objetivos,
us forças imperialistas se cobriram com “uma máscara liberal e pari­
li.lu, destinada a enganar e manipular os homens sem experiência
política” 131. Registrado este componente — sem o qual, de fato,
era inexplicável o curso seguido pelos acontecimentos entre 1945 e
1947 —, os documentos do Centro de Informação dos Partidos
Comunistas eludem completamente a questão que imediatamente se
coloca: o que fizeram os dirigentes soviéticos (respaldados por
“ todas as simpatias das massas populares de todo o mundo”), os
partidos comunistas (vindos de um “considerável fortalecimento”) e
a classe operária (cujo “prestígio” e “influência” “cresceu incom­
paravelmente”) para impedir que as forças imperialistas preparassem
sorrateiramente a sua desforra, “revelando os seus objetivos”? O que
fizeram para impedir que a reação se cobrisse com a “máscara” da
liberdade, da democracia e da paz e enganasse um contingente tão
ponderável das massas populares, de forma a se recuperar e passar
à ofensiva, mal consumada a derrota do fascismo? É evidente que se
fosse possível citar alguma avaliação de Stalin, alguma diretiva sua,
correspondente ao período da “grande aliança”, voltada para alertar
os povos contra os verdadeiros objetivos das potências imperialistas
aliadas; é evidente que se existisse na política aplicada pelo movi­
mento comunista, de acordo com a linha staliniana, a mais leve
orientação tática neste sentido — se houvesse algo desta natureza,
os documentos da reunião de fundação do Centro de Informação
dos Partidos Comunistas tê-lo-iam destacado com ênfase. Este ele­
mento teria sido agitado, naquela conjuntura e nos anos seguintes,
como a prova irrefutável de que Stalin e o movimento comunista
haviam previsto o curso dos acontecimentos e feito o possível para
travar os planos do imperialismo. Mas era impossível encontrar algo
daquela natureza.
Não se discute que o papel da “máscara” foi enorme. Apresen­
tando-se como paladinas da democracia e do antifascismo, da inde­
pendência dos povos e de uma paz justa, as forças burguesas e
imperialistas conseguiram, de fato, enganar os “homens sem expe­
riência política” — e a muitos que se imaginavam experientes. Na
grande crise mundial, sob o impacto dos horrores da guerra e dos

409
crimes do nazismo, milhões de homens “sem experiência política”
mergulharam na ação, aspirando instaurar um novo regime social,
sem guerras e sem opressão. Os partidos comunistas tinham neles
um potencial revolucionário sem precedentes na história, sob a con­
dição de elevar a sua consciência, no próprio curso da guerra, à
compreensão da realidade social e política, de desmascarar a tempo
o jogo das forças que sorrateiramente — disfarçadas com a referida
“máscara” — perseguiam objetivos muito diferentes dos ambiciona­
dos pelo povo. Mas esta condição dependia de outra: dependia de
que, desde o primeiro dia da guerra, a estratégia do movimento
comunista estivesse dirigida centralmente para oferecer uma solução
revolucionária à segunda crise mundial do sistema capitalista. Numa
tal estratégia, o fator decisivo só podia ser a força das massas popu­
lares, sua consciência política, sua organização. Toda a atividade
dos partidos comunistas e do Estado soviético deveria ter sido orien­
tada para a preparação deste fator. A indispensável utilização das
contradições interimperialistas, ou das contradições internas de cada
país (entre as forças fascistas e a burguesia “democrática”), seria
enfocada em função do desenvolvimento e da constante potenciação
das forças proletárias e populares. Mas a estratégia staliniana, a
estratégia da burocracia soviética, que subordinou a política do mo­
vimento comunista, foi diametralmente oposta. Como já dissemos,
baseou-se na priorização absoluta da exploração das contradições
interimperialistas e na subordinação da ação das forças populares
às conveniências desta exploração. Durante o período da aliança
tácita com a Alemanha hitleriana, esta estratégia expressou-se na
repressão à luta antifascista e no abandono das bandeiras da de­
mocracia, do antifascismo e da independência nacional aos adversá­
rios burgueses e imperialistas da Alemanha. Durante o período da
aliança explícita com as potências anti-hitlerianas, expressou-se na
repressão à ação das massas populares, a fim de contê-la no interior
de limites aceitáveis para aquelas potências, o que, forçosamente,
implicava a dissimulação, frente às massas, dos verdadeiros obje­
tivos do imperialismo anglo-saxão, colaborando tacitamente com ele
na mistificação dos povos.
Mas a coisa foi mais longe, porque o objetivo fundamental dos
chefes soviéticos — a divisão das “esferas de influência” e sua con­
solidação mediante um compromisso duradouro com o governo de
Washington — exigia algo mais que o silêncio, em face dos povos,
dos verdadeiros fins perseguidos pelas potências imperialistas: exigia

410
iivnli/.ur como verdadeiros os seus fins aparentes, porque somente
iiNsiin poderiam aparecer como verdadeiros os fins aparentes perse-
1'iiidos pela URSS. Em outros termos: só desta forma se podia justi-
licar a coincidência entre os “interesses vitais e duradouros” das
Ires potências. Como havia que ocultar a qualquer preço (sob pena
de derrubar o mito que amparava a burocracia staliniana) que a
União Soviética começava a utilizar métodos imperialistas, era ne-
, cssário fazer acreditar que os Estados Unidos e a Grã-Bretanha
•ibandonavam tais métodos. As teorias de Earl Browder, enunciadas
iinediatamente depois da conferência de Teerã, eram apenas a for­
mulação nítida, a expressão extrema do que, sob formas somente
mais discretas, fora apregoado naqueles anos pela propaganda sovié­
tica e comunista. Entre a tese do chefe do Partido Comunista norte-
americano formulada em janeiro de 1944 — “o capitalismo e o
comunismo começaram a marchar juntos para a colaboração pacífica
de amanhã” — e a declaração de Ialta, firmada por Stalin em feve­
reiro de 1945 — “nossa reunião na Criméia reafirmou a nossa deter­
minação comum de manter e fortalecer na paz vindoura a unidade
de propósito e de ação que tornou possível e segura a vitória das
Nações Unidas nesta guerra” —, ou a afirmação contida na resolu­
ção do V Congresso do Partido Comunista italiano, datada de ja­
neiro de 1946 — “cabe às grandes potências democráticas dirigir
a reorganização do mundo inteiro, de modo a assegurar a todos paz
e justiça” —, a comunhão espiritual é evidente. E é sintomático
que as fórmulas extremas de Browder (sobretudo a liquidação do
“instrumento”, porque, na realidade, este foi o seu pecado capital)
só tenham sido excomungadas por Stalin, servindo-se de Duelos,
passado mais de um ano do seu enunciado. E é mais sintomático
ainda o fato de a excomunhão ser pronunciada pouco depois de
Roosevelt, dias antes de morrer, ter ameaçado Stalin com a deterio­
ração das relações entre as duas potências, se o generalíssimo não
cedesse nas suas exigências sobre o governo polonês 132.

A divisão das “esferas de influência”

Ainda hoje persiste a discussão sobre a divisão das “esferas de


influência” — se foi concertada em Ialta, em negociações anteriores
dos “três grandes” ou resultou de uma situação de facto, criada pelas
operações militares e cristalizada durante a “guerra fria” (o próprio

411
fato só é negado nas versões oficiais soviéticas, embora uma série
de documentos compulsoriamente divulgados por Moscou — corres­
pondência entre Stalin, Churchill e Roosevelt, atas das conferências
de Teerã, Ialta, etc., que foram publicadas pelos ocidentais — seja
mais que suficiente para estabelecer a sua realidade 133). Em nossa
avaliação, a copiosa informação existente sobre aquele período per­
mite concluir que a famosa “divisão” foi operada através de uma
série de atos e decisões, escalonados do começo da guerra à ruptura
de 1947. Durante a “guerra fria”, a “divisão” ganhou na Europa
a estabilidade que exibe até hoje (coisa diversa se passou no “ter­
ceiro mundo”, onde os planos dos “três” entraram em colapso sobre­
tudo sob a pressão do movimento nacional revolucionário). A “divi­
são” foi toda uma política, aplicada através das operações militares e
das negociações diplomáticas, da ação dos partidos e dos serviços se­
cretos. No que se refere à União Soviética, o início desta política
pode ser precisamente datado: começa com as cláusulas secretas
anexadas ao pacto germano-soviético. Depois do ataque nazista à
União Soviética, o problema das “esferas de influência” foi posto
sobre a mesa, desde o primeiro momento, nas negociações entre os
“três grandes” e desde o primeiro momento foi acompanhado da
mistificação propagandística acerca dos objetivos reais perseguidos
pelos “três”.
Logo que a Alemanha hitleriana ataca a União Soviética — e,
com isto, liquidando-se o freio representado pelo pacto germano-so­
viético para a ação dos partidos comunistas e das massas popu­
lares —, Roosevelt e Churchill compreendem a necessidade política
urgente de competir com Stalin, que, no seu discurso de 3 de julho,
declarara: “Nossa guerra em defesa da pátria se fundirá com a luta
dos povos da Europa e da América em prol da sua independência e
das liberdades democráticas” (aqui, América quer dizer Estados
Unidos). Na declaração de princípios conhecida como “ Carta do
Atlântico”, datada de 14 de agosto de 1941, o chefe do maior impé­
rio colonial e o chefe da maior potência capitalista proclamam
solenemente que “não buscam conquistas, nem territoriais nem de
qualquer outro tipo”; “repudiam modificações de fronteiras que não
estejam de acordo com os desejos livremente expressos pelos povos
envolvidos”; “respeitam o direito de todos os povos de escolher o
seu tipo de governo e desejam que se restituam os direitos soberanos
e a independência de todos os povos que deles tenham sido despo­
jados pela força”; “esforçar-se-ão, com o devido respeito às obriga-

412
çOcs existentes, para que todos os Estados, grandes ou pequenos,
vitoriosos ou vencidos, desfrutem, em igualdade de condições, do
acesso ao comércio e às matérias-primas do mundo, necessárias à
sua prosperidade econômica”; e prometem uma paz que “garanta a
todos os homens, em todas as partes do mundo, uma vida livre do
medo e das privações”.
“A fachada democrática da Carta do Atlântico — escreverá
anos depois o muito staliniano historiador soviético Deborin — tinha
por finalidade ocultar os verdadeiros objetivos imperialistas dos
círculos governantes norte-americanos e ingleses” 134. Coisa óbvia
para Stalin e todos os Deborins desde o 14 de agosto de 1941. Mas,
a 24 de setembro, o governo soviético torna pública uma declaração
aderindo à Carta do Atlântico. Admitindo-se que o gesto fosse neces­
sário para facilitar a obtenção da ajuda norte-americana e que o
momento fosse inoportuno para questionar a mencionada “fachada”,
o governo soviético poderia ter sugerido muito cordialmente a seus
novos aliados, em função mesmo da necessidade de acumular ao
máximo forças contra o inimigo comum, a conveniência de outorgar
(ou, ao menos, prometer fazê-lo) a independência nacional às colô­
nias. Tanto mais que a política rooseveltiana se orientava precisa-
mente nesta direção — claro que não por razões antiimperial tas,
mas por motivos neocolonialistas: visava facilitar a penetração do
capitalismo norte-americano no mundo colonial açambarcado pelas
potências européias. Mas o governo soviético não aproveitou esta
oportunidade para testar, diante dos povos, ainda que muito discre­
tamente, a “fachada democrática” dos imperialistas anglo-saxões. A
causa pode ser encontrada nas entrevistas Stalin-Eden, em dezembro
de 1941.
Sem perder tempo com rodeios — sem dúvida conside­
rando que em tão distinto representante do colonialismo tinha o
interlocutor ideal para questões de “divisão” —, Stalin expôs seus
primeiros projetos acerca de como se devia modificar o mapa euro­
peu. Havia que tirar da Alemanha a Prússia Oriental (para com­
pensar aos poloneses o território apropriado pelos soviéticos), a Re-
nânia e, talvez, a Baviera. Podia conceder-se à Áustria a indepen­
dência e devolver os Sudetos à Tchecoslováquia. A “esfera de in­
fluência” conquistada pelo fascismo italiano deveria repartir-se entre
a Iügoslávia, a Grécia e a Turquia (desta, Stalin esperava obter bases
nos Estreitos) e, se a França não ressuscitasse como grande potência,
a Inglaterra poderia muito bem conservar bases em Boulogne e

413
Dunquerque, assim como na Bélgica, Países Baixos, Noruega e Dina­
marca. Em troca desta graciosa concessão ao governo de Sua Majes­
tade, Stajin só pedia uma coisa (que apresentava como condição
sine qua non para firmar o tratado de aliança anglo-soviético que
Eden lhe propunha): que a Inglaterra reconhecesse imediatamente
as fronteiras soviéticas estabelecidas como resultado da divisão de
“esferas de influência’’ realizada entre Stalin e Hitler, no bojo das
cláusulas secretas do pacto de 1939. O tratado de aliança anglo-so­
viético — precisou Stalin — poderia constar de duas partes públicas
(uma, referente à aliança militar durante a guerra; outra, concernente
à solução dos problemas europeus depois da guerra), a que se agre­
garia um protocolo secreto, no qual constaria o reconhecimento in­
glês das fronteiras soviéticas de 1941. Invocando a Carta do Atlân­
tico, Eden se opõe. “Eu acreditava — replicou Stalin — que a Carta
do Atlântico estava dirigida contra os que buscam impor sua domi­
nação ao mundo, mas ela me parece agora dirigida contra a URSS” ,35.
Comentando esta cena edificante, André Fontaine escreve em sua
História da Guerra Fria que o inglês poderia ter recordado ao geor­
giano as primeiras decisões do poder soviético, repudiando a diplo­
macia secreta e publicando todos os tratados desta espécie negociados
pelos czares. Eden, naturalmente, não cometeu esta imprudência.
Só podia felicitar-se com a inequívoca comprovação de que a di­
plomacia soviética retornara aos velhos e bons métodos, nos quais
— como Marx observou mais de uma vez — o czarismo era mestre;
esta era a primeira condição para o entendimento. Quanto à inter­
pretação que Stalin fazia da Carta do Atlântico, a coincidência com
os pais da criatura era perfeita: ela dirigia-se unicamente contra os
novos aspirantes à dominação mundial, não contra a opressão dos
povos pelo colonialismo britânico ou o capitalismo americano, nem
contra a subordinação dos povos do ex-império czarista ao nacio­
nalismo grão-russo. A utilização feita por Eden não era mais que
um inoportuno recurso polêmico, e a severa chamada de atenção de
Stalin foi perfeitamente compreendida pelo inglês, a quem, não é
preciso dizê-lo, pouco importava que os povos da Carélia finlandesa,
dos Estados bálticos, dos territórios poloneses orientais, da Bessarábia
e da Bukovina não pudessem decidir livremente sobre seus desti­
nos. A ele só preocupava a defesa dos tradicionais interesses do
imperialismo inglês no Leste europeu.
Como se pode constatar, a negociação sobre a divisão das
“esferas de influência” entre os três grandes começou desde o pri-

414
un Ilo diti da sua “grande aliança” e foi conduzida em rigorosa sin-
....... /ação com os atos políticos necessários para disfarçá-la e enga-
imr os povos. Pouco depois das conversações Eden-Stalin apareceu
a I a i la ração das Nações Unidas (l.° de janeiro de 1942), ratificando
a i aria do Atlântico, subscrita pelos Estados Unidos, Grã-Bretanha
i UUSS e por outros países, cuja simples enunciação bastava para
■mm ui eloqüentemente a fidelidade com que os dois primeiros subs-
iillores sempre haviam observado os princípios agora proclamados:
Inditi, Panamá, Haiti, Cuba, São Domingos, etc. Não vamos seguir
passo ti passo os ziguezagues e as vicissitudes da negociação secreta,
poi um lado e, por outro, da mistificação pública, ou a sua perfeita
a Ih iilação com a política imposta por Moscou ao movimento comu­
ni'. ia; limitar-nos-emos a assinalar alguns dos elos mais significativos.
lím maio de 1942 se firma o tratado de aliança anglo-soviético,
por vinte anos, sem incluir o reconhecimento inglês das fronteiras
oviéticas de 1941, mas sem que os russos renunciem à sua exi­
gência. Ela simplesmente era adiada. A difícil situação militar expli-
i a, provavelmente, esta momentânea e aparente concessão de Stalin.
I ir lato, a sua concessão se situava em outro plano, como o mostra
.1 politica do Partido Comunista da India. Gandhi e seu Partido
do Congresso haviam adotado, desde o início da guerra entre a In­
glaterra e a Alemanha, a posição condensada na seguinte declaração:
A índia não pode se considerar vinculada a uma guerra, que se
diz em defesa das liberdades democráticas, enquanto estiver privada
dc liberdade” — e mantiveram-se firmemente nesta posição mesmo
depois da entrada da URSS na guerra. Gandhi e seu partido apro­
veitaram a situação em que se encontrava o imperialismo inglês para
intensificar a luta pela independência nacional. Mas, enquanto a
burguesia nacional adotava esta tática “leninista”, o Partido Co­
munista hindu adotava a tática social-democrata: pronunciava-se pelo
.ipoio ao imperialismo inglês contra o seu rival alemão. No verão
dc 1942, as autoridades coloniais desencadearam uma bárbara re­
pressão contra o movimento nacional, prenderam Gandhi e todos os
membros do comitê executivo do Partido do Congresso e proibiram
a sua atividade; ao mesmo tempo, legalizaram o Partido Comunista,
que estava na clandestinidade desde 1934. . , 136
Nesse mesmo mês de maio de 1942 realiza-se a entrevista Mo-
lotov-de Gaulle, a que já nos referimos,37. Em troca da sustentação
pelo general, diante dos anglo-americanos, da reivindicação russa de
uma segunda frente, o ministro soviético oferece os bons préstimos

415
de Moscou para que a Resistência — assim como as colônias fran­
cesas — reconheça o comando do general. Logo depois, de fato,
inicia-se a política do PCF, analisada em páginas anteriores, de subor­
dinação a de Gaulle e de defesa da União Francesa (união entre a
metrópole e as colônias).
Ao longo de todo este ano, o governo soviético apoia os ins­
trumentos iugoslavos do imperialismo inglês: o governo real exilado
em Londres e os tchetniks de Mikhailovitch. E pressiona energica­
mente as forças guerrilheiras de Tito, para que abandonem a sua
política revolucionária e se coloquem, como os franceses e os italia­
nos, no terreno da “união nacional”.
Em janeiro de 1943, com a vitória de Stalingrado melhorando
substancialmente a situação militar, Stalin volta à carga sobre o
reconhecimento das fronteiras soviéticas de 1941. E, em março, in­
gleses e americanos se põem de acordo para ceder no que concerne
à Carélia, à Bessarábia e à Bukovina, mas mantêm a sua oposição
no que toca aos Estados bálticos e à Polônia. Numa entrevista com
Eden, Roosevelt opina que talvez seja necessário ceder um pouco
mais, desde que em troca de outras concessões 138. Uma dessas con­
cessões é formulada publicamente pela imprensa e por personalidades
oficiais norte-americanas: Stalin deve oferecer garantias mais con­
cretas e seguras de que realmente renuncia a “fomentar a revolução
mundial”. O muito oficioso New York Times reconhece, a 20 de
dezembro de 1942, que o chefe soviético já fez sensíveis progressos
nesta direção: “As consignas de Stalin [. . .] não são consignas mar­
xistas que impulsionam os proletários do mundo à união; são consig­
nas sobre o patriotismo, a liberdade e a pátria”. Mas isto não é sufi­
ciente e o jornal, agitando o espantalho de uma inversão das alianças,
observa que a Alemanha hitleriana poderia convencer muitos sobre
a necessidade de marchar com ela na cruzada de classe contra a
URSS se persistisse “uma Internacional Comunista inspirada pela
ideologia trotskista da revolução proletária mundial”. E, a 9 de
março de 1943, o vice-presidente Wallace, considerado justamente
como um dos mais decididos partidários da cooperação com a União
Soviética, declara, referindo-se ao futuro: “A guerra seria inevitável
se a Rússia abraçasse novamente a idéia trotskista de fomentar a
revolução mundial”139. Como já sabemos, estes conselhos foram ou­
vidos. Não retornaremos à análise da dissolução da Internacional
Comunista, feita anteriormente. Ela simbolizava a renúncia não à
idéia “trotskista” da “revolução mundial” (esta formulação era uma

416
I><<1110118 astúcia dos políticos americanos, de forma a facilitar a
uperução ao destinatário da mensagem), mas a toda idéia de oferecer
oiixi solução revolucionária à tremenda crise vivida pelo sistema
<npitalista — naturalmente, uma solução revolucionária em função
<111s possibilidades reais, onde se criassem condições para tanto. Mas
<\sias possibilidades e condições não estavam fixadas antecipadamen-
i<-, dependiam em larga medida — embora não exclusivamente —
<lu orientação a ser tomada pelas forças avançadas no próprio curso
da guerra. E a orientação que a IC deixava no seu testamento sig­
nificava a priori a limitação dos objetivos do proletariado e das mas-
m is populares, significava a sua redução ao que fosse compatível com

os “interesses vitais e duradouros” das três grandes potências. A


definição concreta, prática, do admissível iria se inscrevendo nos
acordos secretos dos “três”, sem que os povos tivessem a menor
possibilidade de fazer ouvir a sua voz. Mais exatamente: as classes
burguesas da Inglaterra e dos Estados Unidos (e, através delas, as
de alguns países europeus ocupados pelo nazismo) contavam com
possibilidades consideráveis de influir nas decisões dos líderes oci­
dentais, mas as classes proletárias da Europa — sem falar dos povos
colonizados — não tinham nenhuma possibilidade de pesar nas de­
cisões do personagem que monopolizava a representação suprema dos
seus interesses. A única possibilidade residia em que os partidos
comunistas adotassem uma política independente e revolucionária —
mas as suas direções tinham se convertido, há muito, em apêndices
incondicionais do Kremlin. A exceção titoísta confirma a regra. E,
em conseqüência, as massas — incluídas as massas comunistas —
puderam ser condicionadas ideológica e politicamente, ao longo da
guerra, pelo espírito da “grande aliança” e da “união nacional”, da
colaboração de classes nos países capitalistas e da colaboração entre
os povos oprimidos das colônias e as metrópoles capitalistas.
Referindo-se ao pacto franco-soviético de 1935, e repetindo
idéias de Lênin, Trótski escreveu em 1936: “ Independentemente da
opinião que se possa ter sobre as vantagens e os inconvenientes do
pacto franco-soviético, nenhum político revolucionário sério colocará
em dúvida que o Estado soviético tem direito de buscar um apoio
suplementar em acordos transitórios com tal ou qual imperialismo.
O que importa é indicar às massas, clara e francamente, o lugar de
um acordo tático, parcial, deste gênero no sistema de conjunto das
forças históricas. Para aproveitar o antagonismo entre a França e a
Itália, em particular, não é preciso idealizar o aliado burguês ou a
combinação imperialista momentaneamente camuflada pela Socie­
dade das Nações. Mas a diplomacia da União Soviética, secundada
pela Terceira Internacional, transforma sistematicamente os aliados
episódicos de Moscou em ‘amigos da paz’, engana os operários
falando de ‘segurança coletiva’ e ‘desarmamento’ e se converte, a
partir daí, em uma filial política dos imperialistas no seio das mas­
sas operárias”’40. Se não fosse assassinado, Trótski poderia compro­
var que a ‘‘idealização” dos anos trinta foi apenas um tímido ensaio,
quase uma mentira infantil, em comparação com a “idealização” dos
anos quarenta. E a mesma escala poderia aplicar-se ao engano das
massas. A “grande aliança”, a combinação imperialista camuflada
sob o rótulo de “nações unidas”, a aliança com as burguesias euro­
péias converteram-se numa panacéia absoluta não só para resolver
o grande problema imediato de bater as potências do Eixo, mas
para assegurar a nova paz, a democracia, a independência das na­
ções, a justiça social — conceitos agitados (como em toda ideali­
zação) em sua forma mais abstrata, desprovidos de todo conteúdo
de classe.
A grande imprensa americana saudou com alvoroço a dissolu­
ção da IC, vendo no acontecimento um “triunfo diplomático de
alcance maior que as vitórias de Stalingrado e do Cabo Bon”. “O
mundo respira — diziam os editoriais — : foi abandonada a velha
loucura de Trótski, acabou o sonho de Marx”. “Stalin — escrevia o
Chicago Tribune — enterrou os sacerdotes da fé marxista. Executou
os bolcheviques cujo reino era este mundo e desejavam a revolução
universal”. E o New York Times, servindo de autofalante para o
governo americano, reclamava que à grande decisão se seguissem
medidas concretas: abandono, por Moscou, da União de Patriotas
Poloneses, reconhecimento do governo exilado em Londres pelos guer­
rilheiros iugoslavos e participação dos comunistas franceses numa
“unificação real”'41. A primeira demanda era o malho no ferro
frio, porque Stalin não estava disposto a ceder qualquer coisa de
essencial na “questão polonesa”. A segunda reclamação só foi aten­
dida aparentemente — não por culpa de Stalin, mas de Tito. Quanto
à participação na “unificação real” dos comunistas franceses (e dos
italianos), ela atendeu aos secretos desejos do grande jornal ameri­
cano e de seus mentores.
Uma vez que o trem da história teve amputada a sua locomotiva
(como Marx chamava a revolução) — pelo menos na escala em que
tão ambiciosa operação estava ao alcance do “grande maquinista”

4)8
os "três” puderam proceder calmamente à expressão dos seus
mli tcsses vitais e duradouros” em decisões concretas. O primeiro
passo importante desta nova etapa foi a conferência de ministros de
Kc latões Exteriores da URSS, Inglaterra e Estados Unidos (à que
■ somou, como comparsa, o representante de Chiang Kai-Chek),
celcbrada em Moscou, em outubro de 1943. No preâmbulo da decla-
<.isâo anglo-americana-soviética saída desta conferência, ratifica-se
1111l' apenas mediante a manutenção da “estreita colaboração e co­
operação” entre as três potências será possível — terminadas as
hostilidades — “conservar a paz e fomentar plenamente o bem-estar
político, econômico e social de seus povos”. Entre outras medidas, a
conferência dispõe sobre o novo regime político que deve ser ins­
taurado na Itália depois da queda de Mussolini e sobre a declaração
ilc guerra ao Eixo pelo governo Badoglio. Oferecia-se aos “três
grandes” uma excelente oportunidade de revelar o seu entendimento
sobre a aplicação dos princípios enunciados na Carta do Atlântico,
subscrita pela URSS. E, de fato, outorgam ao povo italiano o direito
de “escolher finalmente sua própria forma de governo” — ou seja,
depois do fim da guerra. Até então, o poder efetivo em todas as
questões, e não apenas naquelas concernentes à direção das operações
militares, estaria nas mãos das autoridades militares aliadas. Durante
este tempo — que os “três” supunham longo e que, de fato, perdurou
por dois anos —, o povo italiano conservava o direito de escolher
“finalmente” o governo da sua preferência, mas as autoridades aliadas
exerciam o direito de criar estruturas políticas que condicionassem
adequadamente o povo italiano, a fim de evitar surpresas quando
chegasse a hora em que este exercesse o seu direito. E a primeira
providência concreta destinada a garantir este rumo político foi a
manutenção de Badoglio à frente do governo, contra a vontade
expressa das principais forças antifascistas. Já examinamos, em pá­
ginas anteriores, de que maneira o prestígio e a habilidade política
de Togliatti contribuíram decisivamente para que os comunistas ita­
lianos e toda a esquerda se submetessem ao plano dos “três grandes”,
entrando na via da “unificação real” reclamada pelo New York Times
(que, se mencionava somente os comunistas franceses, era porque o
comentário fora escrito às vésperas da queda de Mussolini).
A posição soviética na “questão italiana”, junto à adotada em
face da “questão francesa” (apoio a de Gaulle e subordinação do
Partido Comunista francês ao comando do general), confirmava a
opção de Stalin na divisão das “esferas de influência”, já perfilada

419
nas conversações com Eden e que pode ser resumida em duas pala­
vras: ceder (falando em termos diplomáticos e políticos) no Oeste
para garantir-se o Leste. E, realmente, no interior da estratégia fun­
dada na “divisão” não existia outra opção, posto que seu instrumento
decisivo era o movimento dos exércitos e não a ação das massas po­
pulares. Se a estratégia staliniana contasse com a luta revolucionária
na Europa como um fator de primeira ordem, a situação criada na
Itália com a queda do fascismo lhe oferecería uma oportunidade
excepcional. A onda de greves que durante a primavera daquele ano
sacudiu o Norte da Itália e o formidável movimento de massas do
verão mostravam claramente que a crise da sociedade italiana tendia
a se transformar em crise revolucionária, como o confirmariam, nos
meses seguintes, o fulminante desenvolvimento do movimento guer­
rilheiro, sob a predominante influência de comunistas, socialistas
e adeptos do Partido de Ação, e a impressionante greve geral de um
milhão de trabalhadores na zona ocupada142. O único ponto de con­
vergência real entre os Aliados e a burguesia italiana, por um lado,
e o povo trabalhador italiano, por outro, era a luta contra a Alemanha
hitleriana. Este objetivo podia contribuir para potenciar o conteúdo
revolucionário da crise, como ocorria na Iugoslávia, ou para diluí-lo
— dependia, fundamentalmente, da orientação a ser tomada pelas
forças avançadas da sociedade italiana, mas a posição da União
Soviética poderia exercer uma influência considerável. Situando-se
estritamente no marco da declaração de princípios das Nações Unidas,
e invocando a necessidade de desenvolver ao máximo o esforço de
guerra contra a Alemanha, Stalin podia reclamar — não apenas
nas negociações secretas, mas à luz do dia — o reconhecimento
imediato da plena soberania para um povo que estava oferecendo
tão magnífico exemplo na luta contra o inimigo comum das três
grandes potências, o reconhecimento do seu direito a se dar imedia­
tamente na zona libertada, e na medida em que esta zona se am­
pliasse, órgãos de governo democraticamente eleitos, mediante o exer­
cício sem limitações das liberdades políticas. Stalin poderia ter ar­
gumentado: “ Somente assim, se o povo italiano apropriar-se de
seu destino, seu moral de combate, o desenvolvimento de suas ener­
gias e iniciativas poderá alcançar o nível mais alto e contribuir ma­
ximamente para facilitar as operações dos exércitos aliados. Este
procedimento para com o povo italiano mostrará aos outros povos
europeus a autenticidade das intenções proclamadas pelas três grandes
potências e os estimulará a seguir o mesmo caminho. Poderemos

420
<I i a - iao povo alemão que, se fizer com Hitler o que o povo ita­
liano está fazendo com Mussolini, a independência e a soberania da
Mcmanha serão imediatamente reconhecidas pelas três grandes po-
lências.” Uma posição deste gênero teria valido à União Soviética
a mipatia e o apoio das forças genuinamente democráticas e patrió-
tU i i s da Itália e, sobretudo, teria contribuído para desmistificar a
I>>>1ítica de Londres e Washington. E teria análogos resultados nos
outros países europeus. Mas Stalin fez o jogo dos aliados na “ques-
lilo italiana” — e o PCI fez o jogo de Stalin.
Neste caso — como na atitude em face de de Gaulle e como
mi liquidação da Internacional —, a principal justificação dos diri­
gentes soviéticos, repetida com variações diversas pela historiografia
oficial e fielmente reiterada pelos chefes comunistas ocidentais (a
fim de justificar também a sua própria política), se resume em afir-
mur que, para garantir a vitória sobre a Alemanha, era preciso des­
cartar, a qualquer preço, o risco de uma inversão no sistema de
alianças. Como esta justificação cobre toda a política staliniana até
o fim da guerra, não a examinaremos agora; faremos isso quando
estiver completo o dossiê das concessões de grande alcance que
Stalin fez aos objetivos reacionários e imperialistas dos seus dois
grandes aliados.
Uma vez que os ministros de Relações Exteriores haviam aberto
o caminho, os “três grandes”, pessoalmente, puderam celebrar o seu
primeiro encontro, em Teerã, em fins de novembro de 1943. “Com
nossos conselheiros diplomáticos — dizia-se na declaração subscrita
por Roosevelt, Churchill e Stalin — , estudamos os problemas do
futuro. Trataremos de obter a cooperação e a participação ativa de
todas as nações, grandes e pequenas, cujos povos estão dedicados,
de corpo e alma, como os nossos, à supressão da tirania e da escravi­
dão, da opressão e da intolerância; e as receberemos com prazer no
seio da família mundial das Nações Democráticas, na medida em que
decidam nela ingressar”. Já que ao pé desta solene promessa —
nada menos que a criação de uma família mundial pacífica e de­
mocrática, isenta da tirania e da escravidão, da opressão e da into­
lerância — figurava a assinatura de Stalin, como os trabalhadores
europeus e do mundo duvidariam da sinceridade de Roosevelt e
Churchill? A política de “união nacional”, no marco da “grande
aliança”, aplicada pelos partidos comunistas da França e da Itália,
ganhava um sólido fundamento: posto que, derrotada a Alemanha,
tudo se resolveria democrática e pacificamente, o decisivo era con-

421
centrar e unificar os esforços de todos os que estavam interessados
— qualquer que fosse a natureza desse interesse — em ganhar a
guerra. Por que opor-se, na Itália, a que esta concentração e unifica­
ção se realizasse sob o comando supremo do Estado-Maior aliado?
Uma vez terminada a guerra, se o povo quisesse o socialismo, bas­
taria votar democrática e pacificamente por ele. Os interesses opos­
tos se inclinariam a esta vontade popular. Assim o prometiam os
“três grandes” — e que burguês recalcitrante poderia resistir à sua
vontade todo-poderosa?
Ao mesmo tempo em que reafirmavam publicamente ao mundo
os seus generosos objetivos, os “três” prosseguiram, no segredo da
conferência de Teerã, no árduo labor de conferir-lhes forma prática
e concreta. Churchill e Roosevelt fizeram a Stalin a concessão de
aceitar a linha Curzon como fronteira entre a URSS e a Polônia;
em troca, a Polônia receberia os territórios alemães até o Oder.
Stalin concordou, mas fez saber a seus interlocutores que gostaria
muito de ficar com Konigsberg e a área adjacente. Churchill não viu
inconvenientes: os poloneses poderiam contentar-se com as ricas re­
giões industriais da Silésia em troca dos pântanos do Pripet. Churchill
e Roosevelt reconheceram como legítima a aspiração russa de ter
acesso aos mares quentes, e Roosevelt, em particular, deu a enten­
der a Stalin que poderia recuperar Port Arthur e Dairen, arrebatados
pelo Japão aos czares na guerra de 1905, e antes arrebatados à China
pelos czares. Quanto aos territórios finlandeses ocupados pela URSS,
Stalin não deu o braço a torcer. E Churchill teve a impertinência
de lhe recordar que, em 1917, os sovietes haviam se pronunciado
por uma paz sem anexações nem indenizações, ao que Stalin repli­
cou amavelmente; “ Já disse aos Senhores que estou me tornando
conservador”143. No referente à Alemanha, os “três” concordavam
na conveniência de desmembrá-la; a discussão girou em torno das
modalidades concretas da operação. Mas o principal problema tra­
tado em Teerã foi o da segunda frente. À primeira vista, era uma
questão estritamente militar. Em realidade, era um aspecto essencial
na divisão das “esferas de influência”.
Entre os americanos e ingleses existiam divergências sobre a
abertura da segunda frente. Os primeiros eram partidários de abri-la
na França, porque — como diz o historiador soviético Deborin —
procuravam implantar a influência dos Estados Unidos na Europa
ocidental, debilitando as posições inglesas. Os britânicos queriam
abri-la nos Balcãs, porque — afirma o mesmo historiador — ten-

422
invimi assegurar seus interesses nesta área e ali impedir a “irrupção
ovkMiea”. Em Teerã, Churchill insistiu no seu projeto balcânico,
ma', a delegação da URSS mostrou que este plano nada tinha em
uumim com a tarefa de derrotar o mais rapidamente possível a
Alemanha, e que visava a objetivos completamente diferentes” l44. De
1'mIo. como se depreende da explicação mais detalhada oferecida
pelo próprio Deborin e confirmada pelas atas da conferência de
I ecrã, a delegação soviética não fez referência a “objetivos comple-
Iirniente diferentes” visados pelos ingleses, mas limitou-se a colocar
>i problema em termos de eficácia militar — e, em termos análogos,
fundamentou a sua tese da abertura da segunda frente na França,
encontrando o apoio dos americanos. Nos dois casos, Stalin fazia
conscientemente uma opção política fundamental, imaginando matar
dois coelhos com uma só cajadada: conservar as mãos livres no Leste
europeu e “contribuir” para estimular a contradição que, a seu
juízo, dividiria profundamente as potências capitalistas, uma vez
postos fora de combate a Alemanha e o Japão — a contradição entre
os velhos Estados colonialistas europeus, extremamente debilitados
pela guerra, e a superpotência americana, que aspirava substituí-los
na exploração do mundo.
Entre as concessões maiores que Stalin faz a seus aliados no
Oeste, para ter as mãos livres no Leste, há uma particularmente si­
nistra: a que se refere à Espanha. Durante a segunda guerra mun­
dial, Churchill e Roosevelt prosseguiram conseqüentemente, no que
tange à Espanha, na política praticada por Londres e Washington de
1936 a 1939. A carta de 8 de novembro de 1942, quando do de­
sembarque aliado no Norte da África, que Roosevelt dirigiu a Franco,
apresentando-se como seu “amigo sincero” e lhe assegurando que
“não tinha nada a temer da parte dos Estados Unidos”, não era
uma simples manobra tática: era a expressão desta política invariá­
vel. Igualmente o era a cínica declaração de Churchill na Câmara
dos Comuns, a 24 de maio de 1944, afirmando que os assuntos
internos da Espanha competiam exclusivamente aos espanhóis. E,
desde o primeiro dia da coalizão anti-hitleriana, Stalin se acumplicia
com a política espanhola de Roosevelt e Churchill. A declaração
soviética de 24 de setembro de 1941, aprovando os princípios da
Carta do Atlântico, não diz uma palavra sobre a Espanha — e o
mesmo se verifica em todos os documentos oficiais soviéticos do
tempo da guerra, em todas as intervenções públicas de Stalin, etc.
Igualmente ocorre nas negociações entre os três, da entrevista Stalin-

423
Eden, em finais de 1941 — quando Stalin começa a abordar a
reforma do mapa político europeu — , passando por Teerã e as
várias reuniões de ministros de Relações Exteriores, até chegar a
Ialta: a ditadura fascista de Franco é intocável.
No entanto, em poucos problemas europeus Stalin tinha tão
sólidas razões políticas para assumir uma atitude clara e firme como
no problema do franquismo. Não só porque o povo espanhol fora
o primeiro a lutar, durante três anos, contra as potências do Eixo;
nem só porque o regime franquista era um produto da intervenção
armada daquelas potências — mas ainda pelo simples fato de que
Franco participava das hostilidades contra a União Soviética: a
“divisão azul” era parte dos exércitos invasores do território soviético.
Por outro lado, uma declaração de guerra da União Soviética à
Espanha franquista e a exigência de que o governo da República
no exílio fosse reconhecido como o único representante legal da
Espanha (a exemplo de outros governos exilados de países europeus
ocupados pela Alemanha) encontrariam o apoio da grande maioria
da opinião pública no interior da coalizão anti-hitleriana, inclusive
na Inglaterra e nos Estados Unidos. Mas, durante a guerra, Stalin
não moveu um só dedo em favor da República espanhola, não
tomou uma só iniciativa orientada para que a vitória antifascista
beneficiasse um dos povos que mais sangue vertera por ela. A
perpetuação da ditadura fascista na Espanha, depois da segunda
guerra mundial, é um dos resultados mais evidentes da política
staliniana de divisão das “esferas de influência”. E a irrisória decisão
adotada em Potsdam, por proposta soviética, fechando as portas das
Nações Unidas ao regime de Franco não isenta, perante a história,
o Kremlin das graves responsabilidades no fato da sobrevivência
daquele regime ao naufrágio do Eixo.
Voltemos ao problema da segunda frente. Desde junho de 1941,
Stalin reclamava insistentemente a sua abertura, apresentando-a como
condição essencial da vitória sobre a Alemanha. Condição tão
essencial ao ponto de a finalidade prática, imediata, da dissolução
da IC — como vimos no capítulo dedicado a esta questão — ser
facilitar o acordo sobre a segunda frente. A este mesmo objetivo
imediato orientavam-se as concessões de Stalin à política dos aliados
em face da França, da Itália, da Espanha, etc., independentemente da
projeção de mais largo alcance que tais concessões haveriam de
possuir. Na sua Ordem do Dia de l.° de maio de 1944, Stalin
reafirma enfaticamente que a derrota da Alemanha é impossível

424
itili li ubertura da segunda frente no Oeste europeu. E depois do
ili Minbiiique na Normandia não poupa elogios à “surpreendente
Iii ri iMiu" com que foram implementadas “as decisões tomadas na
, unit iéiicia de Teerã”: “A brilhante realização destas decisões —
di/ Sin!in — testemunha com eloqüência o fortalecimento da coalizão
.mli hitleriana”'45. Batendo na tecla indicada pelo Kremlin, durante
In-.', mios os partidos comunistas animaram uma intensa campanha
pela criação da segunda frente e não é estranho, pois, que a impreftsa
comunista a tenha saudado como “a realização do que toda a hu­
manidade vinha reclamando e esperando fervorosamente todos os
dlns"'44.
A partir de 1947, desfeita a “grande aliança”, sob a pressão
das exigências da nova política exterior soviética e da evidência
ilns fatos — que, nesse ínterim, revelaram pienamente as intenções
ocultas da segunda frente —, o Kremlin se vê forçado a destruir
o mito criado por ele mesmo. A historiografia soviética recebeu luz
verde para desvelar esta faceta da história, sob a condição, é claro,
ilc não aprofundar-se nas inquietantes dúvidas que o desvelamento
levantava sobre a política de Moscou nos anos da “grande aliança” .
A versão dos historiadores soviéticos, vigente até hoje, pode ser
icsumida nos seguintes pontos:
1) a idéia diretriz da estratégia anglo-americana no cenário bélico
europeu consistia em deixar que a Alemanha e a URSS se des-
sangrassem e debilitassem ao máximo, enquanto ingleses e ame­
ricanos desenvolviam ao limite o seu potencial militar, a fim
de intervir no momento oportuno com forças novas e impor o
tipo de paz que interessava ao imperialismo. A ajuda à União
Soviética, em armas e alimentos, era a estritamente necessária
para impedir a vitória alemã e prolongar o duelo germano-sovié­
tico até aquele “momento oportuno”;
2) este projeto revelou-se errado no curso de 1943. Depois da vitória
de Stalingrado e dos novos golpes demolidores assestados pelo
exército soviético ao inimigo, na primavera e no verão de 1943,
evidenciou-se o esgotamento da Alemanha, ao passo que, dia a
dia, aumentava o potencial militar da URSS — quer na fabricação
de armas, quer nos efetivos humanos mobilizados, quer na ca­
pacidade combativa dos seus exércitos. Ao mesmo tempo, a
envergadura que a Resistência ia tomando nos países ocupados
alarmava profundamente os dirigentes anglo-americanos. “Nestas

425
condições, todo novo atraso na abertura da segunda frente no
Norte da França implicava o risco de debilitar no mais alto
grau a posição dos Estados Unidos depois da guerra. Os dirigentes
ingleses e americanos se viram forçados a realizar uma brusca
viragem, decidida em agosto de 1943, na conferência de Que­
bec”'47. Nesta reunião, Churchill tentou fazer prevalecer o inte­
resse britânico de situar a segunda frente nos Balcãs, mas os
americanos impuseram a resolução que desejavam. Já com esta
decisão, Roosevelt e Churchill foram a Teerã, onde o inglês
postulou novamente a variante balcânica — mas o americano e
o russo coincidiram plenamente na aprovação da variante fran­
cesa;
3) nos primeiros meses de 1944 “tornou-se evidente que a União
Soviética estava em condições, com as suas próprias forças, de
derrotar a Alemanha fascista e libertar os países europeus,
inclusive a França”148. Por outro lado, “ a luta de libertação do
povo francês, que tendia a transformar-se em insurreição geral
armada contra os invasores alemães, despertava medo entre a
reação mundial”. Tal perspectiva venceu as últimas vacilações de
Londres e Washington e o desembarque aliado nas praias da
Normandia realizou-se finalmente com o objetivo de “frustrar
a democratização nos países da Europa ocidental e impedir o
avanço do exército soviético para Oeste” 149.
Esta versão da historiografia soviética está solidamente funda­
mentada na análise dos documentos ocidentais e foi corroborada pela
política praticada pelos imperialistas americanos na Europa desde
que seus exércitos puseram as botas no continente. Os historiadores
da URSS puderam colocar-se de acordo com a verdade, nesta questão
concreta (à parte as inevitáveis simplificações e elementos propagan-
dísticos de uma versão submetida ao “critério de partido”), porque
Moscou, a partir de 1947, não tinha a necessidade de continuar
mistificando este segmento da história. Pelo contrário: necessitava
revelar a verdade por causa das razões antes expostas. Desde então,
os historiadores soviéticos puderam servir-se, em sua análise, de
um fio condutor muito seguro: o interesse de classe que subordinou
compulsoriamente as decisões militares e políticas de Londres e
Washington. Absurdo seria se a estratégia anglo-americana estivesse
inspirada na idéia de favorecer o fortalecimento da URSS e a che­
gada ao poder dos partidos operários europeus. Quanto à tese de

426
i| ih ,i purtir de finais de 1943 e começos de 1944, a URSS tinha
■"Uilições de derrotar a Alemanha e libertar sozinha a Europa,
i onjugando suas forças com as das resistências nacionais, não se
tnilu dc um ponto de vista apenas soviético. Em novembro de 1943,
Uoosevelt opinava que, “na próxima primavera, no ritmo em que
I coisas caminham agora na Rússia, talvez a segunda frente já
mio seja necessária”150. E, em maio de 1944, o almirante Leahy, chefe
do I stado-Maior de Roosevelt, num informe sobre a relação de
I i i i ç i i s vigente nesse momento, afirmava que, na hipótese de uma
i iiptura da “grande aliança” e da eventualidade de uma guerra contra
.1 União Soviética, os Estados Unidos, no máximo, poderiam defender
i Inglaterra — mas não vencer a URSS: “Em outras palavras: esta-
i íamos envolvidos numa guerra que não ganharíamos” 151. Observe­
mos, ademais, que, enquanto a União Soviética já assegurara a sua
frente extremo-oriental mediante o pacto nipo-soviético de 1941, os
I slados Unidos estavam duramente comprometidos com o conflito
contra o Japão.
Assim, portanto, a segunda frente não foi uma condição
necessária para a derrota da Alemanha, como Stalin garantia, mas
uma condição necessária para a prevenção do perigo da revolução
socialista que se delineava no ocidente europeu; foi, simplesmente,
um aspecto — dos mais importantes — da divisão das “esferas
de influência” na Europa. E a maneira como Stalin abordou a
questão da segunda frente, desde o momento em que a “grande
aliança” começa a tomar corpo, inspirava-se neste objetivo. De fato,
.io invés de explicar aos povos europeus que sua libertação deveria
ser, antes de mais, o fruto da sua luta armada, e que esta era a
unica via para que realmente assumissem a direção dos seus destinos;
ao invés de valorizar prioritariamente os exemplos existentes desde
inícios de 1942 (a constituição, na Iugoslávia, do exército de
libertação e a instauração do poder popular nas zonas libertadas) e
estimular as resistências francesa, italiana, etc., a seguir este caminho
— ao invés disto, as proposições de Stalin e a propaganda soviética
sobre a segunda frente — assim como seus ecos, a política e a
propaganda dos partidos comunistas — fomentavam as ilusões na
suposta missão libertadora dos exércitos anglo-americanos e as
tendências a considerar os movimentos de resistência armada como
forças subordinadas e auxiliares. E este enfoque — cabe assinalar es­
ta particularidade — foi se acentuando na medida em que a situação
militar se fez mais favorável às armas soviéticas. As declarações mais

427
enfáticas de Stalin sobre a necessidade da segunda frente não são
de 1941 e 1942, quando é mais difícil a situação dos exércitos
soviéticos — iniciam-se na primavera de 1943, coincidindo com a
dissolução da IC, acentuam-se no final do ano e a mais contundente
de todas se encontra na Ordem do Dia do l.° de maio de 1944,
na qual Stalin, depois de anunciar que o exército soviético está
prestes à empurrar o invasor para além das fronteiras nacionais,
insiste em que a tarefa de libertar os povos europeus só pode
ser realizada “pelos esforços conjugados da União Soviética, da
Inglaterra e dos Estados Unidos, mediante golpes assestados em
comum por nossas tropas a leste e pelas de nossos aliados a oeste”.
E arremata: “Não há dúvida de que somente este golpe combinado
pode conduzir à derrota total da Alemanha hitleriana”'52. Isto
equivalia a uma recomendação — que, vindo de Stalin, era uma
ordem — dirigida aos partidos comunistas ocidentais, às vésperas do
desembarque aliado: toda ação das forças de resistência, todos os
objetivos políticos nacionais deviam subordinar-se à ação e aos
objetivos das forças anglo-americanas. E, de fato, esta foi a norma
estritamente observada, como já vimos, pelos partidos comunistas
da França e da Itália e a que levou o Partido Comunista da Grécia
à capitulação de Varkiza.
Paralelamente à progressão na afirmação da segunda frente
como ineludível necessidade militar para a derrota da Alemanha e
para a libertação dos países ocupados, Stalin vai acentuando a jus­
tificação ideológica da subordinação aos aliados que reclama da es­
querda européia. Afirma que a unidade da “grande aliança” é maior
a cada dia, mais ampla a comunidade de interesses e fins entre os
“três grandes”. Conseqüentemente, os povos podem confiar neles.
Na medida em que, na prática, nos fatos, se agravavam as contradi­
ções no seio da coalizão — como Zdhanov reconhecerá em 1947,
como logo o demonstrarão a historiografia soviética e a ocidental e
como não podia deixar de acontecer neste momento em que se per­
filava nitidamente a derrota do imperialismo alemão, na luta contra
o qual se encontrava o único aglutinante relativamente sólido da
coalizão — , na medida em que este inevitável processo se aprofun­
dava, Stalin aumentava a dose da mistificação.
A 9 de outubro de 1944, quando os exércitos soviéticos come­
çam a ultrapassar as fronteiras nacionais e penetram na Romênia e
na Bulgária, Stalin e Churchill se põem de acordo acerca das respec­
tivas “cotas” de influência nos Balcãs. Substancialmente, Churchill

428
»c resigna a que Stalin disponha como melhor lhe parecer da Ro-
menia, da Bulgária e da Hungria, desde que Stalin lhe deixe as
....os livres na Grécia e lhe conceda uns 50% de “influência” na
Iugoslávia — com o que concorda magnanimamente o Pai dos
1’ovos ,53. A 6 de novembro, no discurso pronunciado a propósito
do universário da Revolução de Outubro, Stalin louva a unidade dos
“três grandes”, desejando-lhe longa vida. É nesta alocução que se
enuncia mais nitidamente a tese de que, na base da aliança entre a
URSS e os dois grandes Estadas capitalistas, não há motivos “fortui­
tos e efêmeros”, mas “interesses vitais e duradouros”. Naturalmente
diz Stalin —, às vezes surgem divergências, mas “o assombroso
não é que existam divergências, mas que sejam tão poucas e que,
em princípio, sejam resolvidas quase sempre no sentido da unidade
c du ação coordenada das três grandes potências. O importante não
ào as divergências, mas o fato de elas não ultrapassarem o limite
admissível para os interesses da unidade das três grandes potências
e, finalmente, sejam resolvidas segundo os interesses desta unidade”.
Depois de evocar, em apoio à sua afirmativa, as discussões sobre a
segunda frente, assim como as mais recentes sobre as estruturas da
projetada Organização das Nações Unidas, Stalin aduz: “A consoli­
dação da frente das Nações Unidas é atestada, ainda mais brilhan­
temente, pelas recentes conversações de Moscou com o chefe do
governo da Grã-Bretanha, Sr. Churchill, e com o ministro das Rela­
ções Exteriores da Grã-Bretanha, Sr. Eden, as quais transcorreram
num clima de cordialidade e num espírito de total unanimidade” 154.
Assim, pois, a negociação em que se efetuara secretamente, com in­
superável cinismo, a divisão das “esferas de influência” nos Balcãs;
a negociação em que Stalin deixara Churchill com as “mãos livres”
— de acordo com a expressão deste em telegrama a Eden, de 7 de
novembro 155 — para lançar a esquadra, os tanques e os aviões, bri­
tânicos contra o povo grego; este típico exemplo de diplomacia
secreta e de menosprezo ao direito de autodeterminação dos povos
era apresentado por Stalin — em ocasião tão apropriada, como o
aniversário da Revolução de Outubro — como a prova mais bri­
lhante da unidade das três grandes potências.
A intervenção armada de Churchill contra a Resistência grega
despertou uma viva oposição na opinião liberal e nos meios ope­
rários dos Estados Unidos e da Inglaterra. Os principais órgãos de
imprensa — inclusive o Times londrino — expressaram a sua desa­
provação. A operação foi condenada pelas trade-unions, por quase
todos os parlamentares trabalhistas e parte dos liberais. A moção de
confiança exigida por Churchill foi aprovada por somente 272 dos
615 membros da Câmara dos Comuns. Segundo o testemunho de
seu filho, Roosevelt escandalizou-se com os “procedimentos” ingleses
e o secretário de Estado, Stettinius, fez uma declaração oficial recor­
dando que os Estados Unidos sustentavam o direito dos povos a
dirigir seus destinos e estavam contra toda intervenção nos assuntos
internos de qualquer país,5é. Ou seja: o momento político era
extraordinariamente propício para um gesto soviético em defesa da
democracia grega. Naquela fase final da guerra antifascista, atos tão
descaradamente reacionários como o de Churchill suscitavam a re­
pulsa geral e o prestígio da URSS entre os povos do Ocidente era
enorme. Ademais, a situação militar não podia ser mais favorável.
Os exércitos soviéticos, em outubro, chegaram às fronteiras da Gré­
cia com a Iugoslávia e a Bulgária, os restos das tropas alemãs tiveram
que evacuar a península grega e esta se encontrava totalmente em
poder da Resistência. As tropas inglesas desembarcadas no Pireu
controlavam apenas o terreno em que pisavam. Se não existisse o
acordo secreto entre Churchill e Stalin, nada poderia impedir que
umas quantas unidades soviéticas descessem até Atenas para fazer
uma “junção” com o corpo expedicionário britânico. Esta “presença”
militar, respaldando uma declaração de Moscou semelhante à de
Stettinius, desbarataria os planos de Churchill. Mas Stalin não só
não fez nenhum gesto militar ou diplomático em defesa da Resis­
tência grega; não só guardou um silêncio cúmplice durante os trinta
e tantos dias em que os tanques e aviões britânicos metralharam a
população de Atenas — fez mais: pressionou os dirigentes comunis­
tas gregos para a capitulação de Varkiza, que não foi imposta, abso­
lutamente, pela relação de forças157.
Enquanto Churchill ocupava não poucos tanques e aviões com
a sua pequena guerra contra a Resistência grega, von Rundstedt
rompia a frente aliada em Ardennes e ameaçava os exércitos anglo-
americanos com um novo Dunquerque (a ofensiva de Churchill con­
tra Atenas iniciou-se a 5 de dezembro, a hitleriana na Bélgica a 16
do mesmo mês; ambas se prolongaram até meados de janeiro 15S).
A 6 de janeiro, Churchill enviou uma mensagem a Stalin pedindo
que se adiantasse a ofensiva soviética (prevista para finais de janei­
ro), a fim de aliviar a grave situação em que se encontravam os
exércitos aliados na sua frente principal. Stalin poderia ter pergun­
tado por que os exércitos aliados não atacavam na frente dos Ape-

430
.... uh. por que as divisões blindadas e a aviação empregadas na
idei in contra o povo não eram deslocadas para esta frente, na qual
iiiiiM iillusiva aliada contaria com o poderoso concurso do exército
guri i iIliciro da zona ocupada pelos alemães. Mas Stalin respondeu
....... a Churchill que, apesar das condições climatológicas
di ihivoráveis imperantes na frente Leste (que tornavam difícil o
■iiipngo da aviação e da artilharia), o exército soviético anteciparia
ii mi ofensiva. “Não tenha nenhuma dúvida — dizia o telegrama
di* Mu li n — que faremos todo o possível para acudir em ajuda às
gloriosas tropas aliadas” 159. Com efeito, cinco dias depois o exér-
i nu soviético passava ao ataque em uma frente de 1.200 km — o que
uiiligou o alto-comando alemão, segundo o testemunho das memó-
ii.i . do general Guderian, a “passar à defensiva na frente ocidental
i transferir ao Leste as forças que ficassem livres” 160. Como explica
ii In Monografia soviética, Stalin sabia muito bem, há tempos, como
os acontecimentos gregos o estavam confirmando, que os exércitos
Mudos desembarcaram no continente para “levar à prática os seus
planos imperialistas em face da Alemanha, salvar do aniquilamento
lotai as forças reacionárias da Europa, frustrar a democratização dos
países da Europa ocidental e impedir o avanço do exército soviético
para Oeste” 161. Stalin sabia que, a 18 de dezembro, dois dias depois
iIr von Rundstedt iniciar a sua grande contra-ofensiva, os ingleses
ili .locaram tropas da Itália para a Grécia, ao invés de fazer o con­
ti mio — levá-las da Grécia para a Itália, para atacar os Apeninos e,
.lin i, aliviar a situação dos aliados em Ardennes 162. Stalin, como
a firma a historiografia soviética, sabia que a frente ocidental aliada
deixara de ser necessária para a derrota da Alemanha desde os
primeiros meses de 1944 e que os exércitos soviéticos, com o con­
ni rso das resistências européias, estavam em condições de impor a
decisão final. Mas Stalin não vacila em aumentar as baixas sovié­
ticas — conseqüência inevitável do início da ofensiva em condições
climatológicas que dificultavam o emprego da aviação e da artilharia
c de atrair à frente oriental parte das forças alemãs que estavam
no Oeste — a fim de ajudar as “gloriosas tropas aliadas”. Não vacila
cm tomar uma decisão que, naquela situação, equivalia a facilitar o
ulterior avanço dos exércitos anglo-americanos para o interior da
Alemanha; que facilitava as operações contra os resistentes gregos
c a disponibilidade das tropas aliadas na França e na Itália em face
de toda eventual ação da Resistência que colocasse em risco a res­
tauração da ordem burguesa nos dois países. Os historiadores sovié-

431
ticos, porta-vozes da versão oficial, justificam a decisão staliniana de
7 de janeiro de 1945 afirmando que, assim procedendo, o governo
soviético “cumpria desinteressadamente, de modo conseqüente e
honesto, os compromissos contraídos e prestava a necessária ajuda
aos seus aliados” 163. Se prescindimos do “desinteresse” e da “hones­
tidade”, os termos desta justificação apologética são perfeitamente
adequados para definir o conteúdo real do ato. Stalin, efetivamente,
“cumpria de modo conseqüente os compromissos contraídos” com
seus aliados imperialistas — na medida exata em que descumpria
seus compromissos para com a revolução européia.
À parte expressões vagas, como a já citada, a historiografia
soviética não fornece nenhuma explicação das razões imediatas que
determinaram a decisão tomada por Stalin a 7 de janeiro de 1945.
Se existiam razões gerais, perfeitamente inteligíveis à luz da política
global de Stalin (os “compromissos contraídos”), é indubitável que
também houve razões ligadas à precisa conjuntura em que a reso­
lução foi tomada. Os historiadores soviéticos não as desvelam, mas
as deixam transparecer ao assinalar que a ofensiva hitleriana em
Ardennes estava concebida em função de um objetivo: dar a entender
aos aliados, depois de assestar-lhes um golpe rude, que desejava con­
certar uma paz em separado 164. Com seu gesto “magnânimo”, Stalin,
muito provavelmente, se propunha demonstrar aos aliados que a sua
conveniência estava em conservar uma soiuznik 165 tão generosamente
predisposta a facilitar a realização dos planos anglo-americanos no
continente. Numa palavra, Stalin queria prevenir-se do risco de uma
paz em separado. Mas, como veremos, Stalin não temia este risco
quando se tratava de questões que punham em discussão as previstas
“esferas de influência” soviéticas. Estava disposto às concessões,
a fim de preveni-lo, sempre que afetassem os interesses do movi­
mento revolucionário nas “esferas de influência” reconhecidas aos
anglo-americanos.
Quando, em inícios de fevereiro, os “três grandes” se reúnem
em Ialta, a “divisão” da Europa já ia muito adiantada. Além dos
aspectos a que nos referimos nas páginas precedentes, no curso de
1944 se chegara a um acordo preliminar sobre a questão crucial das
zonas de ocupação na Alemanha. O acordo foi ratificado sem difi­
culdades em Ialta, talvez porque cada um dos “três” o considerava
provisório e compatível com seus planos ulteriores sobre a Alemanha.
A linha do Elba satisfazia às exigências mais ambiciosas da segu-

432
1 tio lis tudo soviético, tal como a entendiam Stalin e seus gene-
i iiIn (com notável antecipação, Engels escreveu em 1853 que o
i i|>imsionismo russo, invocando o mito pan-eslavista, não descansaria
' nqutmto não atingisse as suas “fronteiras naturais”, que, de acordo
“ 111 I iigels, corresponderiam a uma linha que vai de Danzig ou
Melili uo Trieste'66). E, por outro lado, aos capitalistas anglo-ame-
......ms não lhes desagradava ficar com as zonas mais industriais
«l*i Alemanha. Quanto ao resto da Europa, mesmo que a delimitação
dm. "esferas de influência” já estivesse praticamente decidida, ainda
1 invìi por resolver o problema que poderíamos chamar das “cotas”
de iiillucncia dos ocidentais nas zonas de hegemonia soviética.
V .mi como, na zona de hegemonia anglo-americana, Stalin dispu-
"Iiii ile umas determinadas “cotas” de influência através dos partidos
i "inunistas, com a participação destes nos governos da França, Itá-
ll*i. etc., o reconhecimento da hegemonia soviética no Leste europeu,
I'1" Roosevelt e Churchill, não significava que estes renunciavam a
11 >ntar com certas posições políticas e econômicas nos países corres-
pundentes. O acordo secreto Churchill-Stalin sobre os Balcãs, por
i uiiiplo, envolvia os dois aspectos, o das “esferas” e o das “cotas”.
\ Grécia ficava como esfera de absoluta hegemonia anglo-ameri-
■una — como a Bulgária, a Romênia e a Hungria ficavam como
ciilcia de absoluta hegemonia soviética —, mas os comunistas gregos
tinham direito a uns 10% de influência nos órgãos do Estado monár­
quico, vassalo dos anglo-americanos. Se eles tivessem se conformado
com esta modesta percentagem, Churchill não seria compelido à do­
lorosa necessidade de convencê-los através das bombas. Uma vez que
este argumento surtiu efeito — 13.000 mortos do exército de liber-
lação (ELAS) somente em Atenas — e que os dirigentes comunistas
gregos aceitaram, pelo acordo de Varkiza, a entrega das armas do
I I.AS em todo o país, Churchill, honrando seu compromisso com
Stalin, não se opôs a que o Partido Comunista grego ocupasse legal­
mente o discreto lugar que o dito compromisso lhe reservava na
ordem democrática encarnada em Jorge II e no general Plastiras.
Do mesmo modo como Churchill respeitava tão escrupulosamente,
no que se referia à Grécia, os percentuais acertados com Stalin,
este devia fazer o mesmo nos países incluídos na zona de influência
soviética. Em Ialta, este problema foi concretamente colocado em
relação à Iugoslávia e à Polônia. Quanto à questão iugoslava, os
“três grandes” limitaram-se a formular a expressa recomendação de
que o acordo Tito-Subachitch fosse aplicado rapidamente 167. Como

433
nas negociações anteriores, em Ialta o pomo da discórdia foi a Po­
lônia.
Stalin via na Polônia um elo capital da zona de projeção que
protegeria a segurança do Estado soviético — portanto, o novo Es­
tado polonês teria que oferecer ao Kremlin, em todos os níveis,
absolútas garantias. Mas as forças políticas sinceramente pró-sovié­
ticas eram extremamente débeis na Polônia. Durante a vigência do
pacto germano-soviético, Stalin tratara a nação e a população polo­
nesas como inimigos, recorrendo a procedimentos inqualificáveis,
que tiveram por efeito lógico exacerbar a tradicional russofobia do
nacionalismo polonês, somente comparável à sua germanofobia. Nem
mesmo os pequenos grupos comunistas escaparam aos golpes de
Stalin ,68. Não é surpreendente, pois, que as principais forças da
Resistência polonesa se agrupassem em torno dos partidos burgueses
e do social-democrata, que, desde 1939, constituíram um governo no
exílio, sediado em Londres e reconhecido pelas potências ocidentais
como o único governo legal da Polônia. Isto significa que para
Stalin conseguir o Estado polonês de que necessitava — incondicio­
nalmente pró-soviético, trincheira segura na zona de projeção —, não
podia fazer a menor concessão a qualquer via democrática, fosse
democrático-burguesa ou democrático-proletária. Só podia confiar na
construção, mediante providências autoritárias, de um aparelho estatal
bem controlado — sobretudo no referente ao exército e à polí­
cia — pelos órgãos de segurança soviéticos. Para isto, entre outras
medidas, era preciso destruir as forças organizadas e arma­
das — muito consideráveis — da Resistência polonesa, subordinadas
aos líderes burgueses e social-democratas. A miopia política desses
líderes, cegos em seu nacionalismo anti-soviético, que os conduziu
à prematura insurreição de Varsóvia, em agosto de 1944, facilitou a
tarefa de Stalin. As tropas alemãs se encarregaram de fazer com a
Resistência nacionalista burguesa polonesa o que as tropas britânicas
logo depois fariam com a Resistência revolucionária grega lé9. De
qualquer forma, o problema de fundo — a hostilidade da gran­
de maioria do povo polonês à inclusão da Polônia na órbita
russa — continuava de pé. Roosevelt e Churchill estavam dispostos
a fazer grandes concessões às razões de “segurança” invocadas por
Stalin, mas exigiam a sua “cota” de influência na nova Polô­
nia; e, ademais, reclamavam pela salvaguarda das aparências demo­
cráticas — os dois estavam sob a forte pressão da opinião pública
anglo-americana, muito sensibilizada, desde o início da guerra, pela

434
■ ui Mpolonesa. Em Ialta conseguiram, por fim, que Stalin concor-
iIhh.. cm "ampliar” o governo provisório elaborado no Kremlin
■ m inlmio em Varsóvia pelo exército soviético, incluindo nele algu-
.... personalidades patrocinadas pelo governo exilado. As autori-
diidi definitivas sairiam de eleições gerais, organizadas no mais
lui ve prazo pelo novo governo provisório.
Mal regressados às suas capitais respectivas, os dois “grandes”
identais compreenderam que o “grande” oriental não tinha a me-
imr intenção de honrar o compromisso contraído. De fato, Stalin
evigia que todo membro do novo governo “houvesse demonstrado na
praliea a sua atitude amistosa em face da União Soviética e estivesse
■11 I>i i to, honesta e sinceramente, a colaborar com o Estado sovié-
in •' l/0. E quem mais qualificado que Stalin para avaliar sobre a
doM* de amizade, honestidade e sinceridade pró-soviéticas existente
nu consciência dos candidatos ao governo polonês? Stalin exigia
|u lamente que se lhe reconhecesse esta qualificação, com o que a
cota” ocidental corria o grave perigo de ficar bem abaixo da “cota”
de influência soviética na Grécia. Os dois chefes aliados reagem
■nergicamente. Numa de suas últimas mensagens a Stalin, Roosevelt
formula veladamente a ameaça de ruptura da “grande aliança” no
caso de “qualquer decisão que leve à manutenção, sob forma dissi­
mulada, do atual regime de Varsóvia”171. Simultaneamente, Churchill
envia comunicação semelhante ao generalíssimo. Mas Stalin não cede
minimamente, embora esta ameaça de ruptura ganhe ponderável ve­
rossimilhança por coincidir com outro fato notoriamente conhecido:
o primeiro em que a eventualidade de uma paz em separado entre
ocidentais e alemães adquiriu consistência. Em meados de março,
realmente, representantes do alto comando aliado mantiveram con­
versações secretas, na Suíça, com representantes do alto comando
alemão. Enquanto decorriam tais conversações, os aliados — preven­
do que os soviéticos saberiam delas por outros canais, como de fato
souberam — passaram informações a Moscou, justificando o encon­
tro com uma possível capitulação do exército alemão que ocupava o
Norte da Itália. O governo soviético exigiu uma participação nas
conversações — e a negativa dos aliados, evidentemente, apenas
aumentou as suspeitas de Moscou. Em mensagem a Roosevelt, data­
da de 3 de abril (a de Roosevelt a Stalin, sobre a questão polonesa,
tinha a data de l.° de abril), o generalíssimo dá por suposto que,
nas conversações suíças, os aliados chegaram a “um acordo com
os alemães, pelo qual o marechal Kesselring, comandante alemão na

435
frente ocidental, concordou em abri-la às tropas anglo-americanas,
para que estas avancem para o Leste, em troca da promessa anglo-
americana de aliviar as condições de armistício para os alemães”.
Daí resulta, prossegue Stalin, “que, neste exato momento, os alemães
tenham cessado, de fato, a guerra contra a Inglaterra e a América,
enquanto a continuam contra a Rússia” m . Apesar destes sinais alar­
mantes, agravados dias depois pela morte de Roosevelt e a posse de
Truman — que, em 1941, declarara publicamente: “Se vemos que
a Alemanha está prestes a ganhar a guerra, devemos ajudar a Rússia;
se vemos que a Rússia está prestes a ganhá-la, devemos ajudar a
Alemanha”173 —, Stalin não fará nenhuma concessão na questão po­
lonesa. Numa mensagem a Truman e Churchill, de 24 de abril,
formula com incomparável cinismo a doutrina de que cada um dos
“três grandes” deve resolver — sem a intromissão dos outros
dois — que tipo de governo devem ter os países que considere
vitais para a segurança do seu Estado. Diz o documento: “ Há que
levar em conta a circunstância de a Polônia ter fronteiras com a
União Soviética e não as ter com a Grã-Bretanha e os Estados
Unidos. [ . . . ] Parece que os Senhores não concordam em que a
União Soviética tem o direito de conseguir que exista na Polônia
um governo amigo, tem o direito de não aceitar a existência, na
Polônia, de um governo que lhe seja hostil. [. . .] Não sei se, na
Grécia, criou-se um governo verdadeiramente representativo; não sei
se o governo da Bélgica, realmente, é democrático. O governo sovié­
tico não pretendeu imiscuir-se nestes casos porque compreende a
significação que a Bélgica e a Grécia têm para a segurança da
Grã-Bretanha. É incompreensível que, discutindo-se a questão polo­
nesa, não se queira levar em conta os interesses da União Sovjética,
sob o ponto de vista da sua segurança” 174. Ao mesmo tempo em
que se batia no terreno diplomático para ter as “mãos livres” na
Polônia, como Churchill as tinha na Grécia, Stalin ordenava ao
exército e aos serviços de segurança soviéticos avançar na liquidação
metódica dos quadros não comunistas da Resistência, sem vacilar
em recorrer a procedimentos como o seguinte: os principais chefes
militares e políticos da Resistência não comunista foram convidados
pelas autoridades soviéticas a entabular negociações amistosas; fo­
ram-lhes concedidos salvo-condutos e a garantia da sua segurança;
uma vez chegados ao local da entrevista, foram todos presos e
transferidos secretamente para uma prisão moscovita; meses depois,
compareceram ante um tribunal militar soviético, que os condenou

436
ii ili i mios de cárcere, acusando-os de tentativas de sabotagem contra
•"u n ito soviético. Muitos dirigentes locais da Resistência foram
iil'iiiimlos por análogo procedimento e liquidados sem processo175.
t omo se vê, Stalin não temia enfrentar a ruptura da “grande
ii11ui iva ” se o que estava em jogo era o controle de Moscou sobre os
I ii i que a história destinava a compor a zona de projeção sovié-
ili a Mas, neste mesmo período, e aplicando as diretivas stalinianas,
Mimiv desarmava a Resistência e punha o Partido Comunista a
ii-lnique de de Gaulle, invocando o perigo da inversão das alianças.
Sub o mesmo pretexto, a magnífica Resistência do Norte da Itália
i 111 regava as suas armas aos aliados e os comunistas gregos aceitavam
ii desarmamento do ELAS. Stalin considerava legítimo arriscar-se a
mu conflito com os aliados em defesa da sua zona de projeção, mas,
mmltuneamente, fazia com que os comunistas da “zona de influên-
i ia'' anglo-americana considerassem um crime a eventualidade de
que uma ação revolucionária pudesse provocar semelhante conflito.
Portanto, se uma tal ação revolucionária determinasse a intervenção
armada dos exércitos anglo-americanos, não havia que contar com a
intervenção militar soviética (desde que a intervenção aliada não
al ingisse a zona de projeção) — o caso grego equivalia a uma adver­
tência.
A questão das “zonas” ou "cotas” de influência na Europa só
foi concretamente tratada em Ialta em relação aos casos citados da
Alemanha, Polônia e Iugoslávia (em relação à Alemanha, é impor­
tante assinalar que não se delimitaram apenas as zonas de ocupação;
acordou-se, em princípio, o seu desmembramento, instituindo-se um
comitê dos “três” encarregado de estudá-lo 176). Em face dos demais
países europeus, as três potências se concertaram sobre as normas a
seguir para intervir conjuntamente “quando, no seu entender, as
condições o exigirem”. De fato, ficaram revalidados todos os com­
promissos precedentes relacionados à divisão. Ialta, porém, não se
limitou a problemas europeus. Um protocolo secreto estabelecia que
a União Soviética entraria em guerra contra o Japão logo que ces­
sassem as hostilidades na Europa e, uma vez derrotados os japoneses,
seriam restaurados “os anteriores direitos da Rússia, violados pelo
Japão no pérfido ataque de 1904”. A União Soviética recuperaria a
parte Sul de Sakhalin e todas as ilhas adjacentes; a China lhe arren­
daria Port Arthur e se promoveria a internacionalização de Dairen;
a ferrovia do Leste chinês e a do Sul da Mandchúria seriam explo­
radas conjuntamente por uma sociedade mista sino-soviética. Numa

437
palavra, a União Soviética recuperaria as bases e as concessões obti­ que. na véspera, ele louvava como aliado leal e heróico — é um
das pelo czarismo no Extremo Oriente, quando da divisão das “esfe­ perigo mortal para o mundo livre”. Quatro dias depois da capitu-
ras de influência” na China pelas potências ocidentais — mas com Ini, nu do Reich, escreve a Truman dizendo que sobre a frente sovié-
um lucro: as ilhas Kurilas, pertencentes ao Japão. Em Ialta houve ii' i baixou uma “cortina de ferro” e “ignoramos o que ocorre lá”.
também conversações entre os três ministros de Relações Exteriores Propõe ao sucessor de Roosevelt a não evacuação dos exércitos ame­
acerca do Irã — neste momento, dividido em “esferas de influência” ricanos antes de arrancar novas concessões a Stalin — os territórios
entre ingleses e soviéticos — e sobre a aspiração de Moscou a possuir alemães a leste do Elba, que, segundo os acordos de Ialta, devem
algum controle sobre Dardanelos. .ei incluídos na zona de ocupação soviética (os americanos haviam
Ialta, por conseqüência, foi um instante essencial na divisão iicupado estes territórios, adiantando-se ao avanço russo, porque os
das “esferas de influência”, quer em escala européia, quer em escala alemães lhes deixaram o caminho livre) 177.
mundial. E, ao mesmo tempo, assinalou o clímax da grande mistifi­ ü nervosismo egressivo de que Churchill dá mostras nesse mo­
cação que encobria aquela divisão e apresentava os “três grandes” mento reflete a debilidade da posição inglesa. De fato, um “perigo
como anjos tutelares da paz, da democracia e da independência na­ mortal” ameaça os interesses do imperialismo britânico no Báltico
cional dos povos. Centenas de milhões de seres humanos — e, entre e no Leste europeu, nos Balcãs e nos Estreitos, no Oriente Próximo;
eles, milhões de comunistas — acreditaram de pés juntos na solene está ameaçado o postulado permanente da política externa britânica:
declaração firmada por Churchill, Roosevelt e Stalin: “Na reunião um equilíbrio europeu que impeça a hegemonia continental de qual­
da Criméia reafirmamos nossa determinação comum de manter e quer potência. A Inglaterra sai profundamente enfraquecida da guer­
fortalecer na paz vindoura a unidade de propósito e de ação que ra. Financeiramente, está à mercê dos Estados Unidos. Militarmente,
tornou possível e segura a vitória das Nações Unidas nesta guerra. nem de longe pode medir-se com os outros “grandes”. Sem a pro­
Cremos que esta é uma obrigação sagrada de nossos governos para teção norte-americana, as “cotas” da influência inglesa na zona de
com seus povos e para com todos os povos do mundo. Somente hegemonia soviética correm o grave risco de desaparecer. E Churchill
mediante a colaboração e compreensão contínuas e crescentes entre teme que os dois “supergrandes” possam chegar a um acordo mun­
nossos três países e entre todas as nações amantes da paz poderá dial sem levar em conta os interesses coloniais — ou até às custas
realizar-se a mais alta aspiração da humanidade: uma paz segura e deles. Porque, se existem contradições entre soviéticos e americanos,
duradoura que, de acordo com os termos da Carta do Atlântico, também existem entre americanos e ingleses, e Stalin joga com elas.
garanta a todos os homens, em todos os lugares do mundo, uma Eis por que a diplomacia churchilliana não perde nenhuma oportu­
vida isenta de medo e privações” . nidade para inimizar soviéticos e americanos.
Enquanto a máxima aspiração da Inglaterra, assim como a da
França, consistia em conservar o império colonial, o objetivo do
O naufrágio do oportunismo staliniano pujante capitalismo americano consistia em destruir as barreiras que
dificultassem a sua expansão mundial. Este era o significado prático
Como vimos, o comportamento dos “três grandes” nas semanas
do “idealismo” rooseveltiano. Diante das duas casas do Congresso,
seguintes a Ialta ilustra eloqüentemente a sua “determinação co­
mum” de manter a “unidade de propósito e de ação”, a “colabora­ reunidas conjuntamente uns meses antes de Ialta, Roosevelt anun­
ção e compreensão contínuas e crescentes” a fim de instaurar uma ciara solenemente que se colocaria um ponto final na política de
“paz segura e duradoura”. Os ocidentais acusam Stalin de não “esferas de influência, de alianças, de equilíbrio entre as potências
cumprir o acordo sobre a Polônia. Stalin acusa os ocidentais de ou de qualquer outro arranjo como aqueles que, neste passado infeliz,
tentar uma paz em separado com os alemães. Cada dia traz novos foram utilizados pelos povos para tentar preservar a sua segurança
motivos de tensão. Churchill se mostra particularmente agressivo. e defender os seus direitos”178. Este mundo aberto e, além do mais,
Tenta convencer os chefes americanos de que a Rússia soviética esgotado pela guerra, era, realmente, o mundo ideal para o super-

43H 439
capitalismo americano: o mercado ótimo para o seu gigantesco apa­
relho industrial, cuja produção duplicara durante a guerra; o espaço
de inversão à medida dos enormes capitais acumulados. Em lugar
de um mundo dividido por esferas de influência, uma só esfera de
influência cobrindo o mundo: a americana. Nesta perspectiva, o
grupo rooseveltiano incluía a colaboração com a União Soviética:
considerava que a contribuição norte-americana à reconstrução da
URSS seria vantajosa para ambas as partes e se expressaria num
condicionamento político do regime soviético. Sob este benéfico in­
fluxo, o “socialismo num só país” poderia chegar a integrar-se har-
monicamente no mundo rooseveltiano.
As demonstrações de boa vontade dadas por Stalin no curso da
guerra — dissolução da IC, política de “união nacional” dos par­
tidos comunistas, abandono da luta contra o imperialismo ianque
pelos comunistas latino-americanos, etc. — animavam Roosevelt e
seus colaboradores na viabilidade da pax americana. Outras facetas,
contudo, da realpolitik staliniana conflitavam evidentemente com a
concepção de Roosevelt. Antes de mais, a doutrina formulada por
Stalin no documento de 24 de abril — já citado — sobre a questão
polonesa, e aplicada na prática desde 1939 nos Estados bálticos, na
Bessarábia, etc. —, a doutrina de que cada um dos “três grandes”
dispusesse a seu arbítrio dos países que considerasse vitais para a
sua segurança. O idealismo rooseveltiano admitia exceções neste
plano desde que se tratasse de Cuba, Porto Rico, Filipinas, México,
etc., quando o que estava em jogo era a segurança da “grande
democracia americana”; mas não podia admiti-las quando o pretexto
invocado era a garantia da segurança do “totalitarismo comunista”
ou do “imperialismo britânico”. No entanto, os dirigentes norte-ame­
ricanos não consideraram, neste momento, que tão desagradável
aspecto da realpolitik staliniana fosse uma razão suficiente para a
ruptura ou para a renúncia à busca de um substancial compromisso
com o governo soviético. Eles levavam em conta outros aspectos.
Em primeiro lugar, desde 1943 estava claro para os chefes norte-
americanos que teriam de se haver com outra superpotência — com
evidente atraso econômico em relação aos Estados Unidos, mas
com óbvia superioridade militar no continente europeu. À altura de
Ialta, os generais ianques febiam que, em caso de conflito com a
URSS, os exércitos soviéticos chegariam às costas do Atlântico 179.
Sabiam que, além da sua superioridade militar no cenário europeu,
a URSS contava com outra vantagem de primeira ordem: enquanto

440
.1 derrota da Alemanha deixava disponível o grosso do potencial mi­
lhar soviético, grande parte da potência militar americana continuava
i iimprometida na guerra do Pacífico. Em princípios de 1945, pen-
sava-se em Washington que seria preciso transferir para o Pacífico
parte das tropas empregadas na Europa, que a guerra contra o
|apão poderia prolongar-se por mais tempo e que a entrada da União
Soviética nela, embora não indispensável, era muito conveniente
(os chefes militares americanos temiam que, no momento oportuno,
o exército japonês ocupado com a China fosse deslocado para a me­
trópole, tornando mais difícil e custoso o assalto final). E havia
ainda outro dado importante que induzia o governo americano a
buscar a colaboração de Moscou no Extremo Oriente: o problema
chinês. Um dos objetivos essenciais de Washington na guerra do
Pacífico era consolidar o regime de Chiang Kai-Chek, através do
qual o imperialismo americano poderia assegurar-se a penetração
econômica e a hegemonia política na China. A consecução deste
objetivo poderia ser extraordinariamente facilitada se os comunistas
chineses prosseguissem em sua colaboração com a burguesia do
Kuomintang no mesmo espírito de lealdade e moderação com que
os comunistas italianos e franceses estavam colaborando com as suas
respectivas burguesias. Para este fim, Washington necessitava dos
bons serviços de Stalin. Conseqüentemente, existiam motivos fun­
damentais para que no primeiro semestre de 1945, antes que a
bomba atômica entrasse em cena e o Japão capitulasse, o governo
americano buscasse um acordo com Moscou, apesar das tensões deri­
vadas da questão polonesa e dos outros problemas no Leste europeu.
As próprias razões que impõem em Washington a política de
conciliação com Moscou, apesar do visceral anticomunismo de Tru-
man e seu grupo, sublinham até que ponto, na primavera e no verão
de 1945, a correlação global de forças na Europa era propícia a uma
política revolucionária audaciosa onde as condições interiores eram
também favoráveis. No caso de intervenção armada anglo-americana
contra o movimento revolucionário, a União Soviética se encontrava
em condições estratégicas excepcionalmente boas para prestar uma
ajuda militar decisiva. Mas, vistos sob a ótica da política staliniana,
ambos os fatores — a vantagem estratégico-militar e as possibilidades
revolucionárias presentes nas áreas reconhecidas por Moscou como
esferas de influência anglo-americana — deveriam ser explorados
para conseguir que Washington reconhecesse a zona de projeção sovié­
tica na Europa e as demais reivindicações soviéticas (bases nos Dar-

441
danelos, esfera de influência no Norte do Irã, interesses na Turquia,
etc.). O primeiro fator faz com que a zona de projeção soviética seja
um fato consumado, militarmente invulnerável. Mas o objetivo de
Stalin é que este fato seja reconhecido e integrado num arranjo
geral, de alcance mundial, com os Estados Unidos, no marco do
qual os créditos e a indústria americanos contribuam para a recons­
trução da URSS, de acordo com os projetos do grupo roosevel-
tiano — mas em condições tais que descartem o condicionamento
político, em condições que assegurem a direção bipartida do mundo
e não a hegemonia norte-americana. A renúncia a estimular as pos­
sibilidades revolucionárias presentes na Europa ocidental e mediter­
rânea, assim como as que se delineiam na China, esta renúncia, que
no instante da dissolução da IC podia ser interpretada como uma
manobra, agora adquire consistência, apresenta-se como uma con­
cessão prática, efetiva — tanto mais valiosa para os americanos
quanto mais real é o perigo revolucionário — , susceptível de com­
pensar equitativamente o reconhecimento da zona de projeção e das
outras reivindicações soviéticas. Para chegar a uma sólida divisão
do mundo com o imperialismo americano — este é o conteúdo
real da “paz segura e duradoura” da Declaração de Ialta — , Stalin
joga com todas essas cartas e mais uma, que não podia faltar na
grande estratégia staliniana: as contradições interimperialistas. Sta­
lin considera que, uma vez postos fora de combate o Japão e a
Alemanha, será inevitável o agravamento das contradições entre as
necessidades de expansão mundial do capitalismo norte-americano e
o propósito que anima a Inglaterra, a França, a Bélgica e a Holanda,
de conservar seus respectivos domínios coloniais.
A conferência de Potsdam, inaugurada a 17 de julho, ainda
se insere no contexto estratégico-militar vantajoso à União Soviética
que já mencionamos. E seus resultados parecem um progresso na
direção prevista por Stalin. No essencial, os americanos cedem no
que tange ao problema polonês — aceitando pequenas concessões
de Stalin — e se limitam a ligeiros protestos pelo desenvolvimento
dos acontecimentos em outros países da zona de projeção soviética.
Mas, às vésperas da conferência, tem lugar o evento — no sentido
mais amplo da palavra — que modificará substancialmente as pre­
missas objetivas do esquema staliniano e todo o curso da política
mundial. A 16 de julho, com efeito, a bomba atômica norte-ameri­
cana era testada com pleno êxito em Alamogordo. De repente, os
Estados Unidos já não precisavam do concurso soviético para acabar

442
com o [apão, como o demonstram Hiroshima (6 de agosto) e Na-
gasaki (9 de agosto). Tóquio capitula a 14 do mesmo mês. Pelo
acordo secreto de Ialta, a URSS deveria entrar em guerra com o
lapão no prazo máximo de seis meses após a capitulação do
Keich — ou seja, no mais tardar a 8 de agosto. Nesta data, a URSS
ainda não cumprira com o seu compromisso, mas contava com uma
boa justificação: o acordo de Ialta estipulava que a “restituição”
a URSS das bases e concessões de que o Japão se apropriara em
1905 devia ser ratificada pelo governo nacional chinês (Chiang
Kai-Chek) e este resistia a fazê-lo. Até 8 de agosto não o fizera, e
isto caía como uma luva para Stalin, posto que lhe permitia con­
servar na negociação com os Estados Unidos uma carta tão impor-
limte quanto a atitude soviética na guerra do Pacífico. Mas Hiroshi­
ma comprova a eficácia da nova arma. Stalin não espera mais a
ratificação do acordo de Ialta por Chiang Kai-Chek e, a 9 de agosto,
declara a guerra ao Japão. A 14 ficam em poder da União Soviética
não apenas os territórios previstos em Ialta, mas toda a Mandchúria
c a Coréia, até o paralelo 38.
O monopólio da bomba atômica incide decisivamente na política
de Washington. Truman não perde tempo para afirmar que os
Estados Unidos se converteram “na mais poderosa nação do mun­
do — provavelmente, a mais poderosa em toda a história” 18°. O
imperialismo norte-americano ruma decididamente para a dominação
mundial. O que não exclui a prudência, porque os generais ameri­
canos compreendem perfeitamente que se a bomba atômica pode
reduzir a Hiroshimas alguns centros soviéticos, dificilmente pode
impedir que o exército vermelho avance do Elba ao Canal da
Mancha. Em sua resposta ao discurso de Churchill em Fulton, Stalin
adverte que “uma nova campanha militar contra a Europa oriental”
acabaria mal para os intervencionistas: “ Pode-se afirmar com se­
gurança que seriam derrotados, como o foram há vinte e seis
anos” ,81. Washington leva a sério a advertência e Truman opta por
não aceitar os conselhos dos que preconizavam brandir a bomba
para forçar a URSS a recolher-se sobre suas fronteiras: opta pela
política de “contenção”, teorizada por Kennan.
No entanto, Stalin considera que continuam existindo premissas
objetivas para chegar ao desejado acordo com os Estados Unidos.
“Não creio no perigo real de uma nova guerra” — declara em se­
tembro de 1946. “Não considero a bomba atômica como a força

443
decisiva em que alguns políticos acreditam. As bombas atômicas
estão destinadas a assustar os ‘fracos’, mas não bastam para decidir
a sorte de uma guerra”; ademais, “o monopólio [da bomba] não
durará muito; estou convencido de que a colaboração internacional,
ao invés de se reduzir, vai ampliar-se”. Ou seja: a bomba não altera
essencialmente a correlação de forças e é uma vantagem transitória; a
solução é o entendimento. Um mês depois, à pergunta de se a tensão
entre a URSS e os Estados Unidos aumentou, responde com um ro­
tundo “não”. Em dezembro de 1946, à indagação que lhe faz o filho
de Roosevelt sobre a possibilidade de colaboração entre a URSS
e os Estados Unidos, replica: “Claro que é possível. Não só é possí­
vel, é a própria sabedoria e plenamente realizável”. A União Sovié­
tica — diz Stalin — está disposta a um acordo econômico de largo
alcance com os Estados Unidos, incluindo um desenvolvimento subs­
tancial do comércio e dos créditos americanos. A União Soviética
está disposta — e esta é a principal contrapartida que Stalin oferece
explicitamente — a “prosseguir numa política comum com os Esta­
dos Unidos nas questões do Extremo Oriente” 182.
A China, com efeito, é uma das principais cartas que Stalin
acredita ter ainda nas mãos. Depois da capitulação dos japoneses,
pressionara os comunistas chineses para chegarem a um modus vi-
vendi com Chiang Kai-Chek 183 e, na conferência de ministros de
Relações Exteriores dos “três grandes”, celebrada em dezembro de
1945, alcançara-se um acordo “ sobre a necessidade de uma China
unificada e democrática, sob a direção de um governo nacional, à
base de uma ampla integração dos elementos democráticos em todos
os organismos do mesmo governo e do fim das desordens civis”
(a expressão “elementos democráticos” aludia aos comunistas; por
“organismos do governo nacional” entendia-se o Kuomintang e seu
exército, no qual deveriam “integrar-se” as forças armadas comu­
nistas; por “desordens civis” compreendia-se a luta entre o Kuomin­
tang e os comunistas). Tratava-se, no fundo, de uma solução tipo
“união nacional”, no estilo francês ou italiano, que assegurasse a
direção à burguesia chinesa e um desenvolvimento democrático bur­
guês do país. Mas os comunistas chineses não se ativeram a esta
solução, apesar das pressões de Stalin, e Chiang Kai-Chek desenca­
deou em 1946 — com o apoio de aviões, técnicos e dinheiro norte-
americanos — uma ofensiva de grande envergadura contra o exér­
cito popular. Em finais de 1946 as coisas iam mal para Chiang e
seus protetores, e a oferta que Stalin faz na entrevista com o filho

444
»lr Roosevelt — “prosseguir numa política comum com os Estados
Unidos nas questões do Extremo Oriente” — tem um sentido ine­
quívoco: influir nos comunistas chineses para chegar a uma solução
da guerra civil que satisfaça aos interesses “comuns”, americanos e
soviéticos. Mas Washington acredita que está diante de um jogo
duplo de Stalin — os americanos não podem conceber que os comu­
nistas chineses tenham uma política independente. Mas esta era a
n ulidade. Num documento interno de abril de 1946, dirigido ao
núcleo restrito da direção do PCC, Mao analisa a situação interna­
cional e considera possível um compromisso URSS-Estados Unidos.
Mas este compromisso, observa, “não exige dos povos dos diferentes
países do mundo capitalista que, por conseqüência, firmem compro­
missos em seu próprio país”. O objetivo perseguido pelas forças
leacionárias, acrescenta, é “destruir resolutamente todas as forças
revolucionárias e preparar-se para, mais tarde, destruir aquelas que
sobreviverem”. Em face desta situação, “as forças democráticas po­
pulares devem aplicar o mesmo princípio em relação às forças rea­
cionárias”. Como esclarece uma nota explicativa da edição chinesa,
neste documento Mao enfrenta as posições de “alguns camaradas”
que vacilavam em responder com a guerra revolucionária à ofensiva
desencadeada pelo bloco Estados Unidos-Kuomintang 184. É de supor
que os “camaradas” aludidos propusessem a linha de Stalin, refle­
tida no acordo das três potências, de dezembro de 1945.
No biênio que vai de Potsdam ao anúncio do Plano Marshall,
a política de “contenção”, ao amparo do guarda-chuva atômico e
sem poupar dólares, vai obtendo os seus primeiros resultados. A
Grécia é palco de uma repressão terrorista que obriga os comunistas,
no decurso de 1946, a enveredar novamente pelo caminho da luta
armada. Na França e na Itália, progride aceleradamente a recons­
trução do aparato militar e civil do Estado capitalista e o movimento
operário — como vimos — vai perdendo posições. Moscou tem que
retirar suas tropas do Norte do Irã e não adquire a base naval que
reclama nas costas turcas, junto de Dardanelos. No Extremo Oriente,
os soviéticos são excluídos de toda intervenção no Japão, convertido
em protetorado americano. Mas é na Alemanha que os aliados asses­
tam o golpe mais sensível aos planos soviéticos. Moscou não con­
segue impor o controle do Ruhr pelas quatro potências, que lhe
permitiria hipotecar consideravelmente o poder efetivo dos aliados
em suas zonas de ocupação e preparar a ulterior extensão da “in­
fluência” soviética ao conjunto da Alemanha (neste aspecto, Stalin

445
contara com a impotência militar da Inglaterra e da França e com
a breve evacuação das tropas americanas, como Roosevelt lhe dera
a entender em Ialta. Mas, sob a proteção do “guarda-chuva”, desde
Potsdam Truman orientou-se para fazer da Alemanha ocidental a
principal base européia do imperialismo americano). Em março de
1947 se proclama a “doutrina Truman” que, de imediato, serve de
justificação aos americanos para instalar-se na Grécia e na Turquia,
dominar o Oriente Próximo e o Mediterrâneo oriental, substituindo
nesta zona estratégica o gendarme inglês. Com o Plano Marshall,
Washington assenta as bases para a rápida reconstrução do poten­
cial econômico alemão e completa a subordinação dos governos bur­
gueses da Europa ocidental, ao mesmo tempo em que abre um amplo
mercado para a indústria americana. Em Paris, Roma e Bruxelas
cumprem-se apressadamente as ordens do grande benemérito, de-
mitindo-se os ministros comunistas e colocando-se, sem cerimônias,
um ponto final no “avanço para o socialismo dentro da legalidade
democrática e parlamentar”. E Washington não descarta, até, a pos­
sibilidade de atrair, com o aceno dos dólares, algumas das democra­
cias populares. A acolhida favorável que, num primeiro momento,
os governos de Praga e Varsóvia dão às ofertas do Plano Marshall
indica que esta pretensão tinha algum fundamento. Entretanto, ima­
ginar que Stalin cederia aí era conhecê-lo mal.
No verão de 1947, Stalin se vê colocado numa situação mun­
dial que o Estado soviético sempre tentara evitar — e o conse­
guira — desde os tempos de Lênin: a constituição de um bloco
anti-soviético de todos os Estados capitalistas. E com a agravante
de que, desta vez, o bloco se constituía sob a hegemonia de um
Estado que, por sua potência global, não tinha precedentes histó­
ricos. Era, sem dúvida, o naufrágio da “paz” que Stalin buscara,
da “paz” que consagrasse a divisão das “esferas de influência” à
base de um acordo mundial soviético-americano. Era o naufrágio
da “paz” fundada na renúncia à luta revolucionária e na prática da
colaboração de classes na área mundial regida pelo capitalismo,
a fim de possibilitar a colaboração dos dois “supergrandes” e de
assegurar a pacífica “construção do comunismo num só país” (em
setembro de 1946, pela primeira vez, Stalin formula a tese de que
“o comunismo num só país é perfeitamente concebível, sobretudo
num país como a União Soviética” 185).
Com seu costumeiro pragmatismo, Stalin projetara sobre a nova
realidade mundial que emergia da guerra o papel desempenhado

446
I I jis contradições interimperialistas no período entre as duas guer-
ins mundiais e no curso da segunda conflagração. A pedra angular
tia estratégia de Stalin, nestas duas fases, fora, como vimos, a explo-
i. m i o de tais contradições e a subordinação total, a este fator, da
lula revolucionária no interior dos Estados capitalistas e das colônias.
I >ii ponto de vista dos interesses do Estado soviético, compreendidos
numa ótica nacionalista, esta estratégia revelou grande eficácia ope-
rtidonal. Mas a segunda grande crise bélica do sistema imperialista,
a derrota do fascismo e a liquidação do imperialismo alemão e japo-
nês se traduziram — e não podia ser diferente — num novo auge
ievolucionário nas metrópoles capitalistas e nas colônias. Mesmo
iinvado pela política staliniana aplicada pela maior parte dos partidos
i iimunistas — a política condensada no “testamento” da IC —, este
auge foi suficiente para provocar o alarme de todas as burguesias,
I><ir mais democráticas e antifascistas que fossem, e impulsioná-las
il união, acima das contradições nacionais e coloniais, contra o pe­
rigo revolucionário. Por outro lado, o formidável fortalecimento
econômico e militar dos Estados Unidos — a bomba atômica era a
i \pressão, o produto, da sua potência econômica e técnica — pro­
porcionava a base e o centro capazes de aglutinar todas as forças
do capitalismo, tanto países vencedores quanto vencidos, numa fren-
ic mundial contra-revolucionária. Conseqüentemente, veio abaixo a
previsão staliniana de que, postos fora de combate o Japão e a
Alemanha — as potências que haviam tomado a iniciativa da re­
visão do velho statu quo colonial — , colocar-se-ia em primeiro
pluno, com toda a virulência, a luta entre os Estados Unidos e os
I slados colonialistas europeus.
O freio que a política de Stalin impôs ao movimento revolucio­
nário foi insuficiente para impedir que o auge operário e democrá-
Iico da Libertação assustasse à burguesia dos dois lados do Atlântico,
mas foi suficiente para limitá-lo de tal modo que, inclusive onde
alcançou a maior envergadura dentro do capitalismo desenvolvido
(frança, Itália), ele se revelou impotente não só para determinar
uma mudança política radical, mas até para evitar que tais Estados
se integrassem no bloco anti-soviético, sob a liderança americana.
Ou seja: a subordinação dos partidos comunistas à estratégia stali-
iliana acabou tendo efeitos contrários às razões com que pretendia
justificar-se: voltou-se contra a segurança do Estado soviético.

447
Interrogações e conjecturas

As avaliações de certos historiadores e políticos ocidentais,


advogados do “mundo livre”, que se comprazem em destacar as
“artes enganosas” empregadas por Stalin para garantir a zona de
projeção soviética e outros objetivos da sua estratégia mundial, e ao
mesmo tempo idealizam a política rooseveltiana — e mesmo a
churchilliana —, tanto revelam falta de objetividade quanto ingra­
tidão. Se o “mundo livre” não perdeu na grande crise alguns dos seus
mais velhos e reputados adornos, em larga medida deve-o a Stalin.
Como se sabe, nenhuma hipótese sobre o rumo que a história po­
deria ter seguido — em lugar do rumo que efetivamente seguiu — é
susceptível de demonstração conclusiva. E não teria fundamento
afirmar que se o chefe soviético — e chefe supremo do exército
comunista mundial — incluísse a revolução européia entre os obje­
tivos prioritários da sua política de guerra ela triunfaria indefecti-
velmente. Mas o que se pode afirmar com todo o fundamento,
porque está inscrito nos fatos e em cada passo da política stali­
niana — como tentamos mostrar na análise precedente —, é que
Stalin, secundado pelos líderes ocidentais que aplicaram fielmente a
sua política, deu uma inestimável contribuição à solução do pro­
blema que, desde 1939, se colocou aos chefes do capitalismo anglo-
americano: como derrotar o seu temível rival alemão preservando,
simultaneamente, os centros vitais do capitalismo europeu do perigo
revolucionário.
Como já vimos anteriormente, Trótski tinha uma visão excessi­
vamente otimista da conjuntura revolucionária que se criaria na
Europa em conseqüência de um novo conflito mundial, otimismo de­
rivado da sua concepção acerca do estado do capitalismo (esgota­
mento da sua capacidade histórica para desenvolver as forças produ­
tivas, etc.). Mas a previsão de que a segunda guerra mundial pode­
ria ter um desenlace revolucionário em escala européia não era
uma elucubração extremista. Expressava uma possibilidade real, de
que a burguesia teve consciência desde o primeiro dia do conflito.
Esta possibilidade não advinha de o sistema capitalista ter chegado
à situação limite suposta por Trótski (reincidindo no erro leniniano
dos anos da primeira guerra mundial), mas provinha do método a
que o capitalismo se via obrigado a recorrer para “reajustar” as suas
estruturas e passar a uma nova fase de desenvolvimento.

448
A segunda guerra mundial foi a crise mais grave que o sis-
h 11ui i npilalista e imperialista conheceu em toda a sua história. E, ao
limimi tempo, revelou de modo espetacular — no próprio curso da
puri iii e, sobretudo, nos seus desdobramentos — a vitalidade con-
loivmln pelo sistema, globalmente considerado: o enorme potencial
iniilido no seu aparato industrial, técnico e científico e a sua capa-
i Idmlc pura manipular as massas e mantê-las submetidas aos valores,
Ideologias e concepções políticas necessárias à sobrevivência do sis-
Irinii. Demonstrou a inteligência política das velhas classes dirigentes
i ii sim habilidade para manobrar, fruto de uma secular experiência.
I mito como a guerra de 1914 e a crise econômica de 1929, a segunda
guerra mundial mostrou que a agonia do “capitalismo agonizante”
c longa (a dilatada duração desta agonia ofereceu tempo e oportu­
nidade ao marxismo oficial para introduzir nela uma sábia periodi­
zação. Começou-se por fundar a tese de que, com a guerra de 1914
e a revolução russa, abrira-se a “crise geral” do capitalismo. Depois
da segunda guerra mundial, e diante do fato óbvio de que o mori­
bundo não morrera, decidiu-se que o período entre as duas guerras
n a apenas a “primeira etapa” da “crise geral”, à que se seguiu a
"segunda etapa”, iniciada com a guerra de 1939-1945. Em 1960
resolveu-se que terminara a “segunda etapa”, inaugurando-se uma
"terceira”. Quantas “etapas” ainda serão necessárias?).
Mas esta vitalidade global incluía estruturas esclerosadas que
entravam em contradição aguda com a dinâmica do sistema, pola­
rizada fundamentalmente em três centros nevrálgicos: o alemão, o
japonês e, sobretudo, o americano. O controle do velho e estagnado
capitalismo anglo-francês sobre extensas áreas de exploração colonial,
ussim como sobre a Europa atrasada do Leste e do Sul, representava
um grave obstáculo à potencialidade expansiva dos centros citados,
mas o capitalismo anglo-francês, ameaçado em seus mais caros inte­
resses, não estava disposto a ceder sem luta. Para o capitalismo ame­
ricano, que dispunha de uma área de expansão tão importante como
a América Latina, que podia penetrar mais facilmente nos domínios
coloniais anglo-franceses, a questão não se colocava em termos béli­
cos. No entanto, para o capitalismo alemão e o japonês a única
alternativa era a muito tradicional da guerra. Do ponto de vista das
cinco principais potências capitalistas, a segunda guerra mundial,
como a primeira, foi uma guerra pelos mercados, as colônias, as
matérias-primas e, ao mesmo tempo, significou o trânsito do sistema
a uma nova fase: o capitalismo monopolista de Estado. As três

449
potências que iam na vanguarda desta nova fase do capitalismo
não tinham apenas a ambição de integrar o espaço anglo-francês
(mais os domínios coloniais belgas e holandeses) — propunham-se
também incorporar ò espaço soviético. O fato de os Estados Unidos
procurarem alcançar tais objetivos através de alianças com suas víti­
mas, ao passo que seus dois rivais operavam mediante a conquista
militar, conferia grande vantagem política e militar aos primeiros,
mas não modificava substancialmente o caráter dos seus objetivos.
Depois da experiência dos anos 1917-1920, a burguesia de todos
os países estava pienamente consciente dos riscos implícitos na terrí­
vel operação que a lógica infernal do sistema impunha mais uma
vez. E especialmente quando, além do Estado soviético e seu exér­
cito vermelho, existia a Internacional Comunista. É verdade que, às
vésperas da guerra, os movimentos revolucionários europeus estavam
derrotados e reduzidos à clandestinidade em quase todos os países
do continente — mas como as massas reagiriam sob os efeitos de
uma nova matança? Os núcleos comunistas sobreviventes não se­
riam capazes de aproveitar a situação? Em fevereiro de 1917, tam­
bém os bolcheviques não eram mais que um punhado de revolucioná­
rios. . . Cada burguesia considerava estas incógnitas com ótica dis­
tinta, conforme a situação interna do país. O capitalismo alemão
sentia-se seguro, uma vez liquidado o movimento operário e o
partido comunista. Acreditava que a sua vitória militar permitiria
asfixiar com análogos procedimentos todo germe revolucionário no
resto da Europa. Semelhante era a ótica do capitalismo japonês, que
também pudera reduzir à impotência o seu movimento operário.
Sobre outras bases — a integração reformista do proletariado num
grau sem precedentes no mundo capitalista —, os Estados Unidos se
encontravam em condições mais vantajosas que qualquer outra po­
tência para enfrentar a prova da guerra. A burguesia inglesa não
podia se sentir tão segura, como já o revelara a grande greve de
1926, mas de todas as formas o trabalhismo representava uma sólida
garantia. Bem diferente era a situação francesa. Era evidente que,
em toda a área do capitalismo industrial, a França constituía o elo
mais fraco. À esclerose das suas estruturas econômicas e políticas
somava-se a nítida radicalização do proletariado francês, manifestada
na explosão social de 1936 e na posição hegemônica conquistada pelo
Partido Comunista no movimento operário, assim como a irradiação
da influência comunista sobre importantes núcleos da intelectuali­
dade e de outras camadas sociais. A exemplar moderação do Partido

450
Comunista francês no período da Frente Popular não podia bastar
I<11111 Iranqüilizar a burguesia — tratava-se de uma tática episódica ou
*li uma profunda mutação do partido? A Itália, que, sob o fascismo,
i \pcrimentara um desenvolvimento capitalista significativo, consti-
luíu, do ponto de vista da sua solidez burguesa, uma incógnita. Es­
lava claro que não oferecia as garantias alemãs, mas tampouco
abrigava, visivelmente, um dado tão inquietante como o comunismo
francês.
Fora da área capitalista industrial, multiplicavam-se as situações
susceptíveis de desembocar em crises revolucionárias sob o impacto
da guerra mundial: colônias asiáticas, repúblicas latino-americanas,
I slados atrasados do Leste e do Sul da Europa. Mas a ameaça
mais grave, e mais previsível, para o capitalismo mundial, a partir
da entrada da URSS na guerra, era a possível convergência da derrota
fascista e da vitória soviética com uma revolução proletária na
I rança, abrindo um processo que desaguaria na revolução em escala
continental. A burguesia anglo-americana tinha plena consciência do
risco e toda a sua política, planos estratégicos e medidas operacio­
nais, ao longo do conflito, estiveram profundamente marcados por
esta ameaça, particularmente na fase final da contenda, quando a
presença de uma União Soviética prestes a obter a vitória, convertida
na primeira potência militar continental, afirma-se sem deixar mar­
gem a dúvidas, quando a Resistência francesa aparece como uma
força considerável, orientada em grande parte pelos comunistas e
quando, ademais, a eventualidade de um novo rumo revolucionário
se delineia nitidamente na Itália e é um fato na Iugoslávia e na
Grécia.
Americanos e ingleses coincidiam plenamente em dois objetivos:
derrotar seus rivais e salvar a Europa capitalista industrial da
revolução proletária. Coincidiam subsidiariamente, como é lógico, em
prevenir e, na ocasião aprazada, sufocar qualquer ameaça revolu­
cionária em outros pontos do globo, particularmente na China. Po­
diam discordar no tocante aos métodos e vias para alcançar tais
objetivos, mas concordavam no essencial. Os interesses em conflito
apresentavam-se em face da questão colonial — mas se apresentavam
como um problema para o futuro, não imediato. A comunidade de
interesses em relação aos objetivos prioritários, somada à estreita
dependência financeira e militar em que se encontrava o vetusto
império inglês diante da superpotência americana, proporcionava à
aliança anglo-americana sólidas vinculações. O problema difícil que

451
se colocava residia na contradição existente entre os seus dois obje­
tivos prioritários, uma vez que a derrota da Alemanha era uma das
condições essenciais da revolução européia. E a própria lógica da
guerra antifascista e libertadora punha os povos do continente na
via da revolução. Problema análogo se colocava à aliança anglo-
americana na guerra do Pacífico, especialmente em relação à China.
Mas, no espírito dos dirigentes de Washington e Londres, o pro­
blema oriental não aparecia em termos tão dramáticos como o pro­
blema europeu — àquela época, subestimavam as possibilidades dos
comunistas chineses e de outros movimentos revolucionários asiáticos.
O imperativo de prevenir a revolução européia naturalmente
impulsionava os governantes anglo-americanos ao compromisso com
a Alemanha e, como se sabe, eles fizeram todo o possível nesta
direção até a deflagração da guerra. Mas esta não era a lógica do
imperialismo alemão, que considerava a vitória militar no continente
europeu e nas Ilhas Britânicas como capaz de matar dois pássaros
com um só tiro: eliminar por tempo indeterminado toda ameaça
revolucionária na Europa e apropriar-se das bases econômicas e polí­
ticas para a sua ulterior expansão. Este programa do imperialismo
alemão representava para os anglo-americanos uma ponderável amea­
ça, não menor — e, sobretudo, mais imediata e incontornável — que
a eventual revolução européia. Colocada ante a inexorável necessi­
dade de derrotar a Alemanha para proteger os seus interesses vitais,
a aliança anglo-americana teve que explorar outra via susceptível
de conciliar a derrota alemã com a salvaguarda do capitalismo eu­
ropeu: a via de um compromisso de largo alcance com o Estado
soviético e o movimento comunista. A sua possibilidade se esboçara
no período da Frente Popular, mas a primeira comprovação signifi­
cativa e alentadora para o capitalismo de até onde os chefes sovié­
ticos estavam dispostos a chegar nesta via foi o pacto germano-sovié­
tico, em cujo altar o Kremlin não vacilara em impor aos partidos
comunistas o abandono da tática antifascista. Não obstante, tam­
pouco esta experiência era conclusiva, porque o governo soviético
fora ao pacto com a Alemanha em condições de debilidade — ela
não permitia prever qual seria o seu comportamento numa posição
de força, no contexto de uma derrota alemã. De qualquer forma,
aos anglo-americanos não restava outra solução que tentar esta via,
combinando-a, é claro, com uma astúcia elementar: procurar que
a União Soviética se desgastasse o mais possível na guerra com a
Alemanha. A experiência demonstrou, como vimos, que o compro-

452
mr o buscado por Londres e Washington era perfeitamente viável.
( Irions a ele, puderam superar a contradição latente entre seus prin-
t ipnis objetivos europeus: a derrota da Alemanha e a prevenção da
revolução continental. Se tiveram menos sorte na Ásia, não foi por
culpa de Stalin.

Desde 1943, a possibilidade de uma solução revolucionária para


.1 guerra antifascista no cenário europeu se delineia nitidamente em
quatro países: França, Itália, Iugoslávia e Grécia. E, ao mesmo
lempo, se perfila a derrota da Alemanha e o papel decisivo que
lida teriam os exércitos soviéticos, cuja ofensiva geral se desenvolve
irresistivelmente, naquele verão, em todas as frentes. É o ano dos
gritos de alarme da grande imprensa americana e inglesa, o ano em
que os chefes da coalizão anglo-americana reclamam a liquidação
da Internacional Comunista e a clara delimitação, pelos partidos
comunistas, de uma política que exclua a perspectiva revolucionária.
O ano em que Stalin aceita sem resistência estas exigências, porque
não afetam seus objetivos estratégicos e políticos — podem, pelo
contrário, servir de moeda na grande negociação com os aliados. Os
comunistas iugoslavos resistem às diretivas de Moscou e os gregos
vacilam, para fazer, no decurso de 1944, concessões à pressão sovié­
tica — concessões que lhes seriam fatais. Thorez e Togliatti aceitam
incondicionalmente a linha staliniana, que se adapta à evolução
neo-reformista das concepções políticas de ambos, iniciada à época
da Frente Popular. E não encontram oposições nos núcleos dirigentes
dos dois partidos, formados também nestas concepções. Desde então,
a possibilidade de um desenvolvimento revolucionário na França e
na Itália fica gravemente comprometido — como ficaria na Rússia
de 1917 se as Teses de Abril leninianas fossem derrotadas no par­
tido bolchevique: sob uma forma ou outra, a revolução burguesa se
consolidaria, mas a revolução proletária estaria frustrada; os histo­
riadores e os revolucionários continuariam discutindo hoje se aquela
possibilidade existiu ou se Lênin era um aventureiro esquerdista —
como acontece, um quarto de século depois, com os casos francês
e italiano186.
O simples fato de o debate prosseguir e estar longe de uma
conclusão é um sinal eloqüente de que a famosa possibilidade apa­
rece com suficiente consistência à análise histórica. Naqueles anos,
o que apavorava a burguesia francesa e italiana e seus tutores anglo-
americanos não eram fantasmas! A Itália burguesa, saída do Risor-

453
gimento, não conhecera crise nacional tão grave como a aberta em
1943, e o mesmo se pode dizer da França desde a Comuna. A
catástrofe nacional de 1940 revelou à luz do dia a debilidade do
capitalismo francês. O Estado submergiu, substituído por uma cari­
catura estatal a serviço do ocupante. As calamidades da guerra se
entrecruzaram com a humilhação da vergonhosa derrota e da ocupa­
ção alemã. E não havia dúvidas sobre as causas: estruturas sócio-
econômicas esclerosadas, parasitismo colonial e atraso técnico, parla­
mentarismo apodrecido e impotente. As classes dirigentes, todas as
suas frações políticas, cobriram-se de descrédito. Sobre elas recaíam
inteiramente as responsabilidades pela catástrofe. E o mais grave,
para a burguesia francesa, era o nítido deslocamento para a esquerda
que, no curso da luta contra o ocupante, se opera entre o prole­
tariado e outras camadas sociais, reflexo de uma tomada de cons­
ciência das causas e das responsabilidades da crise. Apesar da sua
desorientada política entre 1939-1941, as massas se direcionam rapi­
damente para o Partido Comunista francês e este conquista posições
hegemônicas na Resistência, porque as camadas sociais mais ativas
e avançadas, expressando a tendência ainda confusa das massas,
buscavam uma saída radical para a crise do regime burguês. O
processo italiano era análogo. À responsabilidade do regime fascista
na catástrofe nacional estava indissoluvelmente ligada a responsa­
bilidade dos grandes industriais e latifundiários que, em quinze anos
de ditadura, revelaram-se ineptos para superar a principal debilidade
do capitalismo italiano, o subdesenvolvimento do Mezzogiorno, e
que lançaram o país nas aventuras coloniais e na guerra imperialista.
Mas, ao mesmo tempo, a ditadura fascista era o resultado e a prova
da impotência da democracia burguesa italiana emergente do Risor­
gimento. As classes dirigentes da península fracassaram sob ambas
as formas políticas. E o formidável movimento de massas que se
segue à queda de Mussolini, sua clara orientação para a esquerda
e a fulgurante progressão do Partido Comunista italiano refletiam,
de forma ainda mais explícita que na França, a tendência a uma
solução radical, revolucionária, para a crise nacional.
Na história dos dois países, jamais o movimento real, de modo
tão conclusivo, pusera objetivamente em questão o regime burguês;
jamais as massas trabalhadoras, as camadas intelectuais, a sociedade
em seu conjunto vivera uma experiência tão rica, demonstrativa da
necessidade de uma nova economia, um novo Estado, uma nova
classe social dirigente. Sem perder a sua razão de ser, podia o

454
l'ut lido comunista deixar de propor a alternativa socialista? Podia
ilclxur passar semelhante conjuntura sem levar ao plano da teoria
e da ação política a crítica que o movimento real inscrevia nos
latos? Aqui, há que distinguir dois aspectos do problema. Um
primeiro, a utilização intensiva da situação objetiva, da experiência
viva, para elevar a consciência política das massas e criar uma
vontade lúcida de transformação revolucionária — a elaboração de
nina estratégia e uma tática orientadas à organização e à preparação
das forças susceptíveis de impor a transformação, tendo como obje­
tivo central a tomada do poder, não pelo partido comunista, mas pelo
conjunto das forças sociais e políticas que se situassem no campo
da alternativa socialista. A ineludível obrigação de qualquer partido
revolucionário marxista, numa situação de profunda crise nacional,
como a criada na França e na Itália na primeira metade dos anos
quarenta, era proceder deste modo — independentemente do outro
aspecto do problema, a saber, se esta ação poderia ou não desem­
bocar, naquele período, na vitória revolucionária. E pela simples
razão de que esta questão só poderia ser respondida no próprio curso
da ação, em função de que, sob os efeitos desta ação e de outros
fatores se criasse, ou não, a conjuntura concreta propícia (para usar
da linguagem habitual, a correlação de forças) para dar o passo decisi­
vo: a tomada do poder (em abril de 1917, ninguém podia assegurar —
e nem Lênin o afirmou em qualquer momento — que se criariam
inexoravelmente as condições suficientes para a tomada do poder
pelos bolcheviques. A política de abril, por si só, não determinou
a emergência de tais condições em cutubro, mas sem ela tais con­
dições não se teriam criado). Os dirigentes máximos dos partidos
comunistas da França e da Itália, que, da União Soviética, sob o
imediato controle de Stalin, determinaram a linha geral dos dois
partidos durante a segunda guerra mundial, “resolveram ’ a questão
desde o primeiro dia, ou seja, desde o dia em que os Estados Unidos
e a Inglaterra se converteram em aliados da URSS: na França e na
Itália não haveria solução socialista. A meta tinha que ser a res­
tauração da democracia burguesa.
Uma submissão desta magnitude, que negava na prática o que
os comunistas acreditavam ser e continuavam proclamando que eram,
necessitava de justificações teóricas e políticas do mesmo porte. En­
quanto a guerra durou, a justificação principal, na qual confluíam
todas as outras que se foram aduzindo segundo as circunstâncias, se
reduzia ao seguinte esquema: a) a vitória da Alemanha hitleriana

455
significaria a destruição da União Soviética e a liquidação, por tempo
indeterminado, do movimento operário europeu; b) conseqüente-
mente, o objetivo número um tem que ser a derrota da Alemanha;
c) mas, para assegurar esta derrota, é condição sine qua non preser­
var a solidez da coalizão anti-hitleriana; d) colocar a perspectiva
socialista, propor a tomada do poder pelo proletariado conduziria,
inevitavelmente, ao enfrentamento com os aliados e poria em risco
a vitória; é) conseqüentemente, nesta etapa é impossível colocar a
alternativa socialista. Esta argumentação se utilizava como irrespon­
dível, como algo dado no domínio do senso comum. Somente inve­
terados esquerdistas, trotskistas e outros irresponsáveis, quando não
agentes do inimigo disfarçados — os “hitlerotrotskistas”, no léxico
de Thorez —, podiam questionar verdades tão evidentes. Já nos
referimos aos motivos pelos quais a generalidade dos quadros comu­
nistas, particularmente os franceses e italianos, estavam predispostos
a aceitar esta lógica do senso comum. Suas proposições iniciais, a
e b eram, claro, indiscutíveis; mas a proposição c, de que derivavam
as duas últimas, incluía um pressuposto que estava longe de ser
indiscutível: o pressuposto de que a coalizão anti-hitleriana — en­
tendida como aliança dos Estados Unidos e Inglaterra com a URSS,
como aliança das burguesias européias rivais da Alemanha com o
movimento operário e antifascista — era a condição sine qua non
da vitória. Ela excluía a possibilidade de que, no curso da guerra,
pudesse criar-se uma nova combinação de forças, baseada na aliança
da União Soviética com o movimento de libertação dos povos euro­
peus, capaz de assegurar a derrota da Alemanha e também de frus­
trar os planos dos imperialistas anglo-americanos. E a exclusão aprio­
ristica desta possibilidade se expressava na renúncia à política que
podia contribuir para criá-la. Como reconhece — conforme vimos
no lugar oportuno — a própria historiografia soviética, a aludida
possibilidade concretizou-se de maneira tangível em finais de 1943
e inícios de 1944, e o desembarque aliado no continente não era
necessário para assegurar a derrota alemã. A sua finalidade principal
foi salvar o Ocidente europeu da revolução. Mas isto seria possível,
se tivesse sido outra a política dos partidos comunistas da Itália e
da França? Se os comunistas de ambos os países se tivessem com­
portado como os iugoslavos?
Na Iugoslávia, desde 1941, demonstrou-se praticamente a possi­
bilidade de manter a luta em duas frentes; contra o inimigo número
um, o ocupante fascista e seus quislings, e contra o aliado-inimigo,

456
ijiie, no curso da guerra, tentava criar as bases da restauração do
h’glmc burguês-latifundiário e do enfeudamento do país ao impe-
• I mII miio anglo-americano. Simultaneamente, esta tática demonstrou
nau .cr menos eficaz no aspecto da guerra anti-hitleriana que a jus-
iill< .kI.i na lógica do senso comum: a envergadura das operações rea­
li,.. Lr, pelo exército de libertação iugoslavo contra os invasores
,operou largamente a ação das Resistências francesa e italiana. Pa-
iii.luxalmente, a tática do senso comum voltava-se contra a sua mo­
li \ ...,.ui aparente: conseguir a máxima eficácia na luta contra o
... tipimte. Renunciando, de fato, a dar um conteúdo revolucionário
.! guerra de libertação nacional; recusando o enfrentamento com a
politica dos aliados e da burguesia nacional, os partidos comunistas
.Li I rança e da Itália não apenas facilitavam àqueles e àquela a
i. .uiuração da ordem burguesa — também renunciavam a mobilizar
.oiUra o invasor energias e forças populares que somente o fervor
H-volucionário, a consciência de lutar pela emancipação social, pelo
poder dos trabalhadores poderiam dinamizar. A lógica do senso
comum conduzia inevitavelmente os partidos comunistas da França
e da Itália — como vimos anteriormente — a subordinarem-se eles
mesmos, e a subordinar o proletariado e todas as forças de esquerda,
à direção dos aliados e da ala burguesa da Resistência, cuja política
de guerra consistia em reduzir ao mínimo possível a participação
das forças operárias e populares. A “união nacional”, louvada como
mais poderosa por ser mais ampla, resultava, na prática, mais débil
e mais estreita que a unidade nacional revolucionária criada na
Iugoslávia.
É desnecessário dizer que o tipo de enfrentamento e o modo de
articulá-lo com a ação comum variariam com a evolução da guerra
no plano europeu e mundial e no plano de cada país. Deviam ser
políticos, recusando na medida do possível o confronto armado,
sobretudo em condições desvantajosas para as forças revolucionárias.
Os iugoslavos deram uma lição de inteligência política com a sua
maneira de entender a dialética do enfrentamento e da ação comum,
combinando a luta política aberta com as ações conjuntas quando
isto era viável, os confrontos armados com os tchetniks e as negocia­
ções com o governo real e os aliados. Ao mesmo tempo em que cria­
vam o seu próprio poder e forjavam um exército revolucionário,
fomentavam na velha raposa inglesa a ilusão de que poderia alcançar
“por bem” o que não conseguia obter “por mal”. E até conseguiram

457
que os aliados lhes fornecessem armas antes que o fizessem os
soviéticos.
O problema, para os comunistas italianos e franceses — na
hipótese de que tivessem desejado ter uma política revolucionária
—, não era, obviamente, imitar a tática iugoslava, mas elaborar a
sua própria tática de enfrentamento e ação comum. O exemplo
iugoslavo, porém, revelava algumas das condições essenciais de uma
tática deste gênero. Em primeiro lugar, a constituição de forças ope­
rárias e antifascistas de esquerda como movimento independente,
com seu próprio programa e suas forças armadas totalmente autô­
nomas. Em segundo lugar, a criação de um novo poder popular no
curso mesmo da guerra anti-hitleriana, propiciando, nele, na medida
em que as circunstâncias o fossem permitindo, a participação direta
das massas. Outros aspectos importantes poderiam ser assinalados —
mas já os indicamos na parte dedicada à análise da luta iugoslava.
Por acaso a situação francesa e italiana impedia algo semelhante?
É significativo que, em face da crítica iugoslava na reunião
de fundação do Centro de Informação dos Partidos Comunistas, os
dirigentes comunistas franceses e italianos não tenham sequer ten­
tado demonstrar esta impossibilidade. Saíram-se pela tangente, argu­
mentando que, se procurassem tomar o poder, os exércitos anglo-
americanos teriam intervindo para impedi-lo. Era uma saída pela tan­
gente porque a crítica não estava dirigida contra o fato de não
haverem tentado tomar o poder, mas contra o fato de haverem
praticado, desde 1941, uma política que implicava, a priori, a re­
núncia a tal perspectiva, uma política que propunha o objetivo con­
trário, a restauração da democracia burguesa — uma política de
subordinação aos aliados burgueses. O perigo da intervenção dos
exércitos anglo-americanos não se colocou na França até o verão de
1944. O que impediu, nos três anos precedentes, que o Partido Co­
munista francês tivesse uma política orientada para preparar ideo­
lógica, política e organizacionalments a classe operária para a luta
por uma solução socialista para a crise inédita da França burguesa?
Por que o partido comunista, ao invés de contribuir para a subor­
dinação da Resistência à direção gaullista e ao velho sistema de
desacreditados partidos burgueses, não apoiou e liderou as correntes
opostas que se expressavam no bojo da Resistência? Por que não
lutou, desde o primeiro dia, pela criação de um novo poder, nascido
da Resistência no interior, baseado fundamentalmente nas massas
trabalhadoras, para fazer frente à restauração do velho poder re-

458
pi rscntado pelo gaullismo? O fato de que, apesa, da política arqui-
oportunista do PCF, nestes três anos a Libertação tenha tido as ca-
im lerísticas que teve; de que, numa série de regiões, como o reco­
nhecem historiadores não comunistas, as forças operárias e de es-
qiierdu tivessem o poder ao alcance das mãos; de que as massas
iil luíssem ao Partido Comunista francês e apoiassem as correntes de
esquerda no Partido Socialista, nos sindicatos e em outras organiza­
ções — estes e outros fatos do período demonstram a profundidade
do processo revolucionário (as massas acreditavam, então, que o PCF
eia o partido da revolução) e retrospectivamente põem em evidência
que, com outra política no período precedente, o nível de consci­
ência do movimento, o seu espírito combativo e a sua vontade de
impor uma mudança radical teriam chegado muito mais longe. Mas,
purtindo do nível efetivo que o movimento alcançou nos meses
seguintes à Libertação, não existia a possibilidade de impulsioná-lo
para uma perspectiva revolucionária? Esta é a interrogação a que
os responsáveis do PCF sempre fugiram. Às críticas de esquerda
respondiam, e continuam respondendo, com o clichê de que não
existiam condições para a tomada do poder187. Mas a questão não
reside neste ponto. A questão reside em que o partido praticou uma
política orientada à frustração de toda possibilidade para a criação
das condições para a tomada do poder (não apenas por ele, mas
pelo conjunto dos setores revolucionários da Resistência). Praticou
a política dos bombeiros ante o menor sinal de incêndio. No período
de quase um ano, transcorrido entre a Libertação e a capitulação da
Alemanha, ninguém — exceto o partido comunista e os sindicatos
controlados por ele — podia impedir o desenvolvimento impetuoso
do movimento de massas. Em face da política gaullista de liquidação
dos comitês de libertação e das milícias patrióticas, dos embriões de
duplo poder nascidos da Resistência, o PCF tinha a possibilidade
de recorrer às greves e ocupações de fábricas, às manifestações de
massa e outras formas de ação. Estava nas suas mãos impulsionar a
transformação dos comitês de libertação em órgãos diretos das mas­
sas, apoiados por órgãos de poder operário nas empresas. O partido
podia promover movimentos deste tipo e propiciar a unidade de
toda a esquerda em torno de um programa de democracia socialista.
A questão do poder só poderia colocar-se concretamente no contexto
de uma política orientada para fortalecer o movimento de massas,
para dissipar as suas ilusões no gaullismo e nos aliados (fomentadas,
no período precedente, pelo próprio partido), etc. Mas a política do

459
PCF foi a que vimos: cooperar com de Gaulle na liquidação da
Resistência, dizer à classe operária que devia apertar o cinto para
restaurar a economia capitalista, travar — quando não fazer algo
pior — o movimento de libertação das colônias francesas, semear
ilusões na via parlamentar e pacífica, continuar idealizando os alia­
dos. Foi uma nova edição da política tradicional, reformista e nacio­
nalista da ala direita da social-democracia francesa.
Na Itália, a possibilidade de uma política que combinasse
dialeticamente a guerra anti-hitleriana com a luta por uma solução
socialista apresentou-se concretamente depois da queda de Mussolini,
quando — para dizê-lo com as palavras de Togliatti'88 — entraram
em colapso os velhos fundamentos do Estado burguês, inclusive a
sua organização militar, e começou a maior insurreição popular de
toda a história italiana — quando, à frente deste formidável desper­
tar das massas, encontraram-se principalmente comunistas, socialis­
tas de esquerda, intelectuais avançados. Na oportunidade do desem­
barque de Togliatti em Nápoles, na primavera de 1944, começava a
se colocar o dilema entre duas políticas (refletido, confusamente, no
conflito do antifascismo com o rei, Badoglio e os aliados). A tendente
a reagrupar os partidos operários e a esquerda pequeno-burguesa,
em oposição à monarquia, à direita tradicional e aos aliados, e a
tendente, ao contrário, a diluir as contradições e a agrupar mais
estreitamente esquerda e direita, classe operária e burguesia, sob
o comando único das autoridades militares aliadas, na obediência
ao lema: antes de tudo, ganhar a guerra. A primeira tendência
poderia levar à constituição do novo bloco histórico teorizado por
Gramsci. A segunda, a política de “união nacional”, facilitaria o
jogo político das velhas classes dirigentes; levaria, em definitivo, à
restauração do tradicional bloco industrial-agrário (ainda que sob
outras formas políticas e com diferente articulação interna), à res­
tauração e modernização do capitalismo italiano. A política de “di­
ferenciação nacional” — não a de “união nacional” — poderia des­
baratar aquele jogo, evidente desde a queda de Mussolini; poderia
identificar, ante as massas, quem verdadeiramente lutava pela reno­
vação social e política da Itália, pela sua independência nacional, e
quem procurava restaurar o poder dos grandes industriais e agrários
e enfeudar a Itália a outro imperialismo. Contra o que Togliatti
argumentava, a política de “união nacional” não conferia à classe
operária o papel de protagonista — só lhe dava a ilusão deste papel.
A direção efetiva estava em outras mãos. Para constituir-se autentica-

460
un Mie uni classe hegemônica, seria necessário, ao proletariado, que
<1 uh partidos fundissem na ação o problema da libertação nacional
...... o ila revolução agrária no Sul e nas ilhas, com a luta por uma
.1. nn a rada socialista. A estratégia togliattiana — reprodução da apli-
, m ia pela IC na guerra-revolução espanhola — dissociou estes obje-
IIin-, na exata hora histórica em que o movimento real, a crise pro-
I in a la das estruturas sociais e políticas e o despertar das massas
tendiam u entrelaçá-las num processo revolucionário único. Durante
ii. dois anos que transcorreu entre o desembarque aliado no Sul
da Itália e a insurreição no Norte, o PCI não se propôs organizar a
lu la das massas camponesas pela terra e resistiu às tendências
.1 luta por uma solução socialista que se delineavam no grande mo-
\ ma nto proletário do Norte. A política de “união nacional” consis­
tiu, de fato, em travar o movimento de massas para evitar a rup­
tura da coalizão governamental e em recusar qualquer confronto
com as autoridades militares anglo-americanas. Mas somente o mo­
vimento de massas — sua afirmação como poder autônomo em todos
os níveis, com seu programa próprio — poderia minar e, finalmente,
impedir a restauração do poder tradicional, que ia se realizando
passo a passo. A presença militar dos aliados exigiria, é claro, mé­
todos distintos dos iugoslavos, uma forma de confronto essencial­
mente política. No entanto, precisamente esta presença e o com­
portamento das autoridades militares anglo-americanas proporcio­
navam a experiência viva para esclarecer o povo, para que a
esquerda operária e antifascista pudesse capitalizar a sensibilização
da consciência nacional provocada pela guerra de libertação, exigindo
o pleno reconhecimento da soberania italiana, do direito do povo de
escolher livremente os órgãos de governo, reclamando das autorida­
des militares anglo-americanos que não se imiscuíssem nos assuntos
internos da Itália.
A impossibilidade de uma tática orientada para impulsionar
energicamente a luta pela terra e por outras transformações revolu­
cionárias, no curso mesmo da guerra contra a Alemanha; de uma
tática direcionada para desenvolver as premissas da dualidade de
poder e o isolamento político dos aliados e da direita, constituindo
um poderoso movimento independente dos partidos operários e anti­
fascistas de esquerda — a impossibilidade desta tática, que permitiria
enlaçar a grande insurreição proletária do Norte com o movimento
revolucionário do Sul, não radicava nas condições italianas. Residia
na subordinação do PCI à linha ditada por Moscou. Se os comunistas

461
iugoslavos chegam a aceitar as diretivas de Stalin, contidas na men­
sagem de Dimitrov de março de 1942, “impossibilidade” análoga
teria se apresentado na Iugoslávia.
Togliatti e Thorez, mais de uma vez, recorreram ao caso grego
para justificar a sua política. Mas a catástrofe grega poderia ter
sido evitada, apesar do inqualificável abandono de Stalin, se os
dirigentes comunistas gregos não aceitassem as pressões soviéticas
e não capitulassem no momento em que eram donos de quase todo
o país e contavam com um valoroso exército popular. Um ano e
meio depois, em condições incomparavelmente mais desfavoráveis,
retomaram a luta armada e conseguiram mantê-la durante mais de
três anos — embora a ajuda externa fosse inteiramente despropor­
cional à magnitude da intervenção americana e tenha cessado prati­
camente desde 1948. Se, em dezembro-1944/janeiro-1945, os chefes,
comunistas gregos não cedessem às pressões stalinianas, ter-se-ia
criado para o corpo expedicionário inglês uma situação nada
invejável.
Nos primeiros meses de 1945, a Alemanha estava praticamente
derrotada. Os exércitos soviéticos, acrescidos com importantes con­
tingentes de lutadores búlgaros, romenos e poloneses, organizados
no processo da ofensiva, e pelo exército de libertação iugoslavo,
tinham uma superioridade militar decisiva sobre as forças dos aliados
no continente. A América do Norte estava envolvida — e não se
sabia até quando — na guerra do Pacífico. Em toda a Europa, era
o momento do máximo entusiasmo popular pelos ideais democráticos
e renovadores da Resistência. O que teria acontecido se, nesta situa­
ção, os movimentos operários da França e da Inglaterra passassem
resolutamente à ofensiva por um poder dos trabalhadores e de toda
a esquerda, com um programa de transformações democráticas so­
cialistas (não um poder comunista, nem um programa “soviético”)?
A intervenção dos aliados? Roosevelt — ou Truman — poderia en­
frentar as conseqüências políticas da substituição de Hitler contra a
esquerda ‘européia? Havia condições militares para fazê-lo? (O pe­
rigo desta alternativa não podia ser descartado, assim como, em
outubro de 1917, não se podia descartar a intervenção dos exércitos
alemães, que esteve a ponto de liquidar a revolução russa. Até hoje,
não se conheceram revoluções à prova de perigos. Mas havia a no­
tável diferença de que, em 1944-1945, o verdadeiro perigo para a
revolução européia não estava tanto na intervenção eventual dos
exércitos capitalistas como na não-intervenção daqueles considerados

462
porta-estandartes da Revolução de Outubro — à semelhança do que
ocorreu na Grécia. No entanto, deve-se levar em conta que o pró­
prio caso grego realçou a dificuldade de tais operações naquela
situação.) Deixemos, porém, estas interrogações e conjecturas a que
h história já não pode responder. . . A história fizera-se em Ialta,
na divisão das esferas de influência. E Stalin ditava a lei aos partidos
comunistas, só encontrando resistências em alguns hereges potenciais
dc países subdesenvolvidos. Nos centros do capitalismo, o neo-refor-
iiiisino comunista pulsava em sintonia com a “grande aliança .

Iniciando a análise da estratégia staliniana na segunda guerra


mundial, fizemos referência a um dos fatores que mais fortemente
a condicionaram. Convém insistir brevemente sobre ele. A política
i \lerna da burocracia soviética — dizíamos — não podia deixar de
refletir, de certo modo, a sua política interna. Depois de haver liqui­
dado a fina flor dos revolucionários de Outubro, destruído a demo-
i rucia proletária e privado o povo, durante longos anos, de toda vida
política e desacreditado o ideal socialista diante dos trabalhadores
soviéticos — proclamando que aquele regime de escassez, de dita­
dura policial, era a realização do socialismo — ; depois de haver,
enfim, erradicado as fontes susceptíveis de manter vivo o espírito
revolucionário e de constituir uma consciência de classe — depois
disto, os chefes soviéticos não podiam dar à guerra contra a Ale­
manha hitleriana um caráter revolucionário, socialista, independente­
mente de todas as outras razões que analisamos — considerações
estratégicas, interesse em conservar a “grande aliança”, etc. —, as
quais, por outro lado, estiveram vigorosamente condicionadas pelo
fator interno. De acordo com a trajetória seguida e partindo do
tipo de consciência social que as suas mistificações ideológicas e seu
oportunismo político haviam criado, os chefes stalinianos deram à
guerra o único caráter que lhe podiam conferir: o de Guerra Patrió­
tica. O hitlerismo era, antes de tudo, o novo rosto do inimigo tradi­
cional, o teutão que se atrevia a atacar a Belíkaia Rossía 189 — como
mencionava o novo hino oficial —; não era o coveiro do movimento
operário alemão e da revolução espanhola. “Eles não lutam por
nós — reconheceu Stalin, num minuto de sinceridade, diante do
embaixador Harriman — , lutam pela Mãe Rússia” 19°. No espírito
de milhões de mujiques e de operários-mujiques, o mito de Stalin se
enlaçava com o dos grandes czares, fundia-se com o patriotismo tra­
dicional, as glórias do passado, a religião rejuvenescida. Stalin e o

463
partido se esforçaram habilmente para amalgamar estes suportes
patrióticos com o novo Estado, e Lênin era invocado ritualmente
para realçar a autoridade do novo Lênin. Do ponto de vista dos
objetivos internacionais da guerra, os chefes soviéticos não acrescen­
taram uma vírgula aos proclamados pelas potências capitalistas alia­
das: libertação nacional dos povos europeus e democracia. Ou, me­
lhor dizendo, só acrescentaram um ingrediente, que não era p rès­
samente revolucionário, sequer progressista: o pan-eslavismo, o apelo
à união dos povos eslavos, cuja finalidade transparente (à parte o efei­
to mobilizador imediato contra o inimigo tradicional, o pan-germanis-
mo) era preparar ideologicamente a futura construção da protetora
zona de projeção soviética. A Europa vivia a sua segunda catástrofe
bélica menos de vinte anos depois de experimentar a primeira. Era
a prova palpável de que as fronteiras nacionais se haviam conver­
tido num anacronismo que obstaculizava o desenvolvimento das
forças produtivas, impossibilitava uma paz duradoura e constituía
uma fonte permanente de rivalidades e conflitos. Não era o momento
oportuno, compulsório, para chamar o proletariado continental à luta
pela criação dos Estados Unidos Socialistas da Europa, cuja idéia
fora lançada pelo partido social-democrata russo quando do início da
guerra de 1914 (naquele momento, incluindo bolcheviques e menche-
viques) e recolhida pela Internacional Comunista em 1923 191? A
idéia eslava substituiu a idéia socialista. Os eslavos deveriam unir-se;
os outros povos europeus deveriam continuar encerrados no seu in­
vólucro nacional.
Não insistiremos mais nestes aspectos da política staliniana, que
diversos autores — especialmente Deutscher’92 — examinaram em
detalhe. O grande biógrafo de Trótski coloca outra questão de sumo
interesse: a vitória da revolução socialista em escala européia signi­
ficaria o fim do isolamento em que se encontrava a revolução russa,
e Stalin temia os efeitos da interpenetração entre o sistema sovié­
tico e o socialismo nas zonas do capitalismo industrial. Consi­
derava — e não sem razão — que ele colocaria em perigo os funda­
mentos políticos e ideológicos do sistema burocrático e ditatorial
construído à base do isolamento. Este, de condicionante objetivo do
sistema, passara a ser condição imprescindível da sua existência e,
portanto, dos privilégios da camada dirigente. A evolução ulterior
veio corroborar esta tese de Deutscher. Stalin e seus sucessores
esforçaram-se por manter o isolamento da sociedade soviética não
só em face do Ocidente, mas também em face dos outros países do

464
■Mini'll Milia Ilsta”. ‘‘O contato direto entre a Russia e as ‘demo-
....... mm |Mi|Hilares' — liberdade de comunicação e livre intercâmbio
■I** IiIi'Im'i poderia constituir facilmente uma nova fonte de fer-
......in., miI no interior da Rùssia. Stalin, pois, teve que manter duas
........ . <li- ferro’: uma, separando a Rússia de sua própria esfera
.In liilliiCncia; outra, separando esta zona do Ocidente” 193.
t nino vemos, a infeliz revolução proletária européia teria que
..... .. imo poucos obstáculos para abrir o seu caminho através da
. ......li crise dos anos quarenta. Para triunfar ao final da segunda
.1,, M <Ih do século, faltou-lhe um partido socialista independente da
Imi) in -.iii; para vencer no início da quinta década, teria necessitado
.li mu partido independente da burguesia e da “pátria do socia­
lismo".

Com a capitulação da Alemanha na primavera de 1945, a prin-


■Ipai justificação da política de “união nacional” desaparece, mas
Ml olnboração dos partidos comunistas com os governos burgueses
IIn I rança e da Itália continua (assim como em outros países capi-
Ialistas europeus) e contribui, da forma que assinalamos, para a
h .iiiurução da economia capitalista e suas superestruturas políticas.
I .1/ .e preciso uma nova justificação, que já não pode ser apenas
ou fundamentalmente — tática. Para este fim se lança mão da
doutrina da “nova democracia”, ou “democracia popular”, nascida
i-m função de outra necessidade urgente: definir os regimes que se
I oineçam a implantar nos países libertados pelo exército soviético.
De fato, enquanto a revolução era ladeada com arte e perícia na
I rança e na Itália — onde “a classe operária e seus aliados estavam
melhor organizados que as forças da reação, tinham evidente superio­
ridade em face dos grupos dirigentes do capital monopolista e seus
agentes políticos” (estamos citando historiadores soviéticos) 194 —, nos
países do Leste ela se via facilitada pela mesma raison d’E tat195 que a
bloqueava no Oeste. A zona de projeção soviética, evidentemente, não
podia erigir-se sobre estruturas capitalistas. No entanto, desta revo­
lução e da doutrina que propiciou (e da utilização desta doutrina
como justificação do neo-reformismo dos partidos comunistas da
Europa ocidental) nos ocuparemos no próximo capítulo.
A histórica derrota do fascismo, a revolução iugoslava, o pro­
cesso revolucionário iniciado nos outros países do Leste graças à sua
libertação pelo exército soviético e à construção da zona de pro­
jeção, a consagração da União Soviética como grande potência mun­

465
dial e o fortalecimento dos partidos comunistas ocidentais ocultaram,
aos olhos dos comunistas daqueles anos — que viviam e sonhavam
no clima eufórico descrito no início deste capítulo — e, em geral,
dos contemporâneos, o grave significado da frustração da revolução
européia para o destino ulterior da luta pelo socialismo. Pouco ke-
pois, a vitória da revolução chinesa e o colapso do velho sistema
colonial exerceriam o mesmo efeito. Mas, vistas as coisas da pers­
pectiva atual, fica claro que aquela vitória da burguesia internacio­
nal, aquela abdicação do comunismo europeu na hora da sua maior
influência — na conjuntura mais favorável do meio século que nos
separa da Revolução de Outubro —, teve uma tremenda e nefasta
incidência sobre o curso posterior dos acontecimentos mundiais. Últi­
mo efeito, e o mais grave, da decomposição ideológica da Interna­
cional Comunista, é uma das causas objetivas fundamentais da atual
crise do movimento comunista.

NOTAS

1 K -o m in fo rm — em russo, denominação abreviada do C e n tr o d e I n fo r m a ç ã o


d o s P a rtid o s C o m u n is ta s , criado em setembro de 1947.
2 Para estas e outras cifras, que citamos em seguida, dos efetivos dos partidos
comunistas, nos baseamos — salvo indicação contrária — na obra, já refe­
rida anteriormente, de B. Lazitch, L e s P a rtis C o m m u n is te s d ’E u r o p e , cujos
dados são extraídos de documentos oficiais do movimento comunista e no
texto de uma equipe de autores soviéticos sobre a história do movimento
operário internacional e do movimento de libertação nacional que serve de
manual na Escola Superior do PCUS: Isto ria M ie z h d u n a r o d n o v o R a b o c h e v o
i N a ts io n a in o -o s v o b o d ite ln o v o D v iz h e n ia , Misl, Moscou. A obra possui três
volumes; aqui, utilizamos o terceiro que, publicado em 1966, compreende o
período 1939-1955; citaremos segundo a abreviação H istó r ia d o M o v im e n to
R e v o lu c io n á r io (M isl).
3 Ju Chau-mu: T re in ta A n o s d e i P C C , pp. 76-88 (para os dados de 1937 e
1945); Mao Tsé-Tung: O e u v r e s C h o isies, Pequim, 1962, t. IV, p. 171.
4 A progressão dos efetivos, por país, é a seguinte:
Áustria: 16.000 (1935), 150.000 (1948)
Dinamarca: 9.000 (1939), 75.000 (1945)
Noruega: 5.272 (1933), 45.000 (1946)
Suécia: 19.000 (1939), 48.000 (1946)
Finlândia: 1.200 (1944), 150.000 (1946)
Holanda: 10.000 (1938), 33.000 (1946)
Inglaterra: 17.756 (1939), 47.513 (1944)
Não se conhecem exatamente os efetivos do partido belga antes da guerra,
mas eram muito reduzidos; em novembro de 1945, eles superavam a cifra de
100.000 militantes.

466
1Cír. a nota 153 deste capítulo.
is Do informe de Browder ao Comitê Central do Partido Comunista norte-ame­
ricano, reunido em 4 de janeiro de 1944; citado no artigo de Jacques Duelos,
"En torno a la disolución dei PC americano” (N u e s tr a B a n d e ra , revista do
PC da Espanha, n.° 3, Toulouse, pp. 27-28). No informe de Browder à nova
Associação Política Comunista (22 de maio de 1944), há, entre outras aná­
logas, a seguinte colocação: “Devemos aprender a nos elevar acima das velhas
divisões e preconceitos, devemos realizar a confraternização entre velhos ini­
migos, devemos superar as velhas fronteiras entre os partidos, devemos ultra­
passar os antagonismos de classe, devemos resolver a antiga inimizade entre
os partidários do N e w D e a l e os do antigo, devemos soldar uma unidade mais
firme que aquela que existiu durante gerações entre os patriotas americanos”
(,N u e stra B a n d e ra , 1944, n.° 7, México, p. 33). Com esta linha ultra-reformista,
a Associação Política Comunista conseguiu aumentar seus efetivos — con­
forme dados que nos forneceram comunistas norte-americanos, chegou perto
dos 100.000 membros — e conquistar certa influência em alguns sindicatos
importantes. Em abril de 1945, a linha b r o w d e ris ta foi condenada por Moscou
_ adiante veremos as razões — e, nos meses seguintes, reconstruiu-se o
partido comunista, mas grande quantidade de militantes não voltaram a ele,
que rapidamente perdeu as suas posições sindicais.
7 Cfr. T h e P riv a te P a p e rs o f S e n a to r V a n d e rb e rg , Boston, 1952, p. 219. Era a
primeira vez que os trabalhistas conquistavam a maioria absoluta no parla­
mento britânico.
b Por “secreta” entenda-se aqui que a reunião não foi anunciada, seus debates
transcorreram no maior segredo e parte deles só foi revelada por informações
de alguns dos participantes que, posteriormente, entraram em conflito com
Stalin ou com o partido correspondente (os iugoslavos e o italiano E. Reale).
Nos primeiros dias de outubro, um breve comunicado à imprensa divulgou a
reunião e, ulteriormente, publicaram-se, convenientemente revisados, os textos
de alguns informes e intervenções nela realizados.
9 Dimitrov, O e u v r e s C h o isie s, p. 195.
V I I C o n g re sso d e i P a rtid o C o m u n is ta Ita lia n o (re s o c o n to ), Cultura Sociale,
1951, p. 22.
u H isto ir e d u P C F (U n ir) — sobre este livro, veja-se a nota 119 do capítulo 4,
t. I, 238. Numa carta que Cachin dirige a todos os seus “colegas” sena­
dores, datada de 6 de setembro, diz: “Repetimos que os comunistas
franceses estão e estarão na primeira fila para liquidar o autor do
atentado criminoso contra a paz [Hitler]. Os deputados comunistas mobi­
lizáveis, em primeiro lugar Maurice Thorez, já se incorporaram às suas
unidades” (ib id ., p. 237).
Nesta obra se descreve a perplexidade criada no partido e entre seus
aliados mais próximos com o pacto germano-soviético. Pierre Cot afirma na
imprensa: Stalin “converteu-se em aliado de Hitler”. “Até mesmo traba­
lhadores censuravam a seús camaradas comunistas a traição soviética” (ib id .,
p. 231).
12 A repressão também foi facilitada por dois fatores: o despreparo do partido
(depois de vinte anos de atividade legal, parlamentar, municipal, etc.) para
a ação clandestina e, mais tarde, depois da derrota, as ilusões de que, em
conseqüência do pacto germano-soviético, as autoridades de ocupação po­
deriam observar certa benevolência diante das atividades do partido. Em maio
de 1941, difundiu-se um cartão-postal editado pelo partido para ser expedido
à “Sua Excelência, o Sr. Embaixador Otto Abetz”, representante oficial de
Hitler junto ao governo de Vichy, com o seguinte texto: “Senhor Embaixador:

467
por se opor à guerra e exigir, desde outubro de 1939, que nenhuma pro­
posição de paz fosse rechaçada antes de submetida ao parlamento, os
deputados comunistas foram condenados a centenas de anos de prisão e
tratados como agentes da Alemana. Entre eles, estão encarcerados em
Maison-Carrée [Argélia] e ameaçados de deportação para o deserto do Saara
[segue-se uma lista de deputados]”. A seguir, vem uma lista dos que “estão
obrigados a viver clandestinamente para cumprir o mandato que lhes confiou
o povo” [Thorez, etc.] e dos encarcerados na prisão La Santé. Prossegue o
texto: “Os deputados comunistas orgulham-se de se ter posicionado contra a
guerra, depois de lutar, durante vinte anos, contra o odioso Tratado de Ver­
salhes, de se opor à ocupação da Renânia e do Ruhr — pagando suas opções
com a prisão. Isto é um escândalo e uma injustiça. Impõe-se a sua libertação.
O Senhor Embaixador deve empenhar-se para obtê-la rapidamente — ou o
povo se levantará para libertá-los”.
O texto dispensa comentários; porém, o mais extraordinário é que —
explicam os autores da citada história do PCF — aos militantes e sim­
patizantes do partido se aconselhava enviar tais cartões-postais com assinatura
e endereço! Remetentes desses cartões pagaram com a liberdade, e mesmo
com a vida, a obediência àquele conselho (ib id ., t. II, p. 50).
Outra amostra das ilusões em uma atitude benevolente das autoridades
alemãs de ocupação foi a tentativa de legalização de L ’H u m a n ité , detalha­
damente relatada na história do PCF que estamos citando (cfr. pp. 24-28 do
t. II). A direção do PCF procurou ocultar este fato por muitos anos; enfim,
a recente história do partido na Resistência, redigida por uma comissão pre­
sidida por Duelos, reconheceu-o. Os autores da H isto ir e d u P C F (U n ir)
interpretam as gestões para obter da K o m m a n d a n tu r a legalização de L 'H u ­
m a n ité , juntamente com outros passos do mesmo caráter dados neste período
pela direção do partido, como prova de que “o Comitê Executivo da IC, mal
inspirado por Stalin, esperava que os partidos comunistas tivessem autorização
legal para funcionar nos países ocupados pelo exército hitleriano” (ib id ., t.
II, p. 23).
'3 Cfr. H isto ir e d u P C F (U n ir), t. II, pp. 59-61. A história oficial do PCF
na Resistência, mencionada na nota precedente (L e P a rti C o m m u n is te F ra n ­
ça is d a n s la R é sis te n c e , Éditions Sociales, Paris, 1967), passa por este docu­
mento — e muitos outros textos e fatos a que se remete a H isto ir e d u
P C F (U n ir) — sem dizer uma palavra.
Ib id .
15 H isto ir e d u P C F (U n ir), t. II, p. 60.
1* André Fontaine, H isto ir e d e la G u e rre F ro id e , t. I, p. 225.
i l H is to ir e d u P C F (U n ir), t. II, pp. 134-135-136. Em L e P a rti C o m m u n is te
d a n s la R é s is te n c e (p. 231), diz-se que os contatos entre o partido e represen­
tantes de de Gaulle se estabeleceram desde o verão de 1942, ou seja, bem
pouco depois da entrevista Molotov-de Gaulle, ocorrida em maio. Mas esta
obra nada diz sobre o papel desempenhado por este encontro. Publica-se a
carta de de Gaulle à direção do partido, mas suprimindo-se o parágrafo
no qual o general expressa a sua “convicção” de que o partido observará
diante dele “a mesma disciplina leal” que existe no seu interior; tampouco
se menciona o artigo de Grenier em L ’H u m a n ité .
'8 L e P a rti C o m m u n is te F ra n ç a is d a n s la R é sis te n c e , p. 234.
19 Cfr. a já citada obra de Jacques Fauvet, H isto ir e d u P C F , t. II, pp. 127-
128. Segundo esta versão, o partido acabou por ingressar no governo sem
que houvesse qualquer compromisso com o general de Gaulle; a obra L e
P a rti C o m m u n is te d a n s la R é s is te n c e confirma implicitamente esta versão

468
ao não afirmar a existência do compromisso — coisa que não deixaria
de fazer em caso contrário (cfr. pp. 237-238).
ZOl.e P a rti C o m m u n is te F ra n ça is d a n s la R é sis te n c e , pp. 241-242.
zi Em L e P a rti C o m m u n is te F ra n ça is d a n s la R é s is te n c e se d á u m ^ t o
minucioso do desenvolvimento da insurreição nacional (pp. 286-328) que
demonstra o fato capital de grande parte do terntóno francês ter s do
libertado pela ação das “massas populares, armadas ou nao (p. 329). Eise
nhower equiparou a quinze divisões a contribuição dos resistentes franceses
ãs forças aliadas desembarcadas na Normandia — mas esta eqmparaçao

que seguiu ao desembarque.


22 Referindo-se ao que era o partido às vésperas da Libertação, Jacques Fauvet
caracteriza-o como “o movimento mais poderoso da Resistência metropoli­
tana, o mais tenaz e o único que cobre todo o território (op; ^ - t ll ^
59). E, aludindo à Resistência, André Fontame diz que ela tinha [o. poder]
ao alcance da mão em diversas regiões do país” (o p . cit., t. 1, P- >■
23 Cfr. de Gaulle, M é m o ir e s d e G u erre, Plon, Paris, t. II, PP- 291-292.

24 A referência à intervenção de Duelos se encontra em H isto ir e d u P C F (U n ir),


t. II p. 246. Do relato dos autores desta obra — militantes do partido que,
à época, ocupavam cargos de responsabilidade e estão muito distanciados
de qualquer “esquerdismo” — se depreende, sem que fiquem duvidas, a forte
pressão que a massa do PCF e, em geral, a massa popular exerciam sobre
a direção para que esta imprimisse à sua política um espírito ofensivo. Nos
comitês de libertação desenvolvia-se a tendencia para converte-los em órgão
de poder. Em outubro de 1944, os delegados dos comitês de libertação de
quarenta departamentos do Sul da França se reuniram em Avignon, resol­
vendo convidar os comitês locais a “convocar, nas cidades e aldems as em-
bléias patrióticas para expor o programa de açao do Comitê Nacional d
Resistência, para concretizar este programa em face das !,?CA 9
para submeter a composição e a ação destes à ratificaçao popular .
e 10 de dezembro, os comitês locais de libertação da região do Sena, reunidos
na prefritura de Paris, inspiraram-se neste movimento do Sul para propor
que as assembléias patrióticas populares preparassem grandes pod^es legis-
lativos representando todas as camadas da populaçao. A reunião destes
leSatívos oco “reu mais tarde em Paris, mas o movimento morrera em conse-
qüência da linha do partido que, como explicaremos em seguida, preconizou
a subordinação rigorosa dos comitês de libertação ao governo central.
25 Cfr. H is to ir e d u P C F (U n ir), pp. 2 4 7 -2 5 1 . Segundo os autores desta obra,
Thorez nunca refutou estas e outras alegações das memórias de de Gaul .
26 M. Thorez, O e u v r e s, t. 20, pp. 181-182, 187-188.
2 7 M u ito in o p o r tu n o (em francês, no original). N. do T.

28 De Gaulle explica assim a viagem: “A fim de obter do partido comunista


o período para tomar fôlego de que eu precisava para ter a situaçao nas maos,
tive que ir a Moscou e firmar acordos” (citado por Fauvet, o p . c,t„ p._ 148).
Como justamente observa Fauvet, esta não podia ser a un.ca razao da
viagem — mas, indubitavelmente, era um dos seus motivos essenciais. Em
troca, não nos parece fundada a interpretação de Fauvet segundo a qual
Thorez, desde o seu regresso, postulava o reforço do poder dos comitês; de
libertação, a manutenção das milícias, etc., e que a viragem se produziu
na reunião do Comitê Central de finais de janeiro, em consequência do

469
acordo de Gaulle-Stalin. Na realidade, desde que pisou em solo francês _
e já antes, em suas alocuções pela Rádio Moscou —, a orientação de Thorez
é para liquidar o poder autônomo surgido da Resistência e da Libertação nos
altares da reconstrução do velho Estado democrático-burguês. Sua fórmula
— “um só Estado, uma só polícia, um só exército” —, lançada imediata­
mente após sua chegada (H isto ire d u P C F / U n ir, t. II, p. 247), mostra-o
com eloquência. Mas, dado o estado de ânimo existente no partido e no
pais, havia que proceder com cautela. Thorez começa por louvar o papel
dos comitês de libertação, exigindo, porém e ao mesmo tempo, sua subor­
dinação aos órgãos do novo Estado — esta é a sua colocação no ato do
Velódromo de Inverno, a 14 de dezembro de 1944. O acordo de Gaulle-Stalin
é utilizado para acentuar esta linha até a forma acabada, contundente e
pública que toma no Comitê Central de janeiro. É significativo que na
recente edição das O e u v r e s C h o is ie s de Thorez, em três tomos (Ed. Sociales,
Paris, 1966), não se tenha incluído nenhum dos artigos e discursos do período
entre sua chegada a Paris e a reunião, de finais de janeiro, do Comitê Central
não se reproduz o seu informe a esta reunião, no qual se coloca a disso­
lução das milícias, etc.
29 Sobre os informes de Benoit Frachon, cfr. H isto ir e d u P C F (U n ir) t II
pp. 262-264, ’ ’
30 Cfr. o t. 21 das O e u v re s de Thorez, pp. 128-129, 100, 57, 129 118 127
e t. 20, p. 183.
31 Thorez, O e u v r e s C h o isies, 1966, t. II, p. 399.

32 Thorez, O eu v re s, t. 22, p. 141.

33 Citamos segundo Fauvet, H is to ir e d u P C F , cit., t. II, p. 172.

34 Thorez, O eu v re s, t. 22, p. 105.

35 Eis a versão que os autores da H is to ir e d u P C F (U n ir) dão das negociações


entre o PCF e a SFIO sobre o problema da unidade entre os dois partidos:
em novembro de 1944, a SFIO publicou uma resolução com a seguinte
proposta: “O Partido Socialista renova solenemente ao Partido Comunista
francês a proposição da unidade, feita já na luta clandestina”. Pouco depois
formou-se uma c o m issã o d e e n te n d im e n to , cuja tarefa era elaborar um memo­
rando destinado a preparar a unidade orgânica socialista-comunista. Nesta
co m issã o , as posições dos delegados do PCF revelavam uma intransigência
formal que contrastava com as concessões de princípio admitidas para
continuar em boas relações com o general de Gaulle ou participar do gover­
no. Ia-se ao ponto de exigir que uma ca rta d e u n id a d e com os socialistas
incluísse um parágrafo de aprovação incondicional às posturas da URSS
e de reconhecimento da supremacia do PC (bolchevique). Na verdade, exi­
gia-se dos socialistas que se fizessem comunistas, fiéis ao PC soviético e a
Stalin (cfr. o p . cit., t. II, pp. 254-455).
36 Thorez, O e u v re s, t. 22, p. 207.

32 Ib id ., p. 132.
33 40.000 vítimas, segundo os autores da obra soviética citada na nota 2 deste
capítulo (cfr., na fonte, a p. 369). Os redatores do manual soviético se
referem à repressão da insurreição argelina pelos imperialistas franceses,
sem mencionar, absolutamente, a presença de ministros comunistas no governo.
32 Thorez, O e u v r e s C h o isies, t. II, pp. 351-352 (A r ie s: alusão ao IX Congresso
do PCF, realizado nesta cidade antes da guerra).
43 Fauvet, H isto ir e d u P C F , cit., t. II, pp. 194-195. O propósito de imputar a
responsabilidade da guerra a “provocadores vietnamitas” é assinalado em
H isto ir e d u P C F (U n ir), t. III, p. 31. Como se sabe, a independência do Vietnã

470
c H instauração da república democrática em todo o território foram o resul­
tado da vitoriosa insurreição popular de agosto de 1945, dirigida pelo
Partido Comunista. A agressão colonialista francesa começou praticamente
no outono daquele ano. As tropas francesas, desembarcadas sob o pretexto
de desarmar os japoneses, reocupam Saigon e obrigam as autoridades da
república a se refugiarem nas áreas rurais. Em todo o ano de 1946 se
sucedem as provocações e as medidas destinadas a reinstalar o regime colo­
nial. O bombardeio de Haiphong, que causa 6.000 mortos, marca a passagem
à guerra aberta.
Cfr. Fauvet, o p . it., t. II, p. 195.
42 a 29 de março de 1947, a fim de liquidar com o movimento de libertação
nacional de Madagascar, as autoridades francesas provocaram conflitos san­
grentos. O povo resistiu, levantando-se em vários pontos da ilha. A insurrei­
ção foi implacavelmente reprimida e vários dirigentes do movimento de
libertação — entre eles, quatro deputados ao parlamento francês — foram
condenados à morte.
43 Cfr. Thorez, O eu v re s, t. 21, pp. 63-64 (informe ao X Congresso, junho de
1945); O e u v re s C h o isie s, t. II, p. 452; O eu v re s, t. 23, pp. 115, 10 ( L e c o e u r
le n d re : coração mole — em francês, no original). N. do T.
44 M a n e ira b ru sca . Em francês, no original (N. do T.).
45 Thorez, O eu vres, t. 23, p. 9. A citação de Blum foi tomada de Fauvet, op.
cit., t. II, p. 185. Na mesma página deste livro de Fauvet se alude a um
artigo de C a h ie rs d u C o m m u n is m e , revista do PCF, número de 17 de julho
de 1946, no qual se critica os socialistas por abordarem o problema alemao
colocando em primeiro lugar as exigências do “internacionahsmo ou do
“socialismo”, já que, “no período atual, os problemas devem ser resolvidos,
antes de tudo, a partir do ponto de vista nacional francês”.
46 A p u d Fauvet, o p . cit., t. II, p. 198.
47 Em russo, não (N. do T.).
48 Thorez, O eu vres, t. 23, p. 122 (discurso na assembléia da Federação do Sena
do PCF).
49 Denominou-se assim ao parlamento saído das eleições de 1919, com esma­
gadora maioria conservadora e nacionalista (433 deputados entre 613). Em
fins de 1919 e ao longo de 1920, multiplicaram-se as greves.
50 A p u d Fauvet, o p . c it., t. II, p. 199.
51 Togliatti, L e P a rti C o m m u n is te Ita lie n , Maspero, Paris, 1961, pp. 109-110.
52 R. Battaglia, S to ria d e lia R e s is te n z a Ita lia n a , Einaudi, 1955, p. 83.
53 Cfr. a B r e v e S to ria d e lia R e s is te n z a Ita lia n a , de R. Battaglia e G. Garritano,
Ed. Riuniti, 1965, p. 36.
54 Informe de Luigi Longo à reunião constitutiva do Centro de Informação
dos Partidos Comunistas, incluído na C o n fe r ê n c ia d e I n fo r m a ç ã o d o s P ar­
tid o s C o m u n is ta s, ed. Lenguas Extrangeras, Moscou, 1948, pp. 227-228 (cita­
remos esta fonte, em seguida, como C o n fe r ê n c ia K o m in fo r m 1947).
55 Cfr., por exemplo, Henri Michel, L e s M o u v e m e n ts C la n d e stin s en E u ro p e ,
PUF, Paris, 1965, pp. 47-48. Em seu discurso na comemoração do 35.° ani­
versário de fundação do PCI, Togliatti referiu-se a este período da seguinte
maneira: “Em 1943, no mês de março, os operários de Turim entraram em
greve para defender-se da odiosa exploração e para combater a política
fascista de guerra. O movimento, há que recordá-lo, foi preparado, orga­
nizado em todas as suas fases e dirigido por comunistas, pelos camaradas
que constituíam o núcleo do interior do nosso partido, liderados pelo
camarada Massola. Esta greve foi um dos golpes de misericórdia no regime

471
fascista. Quando, depois, este regime caiu, em 25 de julho, e quando entra­
ram em colapso todos os velhos fundamentos do Estado burguês, começou
a maior insurreição popular da história da Itália. O povo tomou a iniciativa,
assumiu a sorte do país, organizou-se, dotou-se de um exército e de líderes
e lutou para salvar a pátria da destruição e da catástrofe. E éramos nós que
estávamos na vanguarda, nós, velhos e novos combatentes” (“35 années de
lutte pour la liberté et le socialisme”, C a h ie rs d u P a rti C o m m u n is te Ita lie n ,
séction pour l’étranger, 1956, pp. 14-15).
56 Togliatti, “A Itália em guerra contra a Alemanha”, P ravda, 12 de novem­
bro de 1943. Tomamos o texto das O b ra s E s c o lh id a s de Togliatti, publicadas
em russo pela Editora de Literatura Política, Moscou, 1965. O parágrafo
citado encontra-se no t. I, p. 274. Neste artigo, Togliatti omite que a decla­
ração das três potências sobre a Itália continha uma disposição segundo
a qual, enquanto durasse a guerra, todo o poder efetivo ficava nas mãos
das autoridades aliadas — o direito do povo italiano de escolher democra­
ticamente o seu governo era adiado para depois da vitória.
57 Citado por Pietro Secchia no ensaio “Movimento operaio e lotta di classe
alia Fiat nel periodo delia Resistenza”, publicado na R e v is ta S to ric a d e i
S o c ia lism o , n.° 22, 1964.
58 Num artigo de 1965, Lelio Basso refere-se a uma reunião celebrada em
Milão, pouco tempo antes da queda de Mussolini, da qual participavam
representantes dos partidos comunista, socialista, de Ação e democrata-cristão.
Escreve Basso: “Recordo o embaraço do companheiro Marchesi [represen­
tante do PCI] ao 1er um texto inteiramente dirigido para oferecer garantias
e segurança à burguesia contra a perturbação da ordem social (a preocu­
pação, inclusive, era tranqüilizar os industriais, dizendo-lhes que o governo
antifascista lhes ressarciria os danos da guerra), e recordo a ingênua obser­
vação do representante democrata-cristão, após a leitura: ‘Agora, nós, os demo­
crata-cristãos, estamos mais à esquerda que os comunistas’ ” (L. Basso,
“II rapporto tra rivoluzione democrática e rivoluzione socialista nella Resis­
tenza”, C ritic a M a rx is ta , julho-agosto de 1965).
58 A partir da ocupação do Norte e do Centro da Itália pelos alemães, existiam
três Comitês de Libertação com âmbito nacional: o do Norte da Itália, o
que tinha sede em Roma e teoricamente era o organismo supremo, mas
que, na prática, não dirigia o movimento sequer na zona central, e o instalado
em Nápoles.
50 Marcella e Maurizio Ferrara, P a lm ir o T o g lia tti, Éditions Sociales, Paris, 1954,
p. 339. Esta obra foi revisada e corrigida pelo próprio Togliatti; redigiu-se
a partir de entrevistas com ele e sobre a base de documentos do partido
italiano. Portanto, o que nela se diz pode considerar-se como a versão e a
opinião do próprio Togliatti em relação aos acontecimentos referidos.
61 Ib id ., p. 340.
62 A versão de que alguns dirigentes veteranos do PCI opuseram certa resis­
tência às teses de Togliatti, nós a recolhemos de funcionários da Seção
Estrangeira do Comitê Central do PCUS, quando ainda eram recentes a
formação do Centro de Informação dos Partidos Comunistas e a crítica
então feita à política seguida pelo PCI.
63 M. e M. Ferrara, o p . cit., p. 350.
64 G r a n d e E n c ic lo p é d ia S o v ié tic a , em russo, t. 19, p. 86. Na obra de história
contemporânea que serve de manual na Escola Superior do PCUS se diz,
com mais precisão: “Por exigência do governo soviético, o Conselho Con­
sultivo para a Itália [formado pelos representantes da URSS, Estados Uni­
dos, Inglaterra e França] adotou uma decisão especial sobre a constituição
imediata, pelo marechal Badoglio, de um governo com a participação de
todos os partidos antifascistas” (N o v e is h a ia isto rila [H istó ria C o n te m p o r â n e a ],
parte II, Moscou, 1959, p. 582).
6! Mais adiante, trataremos das pressões de Stalin sobre Tito.
66 T o d o s se a rra n ja m — em francês, no original (N. do T.).
67 Denomina-se ris o rg im e n to ao movimento pela autonomia e unidade italianas,
articulado em finais do século XVIII e que percorre todo o século XIX. O
tema foi objeto de vários escritos de Gramsci, entre 1929 e 1935, na prisão,
depois reunidos no volume II R is o r g im e n to (Einaudi, Turim, 1949). N. do T.
68 M. e M. Ferrara, o p . cit., p. 362.
67 A re n o v a ç ã o s o c ia l — em italiano, no original (N. do T.).
70 Togliatti, “La política di unità nazionale dei comunisti” (discurso de 11 de
abril de 1944), C ritic a M a rx is ta , julho-outubro de 1964, pp. 24, 34, 42 e 34.
71 Togliatti, “Avanti, verso la democrazia” (discurso de 24 de setembro de
1944), ib id ., p. 74.
72 Battaglia e Garritano, o p . cit., p. 192.
73 M. e M. Ferrara, o p . cit., p. 369.
74 Ib id ., pp. 369, 371-372.
75 N ã o se c o n so la a q u e le q u e n ã o o d e se ja (N. do T.).
76 M. e M. Ferrara, o p cit., p. 369 (sublinhados nossos).
77 Togliatti, O b r a s E sc o lh id a s, em russo, cit. na nota 56, t. I, p. 379.

78 Cfr. Battaglia e Garritano, o p . cit., p. 189.

T> Ib id ., p. 91.
so Ib id ., pp. 202-203.
81 Aproveitando a dureza do inverno, o inimigo, movimentando forças impor­
tantes, tentou isolar as unidades guerrilheiras nas zonas altas das montanhas,
separando-as das suas bases de aprovisionamento. Os guerrilheiros decidiram
infiltrar-se por entre as unidades inimigas e descer aos vales e planícies.
Esta tática — chamada de p ia n u r iz z a z io n e [de p ia n u ra = plano] — deu
magníficos resultados, graças ao apoio massivo da população. Simultanea­
mente, reforçou-se o dispositivo da luta armada nos centros industriais, nas
grandes fábricas.
82 Informe de Longo à reunião constitutiva do Centro de Informação dos Par­
tidos Comunistas. C o n fe r ê n c ia K o m in fo r m 1947, cit., pp. 228-229.
83 Ib id ., p. 230.
84 N o v e is h a ia isto riia , cit., p. 583.
85 Togliatti, “Rinnovare lTtalia” (informe ao V Congresso do PCI), C ritic a
M a rx is ta , julho-outubro de 1964, p. 96.
86 Os “comitês de gestão” formaram-se por um decreto do Comitê de Liberta­
ção do Norte da Itália às vésperas da insurreição. Eram organismos em que
estavam representados operários, funcionários e técnicos, com a função de
dirigir as empresas junto com comissários do governo e patrões (cfr. o
informe de Longo citado na nota 82, p. 229).
87 C h .R in a s c ita , n.° 5-6, maio-junho de 1945 (sublinhados nossos).

88 Togliatti, “Rinnovare lltalia”, o p . cit., p. 99.


87 Marcella e Maurizio Ferrara, C r o n a c h e d i v ita ita liana, 1944-1948, Ed. Riu­
niti, 1960. Tomamos a citação da versão francesa dos capítulos VII e VIII,
incluídos em R e c h e r c h e s In te rn a tio n a le s, n.° 44-45, 1964, p. 205.

473
90 Togliatti foi ministro da Justiça da Libertação até as eleições de 2 de junho
de 1946. O principal problema concernente ao seu ministério era a depuração
e o castigo dos quadros do fascismo. A orientação do partido, indubita­
velmente correta, era concentrar a operação nos verdadeiros responsáveis,
nos quadros superiores — mas não se efetivou mais que nuns poucos casos.
As forças burguesas e os aliados sabotaram a depuração por todos os meios.
E o partido não lutou energicamente para impedir esta sabotagem. Assinala-o
até um historiador da democracia cristã européia, Maurice Vaussard: “Se a
depuração foi frustrada — e o foi, radicalmente, sobretudo no Sul —, deveu-
se, parcialmente, sem dúvidas, à presença e à influência dos exércitos aliados
e à oposição dos meios liberais de direita, mas também à extraordinária
indulgência de que deram provas os encarregados pela depuração, principalmen­
te os próprios Togliatti e Nenni, que se sucederam no o^rgo. Evidentemente,
eles se deram conta de que a Itália não podia preencher, ainda que o
quisesse, com vantagens os postos que ficariam vacantes. As sucessivas anistias
fizeram o resto e permitiram que os piores adversários da democracia —
como o príncipe Valerio Borghese ou o diplomata Anfuso, um dos chefes
europeus do neofascismo — levantassem a cabeça” (H is to ir e d e la D é m o c r a tie
C h r é tie n n e , Seuil, Paris, 1956, pp. 275-276).
91 Emilio Seregni, I l M e z z o g io r n o a ll’O p p o s iz io n e , p. 60. Sublinhado no original.

92 Togliatti, O b ra s E sc o lh id a s, em russo, t. I, p. 463.

92 Vaussard, o p . cit., p. 275. Por “tripartidarismo” o autor entende os governos


baseados fundamentalmente nos democrata-cristãos, comunistas e socialistas.
94 A c o r d o tá c ito . Em francês, no original (N. do T.).
95 Vaussard, o p . cit., pp. 276 e 274.

96 Os biógrafos de Togliatti assinalam que o “conteúdo social introduzido na


Constituição” o foi “graças a um acordo com parte dos próprios democrata-
cristãos” (M. e M. Ferrara, o p . cit., p. 389).
■97 Os princípios sociais mais “avançados” incluídos na Constituição italiana
são os seguintes: “A Itália é uma República democrática baseada no trabalho”
(art. l.°), Cabe a Republica superar os obstáculos de ordem econômica
e social que, limitando de fato a liberdade e a igualdade dos cidadãos, impe­
dem o completo desenvolvimento da personalidade humana e a efetiva parti­
cipação de todos os trabalhadores na organização política, econômica e social
do país” (art. 3.°); “O trabalhador tem direito a uma retribuição proporcional
à quantidade e à qualidade do seu trabaho; em qualquer caso, esta retri­
buição deve ser suficiente para assegurar a ele e a sua família uma existência
livre e digna” (art. 36). De acordo com Togliatti, estes “princípios fundamen­
tais” inscritos na Constituição “impõem uma transformação do velho sistema
econômico e político italiano e indicam uma via de desenvolvimento orientada
para o socialismo” (Togliatti, L e P a r ti C o m m u n is te Ita lie n , cit., p. 128).
Convém observar que esta “via de desenvolvimento orientada para o
socialismo” foi aprovada pelo partido que representava, principalmente, a
grande burguesia italiana e o Vaticano, meio ano depois da exclusão dos
comunistas do governo. Como ficou claríssimo na discussão dos diferentes
artigos e, em particular, na do primeiro, todo esse “conteúdo social” está
fundado — como ocorreu com a predecessora mais direta da Constituição
italiana de 1948, a Constituição espanhola de 1931 — num equívoco: os
conceitos de trabalho e “trabalhador” servem para designar indistinta­
mente o operário e o capitalista, o camponês e o grande proprietário agrário
e seus respectivos “trabalhos”. Isto fica perfeitamente claro, por exemplo,
na coletânea de ensaios sobre a Constituição italiana reunida nos C a h ie rs d e là
F o n d a tio n N a tio n a le d es S c ie n c e s P o litiq u e s, Armand Colin, Paris, 1950.

474
98 Togliatti, “Rinnovare l’Italia”, ed. cit., pp. 117 e 115.
99 Cfr. R e c h e rc h e s In te rn a tio n a le s, ed. cit., p. 228.
100 Ib id ., p. 227.
101 A p u d M. e M. Ferrara, P a im iro T o g lia tti, ed. cit., pp. 388-389.
'0 2 A referência do autor é aos congressos de Livorno e Tours, nos quais, respec­
tivamente, dos partidos social-democratas, saíram as frações que constituiram
os partidos comunistas italiano e francês (N. do T.).
103 E. Reale, A v e c J a c q u e s D u e lo s a u B a n e d e s A c c u s é s a la R é u n io n C o n s titu -
tiv e d u K o m in fo r m , Plon, Paris, 1959, p. 4.
104 Jb id ., p. 135.
'05 v. Dedijer, T ito P a r l e . . . , Gallimard, Paris, 1953, p. 307.
106 Para a rápida análise que em seguida faremos da política dos comunistas
iugoslavos e da intervenção de Stalin, apoiamo-nos fundamentalmente no
informe de Kardelj sobre a atividade do Partido Comunista da Iugoslávia,
feito na reunião constitutiva do Centro de Informação dos Partidos Comu­
nistas (C o n fe r ê n c ia K o m in fo r m 1947, cit., pp. 41-69), na obra já citada de
Dedijer ( T ito P a rle . ..) e na de François Fejto, H is to ir e d es D é m o c r a tie s
P o p u la ire s (Seuil, Paris, 1969, t. I, pp. 66-89). Levamos em conta, ainda, a
versão soviética, apresentada no manual da Escola Superior do PCUS,
também já citado. É desnecessário advertir que, na versão soviética, omite-se
totalmente a intervenção de Stalin, dirigida para modificar a orientação revo­
lucionária da política dos comunistas iugoslavos neste período, ao mesmo
tempo em que se reconhece que esta política foi justa.
É interessante observar que no número de R e c h c e r c h e s In te r n a tio n a le s
(4 4 . 4 5 , 1964) dedicado ao período que vai da Libertação ao começo da
“guerra fria” há ensaios sobre a França, a Itália, a Alemanha, a Hungria,
a Bulgária, a Tchecoslováquia, etc. — e nem uma palavra sobre a Iugoslávia.
O PCF prefere não recordar o exemplo da luta revolucionária do povo
iugoslavo ao tempo da Libertação — o contraste com a política seguida pelo
PCF é muito brutal. . .
107 No informe de Kardelj, cit., explica-se que, desde finais de 1941 e começos
de 1942, o estado-maior central dos destacamentos guerrilheiros iniciou a
seleção das melhores unidades e combatentes para com eles formar brigadas
de manobra, não vinculadas a um território determinado e susceptíveis de
serem utilizadas num plano operativo único. Destas brigadas, posteriormente,
formaram-se divisões e corpos de exército. Por sua disciplina, seus conheci­
mentos militares, sua potência combativa e seus métodos de fazer a guerra,
este exército revolucionário regular se distinguia essencialmente das guerri­
lhas, que, no entanto, continuavam exercendo um papel importantíssimo. A
combinação das duas formas de luta foi uma das principais características
da guerra revolucionária na Iugoslávia.
O inimigo enfrentado pelos iugoslavos não era mais débil do que o
existente na França ou na Itália. Os alemães sempre empregaram importantes
contingentes, aos quais se somavam tropas italianas, búlgaras, etc. e as
forças armadas dos diversos fantoches do ocupante — alem dos tc h e tn ik s de
Mikhailovitch.
tos Cfr. Dedijer, o p . cit., p. 189.
109 Ib id ., pp. 189-190.

no Ib id ., p. 217.
in Ib id ., p. 218.
112 Cfr. Fejto, o p . cit., p. 79 e Dedijer, o p . cit., pp. 231-232.

475
'13 A referência à entrevista Stalin-Tito encontra-se em Dedijer, o p . cit., pp.
243-244. Sobre a divisão das “cotas de influência” nos Balcãs, cfr. a nota 153
deste capítulo.
"4 Dedijer, o p . cit., p. 246.
" 5 Fejto, o p . cit., p. 83.

"4 A p u d Basile Darivas, “De la Résistence a la Guerre Civile en Grèce”,


R e c h e r c h e s In te rn a tio n a le s, n.° 44-45, 1964. O telegrama de Churchill encon­
tra-se à página 268. É interessante notar que esta publicação do PCF cita
o testemunho de Churchill sobre as “mãos livres” que Stalin lhe concedeu
na Grécia sem discutir a sua veracidade.
" 7 O VIII Congresso do Partido Comunista grego assinalou precisamente os
erros cometidos durante 1944 e inícios de 1945: “Primeiro: o a c o r d o d o
.L íb a n o , em maio de 1944, pelo qual fizemos concessões inadmissíveis que,
fundamentalmente, facilitaram os constantes esforços dos imperialistas ingleses
e da oligarquia plutocrática grega para restaurar o antigo regime e impedir
que o povo grego decidisse sobre seu destino. Segundo: o a c o r d o d e C aserta,
que colocava as forças armadas gregas sob o comando do general inglês
Scobie. Terceiro: a ausência de preparação política, ideológica, organizacional
e militar da direção do partido para a b a ta lh a d e d e z e m b r o , que nos foi
imposta pelos imperialistas ingleses e seus serventuários. Quarto: o a c o r d o d e
V a rk iza , que foi um compromisso inaceitável e, de fato, uma capitulação
ante os imperialistas ingleses e a reação grega” ( V I I I C o n g re sso d o P C G , em
grego, Edições Políticas e Literárias, 1961, p. 99).
"3 A p u d André Kedros, L a R é s is te n c e G re c q u e , Laffont, Paris, 1967.
Cfr. a nota 106, onde damos as referências pertinentes. Sem mencionar nomi­
nalmente os partidos comunistas francês e italiano, o informe de Kardelj
apresenta a política do partido iugoslavo polemizando com a daqueles. Entre
os termos desta crítica indireta e a versão da crítica direta dada pelas notas
de Reale há coincidências essenciais.
'2 0 Referência às posições do secretário-geral do PC americano, Earl Browder,
já aludido anteriormente (N. do T.).
' 2 ' Informe de Kardelj, C o n fe r ê n c ia K o m in fo r m 1947, cit., p. 52.
122 Informe de Gomulka sobre a atividade do partido polonês, C o n fe r ê n c ia K o ­
m in fo r m 1947, cit., p. 79.
123 Dedijer (o p . cit., p. 308) descreve da seguinte maneira as reações de Duelos
e Longo à crítica iugoslava, “apoiada” por Zdhanov do modo que indicamos:
“Duelos e Longo reagiram de forma muito diferente à crítica da delegação
iugoslava. Duelos estava furioso e muito aborrecido, recusou-se a conversar;
depois da reunião, saiu para o parque, sentou-se sozinho num banco, balan­
çando nervosamente as suas pernas curtas, que não tocavam o chão. Longo,
ao contrário, pediu um encontro com nossos delegados, para conhecer em
detalhe as nossas críticas e lhes disse que a linha política do Partido Comu­
nista italiano durante a guerra fora ditada por Moscou”.
124 Cfr. as pp. 31-40 do volume anterior e as pp. 342-344, 349, 366-367, 370-371,
387-397 deste volume.
125 Cfr., no volume anterior, as partes “Stalin revisionista, ou o socialismo
integral num só país” (cap. A crise teó ric a ) e “A experiência frentista” (cap.
A crise p o lític a ).
'24 Cfr., no volume anterior, a parte “O último ato” (cap. A crise p o lític a ).
127 N o te s e t É tu d e s D o c u m e n ta ir e s (Documentation française), 5 de maio de
1951, p. 6 — entrevista com o Marechal Stalin, por Elliot Roosevelt, 21
de dezembro de 1946, publicada em D a ily M a il, 22 de janeiro de 1947.

476
u* Declaração dos nove partidos, C o n fe r ê n c ia K o m in fo r m 1947, cit., p. 6 .
IJV sinlln, D isc o u rs e t O rd re s d u J o u r (1941-1945), Édition France-URSS, 1945,
p. 106.
1 "i Informe de Zdhanov na reunião constitutiva do Centro de Informação dos
1'urtidos Comunistas, C o n fe r ê n c ia K o m in fo r m 19 4 7 , cit., pp. 12-14.
Dl C o n fe r ê n c ia K o m in fo r m 1947, cit., pp. 22 e 7.
133 C o rre sp o n d ê n c ia e n tr e o P re sid e n te d o C o n s e lh o d e M in is tr o s da U R S S e
P re sid e n te d o s E sta d o s U n id o s e o P rim e ir o -M in istro d a G r ã -B re ta n h a d u r a n te
a G r a n d e G u e rra P a tr ió tic a (1 941-1945), em russo, Edições Políticas do Estado,
Moscou, 1957, pp. 200-202 — mensagem pessoal e rigorosamente secreta de
Roosevelt a Stalin, recebida por este a l.° de abril de 1945. Em seu livro
sobre a guerra fria, André Fontaine refere-se a esta ameaça de Roosevelt
(o p . cit., t. I, p. 275).
133 Diante da reiteração, por de Gaulle, da sua conhecida tese de que a divisão
das “esferas de influência” provém de Ialta, o Departamento de Estado
divulgou um comunicado, datado de 23 de agosto de 1968, declarando que
na conferência da Criméia “não se tratou de nenhum modo, direto ou indi­
reto, das questões de esfera de influência”. L e M o n d e , de 25-26 de agosto
de 1968, tentou apoiar esta tese do Departamento de Estado publicando
o texto integral dos acordos de Ialta que — como todos os acordos públicos
das três potências — têm, naturalmente, além de outros objetivos, o de
ocultar dos povos o fato da “divisão”, quer mediante uma formulação que
o dissimule (quando o texto se refere concretamente a aspectos da “divisão”),
quer mediante a omissão dos arranjos secretos que se efetivaram no curso
da conferência. Quanto ao primeiro método, o texto oficial dos acordos de
Ialta se refere, por exemplo, ao caso iugoslavo, dizendo que as três potências
convieram em recomendar a Tito e a Subachitch que implementem imediata­
mente o acordo firmado entre eles (acordo a que nos remetemos anterior­
mente), mas não diz que este acordo foi imposto a ambos pelas pressões
secretas de Stalin, por um lado, e por Roosevelt-Churchill, por outro, em
função da secreta divisão das esferas de influência na Iugoslávia, acertada
entre Stalin e Churchill em outubro de 1944. Algo parecido se poderia dizer
do ponto referente à Polônia e a outros casos. O estranho é que os comu­
nistas leia m do mesmo modo que o Departamento de Estado os textos oficiais
de Ialta ou de outras conferências dos “três”; assim procedem, por exemplo,
Sérgio Segre, em seu ensaio “De la Derrota dei Nazismo a la Lógica de los
Bloques Militares” (C ritic a M a rx is ta , n.° 4-5, 1968) e E. Ragionieri, em seu
prefácio ao volume publicado por Ed. Riuniti, 1965, contendo as atas das
reuniões dos “três grandes”, de Teerã a Ialta.
134 Deborin, L a S e g u n d a G u e rra M u n d ia l, ed. espanhola, Moscou, 1961, p. 214.

135 A p u d André Fontaine — que tem por fonte as memórias de Churchill —,


o p . cit., t. I, p. 208; a versão da entrevista está nas pp. 206-208.
136 H istó r ia d o M o v im e n to R e v o lu c io n á r io (M is l), cit., pp. 43-44.
137 Cfr. p. 342 deste volume.
138 Cfr. André Fontaine, o p . cit., t. I, p. 211.
139 A p u d P. Broué, L e P a rti B o lc h e v iq u e , Ed. du Minuit, Paris, 1963, pp. 433-434.
140 Trótski, L a R é v o lu tio n T ra h ie , IV Internationale, pp. 167-168.
141 Apud P. Broué, o p . cit., pp. 434-435.
142 Cfr. a nota 55 deste capítulo, na qual se transcreve a caracterização feita
por Togliatti do movimento de massas e do movimento guerrilheiro, bem
como da crise do Estado italiano neste período.

477
143 Cfr. André Fontaine, o p . cit., t. I, pp. 216-218. O humor de Stalin é recor­
dado por Churchill nas suas M e m ó r ia s , t. V, vol. II, p. 72 da edição inglesa.
O “Pai dos Povos” não sabia até que ponto estava dizendo a verdade.
144 Deborin, o p . cit., pp. 371-399. Deborin se apóia nas M e m ó r ia s de Cordell
Huli, secretário de Estado neste período, onde se relata que Churchill argu­
mentou, na conferência de Quebec, pela conveniência da abertura da segunda
frente nos Balcãs porque “a irrupção soviética” naquela área atingiria impor­
tantes “interesses ingleses e norte-americanos” (Cordell Hull, T h e M e m o ir s ,
vol. II, p. 1.231).
'4 5 Stalin, D is c o u r s e t O rd re s d u J o u r (1 941-1945), cit., pp. 95-96, 101 e 105.

146 Editorial de N u e s tr a B a n d e ra , revista do Partido Comunista da Espanha, 30


de junho de 1944.
'47 I. Maiski, “Le Problème du Second Front”, R e c h e r c h e s In te rn a tio n a le s, n.°
9-10, Paris, 1958, p. 239.
'48 G r a n d e E n c ic lo p é d ia S o v ié tic a , em russo, t. 7, p. 181.
149 Deborin, o p . cit., p. 425.
150 Esta avaliação de Roosevelt foi feita — segundo o testemunho de seu filho
— na conferência do Cairo, entre o presidente americano e o primeiro-ministro
inglês (22-26 de novembro de 1943); cfr. Elliot Roosevelt, A s i lo V e ia m i
P a d re, ed. espanhola, p. 196.
151 T h e C o n fe r e n c e s o f M a lt a n d Y a lt, Departament of State USA, 1959, pp.
523 e ss.
152 Stalin, D is c o u r s e t O rd re s d u J o u r , cit., pp. 95-96.
’ 53 é claro que a divisão das “esferas de influência” na Europa se fez guar­
dando, em geral, as formas diplomáticas que convinham às características
da segunda guerra mundial — ou seja, justificando-a com o respeito à indepen­
dência das nações, ao direito dos povos a decidirem seus destinos, etc. O
que não impediu que, em alguns casos, se recorresse a uma linguagem mais
direta. Eis aqui uma pequena amostra — em suas M e m ó r ia s , Churchill relata
a sua entrevista com Stalin no dia 9 de outubro de 1944: “O momento era
favorável e, por isto, declarei: Acertemos nossos assuntos nos Balcãs. Os
seus exércitos se encontram na Romênia e na Bulgária. Nós temos interesses,
missões e agentes nestes países. Evitemos choques por questões menores. No
que toca à Grã-Bretanha e à Rússia, o que diria o Senhor de um predomínio
de 90% na Grécia para nós e de uma paridade na Iugoslávia? Enquanto lhe
traduziam as minhas palavras, escrevi numa folha de papel:
R o m ê n ia Iu g o slá v ia H ungria B ulgária
Rússia 90% 50% 50% 75%
Os outros 10% 50% 50% 25%
G récia
Grã-Bretanha/Estados Unidos 90%
Rússia 10%

Coloquei o papel diante de Stalin, para o qual já tinham feito a tradu­


ção. Houve uma pausa. Depois, ele tomou seu lápis azul, fez com um traço
grosso o sinal de aprovação e me devolveu a folha. Tudo se acertou num
tempo menor do que o da escrita destas linhas. [...] Em seguida, fez-se um
longo silêncio. O papel, com o traço azul, repousava no centro da mesa.
Finalmente, disse-lhe: — Não parecerá um pouco cínico a forma desenvolta

478
com que resolvemos estes problemas, de que depende o destino de milhões
«Ir pessoas? Queimemos o papel. — Não, guarde-o, replicou Stalin”.
No dia seguinte — continua Churchill —, entabulou-se entre Eden e
Molotov uma verdadeira discussão de negociantes sobre o cálculo exato dos
percentuais. Sucessivamente, Molotov propôs as seguintes combinações (as
cifrus indicam o “percentual” russo):

H u n g ria R o m ê n ia B u lg á ria Iu g o slá v ia


75 90 90 75
75 90 75 75
75 90 90 50
75 90 90 60
80 90 80 60

Finalmente — diz Churchill —, acertou-se a última combinação (a p u d


André Fontaine, o p . cit., t. I, pp. 244-245).
A discussão sobre a segunda frente recobriu também, na prática, o
problema da “divisão”. Os ingleses, durante toda a guerra, insistiram em
abrir a segunda frente nos Balcãs, por razões facilmente compreensíveis.
Os soviéticos, tenazmente, se opuseram, por razões não menos compreensíveis
se se leva em conta toda a tradição da diplomacia russa. Mas uns e outros
argumentaram com razões de eficiência militar. Na realidade, tratava-se de
determinar que zonas, eventualmente, ficariam sob o controle de uns e outros.
Convém assinalar que os soviéticos não desmentiram a versão de Chur­
chill. E, como nota André Fontaine (op. cit., p. 288), a edição russa da
correspondência secreta entre os “três grandes” omitiu uma mensagem de
Churchill a Stalin, de junho de 1945, na qual se alude explicitamente à di­
visão das “esferas de influência” nos Balcãs em outubro de 1944. A mesma
edição conserva, porém, uma mensagem de Churchill a Stalin, de 28 de
abril de 1945, na qual se lê: “Devo dizer, também, que o rumo dos aconte­
cimentos na Iugoslávia é tal que não corresponde à relação dos interesses
de nossos países na proporção meio a meio”. Na resposta de Stalin não há
qualquer objeção à “lembrança” de Churchill.
154 Stalin, D is c o u r s e t O r d re s d u J o u r, cit., pp. 105-106.
'55 Cfr. p. 396 deste volume.
'54 Cfr. André Fontaine, o p . cit., t. I, p. 258. A oposição trabalhista inglesa,
naturalmente, interessava-se em aproveitar os acontecimentos gregos com
vistas às próximas eleições. Depois de afastar Churchill, os trabalhistas pros­
seguiram com a mesma política na Grécia. Quanto aos dirigentes americanos,
já se preparavam para substituir os ingleses na Grécia.
'57 Às vésperas da libertação, o EAM (Frente de Libertação Nacional) tinha
organizados nas suas fileiras mais de 1.500.000 homens e mulheres. Referin-
do-se aos combates de Atenas, André Fontaine diz (op. cit-, t. I, pp. 249-250):
“O ELAS [Exército de Libertação Nacional] esteve a ponto de ganhar”.
“No Natal, Churchill desembarcou em Atenas, ignorando que ele mesmo
asseguraria o fracasso da insurreição do ELAS. De fato, este projetara explo­
dir o Hotel Grã-Bretanha, centro do Estado-Maior inglês e do ‘governo’
Papandreu, cuja autoridade não ultrapassava algumas centenas de metros
quadrados. À confusão proveniente da explosão seguir-se-ia uma ofensiva
geral, mas o ELAS renunciou ao seu projeto devido à presença de Churchill,
que aceitara uma entrevista com os seus emissários”. Realmente, o que levou
o EAM à perdição foi a busca, a todo custo e adaptando-se à política de

479
Stalin, de um compromisso com Churchill, por parte da direção do Partido
Comunista grego.
158 Segundo a historiografia soviética, o plano dos alemães era tomar o porto
de Amberes, base fundamental para o abastecimento dos exércitos aliados,
isolar e destruir o núcleo destes exércitos na Bélgica e na Holanda e assim
impossibilitar a projetada ofensiva dos aliados.
159 C o r re s p o n d ê n c ia e n tr e o P re sid e n te d o C o n s e lh o d e M in is tr o s d a U R S S . . . ,
ed. cit., t. I, p. 299.
150 A p u d Deborin, o p . cit., p. 485.
léi I b id ., p. 425. A historiografia soviética, como é lógico, vale-se dos documentos
secretos e das M e m ó r ia s dos principais protagonistas ingleses e americanos
que confirmam que estes eram os objetivos dos aliados — mas vale-se deles
apenas como elementos de corroboração. A fundamentação essencial da
análise realizada por esta historiografia se baseia em fatos e dados conhecidos
por Stalin e pelos dirigentes soviéticos durante a própria guerra, na inter­
pretação que então faziam de tais fatos e dados à luz dos interesses de classe
representados pelos chefes anglo-americanos. Tomemos, como exemplo, uma
das obras mais representativas da interpretação oficial — a já tão citada de
Deborin, escrita em colaboração com o general I. Zubkov (remetemos às
páginas da edição espanhola que estamos utilizando).
Na página 337 e ss., analisam-se os projetos operacionais dos aliados em
1942, relativos ao Norte da África, à Itália e aos Balcãs, e se mostra que,
através do simples exame da imprensa americana daquele ano, era possível
discernir por trás dos projetos os interesses dos grupos monopolistas anglo-
americanos. Na página 344 se assinala “o apoio dos Estados Unidos aos
representantes da reação francesa, lacaios da Alemanha fascista”, no Norte da
África, depois do desembarque. À página 350 se alude aos artigos de Walter
Lippman de 1943, nos quais se lança a idéia de uma “Comunidade Atlân­
tica” como instrumento da hegemonia mundial dos Estados Unidos. Na
página 354 se realça a política de aberta proteção a Franco praticada pelos
governos de Washington e Londres, à base de dados então públicos. Na página
395 se qualifica como sistema colonial o poder estabelecido pelas autoridades
militares aliadas na zona libertada do Sul da Itália. Na página 399 se explica
que a delegação soviética à conferência de Teerã se opôs aos planos britâ­
nicos de desembarque nos Balcãs porque o seu verdadeiro fim — esclarece-o
Deborin na página 337 e ss. — era “impor a estes povos o regime colonial
do imperialismo britânico e restabelecer o c o r d o n sa n ita ire anti-soviético”.
Na página 425 se encontra o parágrafo — que citamos — sobre os objetivos
dos aliados com o desembarque na Normandia. Na página 474 e ss. se
caracteriza, nos termos mais duros, a intervenção inglesa na Grécia e se diz
que “a ocupação da Grécia por tropas britânicas indignou profundamente
a opinião democrática do mundo inteiro” (observemos, de passagem, o seguin­
te detalhe significativo: Deborin não cita um só testemunho — se houvesse,
ele não deixaria de referi-lo — de como esta indignação se refletiu na
imprensa ou nos documentos oficiais soviéticos).
159 Stalin não podia ignorar este fato — a transferência de tropas aliadas da
Itália para a Grécia — porque, em Atenas, havia uma missão militar sovié­
tica junto ao quartel-general do corpo expedicionário inglês.
153 Deborin, o p . cit., p. 485.
154 Ib id ., p. 481.
155 A lia n ç a , c o a lizã o — em russo, no original. N . d o T.
165 Engels, ‘‘La questión que está realmente em juego en Turquia”, O b ra s d e
M a r x e E n g e ls, em russo, 2.a ed., t. 9, p. 15.

480
I»' llr. p. 395 deste volume.
!'•“ Cfr. F. Fejto, o p . cit., t. I, p. 57. Nesta obra se revelam os seguintes dados
«la “rápida e brutal sovietização” da Polônia oriental, imediatamente após a
sua ocupação pelas tropas soviéticas em 1939: supressão de todos os partidos
políticos poloneses, ucranianos, bielo-russos e judeus; prisão de milhares de
socialistas e membros do Partido Agrário; deportação de cerca de 1.200.000
cidadãos poloneses, além dos 250.000 soldados do exército polonês aprisio-
nudos e internados. Os poloneses deportados foram libertados depois do
utuque da Alemanha à URSS, mas uns 200.000 haviam desaparecido. Alguns
dos dirigentes políticos libertados em 1941 foram novamente presos — entre
eles, dois dos principais chefes do partido socialista judeu (B u n d ), Henryk
F.rlich e Víctor Adler. Estas duas personalidades, quando da ocupação da
Polônia ocidental pelos nazistas, refugiaram-se na parte oriental do país;
cm 1941 aceitaram, por convite do governo soviético, constituir um Comitê
Mundial Judeu Antifascista, cujos estatutos enviaram a Stalin; depois da
evacuação de Moscou (outubro de 1941), foram mandados para Kuibitchev
para esperar a resposta de Stalin — a 3 de dezembro foram detidos e
executados.
I** Sobre a importância da Resistência polonesa subordinada ao governo exilado,
cfr., na obra que citamos na nota anterior, as pp. 56-57. Seguindo instru­
ções do governo exilado, a l.° de agosto de 1944 a Resistência desencadeou
a insurreição de Varsóvia, com a evidente intenção de libertar a capital e
instaurar seu próprio poder antes da chegada das tropas soviéticas, que se
encontravam muito próximas. Estas, no curso da insurreição, chegaram às pe­
riferias de Varsóvia, no outro lado do Vístula; dali se limitaram a bombardear
as posições alemãs, mas não lançaram nenhum ataque que, combinado à
insurreição da Resistência, poderia liquidar com os alemães. Ao cabo de
dois meses de combates, os habitantes de Varsóvia tiveram que capitular sobre
as ruínas da sua capital. Os soviéticos explicaram a sua passividade por
razões técnicas.
170 C o r re s p o n d ê n c ia e n tr e o P re s id e n te d o C o n s e lh o d e M in is tr o s d a U R S S . . . ,
ed. cit., t. II, p. 224.
171 Ib id ., p. 201.

172 Ib id ., p. 204.
173 A p u d André Fontaine, o p . cit., t. I, p. 280.

174 C o r re s p o n d ê n c ia e n tr e o P re s id e n te d o C o n s e lh o d e M in is tr o s d a U R S S . . . ,
ed. cit., pp. 217-218. Na Bélgica, a Resistência também fora duramente re­
primida no inverno de 1944-1945.
175 Cfr. K. S. Karol, V isa p o u r la P o lo g n e , Gallimard, Paris, 1958, pp. 97-98.

176 Está no ponto III do protocolo. Posteriormente, este plano foi abandonado.
177 Cfr. André Fontaine, o p . cit., t. I, pp. 285-286.

178 A p u d Robert Murphy, D ip lo m a te p a r m i les G u erriers, Robert Laffont, Paris,


1965, p. 232.
179 Cfr. p. 427 deste volume. Em sua mensagem de 12 de maio a Truman, Churchill
opina que “os russos poderiam avançar, se quisessem, até as costas do
Mar do Norte e do Atlântico” (a p u d André Fontaine, o p . cit., t. II, p. 285).
180 L e M o n d e , 11 de agosto de 1945.

181 Declaração de Stalin a um correspondente do P ravdw , citamos segundo a


versão espanhola de N u e s tr a B a n d e ra , revista do PCE, n.° 5, 1946.
182 “Les Interviews du Maréchal Staline (1945-1951)”, L a D o c u m e n ta tio n F ra n -
çaise, 5 de maio de 1951, pp. 3, 4, 6 e 7.

481
183 Dedijer, o p cil., p. 334 e Djilas, C o n v e rs a tio n s a v e c S ta lin e , ed. cit., p. 200.
184 Mao Tsé-Tung, O e u v r e s C h o isie s, ed. de Pequim, t. IV, 1962, pp. 87-88.
'85 Cfr. fonte referida na nota 182, p. 4.
186 Quando da rebelião de maio, na França, a questão foi novamente suscitada —
L ’H u m a n ité teve que responder, sob a assinatura de Marcel Veyrier, à carta
de um comunista, na qual se sustentava a tese da possibilidade da revolução
em 1944-1945; o partido teria recuado pela oposição de Stalin e pelo medo
da eventualidade de uma intervenção americana (cfr. L ’H u m a n ité , 24 de ja­
neiro de 1969). Sartre retomou o problema na sua entrevista, concedida a
D e r S p ie g e l e publicada pelas Ed. Didier (Paris, 1968) sob o título “Les
Communistes Ont Peur de la Révolution”; na sua opinião, o partido recuou
em 1944-1945 simplesmente porque “seu objetivo não era fazer a revolução”
(p. 14).
Também na Itália o problema foi abordado, ainda que muito tangencial­
mente, no debate sobre a política de frente popular e nacional que se pu­
blicou, no curso de 1965, nas páginas de C ritica M a rx is ta . Um homem nada
extremista, como Lelio Basso, admitindo que os acordos de Ialta dificultavam
a solução socialista, observa: “Mas entre o socialismo e a ‘restauração’
pós-1945 havia uma infinita gama de soluções, entre as quais me obstino em
acreditar que o movimento operário poderia ter avançado muito profunda­
mente se não tivesse aceito, durante e depois da Resistência, em nome da uni­
dade antifascista, uma série de compromissos que facilitaram a restauração”
(C ritic a M a rx is ta , julho-agosto de 1965, p. 17).
'87 O documento do PCF que mais profundamente aborda esta questão é o do Birô
Político de 3 de outubro de 1952, sobre os casos de André Marty e Charles
Tillon (reproduzido em C a h ie rs d u C o m m u n is m e , n.° 10, 1952). O conflito
com estes dois dirigentes do partido tinha como substrato divergências a
propósito da política seguida durante a Resistência e no período seguinte
à Libertação. Essencialmente, Marty e Tillon — este último tivera postos de
máxima responsabilidade na organização militar da Resistência — conside­
ravam que o partido praticara uma política oportunista e desperdiçara a
sua chance. A direção do PCF sufocou a discussão com os métodos ha­
bituais, recorrendo a ignóbeis calúnias contra Marty, que foi expulso do
partido; Tillon permaneceu nele, ficando marginalizado. No referido do­
cumento, diz-se: “Charles Tillon declarou recentemeente, num comício em
Drancy, que era ridículo acusar-nos de querer tomar o poder no último
28 de maio quando pudéramos fazê-lo em 1944 — e não o fizemos por fi­
delidade a nossos compromissos. Assim, Charles Tillon dá a entender que
o partido asssumiu não se sabe que tipo de compromissos nas costas da
classe operária e do povo, ao invés de explicar a realidade, ou seja, que
em 1944 não existiam as condições para que a classe operária pudesse tomar
o poder”. E o Birô Político fornece a seguinte explicação: “Em agosto
de 1944, a guerra ainda não terminara. Uma inversão das alianças, voltando
as potências capitalistas contra a União Soviética, era possível. Se se ofe­
recesse um pretexto aos americanos, que chegaram à França como com­
batentes da undécima hora pelo temor de ver o exército soviético avançar
muito em direção ao Oeste, eles não hesitariam em se aliar na Europa com
a Alemanha e na Ásia com o Japão para erguer todas as forças do ca­
pitalismo internacional contra a pátria do socialismo. Na própria França,
apesar dos consideráveis progressos da sua influência, o partido seria rapi­
damente isolado se se lançasse por uma via alternativa à continuação da
guerra contra Hitler — e isto só redundaria num sangrento fracasso. Com
isto, fornecer-se-ia a de Gaulle o pretexto para recorrer aos exércitos
anglo-americanos a fim de liquidar a classe operária, entender-se com Pétain

482
e prosseguir a sinistra tarefa da Gestapo. A sábia e clarividente política do
partido evitou isto. Os comunistas somos revolucionários, não aventureiros”.
E, mais adiante: “A atitude em face da União Soviética é a pedra-de-toque
dos partidos comunistas, tanto no plano do internacionalismo proletário,
quanto no plano da política conseqüente de independência nacional”.
A resposta a esta argumentação está dada ao longo de nossa análise e
não vamos reiterá-la aqui. Assinalemos, porém, os truques polêmicos de que
se vale o Birô Político:
a) coloca a questão como se se tratasse de tomar o poder em agosto de 1944.
Mas ninguém se aborreceria com a tomada do poder em abril de 1945,
quando já não havia nenhum risco de inversão das alianças e a tentativa
poderia coincidir com a grande insurreição do Norte da Itália. A partir de
agosto de 1944, o que era possível ao partido consistia em encaminhar-se
no rumo do aprofundamento e do desenvolvimento do formidável mo­
vimento nascido da Libertação — preparar as condições para a tomada do
poder na conjuntura propícia;
b) coloca a questão como se o dilema fosse ou tomar o poder ou continuar
a guerra contra a Alemanha. Mas, supondo-se que fosse possível a to­
mada do poder, ela significaria o fim da guerra à Alemanha? Por que não
a sua transformação em guerra popular, revolucionária, em defesa do
novo poder e pela derrota final do hitlerismo? Mais ainda: não havia
outro modo de continuar a guerra contra a Alemanha que aquele esco­
lhido pela direção do partido, submetendo-se ao comando de de Gaulle e
dos americanos, liquidando com as forças armadas da Resistência, redu­
zindo os comitês de libertação a órgãos decorativos, etc.?;
c) coloca a questão da inversão das alianças como se a de Roosevelt com
Hitler e com o Mikado fosse, em 1944-1945, uma operação simples e
fácil — bem como a de de Gaulle com Pétain. Vê apenas o perigo do
isolamento do partido, não o do isolamento dos americanos e de de Gaulle.
A chave da posição adotada está revelada, porém, no próprio do­
cumento: “A atitude em face da União Soviética é a pedra-de-toque dos
partidos comunistas [ ...] ”. Não a “União Soviética”, mas Stalin proibia a
Thorez sequer a colocação da exploração das possibilidades revolucionárias
abertas pela Libertação.
188 Cfr. a nota 55 deste capítulo.

189 G r a n d e R ú ssia — em russo, no original. N . d o T.


190 A p u d Joseph R. Starobin, historiador americano que escreveu o ensaio
“Origins of the Cold War: The Communist Dimension”, F o re ig n A ffa ir s ,
julho de 1969, p. 685.
191 Cfr. L ’I n te r n a tio n a le C o m m u n is te a p rè s L é n in e e t T r o ts k i , PUF, Paris, 1969,
p. 94.
192 Cfr. S ta lin , cit., capítulo XII. No seu último ensaio, L a R e v o lu c ió n I n c o n d u s a
(Ed. Era, México, 1967, p. 85), Deutscher faz a seguinte e sintética apre­
ciação: “Uma guerra civil internacional, com imensas potencialidades sociais
revolucionárias, desenvolveu-se dentro da segunda guerra mundial. No entan­
to, o stalinismo continuou aferrando-se à segurança tradicional, à raison
d ’É ta t e ao sagrado egoísmo nacional. Conduziu a guerra como uma ‘Guerra
Patriótica’, outra versão de 1812, e não como uma guerra civil européia. Não
opôs ao nazismo a idéia do socialismo e a revolução internacional. Stalin não
acreditava que esta idéia pudesse impulsionar os seus exércitos à luta, nem
que pudesse contagiar e desintegrar os exércitos inimigos, como ocorrera nas
guerras de intervenção. Mais ainda: instou junto aos movimentos de resis-

483
tènda dirigidos pelos comunistas na Europa para que lutassem unicamente
pela libertação nacional, não pelo socialismo”.
193 Deutscher, S ta lin , ed. cit, pp. 438-439.
'94 N. Pavlenko e V. Kniajinski, “Las Relaciones Internacionales después de la
Segunda Guerra Mundial”, em russo, Instituto de Economia Mundial e de
Relações Internacionais da Academia de Ciências da URSS, 1962, paràgrafo
do capítulo XIII, publicado em R e c h e r c h e s I n te r n a tio n a le s , n.° 44-45, 1964,
p. 56.
195 R a z ã o d e E sta d o . Em francês, no original (N. do T.).

484
2 O CENTRO DE INFORMAÇÃO DOS PARTIDOS
COMUNISTAS

As revoluções na área de projeção soviética

Quando da sua libertação pelos exércitos soviéticos, os cinco


puíses do Leste que seriam integrados na área de projeção soviética
upresentavam características muito diferentes. O desenvolvimento in­
dustrial da Tchecoslováquia contrastava com o caráter predominan-
lemente agrário dos outros quatro, entre os quais, por outro lado,
existiam diferenças substanciais na equação indústria/agricultura. A
Polônia, a Tchecoslováquia e a Bulgária eram eslavas — mas en­
quanto entre os poloneses imperava a russofobia, os tchecoslovacos
c os búlgaros se distinguiam por sua russofilia. A Romênia e a
Hungria tinham poucas vinculações étnicas e culturais com a Rússia.
Na Tchecoslováquia, à simpatia pela União Soviética se somava a
presença de um partido comunista tradicionalmente influente e que,
durante a Resistência, transformou-se no primeiro partido político
do país. Embora em escala menor, os comunistas búlgaros contavam
com sólidas tradições, organizaram um movimento guerrilheiro de
certa importância e, no momento da libertação, representavam a
força política mais ativa e organizada. Em troca, os partidos comu­
nistas da Polônia, da Romênia e da Hungria eram pequenas organi­
zações, com reduzidíssima influência sobre as massas. A Tchecos­
lováquia vivera vinte anos de democracia parlamentar, ao passo que
os outros quatro experimentaram neste período regimes reacionários
e ditaduras semifascistas. A Polônia e a Tchecoslováquia estavam
no campo vencendor; a Hungria, a Romênia e a Bulgária pertenciam
ao campo vencido. Outras significativas diferenças, de tipo diverso,
poderiam ainda ser arroladas.
O simples fato de que, nestes cinco países, os partidos comu­
nistas conquistaram o monopólio do poder quase simultaneamente
(no decurso de 1947-1948), ajustando o regime sócio-político a idên­
tico esquema, demonstra por si mesmo que os fatores determinantes
deste desenvolvimento não foram os nacionais. Na Tchecoslováquia,
a classe operária poderia ter tomado o poder no processo da liber­
tação e iniciado a revolução socialista sobre bases ampiamente demo­
cráticas. De acordo com a feliz expressão de H. Ripka, na Tchecos­
lováquia a revolução não foi pré-fabricada — foi-o o seu adiamento 1.

485
Na Bulgária, ainda que noutro contexto, análoga possibilidade (a rea­
lizar-se sob outras formas) se apresentou. Mas a Polônia, eviden­
temente, não reunia condições — dado o leque de forças políticas
ali existentes — mais que para uma democracia burguesa, na qual
os comunistas e os socialistas de esquerda deveriam batalhar para
obter o apoio das massas. O mesmo se dava na Romênia e na Hun­
gria. A União Soviética poderia proteger os que lutassem pelo
socialismo nestes três países contra quaisquer intervenções das potên­
cias imperialistas, facilitando assim a sua ação — mas apenas esta
ação levaria a uma transformação revolucionária que fosse o fruto
e a expressão da vontade popular. Nos três casos, o exército soviético
substituiu a vontade das massas. Foi ele quem tomou o poder e colo­
cou os seus suportes decisivos — o comando do exército, a polícia,
a informação — nas mãos dos comunistas, revestindo este poder
real, durante uma primeira fase, sob formas “democrático-parlamen-
tares”. Como depois o reconheceu Rakosi, o partido assegurou-se
desde o primeiro momento da libertação “o controle absoluto da
AVO, a polícia política”. “Foi a única instituição cuja direção assu­
mimos totalmente, sem compartilhá-la com os outros partidos da
coalizão conforme a respectiva proporção de forças” 2. O problema
do exército, neste caso, foi resolvido — como o explica o próprio
Rakosi — pela redução ao mínimo dos seus efetivos (12.000 homens,
em troca dos 70.000 a que a Hungria tinha direito segundo os ter­
mos do armistício) e pela sua dispersão por todo o país. “A presença
do exército vermelho — prossegue Rakosi — diminuiu a importân­
cia da luta que deveríamos travar pela influência comunista sobre
a maioria dos militares. [. . .] O reforço do exército húngaro só
começou em 1948, quando o partido comunista assumiu o m inistério
da Defesa” 3. O que Rakosi nunca explicou é como o partido pôde
monopolizar a polícia política e liquidar praticamente o exército
antes de assumir o ministério da Defesa sendo tão extremamente
minoritário, como o demonstraram as eleições de 1945 (o PC obteve
15% dos votos, contra os 8 5% dos outros partidos da coalizão, 57%
dos quais dirigidos para o partido dos pequenos proprietários)4.
Na Romênia e na Polônia, o partido comunista assegurou-se o con­
trole do exército desde os primeiros meses.
“Exportar a revolução? Tolice! Cada país faz a sua revolução
se assim o deseja; se não, não há revolução” — foi o que Stalin
disse, em 1937, a um jornalista americano5. Dois anos e tanto
depois, a “tolice” foi ensaiada nos países bálticos, nas regiões orien-

486
inis da l)olônia, na Bessarábia e na Bukovina, mas ela podia se apre-
.cntar com outra significação. Desde 1945, a Polônia, a Hungria e
a Romênia passaram a ser exemplos clássicos de “revolução expor-
ladu’1, realizada pelo alto, por um poder emanado do libertador-
ocupante. O que não quer dizer que este poder não levasse a cabo
uma tarefa progressista — e, em certos aspectos, revolucionária — de
liunsformação social (reformas agrárias, nacionalizações industriais,
reconstrução do país, etc.), que lhe valeu, durante um primeiro mo­
mento, o apoio das massas trabalhadoras e de frações importantes
da intelectualidade e de outros grupos sociais. “A obra realizada
cm 1945-1947 — escreve F. Fejto em sua História das Democracias
Populares — pode ser considerada uma obra nacional, levada a
cabo com o apoio mais ou menos ativo, mais ou menos sincero, de
lodos os partidos democráticos” 6. Os progressos da influência e da
organização comunistas — enfatiza este autor, que não pode ser
acusado de simpatia pelos comunistas — não se explicam apenas
pela intervenção do exército soviético, mas porque os comunistas
foram os elementos mais decididos e dinâmicos na realização desta
obra, seus principais inspiradores e definidores. Mas estes méritos
eram obscurecidos pelo que se tornava cada vez mais evidente aos
olhos do povo: o partido comunista dependia de uma potência estran­
geira, estava submetido à disciplina de Moscou. As decisões capitais
e, freqüentemente, as acessórias eram tomadas lá — e não em Var­
sóvia ou Budapeste, Bucareste ou Sofia, ou mesmo em Praga, cuja
autonomia era maior.
A luta contra o hitlerismo fora conduzida, antes de mais, como
uma luta nacional, e a Libertação exaltou os sentimentos patrióticos.
A própria bandeira eslava era entendida em Praga e Sofia como
união de povos livres e soberanos. Mesmo os espíritos mais simpá­
ticos aos libertadores não podiam resignar-se facilmente a que uma
nova sujeição — ainda que com o selo “socialista” — substituísse
as anteriores. No período 1945-1947, o peso desta nova dependência
fez-se sentir particularmente na Polônia, pelas razões referidas, e
na Hungria e na Romênia, por pertencerem ao campo dos vencidos.
Embora a Bulgária se incluísse neste campo, a atitude pró-russa da
população e a importância do partido comunista lhe garantiram um
tratamento mais benevolente por parte de Moscou. Mas sobre a Ro­
mênia e a Hungria, além do controle militar-policial, recaíram pon­
deráveis tributos econômicos sob a forma de indenizações, manuten­
ção das tropas soviéticas instaladas no país e sob outros títulos. Os

487
bens alemães, que compreendiam as principais empresas e depósitos
bancários nos dois países, passaram às mãos do Estado soviético 7.
Como não podiam competir em matéria de patriotismo com os
outros grupos políticos quando estavam em jogo os interesses sovié­
ticos, os comunistas locais se esforçavam por se mostrar dignos pa­
triotas quando a questão tocava às outras democracias populares.
Obrigados a justificar a perda das regiões orientais, os comunistas
poloneses não só foram os campeões do antigermanismo como os
mais intransigentes no conflito com os tchecoslovacos em relação à
área de Teschen. Os comunistas tchecoslovacos, compelidos a ce­
der a Rutênia aos soviéticos, revelaram-se igualmente intransigentes
nesta questão fronteiriça e foram irredutíveis em face da Hungria
quanto ao problema das minorias húngaras na Eslováquia (houve
que “intercambiar” quase meio milhão de húngaros que viviam na
Eslováquia por um contingente menor, mas também considerável,
de eslovacos residentes na Hungria). Os comunistas romenos, obri­
gados a defender a anexação da Bessarábia e da Bukovina pela
URSS, operada por ocasião do pacto germano-soviético, evidencia­
ram o seu patriotismo diante dos húngaros (os mais prejudicados na
série de reajustes territoriais) na questão da Transilvânia. E os
búlgaros revelaram o seu em face dos romenos (em relação à
Dobrudja) e em face dos sérvios — depois da excomunhão de
Tito — (em relação à Macedònia). Moscou foi o árbitro desses lití­
gios, notáveis pela ausência do internacionalismo socialista 8.
O grande “regulador” da transformação do Leste europeu — é
supérfluo dizê-lo — foi a política staliniana, orientada para articular
todos os países desta zona num sistema político-militar protetor das
fronteiras ocidentais da URSS, bem como para ampliar o espaço
econômico do que em Moscou se entendia por construção do socia­
lismo. Isto implicava a criação de regimes que oferecessem suficien­
tes garantias políticas ao Kremlin. Durante a fase que estamos consi­
derando, Stalin tratou de conciliar a construção de tais regimes com
a tentativa de chegar a um acordo mundial, duradouro, com os
Estados Unidos. O poder efetivo deveria ficar em mãos seguras para
os interesses soviéticos, mas, ao mesmo tempo, convinha observar
aparentemente, e no limite do possível, os princípios de democracia
formal estipulados na declaração de Ialta e em outros documentos
(Carta das Nações Unidas, acordos de Potsdam, etc.). Convinha que
as medidas contra os interesses capitalistas e latifundiários (indis­
pensáveis não só para destruir as bases das classes hostis à aliança

488
preferencial com a URSS, e sobretudo à integração à sua esfera eco­
nômica, mas para criar a base social adequada ao poder político
pró-soviético) não aparecessem como um ataque em geral ao sistema
capitalista, à empresa privada. A estas considerações, derivadas da
política da “grande aliança”, há que agregar outra, de primeira
ordem, derivada das características adquiridas pelo regime soviético.
I ste não podia tolerar que o processo revolucionário aberto nos
países vizinhos desembocasse numa democracia socialista, com
órgãos de gestão econômica e política emanando verdadeiramente
do povo trabalhador e submetidos ao seu controle. Um desenvolvi­
mento deste tipo era o que poderia, com mais plenitude e rapidez,
despertar e mobilizar as energias e as iniciativas das massas, ins­
truí-las e afastá-las da influência ideológica das velhas classes diri­
gentes, erguer uma sólida barreira à política do imperialismo e, por­
tanto, constituir a melhor defesa da URSS. Mas nem a burocracia
soviética, nem os núcleos dirigentes dos partidos comunistas forma­
dos na época staliniana eram compatíveis com semelhante evolução.
A via iugoslava, que até certo ponto representava um passo neste
sentido, foi a exceção à regra e refletia, exatamente, a formação,
durante a guerra nacional-revolucionária, de um núcleo dirigente
com características novas 9.
As considerações expostas, tomadas em seu conjunto, determi­
naram em grande medida as estruturas econômicas e políticas das
chamadas democracias populares. Determinaram o “adiamento” da
revolução socialista na Tchecoslováquia e a sua substituição pela “re­
volução democrática e nacional”, conforme a definição de Gottwald.
Determinaram que, na Bulgária, quando Dimitrov já era o chefe
do governo e o poder estava praticamente nas mãos dos comunistas
e outros grupos de esquerda, o partido considerasse que a tarefa
não era iniciar a construção do socialismo, mas a “consolidação do
regime democrático-parlamentar” 10. Em virtude destas ponderações,
a “revolução democrática e nacional” foi exportada para a Polônia,
a Romênia e a Hungria, onde o controle efetivo do poder pelos
comunistas — carentes de base política para exercê-lo — ficou dis­
simulado por trás de um parlamentarismo fictício. Os comunistas
tiveram que se converter em caçadores de votos, como antes o eram
os partidos reacionários. Mas este método revelou-se insuficiente
para enquadrar na moldura da “nova democracia” partidos como o
dos pequenos proprietários na Hungria e o agrário, de Petkov, na
Bulgária — partidos nos quais se reagruparam as principais forças

489
burguesas — e houve que recorrer (com a hábil ajuda dos serviços
secretos soviéticos) à montagem de complôs que permitissem justi­
ficar a repressão contra tais partidos. Muito rapidamente o sistema
parlamentar se converteria em farsa, inclusive na Tchecoslováquia,
o único país onde possuía certa autenticidade.
A via iniciada nos países do Leste, a partir da sua libertação
pelos exércitos soviéticos, era totalmente nova para os partidos co­
munistas. A experiência mais próxima — que, nas teorizações poste­
riores, foi apresentada como um primeiro exemplo de “democracia
popular” — era a república espanhola de 1936-1939; mas, além de
que esta experiência tivera lugar nas condições excepcionais da guerra
civil e da intervenção armada estrangeira, faltava nela o fator que
foi determinante nas democracias populares do Leste — a presença
(em ato ou potencial) do exército soviético. As explicações doutriná­
rias “marxistas-leninistas” que foram elaboradas naqueles anos sobre
a natureza e as perspectivas da “democracia popular” ficaram fal­
seadas em sua raiz porque o papel decisivo deste fator não podia
ser incluído e analisado sem prejudicar a diplomacia soviética, sem
“dar argumentos” à propaganda e à estratégia das potências capita­
listas.
Reduzida à sua essência, a teoria da “democracia popular”
fundava-se na seguinte hipótese: uma vez destruído, no curso da
Libertação, o poder político da oligarquia financeira e latifundiária,
privada da sua base econômica mediante as expropriações e as nacio­
nalizações subseqüentes, seria possível a colaboração duradoura en­
tre a classe operária, os pequenos camponeses proprietários e a mé­
dia burguesia — industrial, comercial e agrária — numa perspectiva
de evolução gradual para o socialismo. O setor nacionalizado iria
se ampliando e reduzindo o setor privado; os pequenos camponeses,
voluntariamente, passariam pouco a pouco a formas cooperativas
— até que toda a economia ficasse estruturada sobre bases socia­
listas. A luta de classes prosseguiria, mas tomando formas pacíficas
e evolutivas dentro do sistema representativo democrático-parlamen-
tar. Este tipo de desenvolvimento ficava supostamente garantido
desde o momento em que a classe operária (entenda-se: o partido
comunista) assumia a direção nos marcos da coalizão governante e
em que a nova correlação mundial de forças, emergente da segunda
guerra, permitia à União Soviética proteger contra a intervenção
imperialista os países que empreendessem esta via. Como diziam os
teóricos soviéticos e os chefes comunistas das democracias populares,

490
Iratava-se de uma via ao socialismo diferente da soviética, viabili­
zada graças às “novas condições históricas” criadas pela construção
definitiva do socialismo na URSS e pela vitória do Estado soviético
na contenda mundial. Dimitrov foi mais longe que todos, susten­
tando a tese de que, se “à passagem ao socialismo fora indispen­
sável [em 1919] a ditadura do proletariado”, agora, “ para muitos
países, o problema da realização do socialismo se coloca como um
problema de colaboração da classe operária com os camponeses, os
artesãos, os intelectuais e demais camadas progressistas do povo” 11
(as “demais camadas progressistas do povo”, é claro, eram a bur­
guesia industrial, comercial e agrária, cujos representantes políticos
faziam parte da “frente nacional” e do governo “ democrático-popu­
lar”, ou “governo do povo”, segundo as expressões da época). Esta
foi a concepção vigente em 1945 e 1946, enquanto perdurou a espe­
rança de um entendimento global entre a URSS e os Estados Unidos.
Depois do início da “guerra fria” e do colapso de todas as ilusões
— nas “grandes” e “pequenas alianças” —, o velho Dimitrov teve
que fazer uma autocrítica, declarando que a ditadura do proleta­
riado continuava tão necessária nos anos quarenta como nos anos
vinte e reconhecendo que (embora de forma diversa da do sistema
soviético) a “democracia popular” também cumpria as funções da
ditadura do proletariado 12. Não é preciso assinalar que “as funções
da ditadura do proletariado” eram entendidas em estilo soviético:
liquidação de qualquer irrupção de democracia proletária, ditadura
do partido comunista (mais exatamente: do seu núcleo dirigente).
A única diferença que subsistiu entre a “democracia popular” e o
sistema soviético era a conservação, na primeira, de uma paródia de
“pluralismo” político no marco de uma caricatura do regime parla­
mentar.
Esta concepção — em sua primeira forma, antes da viragem de
1947 — foi a adotada pelos partidos comunistas da França e da
Itália como justificação doutrinária da sua participação nos gover­
nos burgueses, depois que a derrota da Alemanha os privara da
justificação tática anterior. Os governos de união nacional deveriam
ser vistos como um primeiro passo na direção da democracia popular
e as nacionalizações como um primeiro golpe contra o capital mono­
polista. Uma vez que o partido comunista e seus aliados chegassem
à direção do Estado pelo sufrágio universal, o setor nacionalizado
começaria a adquirir caráter socialista e se iria ampliando. O Estado
deixaria de estar a serviço da oligarquia capitalista, transformando-se

491
em Estado de democracia popular. Naturalmente, este esquema ia
associado à idéia do novo equilíbrio mundial de forças, em virtude
do qual acabaria por se impor a colaboração entre a URSS e os
Estados Unidos, no espírito de Ialta. Se o povo votasse majoritaria-
mente pelo partido comunista e seus aliados, as potências capitalistas
teriam que respeitar a vontade popular.
O modelo de desenvolvimento que parecia afirmar-se no Leste
era transferido para o Oeste com a abstração de todos os fatores
decisivos que permitiam a sua afirmação. Dava-se por suposto que
os partidos comunistas haviam conquistado — ou estavam prestes a
conquistar — a direção do Estado por meios exclusivamente demo-
crático-parlamentares, conservando-a sobre esta base. É ilustrativo,
por exemplo, o informe de Thorez à assembléia da Federação do
Sena do PCF, a 8 de junho de 1947, no qual há longas referências
à concepção da “nova democracia’’. Aludindo concretamente à Po­
lônia e à Hungria (ou seja: aos dois casos em que os comunistas
não podiam, com toda a evidência, manter-se um só dia como força
dirigente do Estado se isto dependesse de eleições livres), Thorez
diz que o “governo do povo” conserva ali o “poder do povo”, à
base de “eleições democráticas, com um parlamento eleito demo­
craticamente, segundo formas mais ou menos aproximadas às que
nós conhecemos” ,3. É difícil saber se os dirigentes comunistas oci­
dentais enganavam as massas de militantes ou a si mesmos. De
qualquer maneira, não enganavam os outros grupos políticos con­
vocados para acompanhá-los na nova via ao socialismo. A impotên­
cia do neo-reformismo comunista provinha, antes de mais, da dialé­
tica da luta de classes, quer a nível internacional, quer a nível na­
cional, que não se submetia ao novo esquema doutrinário; mas ela
se via agravada pela reação que os acontecimentos do Leste provo­
cavam nos outros grupos reformistas do movimento operário (sem
falar já na “burguesia democrática”).
Não trataremos aqui da crítica teórica destas concepções. A
“guerra fria” se encarregou da crítica prática è elas não renasceram
até os desdobramentos do XX Congresso do PCUS, quando, então,
foram objeto de uma elaboração teórica maior. Quando chegarmos
a este período, voltaremos ao assunto. Por agora, limitar-nos-emos a
assinalar que a doutrina da “democracia popular”, na sua versão
ocidental, não se apoiou em nenhuma análise da sociedade capita­
lista que permitisse alcançar novas conclusões sobre a dinâmica das
suas estruturas e o comportamento das classes. A doutrina nasceu

492
iIn 11miIii 11 ti multi pragmática que se pode conceber, sem outra sus-
i. objetiva que a nova correlação mundial de forças, cuja apre-
to..o. i pelos doutores da igreja foi rapidamente desmentida pelo
. „i o ui dos acontecimentos. Os poderosos partidos comunistas da
I 1,1111,11 c da Itália foram eliminados — sem condescendência e sem
...... nlrtecessem resistência — dos governos respectivos e, em lugar
dl, 11va t i ç o pura a “democracia popular”, produziu-se um avanço
mi M i m o dc um novo desenvolvimento capitalista. O capitalismo
..........ano instalou-se solidamente na Europa ocidental.
Nu I.este, a exacerbação da luta de classes — as classes bur-
i l i , m s , estimuladas pela superpotência americana, intensificaram por

I i i i I iin os meios a sua ação contra todas as reformas que limitavam


ii mi base econômicaj bem como contra o crescente monopólio do
puder eletivo pelos comunistas — e a ofensiva econômica do impe-
II,de.mo umericano, sob o manto do Plano Marshall, demonstraram
ii 1utilidade do curso idílico concebido no período de Ialta e da
I ibertuçio. Particularmente se explicitou a fragilidade das democra-
, ms populares em face do capitalismo mundial no terreno econômico.
A eeonomia destes países era extremamente dependente do comércio
com o Ocidente — e a dependência começou a mostrar-se agudamente
quando se iniciou a reconstrução. Na Tchecoslováquia, por exemplo,
entre o terceiro trimestre de 1946 e o primeiro de 1947, as impor-
tuções da URSS caíram pela metade, enquanto as exportações para
ela diminuíram em um terço; no mesmo período, as importações dos
Estados Unidos triplicaram e as exportações para lá cresceram em
50%. No primeiro trimestre de 1947, a URSS ocupava o sexto
lugar no comércio externo tchecoslovaco (tanto nas importações
quanto nas exportações). E tais tendências não davam sinais de re­
versão — pelo contrário14. Diante desta realidade e partindo das
ilusões que ainda subsistiam neste momento acerca das perspectivas
do desenvolvimento internacional e nacional, compreende-se que o
partido comunista e o governo tchecoslovacos se pronunciassem, a
4 de julho de 1947, pela presença na Conferência de Paris, convo­
cada para discutir o Plano Marshall. Tendências análogas se veri­
ficavam noutras democracias populares. Em 1945, a URSS absorvia
93% das exportações polonesas e concentrava 91% das suãs impor­
tações; em 1946, as respectivas porcentagens eram de 50% e 70% ,5.
Também os comunistas poloneses mostraram-se favoráveis à dis­
cussão da proposta americana de ajuda. É óbvio que posturas deste
gênero colidiam com a construção da área de projeção soviética, tal

493
como Stalin a concebia. A 8 de julho de 1947, enquanto o governo
polonês deliberava com a intenção de acorrer à Conferência de
Paris, a Rádio Moscou anunciou que a Polônia se negava a parti­
cipar da conferência. No mesmo dia deslocava-se para Moscou uma
delegação tchecoslovaca, à qual Stalin colocou a questão em termos
que tinham, pelo menos, a virtude da clareza: o Plano Marshall
objetivava isolar a URSS e, portanto, não havia nada a discutir.
Simultaneamente, apareciam outras tendências perigosas para
a integridade da área de projeção soviética. Apesar da sua submissão
indubitável à direção soviética (e provavelmente sem a menor inten­
ção de questioná-la), entre as democracias populares começaram a
se articular relações bilaterais e tratados de alianças — e, sobretudo,
a Iugoslávia se destacava cada vez mais como um segundo pólo
político de atração. O projeto iugoslavo da Federação Balcânica,
por exemplo — a constituição de um Estado do Mar Negro ao Adriá­
tico, dirigido por Tito, que já dera as provas de independência que
conhecemos —, era mais que suficiente para despertar a doentia
desconfiança de Stalin lé.
Assim, no verão de 1947, tanto a evolução na área de projeção
soviética como na Europa ocidental e a orientação francamente
anti-soviética adotada por Washington (sobre isto, remetemos o leitor
ao capítulo precedente) exigiam do Kremlin a drástica revisão da
política até então implementada — quer a política externa soviética,
quer a política dos partidos comunistas no Leste e no Oeste. Em
todas as frentes se impunha um “ aperto nos parafusos”. Esta neces­
sidade ditou a criação do Centro de Informação dos Partidos Comu­
nistas.

O Centro de Informação dos Partidos Comunistas e a


nova tática

Em face da nova situação mundial, Stalin reage com a lógica que


lhe é própria. Posto no auge da glória, possuído pela sua infabilidade,
habituado aos métodos autocráticos que há duas décadas implantara
no Estado e no partido soviéticos e no movimento comunista inter­
nacional, Stalin não pode pensar em submeter a um exame crítico
deste movimento a política seguida até então e a nova problemática
criada. Vistas as coisas do Olimpo em que está situado, nem sequer
considera-se obrigado a recorrer ao formalismo de uma conferência

494
mi dc um congresso mundial que confira aparência de sanção cole-
lívn u decisões previamente tomadas — como fizeram os últimos con­
i'o,sos da IC. Agora lhe basta convocar secretamente os represen­
tantes dos partidos que julga úteis para os fins determinados que
■i propõe. Pensa que, agregando ao partido soviético os partidos das
democracias populares e os dois principais da área capitalista, tem
a sua disposição um organismo suficientemente representativo para
assumir o papel que desempenhou, até a sua dissolução, o Comitê
l xecutivo da IC: impor ao conjunto do movimento comunista a
linha decidida pela direção soviética. Ademais, a composição do
Centro de Informação dos Partidos Comunistas determinou-se por
duas razões precisas. Em primeiro lugar, o núcleo axial da resposta
staliniana à ofensiva americana era constituir um bloco monolítico,
sob a égide soviética, com os países da sua área de projeção — daí
o convite aos partidos destes países à conferência secreta na Polônia,
hm segundo lugar, o campo de batalha principal para Stalin, na
situação dada, era a Europa, com dois objetivos estreitamente vin­
culados: assegurar a invulnerabilidade da sua área de projeção e
impedir que prosperasse o plano americano de agrupar num bloco,
sob a direção de Washington, os Estados europeus ocidentais (incluí­
da a Alemanha do Oeste) — daí o convite aos dois principais par­
tidos desta zona ao conclave na Polônia. Como vimos, os dois par­
tidos serviram como bodes expiatórios para os efeitos negativos que
tiveram as suas políticas de fidelidade ao Kremlin e, para reparar
os seus erros, receberam um mandato de honra: fazer fracassar os
planos americanos na Europa ocidental. Em troca, para a conferên­
cia de fundação do Centro de Informação dos Partidos Comunistas
não foi convidado nenhum partido comunista do mundo colonial,
nem mesmo o Partido Comunista Chinês. Igualmente foi ignorado
o Partido Comunista da Grécia, empenhado naquele momento na
luta armada contra a intervenção americana. Estas ausências expli­
cam-se por uma razão simples: o que Stalin procura, então e ao
contrário do que acreditam os políticos do “mundo livre”, não é
desencadear em escala mundial a luta revolucionária contra o impe­
rialismo americano. O seu objetivo estratégico permanece o mesmo;
o que muda é a tática. Stalin se propõe, recorrendo a uma maneira
“dura”, obrigar Washington a reconhecer a divisão das esferas de
influência no marco de um compromisso mundial que assegure a
direção bipartida do mundo pelas duas superpotências — e as con­
cessões que está disposto a fazer para chegar a este arranjo concer­

495
nem principalmente ao mundo colonial e, em particular, ao Extremo
Oriente. Quanto à Grécia, já a cedeu a Churchill e não lhe parece
problemático que passe às mãos dos americanos. Tudo isto se reflete
no informe que, em nome de Stalin, Zdhanov faz à conferência dos
nove partidos. Informe, aliás, que possui especial relevância para o
rumo do movimento comunista até a morte de Stalin: assim como a
orientação estratégica e tática dos partidos comunistas, entre a disso­
lução da IC e a constituição do Centro de Informação dos Partidos
Comunistas, ficou definida na resolução de 1943, no qüinqüênio
seguinte ela está definida pelo informe de Zdhanov e pela Decla­
ração dos nove partidos, que se limita a sintetizar as idéias daquele.
A partir de 1953, o Centro de Informação dos Partidos Comunistas
deixará de existir praticamente — embora a sua dissolução oficial só
ocorra em abril de 1956 — e se iniciará uma mudança na linha geral
do movimento comunista, determinada pela nova viragem da política
externa soviética.
Sem a menor preocupação em explicar por que se revelaram
errôneos todos os prognósticos de Stalin acerca do mundo que sairia
da guerra — um mundo unido, regido pela colaboração confiante
dos “grandes” —, a tese central do informe de Zdhanov é que,
após a contenda, o mundo se dividiu em dois “campos”, “o campo
imperialista e antidemocrático, de um lado e, de outro, o campo
antiimperialista e democrático” 17. No campo imperialista, “ a força
dirigente fundamental são os Estados Unidos”; dele fazem parte,
“na qualidade de satélites dos Estados Unidos”, a Inglaterra e a
França. Em seguida, vêm os Estados que desempenham um papel
de “ apoio” : “Apoiam o campo imperialista Estados coloniais como
a Bélgica e a Holanda, países com regimes reacionários antidemocrá­
ticos, como a Turquia e a Grécia, e países que dependem política
e economicamente dos Estados Unidos, como os do Oriente Médio,
da América do Sul e a China”. Enfim, o campo imperialista se
“apóia” também “nas forças reacionárias e antidemocráticas de todos
os países” e nos “adversários militares de ontem” (Alemanha e
Japão).
Quanto ao campo antiimperialista, sua ‘‘base é constituída pela
URSS e os países da nova democracia”; são seus “adeptos” a
Indonésia e o Vietnã e “simpatizantes” a Índia, o Egito e a Síria.
“O campo antiimperialista se apóia no movimento operário e demo­
crático de todos os países, nos partidos comunistas irmãos, no movi­
mento de libertação nacional de todos os países coloniais e depen-

496
d* nli n, nu ujuda de todas as forças democráticas e progressistas
*l1" ' Hislein em cada país”. Neste campo, o “papel dirigente corres-
ii União Soviética e à sua política externa”.
forno se constata, o conceito de “campo” significa, antes de
mm bloco de Estados. As forças sociais e políticas não organi­
mi la\ n i i Estado desempenham uma função subalterna, de “apoio”.
l ud ii "campo” está articulado em torno do seu Estado “dirigente”,
• a sua "base”, constituída por este Estado-guia, mais os Estados
tilt «.'tinnente subordinados, e conta com seus “apoios” em outras
bui, iis políticas e sociais. Os partidos comunistas exteriores à “base”
do campo antiimperialista são forças de “apoio” a tal campo. E,
“ 'in eleito, a função que cumprirão, aplicando a linha promulgada
polo Centro de Informação dos Partidos Comunistas, ajustar-se-á
ountamente a este conceito.
Segundo as formulações de Zdhanov, os objetivos estratégicos
do oadu “campo” são os seguintes: o campo imperialista se propõe
o lortalecimento do imperialismo, a preparação de uma nova guerra
Imperialista, a luta contra o socialismo e a democracia”; o campo
uiitiimperialista tem como objetivo “a luta contra a ameaça de novas
guerras e contra a expansão imperialista, o fortalecimento da demo-
mu iu e a erradicação dos restos do fascismo”. A “tarefa fundamen-
lul do campo antiimperialista é “assegurar uma paz democrática
duradoura”. Nem no informe de Zdhanov, nem na Declaração dos
nove se diz uma palavra sobre a luta pelo socialismo nos países do
Capital — sequer como uma perspectiva remota com alguma ligação
com os objetivos imediatos. Omissão deste tipo não pode tomar-se
como casual, tendo-se em conta que era a primeira definição da
estratégia mundial do movimento comunista depois da dissolução
da 1C. E se afigura ainda menos casual se se a correlaciona a outras
omissões semelhantes nos dois documentos. As duas ações revolu­
cionárias de maior envergadura que estavam em curso no instante
da fundação do Centro de Informação dos Partidos Comunistas e
que encerravam uma promessa mais imediata de desembocar numa
revolução socialista — a guerra civil chinesa e a insurreição gre­
ga — são totalmente silenciadas. O seu significado não é analisado,
sua luta não é apresentada como exemplo para outros povos e não se
convocam os partidos comunistas e as forças democráticas mundiais
para auxiliar os combatentes chineses e gregos. Um silêncio tão
mais eloqüente quando se recorda que nestas duas batalhas as
armas e os recursos americanos estavam diretamente envolvidos. No

497
seu longo informe, Zdhanov só dedica quatro linhas à intervenção
americana na China e na Grécia, sem nada dizer sobre a resposta
revolucionária dos respectivos partidos comunistas. Em troca, con­
sagra grande parte do documento à denúncia do Plano Marshall,
cujos fins principais formula assim: “prestar ajuda prioritária não
aos países vencedores empobrecidos, mas aos capitalistas alemães”;
“restaurar o poder do imperialismo nos países da nova democracia
e obrigá-los a renunciar à estreita colaboração, econômica e militar,
com a União Soviética”; “formar um bloco de Estados compromis­
sados com os Estados Unidos e conceder créditos norte-americanos
aos Estados europeus em troca da sua independência econômica e,
pois, da sua independência política”. Numa palavra, o Plano
Marshall significa que Washington nega à União Soviética a ajuda
econômica de largo alcance solicitada pelo Kremlin desde Ialta;
significa que a política americana ameaça a integridade da área de
projeção soviética e se propõe erguer barreiras à extensão da influên­
cia soviética na Europa, nomeadamente na Alemanha. Estão claras
as razões por que Stalin dirige a mobilização do comunismo inter­
nacional e de seus aliados fundamentalmente contra o “plano de
dominação da Europa” . Por isto, o informe de Zdhanov termina
enfatizando a “tarefa particular” que cabe aos partidos comunistas
da França e da Itália: “ Devem tomar em suas mãos a bandeira da
defesa da independência nacional e da soberania dos seus países” .
Se estes partidos forem capazes de “colocar-se à frente de todas as
forças dispostas a defender a causa da honra e da independência
nacionais, qualquer plano de dominação da Europa será irrealizável”.
À exceção da resolução de 1943, pela qual se dissolvia a IC
e se renunciava à luta por uma solução socialista para a catástrofe
européia, há poucos documentos na história do movimento comu­
nista que refletem com tamanha transparência a subordinação da
luta revolucionária mundial às exigências da política externa sovié­
tica como este informe de Zdhanov. Isto não se expressa somente
na definição dos objetivos essenciais, das “frentes” prioritárias; salta
à luz também no problema das formas de luta, na atitude em face
da luta armada como forma de ação revolucionária. O silêncio diante
das guerras civis na Grécia e na China (à guerra de libertação dos
vietnamitas são dedicadas duas linhas) não se explica unicamente
porque havia a disposição staliniana de fazer concessões nestas zo­
nas, enquanto a área de projeção soviética era considerada intocável
e primordial a “frente” euro-ocidental; explica-se também em virtude

498
da “tarefa fundamental do período do pós-guerra”: conservar a
paz. A URSS — diz Zdhanov em seu informe — “está empenhada
em criar as condições mais favoráveis para a construção da sociedade
comunista”, e “uma destas condições é a paz exterior”. Mas o go­
verno soviético considera, como o declarou Vichinski na ONU, dias
antes do informe de Zdhanov na fundação do Centro de Informação
dos Partidos Comunistas, que, “na situação atual, toda nova guerra
se converte inexoravelmente em guerra mundial” 18. Logo, as guerras
locais representavam um grave perigo para assegurar a “tarefa fun­
damental” e “a construção do comunismo na URSS”. Portanto, as
guerras revolucionárias, como as da China e da Grécia, não eram
formas recomendáveis de luta contra o imperialismo. Encerravam o
risco de envolver a União Soviética numa nova conflagração. Por
isto, não figuram no informe de Zdhanov. Por isto, os combatentes
gregos não receberão uma ajuda eficaz da União Soviética e serão
finalmente liquidados. E se os chineses oferecem um dia ao movi­
mento comunista a surpresa da sua histórica vitória, será graças às
forças próprias que souberam erguer, fazendo ouvidos moucos às re­
comendações stalinianas para chegar a um compromisso com Chiang
e com os americanos.
Sem dúvida alguma, a conservação da paz era uma aspiração
profunda dos povos depois de seis anos de guerra, mas a dura reali­
dade estava mostrando que se a URSS precisava da sua paz para
“construir o comunismo”, os povos de várias regiões do globo pre­
cisavam da sua guerra para se libertar da escravidão colonial — não
lhes restava outro caminho. Esta era a sua “tarefa fundamental”,
apesar de todos os sacrifícios que implicava. Por outro lado, o
improvisado dogma de que toda guerra local se transformaria inexo­
ravelmente em guerra mundial não possuía fundamentação científica
e os acontecimentos revelaram a sua inconscistência. Nenhuma das
duas superpotências tinha a menor intenção de desencadear uma
nova conflagração mundial; utilizavam o seu fantasma para obter
conquistas políticas e estratégicas localizadas — nada mais. No en­
tanto, o dogma foi útil para justificar algumas capitulações e muitos
oportunismos.
Ao lado da paz, as duas outras folhas do tríptico estraté­
gico “antiimperialista” que Stalin oferecia ao movimento comunista
eram a “independência nacional” e a “democracia”. Os comunistas
deveríam aglutinar “todas as forças dispostas a defender a causa
da honra e da independência nacionais”. Ao mesmo tempo em que

499
exproba os liberais burgueses e social-democratas europeus que,
insensíveis à “honra nacional’’, se põem a serviço dos americanos,
Zdhanov se esforça para explicar às burguesias européias a ameaça
que os projetos americanos contêm para os seus interesses. Sob o
pretexto de defendê-los contra uma imaginária ameaça comunista
— diz-lhes Zdhanov — , os capitalistas americanos, na verdade, pro­
curam apoderar-se dos mercados europeus e desalojar as respectivas
burguesias das colônias. Existe, portanto, a possibilidade — que os
partidos comunistas devem explorar a fundo — de que uma fração
da burguesia, aquela que compreender a conexão entre os seus inte­
resses crematísticos e os nobres ideais da honra e da independên­
cia nacionais, una-se aos comunistas contra os vorazes planos de
Washington. Este é o pano-de-fundo da análise de Zdhanov. Mas,
para que esta possibilidade venha a concretizar-se, a terceira folha
do tríptico, a democracia, não deve passar do rosa-pálido e adquirir
um tom muito vermelho. Torná-la rubra, postular claramente a
alternativa socialista ao capitalismo, equivaleria a confirmar o “pe­
rigo comunista”, justificação máxima da política americana. Daí
por que a perspectiva da revolução socialista brilhe pela ausência na
nova linha de Stalin, tanto como, no período precedente, fora elimi­
nada para não prejudicar a “grande aliança”.
Como se pode ver, Stalin permanecia fiel àquela que fora,
desde que se afirmara no poder, a pedra angular da sua estratégia.
A que dita em 1947 ao movimento comunista continua concedendo a
prioridade à exploração das contradições interimperialistas e interca-
pitalistas, preterida a contradição burguesia-proletariado. Já que, no
momento, as primeiras estavam soterradas em virtude do medo da
burguesia européia diante do perigo revolucionário e do aceno dos
dólares, a tarefa primordial dos partidos comunistas consistia em
propiciar a sua reativação. Os métodos de ação devem ser os mais
enérgicos — e, para este fim, convém estimular a luta de classes
no plano econômico, à diferença do que se fazia no período prece­
dente — para bater os políticos centristas e social-democratas que
se dobram aos americanos, mas o objetivo estratégico é reconstruir
a união nacional com a fração da burguesia ameaçada pela expansão
americana, criar uma “frente ampla” pela paz e pela independência
nacional. Esta orientação, naturalmente, não é a adequada para os
partidos comunistas da área de projeção soviética; aqui, como vere­
mos no próximo capítulo, deve-se acelerar a marcha para o “socia­
lismo”, inclusive “queimando as etapas”, forçando o processo com

500
medidas udministrativas e repressivas, assegurando direções comu-
nisliis absolutamente incondicionais a Moscou, a fim de que a “base”
do "campo antiimperialista” adquira consistência monolítica.
lista estratégia deveria servir para resistir à ofensiva americana,
dando tempo à União Soviética para vencer o seu atraso no
armamento atômico, e sua meta final era um novo equilíbrio
mundial de forças que obrigasse os Estados Unidos a aceitar o grande
i ompromisso procurado por Stalin — sem descartar que a simples
colocação da contra-ofensiva poderia levar os dirigentes americanos
.1 reflexão, induzindo-os a modificar rapidamente a sua política.
() informe de Zdhanov está sabiamente dosado e estruturado, de
Iminii que Washington possa perceber, sob o punho cerrado, a mão
estendida.
Em primeiro lugar, fica claro que o objetivo não é atentar
contra as bases da grande cidadela do capitalismo; mais modesta­
mente, trata-se de conter a sua expansão, como se diz taxativamente
no informe (daí a não abordagem dos problemas das revoluções
coloniais, das revoluções socialistas na área capitalista desenvolvida
ou da luta de classes nos Estados Unidos). Em segundo lugar,
Zdhanov assinala, com suficiente inteligibilidade para os entendidos,
a zona em que tal expansão é intolerável para os interesses soviéticos
(a área de projeção européia) e a zona em que se deve chegar a um
arranjo que reconheça a preeminência de tais interesses (Alemanha).
Quanto às outras, o porta-voz de Stalin limita-se a registrar a domi­
nação americana (Japão, América Latina) ou o propósito de estabe-
lecê-la (colônias inglesas, francesas, holandesas, China, Grécia, Tur­
quia, etc.), sem aludir a qualquer pretensão soviética nelas e dei­
xando de lado a luta revolucionária que aí se desenvolve. Em
relação à América Latina, por exemplo, o sentido profundo do in­
forme de Zdhanov fica completamente óbvio com a declaração feita
poucos meses depois por Molotov — respondendo à acusação norte-
americana de que a tensão internacional é provocada pela política
da União Soviética na Europa Oriental, Molotov replica: “ Sabe-se
que também os Estados Unidos aplicam uma política de fortaleci­
mento [sic] das suas relações com os países limítrofes, como o Ca­
nadá, o México e outros países da América, o que é perfeitamente
compreensível” ,9. Ou seja: respeitemos cada um as respectivas esfe­
ras de influência e tudo pode ser arranjado. O silêncio de Zdhanov
sobre a guerra revolucionária na China e na Grécia equivale a subli­
nhar diplomaticamente a boa disposição de Moscou em face dos

501
interesses americanos no Extremo Oriente e no Oriente Próximo.
Particularmente, dá a entender que permanece de pé o oferecimento
de seguir uma política comum com os Estados Unidos nas questões
do Extremo Oriente”, reiterada por Stalin em dezembro de 1946 20.
Permanece de pé, bem entendido, com a condição de que os Estados
Unidos renunciem às suas pretensões hegemônicas na Europa. Zdha-
nov insiste na possibilidade de colaboração entre a URSS e os
países com outros sistemas, desde que se observe o princípio da
reciprocidade e do cumprimento dos compromissos contraídos”. “Sa-
kf"Se T acrescenta — que a URSS sempre foi fiel, e continua a
se-lo, às obrigações concertadas. A União Soviética demonstrou a
sua vontade e o seu desejo de colaborar”. Em outras palavras: sobre
a base dos acordos de Ialta, Potsdam, etc., continua sendo possível a
colaboração URSS-Estados Unidos. E Zdhanov aduz uma precisão
importante: “ O governo soviético nunca se opôs à utilização de cré­
ditos estrangeiros, particularmente de créditos norte-americanos, co­
mo meio capaz de acelerar o restabelecimento econômico”. A única
condição que põe é que tais créditos “não tenham caráter oneroso
e não conduzam à escravização econômica e política do Estado de­
vedor pelo Estado credor”. Portanto, ficava aberta a porta para
um Plano Marshall revisado, que não implicasse a criação de blocos
hostis à URSS ou a tentativa de minar a área de projeção sovié­
tica.
Os círculos liberais norte-americanos da época, agrupados em
torno de Henry Wallace (o vice-presidente de Roosevelt), compreen­
deram perfeitamente a mensagem cifrada contida no informe de
Zdhanov e tentaram convencer a opinião pública a aceitar a mão
estendida de Stalin — mas fracassaram rotundamente 21. As classes
dirigentes norte-americanas consideravam-se suficientemente fortes
para impor ao mundo a pax americana ou, o que dá no mesmo, para
modificar a seu favor a divisão das esferas de influência resultante
da guerra.

Retrocesso geral do movimento comunista no Ocidente

Nos meios burgueses, o informe de Zdhanov e a criação do


Centro de Informação dos Partidos Comunistas — ressurreição, à
primeira vista, do Lázaro vermelho enterrado em 1943 — foram
recebidos como um desafio aos “povos livres”, cuja defesa fora

502
itili(lislicamcnte assumida, segundo proclamava a “doutrina Truman”,
pelos listados Unidos. Foram recebidos como o anúncio de uma
PKpócie de ofensiva revolucionária mundial. Desde o momento em
ipie rechaçavam a negociação global, sobre as bases reiteradamente
propostas por Stalin, os dirigentes do imperialismo tinham interesse
eu, divulgar esta versão: o espantalho do “perigo comunista” cons-
tiiiifa um excelente recurso para agrupar, sob a égide americana,
imliis as forças conservadoras do planeta. Na realidade, a nova polí-
Ileu staliniana tinha um caráter essencialmente defensivo. Seu objeti­
vo central era consolidar as posições adquiridas no Leste e no Centro
ila Europa, assim como no Extremo Oriente, e impedir que avan­
çassem os projetos de blocos anti-soviéticos. A tarefa dos partidos
comunistas do mundo capitalista, cumprindo com a sua função de
"apoio” à “base” do “campo antiimperialista”, deveria consistir em
“encabeçar a resistênciu aos planos imperialistas de expansão e agres­
são”, tal como a definia o informe de Zdhanov. Ao final desta nova
"resistência” não havia outra meta estratégica que a muito utópica
de uma democracia burguesa zelosa da sua honra nacional e da
sua independência em face das pretensões “dirigentes de Washing­
ton. O que conferiu certa tonalidade “ofensiva a esta nova po­
lítica foi, de um lado, a violência verbal — recobrindo, geralmente,
a pobreza de idéias — na denúncia da política americana e seus
“ lacaios” social-democratas, violência que, neste último aspecto, con­
corria com os lauréis do “terceiro período” da IC, os tempos do
“social-fascismo”; e, de outro lado, a utilização de formas de luta
quase esquecidas nos anos de colaboração governamental a greve,
a manifestação e até o enfrentamento com as forças da ordem pú­
blica. Mas o conteúdo ofensivo ou defensivo de uma política não
se define unicamente pelos métodos de ação, e a violência verbal
pode servir — e, mais freqüentemente, desservir — a qualquer
política.
A curva ascendente do movimento grevista na Europa ocidental,
do outono de 1947 aos finais de 1949 (logo ocorreu um nítido des­
censo, salvo na Itália, onde, pelo contrário, o maior desenvolvimento
se deu nos anos 1950-1955), expressou a ação defensiva da classe
operária frente à escalada patronal e do Estado, a tentativa de sal­
vaguardar seus interesses elementares diante das medidas de racio­
nalização que contribuíram para preparar o auge da economia capi­
talista européia iniciado nos começos dos anos cinqüenta22. Situados
na oposição e interessados em mobilizar as massas contra os gover­

503
nos da terceira força” postos a serviço da política americana, os
partidos comunistas procuraram encabeçar as lutas operárias, em
lugar de travá-las, como haviam feito no período 1945-1947. Esfor-
çaram-se — com muito pouco êxito — por conectar estas lutas
econômicas com as consignas de defesa da paz e da independência
nacional, de oposição ao Plano Marshall e ao Pacto Atlântico, de
proibição da bomba atômica, etc.
No outono de 1947, estendeu-se por toda a França uma onda
grevista que envolveu mais de dois milhões de trabalhadores. Como
o movimento eclodia logo que se conheceram as resoluções do Centro
de Informação dos Partidos Comunistas, o governo acreditou en­
contrar-se diante de um “compio comunista”: instaura o estado de
sítio, mobiliza 80.000 reservistas, dissolve unidades das forças da
ordem pública consideradas pouco confiáveis e adota uma série de
disposições antioperárias. Em várias localidades ocorrem choques en­
tre os operários e as forças repressivas, que têm por saldo quatro
trabalhadores mortos, centenas de feridos e milhares de prisões. Evi­
dentemente, não havia nenhum “compio comunista”: havia o medo
da burguesia, vivendo ainda com a impressão (de três anos atrás)
de estar à beira da revolução; e havia o fato de a direção do
PCF estar sob os efeitos da crítica que lhe foi feita, por seus peca­
dos oportunistas, na reunião do Centro de Informação dos Partidos
Comunistas. Esta direção quer aproveitar a chance para mostrar a
Moscou que também sabe jogar duro quando o exige a política
soviética, mesmo que a situação francesa não seja propícia. E trata
de conferir à greve um caráter político, impondo à direção da
CGT — contra a posição da fração socialista — a inclusão, entre
os objetivos do movimento, da luta “contra o projeto de dominação
encarnado no Plano Marshall [. . .], contra os belicistas que encon­
tram cúmplices em nosso país” 23. Consignas que mal ecoam entre a
massa dos grevistas — para não falar da massa da população. Como
acreditar que o país qualificado na véspera — pelo próprio Partido
Comunista Francês — como grande aliado da França, responsável,
junto com a União Soviética, pela paz e pela independência dos
povos, tenha se convertido, da noite para o dia, em tenebroso pro­
motor de uma nova guerra mundial e escravizador da França? Por
que os dólares do grande aliado não podiam contribuir para restaurar
a combalida economia francesa? Não fora o próprio Partido Comu­
nista Francês que, na véspera, apresentara a restauração econômica
do capitalismo francês como a tarefa número um da classe operária?

504
O PCF não conseguiu politizar a greve, mas ofereceu magníficos
argumentos a Léon Blum para evidenciar a mecânica subordinação
do partido comunista à política soviética e para preconizar, sobre
esta base, a cisão sindical24. Uns meses depois, Force Ouvrière25
c constitui como central sindical socialista, furtando à CGT meio
milhão de filiados. A 9 de dezembro, a direção da CGT ordena a
volta ao trabalho, sem ter conquistado nenhuma das principais rei­
vindicações econômicas. Um ano mais tarde, os mineiros novamente
vao à greve e o governo responde com procedimentos análogos:
ocupa as bacias carboníferas com o exército, metralha e prende em
massa. Tal qual no outono de 1947, o governo, desta vez pela
boca do socialista Jules Moch, ministro do Interior, acusa o partido
comunista de cumprir ordens do Centro de Informação dos Partidos
Comunistas e se propor a tomada do poder26. Acusação absur­
da — embora útil propagandisticamente — no que toca à tomada do
poder. O que a direção thoreziana procura é criar as maiores difi­
culdades possíveis ao governo e inquietar os americanos no mo­
mento em que o conflito provocado pelo bloqueio soviético de Berlim
está em pleno desenvolvimento e não se sabe até onde pode chegar.
A greve dos mineiros, determinada por razões econômicas, ofere-
ce-lhe uma excelente oportunidade e por isto trata de prolongá-la e
endurecê-la, inclusive quando parte considerável dos grevistas se in­
clina pela volta ao trabalho27. Em 1944-1945, os núcleos avançados
da classe operária eram seguidos pela grande massa da população
trabalhadora, em plena efervescência política — o proletariado tinha
uma posição de força. Então, Thorez convocou os mineiros e os
demais setores operários a não utilizar a sua força, a não fazer gre­
ves, a colaborar com a burguesia na reconstrução econômica. Em
1948, quando a passividade política envolvera novamente as massas,
decepcionadas em suas esperanças de renovação social, Thorez se
dirige aos mineiros com as palavras de Zdhanov, que dissera na
reunião do Centro de Informação dos Partidos Comunistas: “Agora,
o perigo principal para a classe operária consiste na subestimação das
suas próprias forças e na superestimação das forças do adversário” 28.
Zdhanov faz esta afirmação em 1947, quando a situação já sé inver­
tera na Europa ocidental. Thorez repete-a em 1948, quando a re­
gressão política se acentuara ainda mais, como o demonstra o isola­
mento em que se desenvolve a greve dos mineiros. De 1947 a 1951,
o percentual correspondente aos lucros das grandes sociedades capi­
talistas na renda nacional da França passou de 36% para 48%, en­

505
quanto que o dos salários caiu de 47% para 33%. A ofensiva pa­
tronal e estatal alcançou pienamente os seus objetivos e a causa
profunda não residia na subestimação, pela classe operária, das suas
forças no período — residia em que o partido comunista, aplicando
incondicionalmente a política staliniana, subestimou-as em 1944-
1945.
Também o Partido Comunista Italiano submeteu-se à nova po­
lítica de Stalin, promulgada por Zdhanov, mas não tão mecanica­
mente como o partido francês. Empenhou-se por estimular as lutas
operárias e camponesas, mas sem tentar forçar as situações, sem
perder de vista que a evolução política girava à direita, como o
revelaram as eleições legislativas de abril de 1948, nas quais a de­
mocracia cristã obteve 48,5% dos votos e a maioria absoluta das
cadeiras. Ademais, o PCI teve a seu favor a posição unitária da
maioria do Partido Socialista, ainda que a minoria adepta de um
afastamento dos comunistas tenha começado a ganhar terreno. Ao
atentado de julho de 1948 contra Togliatti, oito milhões de traba­
lhadores responderam fulminantemente com uma greve geral impres­
sionante, que parou o país por dois dias. Alguns grupos do par­
tido pretenderam dar-lhe uma inflexão insurrecional, mas a dire­
ção — aconselhada pelo próprio Togliatti, antes de perder a cons­
ciência — avaliou que, na situação dada, isto seria uma aventura. E
provavelmente estava com a razão, embora a explosão de julho ti­
vesse explicitado retrospectivamente a magnitude do potencial revo­
lucionário que a direção togliattiana se recusara a desenvolver na
conjuntura única de 1943-1945. O PCI, mesmo consagrando, como
o PCF, a atenção exigida pelo Centro de Informação dos Partidos
Comunistas às campanhas gerais pela paz e pela proibição da bom­
ba atômica, contra o Pacto Atlântico e o Plano Marshall, etc., soube
colocar com certa profundidade os problemas específicos da socie­
dade italiana, ainda que conservando a ótica reformista do período
precedente. Num primeiro momento — antes da condenação de
Tito — parece, inclusive, que Togliatti quis tomar distância em face
do Centro de Informação dos Partidos Comunistas. O informe que
apresenta ao VI Congresso do partido (janeiro de 1948) pouco se
refere ao novo organismo e, quando o faz, é para sublinhar que o
Centro de Informação dos Partidos Comunistas não é a Internacional
Comunista e que “as vias de desenvolvimento do movimento demo­
crático nos vários países da Europa não podem ser idênticas”. Ele
assinala também que “nossa colaboração voluntária e fraterna [no

506
Centro de Informação dos Partidos Comunistas] tem por agora um
caráter consultivo”.
Os dois grandes do comunismo ocidental puderam resistir, aos
trancos e barrancos, aos embates da “guerra fria” e aos efeitos ne-
liistos da sua subordinação à política soviética — mas outros partidos
mais débeis sofreram profundos prejuízos. O auge relativo experi­
mentado depois da Libertação pelos partidos comunistas dos países
escundinavos, da Bélgica, da Holanda, da Áustria, da Suíça, etc.,
como vimos29, converteu-se rapidamente em declive. O Partido Co­
munista espanhol foi duramente golpeado pela ditadura franquista
i|ue, gozando abertamente da proteção americana, intensificou bru­
ti) Imente a repressão contra toda a oposição operária e democrática.
Sem a solidariedade internacional, especialmente sem a ajuda sovié­
tica — enquanto os americanos não poupavam o seu auxílio ao
governo monárquico — , os comunistas gregos se viram obrigados a
abandonar a luta armada em agosto de 1949. Também foi conside­
rável o golpe sofrido pelos partidos comunistas da América Latina,
assim como de alguns países asiáticos. Mas sobre este retrocesso
geral do movimento comunista no mundo capitalista, durante os anos
da “guerra fria”, voltaremos em outro capítulo. Antes de fazer o
balanço geral deste período — no qual, contrastando com o retro­
cesso indicado, se ergue a grande vitória da revolução chinesa e o
prelúdio da vitória vietnamita — , trataremos em separado três temas
que englobam acontecimentos, tendências e fenômenos de significa­
ção primordial para o rumo seguido pelo movimento comunista du­
rante estes anos e ulteriormente. Em primeiro lugar, a ruptura so-
viético-iugoslava, suas repercussões nos outros partidos comunistas
e a evolução da área de projeção. Em segundo lugar, a vitória da
revolução chinesa. E, por último, a chamada “luta pela paz”, con­
vertida em tarefa central do movimento comunista no período da
“guerra fria”.

NOTAS

1 Cfr. H. Ripka, L e C o u p d e P ra g u e, Paris, Plon, 1949, pp. 33 e ss. Nas eleições


de maio de 1946, consideradas por todos os partidos políticos do país e pelos
governos ocidentais como plenamente livres e regulares, o PC obteve, no con­
junto da Tchecoslováquia, 38% dos votos e, na Boêmia-Moldávia, mais de
40%. De 300 deputados, 115 eram comunistas, 55 socialistas-nacionais
(Benes), 47 do partido populista e 36 social-democratas. O restante parti-

507
ripava de diversos grupos. Em julho de 1946 formou-se o novo governo pre­
sidido por Gottwald.
A representação parlamentar só oferecia uma idéia parcial e indireta da
relação de forças. No curso da libertação, criaram-se novos órgãos de di­
reção do Estado em escala local, distrital e regional, os Comitês Nacionais,
com representantes dos diversos partidos políticos, mas também de sindicatos
e outras organizações, que foram legalizados pelo governo Benes, inclusive
antes de instalar-se em Praga. Em 1946-1947, os três presidentes regionais dos
Comitês Nacionais eram comunistas. De 163 Comitês Nacionais de distritos,
128 tinham presidentes comunistas e, de um total de 11.512 Comitês Na­
cionais locais, 6.350 presidências eram comunistas. Se a isto se acrescenta que
o partido controlava o ministério do Interior, as milícias operárias, a maior
parte do exército — e, naturalmente, seu alto-comando — e dirigia os sin­
dicatos e outras organizações de massas, etc. — compreende-se que a opinião
de Ripka corresponde bem à realidade. Os dados referentes às eleições e aos
Comitês Nacionais, nós os tomamos do informe de Slanski, secretário-geral do
Partido Comunista da Tchecoslováquia, à reunião de fundação do Centro
de Informação dos Partidos Comunistas, em setembro de 1947.
2 A p u d F. Fejto, H is lo ir e d e s D é m o c r a tie s P o p u la ir e s, Seuil, Paris, 2a. ed.,
1969, p. 107. O autor tomou a citação de um estudo de Rakosi, de 1952,
publicado na revista teórica do partido húngaro.
3 Ib id ., p. 108.
4 Ib id ., p. 107. Segundo Fejto, “as autoridades soviéticas mostraram-se, do
ponto de vista político, tanto mais tolerantes e liberais, na Hungria, quanto
mais duras no aspecto econômico. Tudo se passava como se, então, consi­
derassem a Hungria situada mais além da sua zona de segurança e quisessem
provar a sua vontade de respeitar as disposições de Ialta, algo que não
podiam fazer na Romênia e na Bulgária” (ib id ., p. 106). As coisas mudaram
rapidamente depois das eleições referidas e na medida em que se foram de­
teriorando as relações entre o governo soviético e os Estados Unidos. Em
dezembro de 1946, os dirigentes do partido dos pequenos proprietários foram
acusados de conspiração contra o regime. Como o grupo parlamentar deste
partido, que representava 57% dos eleitores, se recusasse a votar o levanta­
mento das imunidades parlamentares do seu secretário-geral, Bela Kovaks, as
autoridades militares soviéticas intervieram abertamente, procedendo à sua
detenção em fevereiro de 1947, sob a acusação de “complô contra a segu­
rança do Exército Vermelho” (cfr. o p . cit., p. 194).
5 Stalin, E n e r e v is ta c o m o P re s id e n te d a S c r ip p s -H o w a r d N e w s p a p e r s , S r. R o y
H o w a r d , em russo, Partisdat, Moscou, 1937, p. 10.
t> O p . cit., p. 127.
7 Segundo certas estimativas, citadas por F. Fejto, até setembro de 1946, a
Romênia pagara à União Soviética, a título de indenizações, um bilhão de dó­
lares, faltando ainda o ressarcimento de 950 milhões. Na Hungria, em 1946,
65% da produção nacional total destinava-se ao pagamento de indenizações.
Sobre esta questão e sobre a constituição de sociedades mistas, cfr. Fejto,
o p cit., pp. 136-137 e 154-157; um estudo mais especializado e detalhado
encontra-se em Jan Marczewski, P la n ific a tio n e t C ro issa n c e É c o n o m iq u e d es
D é m o c r a tie s P o p u la ire s, PUF, Paris, 1956, t. I, pp. 218-232.
8 Acerca do conflito tcheco-polonês em relação a Teschen, cfr. Fejto, o p . cit.,
p. 114; sobre a questão das minorias húngaras na Eslováquia, na Transilvânia,
etc., cfr., na mesma obra, pp. 116-117, 127-128.
9 No início da guerra, Tito era um quadro pouco conhecido. O fato de dirigir
o partido e a luta de libertação no próprio palco de operações, sem outro

508
contato com Moscou que a ligação por rádio, explica bastante, sem dúvidas,
o ,eu comportamento — ao que o predispunham, por outro lado, as suas expe­
riências anteriores, os conflitos vividos no seio da IC, seu conhecimento da
realidade soviética, etc. A este respeito, é muito esclarecedora — indepen­
dentemente dos aspectos de “culto” que lamentavelmente contém — a bio­
grafia de Tito, já citada, escrita por Vladimir Dedijer.
ia "Nossa tarefa imediata — declarou Dimitrov ao assumir a liderança do go­
verno em 1946 — não é a realização do socialismo, nem a introdução do
sistema soviético, mas a consolidação do regime democrático e parlamentar”
(a p u d Fejto, o p . cit., p. 126).
II Citado por Chervenkov, dirigente do PC búlgaro, em seu informe à reunião
de fundação do Centro de Informação dos Partidos Comunistas; incluído na
antologia dos documentos desta reunião publicada em Moscou, Edições em
Línguas Estrangeiras, 1948, versão espanhola, p. 185.
iz Cfr. Dimitrov, informe ao V Congresso do Partido, 19 de dezembro de 1948,
publicado sob o título L a B u lg a ria d e H o y , Ediciones Nuestro Pueblo, do
PC da Espanha, p. 52.
13 Thorez, O e u v re s, ed. cit., t. 23, p. 133.
14 Cfr. Fejto, o p . cit., p. 180.
15 Ib id ., p. 179.
16 Cfr. o capítulo IV da já citada obra de Fejto, t. I.
17 Baseamo-nos no texto oficial do informe de Zdhanov, publicado juntamente
com a Declaração dos nove partidos e os informes dos seus representantes
pelas Edições em Línguas Estrangeiras, de Moscou, 1948. A antologia leva o
título C o n fe r ê n c ia d e I n fo r m a ç ã o d o s R e p r e s e n ta n te s d e A lg u n s P a rtid o s C o ­
m u n ista s , C e le b ra d a n a P o lô n ia e m F in a is d e S e te m b r o d e 1947. Todas as ci­
tações e referências seguintes são tomadas desta fonte; os sublinhados são
nossos.
18 Citamos a afirmação de Vichinski segundo a versão publicada em M u n d o
O b re ro , órgão do PC da Espanha, editado na França, número de 25 de se­
tembro de 1946. O sublinhado é nosso.
19 Declaração de Molotov, em 9 de maio de 1948; tomamos a citação do texto
publicado em M u n d o O b re ro , de 13 de maio.
20 Cfr. p. 444 deste volume.
21 A 13 de maio de 1948, a imprensa soviética publicou uma carta aberta de
H. Wallace a Stalin, na qual se enumeravam as questões sobre as quais o
remetente considera indispensável chegar a um acordo. Stalin, numa decla­
ração firmada a 17 de maio, responde valorizando altamente a carta de
Wallace, qualificada como “o documento mais importante”, nos últimos
tempos, entre os voltados para “fortalecer a paz, normalizar a colaboração
internacional e garantir a democracia” e afirma que o programa exposto pelo
signatário poderia servir de base a um acordo.
Previamente a esta iniciativa de Wallace, o Departamento de Estado fi­
zera uma exploração das intenções soviéticas, que deu lugar a uma troca de
notas, entre 4 e 19 de maio, nas quais os governos de Moscou e Washington
se acusavam reciprocamente da responsabilidade pela tensão internacional e
se ressaltava a importância das divergências.
A declaração de Stalin e as notas soviéticas refletem o forte interesse de
Moscou em estabelecer negociações para chegar a um compromisso global
(baseamo-nos nos textos publicados nos números de M u n d o O b re ro de 13,
20 e 27 de maio de 1948).

509
3 3 ~ “
vembroe dÍUm 7 d0
srsssway» *M
-
C°nfederado Nac'ona> da CGT, de 14 de no-
24 Cfr. Le Sputare, órgão da SFIO, 24 de dezembro de 1947.
25 Em francês, no original — F o r ç a O p e rá ria (N. do T )
FaUVet’ HÍStOÍre d “ P a r“ C o m m u n is te F ra n ça is, ed. cit t II p 212

peia direçã° d° *
do partido e seus efeUos p r e j u d i c ^ ' u m a S T ™ ' * °rientaçã°
do movimento. Pouco a D o u c n a Parte dos grevistas deseja o fim
minorias q u e c o n d u z a erro s \e r td T transforma num movimento de
A o b stin a ç ã o e m d a r c o n tin u id a d e ^ A . Operaçao divisionista tem êxito,
mineiros filiados à CGT aue rei °° m o v ‘m e n to conduz ao isolamento dos
de .ma- (0p cit., *** * ^ ~
28 A p u d J. Fauvet, o p . cit., p. 212.
2^ Cfr. p. 331 deste volume.
3. A FRATURA IUGOSLAVA

C om o todos os que se encontram fora


da obediência e da devoção da Santa
Igreja Católica, obstinados em seus erros e
heresias, se esforçam para afastar da nossa
Santa F é os fiéis e devotos cristãos, pare­
ceu-nos que o verdadeiro remédio consiste
em evitar todo contato com os hereges e
suspeitos, castigando e extirpando seus erros
a fim de impedir que uma ofensa tão gran­
de seja feita à Santa F é e à Religião Cató­
lica nesta parte do mundo. O Inquisitor
Apostólico Geral de nossos reinos e dom í­
nios, com o acordo dos membros do C o n ­
selho da Inquisição Geral e depois de N os
haver consultado, decide criar nestas novas
províncias o Santo O fício da Inquisição.
Felipe II, 25 de janeiro de 1569.

Instauração da ditadura burocrática e policial na área de


projeção soviética.

A tarefa indicada por Stalin aos partidos comunistas das demo­


cracias populares — completar a conquista do poder e eliminar da
cena política todos os grupos hostis à integração total na órbita
soviética, ligados às potências ocidentais ou simplesmente vacilantes
entre os dois “campos” — foi cumprida de maneira rápida nos
últimos meses de 1947 e ao longo de 1948. Na verdade, o problema
não oferecia grandes dificuldades, porque os suportes decisivos do
Estado já se encontravam nas mãos do partido e o exército soviético
estava presente ou rondava as vizinhanças. Na Polônia e na Hungria,
na Romênia e na Bulgária, assim como na Eslováquia, os grandes
partidos agrários foram postos fora de combate no curso de 1947.
Estes partidos, que contavam com ampla base social entre os cam­
poneses e a pequena burguesia urbana, tinham sido tradicionalmente
os principais instrumentos políticos da burguesia liberal, mas, desde
1945, serviram de refúgio aos restos das velhas oligarquias derro­
cadas. E estavam vinculados às potências ocidentais. Não era possí­

511
vel liquidá-los através do jogo parlamentar democrático e, como os
partidos comunistas tampouco quisessem promover um novo tipo
de democracia revolucionária direta, tiveram que recorrer ao método
dos “complôs”. Dispondo do ministério do Interior e da eficaz assis­
tência dos serviços secretos soviéticos, era fácil aproveitar as liga­
ções que os dirigentes daqueles partidos mantinham com os repre­
sentantes das potências ocidentais para acusá-los de conspiração con­
tra o regime. Assim foram presas, condenadas a longas penas ou
executadas as principais personalidades políticas dos partidos men­
cionados. Outras puderam se exilar a tempo '.
Na rápida marcha para o monopólio do poder empreendida
pelos partidos comunistas das democracias populares após a cons­
tituição do Centro de Informação dos Partidos Comunistas, o acon­
tecimento mais espetacular foi o chamado “golpe de Praga”. Para­
doxalmente, na TChecoslováquia, onde o partido comunista contava
com o maciço apoio da maioria da classe operária e esta — em vir­
tude do nível industrial do país — constituía a força social deter­
minante, os partidos burgueses haviam conservado a sua identidade
e a sua integridade num grau muito maior que nas outras demo­
cracias populares. Já nos referimos à razão deste paradoxo: nos
demais países da área de projeção soviética não era possível compa­
tibilizar a liderança comunista — e, através dela, a soviética — com
o funcionamento real do mecanismo democrático-parlamentar; na
Tchecoslováquia isto foi possível — graças, precisamente, à influên­
cia comunista e ao peso da classe operária — enquanto não houve
a ruptura russo-americana e a revolução interna era artificialmente
contida em limites compatíveis com os interesses da burguesia libe­
ral. A partir do momento em que a primeira premissa (e, por con-
seqiiência, a segunda também) desaparecia, a crise do regime era
inexorável. Os partidos burgueses acreditaram ilusoriamente na pos­
sibilidade de resolvê-la a seu favor, aproveitando as eleições parla­
mentares previstas para maio de 1948. As sondagens realizadas pelos
próprios comunistas, de fato, deixavam entrever a eventualidade
do seu retrocesso eleitoral2. Mas o Partido Comunista tchecoslovaco
tomou medidas para descartar semelhante risco: intensificou a ação
política entre as massas e reforçou o seu controle sobre o aparelho
policial do Estado (o ministério do Interior, como nas outras demo­
cracias populares, estava nas mãos do partido desde 1945). A 20
de fevereiro de 1948, os doze ministros do partido socialista nacional
(Benes), populista tcheco e democrata eslovaco se demitem em pro-

512
lesto contra a nomeação de oito comissários comunistas para a polí-
t, iu de Praga. Esperam que os ministros social-democratas sigam o
seu exemplo, com o presidente Benes podendo utilizar a crise para
obrigar os comunistas a recuar no problema da polícia. Mas, sob a
pressão dos trabalhadores, mobilizados pelo partido comunista e
pelos sindicatos, a direção centrista do partido socialista colou-se
il sua ala esquerda e manteve seus representantes no governo. O
partido comunista apela às massas para responder à manobra dos
partidos burgueses. Convoca-as à mobilização, à criação de comitês
de ação nas empresas, bairros e aldeias, à formação de milícias ope­
rárias que são imediatamente armadas pela polícia. O partido realiza
comícios em todos os lugares e manifestações exigindo de Benes a
formação de um governo liderado por Gottwald e “sem reacioná­
rios”. Procede à prisão, em todo o país, dos elementos mais carac­
terizados pelo seu anticomunismo e anti-sovietismo. E amplia a Fren­
te Nacional, fazendo entrar nela sindicatos, organizações coopera­
tivas e juvenis e outras entidades de massas ou profissionais con­
troladas pelos comunistas. Com esta “ ampliação ’ — a que se opu­
seram tenazmente os partidos burgueses e social-democrata , o
Partido Comunista assegurou-se o pleno controle do Comitê Executi­
vo da Frente Nacional, que adota uma plataforma incluindo a depu­
ração dos partidos políticos e o estreitamento da aliança com a
URSS. O exército, cujos principais comandos são comunistas (o mi­
nistro da Defesa, Svoboda, simpatiza com o partido comunista),
observa benevolamente o desenvolvimento da situação. A direção
social-democrata — a sede do partido fora ocupada pelos socialistas
de esquerda, apoiados pelos comunistas — dá mais um passo, con­
cordando em colaborar com a solução preconizada pelo Partido Co­
munista. A 25 de fevereiro, Benes capitula e encarrega Gottwald
de formar um novo governo, no qual os representantes dos partidos
burgueses são apenas elementos decorativos.
O mecanismo interno dos acontecimentos é evidente: não é o
livre jogo do sistema democrático-parlamentar que permite aos co­
munistas conquistar a totalidade do poder, mas a utilização intensiva
da sua força extraparlamentar: as massas, a polícia, o exército. E o
feliz desenlace está protegido, contra toda intervenção exterior, pelos
exércitos soviéticos, postados nas fronteiras Norte, Leste e Sul (para
que a “presença” soviética não deixe lugar a dúvidas, às vésperas
da crise chega a Praga o vice-ministro de Relações Exteriores da
URSS). Mas, em vez de explicar as coisas na sua realidade, em vez
513
de invocar simplesmente o direito dos trabalhadores de levar a cabo
a revolução, “adiada” em 1945 — partindo da concepção oficial,
segundo a qual o partido comunista é o representante consciente da
classe operária —, Gottwald declara no parlamento, ao apresentar o
novo ministério, que “o reajuste e a reconstituição do governo se
realizaram de maneira estritamente constitucional, democrática e
parlamentar” 3. A ficção é convalidada nas urnas. A 30 de maio se
celebram as eleições previstas — mas com uma “ligeira” modifi­
cação: só existe uma lista de candidatos, a da Frente Nacional,
confeccionada, é óbvio, pelo seu Comitê Executivo, que, como vimos,
está absolutamente controlado pelo partido comunista. A lista única
recebe 89,92% dos sufrágios. A 6 de junho, Benes se demite e, a
14 do mesmo mês, Gottwald ascende à presidência da república
(mais adiante, a partir do XX Congresso do PCUS, a ficção tchecos-
lovaca será utilizada como exemplo conclusivo da possibilidade da
revolução socialista pela via pacífica e parlamentar. “Os comunistas
[tchecoslovacos] — dirá Mikoyan na tribuna do XX Congresso
— chegaram ao poder firmando uma aliança não só com os outros
partidos operários, mas também com os partidos burgueses que sus­
tentavam a frente única nacional. O povo da Tchecoslováquia triun­
fou pela via do desenvolvimento pacífico da revolução” 4).
O coroamento da tomada do poder pelos partidos comunistas
significava, segundo as teses oficiais, que os regimes de democracia
popular passavam a exercer as funções da ditadura do proletariado.
Mas a concepção dogmatica de ditadura do proletariado vigente na
época staliniana exigia que a sua direção fosse exercida por um único
partido operário, o partido marxista-leninista. O “desenvolvimento
criador do marxismo no período do Centro de Informação dos
Partidos Comunistas se limitou a admitir a presença, nas “frentes
nacionais”, de partidos pequeno-burgueses e agrários, adequadamente
depurados e manietados, sem qualquer poder e que, supostamente,
facilitariam a irradiação da influência do partido comunista nas
camadas pequeno-burguesas (a prática demonstrou rapidamente que
este maquiavelismo barato, em todo o caso, só enganava os seus
autores). O dogma não permitiu proceder de igual forma com os
partidos social-democratas — nem mesmo com as suas frações de
esquerda. A solução foi obrigá-los a se fundir com os partidos co­
munistas, uma vez, naturalmente, levada a cabo a correspondente
depuração. Pouco antes da reunião do Centro de Informação dos
514
r,H lidos Comunistas, Gomulka escreveu um artigo sobre a unifi-
t socialista-comunista no qual se pronuncia contra todo enfoque
...... mico ou burocrático do problema: “ Nenhuma unidade mecânica
.li.! capuz de substituir a unidade ideológica. A unidade mecâ-
m. a significaria que os dois partidos, o PSP e o POP, se fundiriam
. m levar em conta as divergências ideológicas existentes entre
n inhos, sem analisar as causas sociais destas divergências, sem defi­
nir os fins perseguidos e os meios para a sua consecução. [. . .] Sa-
I irin o s perfeitamente que a criação de um só partido operário é um
processo ideológico de longa duração” 5. Naquele momento, Dimitrov
. outros líderes comunistas do Leste pensavam de modo parecido.
I . de fato, a situação interna dos partidos socialistas nas democra-
. i.i populares não permitia esperar que o “processo ideológico”,
ir.nptível de conduzir à unificação com os partidos comunistas,
pudesse decorrer em curto prazo. Em finais de 1947, as posições
dii ala esquerda se haviam debilitado, como demonstraram os con­
fessos dos partidos socialistas da Tchecoslováquia e da Hungria.
I a própria esquerda, ainda que desejando por princípio a unifi-
t ação, divergia dos comunistas em questões fundamentais, relativas
aos métodos de construção do socialismo, ao regime interno do
partido, etc. Particularmente, não aceitava a submissão ao partido
oviético. Mas, a partir de janeiro de 1948, como que tocados por
uma varinha de condão, todos os partidos socialistas das demo­
cracias populares foram se pronunciando pela fusão com os partidos
comunistas: em janeiro, o romeno; em abril, o tchecoslovaco; em
junho, o húngaro; em dezembro, o polonês e o búlgaro. Ocorreram
fenômenos tão curiosos como este: em finais de 1947, o XXXVI Con­
gresso do Partido Socialista húngaro recusou a unificação com os
comunistas por substancial maioria; seis meses depois, o XXXVII
Congresso do mesmo partido aprovou a unificação por unanimidade.
Na reunião do Centro de Informação dos Partidos Comunistas, cele­
brada em novembro de 1949, Togliatti fez um informe sobre os
problemas da “unidade operária”. A resolução adotada à base deste
informe registrava “os êxitos históricos alcançados, no terreno da
unidade operária, nos países de democracia popular”, a criação de
“partidos únicos, sindicatos únicos, cooperativas únicas, organiza­
ções únicas de jovens, mulheres, etc.”. No seu informe, Togliatti
explica que tais “êxitos históricos” “só puderam ser conquistados
lutando enérgica e abertamente contra os social-democratas de di­
reita, desmascarando-os, isolando-os, afastando-os dos postos diri-

515
gentes, expulsando-os das fileiras socialistas; esta tarefa foi realizada
com sucesso, embora lenta e debilmente às vezes, pelos socialistas
de esquerda, com a ativa ajuda dos comunistas” 6. Togliatti não ofe­
rece mais detalhes e é inútil procurar nos textos comunistas da
época a crônica documentada desta luta “enérgica”, dos procedimen­
tos que serviram para afastar dos postos dirigentes e excluir dos
respectivos partidos os “social-democratas de direita”. Se, efetiva­
mente, se tivesse tratado de uma aberta luta de idéias, de decisões
tomadas livremente pelos próprios militantes socialistas, convencidos
da necessidade da unificação, é evidente que Togliatti não teria se
privado de analisar minuciosamente tão importante experiência. Mas
a história da “ativa ajuda” dos comunistas à “lentidão” e à “debi­
lidade” dos socialistas de esquerda está por escrever. Suas fontes
se encontram nos arquivos policiais dos respectivos países, porque
a varinha de condão não foi outra — é supérfluo dizê-lo — que a
prévia depuração dos partidos socialistas, com o expurgo de todos
os que se opunham à unificação. E depuração levada a cabo pela
repressão e pela intimidação, depuração que só se tornou conhecida
através dos casos mais notórios de personalidades socialistas en­
carceradas ou obrigadas ao exílio7. Entre os líderes da esquerda
socialista que cooperaram com a operação, alguns se amoldaram ao
stalinismo; os outros logo conheceriam a prisão ou o ostracismo
político.
Num primeiro momento, a liquidação das forças políticas bur­
guesas e o anúncio de que começava a “construção do socialismo”
encontrou o apoio e despertou as esperanças das massas proletárias
ou, pelo menos, de amplos segmentos seus, bem como de núcleos
relativamente importantes da intelectualidade. Mas a ilusão se dissi­
pou rapidamente, dando lugar ao descontentamento larvar, ao medo
e, sobretudo, à apatia política. Sob a sua forma “democrático-popu­
lar”, a ditadura do proletariado se revelou muito escassamente de­
mocrática e bem menos popular que sob a sua forma “ soviética”.
Menos popular, entre outras razões, porque, à diferença da URSS,
nas democracias populares encarnava a dependência a um poder
estrangeiro. O mecanismo burocrático e policial que se dizia repre­
sentante do proletariado, ao mesmo tempo em que o privava de
toda intervenção efetiva na direção do país, era controlado, por
seu turno, por um mecanismo mais oculto, encarregado de zelar pela
unidade monolítica do conjunto da área de projeção soviética. Uma
vez que os incréus foram postos fora de combate, a heresia passou

516
ii vi o perigo principal nas novas províncias do império. E Beria, o
Guinde Inquisitor desses anos, entrou em ação, com todas as conse­
quências. Os depuradores passaram a ser depurados.

A revolução herética

A 28 de junho de 1948 se fez pública, nas democracias popu­


lares, a resolução do Centro de Informação dos Partidos Comunistas
i uiulenando a direção do Partido Comunista da Iugoslávia. A notícia,
11 uno dizia Le Monde do dia seguinte, produziu em todos os lugares
"o efeito de uma verdadeira bomba”. Nos meses precedentes, a
imprensa ocidental fizera eco de rumores sobre dificuldades entre
Moscou e Belgrado (Le Figaro, de Paris, por exemplo, informou,
rin fevereiro, que o Partido Comunista romeno ordenara a retirada
dos retratos do marechal Tito de todos os locais onde estava ao
lado de Stalin, Dimitrov e Groza8), mas ninguém suspeitava que
o conflito pudesse alcançar tais proporções. E menos ainda os prin­
cipais interessados: para os comunistas, esses rumores eram, indis­
cutivelmente, calúnias da imprensa burguesa. Stalin só informou do
conflito — ou melhor: da sua versão do conflito — aos máximos
órgãos dirigentes dos outros sete partidos que, com o soviético e o
iugoslavo, constituíam o Centro de Informação dos Partidos Comu­
nistas. O resto do movimento comunista mundial inteirou-se do
assunto ao mesmo tempo que os outros mortais.
Antes de analisar a resolução do Centro de Informação dos
Partidos Comunistas, vamos resenhar, sucintamente, os principais
antecedentes da crise, baseando-nos nas informações disponíveis até
agora — informações ainda incompletas porque, como em todos os
problemas do mesmo gênero, os arquivos soviéticos permanecem
fechados à investigação histórica9. Ao conflito surgido durante a
guerra mundial entre a política dos comunistas iugoslavos e a estra­
tégia staliniana seguiu-se — como vimos em outro lugar 10 — uma
aproximação entre ambas as políticas, especialmente a partir de
1946, quando se foi agravando a deterioração das relações entre
Washington e Moscou. Mas as agudas divergências do período da
guerra devem ser situadas entre as premissas da crise de 1948, ainda
que apenas por mostrarem a existência, na direção comunista iugos­
lava, de uma vontade de autonomia dificilmente compatível com as
concepções vigentes em Moscou, e no conjunto do movimento comu­

517
nista, acerca das relações entre o “partido guia” e os “guiados”.
Se existisse em Moscou uma postura internacionalista, o aspecto
nacionalista que indubitavelmente estava contido na vontade de
autonomia iugoslava poderia ir cedendo e se extinguir. Mas, no
choque com a prepotência do nacionalismo grão-rasso, o naciona­
lismo iugoslavo exacerbou-se cada vez mais. Entre a libertação da
Iugoslávia e o início da crise que levou à ruptura de 1948, o con­
flito latente entre os dois nacionalismos se refletiu numa série de
incidentes e problemas significativos, a maior parte dos quais não
ultrapassou os círculos dirigentes, sobrevindo à superfície na fase
aguda da crise ou depois da ruptura. Vamos nos limitar à evocação
dos que tiveram um alcance maior.
Em fins de 1944, depois da libertação de Belgrado, registra-
ram-se numerosos casos de violências e abusos cometidos por solda­
dos soviéticos contra a população civil. Como é lógico, os elementos
reacionários exploraram esses incidentes contra o novo regime. As
massas revolucionárias, inclusive os comunistas, que tinham uma
imagem idealizada do exército vermelho, não podiam compreender
o fenômeno e, menos ainda, que os culpados não fossem castigados
com a máxima energia. A questão se converteu num importante
problema político, e o próprio Tito — junto com os principais diri­
gentes iugoslavos — teve que colocá-lo ao general Korneiev, chefe
da missão militar soviética. A reação imediata do general foi quali­
ficar a gestão como ofensa ao exército vermelho. No curso da
discussão, um dos dirigentes iugoslavos explicou que o assunto
adquiria um significado político mais grave pelo fato de os membros
da missão militar britânica não cometerem excessos semelhantes,
com a população comentando o contraste. A indignação do general
Korneiev chegou ao cúmulo: para ele, a constatação deste fato
equivalia a comparar o exército vermelho aos exércitos dos países
capitalistas, o que — afirmava — era uma injúria intolerável11.
Nos anos seguintes, Stalin, por mais de uma vez, recordou este epi­
sódio em suas entrevistas com os chefes iugoslavos e em 1948 ele
se converteu numa das “provas” do seu anti-sovietismo12. Casos se­
melhantes no comportamento de uma parte das tropas soviéticas
— contrastando com a correta conduta da maioria — também se
deram em outros países, sobretudo na Hungria (sem falar da Ale­
manha, onde a “lei do vencedor” foi aplicada em grande escala).
Mas em nenhum desses países os dirigentes comunistas ousaram co­
locar o problema às autoridades soviéticas.

518
Hm maio de 1945 produziu-se outro incidente significativo,
d( stu vez na esfera da política exterior. A Iugoslávia firmara, em
abril, um pacto de ajuda mútua com a URSS. Pouco depois, as
11 opus anglo-americanas entravam no Trieste, onde já se encontra­
vam us do exército de libertação iugoslavo. Washington e Londres
.ipicsentaram um ultimato a Tito, exigindo-lhe a evacuação do Tries-
lc. O chefe iugoslavo solicitou, em vão, o apoio soviético. Em fins
d maio, em Liubliana, capital da Eslovênia, Tito pronunciou um
discurso — referindo-se a afirmações da imprensa ocidental, segun­
do as quais a Iugoslávia reclamava o Trieste menos para si do
que para a União Soviética, o marechal afirmou enfaticamente:
"Apesar do que se diga ou escreva, não queremos depender de nin­
guém. [. . .] Não queremos ser moeda de troca, não queremos que
se nos misture a não sei qual política de esferas de interesses”.
Cumprindo ordens do Kremlin, o embaixador soviético em Belgrado
imediatamente fez saber aos dirigentes iugoslavos que seu governo
considerava esta declaração como “um ato de hostilidade à União
Soviética” e que todo novo ato semelhante seria publicamente de­
nunciado por Moscou 13.
A partir de 1945, o litígio Moscou-Belgrado estendeu-se
também à área da economia. Na direção do Partido Comunista da
Iugoslávia se enfrentaram duas tendências. A minoritária, represen­
tada pelos ministros das Finanças e da Indústria (Juyovitch e He-
brang, este igualmente presidente da Comissão do Plano), que expres­
sava o ponto de vista soviético, e a majoritária, encabeçada por Tito,
Kardelj, etc. A primeira preconizava um desenvolvimento econô­
mico lento, considerando a falta de créditos, de operários qualifi­
cados e de técnicos, bem como “os superiores interesses da URSS” .
A segunda defendia a industrialização a ritmos forçados, à base da
mobilização entusiástica dos trabalhadores e da obtenção de créditos
e ajuda técnica soviéticos 14. Mas, ao mesmo tempo, os dirigentes
iugoslavos se opunham a certas formas de “ ajuda econômica pro­
postas por Moscou, particularmente as “sociedades mistas”. Sobre
este último ponto, aparentemente Stalin cedeu, reconhecendo, numa
entrevista com os dirigentes iugoslavos, que “as sociedades mistas
eram uma forma de colaboração com países dependentes e não
com os independentes e amigos”. No entanto, a tensão persistiu em
relação aos outros aspectos (condições dos créditos soviéticos, preços
fixados para o comércio entre os dois países, etc.) que os dirigentes

519
iugoslavos consideravam lesivos para o desenvolvimento econômico
nacionalls.
Outro problema que teve um peso ponderável na crise sovié-
tico-iugoslava foi o da Federação balcânica e danubiana. Em con­
traste com as atitudes nacionalistas aludidas no capítulo anterior
(cfr. p. 488), os dirigentes iugoslavos e búlgaros, Tito e Dimitrov,
começaram, em finais de 1944, a projetar a constituição de uma
Federação balcânica. Mas surgiram divergências sobre a estrutura
da Federação e, ademais, os anglo-americanos explicitaram a sua
oposição ao projeto. Stalin, que, inicialmente, dera sinal verde para
a idéia — embora, na realidade, como ulteriormente se colocaria
de manifesto, estivesse longe de simpatizar com ela —, aproveitou
a oportunidade para pedir aos iugoslavos e aos búlgaros para adiar
as negociações. E estas só foram retomadas em 1947. A conferência
de Bled, realizada entre os dirigentes das duas repúblicas em finais
de julho, levou a uma série de acordos — entre eles, o projeto de
união aduaneira — que equivaliam à preparação prática da Fe­
deração ,ó. Apesar disto, subsistiram divergências sobre um ponto
essencial: se a Federação deveria compor-se de oito repúblicas em
pé de igualdade (as sete que já constituíam o Estado iugoslavo,
mais a república búlgara) ou assentar-se em dois Estados (búlgaro e
iugoslavo) — a primeira posição era defendida pelos iugoslavos
e a segunda (que implicava colocar as repúblicas componentes da
Federação iugoslava numa posição de inferioridade em relação à
república búlgara) pelos búlgaros. Em janeiro de 1948, Dimitrov
faz uma declaração sensacional, expondo um projeto muito mais
ambicioso: o de uma Federação ou Confederação balcânica e danu­
biana que englobaria todos os países de democracia popular e a
Grécia (em dezembro de 1947 constituíra-se, nas montanhas do
Norte da Grécia, o governo revolucionário de Markos e a inclusão
da Grécia no projeto de Dimitrov fundava-se, naturalmente, na pers­
pectiva da vitória da insurreição). Dimitrov esclarecia que a ques­
tão “não fora discutida ainda nas nossas conferências”: “Quando
estiver amadurecida, o que ocorrerá inevitavelmente, nossos países,
os países de democracia popular, a Romênia, a Bulgária, a Iugos­
lávia, a Albânia, a Tchecoslováquia, a Polônia, a Hungria e a
Grécia — é o que digo: a Grécia! — vão resolvê-la. Decidirão
tanto sobre a forma que o projeto tomará — federação ou confe­
deração — como sobre o momento da sua realização. O que posso
afirmar é que nossos povos já começaram a preparar soluções para

520
, ./e. problemas” ,7. A declaração foi inserida no Pravda moscovita,
,|u< . dias depois (29 de janeiro), publica uma nota oficiosa manifes-
i.nido a rotunda oposição da direção soviética: “O Pravda — dizia
,1 nota — não podia deixar de divulgar a declaração do camarada
Dlmitrov, publicada na imprensa de outros países, mas isto não
lenifica, absolutamente, que os diretores deste jornal concordem
'ini o camarada Dimitrov sobre a questão de uma federação ou
união aduaneira entre os países mencionados. Ao contrário, os dire-
lorcs do Pravda consideram que estes países não têm necessidade de
nenhuma espécie, mais ou menos duvidosa e fabricada, de federação,
confederação ou união aduaneira”. Ao mesmo tempo em que cen­
surava publicamente a personalidade mais prestigiada — depois
da sua — do movimento comunista mundial, Stalin convocou ime­
diatamente os dirigentes búlgaros e iugoslavos. A reunião tem lugar
a 10 de fevereiro. Dimitrov e Kardelj tentam defender as suas
opiniões. Stalin não admite discussões — ordena. Reprova grossei­
ramente a Dimitrov: “Você fala inoportunamente sobre tudo. Quer
assombrar o mundo como se ainda fosse o secretário da Interna­
cional”. Em face do projeto de federação balcânica e danubiana,
exige que se realize rapidamente a federação iugoslava-búlgara,
à base do primitivo plano búlgaro. Exige que, uma vez esta efetivada,
se proceda à anexação da Albânia. No dia seguinte, Molotov convoca
Kardelj e lhe apresenta para assinatura um documento pelo qual a
Iugoslávia se obriga a consultar o governo soviético para qualquer
iniciativa de política externa 1S. Imediatamente depois desta reunião
começa, por via interna, a ofensiva contra os iugoslavos, cujo pri­
meiro sinal exterior foi o revelado por Le Figaro: a repentina desa­
parição dos retratos de Tito em Bucareste.
É desnecessário que nos alonguemos nas considerações sobre
os motivos que determinavam a contundente oposição de Stalin ao
projeto de Dimitrov e Tito. A idéia de uma associação independente
das democracias populares estava em radical contradição com todos
os planos e concepções stalinianos e, aqui, o problema interessante
é saber como ela pôde ser concebida — e, sobretudo, exposta publi­
camente — por Dimitrov. Até hoje não estão disponíveis dados que
permitam esclarecer a questão, mas, em todo o caso, a posição do
velho chefe comunista, unida à de Tito e à de Gomulka — que, ao
que parece, também era favorável à idéia da associação federativa
das democracias populares 19 — , é um signo eloqüente de que, nos
meios dirigentes dos países do Leste, ganhava peso uma tendência

521
autonômica em face do grande protetor. A idéia da federação ou
confederação ligava-se, sem dúvidas, à de seguir vias originais no
desenvolvimento rumo ao socialismo, distintas da soviética — idéia
que fora formulada no período precedente e cujo principal teórico
(na medida escassa em que se pode falar de elaboração teórica) era
Dimitrov.
Na reunião soviético-búlgaro-iugoslava de Moscou, o problema
da federação balcânica e danubiana apareceu vinculado à questão
grega. Os iugoslavos e os albaneses, na medida das suas possibili­
dades, apoiavam decidamente a luta armada dos comunistas gregos.
Pouco antes da reunião de Moscou, o governo albanês solicitara ao
iugoslavo o envio de duas divisões para a fronteira greco-albanesa.
Belgrado respondeu favoravelmente, mas Molotov comunicou aos
iugoslavos que o governo soviético se opunha resolutamente, amea­
çando fazer pública a sua discordância se Tirana e Belgrado não
anulassem as providências previstas. Na reunião de 10 de fevereiro,
Stalin afirmou enfaticamente que a luta armada na Grécia não tinha
nenhum futuro e que os iugoslavos deveriam suspender a ajuda aos
comunistas gregos. Evidentemente, dados os meios militares que o
imperialismo americano estava empregando na Grécia, as forças re­
volucionárias não podiam vencer sem uma assistência militar sovié­
tica adequada, mas Stalin não queria nenhum compromisso neste
terreno (sobre isto, o informe de Zdhanov na reunião do Centro de
Informação dos Partidos Comunistas é suficientemente significativo).
Em troca, a inclusão da Grécia no projeto de federação balcânica
equivalia a proclamar publicamente que o movimento comunista
estava disposto a intensificar a ajuda aos combatentes gregos. Era um
desafio a Washington incompatível com a estratégia staliniana.
Em todo o período que estamos considerando — da libertação
da Iugoslávia à ruptura de 1948 — , um outro conflito de máxima
importância esteve latente entre Moscou e Belgrado. Permaneceu
mais subterrâneo e secreto que todos os demais, como correspondia
à sua natureza; mas nele se jogava decisivamente a questão que,
realmente, estava sobre a mesa: se a Iugoslávia seria um país inde­
pendente ou uma colônia “socialista”. Referimo-nos à guerra oculta
que, desde 1945, se travou entre os serviços secretos soviéticos e
iugoslavos. Os primeiros montando a sua rede, recrutando seus
agentes em todos os meios e, muito particularmente, nas esferas
dirigentes do Partido Comunista da Iugoslávia e do Estado, no exér-

522
dio o na polida, nos organismos econômicos e no corpo diplomá-
Iin i. Os segundos se esforçando para impedir este recrutamento,
procurando descobrir e manter sob vigilância a rede soviética. A
li istòria seria velha, não fora pelo fato de desenrolar-se pela pri­
meira vez entre dois Estados que se diziam socialistas, entre dois
partidos que se diziam comunistas. Para vencer os escrúpulos dos
i oinunistas iugoslavos abordados —premidos pela fidelidade a seu
povo e a seu partido, a que se ligavam não só pela ideologia e pelo
linimento nacional, mas ainda por quatro anos de sangue e sacri­
fícios na guerra de libertação, e pela fidelidade à União Sovié-
lion. expressão suprema, para todo comunista, da causa revolucio­
nária —, os agentes soviéticos recorriam a argumentos deste gênero:
"O inimigo pode se encontrar inclusive entre os dirigentes mais
responsáveis (e recordavam os casos de Trótski, Bukharin, etc.);
nunca teremos uma segurança total e, neste caso, é preferível ter o
apoio de uma organização superior e mais experiente, como a União
Soviética”. Os homens de Beria costumavam se referir favoravel­
mente a Tito, mas davam a entender que no círculo próximo ao
marechal havia “elementos suspeitos” a que convinha “vigiar” 20.
O mesmo ocorria nas outras democracias populares, com a diferença
de que, nelas, não existiu resistência dos respectivos partidos comu­
nistas. A resistência dos dirigentes iugoslavos à instalação desse me­
canismo ultra-secreto, encarregado — como dissemos atrás — de
assegurar a unidade monolítica da área de projeção soviética em
torno da ideologia e da política de Moscou, foi, indubitavelmente,
uma das causas principais da ruptura entre o Kremlin e o Partido
Comunista da Iugoslávia.
Do exposto se deduz com evidência que o problema de como
submeter os iugoslavos esteve permanentemente colocado para Stalin
nos primeiros anos do pós-guerra. De acordo com a situação política,
ele tentou resolvê-lo com métodos diversos, combinando as censuras
e exigências imperativas com os compromissos e as concessões. Em
1946, Stalin procurou explorar a vaidade — real ou suposta — do
comunista-marechal, elogiando, privadamente, os seus méritos, eh-
quanto denegria Dimitrov, Thorez, Togliatti e a Pasionaria21. Já
vimos a utilização feita por Zdhanov do prestígio de partido revo­
lucionário conquistado pelo partido iugoslavo para corrigir o opor­
tunismo dos franceses e italianos e colocá-los numa nova linha
antiamericana. No momento da criação do Centro de Informação
dos Partidos Comunistas, o Partido Comunista da Iugoslávia parecia

523
ser o mais alinhado com a viragem política decretada por Stalin.
Mas justamente esta viragem levou o conflito subterrâneo à sua
fase aberta e à ruptura. A estratégia antiamericana de Stalin se pro­
punha bater a ofensiva de Washington naquelas zonas e questões
consideradas como vitais para os interesses soviéticos, mas incluía
a perspectiva de um arranjo geral que reconhecesse a primazia dos
interesses americanos nas outras zonas e problemas. E uma destas
zonas era precisamente o Sul dos Balcãs. Stalin não punha em
questão o statu quo estabelecido na península, que implicava a do­
minação americana na Grécia e o repúdio das reivindicações iugos­
lavas sobre o Trieste e a Caríntia eslovena, bem como das aspira­
ções macedônicas à reunificação nacional. Em troca, a política exter­
na iugoslava estava centrada na luta contra este statu quo e en­
cerrava o risco de um conflito maior com Washington, no qual a
União Soviética se veria envolvida. Para a nova estratégia staliniana,
o “aventureirismo” iugoslavo passava a ser um perigo mais grave
que o oportunismo governamental e parlamentar dos comunistas
franceses e italianos. De qualquer maneira, este problema não parece
ter sido a causa essencial da ruptura. A julgar pelas informações
existentes, provavelmente os dirigentes iugoslavos teriam se alinhado
às necessidades da política externa staliniana. O ponto de ruptura
se situou, sem dúvidas, no problema da área de projeção soviética.
A atitude independentista iugoslava era incompatível com o plano
integracionista de Stalin e se convertia num perigo para o conjunto
do plano — e não só para a sua realização no marco iugoslavo.
E depois da reunião do Centro de Informação dos Partidos Comu­
nistas os dirigentes iugoslavos não cederam um milímetro nesta
atitude22. A bomba do projeto de federação balcânica e danubiana,
lançada por Dimitrov, revelou até que ponto o risco do contágio
existia para as outras democracias populares23. As coisas chegaram
suficientemente longe para esgotar a paciência de Stalin e pro­
vocar a explosão da sua desconfiança doentia. Era urgente matar
o vírus em seu foco, antes que ele se propagasse excessiva­
mente. É claro que, na determinação de Stalin, influiu também a
crença na sua infalibilidade, em sua onipotência. Como Kruschev
revelaria no “relatório secreto” ao XX Congresso do PCUS, Stalin
acreditava que lhe bastava um movimento do dedo mínimo para
destruir Tito. Acreditava que os comunistas iugoslavos, diante do
dilema de escolher entre a União Soviética e a Iugoslávia, não vaci­
lariam. E é provável que os seus serviços secretos, informando ao

524
chefe segundo os seus próprios desejos, tenham contribuído em boa
medida para fortalecer estas convicções.
O primeiro movimento do dedo mínimo staliniano consistiu
em comunicar aos iugoslavos, nos últimos dias de fevereiro, que não
deviam enviar a Moscou a delegação cuja viagem estava prevista
para abril e que renovaria o acordo comercial existente entre os
dois países. Na prática, isto significava a ruptura das relações co­
merciais e deixava a Iugoslávia numa situação extremamente difícil,
porque todo o seu relacionamento econômico estava orientado para
a URSS e as democracias populares. A URSS absorvia 50% das
exportações iugoslavas e abastecia a república com matérias-primas
vitais, como o petróleo. A l.° de março reuniu-se o Comitê Central
do partido iugoslavo. Tito e Kardelj (que acabava de regressar da
entrevista com Stalin, em Moscou) colocam claramente a situação
criada. O Comitê Central decide resistir em todos os terrenos à
pressão soviética. Segundo se soube posteriormente, alguns membros
do Comitê Central e do governo figuravam entre os agentes recru­
tados pelos serviços secretos soviéticos e informaram imediatamente
sobre as decisões adotadas. A partir deste instante, os movimentos
do dedo mínimo se tornaram mais ameaçadores. A 18 de março,
a embaixada soviética em Belgrado comunica a Tito que Moscou
decidiu retirar os conselheiros e instrutores militares enviados para
ajudar na modernização do exército iugoslavo e, no dia seguinte,
comunica a retirada dos especialistas civis (engenheiros, técnicos,
economistas, etc.). Moscou justifica a primeira medida com o argu­
mento de que os conselheiros e instrutores são tratados inamistosa-
mente e a segunda porque não se permitia aos especialistas civis
obter de qualquer cidadão iugoslavo as “informações econômicas”
que desejassem, uma vez que lhes fora ordenado que se dirigissem,
para tanto, à direção do Partido Comunista da Iugoslávia ou aos mi­
nistérios correspondentes24. Imediatamente, Tito escreve a Molotov
expressando o assombro da direção iugoslava diante das justificações
de Moscou. “Nossas relações com os conselheiros soviéticos — diz
a carta — não são boas: são fraternais”, e, quanto às “informações
econômicas”, explica-se na carta que a decisão adotada o foi “por­
que os funcionários de nossos ministérios se habituaram a transmitir
informações a qualquer pessoa, com o que se divulgaram segredos
de Estado que poderíam cair (e às vezes caíram) nas mãos de nossos
inimigos comuns”. E a carta precisa: “Contrariamente ao que pre­
tende o seu telegrama, não existe nenhuma disposição oficial a

525
propósito do direito de nossos funcionários transmitirem informações
de caráter econômico aos serviços soviéticos sem autorização do
nosso governo ou do Comitê Central”. A carta termina assim: “Está
claro, para nós, que as razões invocadas não são as verdadeiras.
Gostaríamos que o seu governo dissesse francamente o que não vai
bem e impede que as relações entre nossos dois países continuem
tão cordiais como antes. Advertimo-los contra informações que pos­
sam obter de fontes não oficiais — elas não são forçosamente impar­
ciais, seguras ou bem intencionadas”. Com esta carta se inicia a
escalada epistolar que desembocará na reunião do Centro de Infor­
mação dos Partidos Comunistas (segunda quinzena de junho) e a
publicação (28 de junho) da resolução então adotada, condenando
a heresia iugoslava.
Stalin responde a 27 de março. Começa qualificando de “embus­
tes” — e, portanto, “absolutamente insatisfatórias” — as explica­
ções de Tito. Insiste no “direito” de os especialistas soviéticos obte­
rem “informações” de quem lhes apeteça. E arrola novas acusações
contra os iugoslavos. Em primeiro lugar, aquela que parece particular­
mente intolerável ao chefe do Estado soviético — Estado no qual,
como é de notório conhecimento, qualquer comunista estrangeiro
sempre pôde circular livremente, sem sofrer a menor vigilância e
obtendo as informações que mais lhe interessassem. . . — : “Os re­
presentantes soviéticos são submetidos ao controle e à vigilância dos
organismos de segurança iugoslavos. Não recebem tratamento deste
tipo nem mesmo em todos os países burgueses”. Outra acusação é
esta: “Nos meios dirigentes do partido iugoslavo circulam declara­
ções anti-soviéticas, como, por exemplo: o PC (bolchevique) está
em degenerescência; na URSS reina o chovinismo de grande potên­
cia; a URSS quer avassalar economicamente a Iugoslávia; o Centro
de Informação dos Partidos Comunistas é um instrumento do PC(b)
para subjugar os demais partidos comunistas”. “Estas declarações
anti-soviéticas — aduz Stalin — geralmente são dissimuladas sob
cores esquerdistas, tais como ‘o socialismo, na URSS, deixou de ser
revolucionário’ ”. “Declarações” tão distantes da realidade deixam
Stalin indignado, especialmente porque feitas sotto voce, às escon­
didas, quando não há nenhum inconveniente para que as críticas
sejam francas e públicas. . . Stalin nunca questionou as críticas dos
outros partidos. .. “Nós — diz em sua carta — reconhecemos in­
condicionalmente ao Partido Comunista da Iugoslávia, como a todos
os partidos comunistas, o direito de criticar o PC(b), assim como

526
‘■sir icm, igualmente, o direito de criticar qualquer outro partido
comunista. Mas o marxismo exige que a crítica seja franca e honesta,
mio dissimulada e caluniosa, privando o criticado da possibilidade
dn resposta”. Stalin nunca privou ninguém do direito de resposta. . .
Mas os seus críticos iugoslavos o colocam nesta triste situação. “Daí
que semelhante crítica seja caluniosa, uma tentativa de desacre­
ditar o PC(b) e destruir o sistema soviético”. Mas o “ sistema sovié-
lico” sabe defender-se. “Não é inútil recordar — continua dizendo
Stalin — que, quando Trótski decidiu declarar guerra ao PC(b),
começou igualmente por acusá-lo de degeneração, de estreiteza na­
cionalista, de chovinismo. É claro que dissimulava tais acusações
sob frases esquerdistas acerca da revolução mundial. Sabe-se que
Trótski era um renegado e que, mais tarde, passou-se abertamente
para o campo dos inimigos jurados do (PC(b) e da União Soviética.
Pensamos que a trajetória política de Trótski é bastante instrutiva”.
Depois de tratar de outros problemas, a carta terminava com o
mesmo estribilho: “Consideramos que a trajetória política de Trótski
comporta uma lição suficiente”.
Tendo convocado, em termos tão estimulantes, os dirigentes
iugoslavos a exercerem o seu direito de crítica ao PC(b), Stalin
passa a exercer o direito de crítica do PC(b) ao partido iugoslavo
em relação à vida interna deste e à sua política. Stalin manifesta
profunda preocupação porque no partido iugoslavo não existe de­
mocracia interna, porque a maioria do Comitê Central não foi eleita,
e sim “cooptada”, porque não se pratica a crítica e a autocrítica e,
sobretudo, porque os quadros do partido se encontram sob a vigi­
lância de Rankovitch, ministro do Interior. No partido bolchevique
jamais ocorreu algo parecido. . . e, por isto, de acordo com Stalin,
“é compreensível que não possamos considerar esta organização de
partido comunista como marxista-leninista, como bolchevique”. No
que se refere à política do partido iugoslavo, são dois os aspectos que,
fundamentalmente, preocupam Stalin. Primeiro: o partido não luta
com suficiente energia contra os kulaks, incorrendo em bukharinis-
mo. Segundo: em lugar de exercer seu papel dirigente abertamente,
o faz através da Frente Popular (na Iugoslávia, a Frente Popular,
diferentemente das frentes populares de outros países, não era uma
coalizão de partidos, mas um movimento de massas com um pro­
grama revolucionário, forjado no curso da guerra de libertação).
Nesta carta, Stalin concentra o ataque — citando-os nominal­
mente e qualificando-os de “marxistas duvidosos” — contra Djilas,

527
Vukmanovitch, Kidritch e Rankovitch, que chefiavam, repectiva-
mente, os ministérios de Imprensa e Propaganda, Exército, Economia
e Interior — vale dizer, os ministérios nos quais a NKVD tinha o
maior interesse em se infiltrar. Se Tito liquidasse esses “mar­
xistas duvidosos”, que “falavam mal da União Soviética”, as coisas
poderiam ser arranjadas. Os indigitados ofereceram a Tito a sua
demissão, mas o chefe iugoslavo tinha a suficiente experiência, des­
de os tempos da Internacional, para saber aonde seria levado se
começasse a fazer concessões deste gênero. A 12 de abril, o Comitê
Central do partido iugoslavo se reuniu para examinar a carta de
Stalin. Com a exceção de dois membros — que, soube-se, eram
agentes da NKVD —, o Comitê Central repudiou liminarmente as
acusações e pretensões de Stalin e aprovou uma réplica firme, na
qual, entre outras coisas, dizia-se: “Todo o amor que cada um de
nós professa pela pátria do socialismo, pela Rússia soviética, não
pode nos impedir, de maneira nenhuma, de amar, na mesma medi­
da, nosso próprio país, que também marcha pela via do socialismo
e por cuja república federativa popular deram a vida centenas de
milhares de seus melhores filhos”. Em relação ao problema dos es­
pecialistas soviéticos, militares e civis, a carta recordava que, em
1946, o governo iugoslavo informara Moscou das dificuldades
para lhes pagar os salários excessivamente altos — comparados aos
vigentes no país —, fixados pelo governo soviético. Um especia­
lista soviético com a patente de coronel ou tenente-coronel, por
exemplo, recebe emolumentos — lembra a carta — quatro vezes su­
periores aos de um general iugoslavo no posto de chefe de um corpo
de exército e três vezes superiores aos de um ministro do governo
federal. Neste ponto, a carta afirma: “Não vemos a questão apenas
como um problema financeiro, mas como um erro político, porque
nosso povo não pode compreendê-la”. O aspecto em que o Comitê
Central iugoslavo se mostra mais contundente é o que se refere às
atividades da NKVD: "Consideramos inadmissível que os serviços
de informação soviéticos recrutem nossos cidadãos para atividades
em nosso próprio país. Esta ação nos parece contrária ao nosso in­
teresse nacional. E ela se desenvolve apesar dos protestos dos nos­
sos serviços de segurança, que insistiram sobre o seu caráter into­
lerável. [. . .] Temos provas de que os serviços de informação so­
viéticos espalham boatos sobre nossos chefes, desacreditam-nos,
apresentando-os como incompetentes e suspeitos. [ . . . ] Não se pode
invocar o pretexto de que se trata de uma luta contra um país ca-

528
I<HhII i » . iKiN vemos obrigados a concluir que se ameaça a nossa
.....i...i. iiiicniii, sabota-se a confiança em nossos dirigentes e se de-
............... lurai dc nosso povo. Os serviços de informação soviéticos
,,,, I. .11. nem bem intencionados em relação ao nosso país que,
nu ■ntiiiiin, está nu via do socialismo e é o mais fiel aliado da União
fc,,, i. ii. ,i. N;ui podemos admitir que os serviços de informação sovié-
il, m i Mi-iidum u sua rede na Iugoslávia. Temos nossos próprios
dc cgurança e informação para lutar contra certos elemen-
Im , >11nIistas estrangeiros e contra nossos inimigos de classe inter-
nc as organizações soviéticas precisam de informações ou
I, 1111,la ncsle terreno, basta que se dirijam a nós, como sempre
II • nu a, naquilo que nos concerne” 25.
A reunião do Comitê Central iugoslavo de 12 de abril de 1948
i i i |,limeira derrota histórica de Stalin. Pela primeira vez, ele se
l , diante do fato de a maioria esmagadora do Comitê Central de
.......i,i. principais partidos comunistas desafiar as suas recrimina-
e ordens. Pela primeira vez, não só a direção de um partido
....... mista, mas uma revolução e um Estado revolucionário dirigidos
pui i uinunistas resistiam a seu diktat e ousavam confrontar-se com
„ icmível NKVD. Com efeito, unindo a ação às palavras, os servi-
,,us de ltankovitch começaram a deter os funcionários do partido e
,t, I .lado que se sabia serem agentes dos serviços soviéticos. Ao
iui hino tempo, internamente, a direção do partido mantinha infor-
„i,ido» du situação os militantes mais responsáveis. A história de
liup.ki fora mais instrutiva para os veteranos comunistas iugosla-
vi, do que o imaginava Stalin. Mas a batalha estava apenas come­
çando.
Stalin aciona o mecanismo do Centro de Informação dos Par-
ildos Comunistas — que fora criado muito especialmente para este
lim In via aos dirigentes dos partidos-membros a cópia da sua carta
d, 27 de março ao partido iugoslavo e, sem anexar as cartas deste,
,M('i que tomem posição imediatamente. Eles não precisam conhe-
,i i as razões iugoslavas. Basta-lhes saber o que pensa Stalin. Os do­
cumentos em que fixem sua posição — a recomendação vem de
Moscou — não devem ser remetidos diretamente aos iugoslavos,
mus a Stalin — o PC (b) se encarregará de fazê-lo chegar ao partido
iugoslavo. Não são conhecidos os textos das respostas. Segundo as
referências dos iugoslavos, elas estavam confeccionadas de acordo
com o molde de Moscou: apoiavam incondicionalmente as posições
de Stalin, competiam quanto às qualificações injuriosas e exigiam

529
o mea culpa da direção iugoslava. A resposta de Rakosi, particular­
mente, indignou os iugoslavos, que ainda não tinham se esquecido
dos atropelos das tropas fascistas húngaras durante a guerra. Por
outro lado, o mesmo Rakosi queixara-se várias vezes, confidencial­
mente, aos dirigentes comunistas iugoslavos, do comportamento do
exército russo na Hungria, acusando-o de saquear o país e manifes­
tar tendências anti-semitas. A resposta búlgara não era diferente no
essencial embora, segundo a versão dos iugoslavos, Dimitrov os
tenha aconselhado a não ceder 2é. Sob o peso da sua formação ideo­
lógica, e talvez também por considerações táticas, o velho leão de
Leipzig retrocedeu mansamente todas as vezes que seu conflito
com Stalin o colocou à beira do Rubicão.
A nova carta de Stalin (resposta à iugoslava de 13 de abril),
datada de 4 de maio, marca um novo passo na escalada. Afirma que
o embaixador americano em Belgrado se comporta como o dono
do país” e que “os ministérios e os órgãos do partido estavam
cheios de amigos e primos do general Neditch” (o Quisling iugosla­
vo). Mas esta carta, sobretudo, fere duramente os iugoslavos por­
que procura reduzir o papel dos comunistas e do exército revolu­
cionário iugoslavos na libertação do país e na vitória da revolução,
atribuindo os méritos decisivos aos exércitos soviéticos. Referindo-
se a maio de 1944, depois do ataque alemão contra o quartel-gene­
ral de Tito, a carta de Stalin, de fato, diz: “O movimento de liber­
tação nacional na Iugoslávia sofreu uma crise aguda, que só foi su­
perada depois que o exército soviético derrotou as tropas alemãs de
ocupação, libertou Belgrado e criou, assim, as condições indispensá­
veis para a vitória do partido comunista”. Com a sua reconhe­
cida perícia na manipulação da história, Stalin a deformava mais
uma vez — contradizendo a versão que, quatro anos antes, os pró­
prios soviéticos haviam dado dos acontecimentos iugoslavos no verão
de 1944 27 — com o fito de denegrir o Partido Comunista da Iugos­
lávia e de dirigir contra ele os outros partidos do Centro de Infor­
mação dos Partidos Comunistas. Realmente, o parágrafo citado ter­
minava afirmando: “Os méritos dos partidos comunistas da Polônia,
da Tchecoslováquia, da Hungria, da Romênia, da Bulgária e da Al­
bânia não são menores que os do Partido Comunista da Iugoslávia”.
Quanto aos partidos comunistas da França e da Itália, a sua única
“desgraça” foi que “o exército soviético não pôde ajudá-los como
ajudou ao Partido Comunista da Iugoslávia”. No entanto __ pros­
segue Stalin —, “os chefes destes partidos são modestos e não alar-
530
ileium os seus êxitos, ao passo que os chefes iugoslavos enchem os
mi vidos do mundo com as suas fanfarronadas . Depois de resumir
„„ suus acusações anteriores e aduzir outras mais (como aquela de
que o vice-ministro de Relações Exteriores era um agente inglês,
Imito como o embaixador iugoslavo em Londres e outros funcioná­
rios), Stalin escreve: “Os dirigentes iugoslavos devem levar em conta
que, mantendo tais posições, privam-se do direito de pedir à União
Soviética ajuda material ou qualquer outra, porque a União Sovié-
ticu só pode colaborar com os países amigos”.
Nesta carta, Stalin rechaça a proposta feita pelos iugoslavos,
c contida na sua última missiva, para que uma delegação do PC (b)
losse à Iugoslávia para examinar in loco a situação e comprovar
que ela não correspondia ao que se apregoava em Moscou. Ao invés,
Stalin propõe que o assunto seja levado ao Centro de Informação
dos Partidos Comunistas. O Comitê Central iugoslavo se reúne a 9
de maio e recusa este procedimento nos seguintes termos: “Não fu­
gimos à crítica por questões de princípio, mas nos sentimos em tal
situação de inferioridade que nos é impossível aceitar, no momento,
que o assunto seja debatido no Centro de Informação dos Partidos
Comunistas. Sem que tenhamos sido consultados, nove partidos re­
ceberam a sua primeira carta e já tomaram posições resolutivas . A
reunião do Comitê Central examinou os casos de dois dirigentes do
partido e membros do governo que foram descobertos como agentes
de Stalin (Juyovitch e Hebrang), decidindo abrir processo contra
eles. De Moscou veio um telegrama ameaçador e a NKVD preparou
um plano para resgatar Juyovitch e levá-lo para Moscou de avião
— mas, quando tentou realizá-lo, era tarde: Juyovitch estava na ca­
deia. A 19 de maio, chegou a Belgrado um enviado do Kremlin,
renovando o convite para uma reunião do Centro de Informação
dos Partidos Comunistas. O Comitê Central voltou a debater a ques­
tão e ratificou a negativa. Segundo posteriores revelações dos iugos­
lavos, além das razões antes expostas, considerou-se a inexistência
de garantias sobre o regresso, são e salvo, da delegação. O espectro
de 1937 ainda estava vivo (naquele ano, numerosos comunistas iu­
goslavos foram executados em Moscou, e tampouco Ti to se esquecia
do que então ocorrera com o Birô Político do Partido Comunista
da Ucrânia, que adotara posições críticas em face da política nacio­
nalista grã-russa de Stalin; para devolvê-lo ao bom caminho, Stalin
enviou Molotov a Kiev; não conseguindo demover o Birô Político,
Molotov reuniu o pleno do Comitê Central ucraniano, mas este res­
531
paldou o Birô Político; diante disto, Stalin convidou os membros
do Birô Político para discutir o problema em Moscou; logo que
chegaram ao Kremlin, foram presos pela NKVD e fuzilados pouco
depois. De certo modo, Tito era um sobrevivente dos expurgos stali-
nianos dos últimos anos da década de trinta — o que, em boa
medida, explica as suas clarividentes reações de 1948 2S) .
Stalin recorreu a novas pressões para que o Partido Comunista
da Iugoslávia comparecesse ao tribunal do Centro de Informação
dos Partidos Comunistas. Em sua derradeira carta (22 de maio),
acusa os iugoslavos de romper com a “frente socialista unida das
democracias populares e com a União Soviética” e, pela primeira
vez, fala de traição. Mas a direção iugoslava mantém-se firme. A 25
de maio, ela anuncia publicamente a decisão de convocar o con­
gresso do partido para que todos os militantes possam se pronun­
ciar com conhecimento de causa sobre o conflito. Iniciam-se as as­
sembléias gerais das organizações locais do partido, onde são lidas
as cartas trocadas entre Tito e Stalin. Os delegados ao congresso
são eleitos democraticamente, na razão de um por duzentos filiados.
O correspondente da Tass é convidado para a assembléia da orga­
nização de Belgrado. Finalmente, dissipadas todas as esperanças de
conseguir a participação dos iugoslavos, o Centro de Informação dos
Partidos Comunistas se reúne sem eles e adota a resolução proposta
pelos soviéticos, que agrupa e resume os elementos essenciais das
cartas de Stalin29. De acordo com informações iugoslavas, a dele­
gação soviética — integrada por Zdhanov, Malenkov e Suslov __
encontrou alguma resistência de outras delegações, que consideravam
o texto apresentado excessivamente áspero. Para liquidar qualquer
dúvida, Zdhanov declarou: “Sabemos, positivamente, que Tito ê um
espião imperialista 30. No momento, esta acusação conclusiva não
foi inscrita na resolução do Centro de Informação dos Partidos Co­
munistas havia que preparar o terreno no movimento comunista
e fornecer as “provas”. A campanha de terrorismo ideológico de­
sencadeada à base da resolução do Centro de Informação dos Par­
tidos Comunistas serviria exatamente para preparar o terreno. E o
processo de Rajk, um ano mais tarde, para oferecer as “provas”,
de maneira análoga como os processos de Moscou, de 1937-1938,
forneceram as “provas” de que Trótski era um espião da burguesia
internacional desde a mais tenra infância.
À cabeça da resolução figura o verdadeiro motivo da condena­
ção: a resistência dos chefes iugoslavos à dominação soviética. O de-
532
Ilio, c claro, apresenta-se do modo que melhor pode provocar a in-
illgiiiiçâo de todo bom comunista: “Difamação contra os especialis-
i„ militares soviéticos e descrédito do exército vermelho” , persegui-
no dos especialistas civis soviéticos, compelidos a um regime
, 111 , ial em virtude do qual estiveram submetidos à vigilância dos
m^nos de segurança do Estado iugoslavo e seguidos por seus agen-
Ics'', "propaganda caluniosa sobre a ‘degeneração’ do Partido Co­
munista (bolchevique) da URSS, sobre a ‘degeneração’ da URSS,
. n extraída do arsenal do trotskismo contra-revolucionário”. O
resto da resolução está, em sua maior parte, dedicado à “crítica”
lios supostos erros políticos do partido iugoslavo (a atitude “ anti-so-
viética”, compreende-se, é mais que um erro: é um crime) e tem como
íimilidade principal demonstrar que o “anti-sovietismo” acompanha-se
inexoravelmente de graves desvios políticos e teóricos do marxismo-
leninismo. Na reunião constitutiva do Centro de Informação dos
Partidos Comunistas, os dirigentes iugoslavos — como todos os de-
mais integrantes do novo organismo — haviam informado detalha­
damente sobre todos os aspectos da sua política e nenhum dos pre­
sentes, inclusive os soviéticos, lhes fizeram quaisquer reparos
pelo contrário: o partido iugoslavo foi considerado como o exemplo
de partido conseqüentemente revolucionário e, sob este título, de­
sempenhou, como vimos, o papel de fiscal do oportunismo franco-
italiano. Em setembro de 1947, portanto, o Centro de Informação
dos Partidos Comunistas considerava a política do Partido Comu­
nista da Iugoslávia perfeitamente marxista-leninista; em junho de
1948, decidiu que esta mesma política nada tinha de marxista-leni­
nista — qualificou-a de nacionalista, bukharinista, menchevique,
trotskista, anti-soviética.
O Partido Comunista da Iugoslávia fora o único, entre os com­
ponentes do Centro de Informação dos Partidos Comunistas, a fun­
dir a guerra antifascista com a revolução anticapitalista. Agora, via-
se acusado de abandonar a “teoria marxista das classes e da luta
de classes” pelos mesmos que haviam seguido uma linha de colabo­
ração de classes em escala internacional e nacional. A resolução do
Centro de Informação dos Partidos Comunistas incluía na teoria
marxista o dogma staliniano segundo o qual a luta de classes se agu­
diza” necessariamente na fase de transição do capitalismo ao socia­
lismo, e condenava os iugoslavos por não o levarem em conta. De
acordo com o documento, o partido iugoslavo não lutava conseqüen­
temente contra os kulaks. A acusação já figurara na carta de Stalin
de 27 de março, e os dirigentes iugoslavos, ao que parece impres­
sionados por esta crítica do depositário da ortodoxia, cometeram o
erro de anunciar imediatamente a rápida liquidação não só dos
kulaks, mas ainda do pequeno comércio e da pequena indústria pri­
vada. Em vista disto, a resolução do Centro de Informação dos Par­
tidos Comunistas acusava-os também de irresponsabilidade e aven-
tureirismo.
Em segundo lugar, o Centro de Informação dos Partidos Co­
munistas denunciava a direção iugoslava como revisionista em rela­
ção à doutrina marxista-leninista sobre a função dirigente do partido.
O partido iugoslavo fora o único, na Europa — juntamente com o
grego , que não concebera a unidade da Resistência como uma
coalizão pelo alto com os partidos burgueses, mas como um movi­
mento de massas, revolucionário, com uma perspectiva socialista.
A Frente Popular, expressão política organizada deste movimento,
adquiriu influência e prestígio e os dirigentes comunistas conside­
raram oportuno que, numa série de casos, fosse a Frente Popular,
e não o PC, que apresentasse ao país iniciativas e medidas que, na
realidade, emergiram no interior da direção do PC. Na prática, os
comunistas tinham pienamente nas mãos a direção do Estado, não
só graças à decisiva influência conquistada no curso do processo re­
volucionário, mas porque controlavam todos os postos-chave e, em
primeiro lugar, o exército e a polícia. Não havia nenhum risco de
eles perderem a direção da revolução, mas Stalin aproveitou o fato
que acabamos de indicar para acusar Tito e seus colaboradores de
tendências liquidacionistas em relação ao partido comunista”.
Em terceiro lugar, o Centro de Informação dos Partidos Comu­
nistas acusava os dirigentes iugoslavos de criar, no seio do seu par-
tido, um “regime burocrático” em conseqüência do qual nele não
existia nem democracia interna, nem elegibilidade dos organismos
dirigentes, nem crítica e autocrítica”. O que era o regime comum
a todos os partidos comunistas — a eleição dos órgãos dirigentes,
onde se realizava, consistia em “eleger” os candidatos previamente
selecionados pela direção existente —, o Centro de Informação dos
Partidos Comunistas atribuía-o exclusivamente ao partido iugoslavo
e carregando nas tintas, qualificando-o de “regime vergonhoso, pu­
ramente turco [sic] e terrorista”. Ou seja, atribuía-se ao partido iu­
goslavo o regime que há muito Stalin instaurara no partido soviético
como o XX Congresso do PCUS, anos depois, revelaria. Numa
das suas cartas, Stalin acusava os dirigentes iugoslavos de, termina-
534
do a guerra, ainda não terem convocado o congresso do partido;
i sta acusação não aparece no documento do Centro de Informação
dos Partidos Comunistas, provavelmente porque, nesse ínterim, os
iugoslavos haviam decidido pela convocação imediata, mas também,
talvez, porque alguém fizesse notar a Stalin, discretamente, que o
partido soviético não reunia o seu congresso há dez anos e não se
tinha a menor idéia de quando isto viria a acontecer (o XIX Con­
gresso do PCUS só se celebrou em 1952, catorze anos depois do
XVIII).
O partido iugoslavo não era, naturalmente, um modelo de de­
mocracia, mas, naquela ocasião, os seus dirigentes compreenderam
- e foi isto o que os salvou, a eles e à revolução — que não po­
deriam resistir à investida staliniana se não recorressem à base do
partido e às massas trabalhadoras, coisa que estavam em condições
de fazer graças à profundidade e à autenticidade da revolução iugos­
lava. Como já sabemos, à diferença do que se passou noutros países
do Leste, onde o fator decisivo da libertação foi o exército soviético,
na Iugoslávia este fator foi constituído pela luta armada do povo,
organizado e dirigido pelo partido comunista. Os dirigentes comu­
nistas máximos das outras democracias populares chegaram a seus
países nos furgões do exército soviético — e aqueles que permane­
ceram lutando em seu país, como Gomulka, Rajk e alguns outros,
foram logo marginalizados, quando da libertação, pelos que vieram
de Moscou, ou então desempenharam papéis subalternos. Tito e seus
camaradas tinham dividido com os combatentes os riscos e os sacri­
fícios. Por isto, entre eles e as massas existiam confiança e vínculos
recíprocos. A guerra e a revolução remodelaram dirigentes e dirigi­
dos, unindo-os num mesmo espírito nacional-revolucionário. É ver­
dade que a massa dos comunistas iugoslavos padecia da mesma alie­
nação ideológica que afetava os comunistas de outros países: a sua
consciência estava obscurecida pelo fetichismo das mercadorias ideo­
lógicas avalizadas pela legendária etiqueta do Outubro soviético.
Ela era o principal trunfo do jogo de Stalin. E a direção do partido
iugoslavo compreendeu, desde o primeiro instante, que, para conse­
guir a desalienação do conjunto do partido, o unico remedio efi­
ciente era a verdade — colocar à sua disposição todos os elementos
do problema: as cartas de Stalin, a resolução do Centro de Informa­
ção dos Partidos Comunistas, as respostas iugoslavas, as atividades
dos serviços secretos, o corte unilateral das relações comerciais, etc.
Que cada um comparasse palavras e ações.
535
A resolução do Centro de Informação dos Partidos Comunistas
terminava com um apelo aos comunistas e aos trabalhadores iugos­
lavos para derrubarem a direção titoísta. Stalin e seus associados es­
tavam convencidos de que a primeira medida de Tito seria ocultar
do país o documento, impedindo a sua difusão. No texto se dizia
que os dirigentes iugoslavos “trilharam o caminho da mentira flagran­
te em face de seu partido e seu povo, ocultando do partido a crítica
da errônea política do seu Comitê Central”. Quando isto era escrito,
as cartas de Stalin já eram conhecidas das assembléias das organi­
zações locais do partido iugoslavo. Logo que apareceu a resolução do
Centro de Informação dos Partidos Comunistas, Borba, órgão central
do partido iugoslavo, lançou uma edição de meio milhão de exempla­
res reproduzindo o texto integral do documento, acompanhado da
resposta iugoslava. Esta edição saiu às ruas no dia 30 de junho. A 5
de julho, Duelos escrevia em L ’Humanité: “ O fato de os dirigentes
iugoslavos não publicarem a resolução do Centro de Informação dos
Partidos Comunistas demonstra a insegurança dos seus argumentos
e o medo de esclarecer o povo”. Inutilmente, o embaixador iugos­
lavo em Paris rogou ao diretor de L ’Humanité a retificação desta
versão. Nenhum dos partidos do Centro de Informação dos Partidos
Comunistas, que acabavam de acusar o partido iugoslavo de falta
de “democracia interna”, publicou a resposta do Comitê Central
iugoslavo àquela resolução. E nem a deram a conhecer a seus mili­
tantes por via interna.
Muitos comunistas iugoslavos acreditaram que Stalin fora en­
ganado. Para aqueles que professavam a religião staliniana não era
fácil, mesmo dispondo de todos os elementos de avaliação conheci­
dos naquele momento, situar-se repentinamente no campo do mar­
xismo laico — sobretudo levando em conta que o Papa do Kremlin
encontrava-se então no apogeu da sua glória. Numa reunião de comu­
nistas de Belgrado decidiu-se enviar-lhe /o seguinte telegrama: “Acre­
ditamos sinceramente em você. Cremos que fará o possível para si­
lenciar esta injusta acusação contra o nosso partido e o nosso Co­
mitê Central” 31. Inicialmente, os chefes do partido iugoslavo não
se confrontaram com esta corrente. Compreendiam que a liquida­
ção do mito Stalin requeria a intervenção da experiência prática de
cada militante. E, por outro lado, não perderam a esperança de que,
diaríte da firme e quase unânime reação do partido e do povo iugos­
lavos, os chefes soviéticos recuassem e se pudesse chegar a um acor­
do. O V Congresso do partido iugoslavo, celebrado a 21 de julho,

536
ilfi miou sob esta ilusão. Ao mesmo tempo em que reafirmou ener-
j’ii (imcnte as posições do partido e rechaçou as acusações do Centro
ilr Informação dos Partidos Comunistas, Tito declarou: “Esperamos
,|iic os camaradas dirigentes do Partido Comunista bolchevique da
UKSS nos darão a oportunidade de provar aqui, na prática, tudo o
i|uc há de injusto na resolução [do Centro de Informação dos Par-
tidos Comunistas]” 32. E a resolução aprovada no congresso, simul-
iimeamente ao repúdio categórico à condenação do Centro de In­
formação dos Partidos Comunistas, autorizava o reingresso do par-
lido iugoslavo no organismo logo que se resolvesse o conflito com
o partido soviético. Depois de eleger a nova direção por escrutínio
secreto — era a primeira vez que tal coisa acontecia num partido
comunista — , o congresso encerrou a sua sessão dando vivas a Stalin
e à União Soviética, alternados com vivas a Tito.
A resposta imediata de Stalin foi organizar um golpe de Estado
contra Tito. A NKVD contava com três generais iugoslavos, entre
eles o chefe do Estado-Maior, muito prestigiados pelo seu papel na
guerra de libertação. Fracassado o intento de envolver outros oficiais
na conspiração, os três tentaram fugir para a União Soviética, mas
não o conseguiram — o chefe do Estado-Maior foi morto por um
guarda-fronteiras iugoslavo e os outros dois foram detidos em segui­
da. O episódio revelou que, apesar da adesão esmagadoramente ma­
joritária do partido e do povo à política de Tito, Stalin contava com
auxiliares entre os comunistas iugoslavos: uns porque comprometidos
com os serviços secretos soviéticos, outros porque a sua formação
ideológica staliniana era mais forte que tudo. Diante deste perigo,
a direção do partido iugoslavo recorreu a métodos análogos aos de
Stalin — os serviços secretos, a polícia, todos os instrumentos coa-
tivos do Estado. Já no congresso, Tito realçara a necessidade de ser
“implacável contra todas as tentativas de abalar” a unidade do par­
tido e dos povos iugoslavos e nas resoluções aprovadas se lançava o
apelo para intensificar a vigilância e depurar o partido. Mas, ao
mesmo tempo, a direção iugoslava insistiu no método de permitir
ao povo que comparasse as palavras com os atos. As emissões sovié­
ticas, que promoveram uma formidável campanha de descrédito dos
dirigentes iugoslavos, não foram interceptadas. As cartas de Stalin
foram massivamente difundidas. Os “argumentos” do adversário
eram polemizados abertamente na imprensa. Pouco a pouco, o mito
Stalin foi se desvanecendo no espírito dos comunistas iugoslavos,
substituído pela evocação dos czares que, noutros tempos, enverniza­

537
ram os seus projetos expansionistas balcânicos com a retórica de
libertar do jugo turco os escravos do Sul. As torpes alusões da propa­
ganda soviética à eterna amizade da Rússia com a Sérvia contribuí­
ram para esclarecer a continuidade histórica da política moscovita. E
no mesmo sentido influíam os reiterados incidentes nas fronteiras da
Iugoslávia com a Hungria, a Romênia e a Bulgária, bem como os
inquietantes movimentos das tropas russas estacionadas nestes paí­
ses. Numa palavra, os comunistas e o povo> iugoslavos adquiriram a
convicção de que a avalanche de acusações ideológicas ocultava, na
realidade, a ameaça à independência nacional tão duramente con­
quistada.
Ainda hoje se desconhecem as razões concretas pelas quais
Stalin não recorreu claramente ao procedimento expeditivo sinto-
matizado por estes sinais alarmantes. É de se supor que a tensão in­
ternacional vigente naquele momento pesou ponderavelmente. Não
se podia descartar que uma intervenção militar soviética na Iugos­
lávia fosse seguida de outra, americana, prolongando o que já ocor­
ria na Grécia, com todos os riscos de generalização do conflito que
esta eventualidade implicava. Ademais, o exército popular iugoslavo
e a sua experiência na luta guerrilheira não eram dados desprezíveis.
Indiscutivelmente, a prudência de Stalin facilitou o êxito da resis­
tência iugoslava. Também é de se supor que, apesar do fracasso
inicial da intimidação ideológica e do aborto do golpe de Estado,
Stalin acreditasse no colapso, em curto prazo, do Estado herege,
cuja situação não podia ser mais angustiante. De fato, a ofensiva
staliniana coincidia com uma série de provocações das potências
ocidentais. Durante os três primeiros meses de 1948, os aviões ame­
ricanos violaram 21 vezes o espaço aéreo iugoslavo. E, no curso da
campanha eleitoral italiana, as forças reacionárias, vinculadas aos
americanos, acusaram a Iugoslávia de instalar rampas de lançamento
de bombas V-l e V-2 nas proximidades da fronteira italiana, assim
como de concentrar tropas para atacar o Trieste. Os Estados Unidos,
a Inglaterra e a França aproveitaram o momento para revisar de­
terminadas cláusulas do tratado de paz com a Itália e lhe ceder o
Trieste. Mas a situação era sobretudo dramática no aspecto econô­
mico. A ruptura de relações comerciais com a União Soviética e a
sua rápida deterioração com as democracias populares, etc., coloca­
vam a Iugoslávia em face da alternativa de ou buscar um compromis­
so com as potências ocidentais ou perecer. Em seu informe ao V

538
Congresso, consagrado aos problemas da política externa, Kardelj
proclamara a decisão do partido de manter-se na linha de frente úni­
ca com a União Soviética e as democracias populares, ao mesmo
tempo em que dirigia a ambas a pergunta: “Nosso país será aban­
donado à pressão imperialista?’’. Na Conferência Internacional so­
bre o Danúbio, realizada pouco depois da divulgação da resolução do
Centro de Informação dos Partidos Comunistas, os representantes
iugoslavos, diante dos diplomatas ocidentais, alinharam-se aos sovié­
ticos. Porém, muito rapidamente as coisas se aclararam: ou a Iugos­
lávia se submetia ou Stalin a abandonava, de fato, à pressão imperia­
lista. Simultaneamente, a feroz campanha antiiugoslava orquestrada
pelo Kremlin anunciava que Tito se preparava para pactuar com o
imperialismo. Desta maneira, ou sucumbia ou proporcionava a
“prova” de que Stalin tinha razão — de que Tito era um agente do
imperialismo.
Por volta dos primeiros meses de 1949, as democracias popula­
res, seguindo o exemplo soviético, praticamente haviam suspendido
todo o comércio com a Iugoslávia. À revolução iugoslava só restou
um caminho, aquele trilhado pela Revolução de Outubro quando se
encontrou isolada e cercada pelo mundo capitalista: comerciar com
este, buscar empréstimos e ajuda técnica. Para explicar que este rumo
político não significava renunciar ao socialismo, Tito empregou ar­
gumentos semelhantes aos que os bolcheviques haviam utilizado an­
tes. “Quando vendemos nosso cobre para comprar máquinas — de­
clarou em seu discurso de Pula, a 10 de julho de 1949 —, vendemos
exclusivamente nosso cobre, não vendemos a nossa consciência .
“Continuaremos a construir o socialismo com as máquinas que rece­
bermos do Ocidente”. Os Estados capitalistas, como é lógico, apres-
saram-se a responder favoravelmente às solicitações iugoslavas. Eles
não tinham necessidade de que este pequeno país atrasado renun­
ciasse à sua pretensão de construir o socialismo; para o imperialis­
mo americano e seus vassalos, o importante era que a Iugoslávia
pudesse afirmar a sua resistência ao imperialismo russo. Em plena
“guerra fria”, Stalin lhes oferecia, de bandeja, um aliado “obje­
tivo”. Alguns comentaristas e políticos ocidentais expressaram a sua
inquietude de que o “titoísmo” revalorizasse os ideais comunistas,
revelando a possibilidade de um comunismo “anti-staliniano”; mas
os elementos mais inteligentes do capitalismo compreenderam que
qualquer tentativa de restauração do velho regime tanto colidiria

539
com a resistência encarniçada dos comunistas e das massas iugosla­
vas quanto faria o jogo de Stalin. Mostrava-o claramente a campa­
nha antititoísta. Cada acordo comercial da Iugoslávia com países oci­
dentais, cada empréstimo obtido era acolhido por Moscou e pelos par­
tidos vinculados ao Centro de Informação dos Partidos Comunistas
como uma prova adicional da venda de Tito ao capitalismo. A resolu­
ção do Centro de Informação dos Partidos Comunistas não anunciara
que a política “anti-soviética” de Tito acarretaria inevitavelmente “a
perda da independência da Iugoslávia e a sua transformação em
colônia dos países imperialistas”? Seis anos depois, regressando de
sua viagem de penitência a Belgrado, Krushev declararia: “Visita­
mos numerosas regiões do país, conversamos com os trabalhadores
e comprovamos que, apesar das dificuldades que a Iugoslávia expe­
rimentou em conseqüência da deterioração [sic] das suas relações co­
nosco, o país não abdicou de sua soberania e conservou inteiramente
a sua independência nacional em face do campo imperialista” 33.
No verão e no outono de 1949, a “deterioração” das relações
soviético-iugoslavas chegou a um ponto crítico, delineando-se nitida­
mente a ameaça de uma intervenção militar de Moscou. O pretexto
para o caso foi o problema dos russos brancos residentes na Iugos­
lávia e recrutados pelos serviços secretos soviéticos (depois da Revo­
lução de Outubro, instalaram-se na Iugoslávia vários milhares de
russos brancos; quando do triunfo do novo regime, grande parte
deles declarou-se imediatamente a favor da URSS e o governo de
Moscou concedeu a cidadania soviética a cerca de 6.000 deles, entre
os quais os serviços de Beria recrutaram inúmeros agentes). Em
1949, a polícia de Rankovitch deteve alguns russos brancos e Mos­
cou tomou a sua defesa, enviando a Belgrado notas ameaçadoras. A
última, datada de 18 de agosto, invocava o direito dos “cidadãos
soviéticos” residentes na Iugoslávia a expressar livremente as suas
“opiniões democráticas” e qualificava o regime de fascista por não
o permitir. “Em nenhum país — diz a nota —, à exceção daqueles
que têm regimes fascistas, considera-se crime a livre expressão das
opiniões democráticas. Na Iugoslávia atual, esta expressão serve de
base para prisões ilegais e para castigos cruéis às pessoas que criti­
cam o regime fascista existente no país”. “Na Europa só dois go­
vernos, o grego e o espanhol, de Tsaldaris e de Franco, consideram
a resolução do Centro de Informação dos Partidos Comunistas como
um documento criminoso. Estes dois governos são fascistas. Deduz-
se que o terceiro governo fascista é o iugoslavo, já que ele considera

540
iiquela resolução da mesma forma, utilizando a sua difusão e até o
sou conhecimento como base suficiente para encarcerar milhares de
pessoas” (como vimos, o Partido Comunista da Iugoslávia reprodu­
zira e difundira a resolução mencionada, logo que apareceu, em
meio milhão de exemplares e, desde então, o texto, bem como as
curtas de Stalin, estava a venda em qualquer livraria de Belgrado;
mas este fato inexistia para o governo soviético). A nota negava que
.1 resolução do Centro de Informação dos Partidos Comunistas pre-
guva a derrubada da direção titoísta; apenas pedia que os co­
munistas iugoslavos se reunissem em congresso e mudassem esta
direção, coisa inteiramente legítima, porque — como diz o documen­
to — “os congressos dos partidos marxistas não se reúnem para glo­
rificar os chefes, mas para analisar, do ponto de vista crítico, a ati­
vidade da direção existente e, se necessário, renová-la ou substituí-
la por outra direção. Em todos os partidos marxistas onde reina a
democracia interna este método de mudança da direção é natural e
completamente normal”. Só havia que seguir o exemplo do Partido
Comunista da URSS. Quanto aos maus-tratos sofridos pelos “cida­
dãos soviéticos” detidos, a nota cita três casos (supõe-se que entre
os mais extremos). No primeiro, o preso foi “golpeado por vários
dias”, “obrigado a permanecer de pé, imóvel, durante várias horas”,
“proibido de dormir e privado de alimento e água por dois dias
no segundo, o preso “não recebeu nenhum alimento durante seis
dias” e, “no curso dos interrogatórios, teve as pernas golpeadas com
um porrete”; e, no terceiro caso, o preso, “ durante vinte e dois dias,
foi submetido a contínuos interrogatórios noturnos”, “exigiu-se-lhe
que definisse a sua posição diante da resolução do Centro de Infor­
mação dos Partidos Comunistas”, “foi molestado várias vezes no
curso dos interrogatórios e levado seis vezes a um calabouço onde
só podia permanecer de pé”. Métodos tão inqualificáveis, desconhe­
cidos na União Soviética, só podiam suscitar a indignação da cons­
ciência humanista de Stalin: “Pode-se qualificar como democrático-
popular um regime que pratica esses horrores e trata tão brutal­
mente as pessoas? — clama a nota do governo da URSS. Não
seria mais exato dizer que um regime como este, onde se toleram
maus-tratos tão extremos, é fascista como o da Gestapo?” A nota
terminava dizendo que, se o governo iugoslavo não atendesse às re­
clamações soviéticas, o governo da URSS “ver-se-á obrigado a recor­
rer a outros meios mais eficazes para defender os direitos e os inte­
resses dos cidadãos soviéticos na Iugoslávia e para chamar à ordem

541
os agentes da violência fascista desencadeada” 34. Quais seriam esses
“outros meios mais eficazes”? Naquele momento, o bloqueio eco­
nômico da Iugoslávia pela URSS e pelas democracias populares era
completo. A campanha difamatória parecia chegar ao limite. Apa­
rentemente, só restava a intervenção militar. A imprensa ocidental
se encheu de notícias alarmistas sobre movimentos de tropas sovié­
ticas nas democracia^ populares fronteiriças à Iugoslávia e de adver­
tências oficiosas sobre a decisão dos Estados Unidos e de países eu­
ropeus de intervirem em caso necessário. Mais uma vez, Tito pro­
clamou a vontade iugoslava de enfrentar qualquer eventualidade. E,
em lugar da intervenção militar soviética, sobreveio o processo de
Rajk e a segunda resolução do Centro de Informação dos Partidos
Comunistas sobre a Iugoslávia. Antes, contudo, se pôs em circula­
ção uma nova “prova” da “traição” de Tito.
Como vimos, em inícios de 1948 Stalin exigiu dos comunistas
iugoslavos que cessassem a ajuda à luta armada dos comunistas gre­
gos. O Partido Comunista da Iugoslávia não aceitou esta exigência,
mas a sua condenação pelo Centro de Informação dos Partidos Co­
munistas colocou-o numa situação extremamente precária — como
facilmente se compreende depois do que expusemos — para conti­
nuar prestando sua assistência aos combatentes gregos na medida em
que estes a necessitavam. A partir da resolução do Centro de Infor­
mação dos Partidos Comunistas, a Iugoslávia teve que manter as
suas forças militares praticamente em estado de alerta, prontas para
agir caso Stalin se decidisse pela intervenção militar. Por outro lado,
a resolução do Centro de Informação dos Partidos Comunistas teve
efeitos catastróficos no Partido Comunista grego e no exército guer­
rilheiro. Muitos dos seus quadros — inclusive o general Markos,
chefe do governo revolucionário instalado nas montanhas do Norte
— não aceitaram a condenação do partido iugoslavo e foram víti­
mas de um grande expurgo, organizado por Zachariades, secretário-
geral do partido, e por outros elementos partidários do Centro de
Informação dos Partidos Comunistas, que conseguiram se impor na
direção do Partido Comunista grego. Em finais de 1948, Zacharia­
des acumulou a secretaria geral do partido com o comando supremo
das forças armadas. Como depois o reconheceu a imprensa grega,
no outono de 1948 a situação das tropas governamentais, apesar dos
técnicos e dos armamentos americanos, era alarmante. O exército
revolucionário tivera, durante o ano, uma série de êxitos espetacula­
res. A partir de finais de 1948, depois da eliminação de Markos e

542
iIm depuração antiiugoslava, a marcha da guerra civil sofreu uma
miidimçu radical em favor dos efetivos governamentais — que a im-
|Moiir.n grega atribuiu ao talento estratégico do general Papagos. Ain-
iln liojc não está claro se este novo rumo da guerra civil, que levaria
illii lmncnte à derrota final das forças revolucionárias em agosto de
I' >I*), foi determinado fundamentalmente pelo incremento da inter-
vi 111,110 militar americana (no primeiro semestre de 1949, segundo
liilormuções da imprensa americana, foram enviados para a Grécia
112 aviões, 7.000 bombas de aviação, 10.000 caminhões militares,
VK40 canhões e morteiros, 280 milhões de cartuchos e outros ma-
ir rí ais bélicos35), enquanto o auxílio soviético primava pela ausên-
■ia, ou se o fator decisivo foi a decomposição interna das forças re­
volucionárias por força dos acontecimentos indicados ou se, ainda,
/.achariades, aplicando diretivas concretas de Stalin, jogou conscien­
temente na liquidação da luta. Provavelmente, tudo isto — fora, tal-
vr/., o “talento” de Papagos — se conjugou para conduzir ao trági­
co epílogo da revolução grega. O que, porém, sabe-se com absoluta
segurança é que a direção do Partido Comunista grego, encabeçada
por Zachariades, não lhe bastando a guerra com a monarquia grega
e os americanos, lançou-se a uma guerra larvar e a uma propaganda
aberta contra o Partido Comunista da Iugoslávia. É claro que obe­
decia a instruções do Centro de Informação dos Partidos Comunis­
tas, interessado em aproveitar o prestígio dos combatentes gregos no
movimento comunista para reforçar a campanha difamatória contra
os iugoslavos36. No verão de 1949, a derrota do exército popular es­
tava praticamente consumada e as tropas monárquicas chegavam às
fronteiras da Iugoslávia e da Albânia. Em meados de julho, o go­
verno de Belgrado anunciou a sua intenção de fechar a fronteira,
explicando a decisão pelas repetidas incursões das tropas gregas no
território iugoslavo. Imediatamente, a rádio “Grécia Livre”, con­
trolada por Zachariades, acusou Tito de ajudar a ofensiva governa­
mental. A campanha antititoísta exultou: Tito se vendera aos
americanos e aos monarco-fascistas gregos, apunhalara pelas costas
o exército democrático! A 28 de agosto, a rádio Moscou difundiu
um comunicado do ministério da Defesa albanês também anuncian­
do o fechamento da fronteira e esclarecendo que, “a fim de salva­
guardar a paz, todas as pessoas armadas procedentes da Grécia, se­
jam monarco-fascistas ou democratas, serão desarmadas”. Mas esta
medida, como vinha de um governo controlado por Moscou, não era
uma “punhalada pelas costas”; era apenas uma providência “a fim

543
de salvaguardar a paz”. Até a morte de Stalin, a versão vigente no
movimento comunista pode ser resumida neste juízo de uma revista
comunista francesa: “ O governo de Truman seria derrotado na Gré­
cia, como o foi na China, se a traição de Tito não tivesse permitido,
in extremis, aos imperialistas anglo-americanos ganhar a partida no
plano militar” 37. Depois da morte de Stalin, a “traição” de Tito de­
sapareceu como por encanto das explicações oficiais da derrota grega,
cujas causas foram reduzidas a duas: a intervenção americana e os
erros da direção encabeçada por Zachariades. As responsabilidades
de Stalin e do Centro de Informação dos Partidos Comunistas ainda
esperam por análise.
Parece bem provável que o fechamento da fronteira não foi
motivado apenas pela razão oficial oferecida por Belgrado. Havia
dois outros objetivos: impedir a entrada no território iugoslavo de
forças armadas obedientes ao Centro de Informação dos Partidos
Comunistas (à semelhança da decisão albanesa, que tentava impedir
a entrada, no seu território, de elementos armados pró-iugoslavos38)
e praticar um ato que facilitasse as relações com Washington, no
momento em que a ameaça de intervenção militar soviética parecia
concretizar-se (como vimos atrás) de maneira alarmante. Neste, como
em outros atos ulteriores da sua política externa (por exemplo, o
pacto balcânico com a Grécia e a Turquia), se Tito não vendeu a
sua consciência como comerciou com o cobre, a verdade é que teve
que dotá-la de uma grande elasticidade. Mas Stalin lhe deixava
outra alternativa? Sob certo aspecto, a situação da revolução iugos­
lava era mais dramática que a da Revolução de Outubro. Em face
do cerco capitalista, a Revolução de Outubro contou, ao menos,
com a assistência ativa do proletariado revolucionário internacional.
Mas em face do cerco do imperialismo russo, camuflado sob a eti­
queta socialista, e do movimento comunista, ainda totalmente alie­
nado pelos mitos “soviéticos”, o único recurso defensivo da revolu­
ção iugoslava, no plano externo, foi aproveitar a “guerra fria” entre
o imperialismo capitalista e o novo tipo de imperialismo que entrava
em cena. O problema real era saber se a aliança tácita com os Esta­
dos Unidos e seus vassalos, assim como com a ala reformista do mo­
vimento operário, seria compatível com o desenvolvimento da revo­
lução socialista no plano interno. Explorar esta via tortuosa ou imo­
lar-se ante o colonialismo staliniano — este foi o dilema inexorávelr
com que se defrontou a revolução iugoslava.

544
Os processos

Di acordo com a propaganda do Centro de Informação dos


i .ii lid o s Comunistas, desenvolvida a partir da resolução de 1948 e
..... i|iiccida com as novas “provas” que os acontecimentos iam for-
im nido, a heresia iugoslava seguira, até o verão de 1949, este iti-
iH un iu: numa primeira fase, Tito & Cia. passaram do marxismo-
I, niilismo ao nacionalismo; colocados na vertente nacionalista, des­
ìi..mim, numa segunda fase, para o anti-sovietismo, confrontando-se
com a União Soviética e o partido bolchevique, o que assinalava o
,cti total abandono do internacionalismo (porque, como bem se sabe,
ii ntitude frente à URSS é a pedra-de-toque do internacionalismo);
i . lilialmente, transitaram para o campo imperialista, começando,
inclusive, a se tornar fascistas. O pecado original, portanto, era o
nacionalismo. Mas este esquema tinha o inconveniente de, de alguma
maneira, credibilizar os dirigentes iugoslavos como patriotas, heróis
da independência nacional. Sua função difamadora era eficaz para
os comunistas “maduros”, mas podia ser contraproducente entre a
população não comunista das democracias populares, cujos senti­
mentos nacionais se levantavam contra a dominação russa, e mesmo
entre uma parcela da massa comunista recém-ingressada nos partidos
desses países. O processo de Rajk teve como finalidade trazer a
“prova documental indiscutível” de que Tito e seus colaboradores
não só nunca foram marxistas, comunistas, mas também nem sequer
patriotas: tinham sido — já desde a guerra — agentes a soldo dos
serviços secretos hitlerianos ou anglo-americanos, aos quais venderam
a soberania e a independência da Iugoslávia. O verdadeiro patrio­
tismo — “demonstrava-o” o processo de Rajk — , na Iugoslávia como
nas outras democracias populares, estava indissoluvelmente ligado à
fidelidade à URSS, garantia suprema da independência nacional des­
ses países (a “prova” oferecida pelo processo de Moscou, segundo
a qual Trótski, Bukharin, etc., eram agentes da Alemanha e do
Japão, tinha também por objeto — aspecto nem sempre destacado
— desacreditá-los ante o patriotismo das massas soviéticas, polari­
zado naqueles anos contra o perigo de agressão alemã e japonesa).
Laszlo Rajk era membro do Partido Comunista da Hungria desde
começos dos anos trinta, quando ainda estava nos bancos universi­
tários. Esteve na Espanha, combatendo com as Brigadas Internacio­
nais. Depois da derrota da república espanhola, foi internado nos
campos franceses. Dirigiu na clandestinidade o partido húngaro du­

545
rante a Resistência. Foi ministro do Interior da democracia popular
húngara da sua formação até pouco depois da divulgação da resolução
do Centro de Informação dos Partidos Comunistas contra Tito,
quando assumiu o posto de ministro das Relações Exteriores. A
15 de junho de 1949, foi divulgado um comunicado do Comitê
Central do partido húngaro (chamado então Partido dos Trabalha­
dores da Hungria) no qual se anunciava a expulsão de Rajk e de
Szonyi — outro dirigente do partido — por serem “espiões das
potências imperialistas e agentes trotskistas”. A 10 de setembro, o
governo húngaro publicou a ata de acusação contra Rajk e outras
personalidades do partido e do Estado. A 17 do mesmo mês, num
grande tribunal de Budapeste, iniciou-se o processo contra eles. As
sessões eram públicas e, como o espaço fosse limitado, distribuíram-se
convites. Sessenta jornalistas estrangeiros puderam estar presentes__
o Pravda enviou o romancista Boris Polevoi. Representantes diplomá­
ticos também podiam assistir ao julgamento. O grande espetáculo, re­
produção exata dos processos de Moscou, desenvolveu-se impecavel­
mente. Todos os acusados confessaram os crimes — os que lhes eram
atribuídos e outros mais. Rajk foi condenado à morte e enforcado
juntamente com outros três co-réus. Aos militares, em deferência à
farda, concedeu-se-lhes a graça de morrerem fuzilados. Quanto aos
outros processados, coube-lhes longos anos de cárcere. Em 1956,
depois do XX Congresso do PCUS, as autoridades húngaras reco­
nheceram que tudo fora uma farsa. Rajk foi “reabilitado”. Trezen­
tos mil trabalhadores, intelectuais e estudantes desfilaram pelas ruas
de Budapeste rendendo-lhe homenagens nacionais e exigindo a li­
quidação do sistema político que tornava possível a fabricação de
semelhantes farsas criminosas pelos mesmos que se diziam represen­
tantes do proletariado e do socialismo. Pouco depois entrariam os
tanques soviéticos para, in extremis, salvar este sistema. O seu álibi
foi o fato de as forças reacionárias húngaras e os verdadeiros agentes
do imperialismo tentarem aproveitar, como era lógico, a sublevação
operária e popular para tirar vantagem do fato. Porém, um dos
principais motivos da intervenção armada soviética, à semelhança
da intervenção realizada na Tchecoslováquia doze anos depois (quan­
do, à falta do álibi utilizado na Hungria, tiveram que inventá-lo), foi
impedir que se lançasse toda a luz sobre os crimes políticos nas
democracias populares. Daí por que aspectos essenciais destes crimes,
da sua montagem, da participação dos principais organizadores, os
dirigentes soviéticos e seus serviços secretos, permaneçam desconhe-

546
i idos até hoje, apesar das revelações de algumas das vítimas sobre­
viventes39. Mas a sua significação e os seus motivos estão suficien-
temente esclarecidos. No caso do processo de Rajk, o próprio pro­
motor os definiu com extrema clareza: “Este processo, falando
com rigor, não é o processo de Laszlo Rajk e seus cúmplices: no
b a n c o dos réus, estão Tito e seus acólitos. [ . . . ] Está claro que,
condenando Laszlo Rajk e seu bando de conspiradores, o tribunal
do povo húngaro condena igualmente, no sentido político e moral,
os traidores da Iugoslávia, o bando criminoso de Tito, Rankovitch,
Kardelj e Djilas. Precisamente nisto consiste a importância interna­
cional deste processo”.
Como Fejto diz com justeza, na sua História das Democracias
Populares, “o processo de Rajk não foi mais que um ersatz do pro­
cesso de Belgrado que não se pôde realizar; mais que acusado, Rajk
cra uma testemunha, a principal testemunha da acusação contra
Tito”40. Na sua “ confissão”, Rajk começava por se auto-retratar como
um ser abjeto, vil, vendido desde 1931 — logo que entrou no par­
tido — à polícia de Horthy. Se foi para a Espanha (onde o feriram
em três oportunidades), não o fez para combater o fascismo, mas
para servir à Gestapo. Como agente da Gestapo, atuou nos campos
de concentração franceses (onde foram internados os combatentes
das Brigadas Internacionais) e atuou igualmente no período da Re­
sistência húngara, quando esteve à frente do partido na clandestini­
dade. Os outros acusados se retrataram da mesma maneira. E, uma
vez fixada a sua condição de policiais e espiões com o que, ao
que parece, o seu testemunho diante do tribunal staliniano se re­
vestia da máxima credibilidade e dignidade , os acusados passa­
ram a agir como acusadores dos dirigentes iugoslavos, explicando
que em tal ou qual data, em tais ou quais circunstâncias, todos eles
foram recrutados pela Gestapo, pela Segunda Seção francesa ou
pela espionagem anglo-americana. A crer nestas explicações, as Bri­
gadas Internacionais eram um antro de espiões e policiais que,
dos campos de concentração franceses, foram enviados aos países
do Leste; ali, à frente dos respectivos partidos comunistas clandesti­
nos e das resistências, continuaram recrutando policiais e espiões
entre os comunistas. E a guerra revolucionária iugoslava aparecia,
particularmente, como organizada e dirigida por agentes da Gestapo,
tanto como a resistência húngara. E todos eram agentes polivalentes
— trabalhavam para a polícia anglo-americana e de outras potências.
Derrotados os alemães, esta coorte de espiões, naturalmente, foi em-

547
pregada pelos serviços de Allan Dulles, chefe da espionagem ame­
ricana na Europa. Quanto às outras democracias populares, o pro­
cesso de Budapeste não contribuía com informações precisas —
limitava-se a deixar implícito que, nelas, também existiam ramifica­
ções do “monstruoso compio imperialista”. Mas dava algumas pistas
para descobri-las: membros das Brigadas Internacionais, comunis­
tas que se exilaram no Ocidente antes da guerra, militares que atua­
ram na resistência, etc. E, sobretudo — está claro — aqueles que
tiveram contato com os dirigentes comunistas iugoslavos, que pas­
savam a ser espiões por antonomásia. E qual dirigente comunista
das democracias populares não tivera, alguma vez, relação com os
iugoslavos?
O mesmo se aplicava aos líderes comunistas ocidentais. Se se
aplicasse conseqüentemente a metodologia do processo de Rajk,
chegar-se-ia à conclusão de que os organismos dirigentes dos partidos
comunistas da França, da Itália, da Espanha, etc., estavam prova­
velmente infestados de policiais na mesma escala em que o estavam
os dos partidos das democracias populares. E deixemos de lado as
altas esferas do Partido Comunista da URSS que, no final das contas,
eram as que mais contactavam com os espiões conhecidos ou poten­
ciais de todos os outros partidos, a começar pelo iugoslavo. A partir
desta hipótese plausível e se remontando ao passado de uma série
de personalidades comunistas ocidentais e orientais — tal como se
fazia com Tito, Rajk, etc. — , facilmente se concluiria que a In­
ternacional Comunista fora criada, na realidade, pela espionagem
alemã (ah! a suspeita viagem de Lênin no vagão blindado através da
Alemanha do Kaiser!), enfim se esclarecendo o ponto que até hoje
permanece obscuro na historiografia staliniana: por que a IC foi
inicialmente dirigida por experientes agentes da Gestapo como
Zinoviev, Trótski, Bukharin... E depois, na época da frente po­
pular, a IC teria passado ao serviço da espionagem anglo-franco-
americana. . . A conclusões semelhantes poder-se-ia chegar, logica­
mente, no que toca ao Estado soviético. Afortunadamente, a meto­
dologia do processo de Rajk encobria outra, muito mais rigorosa e
científica: as listas de espiões, ou de candidatos a tais, eram confec­
cionadas previamente nos escritórios de Beria, segundo as instruções
do Infalível. Portanto, não havia nenhum risco de que a aplicação
da lógica formal conduzisse a conclusões errôneas. Só depois que
os espiões eram designados é que se recolhiam os dados ilustrativos
da sua condição: contatos, reuniões, prisões (envolvimento evidente

548
com a polícia), relações com liberais, social-democratas, etc. (super­
abundantes na época das alianças antifascistas e provas suficientes
de contatos com a burguesia), conhecimentos com as missões mili­
tares ou diplomáticas anglo-americanas (qual dirigente comunista
de certa categoria não os tivera, direta ou indiretamente, na época
da “grande aliança”?) — prova suprema da conexão com o impe­
rialismo e seus serviços secretos, etc. Uma vez que o Infalível, asses­
sorado pelos seus serviços, decidia que tal comunista era um espião,
a acumulação dos dados comprobatórios, das “provas irrefutáveis”
— como rezava a ata de acusação de Budapeste — era coisa simples.
Não havia outra dificuldade que a sua seleção. E era aqui que, às
vezes, por causa da rotina burocrática, imperante neste domínio
como nos demais, os serviços falhavam. Por exemplo: entre os vo­
luntários das Brigadas Internacionais que, segundo a confissão de
Rajk, foram enviados pela Gestapo dos campos de concentração
franceses para a Iugoslávia, havia muitos que nunca estiveram em
tais campos e um deles (Vukmanovitch) sequer fora à Espanha. Mas,
afora estes pequeninos erros burocráticos, o método referido — a
designação prévia dos espiões ou candidatos a espiões permitia
colocar limites no tempo e no espaço do encadeamento lógico, dei­
xando localizada a epidemia na zona e no período convenientes,
conforme os problemas políticos e ideológicos que cabia resolver.
Naqueles anos, o Infalível decidiu que a epidemia de espiões no
movimento comunista se localizava preferencialmente nos países da
área de projeção soviética e, sobretudo, naquele que recusara a
honra de fazer parte dela.
Dois meses e meio depois da Hungria, chegou a vez da Bulgária.
O promotor geral desta república divulgou, a 30 de novembro, a
ata de acusação contra “o grupo de conspiradores e criminosos lide­
rado por Traicho Kostov”. Kostov era conhecido no movimento co­
munista como velho revolucionário, fundador — com Dimitrov
do Partido Comunista da Bulgária, colaborador durante algum tempo
dos órgãos dirigentes da Internacional Comunista, temperado por
trinta anos de atividade clandestina, lutas de massas, insurreições ar­
madas e, finalmente, de trabalho dirigente na democracia popular.
Mas, de acordo com a ata de acusação, Kostov era outra coisa. Em
primeiro lugar, tinha — como Rajk e quase todos os convertidos em
espiões — um passado trotskista. “Seus principais traços biográficos
— dizia a ata — são a duplicidade de caráter, a traição e a cons­
piração criminosa contra os mais sagrados interesses da classe ope­

549
rária e do povo búlgaro”41. Esclarecia-se que Kostov recomendara à
IC a utilização de Tito em cargos de responsabilidade no partido
iugoslavo (esta era a única verdade contida na ata de acusação e,
naturalmente, um dos seus crimes mais graves). Kostov não era um
agente policial tão precoce como Rajk: só se vendeu em 1942. Pouco
depois, passou ao serviço de espionagem inglês, que lhe recomendou
vincular-se a Tito. Kostov pôs-se de acordo com Tito para derrubar
o poder popular búlgaro com o apoio militar iugoslavo (também Rajk
confessara sua articulação com Tito para derrubar o poder popular
húngaro, com a ajuda de forças militares iugoslavas, que interviriam
disfarçadas de húngaros e em cooperação com unidades do ex-exército
e a ex-polícia de Horthy, concentradas nas zonas austríacas contro­
ladas por ingleses e americanos). No plano conspirativo, incluía-se a
prisão e o assassinato de Dimitrov. Tais eram — entre outros não
menos graves — os “fatos” citados pelo promotor geral.
A grande cerimônia inquisitorial de Sofia abriu-se ao público
em 7 de novembro — sob a invocação da Revolução de Outubro — ,
na sala da Casa Central do Exército Popular. Ali estavam os jor­
nalistas estrangeiros, os representantes diplomáticos e as inevitáveis
“delegações operárias”. Era a exata repetição do espetáculo encenado
em Budapeste. Mas, de repente, para surpresa geral, ocorreu o im­
previsto: Kostov negou as confissões que fizera durante o curso
do “inquérito”. Negou resolutamente tudo o que lhe imputavam.
Desconcertado, o presidente do tribunal ordenou a imediata suspen­
são da sessão, para que o acusado pudesse reler os seus depoimentos.
O presidente pretendia que fosse uma falha de memória. Mas, re­
tomada a audiência, Kostov manteve-se firme na sua posição. Os
jornais búlgaros não deram notícias desta intolerável infração ao
ritual. Num despacho de Sofia, a agência Tass a mencionava, ao
qualificar como insolente o comportamento de Kostov42. O veterano
revolucionário que, pelo visto e ao contrário dos acusados de Buda­
peste, encontrara forças para superar as torturas morais e físicas,
não recuou da sua “insolência” durante o resto do processo. Quando
chegou o momento da sua última declaração, ratificou energicamente
a sua posição — mas, agor%, os diretores do espetáculo tinham se
prevenido: logo que Kostov começou a falar, do público se ergueu
uma onda de assobios e vaias; o sistema de tradução simultâneo em
quatro idiomas, com fones de ouvido para os jornalistas estrangeiros,
deixou imediatamente de funcionar. Apesar dos seus protestos de
inocência, Kostov foi condenado à morte e executado. Isto deveria

550
colocar uma dúvida embaraçosa sobre a justiça democrático-popular;
mus, poucos dias depois, as indagações se dissiparam: a imprensa
divulgou o texto de uma carta escrita por Kostov antes de morrer,
ietratando-se por seus protestos e reconhecendo-se inteiramente cul-
pado. Quando, em 1956, Kostov foi reabilitado, revelou-se a falsi­
dade desta carta, bem como de todas as acusações e confissões apre­
sentadas no processo.
A caça e o castigo dos hereges começaram nas democracias
populares desde o momento mesmo em que Stalin iniciava a sua
ofensiva contra a revolução iugoslava. Na Albânia, Dodje, secretário
de organização do partido e ministro do Interior, muito vinculado
uos iugoslavos, foi afastado dos seus cargos antes da publicação da
resolução do Centro de Informação dos Partidos Comunistas. Julgado
e condenado sob o maior segredo, em novembro de 1948, junta-
mente com outros conhecidos dirigentes do partido, foi executado
em junho de 1949. Na Romênia, Patrascanu, secretário-geral do
partido até 1945 e desde então membro dos seus organismos supe­
riores e ministro da Justiça, foi preso, junto com outros comunistas
destacados, no verão de 1948. Gomulka foi destituído da secretaria
geral do partido polonês no verão de 1948, acusado, entre outros
crimes, de nacionalismo, resistência à coletivização intensiva da
agricultura, falta de vigilância, tolerância para com os intelectuais e,
sobretudo, “incompreensão do papel dirigente do Partido Comunista
(bolchevique) da URSS”43. Em janeiro de 1949, Gomulka, o general
Spichalski e outros dirigentes foram expulsos do partido. Na Tche-
coslováquia, a depuração de “titoístas” e outros “direitistas começou
imediatamente depois do “golpe de Praga” — que coincidiu com a
abertura da ofensiva de Stalin contra os iugoslavos — e se desen­
volveu durante todo o período seguinte, sob a direção de Slansky,
secretário-geral do partido. Portanto, no ano transcorrido da reso­
lução do Centro de Informação dos Partidos Comunistas contra Tito
ao processo de Rajk, a depuração dos partidos comunistas e das insti­
tuições estatais das democracias populares já tomara proporções signi­
ficativas, porque os casos mencionados, relativos aos grupos dirigen­
tes, englobam apenas os que foram publicitados por envolver perso­
nalidades. Acerca dos milhares de quadros médios e militantes de
base afastados dos seus cargos ou expulsos do partido não houve
informação pública nem, provavelmente, interna. Souberam do as­
sunto, unicamente, os membros do partido diretamente relacionados
com cada caso. Mas a grande depuração começou mesmo com o pro-

551
cesso de Rajk, que serviu para concretizar a plataforma política e
ideológica em que a operação deveria basear-se em todas as demo­
cracias populares e, ao mesmo tempo, sobre a qual deveria intensi­
ficar-se a campanha contra aquela que, por decreto de Stalin, deixara
de sê-lo. Os dois aspectos iam estreitamente ligados.
Na segunda quinzena de novembro de 1949 realizou-se a
terceira, e última, reunião do Centro de Informação dos Partidos
Comunistas. Três pontos figuravam na sua pauta: “a defesa da paz
e a luta contra os promotores da guerra”; “a unidade da classe
operária e as tarefas dos partidos comunistas e operários” e “o Par­
tido Comunista da Iugoslávia nas mãos de assassinos e espiões”.
Aos dois primeiros pontos — cujos expositores foram Suslov e
Togliatti — nos referiremos em outro capítulo. Quanto ao terceiro,
o informante foi Georghiu-Dej, secretário-geral do partido romeno44.
Seu informe começava dizendo que os acontecimentos ocorridos
desde a resolução do Centro de Informação dos Partidos Comunistas
e, especialmente, desde o processo de Budapeste “confirmaram intei­
ramente a justeza da resolução e destacaram o valor excepcional,
teórico e prático, adquirido pelo documento para o movimento revo­
lucionário mundial”, a sua “genial força de previsão” e a sua “pers­
picácia científica” — daí que tal resolução tenha assinalado “uma
histórica viragem na orientação e na atividade de todo o movimento
revolucionário mundial”. Graças a ela, os partidos comunistas tor-
naram-se “mais conscientes de que a adesão à pátria do socialismo,
à União Soviética, é a pedra-de-toque e o critério do internacionalis-
mo”. E agrega Georghiu-Dej: “ O camarada Stalin prestou uma imen­
sa ajuda ao movimento comunista internacional. Com perspicácia
genial, advertiu-nos contra uma série de desvios ideológicos, contra
a confusão, e nos auxiliou a combatê-los com êxito. Esta ajuda do
camarada Stalin salvou numerosos partidos marxistas” .
O valor teórico da resolução de junho de 1948, a sua qualidade
científica, a viragem histórica na orientação e na atividade de todo
o movimento revolucionário mundial ficavam fundamentadas, com­
provadas, com as confissões de um pretenso grupo de policiais e
espiões. Baseando-se nelas — e exclusivamente nelas —, Georghiu-
Dej não hesita em fazer afirmações extremamente grotescas, como
aquela segundo a qual, durante a guerra, os chefes comunistas iugos­
lavos eram simultaneamente agentes da Gestapo e da espionagem
anglo-americana (afirmações acatadas cegamente por milhões de co­
munistas, o que, por si só, revela a que nível descera, neste período,

552
o "marxismo” oficial). O informante escreve em seu relatório: “Di­
ante da publicação da resolução do Centro de Informação dos
Partidos Comunistas, os monstros fascistas de Belgrado começaram
a se queixar, dizendo-se vítimas de uma injustiça. Mas abrigavam
uma só idéia: ocultar, pelo maior tempo possível, o seu passado
sombrio e as suas vinculações com o imperialismo anglo-americano.
0 processo de Budapeste caiu como um raio sobre o bando de Tito.
Os fatos [sic] demonstraram que não se tratava de um tipo qualquer
de erros, mas de uma política deliberadamente contra-revolucionária,
anti-soviética e anticomunista, conduzida por um bando de espiões,
de confidentes e de agentes provocadores profissionais, que há muito
eram membros da polícia e dos serviços de espionagem burgueses.
A maior parte dos atuais dirigentes iugoslavos foram enviados a seu
país pela Gestapo, a partir de 1941, saindo dos campos de concen­
tração franceses. [. . . ] Churchill [durante a guerra] enviou à Iugos­
lávia seu próprio filho, Randolf, encarregado de uma missão espe­
cial junto a Tito. Mais tarde, o velho reacionário, inimigo jurado
da URSS, teve um encontro pessoal com Tito. Desde então, Tito e
seu bando gozaram de uma atenção e uma confiança especiais por
parte dos imperialistas. Por outro lado, em suas reveladoras decla­
rações, o general iugoslavo Popivoda esclareceu devidamente a posi­
ção conciliadora de Tito, Rankovitch e outros em face dos invasores
hitlerianos e da Gestapo, bem como a maneira infame como traíram
os guerrilheiros iugoslavos nos momentos mais duros da guerra. [. . . ]
Os fatos [síc] revelados no processo de Budapeste, na república po­
pular búlgara, na república popular romena e nos demais países de
democracia popular demonstraram à saciedade que Tito, Rankovitch,
Kardelj, Djilas, Pjade, Gochniak, Maslaritch, Bebler, Mrazovitch,
Vukamovitch, Kotche, Popovitch, Kidritch, Nechkovitch, Zlatitch,
Velebit e outros, como Rajk, Brankov, Kostov, Patrascanu e seus par­
tidários são agentes dos serviços de espionagem dos imperialistas an­
glo-americanos. Durante a segunda guerra mundial, estes desprezí­
veis espiões e traidores já ajudavam os imperialistas anglo-americanos
a preparar as cabeças-de-ponte para a realização do seu plano de
dominação mundial. Este bando de espiões e traidores foi introdu­
zido nas fileiras dos partidos comunistas e operários como um cavalo
de Tróia. Sob as ordens dos seus amos, tinham como objetivo cri­
minoso apoderar-se da direção do partido e do Estado onde a classe
operária tomara o poder, liquidar o movimento revolucionário e
assegurar a restauração da dominação burguesa” (Stalin, que dividira

553
secretamente a Iugoslávia com Churchill, agora acusava Tito de
acordos secretos com o “velho reacionário, inimigo jurado da URSS”.
Ele não perdoava aos comunistas iugoslavos o terem desafiado as
suas diretivas durante a guerra, o terem implementado uma política
revolucionária em lugar de se submeter — como ele exigia — às
forças burguesas).
O informe deixava estabelecido que o regime iugoslavo se con­
vertera em regime fascista, quartel-general da espionagem americana
no Sudeste da Europa, destacamento avançado da preparação de uma
guerra contra a URSS e as democracias populares, etc. E terminava
assim: “Levantemos bem alto, cada vez mais, a bandeira vitoriosa
do internacionalismo proletário, cultivando o amor para com a União
Soviética, primeiro país do socialismo, base do movimento revolu­
cionário mundial, principal baluarte da luta pela paz e pela liberdade
dos povos; cultivando o amor para com o grande Partido Bolche­
vique, força dirigente do movimento revolucionário mundial; culti­
vando o amor para com o camarada Stalin, educador genial da hu­
manidade trabalhadora e guia dos povos na sua luta pela paz e pelo
socialismo!”
As tenebrosas e rocambolescas histórias urdidas pelos serviços
do Kremlin e recitadas no processo de Budapeste — uma vez bem
decoradas pelos declamadores graças ao antigo e pedagógico método
da tortura — convertiam-se, assim, em material educativo, marxista-
leninista, para “elevar o nível político e ideológico” dos comunistas
e das massas trabalhadoras, porque, sem elevar este nível — dizia
o informe de Georghiu-Dej —, “os partidos da classe operária não
podem descobrir e combater em todas as partes o inimigo, qualquer
que seja o disfarce sob o qual se oculta”. O genial educador já
fornecera idêntico material há doze anos, valendo-se do mesmo mé­
todo dos processos, mas o novo material enriquecia de forma extra­
ordinária o marxismo. Os espiões trotskistas e bukharinistas da dé­
cada de trinta não conseguiram criar mais que alguns grupos fra-
cionistas, rapidamente descobertos e aniquilados. A história ainda
não tinha demonstrado toda a eficiência deste labor de sapa do
imperialismo e dos seus serviços de espionagem. Agora, com os
“fatos” iugoslavos e das democracias populares, tais serviços reve­
lavam diabolicamente todo o seu potencial. Tinham sido capazes,
nada mais, nada menos, de organizar e dirigir eles mesmos a guerra
antifascista e a revolução proletária num país inteiro, logo criando

554
imi Rstado de democracia popular, a fim de utilizá-lo, oportuna-
imnte, para derrubar os regimes de democracia popular — os au­
le nticos, os instalados pelo exército soviético — e assim preparar
ui condições para uma guerra contra a União Soviética e a instau-
i m, iio da dominação mundial do imperialismo. A genialidade do
Inimigo só tinha similitude com a genialidade do Guia dos Povos.
A nova resolução adotada nesta reunião do Centro de Infor­
mação dos Partidos Comunistas, à base do informe de Georghiu-Dej,
i olocava aos partidos comunistas duas tarefas, formuladas da seguin­
te maneira: l.a “ O Centro de Informação dos Partidos Comunistas
considera que a luta contra a camarilha de Tito, camarilha de
espiões e assassinos vendidos, é um dever internacional de todos os
partidos comunistas e operários”; 2.a “ O Centro de Informação dos
Partidos Comunistas considera que uma das tarefas principais dos
partidos comunistas e operários é a de reforçar, por todos os meios,
a vigilância revolucionária em suas fileiras, denunciar e extirpar os
elementos nacionalistas burgueses e os agentes do imperialismo, qual­
quer que seja a bandeira com que se cubram” . Georghiu-Dej fazia
uma série de recomendações práticas para levar a cabo com êxito
esta “vigilância revolucionária”. A primeira consistia em “impor a
ordem bolchevique em nossa própria casa, no partido”, para o que
era preciso, “como meio principal, o controle dos membros do par­
tido”. Um por um deveria ser analisado. E, nesta análise, haveria
que levar ém consideração que o inimigo “esforçar-se-á por valer-se
de homens da classe de Rajk, por aproveitar as menores debilidades
e as mais minúsculas falhas nas fileiras dos partidos e do aparelho
estatal, os elementos descontentes, nacionalistas e de passado duvido­
so”. Era necessário “elevar a vigilância ideológica”, dando provas
de “autêntica intransigência bolchevique” diante de todos os desvios.
“Na ciência, na literatura, na pintura, na música e no cinema —
sublinhava Georghiu-Dej — é preciso ser extremamente vigilantes e
manter uma atitude intransigente em face de qualquer tendência
estranha à classe operária e de qualquer propaganda cosmopolita” .
Mas os bons comunistas só poderiam conduzir eficazmente esta vigi­
lância, em todos os níveis, sobre os maus comunistas, encobertos por
uma ou outra “bandeira”, se eles mesmos se educassem política e
ideologicamente; dizia o informe: “ O reforço da vigilância deve em-
basar-se num trabalho de educação cada vez mais intenso” — a
quintessência deste trabalho educacional residia no cultivo dos três
amores enunciados por Georghiu-Dej no final do informe.

555
Depois da reunião do Centro de Informação dos Partidos Co­
munistas, à base das orientações e métodos nela preconizados, a de­
puração se intensificou febrilmente em todos os partidos comunistas
das democracias populares, envolvendo centenas de dirigentes co­
nhecidos e uma enorme massa de quadros médios e militantes. Só
fragmentariamente se conhece a história desta grande operação, mas
os dados que transpiraram são reveladores. Em primeiro lugar, res­
salta o volume do expurgo45. O Partido Comunista da Tchecoslová-
quia, que, no momento do “golpe de Praga”, contava com 1.300.000
membros, nos meses seguintes cresceu vertiginosamente, superando
a casa dos dois milhões no fim do ano; em 1954, seus efetivos não
chegavam a 1.400.000. Em finais de 1948, o partido polonês tinha
1.400.000 membros; este número, em 1952, caiu para 1.100.000. Na
Romênia, o contingente partidário caiu de 1.000.000, em 1948, para
700.000, em 1951. Na Hungria, o corpo de 1.200.000 militantes, em
junho de 1948, baixou, em fevereiro de 1951, para 850.000. Em
dezembro de 1948, o partido búlgaro contava com 500.000 membros;
estes, em 1951, não chegavam a 300.000. Estes números não refletem
exatamente a magnitude da depuração, porque os recrutamentos pros­
seguiram no período. A cifra total dos “depurados”, conforme as
estimativas de Fejto, no conjunto destes partidos, gira em torno dos
dois milhões e meio de comunistas, dos quais foram presos entre
125.000/250.000; ignora-se o total daqueles que foram liquidados
fisicamente. Entre as vítimas, figuram numerosos dirigentes e altos
funcionários: três secretários-gerais (Kostov, Gomulka, Slansky), um
presidente da república (Szakasits, na Hungria), vários vice-presiden-
tes (da Albânia, Bulgária, Polônia, Romênia), dezenas de ministros e
membros da alta direção partidária, uma centena de generais etc.46
Na Hungria, durante os dois anos que se seguiram ao processo de
Rajk, foram encarcerados Janos Kadar (o atual secretário-geral do
partido), sucessor daquele no ministério do Interior; Gyula Kallai,
igualmente sucessor de Rajk no ministério de Relações Exteriores e
Losonczy, secretário de Estado na presidência do governo posterior
à libertação — entre muitos outros quadros. Sandor Zold, que subs­
tituiu Kadar no ministério do Interior, quando este foi preso, sui­
cidou-se em 1951 para fugir ao encarceramento. Os velhos dirigentes
comunistas romenos Vasili Luca (ministro da Fazenda) e Teohari
Gheorghescu (ministro do Interior) — durante todo este período,
o posto mais perigoso era o de ministro do Interior: era quase garan­
tida a sucessiva condição de justiçador e justiçado — foram presos

556
cm 1952; Luca, condenado à morte, foi posteriormente indultado,
limibém em 1952 foi expurgada da direção do partido e do governo
sem ser presa — Ana Pauker, ministra de Relações Exteriores
c personalidade muito conhecida no movimento comunista desde os
leinpos da Internacional. Na Polônia, Gomulka — que, como disse­
mos, fora destituído da secretaria geral do partido em 1948 — foi
afastado do governo em janeiro de 1949. Em novembro do mesmo
ano, ele foi expulso do partido, juntamente com Kliszko, outro vete­
rano líder comunista, o general Spichalski e alguns mais. Em agosto
de 1951, veio à luz o processo de um alentado grupo de generais
e oficiais, acusados de espionagem e alta traição; de acordo com as
"confissões” dos réus, Gomulka e Spichalski tinham por objetivo
instaurar na Polônia um regime de tipo titoísta e entregar à Ale­
manha os territórios ocidentais. Mas Gomulka não foi processado
— embora permanecesse preso de finais de 1950 ao verão de 1956.
O Partido Comunista Tchecoslovaco sofreu uma primeira onda de-
puradora durante 1948, organizada por Slansky, secretário-geral. Uma
segunda onda iniciou-se depois da reunião do Centro de Informação
dos Partidos Comunistas — em julho de 1950, Slansky anunciou:
“Esta será bem mais severa que a de 1948”. Realmente, a vaga
começou por chegar ao núcleo dirigente do partido eslovaco (entre
outros, Clementis, ministro de Relações Exteriores do governo cen­
tral, Husak, o atual depurador47 e então presidente do Conselho
de Comissários eslovacos, Novomeski, comissário de Educação) e
acabou por varrer o próprio Slansky e outros destacados dirigentes do
partido tchecoslovaco, acusados de alta traição, sabotagem, espiona­
gem e cumplicidade com o sionismo. O processo deu-se em dezem­
bro de 1952: Slansky e outros dez acusados, todos veteranos comu­
nistas, foram enforcados48.
No seu demolidor panfleto sobre a degeneração do marxismo
em ideologia cinicamente justificadora, enfeitada com adornos religio­
sos, Kostas Papaioannu cita a confissão de um demônio exorcizado
sobre as relíquias dos santos Marcelino e Pedro: “ Sou satélite e
discípulo de Satã. Durante longo tempo, fui porteiro do Inferno; mas,
desde alguns anos, com onze companheiros, dedico-me a devastar o
reino dos Francos. Como nos ordenaram, nós destruímos o trigo, a
vinha e todos os outros frutos que nascem da terra para o uso do
homem”. Observa o autor: “Quem não reconhece a confissão de
um ‘monstro trotskista’ ou de um ‘judeu-titoísta’? Tudo está aí: a
origem obscura (as portas do inferno, os subterrâneos da reação), a

557
repentina promoção à condição de sabotador qualificado, a abjeta
submissão às ordens de um centro satânico, trotskista, titoísta ou ou­
tro qualquer”49. De fato, as confissões que os comunistas luciferinos
recitavam antes de subir ao patíbulo ou descer ao inferno carcerário
evocam estranhamente os exorcismos medievais, na sua dupla função
de explicação e esconjuro das calamidades naturais e dos males so­
ciais. Todas as dificuldades que surgiam nas novas “construções do
socialismo”, todos os males que afetavam a área de projeção sovié­
tica, apareciam explicados, justificados, pela secreta atividade dos
bandos demoníacos dos Rajk, Kostov, Gomulka, Patrascanu, Slans-
ky etc., servidores do Judas-Tito, por seu turno servidor do Satã-
Truman — do mesmo modo como em 1936-1938 as distorções eco­
nômicas e as tensões políticas da sociedade soviética foram expli­
cadas pela não menos demoníaca ação dos bandos trotskista-bukha-
rinistas. Ouçamos o promotor do processo de Slansky: “Cidadãos
juízes: [ . . . ] Pudemos verificar, em toda a sua monstruosidade, a
fisionomia moral destes criminosos. Compreendemos o perigo que
nos ameaça a todos. Os crimes revelados nos permitiram conhecer
as causas reais dos graves problemas que se manifestaram em vários
setores da atividade do partido, do Estado, da economia. [. . . ] Como
polvos de mil tentáculos, incrustaram-se no corpo da nossa repú­
blica para sugar-lhe o sangue e a medula. [. . . ] Durante certo tempo,
puderam falsificar a justa política do nosso partido, adulterar os
informes, as estatísticas, as iniciativas de nossos quadros; puderam
enganar à direção gottwaldiana do partido e até enganar insolente-
mente [s/c] ao próprio presidente”50. Depois de trazer à luz, graças
aos crimes imaginários de criminosos imaginários, as causas reais
de todos os problemas existentes e por existir e depois de exigir
castigo exemplar para os “monstros de rosto humano”, os requisitó­
rios dos procuradores (e, freqüentemente, as próprias confissões dos
“monstros”, dotados não só de “rosto humano”, mas ainda da lin­
guagem “marxista-leninista”) terminavam apelando ao fortalecimento
da unidade monolítica em torno da direção staliniana, à proteção da
pureza do marxismo-leninismo, ao redobrar da vigilância revolucioná­
ria, à prática da autocrítica e — muito especialmente — ao cum­
primento e à ultrapassagem das metas da produção. “Os conspirado­
res causaram a nosso país — concluía o promotor que estamos
citando — imensas perdas, calculadas em bilhões, mas nós realiza­
remos vitoriosamente as tarefas do plano qüinqüenal e edificare­
mos uma vida nova, uma vida radiante, tanto para nós como para

558
as gerações vindouras. O esforço incansável de massas de milhões
de trabalhadores se confronta com um punhado de conspiradores.
Nestes últimos dias, chegaram ao tribunal milhares de cartas, trans-
bordantes de indignação, expressando a firme decisão dos nossos
trabalhadores de reparar, num mínimo de tempo, todos os prejuízos
que nos causaram esses vendidos ao imperialismo. [ . . . ] Sempre
mais vigilante, sempre mais firme e unido em torno dos seus diri­
gentes, em torno de Klement Gottwald, nosso partido comunista con­
duz o povo a um futuro radioso”51. Uma vez afugentados os espíritos
malignos e queimados os possuídos, o caminho para a Terra Prome­
tida revelou-se limpidamente ao disciplinado rebanho do Senhor.
“Por que não ver [nos processos] — sugere Papaioannu — uma
espécie de ‘autocrítica’ indireta, ‘mágica’, do próprio regime, uma
vingança da história sobre a ideologia que tão obstinadamente a
negava?” 52. De fato, por que não? Quando, nos anos trinta, o movi­
mento real da sociedade soviética, suas contradições e conflitos
— espelhados nos estrangulamentos econômicos, nas tensões sociais,
na surda oposição dentro e fora do partido — chegaram a um ponto
em que não podiam ser silenciados nem, tampouco, justificados por
defeitos comuns na execução da sempre justa política do partido, o
regime teve que lançar mão de explicações “mágicas”. Não podia
recorrer ao método marxista — ao método de Marx — porque este
implica a crítica sem reservas, a discussão absolutamente livre, a
investigação sem tabus, e o regime era a própria negação destas con­
dições. Para auto-avaliar-se de modo marxista, teria que começar por
se autoliquidar. Mas também não podia recorrer à sua ideologia, o
“marxismo” oficial, porque a função desta ideologia consistia pre­
cisamente no encobrimento das contradições, não no seu desvela-
mento — não consistia na reflexão e na explicação racional do movi­
mento real, mas na sua mistificação; a função desta ideologia não
era criticar o sistema, mas realizar a sua apologia. Os males do sis­
tema, que não podiam ser escamoteados, tinham que ser apresen­
tados como alheios à sua natureza, à sua estrutura e à sua superes­
trutura — tinham que ser apresentados como importados para a
sociedade soviética por agentes estranhos a ela. Dez anos depois,
algo semelhante ocorreu nas democracias populares. Nem o regime
“soviético” nem os regimes de “democracia popular” podiam su­
portar a análise marxista do conflito com a Iugoslávia, das relações
instauradas entre Moscou e os países da área de projeção soviética,
da verdadeira natureza dos sistemas políticos nela estabelecidos, dos

559
seus efeitos econômicos, sociais, etc. Igualmente, não podiam lançar
mão do “marxismo” oficial, cuja função, mais ainda que nos anos
trinta (se isto é possível), era puramente apologética e justificativa.
Novamente, houve que recorrer a explicações “mágicas”. A história,
o movimento real, mais uma vez, vingou-se subterraneamente dos
burocratas e da sua cínica ideologia. Poucos anos depois, com um
certo “relatório secreto” e outros acontecimentos, a vingança co­
meçaria a tomar dimensões homéricas.
O poder sugestivo da “magia” staliniana, como o da antiga
magia, dependia do ocultamento dos seus procedimentos e manipu­
lações. Uma vez revelados estes — ainda que muito parcialmen­
te —, o encanto desapareceu, dando lugar à náusea e à crise de
consciência dos que haviam considerado como o melhor dos mundos
marxistas o universo da mentira e da polícia. Apesar disto, muitos
se aferraram desesperadamente aos pobres resíduos da sua fé des­
pedaçada e novos crentes ingênuos preencheram as lacunas deixadas
pelos que se decidiram a tentar redescobrir o marxismo ou pelos
que, definitivamente, perderam toda a esperança. Desta história, po­
rém, cuidaremos mais adiante. Aqui nos referiremos somente ao
problema dos mecanismos internos da “magia” staliniana. L’Aveu,
de Arthur London53, proporciona a este respeito um material de
extrema importância, ainda que o autor não tenha extraído dele todas
as conclusões lógicas pertinentes. Além de confirmar e ilustrar o
que já é conhecido e em parte confessado — frise-se, em parte — pe­
las autoridades oficiais respectivas (que não houve nem crimes nem
criminosos, com os processos sendo os únicos delitos), o testemunho
de London evidencia que os processos tinham como finalidade po­
lítica o que expusemos nas páginas anteriores. Mas, a nosso juízo, o
que é interessante em L’Aveu é a desmontagem do mecanismo dos
processos, a sua concepção e realização.
O ponto de partida era um esquema geral elaborado em função
dos objetivos políticos perseguidos. Algo assim como o primeiro
esboço de um roteiro de um filme. Em seguida, estudava-se quais
os atores que reuniam as características adequadas para desempenhar
os papéis principais. No processo de Budapeste, por exemplo, era
essencial que o primeiro ator tivesse múltiplas relações com os diri­
gentes comunistas iugoslavos — além de ter trabalhado na clandes­
tinidade, sido preso alguma vez, provir de meio pequeno-burguês,
etc. Como os serviços encarregados do assunto podiam dispor dos
arquivos do partido em relação aos quadros, com as biografias deta-

560
Ihadas de cada um, a seleção não oferecia maior dificuldade. Uma
vez escolhidas as pessoas idôneas, as coisas se encaminhavam para
que elas assumissem o seu papel, combinando-se o secular e compro­
vado método da tortura física e moral com a utilização da experiên­
cia e da formação de partido dos selecionados. No curso desta fase
verificava-se se o candidato reunia efetivamente as condições neces­
sárias, se aprendia bem o seu papel ou, pelo contrário, se opunha
inesperada resistência aos convincentes argumentos dos seus instru­
tores. Assim se ia precisando a seleção dos atores, ao mesmo tempo
em que o roteiro se concretizava, enriquecido com circunstâncias,
detalhes, dados não previstos no esboço inicial, porque, colhidos na
engrenagem e aniquilada toda resistência moral, os chamados a
desempenhar — pelo “bem do partido” — o papel de espiões, agen­
tes provocadores, pequeno-burgueses degenerados, judeus sionistas,
etc., convertiam-se em eficientes colaboradores da farsa. O trabalho
tornava-se coletivo. Os comunistas-torturadores-instrutores e os co­
munistas-criminosos competiam entre si para conduzir à perfeição a
trama da história inventada e a formulação das confissões de modo
que não escapassem sequer frases confusas (por exemplo: em tal
data e lugar contactei o iugoslavo Fulano de Tal, aõ invés da
fórmula exata: em tal data e lugar contactei o espião titoísta
Fulano de Tal). Redigida a confissão com as estruturas, os dados e
as formulações que se ajustavam exatamente ao que “o partido ne­
cessitava”, restava apenas aprendê-la de cor, sem qualquer erro, sem
esquecer os momentos em que o presidente do tribunal interromperia
para fazer determinada pergunta (que o acusado, como o presidente,
devia conhecer de memória) e para oferecer a correspondente res­
posta. Finalmente, chegava o momento da representação da peça — o
julgamento —, com tudo minuciosamente previsto, ordenado, cro­
nometrado. Poucas vezes sobrevieram surpresas desagradáveis, como
a provocada por Kostov no processo de Sofia, a exemplo do que Kres-
tinski fizera, anos antes, num dos processos de Moscou. Os detalhes
de todo este mecanismo — de que só podemos oferecer esta síntese
ultra-esquemática — encontram-se no livro de London. O que, no
seu relato, tem excepcional importância é o papel desempenhado
pela chamada — segundo a terminologia “marxista-leninista” — for­
mação de partido.
Nesta altura deste ensaio, seriam supérfluas longas explicações
sobre os traços característicos dessa “formação”. Em cada comu­
nista, a convicção de ser um revolucionário marxista se entrecruzava

561
com concepções e comportamentos totalmente estranhos ao marxis­
mo. Se a divisa de Marx, espelhada em toda a sua obra, era De
omnibus dubitandum 54, a de seus epígonos, um século depois, resu­
mia-se na fé carbonária: “ O partido sempre tem razão” — e se este,
todavia, se engana alguma vez, “é preferível enganar-se com o
partido do que acertar contra ele”. E mais: Stalin é infalível e a
União Soviética algo sagrado. A fidelidade a Stalin, ao partido bol­
chevique (identificado a Stalin), à União Soviética (identificada ao
partido bolchevique e a Stalin) era considerada como a característica
essencial de todo bom militante. Durante mais de vinte anos, as
sucessivas gerações de comunistas vieram se formando neste mar­
xismo inepto, exorcizado de seus fantasmas marxianos. Conjugada
com a fé cega em Stalin e em tudo o que vinha da União Soviética,
a vida interna dos partidos comunistas, o hábito de não discutir nem
examinar criticamente a política e as diretivas fixadas desde o alto
e a norma invariável de estar unânime e monoliticamente de acordo
modelaram de tal maneira a mentalidade dos comunistas — e cria­
ram neles tantos reflexos condicionados — que ficavam à mercê
de qualquer mistificação embalada em fórmulas “marxistas-leninis-
tas” e avalizada pela etiqueta soviética. Com relação à técnica dos
processos, além de todos esses ingredientes, interveio outro de par­
ticular importância, também constitutivo da “formação de partido”:
o método da “autocrítica”. Assim como a crítica e a discussão tinham
sido esvaziadas do seu conteúdo original, convertidas em glosas
aprobatórias e repetitivas das orientações e diretivas superiores, a
“autocrítica” que se praticava geralmente nos partidos comunistas
pouco guardava de comum com o significado consensualmente aceito
do termo. O militante ou o organismo afetado, freqüentemente, assu­
mia as culpas coletivas — e, sobretudo, as das instâncias superiores.
Fazia o papel do bode expiatório. E isto em todos os níveis. Depois
da catástrofe de 1933, a direção do Partido Comunista alemão foi
o bode expiatório dos erros de Stalin e do Comitê Executivo da
Internacional. Em 1947, na reunião de fundação do Centro de In­
formação dos Partidos Comunistas, a função de pagar pelo oportu­
nismo da política staliniana do período da “grande aliança” coube
aos dirigentes comunistas franceses e italianos. Existia uma estreita
conexão entre as confissões dos processos e essas “autocríticas” a
que estavam habituados militantes e partidos. Em ambos os casos,
tratava-se de determinados indivíduos ou instâncias assumirem as
responsabilidades coletivas, ao mesmo tempo em que se ocultavam

562
v

ou mistificavam os problemas reais e se exaltavam an In-.i»


superiores. A diferença consistia na natureza dos "delitos" e
que, para chegar às “autocríticas” dos processos, requeria se a Inli
venção da tortura, real ou como ameaça. A “formação de purlldu'
era necessária como condição, mas não suficiente, para que os eo
munistas acabassem por aceitar o papel de espiões, provocadores,
etc., em nome do “interesse superior” do partido. A tortura fun
cionava como parteira neste sacrifício supremo, digno dos deuses
astecas. Em suma, a “formação de partido” tornara os comunistas
aptos tanto para assumir o papel de “espiões” como para acreditar
nas confissões de todos os “espiões”, cuja linguagem, estrutura e
estilo eram tão surpreendentemente parecidos às das “autocríticas”
habituais. Dependia apenas do Destino que fossem chamados a de­
sempenhar um ou outro papel. O livro de A. London é uma arre­
piante ilustração desta vinculação íntima entre a “formação de par­
tido”, a fabricação das “confissões” e a credulidade dos comunistas
nelas.
Tanto L’Aveu quanto outros documentos aparecidos durante
a efêmera “primavera” tchecoslovaca confirmam o que, desde o
XX Congresso do PCUS, estava evidente, embora sem prova cabal:
os processos das democracias populares foram diretamente organi­
zados pelos especialistas soviéticos. E, em certas ocasiões, com a
intervenção, nos próprios locais, dos máximos dirigentes do Krem­
lin 55. O monstruoso aparato policial, dirigido por Stalin e Beria,
em cujas mãos se encontrava o partido comunista e o Estado sovié­
ticos — como Kruschev reconheceu em seu “relatório secreto” — era
o mesmo que controlava, com o auxílio das polícias nativas, teda a
área de projeção soviética. O ponto de ruptura com a Iugoslávia
foi precisamente, como vimos, a resistência de Tito e seus colabora­
dores em permitir a instalação desse aparato. E uma das finalidades
dos processos nas democracias populares foi romper com toda resis­
tência à sua implantação ainda mais profunda e ramificada nos
respectivos países. O silêncio que o “relatório secreto” guarda a este
respeito fala eloqüentemente das proporções adquiridas pelo fato. A
sua revelação representaria um golpe mortal para a ulterior manu­
tenção do controle soviético sobre a sua área de projeção.
Em julho de 1953 — quando ainda não terminara a fanática
caçada de espiões levada a cabo nas democracias populares durante
cinco anos em nome da vigilância revolucionária e sob a qualificada
direção dos especialistas soviéticos na matéria e recém-falecido o

563
especialista Número Um — , o Comitê Central do Partido Comunista
da União Soviética anunciou que o especialista Número Dois fora
desmascarado como agente dos serviços secretos imperialistas. Se­
gundo informe confidencial dos chefes soviéticos aos chefes dos par-
tidos-membros do Centro de Informação dos Partidos Comunistas, a
prova decisiva de que Beria era também espião consistia em que, ao
ser preso, foi encontrada em seu poder uma carta dirigida a Ranko-
vitch, pedindo um contato com Tito 56.
A Grande Depuração de “espiões” e de auxiliares diretos ou
indiretos de “espiões”, dirigida pelo “espião” Beria, sob a superdire-
ção do Grande Vigilante, foi um dos componentes essenciais — efei­
to e causa, ao mesmo tempo — do rumo político que fez secar,
nos partidos comunistas das democracias populares, a seiva revolu­
cionária ainda viva nos anos precedentes. Foi um dos componentes
essenciais que acabaria por configurar aqueles regimes segundo o
modelo policial do regime soviético staliniano, levando a sua buro-
cratização ao extremo, liquidando toda forma de liberdade, fazendo
da mentira a lei e da lei uma farsa, travando o desenvolvimento
técnico e científico, falseando as análises econômicas — e todas as
análises —, aprisionando a cultura nas estultícias zdhanovistas, fo­
mentando o nacionalismo que pretendia extirpar, alimentando a rus­
sofobia que desejava eliminar, desacreditando os ideais socialistas.
Este rumo político transferiu às democracias populares os dramas
do regime soviético, agravados pelo menosprezo da soberania nacio­
nal. A desatinada campanha de difamação contra a Iugoslávia e a
imposição dos diktats soviéticos às outras democracias populares pôs
em questão a hipótese marxista de que a revolução proletária criaria
relações fraternais entre os povos, baseadas na igualdade e na fra­
ternidade.
Este rumo político esteve estreitamente determinado por aquele
seguido internamente pelo regime soviético nos anos compreendidos
entre a vitória anti-hitleriana e a morte de Stalin. As profundas
contradições do sistema staliniano se agravaram neste período e a
burocracia governante tentou superá-las com os métodos — já tra­
dicionais — da repressão ideológica e policial, ao mesmo tempo em
que o culto de Stalin tomava as proporções que são bem conhe­
cidas. Sob o efeito das contradições internas e da previsível desa­
parição do sinistro ancião, exacerbou-se a luta de camarilhas pelo
poder. Mas a análise desta evolução do regime soviético e da crise
nele aberta com a morte de Stalin — assim como da crise das de­

564
mocracias populares, conscientemente preparada pelos aprendizes de
feiticeiros stalinianos — será objeto de considerações posteriores.
Estas crises revelaram que, na União Soviética, o “sistema” contava
ainda com sólidas bases numa população anestesiada por trinta anos
de mitos e de enquadramento político, paralisada pela rede onipre­
sente da polícia secreta; numa população ansiosa, antes de tudo,
depois de tantas privações e sacrifícios, por um pouco de bem-estar
material. Revelaram, porém, que as suas bases eram sumamente
frágeis nas democracias populares; aqui, a crise pôs em movimento
consideráveis grupos sociais, particularmente entre a intelectualidade,
a juventude estudantil e a classe operária. Revelaram a debilidade
política das burocracias dirigentes, cuja formação não fora — como
no caso soviético — produto de um largo processo orgânico e se
encontravam submetidas à tripla e contraditória pressão das forças
progressistas internas, dos restos das antigas classes dominantes e
das imperiosas exigências soviéticas.

A campanha contra o titoísmo nos partidos comunistas


do Ocidente

Os partidos comunistas do mundo capitalista assumiram, una­


nimemente, a grande operação policial-ideológico-política montada
pelo Kremlin. Imediatamente após a divulgação da primeira reso­
lução do Centro de Informação dos Partidos Comunistas contra o
Partido Comunista da Iugoslávia, a Comissão Executiva do Partido
Comunista Italiano publicou um breve comunicado, no qual se lia:
“Depois de conhecer o informe dos camaradas Togliatti e Secchia
sobre a recente reunião do Centro de Informação dos Partidos Co­
munistas, a Comissão Executiva aprovou por unanimidade e sem
qualquer reserva as decisões adotadas pelo Centro de Informação
dos Partidos Comunistas”. Simultaneamente, o Birô Político do Par­
tido Comunista Francês divulgou declaração semelhante. Seguindo
os métodos tradicionais, os dois organismos dirigentes adotavam
decisões tão graves sem levar em conta os militantes de base e os
quadros médios. Mas, ao menos, podiam dar a impressão de que
tomavam esta posição com conhecimento de causa, depois do informe
que lhes forneceram os seus representantes no Centro de Informação
dos Partidos Comunistas. Ao contrário, os organismos dirigentes dos
outros partidos comunistas do mundo capitalista não tiveram a

565
menor intervenção no problema, assim como não a tiveram quer na
fundação do Centro de Informação dos Partidos Comunistas, quer
na “discussão” da sua política. Souberam da condenação dos iugos­
lavos pela imprensa. Mas todos adotaram imediatamente — sem
pedir mais explicações ou esperar por elas — suas correspondentes
resoluções, também aprovando “sem qualquer reserva” a condenação
dos que, na véspera, eram modelos de revolucionários. De idêntica
maneira procederam diante da segunda resolução do Centro de
Informação dos Partidos Comunistas, segundo a qual o partido iugos­
lavo estava nas mãos de “assassinos e espiões” e que a revolução
iugoslava se transmudara em fascismo. E, com a mesma incondicio-
nalidade, todos os partidos comunistas do mundo capitalista apro­
varam os grandes expurgos nas democracias populares, os veredictos
dos sucessivos processos, a execução, a prisão e a liquidação política
de centenas de comunistas conhecidos pela sua longa trajetória re­
volucionária; admitiram, como a coisa mais natural do mundo, a
metamorfose desses homens em “espiões”, “cães” do imperialismo,
“monstros fascistas”, etc.
Durante mais de cinco anos, a campanha pública e interna em
torno da heresia iugoslava e a caça aos hereges nas democracias
populares alcançou tais proporções nos partidos comunistas dos paí­
ses capitalistas que tornou pequena a campanha desenvolvida, nos
anos trinta, contra o trotskismo, ao mesmo tempo em que a reto­
mava. Um papel particularmente vergonhoso coube a nós, diri­
gentes do Partido Comunista espanhol. O prestígio que o PCE con­
quistara no movimento comunista mundial, graças aos seus combates
dos anos 1936-1939, serviu para avalizar as infames acusações lan­
çadas contra os homens que arriscaram suas vidas em terras da Es­
panha, lutando lado a lado com os antifascistas e os comunistas
espanhóis. “Fingindo-se amigos, camuflando-se entre os combatentes
vindos de todos os países para defender a causa da liberdade na
Espanha, os espiões titoístas ajudavam o verdugo Franco, apunha­
lando pelas costas o povo espanhol — declaravam porta-vozes oficiais
do PCE. Mais tarde, os espiões titoístas, continuando em sua vil
atividade provocatória, nos campos de concentração da França, cau­
saram a morte de milhares de republicanos espanhóis. Os hitlerianos
puderam localizar e assassinar muitos dos mais heróicos combatentes
espanhóis servindo-se dos miseráveis espiões titoístas [. . ,]” 57.
Cada partido comunista deu a sua contribuição “original” à
operação montada pelo Kremlin. Inclusive os líderes comunistas chi-

566
neses, cuja experiência podia permitir-lhes compreender melhor que
ninguém o verdadeiro motivo do conflito soviético-iugoslavo, não
faltaram à convocação de Stalin. Como vimos em parte anterior
deste estudo, a resistência de Mao às imposições soviéticas precedera
de muito a de Tito. E, analogamente ao que se passara com a revo­
lução iugoslava, a chinesa pudera triunfar graças à desobediência de
seus dirigentes às diretivas de Stalin — que tentou impor-lhes, como
aos iugoslavos, uma política de união nacional subordinada às forças
burguesas e aos imperativos do compromisso duradouro que Stalin
buscava com o imperialismo americano. Mas, em 1949, esses mes­
mos dirigentes qualificavam de “traidores” e “renegados” os comu­
nistas iugoslavos; declaravam que, se houvessem seguido o caminho
de Tito, “não teria sido possível conquistar a libertação nacional da
China”, com esta se convertendo em “colônia do imperialismo”,
como a Iugoslávia58. Apesar disto, neste problema a posição do
Partido Comunista Chinês foi mais moderada e discreta que a de
outros partidos, particularmente os europeus. E também entre estes
houve diferenças. Os louros da campanha contra o titoísmo, fora
do “campo socialista”, couberam, sem dúvidas, ao Partido Comunista
Francês. Fazendo um balanço do trabalho efetuado neste terreno, e
apelando à sua intensificação, um dos dirigentes do PCF escrevia,
em junho de 1950: “Não passa um dia sem que a nossa imprensa
divulgue informações ou artigos sobre a situação na Iugoslávia. Mas
este trabalho tem freqüentemente um caráter formal, improvisado,
pouco sistemático. [. . .] Há que melhorar consideravelmente a qua­
lidade dos textos e não cuidar apenas da sua quantidade. Nossa
imprensa deve tomar a intensificação da campanha contra Tito como
um objetivo de primeira importância” 59. A campanha pela imprensa
foi completada com a edição massiva de cartazes e panfletos, como
um, intitulado A Iugoslávia sob o Terror de Tito. O PCF não se
limitou à propaganda. Organizou “a luta de massas” contra o envio
de material “militar” a Tito: “O que se fez em Figeac, contra a
fabricação de hélices para Tito, e em Niza, a propósito da rampa
de lançamento das V-2 que se supunha destinada a Tito, é apenas
o começo. [. .. ] Há que estender esta ação a todo o país, princi­
palmente a regiões como Grenoble, onde se fabricam importantes
materiais elétricos a pedido de Tito” 40. O PCF organizou ainda uma
campanha contra as viagens à Iugoslávia, lançando a consigna: “Nem
um só operário honrado, nem um só estudante sinceramente pro­
gressista, nem um só jovem democrata da França deve visitar a

567
Iugoslávia nas férias!”. E também contra as manifestações artísticas
iugoslavas na França: “Tanto a Exposição de Arte Medieval Iugos­
lava em Paris como as mostras cinematográficas iugoslavas deveriam
ter sido uma boa ocasião para os comunistas e os partidários da paz
demonstrarem, pelos meios apropriados, que tipo de política se
oculta sob essa propaganda artística, aparentemente neutra e desin­
teressada, que se dirige aos meios intelectuais pequeno-burgueses,
especulando com a sua mentalidade vacilante, instável e crédula”
(o PCF exigia que os “partidários da paz” tomassem posição contra
lito , promotor de guerra). Com a autoridade de quem só reco­
nhece — como bom marxista — os fatos cientificamente provados
e os delitos juridicamente comprovados — tais como a conversão
do socialismo iugoslavo em fascismo, os crimes dos espiões Rajk,
Kostov, etc. — , o autor do texto que estamos citando se escandaliza
com a credulidade e a ingenuidade dos intelectuais franceses, inca­
pazes de perceber as perversas intenções anti-soviéticas e imperialis­
tas embutidas na Exposição de Arte Medieval Iugoslava; ele observa:
“Não há como não se surpreender com a ingenuidade de alguns inte­
lectuais franceses, que toleraram e suportaram tão grotescas mistifi­
cações, sob o pretexto de que eram arte pura” 01. Até o esporte
representava um perigoso propagador da heresia iugoslava. Afortuna­
damente, a imprensa comunista dera provas, no terreno desportivo,
de firmeza doutrinária e a direção do partido enfatiza a questão,
apresentando-a como um exemplo a seguir no domínio cultural:
“A firme atitude da imprensa de nosso partido, por ocasião das
manifestações desportivas iugoslavas, pode servir como modelo do
que também se deve fazer no domínio da cultura” 62.
Em junho de 1951, na revista política do PCF, Etienne Fajon
apresentou o balanço da evolução iugoslava desde a ruptura de
1948 e as lições que se depreendiam dos processos nas democracias
populares. O título do artigo era “A Clarividência do Partido Bol­
chevique e os Crimes da Camarilha Fascista de Tito”. Eis algumas
passagens: “No que se refere à situação interior, a camarilha de Tito
liquidou completamente o regime de democracia popular. [. . . ] Para
facilitar a restauração completa do capitalismo, o governo, no ano
passado, ‘descentralizou’ o setor econômico do Estado (que, por
outro lado, deixara de ser um bem do povo, já que o poder se en­
contra nas mãos dos seus inimigos). A direção das empresas foi
confiada a pretensos ‘conselhos operários’, que recorrem amplamente
ao capital privado, em virtude da situação catastrófica da econo­

568
mia iugoslava. [ . . . ] A exploração da classe operária iugoslava é
atroz. [. . .] Em certas empresas, 70% dos operários sofrem de tu­
berculose. [. . .] Por toda parte, reina uma repressão sangrenta
e selvagem, em particular contra os comunistas fiéis ao interna-
cionalismo proletário e à independência da sua pátria. Dezenas de
milhares são encarcerados, torturados até à morte, covardemente
assassinados. [. . .] O governo de Belgrado liquidou completa­
mente a independência da república iugoslava, atualmente reduzida
ao papel de colônia e de base a serviço dos multimilionários ame­
ricanos. [. . .] Desde 1949, os processos de Rajk na Hungria e de
Kostov na Bulgária permitiram revelar o verdadeiro passado da
camarilha dirigente da Iugoslávia. Demonstrou-se que se trata de
vulgares espiões, há muito vinculados aos serviços de informação
de Washington e Londres. Uma das principais tarefas atribuídas a
estes miseráveis, na preparação da terceira guerra mundial, consis­
tia em organizar complôs contra o novo regime nos países de demo­
cracia popular e articular, em combinação com os traidores locais,
os golpes de Estado contra-revolucionários indispensáveis para trans­
formar estes países em bases de agressão contra a URSS. A ampli­
tude deste plano, que a resolução do Centro de Informação dos
Partidos Comunistas ajudou a sufocar no nascedouro, foi ilustrada
recentemente com a descoberta da atividade criminosa de Clementis
e sequazes na Tchecoslováquia” 63.
Este breve mostruário da ação do Partido Comunista Francês
contra a “camarilha fascista de Tito” e em apoio aos processos dá
uma idéia do que foi a intervenção dos outros partidos comunistas
ocidentais. Mas nem todas — como indicamos — tiveram a viru­
lência francesa. A campanha contra o titoísmo do Partido Comunista
Italiano, por exemplo, foi bem menos intensa que a do francês e
com um tom menos agressivo. As atas do VII Congresso do PCI,
celebrado em abril de 1951, contêm poucas referências ao problema.
A mais explícita é a de Togliatti, mas na quase totalidade das outras
intervenções o problema está ausente64. Isto refletia, indubitavel­
mente, certos traços diferenciais do PCI em face do outro “grande”
do comunismo ocidental — traços que, ulteriormente, se acentua­
riam — , bem como a ponderação de importantes considerações de
política interna, particularmente a preocupação de preservar as re­
lações unitárias com os socialistas. A este respeito, o PCF não tinha
nada a perder, pois seu isolamento não poderia ser maior. E o
mesmo acontecia com a maior parte dos partidos comunistas, sobre­

569
tudo na Europa e na América. Mostrando-se como instrumentos
incondicionais da política do Kremlin, inclusive no que esta possuía
de mais obscurantista e policial, os partidos comunistas ocidentais
acentuaram o seu isolamento. Naqueles anos de “guerra fria” e de
macartismo, a sua cumplicidade com o “macartismo staliniano” pri­
vava os comunistas de autoridade moral e política diante de grandes
setores operários, democráticos e progressistas. O próprio problema
da luta contra o perigo da guerra ficava falseado a partir do momento
em que se incluía a Iugoslávia entre as principais bases do imperia­
lismo americano e, sob esta mistificação, se dissimulava a situação
explosiva que a política staliniana criara nas fronteiras da Iugoslávia
com o “campo socialista”.
Até no interior dos partidos comunistas — apesar da aparência
monolítica que ofereciam, apesar da credulidade dos seus membros
na “traição” dos Titos, Rajks, Kostovs, Gomulkas etc., apesar dos
efeitos, acima analisados, da “formação de partido” — a dúvida
começou a se instalar, inserindo-se na consciência de muitos comu­
nistas. De maneira indireta, deformada, este fenômeno se refletia nas
intervenções dos chefes. “ Os militantes, as organizações do partido,
ainda não opuseram uma barreira intransponível às tentativas de
infiltração policial — reclamava Thorez no seu informe ao XII Con­
gresso do PCF. Com sua honradez natural, os trabalhadores não
podem conceber a que ignóbeis procedimentos de delação e provo­
cação recorrem os seus inimigos de classe. Para a execução da sua
vil tarefa, os provocadores se aproveitam da ingenuidade de muitos
camaradas. Os processos dos traidores Rajk e Kostov, porém, de­
monstraram que esses espiões e seu chefe Tito estavam há muito a
serviço dos organismos de informação anglo-americanos. [. . . ] Pode­
mos acreditar que os atuais governos e seus patrões americanos te­
nham desistido de introduzir seus agentes no movimento operário e
democrático? Não vemos a utilização que fazem da sua agência
titoísta e dos grupelhos trotskistas?” 6S. Partindo dessas considera­
ções do secretário-geral, Etienne Fajon precisava a maneira de pro­
ceder: “Há que golpear, sem vacilações e publicamente, com uma
ampla explicação política, sempre que se possa descobrir no partido
um agente titoísta ou qualquer outro provocador policial. E não
nos impressionemos com as possíveis retratações — elas obedecem
unicamente à regra do jogo duplo que, desde tempos imemoriais, o
inimigo ensina aos seus agentes” Os casos de Tito, Rajk, Kostov,

570
Gomulka etc., convertiam-se em modelos para a identificação da
penetração policial no seio do partido. A necessária luta contra este
risco — compreensível para todo militante revolucionário — era
explorada para aniquilar na origem qualquer dúvida ou divergência
e, particularmente, qualquer dúvida sobre a política staliniana. Como
dizia a revista dos intelectuais do PCF, o que ocorrera com Tito e
os outros “espiões” demonstrava “a fatalidade de uma traição desde
o próprio momento em que um comunista põe em dúvida a fideli­
dade incondicional à URSS” 67.
Nesta atmosfera de terrorismo ideológico, de psicose de espio­
nagem e provocação política, os comunistas que tinham dúvidas
sobre o que estava ocorrendo no “campo socialista”, ante o perigo
de ingressar na categoria dos espiões e dos agentes provocadores,
geralmente optaram pelo silêncio. No entanto, os conflitos internos
que surgiam, ou que emergiram no período precedente, sem relação
alguma com o problema titoísta, até eles eram vinculados ao “grande
complô” da espionagem imperialista, descoberto graças à clarividente
vigilância de Stalin. No Partido Comunista espanhol, por exemplo,
uma série de casos ocorridos no período compreendido entre a der­
rota da república e 1949 foram englobados na seguinte versão:
“O episódio do bando fascista de Tito, na Iugoslávia; o processo
de Rajk e seus cúmplices, na Hungria; a acusação contra Kostov,
na Bulgária, atualmente — tudo isto mostra que os serviços de in­
formação anglo-americanos realizaram durante a guerra enormes es­
forços para infiltrar seus agentes no interior dos partidos comunistas.
Tudo isto mostra que tais serviços herdaram os agentes que a
Gestapo recrutou entre covardes e renegados, traidores do partido
que caíram em suas mãos. Na Espanha ocorreu algo semelhante.
O partido conhece a experiência de Monzón, Trilla e alguns outros,
que se tranformaram em agentes do inimigo. Aproveitando as cir­
cunstâncias excepcionais em que por algum tempo eles atuaram, o
inimigo os coroou com uma aura de ‘resistentes’, de ‘heróis’.
Orientava-os para penetrar no Comitê Central e no Birô Político do
partido. De fato, por algum tempo conseguiram introduzir-se na
direção das organizações do partido na França, no Norte da África
e mesmo na Espanha. Se o partido e sua direção tivessem sido dé­
beis diante desses traidores, se não tivessem tomado medidas polí­
ticas enérgicas para tirá-los de circulação, até onde poderiam chegar?
Seriam os Titos, os Rajks, os Kostovs espanhóis. [. . .] Exatamente o
mesmo sucedeu antes com o grupo provocador de Hernández e

571
Castro e, ainda antes, no PSU da Catalunha, com os Barrios, Serra
Pamies, Víctor Colomers, Ferrers & Cia. O partido e sua direção não
vacilaram em varrer esta escória, conscientes de que as depurações
fortalecem o partido. Se se tivesse permitido que tais elementos de­
generados e corrompidos continuassem no partido, se se houvesse
transigido com eles [. . .] o que nos dirigiria hoje: nossos princípios
revolucionários marxistas-leninistas-stalinistas, nossa identificação
com a frente dos partidos comunistas e operários, com a URSS, com
o partido bolchevique e o grande Stalin, ou os gangsters e aventurei­
ros dos serviços de informação franquistas e anglo-saxões? [. . .] A
resposta é óbvia: o partido, ao depurar-se dos êmulos de Rajk e Kos-
tov, dos agentes do inimigo, tornou-se mais forte, mais sólido. Recen­
temente, a expulsão do traidor Camorera das fileiras do PSUC é outro
passo nesta direção. Seguindo esta conduta, nosso partido é fiel aos
ensinamentos e ao exemplo do partido bolchevique” 68 (em toda esta
série de “casos” — como logo depois se teve que reconhecer, embora
sem qualquer divulgação — não havia nenhum de traição, mesmo
que alguns dos citados (concretamente, Enrique Castro) tenham
passado, anos depois, para as fileiras franquistas. Até prova em
contrário, tratava-se de divergências políticas, de lutas internas pela
direção ou de problemas de corrupção pessoal, mas não de espio­
nagem ou de provocação policial. E a aura de heroísmo que alguns
tiveram — por exemplo, Monzón, e outros que não são citados,
como Quinones — não foi fabricada pelo inimigo, mas resultava
do papel real que, com acertos e erros, haviam desempenhado).
Raros foram os partidos comunistas que não descobriram em
suas fileiras a infiltração de agentes titoístas, anti-soviéticos, nacio­
nalistas e policiais e, mesmo não podendo competir com os partidos
no poder na organização de processos contra eles, chegaram o mais
longe possível dentro das condições capitalistas. O caso mais famoso
foi o de André Marty e Charles Tillon, que explodiu no PCF nos
últimos meses de 1952. Os dois eram membros do Birô Político e
tinham a aura da participação na sublevação dos marinheiros fran­
ceses do Mar Negro, em defesa da jovem república soviética, e
da presença na guerra civil espanhola. Aliás, Tillon fora um dos
principais organizadores das forças armadas da Resistência francesa.
Ambos foram acusados de uma série de “graves delitos”, que se
resumiam em “ter questionado a direção política staliniana do se­
cretário-geral do partido, o camarada Maurice Thorez”, em ter cons­
pirado fracionisticamente contra o chefe que garantia, entre outras

572
virtudes do partido, a sua “adesão incondicional e indefectível à
União Soviética” 69. Os dois — segundo os acusadores — tinham
oferecido alarmantes sinais de nacionalismo anti-soviético, o que, na­
turalmente, colocou-os no mesmo caminho de Tito: “ Suas concep­
ções — afirmou-se — são muito similares às de Tito”. Entre os
sintomas da “inadmissível desconfiança de Marty” em face da União
Soviética, mencionou-se que, durante uma viagem à URSS, em
1949, ele “manifestou desconfiança, no mínimo, diante dos organis­
mos de segurança do Estado socialista”70. Como o velho Marty resis­
tiu a entoar o mea culpa, o Birô Político, para simplificar, decidiu
que era um agente policial. Assim rotulado, foi excluído do partido.
Quanto a Tillon, foi rebaixado à base, condenado ao ostracismo
político. Além deste caso espetacular, no PCF ocorreram muitos
outros de menor monta, como o do Professor Marcei Prenant, acusa­
do de anti-sovietismo por colocar em dúvida as teorias biológicas de
Lisenko. Na História do PCF, escrita por um grupo de militantes
(entre os quais Prenant e outros conhecidos combatentes da Resis­
tência) que naqueles anos começaram a se confrontar com os mé­
todos stalinistas, a situação criada no partido é descrita nos seguintes
termos: “ O medo de acusações infamantes reduzia ao silêncio os
militantes. As destituições, os processos, as exclusões arbitrárias
despertavam dúvidas entre muitos camaradas. Quem duvidava ini­
ciava um longo martírio moral. Era acusado por todos os lados.
Fizesse o que fizesse, estava perdido. Se entrasse na via da autocrí­
tica compulsória que se lhe exigia, proporcionava a base para a
sua condenação. Se se recusava a admitir erros e crimes que não
cometera, sua ‘resistência à autocrítica’ era tomada como prova da
sua qualidade de agente consciente do anticomunismo. Enquanto as
‘comissões investigadoras’ das democracias populares e da URSS
levavam a ‘investigação’ até a tortura e a condenação à morte, [na
França] a Comissão Central de Controle do partido caluniava, levan­
tava testemunhos e provocava o militante incriminado até a exclusão
infamante” 71. Na França, como em muitos outros países, numerosos
militantes abandonaram silenciosamente o partido e muitos perma­
neceram nele sufocando suas dúvidas, que logo seriam dramaticamen­
te confirmadas. Em geral, porém, apenas alguns intelectuais se deci­
diram a expressar publicamente a sua reprovação, acompanhada da
saída do partido 72.
Entre os intelectuais de esquerda não comunistas, a repulsa
contra o rumo tomado pelos partidos comunistas e pela URSS foi

573
quase geral. Durante a guerra e nos primeiros anos do pós-guerra,
os partidos comunistas europeus ampliaram consideravelmente a sua
influência sobre os círculos intelectuais. A reaparição da Inquisição
staliniana produziu um refluxo brutal. Ao zdhanovismo, aos pro­
cessos, à campanha de mentiras sobre a Iugoslávia vieram somar-se
as primeiras informações sobre a existência de campos de concen­
tração na URSS. O conjunto era mais que suficiente para que todo
espírito livre, não protegido pelas viseiras do partido, se sentisse
obrigado a interrogar-se sobre a natureza do regime e do partido
político que produzia e abrigava fenômenos semelhantes. Dado sin­
tomático: a edição francesa de O Zero e o Infinito, de Koestler,
lançada em 1947, vendeu mais de 400.000 exemplares73.
Completando este aspecto de Igreja medieval que o movimento
comunista apresentava naqueles anos, o culto de Stalin — iniciado
no decênio de trinta, intensificado durante a guerra e no pós-
guerra — adquiriu, a partir de 1948, tonalidades quase místicas,
amorosas, que o final do informe de Georghiu-Dej sobre “ O partido
comunista iugoslavo em poder dos assassinos e espiões” expressava
eloquentemente (cfr. p. 554). A reunião do Centro de Informação
dos Partidos Comunistas na qual este informe foi apresentado reali-
zou-se às vésperas do septuagésimo aniversário de Stalin (dezembro
de 1949). O anátema paroxístico fulminado contra o Inimigo
conjugou-se com a glorificação não menos paroxística do Salva­
dor (recordemos uma passagem do informe: “Com perspicácia
genial [. . . ] o camarada Stalin salvou numerosos partidos marxis­
tas”). De todos os recantos do planeta, chegaram ao Kremlin ca­
ravanas com oferendas. Os artigos de Molotov e Malenkov, dedica­
dos ao grandioso acontecimento, depois de descrever o itinerário
terreno do Guia, seus atos e obras imortais, terminavam assim: “ Por
isto é tão ilimitada a confiança dos trabalhadores do nosso país na
sábia direção stalinista, tão firme a sua fé no gênio de Stalin, tão
imenso o amor do povo soviético e dos trabalhadores de todo o
mundo pelo camarada Stalin. [. . . ] Com o sentimento de uma gra­
tidão imensa, os povos da União Soviética e centenas de milhões de
homens dos países de todo o mundo dirigem os seus olhos ao
camarada Stalin. A humanidade progressista vê no camarada Stalin
o seu guia e mestre amado, confia e sabe que a causa de Lênin e
Stalin é invencível” 14. “ Pode ser comunista aquele que não leva no
seu coração um afeto sem limites por Stalin, o Chefe, o Amigo,
cujo septuagésimo aniversário comemoramos com fervor?” — cla­

574
mava Thorez, sob uma tempestade de aplausos, no XII Congresso
do PCF 75. Entre os incontáveis panegíricos desses anos, talvez ne­
nhum resuma melhor a carolice reinante no movimento comunista
que a dolorida crítica de Les Lettres Françaises ao retrato de Stalin
feito por Picasso: “Neste desenho, onde estão expressos a bondade
e o amor pelos homens que encontramos em cada fotografia de
Stalin? [. . . ] Este desenho não espelha, de forma alguma, o caráter
de Stalin, luminoso de inteligência e fraternidade. [. . . ] Não expres­
sa o que representa para nós o querido camarada, o pai de todos, o
homem que nós mais amamos, em cuja morte não podemos acre­
ditar. [. . .] A nobreza, a bondade que caracterizam no mais alto
grau o rosto imortal de Stalin estão mais que ausentes. [ . . . ] O
que se fez da luminosidade, do sorriso, da inteligência, enfim,
da humanidade sempre tão visível nos retratos do nosso querido
Stalin? [. . . ] Picasso corre o risco de semear a incompreensão e a
confusão entre os comunistas e os amigos do nosso partido” 76.
De fato, até este momento tudo estava claro para os bons comu­
nistas, e era de lamentar que a genialidade irreverente do grande
artista semeasse a confusão. Poucos dias depois, uma notícia — ina­
creditável para todo bom comunista — desviou a atenção do rosto
anódino saído do lápis picassiano. Um comunicado do ministério
do Interior da URSS, datado de 4 de abril, anunciava a reabilitação
e a libertação dos eminentes médicos detidos meses atrás, sob a
acusação de complô contra o poder soviético. O caso se tornara pú­
blico a 13 de janeiro. Segundo o Pravda, essas celebridades da medi­
cina soviética, várias delas condecoradas com a Ordem de Lênin,
haviam confessado que, ao invés de fazer o possível para tratar de
Zdhanov e de outros dirigentes do partido, procederam metodica­
mente a seu assassinato, servindo-se do próprio tratamento médico,
e que tinham projetado o assassinato de Stalin e de alguns militares.
Na maioria judeus, confessaram igualmente — é claro! — que tra­
balhavam para os sionistas, a espionagem americana e o Intelligence
Service 77. Agora, resultava que tudo era mentira e as confissões,
de acordo com o comunicado de 4 de abril, foram extraídas através
de torturas, “violando-se a legalidade” . Salvo poucas exceções — so­
bretudo entre médicos comunistas, que dificilmente podiam imaginar
um médico-assassino no próprio exercício da profissão — , os comu­
nistas, uma vez mais, tinham acreditado na realidade do complô.
Denunciara-o o Pravda, ou seja, o porta-voz da Verdade por antono­
másia; denunciara-o a justiça soviética, ou seja, a justiça — e, por

575
outro lado, ao cabo de cinco anos de complôs em série, a coisa se
tornara habitual. Se tantos eminentes comunistas, de brilhante pas­
sado revolucionário, revelaram-se “monstros de rosto humano”, não
era estranho que existissem “monstros de rosto humano e uniforme
branco”. Inacreditável, para os comunistas, era o comunicado de
4 de abril, que semeava mais confusão que o retrato picassiano. Pela
primeiia vez na história do regime soviético, reconhecia-se que um
complô, irmão gêmeo de tantos outros, era uma farsa. Pela primeira
vez se reconhecia que altos chefes da segurança soviética montavam
falsos complôs e arrancavam confissões por meio da tortura. De re­
pente, tudo começava a ficar escuro.
Para restabelecer a claridade, sobretudo prevendo-se a quanti­
dade de complôs e processos que talvez fosse necessário “anular”, os
herdeiros do defunto precisavam fabricar um bode expiatório de
alto nível. No momento, ninguém mais indicado que o chefe máximo
da polícia secreta. Uma vez “ desmascarado” o novo Azew78, tudo
voltou a ser diáfano e translúcido, como veio a dizer o comunicado
do Birô Político do partido-piloto entre os partidos comunistas do
Ocidente: “O Birô Político do Partido Comunista Francês — dizia
o comunicado — está plenamente solidário com o Comitê Central
do Partido Comunista da União Soviética que, ao desmascarar Beria,
agente do imperialismo internacional, impedindo-o de prosseguir na
sua criminosa tarefa, prestou um novo e grande serviço à causa
do movimento operário internacional. O Partido Comunista Francês
aprova e felicita o Comitê Central do Partido Comunista da União
Soviética por: a) ter feito fracassar os plano de Beria, voltados para
apoderar-se da direção do partido e do Estado objetivando, em última
instância, restaurar o capitalismo; b) ter impedido este criminoso de
sabotar o reforço e o desenvolvimento da agricultura soviética, mi­
nando os kolkhozes com o objetivo de criar dificuldades no abasteci­
mento da União Soviética; c) ter impedido que esse agente dos impe­
rialistas prejudicasse a amizade dos povos da URSS, base funda­
mental do Estado socialista multinacional. As esperanças depositadas
pelos imperialistas no seu agente Beria revelaram-se vãs e ninguém
pode impedir que, mais unido e mais forte que nunca, o glorioso
Partido Comunista da União Soviética, modelo para todos os partidos
comunistas e operários, conduza a União Soviética em sua marcha
rumo à edificação do comunismo” 79.
Mas o De omnibus dubitandum de Marx aninhou-se pela pri­
meira vez na consciência de milhares de comunistas. E a fratura

576
aberta pela revolução iugoslava no monolitismo staliniano começou
a se aprofundar.

NOTAS
1 Cfr. Fejto, H is to ir e d es D é m o c r a tie s P o p u la ire s, ed. cit., t. I, p. 194.
l Ib id .,p. 209. Cfr. também o artigo de Amber Bousoglou, “Como a
Tchecoslováquia passou do regime parlamentar à democracia popular”,
L e M o n d e , 23 de fevereiro de 1968.
3 Discurso de Gottwald na Assembléia Nacional Constituinte, 10 de março
de 1948. Utilizamos a versão publicada em N u e s tr a B a n d e ra , n.° 25, 1948. A
citação é feita da página 247 e os sublinhados são nossos.
A X X e . C o n g rè s d u P C d e L ’U n io n S o v ié tiq u e , coleção de documentos editada

por C a h ie rs d u C o m m u n is m e , Paris, 1956, p. 260.


5 Citamos segundo a versão espanhola do artigo, publicada no periódico do
PCE, N u e s tr a B a n d e ra , n.° 19, 1947. Os parágrafos que reproduzimos estão
nas páginas 608 e 614.
à I n fo r m e s y R e s o lu c io n e s d e l B u r ó d e I n fo r m a c ió n d e lo s P a rtid o s C o m u n is ta s
y O b re ro s, edição do PCE, 2a. quinzena de novembro de 1949, p. 41.
7 Cfr. Fejto, o p . cit., pp. 202-203.
8 L e F ig a ro , 12-2-1948. Groza era então o chefe do governo romeno.
v Baseamo-nos, principalmente, nas cartas trocadas entre Stalin e Tito, de março
a maio de 1948, posteriormente divulgadas pelos iugoslavos — a edição fran­
cesa, editada por L iv r e Iu g o sla v e , 1950, com uma introdução que oferece
algumas precisões sobre o processo que levou à ruptura. Valemo-nos também
da biografia, já citada, de Tito por Dedijer e da obra de Fejto, que resume o
essencial do problema.
io Cfr. pp. 401-402 deste volume.
ti Cfr. Djilas, C o n v e r s a tio n s a v e c S ta lin e , cit., pp. 97-100.
12 Em sua carta de 27-3-1948, depois de acusar os iugoslavos — como veremos
mais adiante — de uma série de atos hostis aos especialistas militares e civis
que se encontravam na Iugoslávia, Stalin escreve: “À luz destes fatos, a
famosa declaração de Djilas, tão ofensiva para o Exército Vermelho, pro­
nunciada durante uma reunião do Comitê Central do Partido Comunista da
Iugoslávia — afirmando que, do ponto, de vista moral, os oficiais soviéticos
são inferiores aos do exército inglês — torna-se completamente compreensível.
Sabe-se que esta declaração anti-soviética de Djilas não encontrou oposição
entre os membros do Comitê Central iugoslavo”.
13 Cfr. Fejto, o p . cit., pp. 85-86.
n Ib id ., pp. 165-170.
15 Cfr. Jan Marczewski, P la n ific a tio n e t cro issa n c e é c o n o m iq u e d e s d é m o c r a tie s
p o p u la ire s , cit., t. I, pp. 227-229.
18 Baseamo-nos no comunicado divulgado ao fim da conferência, versão
espanhola em M u n d o O b re ro , semanário do PCE, edição de 7-8-1947.
17 A p u d Dedijer, T ito p a r le . . . , cit., pp. 326-327. Sublinhados nossos.
18 A descrição desta reunião soviético-iugoslava encontra-se em T ito p a r l e .. .,
cit., pp. 328-337. De acordo com os iugoslavos, Stalin exigia a urgente criação

577
da federação bùlgaro-iugoslava, à base do plano búlgaro, como instrumento
para romper a unidade recém-realizada, sobre bases federais, dos povos
iugoslavos (ib id ., p. 336). Stalin convidou os iugoslavos a “engolir” a Albânia.
Ao mesmo tempo, os serviços secretos soviéticos incitavam os albaneses contra
os iugoslavos.
Na reunião com os búlgaros e os iugoslavos, o próprio Stalin revelou que
os dirigentes poloneses consideravam excelente o projeto Dimitrov-Tito (cfr
T ito p a r l e . . . , cit., p. 329).
20 Em 1951 publicou-se o L iv r o B r a n c o iugoslavo, com uma série de teste­
munhos sobre as atividades dos serviços secretos soviéticos — dele tomamos
a passagem citada.
Num jantar para os dirigentes iugoslavos, por ele organizado, Stalin ca­
racterizou Togliatti como um teórico capaz de escrever um bom artigo mas
inepto para dirigir o povo. Em Thorez via um grande defeito: “Um cão que
na° n'° rd®j P®’° menos é capaz de arreganhar os dentes. Thorez não é capaz
nem disto . Considerava a P a sio n a ria incapaz de dominar-se e de dirigir o
partido em condiçoes adversas. Depois, declarou: “Tito deve se precaver para
que nada lhe aconteça, porque eu não durarei, mas ele ficará para a Europa”.
Durante esta passagem da delegação iugoslava por Moscou ocorreu a morte
e Kalinin. No dia do enterro, Tito e os outros iugoslavos, como todos
os convidados estrangeiros, foram colocados à esquerda do estrado principal
ocupado por Stalin e pelos membros do Birô Político soviético. De repente
no instante em que a cerimônia ia começar, Stalin fez com que chamassem
tito para junto das autoridades soviéticas. Ele foi a única das personalidades
comunistas estrangeiras presentes que mereceu esta honra (cfr. T ito p a r l e . . . ,
pp. 286-287, 289).
22 Cfr. Fejto, o p . cit., t. I, pp. 225-226.
” ? ° d ! ú m°- teT ° qUÊ ° P raV da Publicava a n°‘a oficiosa criticando
declaraçao de Dimitrov, Stalin convocava urgentemente os dirigentes
iugoslavos e búlgaros. Com esta reunião se inicia a fase aguda da crise
soviético-iugoslava. O comportamento de Stalin revela a sua inquietude com
a possibilidade de as iniciativas de Tito e Dimitrov encontrarem eco nas
outras democracias populares. Como já indicamos (nota 18), a síntese desta
reunião encontra-se em T ito p a r l e . . . , pp. 328-337; o biógrafo de Tito
apota-se em informações de Kardelj e Djilas.
24 T?dos “ tes dados, como os outros seguintes, foram tomados da correspon-
encia trocada entre Stalin e Tito, publicada pelos iugoslavos (cfr. nota 9).
25 * esta reunião d0 Comitê Central, Rankovitch informou sobre as atividades
dos serviços secretos soviéticos. Grande parte dos agentes recrutados por estes
pertenciam à emigração russa instalada na Iugoslávia depois da revolução de
utubro, ou seja, eram russos brancos, pelo menos por seus antecedentes.
26 A 19 de abril, Dimitrov, em viagem a Praga, liderando uma delegação
Ulgara, passou por Belgrado. Djilas foi saudá-lo na estação ferroviária e
Dimitrov aproveitou um momento em que estavam a sós para dizer-lhe:
antenham-se firmes!”. Acertou-se, para o seu regresso, uma entrevista com
os dirigentes iugoslavos. No intervalo, chegou a resposta do Partido Co­
munista Búlgaro apoiando os soviéticos. A entrevista com Dimitrov não se
realizou (cfr. T ito p a r l e . . . , p. 363).
27 dmaTom dn h94,4’ °H alemãeSJm0ntaram uma o p c r ^ ã o de grande enverga-
dura, com o objetivo de se apoderarem do quartel-general de Tito. Por pouco
oner!Ía T m T ° CalU, naS mã0S de uraa unidade de Pára-quedistas - a
operaçao falhou. O quartel-general do exército guerrilheiro conseguiu salvar
seus arquivos e suas estações de rádio. O ataque alemão não era o produto

578
ile uma situação de crise do movimento de hbertaçao nacional ao
contrário: foi uma desesperada tentativa do ocupante para reverter o quadro.
Num artigo do P ra vd a , de 4 de junho, dizia-se: “O fracasso da tentativa de
captura do Estado-Maior do marechal Tito não é segredo para ninguém. O
ataque hitleriano foi desbaratado pela heróica resistência do exército iugoslavo,
r ] Na Itália, Kesselring precisa de reforços. [...] Os alemaes desejariam
liberar algumas das divisões empregadas na Iugoslávia, mas o marechal Tito
impediu esses planos. A frente iugoslava absorve importantes forças alemas e
impossibilita qualquer ajuda a Kesselring”.
JS Cfr. T ito p a r le . . ., p. 369.
w O documento intitula-se R e s o lu ç ã o d o C e n tr o d e I n fo r m a ç ã o d o s P a rtid o s
C o m u n is ta s so b r e a S itu a ç ã o n o P a rtid o C o m u n is ta da Iu g o slá v ia (versão es­
panhola publicada em N u e s tr a B a n d e ra , número 28, 1948). Consta de oito
pontos:
“1. O Centro de Informação considera que a direção do Partido Comu-
nista da Iugoslávia segue, nestes últimos tempos, nas questões fundamentais
da política externa e interna, uma linha falsa, que representa um desvio da
doutrina marxista-leninista. Em conseqüência, o Centro de Informação apro­
va a ação do Comitê Central do Partido Comunista (bolchevique) da URbb,
que tomou a iniciativa de desmascarar a política errônea do Comitê Central
do Partido Comunista da Iugoslávia e, em primeiro lugar, a dos camaradas
Tito, Kardelj, Djilas e Rankovitch.
2 O Centro de Informação comprova que a direção do Partido Comu­
nista da Iugoslávia pratica uma política de inimizade em relação à Umao
Soviética e ao Partido Comunista (bolchevique) da URSS. Permitiu o desen­
volvimento, na Iugoslávia, de uma indigna política de difamaçao contra os
especialistas militares soviéticos e de descrédito do exército sovietico. Quan­
to aos especialistas civis soviéticos na Iugoslávia, criou-se para eles um regime
especial em virtude do qual estão submetidos à vigilância dos organismos
de segurança do Estado iugoslavo e seguidos por seus agentes. O represen­
tante do Partido Comunista (bolchevique) da URSS no C e n tr o de Informação,
camarada Yudin, e numerosos representantes oficiais da URSS na lugosla
foram submetidos à mesma vigilância por parte dos organismos de segurança
do Estado iugoslavo.
Estes fatos, e outros similares, atestam que os dirigentes do Partido
Comunista da Iugoslávia adotaram uma posição indigna dos comunistas; os
dirigentes iugoslavos começaram a identificar a política externa da U b
com a das potências imperialistas, e se conduzem diante da URSb como
se conduzem diante dos Estados burgueses. Em virtude desta atitude anti-so-
viética, difundiu-se no Comitê Central do Partido Comunista da Iugoslavia
uma caluniosa propaganda sobre a ‘degeneração’ da URSS, tomada do
arsenal do trotskismo contra-revolucionário.
O Centro de Informação condena esta orientação anti-soviética dos diri­
gentes do Partido Comunista da Iugoslávia, incompatível com o marxismo-
leninismo e própria apenas de nacionalistas.
3. Os dirigentes do Partido Comunista da Iugoslávia, na sua política
interna, afastam-se das posições da classe operária e rompem com a teoria
marxista das classes e da luta de classes. Negam o fato do crescimento dos
elementos capitalistas em seu país e a agudização da luta de classes no campo
iugoslavo dele derivada. Esta negativa tem origem na tese oportunista segundo
a qual, no período de transição do capitalismo ao socialismo, a luta de
classes não se agrava, como ensina o marxismo-leninismo, mas se extingue,
como o afirmavam os oportunistas da classe de Bukharin, que propagavam a
teoria da integração pacífica do capitalismo no socialismo. [... ]

579
4. O Centro de Informação considera que a direção do Partido Comu­
nista da Iugoslávia revisa a doutrina marxista-leninista sobre o partido. De
acordo com a teoria marxista-leninista, o partido é a força dirigente e orien­
tadora fundamental no país, com programa próprio e sem diluir-se na massa
dos sem-partido. [. .. ] Mas, na Iugoslávia, é a Frente Popular e não o
Partido Comunista que se considera a força dirigente no país. Os dirigentes
iugoslavos reduzem o papel do Partido Comunista; diluem-no, de fato, na
Frente Popular sem partido. [...] Os dirigentes do Partido Comunista da
Iugoslávia repetem os erros dos mencheviques russos a respeito da diluição
do partido marxista na organização das massas sem partido. Tudo isto de­
monstra a existência de tendências liquidacionistas. [...]
5. O Centro de Informação considera que o regime burocrático criado
pelos dirigentes iugoslavos no seio do partido é nefasto para a vida e o desen­
volvimento do Partido Comunista da Iugoslávia. No partido inexistem demo­
cracia interna e eleições para os órgãos dirigentes, inexistem a crítica e a
autocrítica. [...] É inteiramente intolerável que no Partido Comunista da
Iugoslávia sejam pisoteados os direitos mais elementares dos seus membros,
já que a menor critica das normas errôneas no partido pode provocar severas
represálias. [...] O Centro de Informação considera que não se pode tolerar
num partido comunista um regime tão vergonhoso, puramente turco e ter­
rorista. [.. . ]
6. Em lugar de honradamente aceitar a crítica e colocar-se no terreno
da correção bolchevique dos erros cometidos, os dirigentes do Partido Comu­
nista da Iugoslávia, possuídos de uma ambição ilimitada, de arrogância e
presunção, receberam a crítica com animosidade, manifestaram hostilidade
diante dela e se lançaram por uma via antipartido, negando completamente
seus erros, violando as lições do marxismo-leninismo sobre a atitude do parti­
do político em relação a seus erros e, desta forma, agravando-os contra o
partido. Os dirigentes iugoslavos, que mostraram a sua falta de argumentos
diante da crítica do Comitê Central do Partido Comunista (bolchevique) da
URSS e dos Comitês Centrais de outros partidos irmãos, tomaram o caminho
da mentira flagrante em face do seu partido e do seu povo, escondendo do
Partido Comunista da Iugoslávia a crítica da política errônea do seu Comitê
Central e ocultando também do partido e do povo as causas reais da repres­
são dirigida contra os camaradas Juyovitch e Hebrang.
Nos últimos tempos, depois da crítica feita pelo Comitê Central do
Partido Comunista (bolchevique) da URSS e dos partidos irmãos acerca dos
erros cometidos pelos dirigentes iugoslavos, estes tentaram promulgar uma
série de novas disposições esquerdistas [a referência é ao conjunto de dispo­
sições para liquidar o pequeno comércio e a pequena indústria, os k u la k s ,
etc. F C ], O Centro de Informação considera que os decretos e as decla­
rações esquerdistas dos dirigentes iugoslavos, por serem demagógicos e irrea­
lizáveis no momento atual, apenas podem comprometer a causa da construção
socialista na Iugoslávia. Portanto, o Centro de Informação julga esta tática
aventureira como uma manobra indigna e como um jogo político intole­
rável. [. ..]
[O ponto 7 condena a negativa do partido iugoslavo ao convite para
participar da reunião do Centro de Informação.]
8. Levando em conta o exposto, o Centro de Informação se solidariza
com a apreciação da situação no Partido Comunista da Iugoslávia e com
a crítica dos erros cometidos pelo seu Comitê Central levantada nas cartas
enviadas, entre março e maio de 1948, pelo Comitê Central do Partido Co­
munista (bolchevique) da URSS.
F~

580
Por unanimidade, o Centro de Informação conclui que os dirigentes
do Partido Comunista da Iugoslávia — por sua orientação anti-soviética
e antipartido incompatível com o marxismo-leninismo, por toda a sua
conduta e a sua negativa em participar da reunião do Centro de Informação
— colocaram-se na oposição em face dos partidos comunistas que compõem
este Centro, lançaram-se na via de separação da frente única socialista contra
o imperialismo e na via da traição à causa da solidariedade internacional dos
trabalhadores, transitando para posições nacionalistas.
O Centro de Informação condena esta política e a atitude antipartido
do Comitê Central do Partido Comunista da Iugoslávia.
O Centro de Informação comprova que, pelo exposto, o Comitê Central
do Partido Comunista da Iugoslávia se coloca — e coloca o partido — fora
da frente única comunista, fora da família dos partidos comunistas irmãos
e, conseqüentemente, fora das fileiras do Centro de Informação. [.. . ]
Os dirigentes iugoslavos, pelo visto, não compreendem — ou talvez se
portem como se não compreendessem — que semelhante posição naciona­
lista só pode conduzir à degeneração da Iugoslávia numa república burguesa
ordinária, à perda da sua independência e à sua transformação em colônia
dos países imperialistas. [...]
Cabe às forças sadias do Partido Comunista da Iugoslávia a tarefa de
obrigar seus dirigentes a reconhecer aberta e honradamente os seus erros
e a corrigi-los, a romper com o nacionalismo, a voltar ao internacionalismo
e a fortalecer, por todos os meios, a frente única socialista contra o impe­
rialismo; ou, se os atuais dirigentes do Partido Comunista da Iugoslávia mos­
trarem-se incapazes para tanto, trocá-los e promover uma direção interna-
cionalista.”
30 Cfr. T ito p a r le . .., p. 373. Os soviéticos nunca desmentiram esta informação,
que um dos participantes da reunião revelou aos iugoslavos. Ademais, o giro
posteriormente tomado pela campanha contra Tito constitui uma confirmação
indireta dela.
31 Cfr. T ito p a r l e . . . , p. 375.
32 A p u d Fejto, o p . cit., t. I, p. 232.
33 Discurso de Kruschev em Sofia, a 3 de junho de 1955, segundo o texto
publicado no P ra v d a de 4-7-1955.
3* Utilizamos a versão espanhola integral da nota soviética, publicada em
M u n d o O b re ro , edição de 25 de agosto de 1949. Reproduzimos, sem qualquer
omissão, a descrição feita na nota do tratamento sofrido pelos “cidadãos
soviéticos” detidos em Belgrado. É de supor que a nota carregou nas tintas.
Para medir o incrível cinismo deste documento do governo soviético, resta
comparar aquele tratamento com os testemunhos de Artur London, Solje-
nitzyn, Guinsburg, etc., sobre os métodos da polícia de Beria.
35 Dados do T h e N e w Y o r k , a p u d Zisis Zografos, “Algumas lições da guerra
civil na Grécia”, R e v u e I n te r n a tio n a le (órgão do movimento comunista edi­
tado em Praga), n.° 11, 1964.
3ó Na revista E s p r it (n.° 2, 1950), J. M. Domenach publicou um artigo no qual
relata as suas entrevistas com guerrilheiros gregos refugiados na parte iugos­
lava da Macedònia, entre 15 e 20 de agosto de 1949. Segundo as informações
desses guerrilheiros, a eliminação de Markos, em outubro de 1948, não foi
discutida com os combatentes — só foram avisados os chefes das grandes
unidades. Somente dois meses depois (dezembro de 1948), reuniu-se uma
conferência do Partido Comunista grego. Mais tarde, informou-se aos comba­
tentes que Markos estava doente. Pouco a pouco, circulou a notícia

581
de que ele fora eliminado por “oportunismo”. A substituição de Markos
por Zachariades teve efeitos desmoralizantes no exército popular. Criou-se
a impressão de que Zachariades tinha por missão liqüidar a guerra.
A luta contra os “titoístas” tomou grandes proporções. Os gregos de origem
macedônica que combatiam no exército guerrilheiro (cerca de 18.000) foram
afastados de todos os comandos importantes, sob a suspeita de simpatizarem
com a idéia de uma grande Macedônia, agrupada na República Popular da
Macedônia da Federação iugoslava. Zachariades ordenou o corte de quaisquer
comunicações entre a zona do território grego ocupada pelos guerrilheiros e
a Iugoslávia. Um chefe de uma guarda de fronteiras afirmou a Domenach
ter recebido um telegrama do Estado-Maior de Zachariades ordenando que
se disparasse sobre quem tentasse cruzar a fronteira iugoslava — esta fron­
teira fora fechada por Zachariades desde a primavera de 1949.
As conclusões de Domenach resumem-se em que os chefes soviéticos te­
miam a formação, na Grécia, de um segundo titoísmo, além de considerar a
guerra grega perigosa e inoportuna. Por isto, ordenaram aos chefes comunistas
gregos pró-soviéticos que recusassem qualquer ajuda iugoslava e o fim da
guerra civil. Realizavam assim uma dupla operação: demonstravam boa
vontade em face das chancelarias ocidentais e denunciavam aos outros par­
tidos comunistas e à opinião pública mundial a “infâmia” de Tilo.
37 Pierre Albouy, “La Grèce et Ia démocratie”, L a P ensée, n.° 29, 1950, p. 61.
38 Na Iugoslávia refugiaram-se cerca de 25.000 combatentes gregos. Uma quan­
tidade ponderável — não temos cifras — refugiou-se na Albânia. Os suspeitos
de titoísmo foram internados em campos. É de supor que os iugoslavos tam­
bém tomaram as suas medidas contra os partidários do Centro de Informa­
ção dos Partidos Comunistas.
3’ Mais adiante voltaremos a este ponto. Os dados existentes, que apenas
revelam aspectos parciais, encontram-se fundamentalmente em V A v e u , de
Artur London (Gallimard, Paris, 1968), P ro c è s à P rague, de Eugen Lobl
(Stok, Paris, 1969) e em algumas informações publicadas pela imprensa
tchecoslovaca durante o seu efêmero período de liberdade. Sobre o processo
de Rajk, pode-se consultar o livro de Savarius Vincent (Bela Ezasz), V o lo n -
la ire s p o u r V é c h a fa u d (Julliard, Paris, 1963).
A versão oficial do processo de Rajk encontra-se no L iv r e b le u (L a szlo
R a jk e t se s c o m p lic e s d e v a n t le trib u n a l d u p e u p le ), Éd. Réunis, Paris, 1959;
a do processo de Kostov, em L e p r o c è s d e T r a itc h o K o s to v e t d e so n
g ro u p e , Sofia, 1949; a do processo de Slansky, no livro P ro c è s d e s d irig ea n ts
d u c e n tr e d e co n sp ira tio n c o n tr e 1’É ta t, d irig é p a r R u d o lf S la n sk i, Orbis,
Praga, 1953.
40 Cfr. Fejto, o p . cit., t. I, p. 254.
-*1 Da versão espanhola da ata de acusação, publicada em M u n d o O b rero ,
edição de 8-12-1949.
42 Cfr. Fejto, o p . cit., p. 262.
-43 Resolução do Comitê Central do Partido Operário Polonês, versão espanhola
integral publicada em M u n d o O b re ro , edição de 9 de setembro de 1948.
44 Utilizamos a versão integral espanhola do informe, publicada no folheto edi­
tado pelo Partido Comunista espanhol, I n fo r m e s y R e s o lu c io n e s d e i B u r ó de
I n fo r m a c ió n d e lo s P a rtid o s C o m u n is ta s y O b rero s, segunda quinzena de
novembro de 1949. Todas as citações seguintes — com sublinhados nossos
— são extraídas desta fonte.
Oferecemos números arredondados. Baseamo-nos nos dados fornecidos por
Fejto, o p . cit., e na obra já citada anteriormente, de B. Lazitch sobre os

582
partidos comunistas europeus. Os dois historiadores utilizam fontes oficiais
dos partidos comunistas.
46 Cfr. Fejto, o p . cit., pp. 246-247. L ite r a r n i L isti, quanto à Tchecoslováquia,
considerou a cifra de 30.000 presos (L e M o n d e , 31 de março de 1968).
47 O autor refere-se a Gustav Husak, que, depois da intervenção soviética na
Tchecoslováquia, tornou-se um dos notáveis do novo núcleo dirigente.
(N. do T.)
Uma versão global detalhada dos processos e depurações encontra-se na obra
já citada de Fejto, t. I, parte IV, capítulos III a VI.
49 Cfr. Kostas Papaioannu, L ’Id é o lo g ie F ro id e , J.-J Pauvert, Paris, 1967, p. 141.
50 Cfr. A. London, L ’A v e u , ed. cit., pp. 304, 312.
si Ib id ., p. 313.
52 Cfr. Papaioannu, o p . cit., p. 140.
53 Esta obra de A. London constituiu a base para o roteiro cinematográfico do
mesmo tftulo (A C o n fis sã o ), preparado por Jorge Semprún ( N . d o T .).
54 D e v e -s e d u v id a r d e tu d o — está nas respostas de Marx, em 1865, a um
questionário preparado por suas filhas; cfr. E v o c a ç õ e s d e M a r x e E n g e ls, em
russo, Ed. Literatura Política, Moscou, 1965.
55 Como já indicamos na nota 39, apesar dos dados contidos em L ’A v e u e
noutros testemunhos, aspectos fundamentais da intervenção dos serviços secre­
tos soviéticos e dos dirigentes do PCUS ainda não são conhecidos. London
pôde comprovar, pelos interrogatórios a que foi submetido e pelas referências
que outras vítimas lhe forneceram, que o processo era dirigido por funcioná­
rios soviéticos; ele cita, por exemplo, as revelações que lhe fez, depois da
sua reabilitação, em 1956, Alois Samec, antigo voluntário das Brigadas Inter­
nacionais, que durante um período colaborou com os “conselheiros soviéticos”;
“Eles chegaram à Tchecoslováquia no outono de 1949, depois do processo de
Rajk. Diziam que entre nós também deveria existir uma conspiração contra
o Estado; que os inimigos, com o propósito de derrotar o regime socialista,
estavam infiltrados em todos os níveis do partido e do aparelho governamen­
tal. Cumprindo as instruções que nos davam, procedíamos à prisão das pessoas
que ‘podiam’ realizar atividades contra o Estado pelas suas funções e relações.
As provas eram procuradas depois. [.. . ] Eu recebi ordens do conselheiro
soviético Borisov para lhe entregar, pessoalmente, ao fim de cada interro­
gatório, uma cópia da ata estabelecida contra o acusado. Eu lhe observei que
o secretário-geral do partido já recebia uma cópia de cada ata; ele me
repreendeu sem contemplação, ordenando-me não discutir as suas instruções.
Também tive contato com outros conselheiros soviéticos, particularmente
Likhatchev e Smirnov. Eles reuniam informações comprometedoras sobre
todo mundo, especialmente sobre as pessoas que ocupavam altos cargos,
inclusive Slansky e Gottwald [...]” (o p . cit., pp. 82-83). Às vezes, os policiais
tchecos que conduziam diretamente os interrogatórios cometiam indiscrições
reveladoras da personalidade que os dirigia. Por exemplo: “Um homem como
Radek resistiu por três meses. Depois, confessou tudo. Você está resistindo
há quatro meses. Acredita que este jogo vai durar muito?” London deduz,
com razão, que apenas um soviético poderia ter contado ao tcheco os meses
de “interrogatório” suportados por Radek (cfr. p. 153). Sobre a mesma
questão, outras referências de London estão às pp. 44, 71-72, 120-212, 159,
227, 235-236, 256, 259, 261, 263, 267, 291, 295, 322, 329, 357, 374, 377 e
444. Durante a “primavera” tchecoslovaca, a imprensa de Praga revelou que
o próprio Mikoyan interviera diretamente em determinadas fases do proces­
so de Slansky.

583
No caso da Polônia a intervenção soviética tomou formas particular­
mente descaradas. Ao mesmo tempo em que Gomulka, o general Spichalski
e outros dirigentes comunistas poloneses eram excluídos do partido (novem­
bro de 1949), o governo polonês, acatando ordens de Moscou, nomeava
ministro da Defesa da Polônia o marechal so v ié tic o Rokosovski (de origem
polonesa, mas formado na Rússia e falando o polonês com forte sotaque
russo), que se rodeou de especialistas soviéticos e iniciou a depuração no
exército polonês, que culminou, em agosto de 1951, com um processo contra
generais e oficiais. Às vésperas deste processo, Molotov, juntamente com o
marechal Zhukov, esteve em Varsóvia e pronunciou um discurso exigindo
a intensificação da luta contra “os nacionalistas de direita e os titoístas de
qualquer espécie” (cfr. Fejto, o p . cit., t. I, p. 226).
56 Cfr. o livro T o g lia tti e S ta lin (Sugar, Milão, 1961), de Giulio Seniga, ex-fun­
cionário do Partido Comunista Italiano. Seniga relata uma reunião secreta,
celebrada em Moscou, de 12 a 14 de julho de 1953, na qual o PCI esteve
representado por Pietro Secchia. Os soviéticos informaram que Beria tentara
ir muito longe no caminho das concessões ao Ocidente, propunha o aban­
dono da construção do socialismo na República Democrática Alemã e a
sua transformação num Estado burguês. E, como prova decisiva da sua
condição de agente dos serviços secretos imperialistas, mencionaram a carta
descoberta quando da sua prisão. Como se vê, as “provas” da traição de
Beria eram idênticas às que Beria utilizara para enviar ao patíbulo ou ao
cárcere milhares de comunistas das democracias populares.
57 Ignacio Gallego, “La lucha contra el titismo es un deber revolucionário de
los comunistas”, N u e s tr a B a n d e ra , n.° 4, 1950, p. 176. As citações que,
neste ponto, fazemos de textos de alguns dirigentes comunistas espanhóis,
franceses, chineses, etc., não significam que se distinguissem particularmente
na campanha contra Tito. Nesta questão, as responsabilidades são gerais e a
nossa seleção de textos inspira-se unicamente na sua representatividade.
58 Liu Sho-Shi, “Internacionalismo y nacionalismo”, P o r u n a p a z d u ra d e ra , p o r
u m d e m o c r a c ia p o p u la r, l.° de junho de 1949. Este semanário era a revista
oficial do Centro de Informação dos Partidos Comunistas e tudo indica
que seu nome foi escolhido pelo próprio Stalin.
59 Georges Cogniot, “Redoublons de vigilance dans la lutte contre la clique
de Tito”, C a h ie rs d u C o m m u n is m e , n.° 6, 1950, p. 47.
60 Ib id ., p. 48. A falsa informação de que os iugoslavos estavam instalando
rampas de lançamento de V-2 foi divulgada pela imprensa burguesa italiana
em 1948. Imediatamente, a imprensa comunista européia deu ressonância
ao boato.
8' Ib id ., p. 49.
62 Ib id ., p. 50.
63 Cfr. C a h ie rs d u C o m m u n is m e , n.° 6, 1951, pp. 657-659.
64 Cfr. V I I C o n g re sso d e i P a rti C o m u n is ta Ita lia n o (R e s o c c o n to ), Ed. Cul­
tura Sociale, 1954. O volume contém cerca de 50 intervenções realizadas
durante o congresso.
65 Cfr. C a h ie rs d u C o m m u n is m e , n.° 5, 1950, p. 9.
66 Cfr. C a h ie rs d u C o m m u n is m e , n.° 6, 1951, p. 66.
67 Cfr. N o u v e lle C r itiq u e , n.° 25, 1951, p. 19.
68 Cfr. M u n d o O b re ro , edição de 8-12-1949. Monzón — que dirigiu a organi­
zação do partido na França e na Espanha durante a Segunda Guerra Mundial,
sendo preso no seu final pela polícia franquista (passou vários anos no

584
cárcere) —, depois do XX Congresso do PCUS, recebeu uma carta de
Dolores Ibárruri na qual se reconhecia que as acusações que lhe foram dirigi­
das eram falsas. Mas nunca foi reabilitado publicamente. Sobre Comorera,
secretário-geral do PSU da Catalunha, seus amigos editaram recentemente
um panfleto reivindicando a sua memória ( A p o r ta d o a la h isto ria p o lític a ,
so c ia l i n a c io n a l d e la classe o b re ra d e C a ta lu n y a , Publications Treball Mo­
dem, Paris, 1969).
69 Cfr. Documento do Birô Político do PCF, de 3 de outubro de 1952, incluído
em C a h ie rs d u C o m m u n is m e , n.° 10, 1952, p. 953. André Marty escreveu
um livro no qual demonstrou a falsidade das acusações infamantes que
lhe imputaram e expôs as suas posições políticas ( L ’A ffa ir e M a r ty , Deux
Rives, Paris, 1955).
70 Cfr. H is to ir e d u P a rti C o m m u n is te F ra n ç a is (U n ir), ed. cit., t. III, pp. 98,
99-100.
71 Ib id ., pp. 63-64.
72 Cfr. David Caute, L e C o m m u n is m e e t le s In te lle c tu e ls F ra n ça is, Gallimard.
Paris, 1967. Nas pp. 208-220 dessa obra se expõem as reações dos intelectuais
comunistas franceses e da esquerda intelectual não comunista no período do
titoísmo e dos processos.
73 Cfr. Caute, o p . cit., p. 219.
74 Cfr. P ra vd a , edição de 21-12-1949.
75 Cfr. C a h ie rs d u C o m m u n is m e , maio de 1950, p. 24.
76 Cfr. L e s L e ttr e s F ra n ça ises, edição de 4 de março de 1953.
77 No comunicado de 13 de janeiro se citavam os nomes de nove personalidades
médicas — entre elas, Vinogradov, perito médico no processo de Bukharin
a propósito dos “assassinatos” de Gorki, Pechkov, Kuibichev e outros. Cinco
dos acusados confessaram trabalhar para a espionagem americana, através
da organização judaica J o in t. E três se declararam agentes do Intelligence
Service. Dias depois, a doutora Lidia Timachuk foi condecorada por sua
colaboração na denúncia dos médicos-assassinos. A imprensa soviética apre­
sentou-a como heroína nacional. O comunicado de 4 de abril mencionava
treze nomes, dos quais seis não figuravam na lista de 13 de janeiro. É des­
conhecida a sorte de dois médicos que, relacionados nesta, não constavam
da lista do dia 4 — pode-se supor que morreram sob tortura ou eram
agentes de Beria, como a doutora Timachuk.
De acordo com diversos kremlinólogos que estudaram este caso tene­
broso (Schapiro, H. Salisbury, W. Leonhard), Stalin, nos seus últimos meses,
preparava um grande expurgo. A mulher de Molotov, relacionada ao pro­
blema dos médicos, foi presa e deportada. Também foram atingidos dois
filhos de Mikoyan. Todos os principais dirigentes se sentiam ameaçados e
Stalin sentia-se ameaçado por todos. O episódio dos médicos teria sido ura
primeiro capítulo desta luta feroz nas altas esferas do “partido-guia”, a que
a morte de Stalin (cujas circunstâncias não são claras até hoje) deu um
giro inesperado. Krishnan Menon, personalidade governamental hindu que se
entrevistou com Stalin pouco antes da sua morte, contou que o ditador dese­
nhou numa folha de papel a figura de uns lobos e disse ao visitante que o
camponês russo os conhecia bem, a seus velhos inimigos, e sabia como
abatê-los — mas que, igualmente, sabiam-no os lobos (cfr. P. Broué, L e P arti
B o lc h e v iq u e , cit., pp. 460-462, onde se acha um resumo de tudo o que se
conhece sobre esta questão).
78 Mayer Azew foi um agente provocador da polícia czarista que conseguiu
converter-se, durante quatro anos (1904-1907), em chefe dos terroristas

585
russos. A polícia impedia, no último instante, a maior parte dos atentados,
mas deixava que alguns se efetivassem para justificar, ante a opinião pú­
blica, a repressão contra os revolucionários. Em janeiro de 1953, um escritor
comunista francês recorreu a este precedente histórico, entre outros, para
argumentar que os processos das democracias populares não tinham nada de
surpreendente (cfr. L a P e n sé e , n.° 46, 1953).
79 Cfr. C a h ie r s d u C o m m im is m e , n.° 8-9, 1953, p. 925.

586
4 . A ALTERNATIVA ORIENTAL

Se os comunistas, que são parte do grande


povo chinês, carne da sua carne, aplicam
o marxismo sem levar em conta as par­
ticularidades da China, daí resultará um
marxismo abstrato, esvaziado de qualquer
conteúdo. A tarefa que o partido deve com­
preender e resolver urgentemente é aplicar
o marxismo às condições concretas da C h i­
na. Há que acabar com as fórmulas feitas
no estrangeiro. [. . . ] Há que superar o dog­
matismo e adquirir a maneira e o estilo
chineses. [. .. ] Separar o conteúdo interna­
cional da form a nacional é o traço carac­
terístico daqueles que nada compreendem
do internacionalismo. Mao, 1938.

Em dezembro de 1947 — quando, nas duas Europas, os parti­


dos comunistas ingressavam na tenebrosa era do Centro de Infor­
mação dos Partidos Comunistas, enquanto o capitalismo adquiria um
novo impulso em todo o Ocidente — , Mao Tse-tung observava, diante
do Comitê Central do Partido Comunista Chinês: “ Produziu-se uma
viragem na guerra revolucionária do povo chinês. O exército popu­
lar de libertação rechaçou a ofensiva de vários milhões de soldados
das tropas reacionárias de Chiang Kai-Chek, lacaio dos Estados Uni­
dos, e passou à sua ofensiva. [. . . ] Esta é uma viragem histó­
rica. [. . . ] A dominação do imperialismo na China, prolongada por
mais de um século, transita da expansão para a liquidação. Este é
um grande acontecimento. É grande, porque envolve um país de 475
milhões de habitantes e, sem dúvida, será vitorioso em todo o terri­
tório. É grande, ademais, porque ocorre neste Oriente onde mais de
um bilhão de seres humanos — a metade da humanidade — sofrem
a opressão imperialista” '. Realmente, a inflexão experimentada pela
guerra civil chinesa na segunda metade de 1947 foi histórica. Desde
então, a ofensiva do exército revolucionário se desenvolveu, ininter­
rupta e avassaladoramente, até a vitória da revolução em todo o
país. A 1 “ de outubro de 1949 nascia oficialmente a República
Popular da China. Enquanto o movimento operário ocidental, malo­

587
grada a excepcional oportunidade que lhe oferecera a segunda grande
crise do sistema capitalista, se atolava na via reformista, um exér­
cito de camponeses, com líderes majoritariamente oriundos da inte­
lectualidade, irrompia sobre Pequim e Changai, Nanquim e Cantão.
As cabeças-de-ponte do capitalismo europeu e americano na área
oriental do continente asiático caíam nas mãos da maior revolução
agrária e antiimperialista da história, que se propunha — ou melhor:
como o propunha o partido que a chefiada e que tomara o poder
em outubro de 1949 — converter-se em revolução socialista,
Até 1917, todos os marxistas — Lênin incluído — conside­
ravam que as sociedades asiáticas deveriam transitar, inevitavel­
mente, pela etapa do desenvolvimento capitalista. No II Congresso
da Internacional Comunista, Lênin revisou este ponto de vista e
formulou a hipótese segundo a qual, “com a ajuda do proletariado
dos países avançados”, as revoluções do Oriente poderiam queimar
a etapa capitalista. O Partido Comunista Chinês dispôs-se a realizar
o primeiro ensaio histórico deste tipo2. Naturalmente este não
se iludia acerca da ajuda do proletariado dos países avançados,
que, além de não ter tomado o poder, não movera um só dedo
contra a intervenção americana em apoio a Chiang Kai-Chek — mas,
por outro lado, existiam a União Soviética e as democracias popu­
lares. A vitória da União Soviética sobre a Alemanha hitleriana
fora já um dos fatores decisivos na criação das condições interna­
cionais que possibilitaram o triunfo da revolução chinesa — e não
só pelo peso que tivera na derrota do Japão, mas porque, no término
da guerra, o poderio militar da União Soviética, por si só, constituíra
um freio considerável à intervenção americana na China 3. No en­
tanto, a possibilidade de contar com a assistência soviética na etapa
que se abria apresentava-se aos dirigentes comunistas chineses como
hipotecada a graves condicionantes. A “guerra fria” desencadeada
por Stalin contra a revolução que ousara preservar a sua autonomia
e a sua originalidade e os métodos que ele utilizava para uniformi­
zar e controlar as demais democracias populares mostravam drama­
ticamente à nova China a alternativa a que o Kremlin poderia obri­
gá-la: ou vassalo ou inimigo.
Mao e seus colaboradores mais próximos tinham consciência
desta alternativa? Não há informações que embasem uma resposta
categórica. De qualquer forma, o grupo de Mao tinha uma expe­
riência das relações com Moscou (análoga, sob certos aspectos, à
adquirida por Tito e seus colaboradores durante a guerra de liber-

588
tação e, sob outros aspectos, mais ampla que a dos iugoslavos) que
lhe podia facilitar a compreensão do conflito soviético-iugoslavo.
No mesmo sentido operavam certos traços da formação ideológica e
da prática política do núcleo dirigente do partido chinês, traços deri­
vados das características objetivas da revolução chinesa e conscien­
temente assumidos desde que Mao ascendeu à direção do partido.
Sem repetir o que já dissemos em outro capítulo, consagrado à pri­
meira etapa da revolução chinesa, vamos nos referir a alguns momen­
tos do período posterior que estão diretamente relacionados com este
problema.

Revolução chinesa e “grande aliança”

No final do capítulo citado, reproduzimos a declaração de Mao,


de 1943, segundo a qual, depois do seu VII Congresso, a Interna­
cional Comunista não teve mais ingerência nos problemas internos
do partido chinês. O fato era explicável — dizíamos — pela coin­
cidência que existiu, a partir de 1935, entre a política de frente
única antijaponesa do Partido Comunista Chinês, a política de frente
popular da IC e a política externa soviética do período. Mas esta
coincidência não excluía divergências importantes. Enquanto a polí­
tica de frente popular da IC se ajustou estreitamente às exigências
da política externa soviética, o mesmo não se passou com a política
de frente única antijaponesa do partido chinês. Para a direção ma-
oísta, esta tática incluía a luta permanente para assegurar a hegemo­
nia das forças revolucionárias no interior da temporária aliança com
o Kuomintang. A ótica de Moscou era distinta. Ao firmar, em 1937,
um pacto com o governo do Kuomintang, que incluía ajuda
em material bélico e especialistas militares4, o governo soviético
estava interessado, antes de mais, em que Chiang dirigisse seu exér­
cito à guerra contra o Japão, ao invés de alocar boa parte dele ao
bloqueio e ao fustigamento das bases comunistas. Mas, para Chiang,
o inimigo principal era o comunismo — ou, como ele mesmo afir­
mou certa feita: “Os japoneses são uma doença epidérmica; os
comunistas são uma enfermidade profunda” 5. A guerra civil con­
tínua entre o Partido Comunista Chinês e o Kuomintang só poderia
ser evitada se Mao fizesse concessões fundamentais, se se submetesse
ao comando do Kuomintang, se dissolvesse as suas forças armadas
no exército do Kuomintang. E, neste sentido, pressionava-o o Krem­

589
lin, valendo-se de velhos quadros do partido chinês, como Wang
Ming, que apoiavam incondicionalmente a política staliniana6. A
pressão tornou-se mais direta na fase seguinte à invasão da URSS
pela Alemanha.
Em abril de 1941, Moscou, abandonando a sua política ante­
rior de aliança com a China oficial, firmou o pacto de não agressão
com o Japão, a que já nos referimos em outro lugar. Diante deste
gesto, que o colocava em situação análoga à criada para os partidos
comunistas europeus pelo pacto germano-soviético, o partido chinês
guardou um silêncio eloqüente. O pacto de abril facilitava ao Japão
a consolidação e a ampliação das posições conquistadas na China e,
particularmente, tornava disponíveis as forças japonesas do norte do
país, que podiam ser acionadas contra as principais bases comunistas7.
Stalin — é supérfluo dizê-lo — não consultou os dirigentes comu­
nistas chineses quando decidiu firmar o pacto com o Japão; e, pelo
que se sabe hoje, não lhes proporcionara ajuda militar no período
precedente (1937-1940), ao passo que a concedia ao Kuomintang 8.
Mas quando a Alemanha atacou a União Soviética e surgiu o perigo
de que, apesar do pacto, o Japão fizesse o mesmo, então Stalin lem­
brou-se da existência dos comunistas chineses. E lhes pediu que em­
pregassem vigorosamente as suas forças militares contra as japone­
sas, muito superiores; pediu-lhes que fizessem esforços (isto é, con­
cessões) para estreitar a unidade com o Kuomintang (para que tam­
bém este concentrasse as suas forças militares contra o ocupante).
Recentemente, o fato foi revelado por Kommunist, a revista oficial
do partido soviético: “Mao e seus sectários sabotaram abertamente
a proposta do nosso partido: paralisar as forças japonesas através
de uma ação comum (PCC-Kuomintang) e impedir que elas atacas­
sem a União Soviética no momento em que o exército hitleriano
alcançava êxitos na frente germano-soviética”. “A passividade de
Mao na guerra contra o Japão, quando os interesses do proletariado
internacional exigiam a acentuação máxima das operações antifas­
cistas — continua a revista —, é comprovada por inúmeros fatos.
Basta observar que, a partir de 1941-1942, os efetivos do exército
popular acionados contra os japoneses não pararam de diminuir. O
correspondente soviético em Yenan, em janeiro de 1943, informava
que todas as tropas tinham ordem de não realizar ações contra os
japoneses e de recuar, se elas se dessem. Na medida do possível,
deviam procurar uma trégua” y. De forma adulterada, e mesmo ri­
diculamente caluniosa (a passividade de Mao na guerra contra o Ja­
pão!), esta versão de Kommunist revela o conflito que efetivamente
existiu entre a estratégia de Mao e a de Stalin.
Considerando a esmagadora superioridade japonesa em arma­
mento e em termos de organização militar regular, Mao recusou-se
sistematicamente a comprometer o exército revolucionário em bata­
lhas de tipo convencional. Aplicou em grande escala a tática guerri­
lheira, teorizada e experimentada desde o período de Chiangsi. “As
forças comunistas — escreve um dos ocidentais que melhor conhe­
ce a questão — tiveram que desenvolver as suas operações de ma­
neira extremamente fragmentária, em razão, por um lado, dos seus
objetivos políticos, que as levavam a se espalhar por áreas cada vez
maiores, para melhor contactar com a população e, por outro, da
sua extrema inferioridade material diante dos japoneses. Praticaram
assim uma guerra de guerrilhas mais afastada do modelo de guerra
regular que as campanhas de Chiangsi e nunca ultrapassaram o es­
calão das pequenas unidades, alcançando, no máximo, o nível do
regimento” ,0. Esta tática de combate articulava-se intimamente com
a implantação do novo poder revolucionário em grandes zonas ru­
rais no interior das províncias ocupadas pelos japoneses. Numa pa­
lavra, Mao aplicava a estratégia da “guerra prolongada”, formulada
em 1938. Não excluía a passagem à guerra de manobra numa fase
posterior: “A guerra será longa e encarniçada — dizia ele. No
seu curso, as tropas guerrilheiras, alcançando o necessário adestra­
mento, pouco a pouco se transformarão em tropas regulares, pouco
a pouco seu combate se tornará mais convencional, e a guerra de
guerrilhas se converterá em guerra de manobra” n . A repentina ca­
pitulação do Japão, depois de Hiroshima, excluiu esta fase na guer­
ra antijaponesa, mas a estratégia de Mao não se voltava apenas para
o combate contra os japoneses: tinha como perspectiva a inevitável
continuação da luta armada contra as forças reacionárias do Kuo-
mintang, luta que, praticamente, nunca cessou durante a guerra an­
tijaponesa. Ele se propunha acumular — e não dispersar prematura­
mente — forças para a guerra civil. Em síntese, o objetivo final da
estratégia maoísta não se restringia à libertação nacional — incluía
a revolução social. A íntima articulação destes dois aspectos consti­
tui, como bem se sabe, a chave da vitória comunista na China.
A estratégia político-militar de Mao colidia com a de Stalin em
vários níveis. No período em que existiu o risco de um ataque japo­
nês contra o Extremo Oriente soviético — aproximadamente até
1943 —, o conflito se apresentou sobretudo a nível da tática militar,

591
como agora o reconhece Kommunist. Enquanto Mao reservava e pre­
parava forças em função dos interesses estratégicos da revolução
chinesa, a Stalin o que convinha era que Mao e Chiang dirigissem
imediatamente os seus contingentes militares contra os japoneses.
Interesse análogo tinham os americanos, a fim de ver aliviado o seu
esforço de guerra no Pacífico. Por seu turno, Chiang reservava o
exército do Kuomintang para o inevitável ajuste de contas com os
comunistas. Nos inícios da guerra, Chiang imaginara que os exér­
citos japoneses o ajudariam a destruir os comunistas. Aproveitando
o fato de que, então, o exército popular se encontrava formalmente
sob a autoridade do governo nacional, ordenou-lhe que atacasse as
principais forças do invasor ,2. Mao não caiu nesta armadilha — deso­
bedeceu Chiang, como mais tarde desobedeceria a Stalin. Se houvesse
aceitado as exigências deste último no período 1941-1943, o exército
revolucionário se debilitaria profundamente e, na hora da capitulação
japonesa, os comunistas chineses teriam-se visto à mercê do Kuo­
mintang e dos americanos. Não se pode esquecer — porque este é
um dado fundamental — que, durante toda a guerra contra o Japão,
o Partido Comunista Chinês não recebeu ajuda militar soviética.
Stalin exigia que os comunistas chineses intensificassem as opera­
ções militares contra o exército japonês, mas nada fazia para com­
pensar a sua trágica inferioridade em matéria de armas 13.
A um nível político mais geral, a estratégia de Mao também
colidia com os objetivos de largo alcance do Kremlin. O projeto re­
volucionário do PCC — a vitória comunista na China — era difi­
cilmente conciliável com o grande projeto de Stalin: chegar a um
acordo duradouro com os Estados Unidos, tanto na Europa quanto
na Ásia, à base da divisão das zonas de influência. Na Ásia, seme­
lhante acordo só era viável, no melhor dos casos, através de um re­
gime chinês no qual os comunistas se submetessem à burguesia na­
cional, a Chiang Kai-Chek. Eis por que Stalin não parava de pres­
sionar a direção do PCC para que ela chegasse a um compromisso
deste gênero com o Kuomintang, ao mesmo tempo em que apoiava
a política americana voltada para fazer com que Chiang renunciasse
ao seu visceral anticomunismo, concedendo algo ao PCC para que
este se integrasse ao regime do Kuomintang.
No outono de 1944, Roosevelt enviou o general Hurley para
atuar como embaixador junto a Chiang. Antes, Hurley passou por
Moscou, examinando a situação chinesa com Molotov. Baseando-se
nesta entrevista, ele “convenceu” o ditador chinês de que: “ l.°) a

592
Rúggia não sustenta o Partido Comunista Chinês; 2.°) a Rússia não
deseja nem dissenções nem guerra civil na China; 3°) a Rússia dese­
ja manter com a China relações as mais harmoniosas 14. Em con­
versações com Hurley (15 de abril de 1945) e com Hopkins (28 de
maio), Stalin reafirma que o objetivo soviético é a reunificação da
China sob a liderança de Chiang. Hopkins informa Truman que
Stalin se comprometeu a “fazer tudo o que estiver a seu alcance
para realizar a unidade da China sob a autoridade de Chiang Kai-
Chek” e lhe declarou que “nenhum chefe comunista [chinês] era
suficientemente forte para realizar sozinho a reunificação” 15 (em
junho de 1944, Stalin dissera a Harriman: “ Comunistas, os comu­
nistas chineses? Comparados ao comunismo, são margarina diante
de manteiga” 16). Estas declarações que os políticos americanos atri­
buem a Stalin poderiam ser tomadas como astúcias diplomáticas se
não tivessem perfeita correspondência com outros atos e com toda
a orientação geral da política staliniana da “grande aliança” . A 14
de agosto de 1945, Moscou subscreve com Chiang Kai-Chek o “Tra­
tado de amizade e aliança sino-soviético”, em razão do qual e
de conformidade com o acordo secreto de Ialta — a URSS recupera
as bases e concessões arrancadas à China pelo czarismo e perdidas
na guerra russo-japonesa de 1905. O governo de Chiang resistiu te­
nazmente a estas pretensões de Moscou — era o momento em que
as potências ocidentais renunciavam, uma atrás da outra, às suas
antigas concessões na China e a esta se reconhecia o grau de potên­
cia, membro permanente do Conselho de Segurança da ONU e
só cedeu depois que Stalin se comprometeu, de acordo com alguns
historiadores, a não respaldar os comunistas chineses ,7. Os aconte­
cimentos seguintes à capitulação do Japão abonam parcialmente esta
versão — mas só parcialmente. De fato, o exército libertador da
Mandchúria não ofereceu aos comunistas chineses a assistência de­
cisiva que poderia lhes dar. Ao invés de lhes entregar as instalações
industriais desta região (as mais importantes da China), desmontou-
as e as enviou à União Soviética como despojo de guerra; ao invés de
lhes permitir a tomada do poder em Mukden (principal entroncamen­
to ferroviário e centro industrial da Mandchúria), assim como em
outras cidades, as autoridades soviéticas chegaram a um acordo com
Chiang para cedê-las às suas tropas; podendo transportar para Pe­
quim e outros centros do norte da China as unidades do exército
popular, não o fizeram, de forma que os nacionalistas, transportados
por aviões e barcos americanos, ali se instalaram. Em troca, porém,

593
as autoridades militares soviéticas não se opuseram a que o exército
popular e as organizações dos comunistas chineses se estendessem
pelas regiões agrárias da Mandchúria e até se apoderassem de algu­
mas cidades, como Harbin e Changchun. E, sobretudo — este foi
o grande presente de Stalin aos comunistas chineses —, o comando
soviético entregou às tropas de Mao parte do armamento apreendido
ao exército japonês que operava na área 18 (é verdade que outro pro­
cedimento recusar aos comunistas uma parte das armas japone­
sas, enquanto o grosso delas ia para as mãos do Kuomintang — teria
sido excessivamente escandaloso se praticado pelo chefe do comu­
nismo internacional). Em resumo, Stalin estendeu uma mão a Mao
e outra a Chiang, ao mesmo tempo em que pressionava ambos para
chegarem a um acordo. Ao último, ratificou o seu reconhecimento
como chefe do Estado chinês, deu-lhe algumas facilidades para ins­
taurar a sua autoridade no norte do país, mas exigindo-lhe que per­
mitisse a participação dos comunistas no governo (pouco depois da
assinatura do tratado sino-soviético, e sob a pressão conjunta de
Moscou e Washington, Chiang convidou Mao a discutir a questão
da entrada dos comunistas no governo). A Mao, Stalin permitiu que
amenizasse a sua acentuada inferioridade bélica, mas exigiu cjue
fizesse importantes concessões ao Kuomintang.

Guerra revolucionária ou “união nacional”

Em relação às pressões de Stalin sobre Mao existe um testemu­


nho de primeira ordem que, ao que saibamos, nunca foi desmentido
por Moscou. Já aludimos a ele noutro lugar e agora o reproduzire­
mos com mais detalhe. Segundo referência de Kardelj, Stalin, em fe­
vereiro de 1948, diante dele e de Dimitrov, disse o seguinte: “De­
pois da guerra, convidamos os camaradas chineses a vir até aqui
para discutir a situação do seu país. Falamos claramente a eles que,
em nosso juízo, a insurreição na China não tinha o menor futuro e
que deviam procurar um modus vivendi com Chiang Kai-Chek, par­
ticipar do seu governo e dissolver o seu exército. Os camaradas chi­
neses concordaram com os nossos pontos de vista, mas, de volta à
China, fizeram exatamente o contrário. Reagruparam as suas forças,
organizaram o seu exército e, como todo mundo pode ver hoje, es­
tão em vias de bater Chiang. No caso chinês, nós nos equivocamos
e o reconhecemos” ,9 (nesta nota, explicamos os possíveis motivos
594
desta curiosa “ autocrítica” do Infalível; mas o que nos interessa
por agora é o reconhecimento da pressão exercida sobre o PCC).
As negociações entabuladas em setembro de 1945, entre Mao
e Chiang, não levaram a nenhum resultado prático. Enquanto se ne­
gociava, Chiang mandava suas tropas atacarem as zonas controladas
pelos comunistas e Mao ordenava às suas resistir e aniquilar os ata­
cantes 20. No outono de 1945, a guerra civil era um fato. A pressão
soviético-americana, para impor uma solução de união nacional
aos dois poderes armados que se confrontavam na China, foi acen­
tuada. Na conferência de ministros de Relações Exteriores, celebra­
da em dezembro de 1945, os “três grandes” concordaram na “neces­
sidade de uma China unificada e democrática, sob a direção de um
governo de união nacional, à base de uma ampla integração dos
elementos democráticos em todos os organismos do governo nacional
e do fim das desordens civis” 21. As negociações entre o PCC e o
Kuomintang se reativaram. Em janeiro de 1946, reuniu-se uma con­
ferência consultiva política e se acertou uma trégua nas operações
militares. Esta conferência adotou uma série de resoluções que, apa­
rentemente, satisfaziam à vontade dos “três grandes , mas que, real­
mente, encobriam os praparativos de Chiang para retomar a ofen­
siva contra as forças revolucionárias e a preparação dos comunistas
para responder adequadamente às forças contra-revolucionárias. Ao
mesmo tempo, em Washington ganham espaço os partidários de uma
ajuda ao ditador chinês para que este encontre uma solução militar
para o conflito. A partir do verão de 1946, a guerra civil se genera­
liza em todo o país e, apesar de esporádicos intentos de negociação,
se acentuará até a derrota total do Kuomintang.
Chiang Kai-Chek empreende a ofensiva em julho de 1946. Nes­
se momento, o seu exército conta com grande superioridade em efe­
tivos regulares e em armas (dispõe de 500 aviões, na sua maioria
pilotados por americanos, enquanto o exército popular não teve
aviação até depois da vitória), está assessorado por milhares de ofi­
ciais e técnicos ianques e generosamente subvencionado por Wash­
ington. Durante um ano (até o verão de 1947), os nacionalistas pa­
recem marchar de vitória em vitoria; na verdade, ocupam cidades
que o exército popular não defende, obedecendo a uma tática bem
experimentada; alargam as suas comunicações e dispersam as suas
forças em espaços hostis, minados pela agitação revolucionária. Em
regra, o exército popular só aceita o combate onde conta com deci­
siva superioridade. Estende e consolida o novo poder em zonas ru­

595
rais cada vez mais amplas, onde a revolução agrária se converte
ipso facto em realidade tangível; cerca as cidades, corta as vias de
comunicação, isola as divisões nacionalistas. Paralelamente, intensi­
fica a ação clandestina nos próprios centros urbanos do inimigo,
atrai os elementos vacilantes, aproveita as dissensões do corrompido
aparelho político e militar do Kuomintang. Rapidamente, a correla­
ção de forças vai mudando em favor dos comunistas. Entre o verão
de 1947 e o de 1948, o exército popular passa progressivamente à
ofensiva na Mandchúria, na China central e na do norte. Inicia-se
a fase que Mao previra na sua teoria da “guerra prolongada”: o
trânsito da guerra de guerrilhas à guerra de manobra. No outono
de 1948 começam a se suceder vitórias espetaculares. O exército po­
pular liberta a Mandchúria, faz centenas de milhares de prisionei­
ros, apodera-se de grandes quantidades de material bélico. A supe­
rioridade em armas (apesar da carência de aviões) e em efetivos re­
gulares passa decisivamente para as forças revolucionárias. Em ja­
neiro de 1949, o exército popular entra em Pequim. Na primavera,
cruza o Yangtsé e entra em Nanquim e Changai. No outono, chega
a Cantão. No fim do ano, toda a China continental — à exceção
de algumas áreas periféricas que serão libertadas pouco depois —
está sob o controle do novo poder revolucionário.
O giro sofrido pela guerra civil a partir do verão de 1947 e a
fulgurante e espetacular ofensiva do exército revolucionário a partir
do outono de 1948, que, em um ano, leva-o da Mandchúria a Can­
tão, não se explicam apenas pela mestria alcançada pelos comu­
nistas na sua tática política e militar (mestria fruto de vinte e cinco
anos de experimentação e teorização da guerra revolucionária); nem
se explicam pelo alto nível de combatividade revolucionária, de dis­
ciplina e de espírito de sacrifício, conseguidos pela organização mi­
litar e política dos comunistas. Sem estes elementos, a vitória co­
munista teria sido impossível, mas apenas eles não a explicam — e,
sobretudo, não explicam a sua rapidez. Todos aqueles que estuda­
ram este período da revolução chinesa assinalam, dentre as causas
decisivas do colapso do regime do Kuomintang, a sua podridão in­
terna, a sua inépcia e corrupção. Além dos chefes comunistas, um
dos primeiros a compreender este dado foi Marshall. A sua estada
na China, antes de assumir o Departamento de Estado, em fevereiro
de 1947, permitiu-lhe conhecer por dentro o regime de Chiang; e,
em junho daquele ano, numa reunião interministerial, previu o seu
colapso. Em fevereiro de 1948, diante do Conselho de Segurança

596
do governo americano, declarou que “dados o estado de desordem,
a corrupção, a inépcia e a impotência do governo central, os pro­
blemas chineses eram praticamente insolúveis” 22. Mas a impotência
e a decomposição do governo de Chiang eram apenas o reflexo, o
efeito, de uma realidade mais profunda: o avançado grau de revo-
lucionamento da sociedade chinesa. A revolução organizada, pro­
gramada, encarnada no exército popular e no PCC engrenava o seu
desenvolvimento com a revolução difusa, espontânea, onipresente
que, ao cabo de trinta anos de guerras civis, insurreições campone­
sas e operárias, guerrilhas revolucionárias, invasão japonesa, guerra
de libertação nacional, etc., acabara por instalar-se nas consciências
e desarticular profundamente estruturas seculares. A invasão japo­
nesa foi a prova decisiva para todas as forças políticas que preten­
diam resolver os problemas dessa China em mutação. Depois de se
revelar, em 1925/1927, inimigo da revolução agrária, o Kuomin-
tang revelou, em 1937/1945, a sua incapacidade para organizar a
resistência nacional. O PCC, ao contrário, que, no curso da primeira e
da segunda guerras civis, acreditara-se como o partido da revolução,
no curso da guerra antijaponesa acreditou-se ainda como o partido
da independência nacional. Camadas sociais e políticas que vacila­
vam entre ele e o Kuomintang passaram para o seu lado ou exigi­
ram uma aliança sincera com ele. Capitulando o Japão, o governo
de Chiang Kai-Chek não teria podido instalar o seu poder na maior
parte do país se não ocorresse um conjunto de fatores estranhos à
realidade da China — o acordo nipo-americano para que as forças
japonesas só se rendessem às tropas de Chiang; a transferência des­
tas (confinadas no sudoeste do país) ao centro e ao norte da China
pela aviação e pela frota americanas; o status internacional do go­
verno de Chiang (reconhecido pelos “três grandes” como o único
governo legal da China) e o tratado sino-sovietico de agosto de 1945,
que o fortalecia politicamente ante as forças revolucionárias; o com­
portamento do exército soviético no norte e na Mandchúria, imple­
mentando este tratado; e, finalmente, a ajuda ativa, em todos os
níveis, que o governo americano começou imediatamente a prestar
ao de Chiang.
Na realidade, o regime do Kuomintang foi artificialmente res­
taurado sobre um país que reclamava exatamente o que este regime
impedia: a paz civil, as transformações sociais radicais, a efetiva in­
dependência nacional. Desde o primeiro dia após a libertação do
jugo japonês, o Kuomintang apareceu como o partido da guerra

597
civil, o inimigo de toda mudança social e o instrumento de uma
nova dominação estrangeira — a americana. Para consolidar o seu
poder durante um período mais ou menos largo, só lhe restavam
duas alternativas: ou a liquidação militar dos comunistas ou a capi­
tulação política destes, “integrando-se” no regime, dissolvendo as
suas forças militares, submetendo-se à liderança de Chiang, abando­
nando praticamente o seu programa revolucionário. Do ponto de
vista do Kuomintang, a negociação anteriormente mencionada era
uma manobra tática para ganhar tempo e preparar forças militares
com vistas à primeira solução e, simultaneamente, para encaminhar
a segunda. E esta segunda possibilidade teria podido se afirmar se
a direção do PCC cedesse às exigências de Stalin. Os comunistas
teriam se encontrado novamente, como em 1925-1927, na condição
de prisioneiros do Kuomintang, e a tragédia de então poderia repe-
tir-se num ou noutro momento. Se, na Europa Ocidental, a “ união
nacional” de tipo oportunista desembocou na exclusão dos ministros
comunistas e no isolamento dos seus partidos, nas condições da
China uma semelhante “união nacional”, muito provavelmente, re­
sultaria numa nova chacina dos comunistas. Um dos méritos de
Mao e seus camaradas foi a inteira lucidez que revelaram a este
respeito, como provam os documentos da época. Tanto no período
que precede imediatamente a capitulação japonesa como no que a
segue, Mao não se permite nenhuma ilusão — considera inelutável
a guerra civil e prepara o partido para enfrentá-la. No seu informe
ao VII Congresso do partido, dois meses antes da capitulação do
Japão, observa: “Até hoje, o núcleo principal da camarilha que do­
mina o Kuomintang aplicou obstinadamente a linha reacionária di­
rigida a conservar o regime ditatorial e a desencadear a guerra civil.
Há inúmeros sinais de que esta camarilha se prepara há muito, e
agora mais que antes, para deflagrar a guerra civil no momento em
que uma parte da China continental for libertada dos invasores ni-
pônicos pelas tropas de uma das potências aliadas. Ao mesmo tem­
po, esta camarilha espera que os generais de certas potências aliadas
desempenhem na China o papel do general inglês Scobie na Gré­
cia” 23. Mais adiante, evoca a experiência de 1927: “Em 1944, o go­
verno do Kuomintang expressou o seu ‘desejo’ de que os comunistas
‘dissolvam, num prazo determinado’, quatro quintos de suas forças
armadas nas regiões libertadas. E, em 1945, no curso das últimas
conversações, exigiu, inclusive, que os comunistas passassem ao seu
comando a totalidade das tropas das regiões libertadas, com a promes-

598
. di imediatamente depois disto ‘legalizar’ o partido comunista.
I .1 gente diz aos comunistas: ‘Entreguem-nos as suas tropas e nós
lho concedemos a liberdade’. Deduz-se desta ‘teoria’ que os parti-
■l.i. e os grupos desprovidos de tropas deveriam gozar de liberdade.
.I.i . cm 1925-1927, o partido comunista tinha um pequeno contin-
i • ui. e quando o governo do Kuomintang começou a aplicar a sua
p o l í t i c a de ‘depuração do partido’ e de repressão sangrenta não restou

,i menor margem de liberdade” 24. E Mao conclui a sua intervenção de


c i u c i l amento do congresso com estas palavras: “Atualmente, dois

. ongressos se desenvolvem na China: o VI do Kuomintang e o VII do


|'CC. Os seus objetivos são completamente diferentes: um aspira à
aniquilação do partido comunista e das forças democráticas chine-
aspira imergir a China nas trevas; o outro aspira à liquidação
do imperialismo nipônico e seus cúmplices, as forças feudais da
China, aspira edificar a China da nova democracia” 25. Imediatamen­
te depois das negociações de setembro, Mao, numa reunião de qua­
dros do partido, afirma: “As negociações entre o Kuomintang e o
PCC fracassarão, haverá ruptura, nós nos enfrentaremos” — mas
observa que as negociações são necessárias para “ desmascarar as
mentiras do Kuomintang, segundo as quais o PCC não quer nem a
paz nem a união” 26.

O espectro de um “titoísmo chinês”

Os maoístas ainda não revelaram a história da luta interna do


seu partido durante esses anos. Através dos textos atualmente conhe­
cidos — como o documento de abril de 1946, que citamos noutro
lugar27 — infere-se que alguns quadros importantes do PCC susten­
tavam a solução preconizada por Stalin — chegar a qualquer preço
a um modus vivendi com Chiang Kai-Chek. A guerra revolucionária
lhes parecia condenada ao fracasso a partir do momento em
que o Kremlin se orientava a um compromisso com os Estados
Unidos. É provável que a pressão de Stalin sobre a direção do PCC
neste sentido tenha persistido, pelo menos, até finais de 1946 ou
começos de 1947. Em dezembro de 1946, Stalin declarava ao filho
de Roosevelt que o governo soviético estava disposto a “prosseguir
numa política comum com os Estados Unidos nas questões do Ex­
tremo Oriente” 28. Durante 1945 e 1946, a imprensa soviética e os
partidos comunistas ocidentais pouco publicavam sobre o exército

599
popular chinês, as transformações revolucionárias nas regiões liber­
tadas, etc. Em geral, limitavam-se a denunciar o apoio dos “círculos
reacionários’’ norte-americanos aos “círculos reacionários do Kuo-
mintang”, apresentando este apoio como o principal obstáculo a uma
solução de “união nacional”. E, como já vimos, o informe de Zdha-
nov à reunião de fundação do Centro de Informação dos Partidos
Comunistas só se refere à China mencionando esta intervenção —
silencia o conteúdo revolucionário da guerra civil e não coloca o
problema da solidariedade do proletariado internacional com os revo­
lucionários chineses. O PCC não é convidado para participar do
Centro de Informação dos Partidos Comunistas. Evidentemente, a
política de Mao, como a de Tito durante a guerra de libertação, não
estava na mesma freqüência da política de Stalin. E o espetacular
triunfo da linha de Mao, em 1949, só podia suscitar a inquietude
de Stalin — especialmente depois do que ocorrera com Tito.
A inquietude de Stalin devia ser tanto maior quanto o que es­
tava em questão não era apenas a comprovação da estratégia maoís-
ta. Estava em questão outra coisa: pela primeira vez, num grande
país, chegava ao poder um partido comunista cuja mentalidade, for­
mação ideológica e evolução interna possuíam traços diferenciais
muito nítidos em face do partido soviético. Tratava-se de um partido
consciente da sua originalidade e da sua importância mundial. Um
partido cuja direção vinha cultivando estes traços, sistematicamente,
há mais de uma década, num latente conflito com a ortodoxia de
Moscou — apesar das invocações rituais de Stalin e das concepções
stalinianas que acompanhavam a “achinesação” do marxismo. No en­
saio publicado em Kommunist, citado páginas atrás, revela-se que
o chamado “movimento pela retificação do estilo”, organizado em
Yenan, de 1941 a 1945, passando por várias etapas, foi visto em
Moscou sob este ângulo. Este “movimento” consistiu no estudo e
no debate de uma série de problemas ideológicos, políticos e organi­
zacionais, com o objetivo de que o partido aprendesse a servir-se
do método marxista e rechaçasse os enfoques dogmáticos, o subje­
tivismo e o formalismo, unindo a teoria marxista à prática da revo­
lução chinesa. Quando do “movimento de 4 de maio”, dizia Mao,
foi “indispensável e revolucionário” conduzir a luta contra “os ve­
lhos clichês, o velho dogmatismo” (do pensamento chinês tradicio­
nal); “ agora, nossa tarefa necessária e revolucionária é desmascarar
os novos clichês, os novos dogmatismos, a partir de posições mar­
xistas” 29. Milhares de quadros passaram por esta escola, que serviu

600
para difundir no partido as concepções de Mao e torná-lo coeso sob a
sua liderança. As teorizações de Mao sobre a guerra revolucionária,
a “nova democracia”, a maneira de resolver as contradições no
seio do partido, etc., foram consagradas como a verdade chinesa do
marxismo. Começou-se a falar em “marxismo chinês” ou em “achine-
sação do marxismo”. Wang Ming e outros foram criticados — como
agora revela Kommunist — pela “sua atitude dogmática em face do
marxismo russo”.
Este movimento ideológico — que, apesar das suas intenções
antidogmáticas, também se pode considerar como o início do culto
de Mao — culminou no VII Congresso do PCC. No informe de Liu
Chao-Chi, “sobre o partido”, lê-se: “O programa colocado na aber­
tura do estatuto do nosso partido estipula que o Pensamento de
Mao Tsé-Tung deve guiar todo o nosso trabalho partidário. O texto
do próprio estatuto estabelece que cada membro do partido tem o
dever de se esforçar para assimilar os elementos do marxismo-leni-
nismo e o Pensamento de Mao Tsé-Tung. Esta é uma das grandes par­
ticularidades históricas do estatuto do nosso partido, tal como foi
agora revisado” 30 (de fato, tal “particularidade” era então inconce­
bível no estatuto de qualquer outro partido comunista). O informe
prossegue: “ Há mais de um século, o povo e a nação chineses so­
freram profundamente, mas sustentaram uma sangrenta luta por sua
emancipação, acumulando experiências de valor incalculável. Estas
lutas práticas e a experiência assim adquirida deveriam conduzir ine­
vitavelmente à formação da sua própria grande teoria, fazendo da
nação chinesa não só uma nação capaz de guerrear, mas uma nação
dotada de teoria revolucionária e científica. [. ..] Esta teoria é pre­
cisamente o Pensamento de Mao Tsé-Tung, a teoria e a política de
Mao Tsé-Tung referente à história chinesa, à sociedade chinesa e à
revolução chinesa. O Pensamento de Mao Tsé-Tung é o pensamento
que funde a teoria marxista-leninista com a prática da revolução chi­
nesa; é o comunismo chinês, o marxismo chinês”. O mérito e a ori­
ginalidade desta nova aventura teórica são vigorosamente realçados:
“Em virtude das diferentes condições, das acentuadas particularida­
des que caracterizam o desenvolvimento social e histórico da China,
entre as quais o baixo grau de florescimento científico, etc., a achine-
sação sistemática do marxismo, a conversão do marxismo da sua for­
ma européia para a sua forma chinesa — ou, dito de outra forma,
a utilização do enfoque e do método marxistas para resolver os di­
versos problemas da revolução chinesa contemporânea — representa

601
uma empresa difícil e excepcional. Muitos dos problemas com os
quais se defronta nunca foram colocados ou resolvidos anteriormen­
te pelos marxistas do mundo. [. . . ] Esta empresa não pode ser levada
a cabo com sucesso, ao contrário do que pensam alguns, apenas
com o domínio dos textos marxistas, recitando-os de cor ou deles ex­
traindo citações. [. ..] Mao Tsé-Tung, e nenhum outro, foi quem, de
forma notável e bem-sucedida, realizou a difícil e excepcional achine-
sação do marxismo. E esta é uma das maiores façanhas da história do
movimento marxista mundial [. . Não analisaremos agora este
texto, no qual a tomada de consciência de uma realidade indiscutí­
vel — a de que a revolução chinesa, como toda grande revolução,
estava produzindo a sua própria teoria — se entrecruza com os
elementos iniciais de um culto que levaria à dogmatização das novas
idéias, como já ocorrera com o leninismo. O que aqui nos interessa
assinalar é que tais postulados do VII Congresso do PCC, tanto como
a estratégia político-militar de Mao, eram dificilmente digeríveis por
Stalin. A revolução chinesa representava o primeiro grande desafio
teórico para a ortodoxia staliniana, assim como o seu curso prático
era um desafio à “política da grande aliança”. E o desafio possuía
um alcance mundial porque, como declarava o citado informe, a
nova teoria significava “o desenvolvimento do marxismo no tocante
à revolução nacional democrática da época atual nos países colo­
niais, semicoloniais e semifeudais [. . .], uma contribuição de grande
importância e utilidade para a libertação dos povos de todos os paí­
ses e, sobretudo, para a libertação de todas as nações do Oriente”.
Desde 1945, o PCC começava a reivindicar as suas concepções e ex­
periências como modelo para a revolução nos países atrasados. Apre­
sentava-se como a alternativa ao partido soviético.
Na medida em que a vitória de 1949 se delineia com nitidez,
particularmente no curso desse ano, aparece nas publicações dou­
trinárias soviéticas uma série de artigos que, discretamente, põem
os pontos nos is. Mencionam-se passagens de trabalhos de Mao nos
quais ele rende tributo ao papel e ao exemplo da União Soviética,
a Lênin e a Stalin, silenciando, ao mesmo tempo, tudo o que se re­
fere à “achinesação” do marxismo e criticando indiretamente as teses
maoístas sobre o desenvolvimento original da revolução nos países
coloniais e semicoloniais. “As leis gerais do desenvolvimento social
dos países orientais e dos países ocidentais — se afirma num desses
artigos — são idênticas. Só se pode falar de diferenças quanto ao
ritmo e às formas concretas deste desenvolvimento. Neste sentido, a

602
(Iiinucrucia popular no Oriente não difere, em seus traços funda­
mentais, da democracia popular no Ocidente. Todo o curso da luta
nacional-colonial e as imensas vitórias alcançadas pelas forças de­
mocráticas da Ásia oriental são uma esplêndida confirmação da jus­
teza da doutrina leninista-staliniana sobre a questão nacional-colo-
niul, a demonstração do triunfo das idéias vitoriosas de Marx-En-
gels-Lênin-Stalin” 31. Para este teórico soviético, as idéias de Mao
não axistem. Num outro artigo, afirma-se: “Na elaboração de uma
justa política marxista-leninista pelo Partido Comunista Chinês, os
trabalhos do camarada Stalin, especialmente aqueles sobre a questão
chinesa, desempenharam um enorme papel. À base de uma profunda
análise teórica da situação na China, o camarada Stalin definiu nes­
tes trabalhos as particularidades da revolução chinesa, previu genial­
mente seu curso e indicou as condições para o seu triunfo [. . .]” 32.
Pouco depois da proclamação da República Popular da China, a
Federação Sindical Mundial (FSM) celebrou uma reunião em Pe­
quim (novembro de 1949). A intervenção do representante chinês,
Liu Chao-Chi, mantém com firmeza as teses maoístas: “A via do
povo chinês para vencer o imperialismo e os seus cães de guarda, para
fundar a República Popular da China, é a via que deve ser seguida
pelos povos de muitos países coloniais e semicoloniais na sua luta
pela independência nacional e pela democracia popular. [. . . ] É a via
de Mao Tsé-Tung” 33. As declarações de alguns comunistas asiáticos,
que afirmaram a sua vontade de seguir o exemplo chinês, não fo­
ram incluídas no resumo dos debates desta reunião, publicado pelo
órgão da FSM.
Evidentemente, a revolução da imensa China, como a revolu­
ção da pequena Iugoslávia, trazia consigo perigos heréticos. A pro­
clamação da República Popular da China, a l.° de outubro de 1949
— às vésperas do anúncio, pelo Centro de Informação dos Partidos
Comunistas, de que a república popular da Iugoslávia estava nas
mãos de “assassinos e espiões” —, não representava apenas o mais ru­
de golpe assestado ao sistema imperialista desde a revolução de Outu­
bro; significava também que diante do Kremlin se levantava o es­
pectro de um titoísmo asiático, incomparavelmente mais perigoso
que o titoísmo balcânico. Alguns observadores ocidentais indicaram,
ainda que não a considerassem imediata, a possibilidade de que o
espectro tomasse corpo 34. E os partidos do Centro de Informação
dos Partidos Comunistas julgaram necessário enfrentar tais “espe­
culações”. A revista do Partido Comunista Francês, por exemplo,

603
escrevia, em março de 1950, que “o internacionalismo está profun­
damente inserido no Partido Comunista Chinês, podendo-se afirmar
que as esperanças, alimentadas pelo imperialismo, de um ‘titoísmo
chinês’ estão condenadas ao mais miserável fracasso” 35.

A aliança sino-soviética

O fantasma, de fato, foi afugentado durante alguns anos. A


situação internacional empurrava vigorosamente Mao e Stalin ao
entendimento. A guerra fria estava no auge. Mao não podia saber até
onde chegaria o apoio dos Estados Unidos ao derrotado Chiang Kai-
Chek, que se refugiara em Formosa. De qualquer maneira, o im­
perialismo americano era a principal ameaça à nova China. Stalin,
por seu turno, precisava fortalecer o seu dispositivo internacional.
Em abril de 1949, firmara-se o Pacto Atlântico. Em maio, o governo
soviético teve que renunciar ao bloqueio de Berlim ocidental. O Ja­
pão se convertia numa base militar americana diante do Extremo
Oriente soviético. E, ainda que em julho de 1949 se explodisse a
primeira bomba atômica soviética, a vantagem americana neste do­
mínio era evidente, embora fosse igualmente óbvia a superioridade
soviética no tocante a forças militares convencionais. As negociações
Mao-Stalin, iniciadas em Moscou em dezembro de 1949, terminaram,
em fevereiro de 1950, com assinatura, por trinta anos, do tratado
sino-soviético de “amizade, aliança e ajuda mútua”. Em junho de
1950, eclodia a guerra da Coréia, que, por três anos, soldaria for­
temente a nova aliança. No entanto, não há dúvidas de que, além
deste imperioso condicionante internacional, outros elementos se fi­
zeram presentes. As relações entre os dois partidos ainda não se
tinham posto à prova no plano estatal (tampouco, no caso iugosla­
vo, as divergências surgidas durante a guerra conduziram, por si sós,
à ruptura; as relações entraram na via do antagonismo quando apa­
receu em cena o novo Estado iugoslavo e revelou-se praticamente a
incompatibilidade entre a sua soberania e a política e os métodos do
Kremlin). Mao, possivelmente, imaginou que, diante de um país
como a China, com meio bilhão de habitantes e um exército de vá­
rios milhões de homens, cujas altas qualidades combativas ainda
estavam evidentes, Stalin não procederia como se comportou frente
aos pequenos países do Leste europeu. Por outro lado, a situação eco­
nômica do país, ao cabo de vinte e cinco anos de guerras quase con­

604
tínuas, era francamente desastrosa. Os comunistas chineses pensa­
vam que a URSS lhes proporcionaria a urgente ajuda de que neces­
sitavam. A eles se apresentavam problemas econômicos e técnicos
inadiáveis, para os quais não estavam apetrechados. A teoria maoís-
ta da “nova democracia” oferecia uma orientação geral sobre as re­
lações e o papel das diferentes classes sociais e sobre o caráter do
novo regime, mas, para construí-lo, era preciso algo mais. O PCC
acreditou que a solução estaria no modelo e na experiência da cons­
trução soviética. Às vésperas da vitória, Mao colocou o problema
desta maneira: “Diante de nós se apresenta a enorme tarefa da edi­
ficação econômica. Muito rapidamente, as coisas que conhecemos
ficarão no passado e nos defrontaremos com fenômenos que co­
nhecemos mal. A dificuldade reside aí. Os imperialistas supõem que
seremos absolutamente incapazes de administrar a nossa economia.
[. . . ] No início, alguns comunistas soviéticos tampouco dominavam
a gestão dos assuntos econômicos, e os imperialistas contavam com
o seu fracasso. Porém, o Partido Comunista da União Soviética triun­
fou e, sob a direção de Lênin e Stalin, não só fez a revolução, mas
soube edificar um grande e magnífico Estado socialista. O Partido
Comunista da União Soviética é o nosso melhor mestre e devemos
acatar as suas lições”36. Convicção ou afirmação diplomática com
vistas à nova etapa? Mao sempre manobrara com extrema habilida­
de a fim de evitar confrontos diretos com Moscou. Combatendo os
homens e as tendências que, no partido chinês, representavam a sub­
missão incondicional às diretivas e às concepções moscovitas rela­
tivas à revolução chinesa, reconhecia e proclamava, ao mesmo tem­
po, o papel dirigente da URSS e de Stalin no movimento comunista
internacional37. E não existem indícios de que tivesse qualquer cri­
tica aos problemas internos da URSS ou à política de Stalin em face
do movimento comunista ocidental (a julgar pelo que se conhece da
sua biografia, Mao ignorava estes problemas na mesma medida em
que outros líderes comunistas ignoravam os problemas chineses). En­
tre o marxismo achinesado de Mao, tal como este se apresentava por
volta de 1949, e o marxismo russificado de Stalin existia um deno­
minador comum muito mais amplo e consistente do que costumam
observar alguns apaixonados da originalidade maoísta. As divergên­
cias diziam respeito, sobretudo, aos problemas da guerra revolucio­
nária, da estratégia, das formas e dos métodos da revolução chinesa
em sua fase destrutiva e, colocando-se em primeiro plano os pro­
blemas da fase construtiva, naturalmente perdiam a sua relevância.

605
Ao contrário, estas divergências adquiriram maior peso internacional
à medida em que se desenvolveu a luta de libertação no “terceiro
mundo”. Entretanto, durante algum tempo a guerra da Coréia e os
problemas internos chineses relegaram a segundo plano as divergên­
cias entre a ortodoxia staliniana e as teorias maoístas relativas às vias
revolucionárias nos países oprimidos pelo imperialismo. E, no terreno
da edificação interior, como Mao preconizava, os comunistas chineses
se puseram na escola do partido soviético — até que a experiência
prática (analogamente ao sucedido, entre 1921 e 1927, no domínio
da tática revolucionária) ensinou aos alunos que o professor tam­
pouco lhes servia para a edificação do novo regime.
Se, por parte de Mao, existiam, em 1949, os imperativos que
acabamos de citar para que ele se esforçasse para chegar ao enten­
dimento mais estreito possível com Stalin, para este último pesava,
além do perigo americano, o conflito com a Iugoslávia. É lícito
supor que Stalin tinha o máximo interesse em evitar um problema
semelhante com o partido chinês, cuja grande vitória o aureolava
de imenso prestígio diante do movimento comunista internacional e
de todos os povos oprimidos. Seu interesse, ao contrário, consistia
em capitalizar este prestígio. Toda a propaganda do Centro de Infor­
mação dos Partidos Comunistas e dos partidos comunistas apresentou
o triunfo da revolução chinesa como o produto da genial direção
de Stalin, das suas concepções e da sua estratégia, dos seus con­
selhos e das suas diretivas. Eis uma amostra: “Em todas as etapas
da revolução nacional-libertadora chinesa, Stalin esteve presente para
colocar os problemas, ajudar na retificação dos erros, indicar os
obstáculos a serem evitados e escolher o caminho justo, à base da
hegemonia do proletariado” (em 1949, o proletariado industrial
chinês não chegava a 1% da população e depois da terrível repressão
de 1927 mal pudera intervir na luta revolucionária. O percentual
de operários no PCC — ainda em 1949 — atingia os escassos 3%,
com a maioria esmagadora dos quadros dirigentes sendo de origem
intelectual38. Mas, segundo as versões do Centro de Informação dos
Partidos Comunistas, o proletariado fora a força hegemônica da revo­
lução chinesa. Stalin fazia milagres). O artigo continua: “A análise
staliniana das particularidades da China proporcionou ao PCC a
base para elaborar o seu programa, a sua estratégia e a sua tática
de combate. [. . .] Stalin, cientificamente, previu a traição do Kuo-
mintang [em 1927]. [ .. .] Em face da China, Stalin aprofundou a
teoria leninista-staliniana referente aos países coloniais e semicolo-

606
nini I I ü restabelecimento da influência do PCC sobre a classe
Iifit idi In liimbem sc deveu aos conselhos de Stalin. [. . .] Stalin pro-
H li vulução chinesa contra o trotskismo. [• . .] Apenas o estudo
• I M «11it ilucilo dus proposições teóricas de Stalin permitiram ao PCC
"hi. I liu ide/, corrigir os erros e conduzir a revolução e a guerra
leviihicltiiiílrla ii vitória” 39.
Pude se supor o efeito de semelhantes versões sobre os dirigentes
mi ...... InI iim chineses — mas, no momento, eles não se manifestaram.
IIiti 11it li mios, tiveram que engolir sapos maiores — e os engoliram
mesma impassibilidade. Sem entrar agora nos detalhes das
0 luti teli mo-soviéticas até a morte de Stalin, limitar-nos-emos a assi-
II d M 111ii . cm razão dos acordos anexos ao tratado de 1950, a resti­
mi,, nu dii ferrovia mandehuriana ao governo chinês foi adiada para
1' »• ’ excelo se, antes, se firmasse o tratado de paz URSS-Japão.
I ' nu ino adiamento sofreu a retirada das tropas soviéticas da base
Imu .d de Port Arthur. E o problema do porto de Dairen ficou em
in,penso, para ser novamente examinado após a assinatura do refe­
ndi, tintado. O governo chinês teve que reconhecer a “independên-
• In" da Mongólia Exterior — vale dizer, a sua permanência sob
uh,ululo controle soviético40. Em relação a Sinkiang, os chineses
llveiam que aceitar a criação de sociedades mistas do tipo que os
Iugoslavos rechaçaram. Em 1954, Mao exigiu a transferência, ime­
diata c integral, para a China da parte soviética destas sociedades41.
i inaino aos créditos econômicos, os dirigentes chineses haviam orça-
do as necessidades do país entre dois e três bilhões de dólares; em
Moscou, obtiveram um crédito de 60 milhões de dólares anuais,
durante cinco anos — no total, 300 milhões de dólares, soma inferior
ao que, pouco antes, o governo soviético emprestara à Polônia42.
Com os especialistas soviéticos enviados à China ocorreu o mesmo
que já acontecera na Iugoslávia, com os problemas daí decorrentes:
seus emolumentos eram muito superiores aos dos seus colegas chi­
neses — dado o nível econômico do país e os hábitos austeros em
que se educaram os comunistas chineses, é fácil imaginar o efeito
moral e político provocado inevitavelmente por esta situação. E, sem
dúvida, houve muitos outros aspectos das relações entre os dois
Estados e partidos que não abonavam exatamente a rósea imagem
oficial da “amizade sino-soviética”. No entanto, até depois dos acon­
tecimentos húngaros e poloneses do outono de 1956, não haverá
declarações chinesas pondo em questão esta imagem panglossiana.
Em dezembro daquele ano, Mao declarará que, “na solução de cer­

607
tos problemas concretos, Stalin manifestava tendências ao chovinismo
de grande potência e não se inspirava suficientemente na igualdade
de direitos; não educava os quadros num espírito de modéstia e,
às vezes, imiscuía-se indevidamente nos assuntos internos de países
e partidos irmãos, o que acarretou muitas e graves conseqüências” 43.
Mas, nem então, nem depois, os maoístas fizeram uma análise his­
tórica objetiva e documentada da intervenção de Stalin (da buro­
cracia dirigente soviética) nas diferentes fases da revolução chinesa
e, particularmente, no período 1949-1953. Isto é explicável, porque
uma tal análise implicaria a abordagem crítica de determinados
aspectos da própria atuação de Mao, coisa difícil enquanto persis­
tir o culto ao seu pensamento e à sua personalidade. De qualquer
maneira, enquanto não fizerem esta análise, os comunistas chineses
não poderão oferecer uma explicação histórica conclusiva do seu
atual conflito com o partido soviético44.
A tarefa de unificar politicamente o país e de criar uma eco­
nomia planificada nas condições chinesas tinha que engendrar, for­
çosamente — numa escala ainda maior que a da Rússia de 1917
—, um processo de burocratização; mas é indubitável que a impor­
tação do modelo e dos métodos soviéticos só podia estimulá-lo e
acelerá-lo em todos os níveis: partido e Estado, economia e ideo­
logia. A extrema complexidade da problemática chinesa e da tenta­
tiva de avançar para o socialismo num país com as características
da China exigiam objetivamente a abertura de um debate perma­
nente, o desenvolvimento de uma investigação sem barreiras, com
ampla participação das massas e dos quadros intelectuais (incluindo
a crítica da experiência soviética). Ao invés disto, o modelo soviético
foi adotado dogmaticamente como a única via possível.
Outro efeito da subordinação do PCC a Stalin, naquela etapa,
foi que a grande experiência acumulada pela revolução chinesa até
a tomada do poder — suas lições teóricas e práticas — não puderam
se converter em patrimônio do movimento comunista internacional
e, particularmente, dos comunistas dos países coloniais.e semicolo-
niais, salvo nuns raros casos (os comunistas vietnamitas e alguns
núcleos comunistas do Sudeste asiático, tradicionalmente ligados aos
chineses). Regra geral, a revolução chinesa foi conhecida pelos comu­
nistas de todo o mundo através das versões soviéticas, cujo enfoque
costumeiro se expressa no artigo que citamos nas páginas 606 e 607.
Stalin fora o demiurgo; os comunistas chineses limitaram-se a aplicar
as suas concepções e diretivas; tudo se encontrava nas obras de Stalin:

608
a análise marxista da realidade chinesa, a trajetória da revolução, a
estratégia e a tática que a levaram à vitória, etc. De fato, a expe­
riência chinesa, naqueles anos, não serviu para enriquecer a teoria
marxista da revolução, mas para reafirmar a dogmática staliniana
e glorificar o seu criador. A vitória do PCC serviu também como
consolo aos dissabores do movimento comunista ocidental, dissimulou
por algum tempo as conseqüências da frustração da revolução euro­
péia e da crônica impotência do comunismo norte-americano, etc.
Por outro lado, a exibição da “amizade sino-soviética’’, os louvores
à ajuda que a URSS prestava à China, etc., caíam como uma
luva para abonar a encenação montada pelo Centro de Informação
dos Partidos Comunistas sobre o conflito soviético-iugoslavo. Com
Mao — dava-se a entender — não havia problemas porque ele era
um intemacionalista, de provada fidelidade à URSS (pedra-de-toque
do internacionalismo), ao contrário do Judas Tito. Prova de que a
culpa não era de Stalin. Os comunistas podiam manter a sua boa
consciência. . .
Apesar de tudo isto, a submissão do PCC a Moscou, no período
do Centro de Informação dos Partidos Comunistas, foi bem menos
absoluta que a dos partidos comunistas das democracias populares
européias. Stalin atuou com certa prudência e Mao tinha atrás de si
uma força que faltava aos chefes comunistas europeus instalados no
poder pelo exército soviético. Um ano depois da proclamação da
República Popular da China, a intervenção dos “voluntários” chi­
neses na guerra da Coréia mostrou espetacularmente, tanto ao Krem­
lin quanto aos governos ocidentais, que o comunismo chinês estava
entre as primeiras potências mundiais. Logo depois da morte de
Stalin, seus herdeiros compreenderam a necessidade de fazer certas
concessões ao fato tão indiscutível da potência e do prestígio da
revolução chinesa, ao mesmo tempo em que procuraram capitali­
zá-lo politicamente para respaldar as suas próprias posições (tanto
interna quanto externamente) no contexto da delicada situação criada
com a morte do grande autocrata. Ampliaram consideravelmente a
ajuda econômica e técnica à China, realçaram a importância do
PCC na hierarquia do movimento comunista e, pela primeira vez,
concederam a Mao o título de “grande teórico do marxismo e do
leninismo” 45. Mas os acontecimentos não tardaram em demonstrar
que Moscou só atribuía a Pequim o estatuto de brilhante segundo lu­
gar no comunismo internacional com a condição de que Pequim fosse
o eco fiel de Moscou na política internacional e não questionasse,

609
em nenhum terreno, a ortodoxia soviética. Os epígonos repetiram,
de alguma maneira, a manobra que o mestre tentara com Tito, entre
1945 e 1947 — e os resultados foram idênticos, só que em escala
chinesa. A persistência do nacionalismo grão-russo provocou a exa­
cerbação do nacionalismo grão-chinês, como antes provocara a exa­
cerbação do nacionalismo iugoslavo. O espectro do “titoísmo chinês”
tomou corpo e dimensões colossais. Mas a este tema voltaremos
adiante.
A revolução chinesa foi o segundo grande ato do processo
revolucionário mundial iniciado em 1917 — a primeira derrota signi­
ficativa do imperialismo, sobretudo do imperialismo americano, de­
pois da segunda guerra mundial. Deu o impulso que conhecemos à
luta de libertação nacional e social dos povos coloniais e semicolo-
niais. Esta luta, sob o signo da revolução chinesa, adquiriu o esta­
tuto de alternativa — durante uma época que ainda não está supe­
rada — ao da luta do proletariado da área capitalista desenvolvida,
no plano da ação revolucionária. Mas a tese de que o rumo da
revolução mundial, a partir da revolução chinesa, consistirá no cerco
da “cidade mundial” (a área capitalista desenvolvida) pelo “campo
mundial” (os continentes subdesenvolvidos) é apenas uma genera­
lização abusiva do itinerário real seguido pela revolução chinesa e
a projeção futurològica do fato, igualmente real e atual, que acaba­
mos de mencionar: a substituição do “Ocidente” pelo “Oriente” no
terreno da ação revolucionária. Nada permite assegurar que esta
substituição seja a última alternativa. Ao contrário, já surgem alguns
signos premonitórios, tanto a nível da teoria como da ação, de que
o proletariado ocidental — um tipo de proletariado, manual e inte­
lectual, muito diferente do conhecido por Marx e Lênin — pode
ocupar novamente o proscênio do palco histórico (sem falar do prole­
tariado, também deste “tipo novo”, dos países chamados socialistas,
que também saberá dizer a sua palavra). O itinerário da revolução
mundial nos reserva numerosas surpresas e não poucas “alterna­
tivas”.

NOTAS

' Cfr. Mao Tsé-Tung, O e u v re choisies, edição chinesa, em francês, t. IV pp


161- 162.
2 A “nova democracia” que o programa do PCC definia como etapa interme­
diária entre o regime do Kuomintang e a construção socialista não pode

610
ser considerada como uma etapa de desenvolvimento capitalista, embora
persistisse nela um setor capitalista privado (burguesia nacional). Como se
diria no informe do Comitê Central ao VIII Congresso do PCC (setembro
de 1956), “a fundação da República Popular da China marcou o fim, no
essencial, da etapa democrático-burguesa da revolução e o começo da revo­
lução socialista proletária; marcou o começo do período de transição da
nossa sociedade do capitalismo ao socialismo” (V l I I e C o n g r è s N a tio n a l d u
P a rti C o m m u n is te C h in o is. R e c u e il d e d o c u m e n ts , Pequim, 1956, p. 17).
3 A declaração de guerra ao Japão e a ofensiva contra o seu exército na
Mandchúria, imediatamente depois do lançamento das bombas atômicas ame­
ricanas, influiu indubitavelmente na mesma direção. Mas, como veremos, a
influência, sobre a revolução chinesa, das vitórias soviéticas na segunda
guerra mundial foi contraditória. Enquanto, por um lado, constituíam um
freio à intervenção do imperialismo americano, por outro, Stalin, apoiando-se
na força e no prestígio que estas vitórias lhe ofereciam, tentou forçar a polí­
tica do PCC no rumo da capitulação ante o Kuomintang, a fim de facilitar
o acordo de largo alcance que buscava com os Estados Unidos.
4 De acordo com Guillermaz (H isto ire d u P C C , cit., t. I, p. 297), os sovié­
ticos enviaram uns 300 oficiais e técnicos, liderados pelo general Cherbachev,
incluindo pilotos que utilizavam aparelhos soviéticos (EL 5 e EL 6).
s A p u d André Fontaine, H is to ir e d e la G u e r re F r o id e , cit., t. I, p. 433.
à Wang Ming fora, de fato, o máximo dirigente no período precedente à ascen­
são de Mao à chefia do partido. Era um homem de confiança da Inter­
nacional Comunista. Depois da sua destituição, foi para Moscou e só re­
gressou a Yenan em começos de 1938. Juntamente com outros quadros do
partido, confrontou-se com a política de Mao, defendendo maiores concessões
ao Kuomintang, a completa integração das unidades militares do partido ao
exército daquele e a aceitação da sua disciplina, etc. Considerava que a
guerra de resistência contra o Japão só podería ser dirigida pelo Kuomintang.
Numa palavra, as suas posições políticas, que expressavam o ponto de vista
de Moscou, assemelhavam-se às que os partidos comunistas europeus (à exce­
ção dos iugoslavos) implementaram durante a resistência anti-hitleriana:
“união nacional” sob a hegemonia da burguesia antifascista (cfr. Ju
Chiao-Mu, T re in ta A n o s d e i P a rtid o C o m u n is ta d e C h in a , Pequim, 1957,
pp. 72-73 e Guillermaz, o p . cit., t. I, pp. 358-359). No calor da atual po­
lêmica sino-soviética, K o m m u n is t, revista oficial do PCUS, confirmou que
Wang Ming e outros foram atacados naquela época por defender os pontos
de vista da Internacional Comunista e do partido soviético (cfr. o número de
junho de 1968, “Acerca de alguns problemas da história do PCC”).
7 “Ao longo destes anos — disse Mao, referindo-se a esse período, em seu
informe ao VII Congresso do PCC —, não houve, de fato, operações mi­
litares sérias sobre a frente do Kuomintang. As operações militares dos inva­
sores japoneses fo r a m d irig id a s e s se n c ia lm e n te c o n tra as re g iõ es lib e rta d a s"
(cfr. o t. IV das O b ra s esc o lh id a s, ed. francesa, p. 309. Sublinhados nossos).
8 Em todos os documentos conhecidos do PCC não há a menor referência
à ajuda militar soviética neste período — como, tampouco, no período ulte­
rior da guerra contra o Japão. O mesmo se verifica nos materiais soviéticos.
É claro que, se esta ajuda tivesse existido, os soviéticos não deixariam de
mencioná-la na atual polêmica, em textos do tipo indicado na nota 6.
9 Cfr. K o m m u n is t, junho de 1968, pp. 93-108.
to Esta apreciação de Guillermaz (o p . cit., t. I, p. 323), apoiada em meticulosa
documentação, coincide com as versões oficiais chinesas.

611
" Cfr. O b ra s esc o lh id a s, ed. chinesa (em francês), t. II, p. 423. A organização
militar construída pelo PCC no curso da guerra contra o Japão constituía
um sistema muito complexo e diversificado, que englobava o 8.° Exército e
o novo 4.° Exército, organizados à base de divisões, regimentos e companhias
(que gozavam de grande autonomia operacional) que não estavam adstritas a
um território determinado; unidades territoriais que operavam exclusivamente
num espaço delimitado, no interior das províncias ocupadas pelos japoneses;
milícias populares, forma massiva de organização armada, de caráter local,
geralmente com armamento muito rudimentar, etc. Por volta do VII Con­
gresso (primavera de 1945), o exército popular propriamente dito contava
com 910.000 homens e as milícias com mais de 2.200.000. Neste momento,
as regiões libertadas incluíam uma população de 95 milhões de habitantes.
A região fronteiriça de Chensi-Kansu-Ninghsia, onde estava instalado o
quartel-general de Mao (Yenan), situada fora do território ocupado pelos
japoneses, era apenas uma pequena fração dessas zonas libertadas — o
grosso delas encontrava-se nas províncias teoricamente submetidas ao invasor
e nas que estavam sob o regime do Kuomintang.
12 Cfr. Ju Chiao-Mu, o p . cit., pp. 68-69.
'3 Complementando o que se disse na nota 8, convém assinalar que Mao insistiu
reiteradas vezes, em seus discursos e artigos, sobre a absoluta falta de ajuda
exterior. Cfr., por exemplo, o tomo IV das suas O b ra s e s c o lh id a s (edição
francesa), pp. 310-314, e, particularmente, o seu discurso em uma reunião de
quadros do partido, celebrada em Yenan a 13 de agosto de 1945; nele, Mao
afirma: “Ao longo dos últimos oito anos, o povo e o exército das nossas
regiões libertadas, se m q u a lq u e r a ju d a e x te r n a , c o n ta n d o u n ic a m e n te c o m as
su a s p r ó p r ia s fo rç a s, libertaram vastas áreas do país e contiveram e atacaram
a maior parte das forças invasoras japonesas, bem como a quase totalidade
das tropas dos fantoches” (sublinhados nossos; “tropas dos fantoches” eram
as dos colaboracionistas chineses).
'4 Cfr. o “livro branco” americano U n ite d S ta te s R e la tio n s w ith C h in a , p. 73.
15 A p u d André Fontaine, o p . cit., t. I, p. 493 (Hopkins foi o principal conse­
lheiro de Roosevelt em assuntos internacionais).
'4 A p u d Herbert Feis, T h e C h in e T a n g le , Princeton University Press, 1953,
p. 140.
17 Cfr. André Fontaine, o p . cit., t. I, p. 440.
^ A 10 de agosto de 1945, Chu Teh, comandante-em-chefe do exército popular,
conclamou as tropas japonesas e as dos regimes chineses pró-Japão a depor
armas. A quase totalidade das tropas japonesas ignorou esta conclamação e
obedeceu ao “Comando Supremo Aliado” (SCAP) — vale dizer, ao Alto Co­
mando conjunto anglo-americano —, que lhes prescreveu não efetuar a ren­
dição senão diante das tropas governamentais (de Chiang Kai-Chek) e as res­
ponsabilizou pela manutenção da ordem até a capitulação. Como conseqüência
disto, a maior parte do material de guerra japonês irá cair nas mãos de
Chiang, acrescentando-se ao enviado pelos americanos para equipar 39 di­
visões modernas. Nunca — de acordo com Guillermaz, de quem tomamos
estes dados (cfr. o p . cit., t. I, p. 370) — um governo chinês dispôs de armas
tão numerosas, modernas e potentes. Uma avaliação aproximada fixa em 200
as divisões com que Chiang contava em finais de 1945, além de cerca de
500 aviões. Durante toda a guerra civil, os comunistas não tiveram aviação.
O equipamento industrial que os soviéticos retiraram da Mandchúria foi
avaliado — conforme Guillermaz (op. cit., t. I, p. 371) — em 858 milhões
de dólares (valor absoluto) ou 2 bilhões de dólares (preço de substituição).
Este ato — aduz o historiador francês — permite pensar que os russos pla­

612
nejavam impor a sua cooperação econômica aos futuros ocupantes desta
região, tão importante para a economia siberiana”.
Em relação às cidades que os soviéticos poderiam ter entregue ao exército
popular ou facilitado a este a sua ocupação, Guillermaz observa: “A posse
das grandes cidades destas regiões [China do Norte e Mandchúria] Pequim,
Tientsin, Tsinan, Tsingtao, Taiyuan, Kagan —, para falar apenas da China
do Norte, evidentemente teria fortalecido os comunistas em face do governo e
internacionalmente” (ib id ., p. 368). Mas o tratado sino-soviético “reconhecia
explicitamente, nas suas condições posteriores anexas, a soberania do governo
de Nanquim sobre a Mandchúria” (ib id ., p. 371). O mesmo historiador
acrescenta: “Os russos projetavam retirar as suas tropas da Mandchúria, em
outubro e novembro [de 1945], por etapas, deixando o campo livre ^para
os comunistas chineses. Atendendo a um pedido do governo central [Chiang],
cujos preparativos para a reocupação total ainda estavam em andamento, eles
consentiram em retardar a evacuação até abril de 1946” (ibid., p. 372). Vale
dizer: o exército soviético protegeu as cidades da Mandchúria do perigo de
caírem nas mãos dos comunistas chineses até o momento em que as tropas
de Chiang, transportadas por navios e aviões americanos, chegaram lá.
A p u d Dedijer, o p . cit., p. 334. Nesta reunião com os dirigentes comunistas
iugoslavos e búlgaros, Stalin queria obrigar os primeiros a suspender a
ajuda à insurreição grega, argumentando que ela estava condenada à derrota.
Substancialmente, Stalin dizia: “Não tenho nenhum inconveniente em reco­
nhecer o meu erro no caso chinês e, portanto, vocês não devem tê-lo para
reconhecer o seu no caso grego”.
Por outro lado, não se pode descartar que Stalin tivesse interesse em
fazer chegar aos ouvidos americanos a ausência de responsabilidades suas na
política dos comunistas chineses.
2 0 cfr. o t. IV, pp. 51 e 69, da edição chinesa (em francês) das O b ra s esco lh id a s

de Mao.
21 Tomamos a referência de M u n d o O b r e r o (janeiro de 1946) que, por seu turno,
reproduz a versão da imprensa soviética.
A missão de Marshall na China, evidentemente, deve ser vista no marco
deste objetivo comum dos “três grandes”. A política soviética e a americana
em face da China perseguiam, é claro, objetivos diferentes no interior dessa
convergência na solução “união nacional”. Tratava-se de desenvolver a luta
por influências no marco desta solução e prevenir as complicações inter­
nacionais que a guerra civil pudesse acarretar.
2 2 A p u d André Fontaine, o p . cit., t. I, pp. 447-448.

2 3 Cfr. Mao, O e u v r e s ch o isies, edição francesa, t. IV, p. 318. O general Scobie


comandava o corpo expedicionário inglês que combatia a resistência grega
em 1944.
24 Ib id ., p. 344.
25 Ib id ., pp. 278-279.
2 6 Cfr. Mao, O e u v r e s ch o isie s, edição chinesa, em francês, t. IV, pp. 53-54. A
política do PCC no período que precede imediatamente a capitulação ja­
ponesa está exposta no informe de Mao ao VII Congresso do partido. A
linha de frente nacional única antijaponesa se concretiza no objetivo de for­
mar um governo de coalizão que reúna todas as forças e correntes capazes
de apoiar o programa da “nova democracia” elaborado pelo partido, no qual
medidas de conteúdo democrático-burguês (reforma agrária à base do prin­
cípio “a terra a quem a trabalha”, etc.) se conjugavam com outras que —
segundo a expressão de Mao — continham “elementos de socialismo”: criação,
na economia, de um setor do Estado (à base, fundamentalmente, da naciona­

613
lização do capital estrangeiro e do da burguesia “compradora”) e de um setor
cooperativo. O caráter socialista dessas medidas derivava de que o Estado se
encontraria sob a “hegemonia do proletariado” — o que, na prática, signi­
ficava a direção do PCC. Naturalmente, tal governo de coalizão e tal pro­
grama eram totalmente incompatíveis com o Kuomintang, ainda que, no
interior deste, existissem elementos progressistas susceptíveis de apoiá-los.
No curso das negociações iniciadas após a capitulação do Japão, Mao
fez uma série de concessões, a mais importante das quais era a formação de
um governo de coalizão no qual o PCC, mesmo tendo uma forte represen­
tação, estaria em minoria em relação ao Kuomintang. Mas esta concessão era
mais aparente que real, uma vez que Mao não cedeu um só milímetro no
tocante ao controle do partido sobre as suas forças armadas e à integridade
do poder revolucionário nas zonas libertadas — o que a direção do
Kuomintang, obviamente, não podia aceitar. Daí a inevitabilidade da ruptura.
27 Cfr. p. 445 e a nota 184 do capítulo 1 deste volume. No curso da revolução
cultural, foram feitas inúmeras alusões às posturas capituladoras de alguns
dirigentes do partido nesse período — mas nada se disse da intervenção de
Stalin no problema.
28 Cfr. a nota 182 do capítulo 1 deste volume. O sublinhado é nosso.
29 Cfr. Mao, O e u v r e s choisies, edição francesa, t. IV, p. 58. A 4 de maio
de 1919, em Pequim, ocorreu uma manifestação estudantil de protesto contra
a decisão da Conferência de Paz, reunida em Paris, que transferia da Alemanha
para o Japão os direitos sobre a província chinesa de Chandung. A mani­
festação deu nome a um movimento político-cultural dirigido contra o velho
regime e as velhas idéias, movimento que já se desenvolvia desde alguns anos
e que, com a manifestação, adquiriu um caráter mais radical e massivo.
80 Cfr. a versão do informe de Liu Chao-Chi incluída em L e M a r x is m e e t l ’A sie ,
de H. C. d’Encausse e S. Schram, ed. cit., pp. 361-365. As citações que se
seguem foram extraídas desta fonte.
31 Do artigo de E. Zhukov, “Alguns problemas da luta nacional e colonial
depois da segunda guerra mundial”, publicado na revista soviética Q u e stõ e s
d e E c o n o m ia , n.° 9, 1949; citamos segundo a reprodução contida na obra re­
ferida na nota anterior.
82 Cfr. G. V. Astafiev, “De colônia a democracia popular”, incluído na antologia
sobre A L u ta d e L ib e rta ç ã o N a c io n a l d o s P o v o s da Á s ia O rie n ta l, publicada
pela Academia de Ciências da URSS em 1949, e transcrito na obra citada na
nota 30, pp. 375-378.
38 Cfr. L e M a r x is m e e t l ’A s ie , cit., pp. 381-382. Na pág. 98 desta obra se
informa que o resumo dos debates desta reunião, publicado pela FSM, omite
as intervenções de alguns delegados asiáticos que aprovavam as teses chinesas.
34 Cfr., por exemplo, os artigos de Robert Guillain em L e M o n d e , 20 e 28 de
dezembro de 1949, sob o titulo geral de “A China sob a bandeira vermelha”.
35 Cfr. Marius Magnien, C a h iers d u C o m m u n is m e , março de 1950, p. 57.
w “Sobre a ditadura do proletariado”, 30 de junho de 1949; incluído no
tomo IV das O b ra s E sc o lh id a s, edição chinesa, em francês, p. 442.
37 Esta habilidade tática de Mao foi favorecida, sem dúvida, porque, durante a
guerra antijaponesa e a segunda guerra mundial, as contradições entre a
política maoísta e a staliniana não afetavam de modo grave os interesses
soviéticos. Tais contradições poderiam tomar dimensões de antagonismo se.
no período seguinte à capitulação do Japão, o espírito de Ialta perdurasse
entre Washington e Moscou — mas a rápida deterioração das relações entre

614
as duas superpotências diminuiu a relevância das divergências entre Mao
e Stalin.
38 Tomamos o dado do manual utilizado na Escola Superior do PCUS, já tão
citado, H isto r ia d e i M o v im ie n to O b r e ro y N a c io n a l-L ib e r a d o r In te rn a c io n a l,
t. III,’p. 250.
39 cfr. artigo citado na nota 35, cujo título é “A vitória da política staliniana

na China”.
40 Cfr. L a P o litiq u e É tra n g è re S o v ié tiq u e . T e x te s O ffic ie ls (1 9 17-1967), Moscou,
1967, pp. 131-134. O reconhecimento da “independência” da Mongólia Ex­
terior ficou registrado numa troca de notas entre Vichinski e Chu En-lai.
41 Em seu livro C h in e -U R S S : L a F in d ’u n e H é g é m o n ie (Plon, Paris, 1964),
François Fejto, apoiando-se no ensaio “I chose Truth’, de Severyn Bialer,
publicado em E a st E u r o p a (julho de 1956), dá a seguinte informação: “No
curso de uma importante reunião do Comitê Central do Partido Comunista
da União Soviética, realizada em julho de 1955, quando Molotov se opunha
à aproximação com a Iugoslávia, Mikoyan fez uma série de críticas às con­
cepções do velho chefe da diplomacia de Stalin. A este respeito, citou pa­
lavras de Mao Tsé-Tung que, durante as conversações de Pequim, de 1954
[entre Kruschev e Mikoyan, de um lado, e dirigentes chineses, de outro],
criticou duramente as sociedades mistas, considerando-as como ‘uma forma
de interferência russa na vida econômica da China’ e evocou a vergonha que
ele mesmo, Mikoyan, sentira ao ouvir falar do comportamento arrogante dos
especialistas soviéticos no estrangeiro” (p. 93).
42 Cfr. o documento citado na nota 40, pp. 135-136. A comparação com o
crédito concedido à Polônia, tomamo-la da obra de Fejto citada na nota ante­
rior, p. 73.
43 “Novas considerações sobre a experiência histórica da ditadura do proleta­
riado”, J e n m in jip a o (D iá rio d o P o v o ), 29/XII/1956; citamos segundo a versão
francesa publicada num panfleto do PCF em 1957, p. 10.
44 No informe de Lin Piao ao IX Congresso do PCC (abril de 1969), bem como
em outros textos da revolução cultural, Liu Chao-Chi serve como bode expia­
tório dos pecados de Stalin, tanto no período da guerra antijaponesa como
no da terceira guerra civil revolucionária (1946-1949) e na fase posterior à to-
mada do poder, até a morte de Stalin. Independentemente do que possa haver
de certo nas posições políticas que se atribuem a Liu (e não é possível
aceitá-las como verdadeiras, pelo menos enquanto ele não tenha a oportu­
nidade de defender-se publicamente), o fato é que elas coincidem exatamente
com a linha que Stalin tentou impor ao PCC naquelas várias e sucessivas
etapas Devemos aproveitar esta nota para assinalar também que a acusaçao
lançada contra o ex-presidente da República Popular da China no citado
informe - a de ser agente do inimigo, traidor da classe operária e lacaio do
imperialismo desde a época da primeira guerra civil revolucionária (1925-1927)
— reproduz o velho filme das acusações de Stalm contra Trotski, Bukharin,
Zinoviev, etc.
45 Cfr. Fejto, o p . c it. na nota 41, pp. 88-89.

615
5 . NOVO EQUILIBRIO MUNDIAL

Os “combatentes da paz”

Como destacamos na análise do informe de Zdhanov (cfr. pp.


494-502), a nova “linha geral” que Stalin impôs aos partidos comu­
nistas do Ocidente, em 1947, não significava a correção do oportu­
nismo precedente — antes, prolongava-o sob outras modalidades.
Representava a adaptação da política desses partidos à resposta que
o Kremlin procurava dar ao rumo expansionista de Washington.
Os objetivos socialistas, mais uma vez, foram adiados para as calen­
das gregas. Primeiro, foram postergados em prol da grande coalizão
anti-hitleriana; agora, e,am-no em nome da grande frente antiame-
ricana que o Kremlin tentava construir a fim de impor à Casa
Branca um acordo mundial, baseado na divisão das áreas de influên­
cia — acordo que fosse satisfatório para os interesses soviéticos.
A idéia tática essencial da nova linha consistia em explorar a fundo
as contradições entre a expansão americana e as burguesias nacionais
européias ou de outras latitudes, em agrupar — como dizia Zdhanov
— “todas as forças dispostas a defender a causa da honra e da
independência nacional” e mobilizar todos os “partidários da paz”
contra o perigo de uma terceira guerra mundial. Tratava-se, em
suma, de mobilizar tudo o que era mobilizável para enquadrar nos
trilhos da razão os chefes americanos e obrigá-los a empreender nova­
mente o caminho de Ialta. E isto permitiria que os partidos comu­
nistas ocidentais retomassem o caminho da união nacional, seguido
até 1947 — a via parlamentar e pacífica para o socialismo.
Pelas razões que expusemos (cfr. pp. 446-447), a tentativa de ex­
plorar as contradições interimperialistas obteve parcos resultados, pelo
menos até a morte de Stalin. Os apelos à “ defesa da causa da honra
e da independência nacional” não ressoaram além das fileiras comu­
nistas, salvo no caso de reduzidos círculos intelectuais. Da nova
linha, o único aspecto que ganhou alguma densidade, ainda que
num plano quase exclusivamente propagandístico, foi a “luta pela
paz”. A crise de Berlim (junho de 1948-maio de 1949), a con­
clusão do Pacto Atlântico (abril de 1949), a concordância do Con­
gresso americano (setembro de 1949) em fornecer armas aos mem­
bros do Pacto num valor de 1,5 bilhões de dólares, o comunicado
da agência Tass (25 de setembro de 1949) confirmando a explosão

617
da bomba atômica soviética em abril daquele ano — a primeira
informação fora dada por Truman poucos dias antes — e esclare­
cendo que a URSS possuía a bomba desde 1947, a guerra da Coréia
(iniciada em junho de 1950) — estes e outros dados da “guerra
fria” foram agravando a tensão internacional e deram aparente con­
sistência ao perigo de uma nova conflagração mundial. Na reunião
do Centro de Informação dos Partidos Comunistas, realizada em
novembro de 1949, a “luta pela paz” e contra a ameaça de uma
“agressão direta” do imperialismo à União Soviética foi definida
como a tarefa central do movimento comunista, a que deviam subor­
dinar-se todas as outras e todos os objetivos. Na ordem das priori­
dades, à “luta pela paz” seguia-se imediatamente a “guerra fria”
contra o titoísmo. Ambas se vinculavam estreitamente, posto que o
titoísmo, como vimos, era considerado pelo “campo socialista” como
uma das principais bases do imperialismo americano na preparação
da agressão contra a União Soviética.
A organização do chamado “Movimento pela Paz” começou
em 1948. Em agosto daquele ano, celebrou-se na Polônia o Con­
gresso Mundial de Intelectuais pela Paz; em novembro, foi a vez do
Congresso Nacional dos “Combatentes da Paz” franceses — e, nos
meses seguintes, assembléias semelhantes se realizaram em vários
países europeus. Nos dias 20 a 25 de abril de 1949 reuniu-se, em
Paris e em Praga o I Congresso Mundial dos “Combatentes da
Paz”, com a representação de 72 países. Segundo os documentos do
congresso, nesta altura já existiam organizados cerca de 600 milhões
de “combatentes da paz”. Não é supérfluo esclarecer que, neste total,
estavam incluídos os “combatentes da paz” da URSS, da China e
das outras democracias populares, onde o simples fato de pertencer
à espécie humana era condição suficiente para ficar inscrito no
ardoroso exército pacifista. No resto do mundo, os “combatentes da
paz” reduziam-se, salvo pequenas variações, aos efetivos dos partidos
comunistas e das suas organizações de massa (sindicais, femininas,
juvenis, culturais, etc.). A participação de algumas personalidades
não comunistas do mundo científico e artístico, ao lado da inflação
propagandistica de cifras cuja exatidão era impossível controlar, podia
produzir nos mais ingênuos a impressão de que o movimento extrapo­
lava as fronteiras políticas e sociais da influência comunista. Na
realidade, as coisas eram diferentes e nos meios dirigentes dos par­
tidos comunistas havia a consciência deste fato. Salvo raras exceções,

618
üs “comitês pela paz” nas cidades, bairros, empresas, etc., compu­
nham-se de comunistas e simpatizantes.
A principal atividade dos “combatentes da paz” consistiu em
recolher assinaturas em incontáveis manifestos dirigidos à opinião
pública, aos governos, aos parlamentos, à Organização das Nações
Unidas, etc., reclamando a proibição da bomba atômica e o desar­
mamento geral, protestando contra o Pacto Atlântico e o rearma­
mento alemão, apoiando as sucessivas iniciativas da diplomacia so­
viética (a sincronia existente neste aspecto não deixava dúvidas sobre
a identidade do maestro da orquestra), etc. A “assinatura” era a
arma por excelência do “combatente da paz”. Em março de 1950,
0 comitê permanente do Congresso Mundial, reunido em Estocolmo,
decidiu lançar um apelo em prol da proibição da bomba atômica e
organizar o correspondente recolhimento de assinaturas. Colheram-se
500 milhões de assinaturas em 79 países. Nas listas figuravam as assi­
naturas de “toda a população adulta da URSS, de toda a população
adulta das democracias populares e as de 223 milhões de chineses” 2.
Enfim, 400 milhões de assinaturas nos 11 países onde os cidadãos
assinavam com o mesmo impressionante automatismo e unanimidade
com que votavam nas eleições pelas chapas únicas. Dos outros países
restantes vinham 100 milhões de assinaturas, das quais 31 milhões
correspondiam à França e à Itália (respectivamente, 14 e 17 milhões).
No resto dos Estados capitalistas, as cifras caíam desoladoramente:
2 milhões nos Estados Unidos, 2 milhões na Alemanha Ocidental,
1 milhão na Inglaterra, etc.3 Mesmo admitindo-se a autenticidade
de todas as assinaturas — hipótese excessivamente ingênua — , o
resultado, evidentemente, não era estimulante (observe-se que a cifra
oficial das assinaturas era inferior em 100 milhões à de “combaten­
tes da paz” que, segundo o I Congresso, não apenas existiam como
estavam organizados). No entanto, a operação foi qualificada pelos
seus promotores como um “autêntico plebiscito universal dos
povos” 4.
Enquanto os “combatentes da paz” recolhiam trabalhosamente
as assinaturas para o Apelo de Estocolmo, a guerra se iniciava na
Coréia. Em novembro de 1950 se reuniu em Varsóvia o II Congresso
Mundial da Paz, adotando um novo apelo aos povos. Às palavras de
ordem tradicionais (proibição da bomba atômica, desarmamento
geral, etc.) somava-se a que exigia o fim da guerra na Coréia. Como
se sabe, desde os primeiros dias do conflito coreano, a intervenção
norte-americana foi coberta com a bandeira da ONU — que, então,

619
encontrava-se sob o absoluto controle dos Estados Unidos — e com­
plementada com o envio de forças armadas de outros Estados mem­
bros da organização. No entanto, o II Congresso dos “combatentes
da paz” não viu nenhum inconveniente em dirigir-se à ONU para
pedir-lhe que “assumisse a alta missão de assegurar uma paz sólida
e duradoura, segundo os interesses vitais de todos os povos” 5. Nesse
momento, os “voluntários” chineses já haviam passado à ofensiva e
por volta de finais de dezembro as tropas americanas e outras forças
do corpo expedicionário da ONU se encontravam à beira do desastre.
Mas, cedendo à chantagem atômica, o objetivo de Stalin — ao qual,
na ocasião, submeteram-se chineses e coreanos — não levou em
conta a questão da vitória revolucionária na Coréia: jogou no fim das
hostilidades à base do statu quo anterior, ou seja, na divisão do país.
O movimento comunista, através do movimento da paz e diretamente,
não fez mais que pressionar por esta solução. O armistício na Coréia
devia facilitar o arranjo mundial perseguido por Stalin. Para este
objetivo apontava a decisão tomada pelo Conselho Mundial da Paz
(criado no II Congresso) em fevereiro de 1951: lançar um apelo em
prol da conclusão de um acordo de paz entre os “cinco grandes” e
organizar o correspondente recolhimento de assinaturas em apoio a
esta sugestão (que, pouco depois, foi assumida pelo governo sovié­
tico). Com o aumento da contribuição da “população adulta” da
União Soviética, da China e das democracias populares, nessa ocasião
o total de assinaturas chegou a 600 milhões.
Durante cinco anos (1948-1952), os congressos — nacionais e
mundiais — pela paz; as conferências, assembléias, comícios e fes­
tivais pela paz; os apelos, petições, resoluções pela paz; as centenas
de milhões de assinaturas (sempre as mesmas) pela paz — tudo isto
se sucedeu ininterruptamente, sob o combativo lema adotado pelo
II Congresso: “A paz não se espera, conquista-se!”. Conquista-se
através de assinaturas. O grande exército mundial de coletores de
assinaturas marchou de vitória em vitória, guiado pelo infalível ti­
moneiro da paz, cujo papel, nesta nobre cruzada, foi imortalizado
plasticamente pelo pintor Bielopolski: sobre o fundo de multidões
se erguia a figura de Stalin, numa mão a Caneta e noutra o Apelo
de Estocolmo, indicando à humanidade o caminho da paz sólida
e duradoura — a assinatura 6.
“O atual movimento pela paz — afirmou Stalin — propõe-se
mobilizar as massas populares em prol da luta pela conservação da
paz, para conjurar uma nova guerra mundial. Conseqüentemente,

620
não tende a derrocar o capitalismo e a instaurar o socialismo; limi-
la-se a fins democráticos de luta pela manutenção da paz. O atual
movimento pela conservação da paz se distingue do que existiu no
período da Primeira Guerra Mundial, o qual, dirigido para trans­
formar a guerra imperialista em guerra civil, ia mais longe e per­
seguia objetivos socialistas” 7. Acatando a linha staliniana, a fim de
secundar incondicionalmente a diplomacia soviética, realmente os
partidos comunistas embarcaram numa ação tipicamente pacifista,
que não apenas excluía os objetivos socialistas, mas também os
antiimperialistas. Os dirigentes dos principais partidos comunistas
da América Latina, por exemplo, opuseram-se a que o problema da
independência nacional fosse colocado nitidamente no interior do
movimento pela paz 8. Aplicavam a diretiva dada por Suslov (que,
após a morte de Zdhanov, fora encarregado pelo Birô Político do
Partido Comunista da União Soviética da direção operativa do movi­
mento comunista internacional) na reunião do Centro de Informação
dos Partidos Comunistas celebrada em novembro de 1949: “Toda
a atividade dos partidos comunistas deve subordinar-se a esta tarefa
central: assegurar uma paz sólida e duradoura” 9. No PCF, esta
“subordinação” se expressou, por exemplo, no “programa de sal­
vação nacional” adotado pelo XII Congresso do partido (abril de
1950). Não somente estava ausente a questão da alternativa socia­
lista, ainda que como perspectiva remota: abandonava-se também
o programa de nacionalizações e outras reformas democráticas des­
fraldado até 1947. O PCF apelava à constituição de uma “frente
única pela paz” na qual pudessem participar “os patriotas de todas
as opiniões políticas” 10. No VII Congresso do partido italiano, To­
gliatti afirmou que “o problema da paz [. ..] converteu-se no mais
importante de todos, e dele depende a solução dos outros”; por esta
razão, “o Partido Comunista, o mais forte partido de oposição ao
atual governo da burguesia italiana, está disposto a renunciar à opo­
sição, tanto no parlamento como nas ruas, em face de outro governo
que modifique radicalmente a política externa da Itália, subtraindo
o país das obrigações que inevitavelmente o levarão à guerra”. To­
gliatti sublinhou os efeitos benéficos que esta solução teria no plano
interno, porque implicaria a “distensão das relações entre os di­
versos grupos políticos e sociais” e permitiria a retomada da política
de união nacional. “Os elementos fundamentais da política que
propusemos ao país no fim da guerra — declarou o chefe do PCI
— continuam válidos, mesmo com a mudança das condições polí­

621
ticas”. Diferentemente de Thorez, Togliatti não eludiu a referência à
perspectiva socialista, mas fê-lo para assegurar que a via que se
propõe retomar “levará gradualmente à transformação profunda da
estrutura econômica” e, por isto, os objetivos socialistas do PCI
“não são inconciliáveis com a proposta de renunciar à oposição ante
um governo que pratique esta política de paz”. “ Para ser mais pre­
ciso e concreto — aduziu Togliatti —, afirmo que já existe uma
plataforma política para um movimento de defesa da paz e de trans­
formação das estruturas econômicas e sociais como o concebemos e
do qual depende, em nosso entender, o bem-estar da Itália. Esta
plataforma é a Constituição da República Italiana” 11. Em resumo,
os dois “grandes” do comunismo ocidental ofereciam ao movimento
operário, como única alternativa, o retorno ao caminho de 1944-
1945, o mesmo que desembocara na recuperação do capitalismo
europeu, na sua submissão aos monopólios americanos e no isola­
mento dos partidos comunistas.
Esta estratégia pacifista e reformista dos partidos comunistas
europeus, por outro lado, era singularmente irrealista. Dado o grau
de dependência econômica e militar em que se encontravam, em
relação a seu protetor americano, as suas respectivas burguesias, era
ilusório supor que qualquer fração delas poderia prestar atenção
aos cantos de sereia thorezianos e togliattianos. E, de fato, eles
caíram no vazio. A raiz desse irrealismo residia na errônea avaliação
staliniana do estado das contradições interimperialistas e intercapi-
talistas naquela fase. Na realidade, qualquer possibilidade de desen­
volvimento do capitalismo europeu — e, por conseqüência, de uma
política reformista — passava, então e inexoravelmente, pela depen­
dência em relação aos Estados Unidos. E toda luta efetiva contra a
dominação americana tinha que ser — objetivamente não podia dei­
xar de ser — anticapitalista, revolucionária, antipacifista. A idéia
de um capitalismo nacional, antiamericano, na área européia, era
então — como hoje — inteiramente utópica (o segredo do fracasso
gaullista está neste utopismo). Mas, dada a necessidade da diplo­
macia soviética de fomentar em todos os lugares a oposição à polí­
tica americana, e dado que o objetivo desta diplomacia — reconhe­
cimento recíproco das áreas de influência — era incompatível com
o desenvolvimento de uma política revolucionária nas áreas de in­
fluência americana, a única política possível dos partidos comunistas
europeus era a que efetivamente aplicaram. O seu irrealismo tradu­
ziu-se na combinação de um oportunismo direitista (quanto ao con­

622
teúdo) com um oportunismo sectário e às vezes aventureiro (quanto
às formas e métodos). O movimento pela paz, já o indicamos, era
apenas uma apresentação camaleônica do próprio movimento comu­
nista e suas filiais. No movimento pela paz não podiam participar
efetivamente outras forças pela simples razão de que ele devia ser
rigorosamente subordinado a todas as peripécias da política externa
soviética. Nele não se podiam colocar objetivos socialistas — como
se a alternativa socialista não fosse a condição mesma de uma paz
“sólida e duradoura” — porque contradiziam os objetivos que, nesta
etapa, eram propostos pela diplomacia soviética. Ao contrário, porém,
a condição de “combatente da paz” era incompatível com a simpatia,
ou a simples neutralidade, diante do titoísmo. Para lutar pela paz,
havia que se lutar contra o titoísmo. E entre as principais “provas”
levantadas acerca da existência de um compio imperialista para
agredir a URSS estavam os processos das democracias populares.
Um verdadeiro “combatente da paz” tinha que acreditar nesses pro­
cessos como se fosse um comunista. A social-democracia foi “des­
mascarada” — por sua colaboração com a política americana, não
por sua colaboração com a burguesia nacional — em termos que
recordavam os tempos do “ social-fascismo”. Procurou-se forçar e
politizar as greves econômicas, não em função de uma estratégia
global socialista, fundada nas condições nacionais, mas em torno da
campanha pelo desarmamento geral, contra a bomba atômica, etc.
A ineficácia das campanhas por assinaturas, o vazio em que caía
a política pacifista, conduziu em algumas ocasiões — é verdade que
poucas — ao extremo oposto, o de violentas ações de rua, para as
quais não existiam as mínimas condições políticas. Um exemplo
típico foi a manifestação organizada pelo PCF contra a presença,
em Paris, do general americano Ridgway, cujo único efeito foi pôr
em destaque o isolamento do partido, a inexistência de eco que a sua
abstrata cruzada antiamericana encontrava entre as massas12. Em
troca, o PCF não tentou nenhuma ação de massas de envergadura
contra a guerra colonialista levada a cabo pelo governo francês no
Vietnã.
A principal justificação dos dirigentes soviéticos para a política
que impuseram nesse momento ao movimento comunista era a exis­
tência de um grave risco de agressão contra a União Soviética (daí
derivava o perigo de uma terceira guerra mundial, só concebível se
as duas superpotências se enfrentassem diretamente). No seu informe
à reunião do Centro de Informação dos Partidos Comunistas, em

623
novembro de 1949, Suslov afirmou contundentemente: “O bloco
do Pacto Atlântico se propõe a agressão direta contra os Estados
democráticos da Europa Oriental e, antes de mais, contra a União
Soviética”13. E o tom geral do discurso induzia a pensar que se
tratava de um perigo imediato. Os governos de Washington e de
Londres, assegurava Suslov, “preparam freneticamente a nova guer­
ra”. Nos meses seguintes, a propaganda dos partidos comunistas
acentuou a nota alarmista. “A paz está por um fio”, declarou Thorez,
em abril de 1950, no XII Congresso do PCF. No entanto, a análise
de Suslov sobre a relação de forças na arena internacional, apresen­
tada no referido informe, não abonava particularmente tão dramáti­
cos prognósticos. A crer em Suslov, a situação do “campo impe­
rialista” não podería ser mais desastrosa: “A crise econômica se
desenvolve irremissivelmente, tanto na América quanto na Europa”;
“até os próprios partidários e os bajuladores mais ardentes do Plano
Marshall vêem-se obrigados a reconhecer o seu fracasso”; a econo­
mia da Europa ocidental “encontra-se em total desordem”; o anún­
cio oficial de que a URSS possuía a bomba atômica desde 1947
“provocou a perplexidade e a confusão nas fileiras do campo impe­
rialista e dos promotores da guerra, enfraqueceu este campo”; “apro­
fundam-se as contradições entre os países capitalistas e, em primeiro
lugar, as contradições entre os Estados Unidos e a Inglaterra”; a
“política aventureira” dos imperialistas “sofre uma derrota atrás de
outra”; “a falência da diplomacia atômica, o fracasso do Plano
Marshall e dos planos de sabotagem dos imperialistas na Europa
central e sul-oriental, a bancarrota da política americana na China
— tudo isto é apenas uma parte dos insucessos da política externa
dos imperialistas”. Em troca, o “campo da paz, da democracia e do
socialismo” marchava de vento em popa: “A economia da União
Soviética desenvolve-se ano a ano, mês a mês, numa linha ascendente
ininterrupta” e a “sua agricultura avança a passos seguros”; as de­
mocracias populares alcançam “grandes êxitos” no seu desenvolvi­
mento econômico e político, “consolidam as suas relações com a
URSS”; o movimento de libertação nacional dos países coloniais e
dependentes obtém “imensos triunfos” (a referência aqui feita por
Suslov à significação da vitória chinesa é um dos poucos dados
objetivos do seu informe). “Um importantíssimo triunfo do campo
da paz e da democracia, uma nova derrota do campo imperialista,
é a formação da República Democrática Alemã” ; outra “prova
magnífica” do fortalecimento do campo do Bem e do debilitamento

624
do campo do Mal é o “impulso do movimento operário, dirigido
pelos partidos comunistas, que se verifica em toda parte”, o “cresci­
mento da influência do partido comunista entre as massas” e, por
fim, a existência de “600 milhões de combatentes da paz, organi­
zados”. Conclusão: “A relação de forças na arena internacional
mudou radicalmente e continua mudando em favor do campo da paz,
da democracia e do socialismo”.
Suslov não menciona outro dado da relação de forças que,
todavia, tinha muito mais peso imediato e muito mais efetividade
que outros dos expostos: a notória superioridade militar da União
Soviética no cenário europeu. Não era preciso ser especialista em
assuntos militares para compreender que, em caso de guerra, os
soldados de Stalin não encontrariam obstáculos na sua marcha para
Oeste. E, para que não restassem dúvidas a este respeito, Thorez
encarregou-se de responder, em fevereiro de 1949 (semanas antes da
assinatura do Pacto Atlântico), à oportuna pergunta de “um cama­
rada” sobre “o que faria o partido se o exército soviético ocupasse
Paris?”. Os trabalhadores da França — respondeu, em síntese, Tho­
rez — os receberiam de braços abertos. Dias depois, pergunta análo­
ga, referida à Itália, foi dirigida a Togliatti, que respondeu de
forma semelhante14. Evidentemente, o interessante neste curioso epi­
sódio estava menos nas respostas que no anúncio implícito nas per­
guntas — e que, com toda a probabilidade, retratava o que ocorreria
em caso de guerra (em 1951-1952, filtraram-se para a imprensa
ocidental informações sobre os planos do Estado-Maior do Pacto
Atlântico na eventualidade de um “ataque da URSS”; todos previam
a rápida perda da França15. Em 1955, Kruschev revelaria a jornalistas
americanos que, em 1950, a URSS tinha superioridade militar sobre
o Ocidente16).
Suslov guardou um discreto silêncio sobre este aspecto funda­
mental da situação, mas, mesmo sem ele, a sua análise da relação
de forças não podia deixar de suscitar sérias dúvidas sobre a proba­
bilidade de os Estados Unidos e seus sócios se lançarem a uma “agres­
são direta” contra a URSS e as democracias populares. Para dissi­
pá-las, Suslov sustenta a seguinte tese: “ O fato de que o campo anti­
democrático, imperialista, se debilite não deve conduzir à conclusão
de que a ameaça de guerra se reduz. Esta conclusão seria profun­
damente errônea e perigosa. A experiência histórica mostra que,
quanto mais desesperada é a situação da reação imperialista, mais
são de temer as suas aventuras bélicas. As mudanças ocorridas na

625
relação de forças, em escala mundial, favoráveis ao campo da paz
e da democracia, provocam acessos de fúria no campo do imperia­
lismo e dos promotores da guerra”17. Mesmo que a “experiência his­
tórica” tenha costas muito largas, a sua instrumentalização no caso
em tela era muito grosseira: as duas agressões diretas sofridas pela
URSS não testemunham a favor da improvisada afirmação de Suslov;
ao contrário: em 1918, os imperialistas da Enterite não se encontra­
vam precisamente numa situação desesperada, e os imperialistas
hitlerianos atacaram em 1941 depois de haver ocupado toda a Eu­
ropa, acreditando-se invencíveis. Os chefes do capitalismo mundial
herdaram suficiente “experiência histórica” para não deixar que
“acessos de fúria” determinem a sua estratégia. Mas de alguma ma­
neira havia que se fundamentar a existência de um grave risco de
“agressão direta” contra a URSS por parte de um “campo imperia­
lista” que se debatia, segundo os ideólogos do Kremlin, numa irre­
missível crise econômica e cuja política ia de derrota em derrota.
E que, para completar — isto sim, era verdade — , perdera o mo­
nopólio atômico e estava em notável inferioridade no tocante a forças
militares convencionais, deixando-se de lado o fato de as opiniões
públicas estarem muito pouco dispostas (é o mínimo que se pode
dizer) a uma nova matança mundial, decorrido cerca de um lustro
desde a última.

Empate na “guerra fria”

Naqueles anos, o verdadeiro plano do imperialismo americano


não era lançar-se a uma aventura contra a impressionante potência
militar do bloco soviético; era estender a sua dominação a todo o
“mundo livre”, consolidar o capitalismo na Europa ocidental e
particularmente na Alemanha, colocando-a, ao mesmo tempo, sob
a sua dependência econômica, política e militar; era realizar idêntica
operação na bacia mediterrânea, intensificar a exploração da Amé­
rica Latina, penetrar nas esferas coloniais dos seus aliados, reprimir
o movimento revolucionário fora das fronteiras do bloco soviético
— numa palavra, assumir o papel de explorador e gendarme mundial.
Definitivamente, o objetivo principal da política americana era con­
solidar o “campo imperialista”, definido por Zdhanov, aproveitando
— é claro — todas as oportunidades para minar subterraneamente
o “campo” adversário (quanto a este segundo aspecto, é forçoso

626
reconhecer que o melhor auxiliar dos serviços de Allen Dulles foi
a política staliniana nos países da área de projeção soviética). Mas
a estratégia planetária de Washington incluía também, como a de
Moscou, a busca de um compromisso entre as duas superpotências.
O problema, em última instância, consistia em que um tal compro­
misso era impossível enquanto as partes não chegassem a uma apre­
ciação realista e, pois, similar, da relação de forças. Coisa que, nos
primeiros anos do pós-guerra, resultava difícil, dada a revolução
operada na técnica e nas doutrinas militares em função da arma
atômica e da situação de extrema instabilidade política criada em
numerosas regiões do globo. A “guerra fria’’ foi uma espécie de
exploração, de sondagem, para chegar a um conhecimento mais exato
das forças e das disposições do adversário. Nos Estados Unidos não
faltaram generais e políticos aventureiros que preconizaram o lança­
mento puro e simples da bomba atômica sobre os centros nevrálgicos
soviéticos — mas esta não era a política oficial. Para os que
elaboravam e aplicavam a política oficial, conscientes da enorme
potência militar representada pelo bloco da União Soviética, China
e democracias populares européias, a bomba atômica era um instru­
mento de “dissuasão”. Não apenas, e nem tanto, para dissuadir os
chefes soviéticos de uma iniciativa direta contra as posições ociden­
tais (eventualidade improbabilíssima para todo aquele que conhecesse
minimamente os fundamentos, a doutrina e a prática da política
externa soviética), mas sobretudo para dissuadi-los de orientar o
movimento comunista — dado que eram os seus verdadeiros orien­
tadores — numa direção revolucionária; para dissuadi-los de esti­
mular e ajudar praticamente as lutas revolucionárias onde elas
surgissem. A Grécia foi o caso mais ilustrativo, mais escandaloso,
mas não o único, da eficácia de que, quanto a este aspecto, a “dis­
suasão” deu provas. Num plano mais geral, toda a política de “luta
pela paz”, de subordinação completa da atividade dos partidos co­
munistas à tarefa central de manutenção da paz, esteve dominada
pela chantagem atômica. De maneira igual, toda a política ameri­
cana esteve dominada pela orientação de evitar a todo custo um
conflito armado direto com o poderio militar do bloco soviético.
Os dois “lances” mais sérios no curso da “guerra fria”, os que
deram ao mundo a impressão de se estar à beira de um conflito
maior, foram a crise de Berlim e a guerra da Coréia. Na realidade,
ambos deixaram clara a firme determinação das duas potências
tanto para conservar as posições conquistadas na Segunda Guerra

627
Mundial como para não tentar alterá-las recorrendo ao conflito arma­
do entre si. Às medidas americanas para integrar a Alemanha
Ocidental no bloco político-militar constituído com o Pacto Atlântico,
Stalin respondeu com o bloqueio da zona Oeste de Berlim. O general
Clay propôs quebrá-lo com um comboio armado, mas, em Washing­
ton, decidiu-se evitar toda medida que pudesse provocar um conflito
bélico, optando-se pela organização do abastecimento da “sua” Berlim
através da famosa ponte aérea. As autoridades soviéticas não toma­
ram nenhuma providência militar para impedi-lo. Num primeiro mo­
mento, consideraram que o abastecimento da zona adversária não
poderia ser assegurado por este procedimento. Quando, ao cabo de
alguns meses, comprovaram o êxito do processo, preferiram negociar.
O bloqueio foi suspenso em maio de 1949 ,8. O “lance” da relação
de forças na “frente européia” terminou em empate.
O segundo conflito maior — o mais grave — da “guerra fria”
foi o da Coréia. Ainda não é possível saber com inteira segurança
quem tomou a iniciativa das hostilidades'9. As forças militares so­
viéticas e americanas haviam se retirado do país há mais de um ano,
ali permanecendo apenas equipes de conselheiros e instrutores, mas
é evidente que Washington controlava o regime reacionário de Syng-
mai Rhee, ao sul do paralelo 38, enquanto Moscou dava a última
palavra nas decisões do regime revolucionário instaurado no Norte.
Se for verdade — e isto é o mais provável, a julgar pelos dados dis­
poníveis — que a iniciativa coube aos nortistas, ela estava perfeita­
mente justificada a partir de um ponto de vista revolucionário e
nacional. E o fulminante avanço do exército popular até o extremo
Sul da península evidenciou a debilidade do governo tutelado pelos
americanos. Mesmo supondo-se que a primeira “provocação” na
linha divisória tenha sido dos sulistas, a resposta avassaladora e
massiva dos nortistas, todo o desenvolvimento da sua ofensiva, colo­
cou em destaque que a deliberação de libertar o Sul do país pelas
armas fora tomada muito antes, com a operação cuidadosamente
preparada. E isto não teria sido possível sem o acordo e a colaboração
de Moscou. Enquanto provas documentais não demonstrem o con­
trário, a hipótese que parece a mais plausível é a de que Stalin
decidiu explorar as forças e as disposições americanas no Extremo
Oriente soviético, servindo-se das legítimas aspirações das forças
revolucionárias coreanas no sentido de unificar o país. Possivelmente,
ele se propôs testar as declarações oficiais americanas, segundo as
quais o Sul da Coréia não estava incluído no “perímetro defensivo”

628
dos Estados Unidos20. Porém, quando Washington resolveu intervir,
impondo, ademais, a interferência das Nações Unidas em favor dos
sulistas, a posição do Kremlin se tornou muito prudente. Nem mesmo
proporcionou apoio aéreo aos nortistas, cujas forças foram derrota­
das sobretudo graças à ação da aviação e da frota americanas. Indu­
bitavelmente de acordo com Moscou, o governo de Mao divulgou
que só interviria se as tropas de MacArthur ultrapassassem o paralelo
38, o que significava propor a solução do conflito à base do retorno
ao statu quo ante. Mas, então, foi Washington quem se decidiu a
“jogar” com as forças e as disposições soviéticas, arrancando da
ONU a deliberação de prosseguir avançando até a fronteira sino-
coreana. A intervenção dos “voluntários” chineses conduziu nova­
mente as operações para o Sul do paralelo 38 e levou à beira do
desastre o exército do fanfarrão MacArthur. Este propôs que se
lançassem bombas atômicas sobre a Mandchúria, e Moscou fez saber
que, se isto ocorresse, colocaria em ação as suas forças. Washington
destituiu MacArthur, apesar da sua auréola, diante da opinião pú­
blica norte-americana, de herói da campanha do Pacífico. E Moscou
não ofereceu à infantaria chinesa o apoio aéreo que teria permitido
lançar ao mar as tropas imperialistas. Estas puderam se recompor e
voltar de novo ao paralelo 38. A 10 de julho de 1951 iniciaram-se
as negociações para um armistício. Decorreram ainda dois anos até
se chegar a um acordo, durante os quais prosseguiu esta estranha
guerra em que nenhum dos contendores queria ganhar. Resumindo:
o “jogo” da relação de forças entre os dois blocos na “frente
asiática” terminou também com um empate, como acontecera na
“frente européia”. Mas o seu preço foi de quase 2,5 milhões de
mortos e feridos (cerca de 1 milhão de chineses e 1 milhão de
coreanos).
Na segunda metade de 1951 e ao longo de 1952, as duas super­
potências começaram a ter uma idéia clara das respectivas forças
e disposições, do novo equilíbrio mundial que se criara. Em primeiro
lugar, equilíbrio militar. Os americanos viram potenciado o seu poder
de “dissuasão” com o domínio da bomba de hidrogênio, mas já não
detinham o monopólio atômico e era evidente que logo os soviéticos
chegariam a possuir a bomba H. Por outro lado, a entrada da Re­
pública Popular da China em cena aumentava ponderavelmente a
superioridade do bloco soviético em termos das forças militares con­
vencionais. Em segundo lugar, equilíbrio político. As áreas de influ­
ência consideradas vitais por cada uma das superpotências estavam

629
politicamente garantidas. Duas Europas, duas Alemanhas. Nenhum
perigo revolucionário imediato para o capitalismo euro-ocidental,
que iniciava um período de novo desenvolvimento com a ajuda do
“fracassado” Plano Marshall. E, na área de projeção soviética, toda
oposição parecia sufocada. A “guerra fria” contra a heresia iugoslava
fracassara inteiramente e a Moscou não restava outra solução senão
adaptar-se ao fato consumado. Sobrava o mundo colonial, em plena
efervescência, mas nele os interesses das duas superpotências ainda
não se enfrentavam diretamente. Era a hora da negociação. Em
abril de 1952, Stalin declarou que o perigo da guerra diminuíra e
poderia ser útil um encontro dos chefes das grandes potências21. Em
setembro, afirmou que as contradições entre os países capitalistas
eram “praticamente” mais fortes que as contradições entre o campo
do socialismo e o do capitalismo; a perspectiva de guerras entre os
países capitalistas era mais provável que a de uma guerra dos países
capitalistas contra os socialistas22. Em dezembro, mostrou-se favorá­
vel à idéia de uma negociação com a nova administração americana
(Eisenhower acabava de ser eleito presidente)23. Da “guerra fria”
estava-se transitando para a “coexistência pacífica”. A morte de
Stalin e a substituição na presidência americana aceleraram este
processo, mas não foram a sua causa essencial, embora seja indis­
cutível que os sérios problemas internos criados para os chefes
soviéticos com a morte de Stalin tenham pesado consideravelmente
no giro sofrido pela política exterior do Kremlin a partir de 1953,
giro que, conforme a tradição, determinou uma nova viragem na
linha geral do movimento comunista.

Balanço do período do Centro de Informação dos


Partidos Comunistas

Depois do XX Congresso do PCUS, a atividade do Centro de


Informação dos Partidos Comunistas começou a ser objeto de crí­
ticas no movimento comunista. Seguindo a norma tradicional, não
houve nenhuma discussão sobre o problema, mas em documentos
dos partidos, declarações dos dirigentes, trabalhos históricos, etc.,
formularam-se avaliações com teor reprobatório, cujo conteúdo pode
ser resumido em uma delas, tomada de fonte soviética autorizada:
“ Na atividade do Centro de Informação dos Partidos Comunistas logo
se manifestaram tendências negativas. Sob a influência das colocações

630
dogmáticas de Stalin acerca do caráter da nossa época, acerca dos
problemas da paz, da guerra e da revolução, acerca das relações
entre comunistas e social-democratas, acerca do papel da burguesia
nacional, etc., diversos partidos estereotiparam a sua tática, come­
tendo por vezes sérios erros na direção da construção socialista nos
países de democracia popular ou na direção do movimento operário
e do movimento de libertação nacional. A política do diktat e da
arbitrariedade, própria do culto da personalidade, atentou contra
os princípios marxistas-leninistas das relações entre os partidos co­
munistas, ocasionou graves prejuízos a todo o movimento comunista,
travou a elaboração criadora dos problemas atuais do movimento
operário internacional e do movimento de libertação nacional e
isolou os partidos comunistas das massas trabalhadoras 24. Os pres­
supostos teóricos e políticos implícitos nesta crítica têm pouco a ver
com os da nossa análise25. Mas o simples fato de que ela tenha sido
formulada publicamente é revelador das proporções da regressão da
grande maioria dos partidos comunistas no período do Centro de
Informação dos Partidos Comunistas.
O auge geral do movimento, resumido no primeiro capítulo
deste tomo, a partir de 1947 converteu-se, com raras exceções, em
retrocesso geral. A principal exceção, como já vimos, teve dimensão
histórica: o triunfo da revolução chinesa. Outra exceção: a guerra
nacional revolucionária dos comunistas vietnamitas, somente com o
apoio direto dos comunistas chineses. No interior do capitalismo
ocidental, apenas o Partido Comunista Italiano conseguiu conservar
os seus efetivos e a sua influência. Exceto estes três casos, é difícil
encontrar um partido comunista que, no período, não tenha decli­
nado. O outro “grande” do comunismo ocidental perdeu cerca da
metade dos seus filiados. Os partidos comunistas no poder, no âm­
bito da área de projeção soviética, saíram do período profundamente
debilitados, como o provaram as crises de 1956. O fenômeno atingiu
também a União Soviética, onde as latentes esperanças de renovação,
emergentes ao fim da guerra, foram defraudadas, abrindo o espaço
para uma apatia política sem precedente. Inclusive na China, a evo­
lução do partido nos anos seguintes à vitória teve um nítido caráter
regressivo, em comparação com a sua trajetória anterior. Entretanto,
enquanto no mundo capitalista a deterioração do movimento comu­
nista se manifestou claramente, nos países “socialistas ela perma­
neceu encoberta até o XX Congresso do PCUS, sob a fachada do
Estado ditatorial burocrático e a mistificação propagandistica do de-

631
senvolvimento real. Os efetivos progressos da reconstrução econômica
e da industrialização permitiam dissimular as contradições e os es­
trangulamentos que se acumulavam. Tratou-se, portanto, de uma
regressão geral, mundial, do movimento comunista que, vista a partir
da perspectiva atual, aparece em sua verdadeira significação: não foi
um fenômeno conjuntural, mas o começo do declínio histórico irre­
versível do partido comunista de tipo staliniano. As causas profundas
residiam em toda a história deste partido, mas, naquele período —
como em cada um dos precedentes e dos ulteriores —, adquiriram
uma forma concreta, peculiar.
A nível político geral, a causa primeira do retrocesso, fora das
fronteiras do campo socialista”, parecia ser a ofensiva das forças
reacionárias, encabeçadas pelo novo aspirante ao papel de gendarme
universal. Na realidade, esta ofensiva — a sua própria possibilidade,
seus êxitos maiores ou menores conforme os países — explica-se
fundamentalmente pela política de claudicações ante a coalizão an­
glo-americana e as burguesias “antifascistas” seguida no período pre­
cedente, política que debilitou o impulso adquirido pelo movimento
de massas no quadro da vitória antifascista e minou interiormente a
capacidade de ação revolucionária que ainda se abrigava nos par­
tidos comunistas. A via do eleitoralismo, do cretinismo parlamentar,
das ilusões na perenidade da “grande aliança” — numa palavra, a
via da colaboração de classes em escala nacional e internacional —
desarmou o movimento, desmoralizou as novas gerações de lutadores
que ingressaram nas suas fileiras nos anos da Resistência e da Li­
bertação. Por isto, a ofensiva do imperialismo americano e das bur­
guesias nacionais — soterrada em 1944-1945, aberta a partir de
1947 — praticamente não encontrou oposição, salvo no terreno das
reivindicações econômicas cotidianas. Os dois únicos partidos comu­
nistas do capitalismo industrial que estavam em condições de desem­
penhar o principal papel neste terreno, melhor que a social-demo­
cracia, eram os da França e da Italia. Por isto, conseguiram conservar
em maior ou menor grau a sua influência na classe operária, embora
o primeiro — como vimos — tenha perdido grande parte dos seus
efetivos organizados. Eles «demonstraram não ser o partido da re­
volução, mas, em troca, mostraram à classe operária que eram úteis
na luta pelos seus interesses cotidianos. Em todos os outros países
“avançados”, os partidos comunistas se converteram de novo em
pequenos grupos marginais, impotentes em face dos grandes partidos
social-democratas e das centrais sindicais reformistas — mesmo na
632
Alemanha Ocidental, onde o partido comunista reconstruído não foi
mais que a sombra de um passado distante26. Sobre o Partido Comu­
nista norte-americano, reduzido à sua mínima expressão depois da
expulsão de Browder (então, uma fração considerável de militantes
abandonou o partido), em meio à indiferença das massas operárias,
abateu-se a repressão macartista. Os comunistas espanhóis tiveram
que interromper a sua luta guerrilheira, que não encontrava eco nem
apoio suficiente numa população desmoralizada pela tremenda der­
rota de 1939, pelo terror a ela subseqüente e pela nova “traição das
democracias”. Quanto ao drama dos comunistas gregos, a ele já
nos referimos.
Em 1947, os Estados Unidos concertaram com as oligarquias
latino-americanas o Pacto do Rio de Janeiro, ponto de partida de
uma ofensiva anticomunista geral na América Latina. A maioria dos
partidos comunistas do continente — que, sob a influência da polí­
tica da “grande aliança”, acentuada em alguns deles pela corrente
browderista, praticamente tinham abandonado nos anos anteriores a
luta antiimperialista — foi jogada na ilegalidade, sem que pudesse
organizar qualquer resistência eficaz. Quase todos sofreram crises
internas que agravaram a sua impotência política27.
Na Indonésia, na Birmânia, na Malásia e nas Filipinas, os
partidos comunistas — influenciados pela experiência chinesa, mas
sem assimilá-la — passaram à luta armada sem preparação suficiente,
com a agravante de que a política oportunista, a reboque da burgue­
sia nacional, praticada no período precedente, colocara-os em situação
desfavorável. Os movimentos armados foram liquidados ou tiveram
que recolher-se a áreas isoladas, iniciando uma luta guerrilheira de
longa duração. O Partido Comunista da Índia foi debilitado neste
período por agudas lutas intestinas entre a tendência oportunista de
direita que predominara na fase anterior, convertendo o partido
num apêndice da burguesia nacional, e tendências esquerdistas sec­
tárias, que não faziam nenhuma distinção no interior da burguesia
hindu e nem compreendiam a lição chinesa sobre o potencial revo­
lucionário das massas camponesas28. Também o Partido Comunista
japonês foi enfraquecido por lutas internas, além de sofrer com as
medidas repressivas adotadas pelos ocupantes americanos durante
a guerra da Coréia.
No plano do regime interno dos partidos comunistas, o período
do Centro de Informação dos Partidos Comunistas expressou a
acentuação do centralismo burocrático e da monolitização ideológica.

633
Foi uma espécie de segunda “bolchevização” dos partidos, realizada
sob o signo da luta contra o titoísmo — como a primeira se realizara
sob o signo da luta contra o trotskismo. A depuração se pôs na
ordem do dia. Poucos foram os partidos que não sofreram crises
nos seus organismos dirigentes, para não falar dos escalões inferiores.
A vida política interna tornou-se mais rotineira que nunca, desvane-
cendo-se o sopro de ar fresco que viera com os primeiros anos da
Resistência e da Libertação. O princípio supremo que presidiu esta
segunda “bolchevização” foi o mesmo que conduziu a primeira:
assegurar a coesão monolítica do movimento sob o comando e o
“marxismo” moscovitas. Coesão ameaçada nesta conjuntura — como
evidenciou a heresia iugoslava — pelas correntes nacionais, e naciona­
listas, que foram avivadas pela guerra e pela dissolução da Interna­
cional. O Centro de Informação dos Partidos Comunistas constituiu
um instrumento político e organizacional contra estas tendências.
Outro, de tipo especificamente ideológico, foi o culto a Stalin. As
dimensões adquiridas por este fenômeno expressavam, sem dúvidas,
o extremo a que chegara o abandono do marxismo e a sua substitui­
ção por uma espécie de fideísmo, travestido de pragmatismo e de
praticismo, mas elas se explicam também pela função utilitária que
o “culto” desempenhava no sentido de travar as mencionadas ten­
dências centrífugas. O florescimento paralelo dos cultos aos chefes
comunistas nacionais era um fenômeno mais complexo: tinha a fun­
ção de assegurar a coesão monolítica de cada partido em torno
do chefe fiel a Stalin, mas, ao mesmo tempo, expressava obscura­
mente — de modo inconsciente em alguns casos e não tão inconsci­
ente em outros — a resposta nacional ou nacionalista ao culto da
hegemonia soviética (o culto a Stalin personalizava este outro, mais
profundo, ao comando de Moscou, e que prosseguiu quando da
condenação do primeiro, tendo sua nova personalização no pitoresco
Nikita).
No juízo crítico oficial sobre a atividade do Centro de
Informação dos Partidos Comunistas, citado páginas atrás, reconhe­
ce-se que “a política do diktat e da arbitrariedade [. . . ] travou a
elaboração criadora dos problemas atuais do movimento operário
internacional e do movimento de libertação nacional”. O verbo
travar funciona aqui como eufemismo para designar a total esteri­
lidade que, no período do Centro de Informação dos Partidos Co­
munistas, caracterizou o domínio da “elaboração criadora”. Neste

634
terreno, não se pode dizer que a situação mudou para pior: sim­
plesmente, prolongou-se a situação anterior. Mas as suas conseqüên-
cias eram cada vez mais graves porque, enquanto isto, o mundo,
profundamente transformado pela guerra, continuava avançando e
colocando problemas de crescente complexidade. Diante da proble­
mática das novas revoluções proletárias e da rebelião dos povos
oprimidos pelo colonialismo, da generalização do capitalismo mono­
polista de Estado e da luta operária nas condições desta nova fase
capitalista, o movimento comunista continuou agitando rotineira­
mente as fórmulas e os tópicos de outrora. Nenhuma investigação,
nenhum debate autêntico, nenhuma idéia nova. Em todos os casos,
a ressurreição das velhas idéias reformistas e pacifistas, ligeiramente
maquiadas. O regime interno dos partidos não permitia que ninguém
levantasse a mais leve proposição inovadora. E se, por acaso, uma
surgia — coisa difícil, dado o esclerosamento dos cérebros comu­
nistas produzido por mais de duas décadas de monolitismo ideoló­
gico — , era liquidada no nascedouro. Somente ao cérebro do Grande
Teórico se reconhecia a capacidade — e o direito — de propor
idéias novas (alguns economistas, historiadores e filósofos soviéticos
pagaram caro as suas tímidas infrações à regra). Em 1950, o Grande
Teórico ganhou a cátedra no domínio da lingüística, “enriquecendo”
de passagem a teoria marxista da base e da superestrutura. Em
1952, abordou os “problemas econômicos do socialismo”, diagnos­
ticando de passagem o estado do capitalismo e as suas perspectivas.
A vacuidade teórica destas últimas proposições stalinianas é sufi­
cientemente conhecida para que não nos detenhamos nelas. Limi­
tar-nos-emos a indicar que Stalin transpõe à nova situação o seu
esquema da revolução socialista mundial derivado da doutrina do
“socialismo num só país”. Dando por construído o socialismo inte­
gral na URSS, Stalin formula a tese de que também é perfeitamente
possível construir o comunismo no espaço soviético, ainda que no
resto do mundo (fora do “campo socialista”) subsistam o capitalismo
e o imperialismo29. E, com a ajuda da URSS, é possível a construção
do socialismo integral nas democracias populares européias e asiá­
ticas. O “ritmo do desenvolvimento industrial nestes países” é tal
— diz Stalin — “que logo não terão mais necessidade de importar
mercadorias dos países capitalistas”30 — ser-lhes-á suficiente o co­
mércio com a União Soviética. Por outro lado, o capitalismo marcha
rapidamente para a sua cova. Os principais países capitalistas
“esforçam-se por remediar as suas dificuldades através do Plano

635
Marshall, da guerra da Coréia, da corrida armamentista, da militari­
zação da indústria; mas isto se parece muito ao afogado que se
agarra a um pedaço de palha”. Stalin chega a esta conclusão baseado
em que “o resultado econômico da existência de dois campos opostos
foi a desagregação do mercado único, universal, a criação de dois
mercados mundiais paralelos que se opõem mutuamente”. Enquanto
o “mercado mundial socialista” desenvolver-se-á continuamente, sem
limites intrínsecos, o mercado mundial capitalista se irá contraindo,
o que terá por conseqüência que “o volume da produção diminuirá
[nos principais mercados capitalistas]”. Isto provocará a exacerbação
das contradições entre tais países e tornará inevitáveis as guerras
entre eles, ao passo que será cada vez mais difícil uma guerra do
bloco capitalista contra o bloco socialista. Ao fim deste desenvolvi­
mento triunfal do socialismo e do comunismo no interior do “campo”
regido pela URSS e da contínua regressão do capitalismo dentro do
“campo” regido pelos Estados Unidos encontra-se, natural e inevi­
tavelmente, a vitória mundial do socialismo. Daí que o problema
essencial a resolver, para garantir este curso irresistível da história,
consistisse em impedir que as potências capitalistas — cedendo,
como dizia Suslov, a um “acesso de fúria” provocado pelo seu
contínuo debilitamento — agredissem o "campo socialista”, pertur­
bando a sua marcha triunfal no rumo do comunismo. Garantir a
paz “sólida e duradoura” — impensável sem um compromisso “só­
lido e duradouro” entre as duas superpotências — tinha que ser o
objetivo número um dos partidos comunistas. E, por isto, a luta
pela revolução socialista nos países capitalistas ficava naturalmente
relegada a um plano secundário e, sobretudo, subordinada à consi­
deração suprema de não pôr em risco a paz mundial. O importante
era que os partidos comunistas agrupassem em cada país os partidá­
rios da paz — a fim de opor um dique a toda veleidade belicosa
anti-soviética da superpotência americana — e os partidários da
independência nacional — a fim de contribuir para o aprofunda­
mento das contradições entre as potências capitalistas. As duas
tarefas não deviam ser dificultadas com a proposição de objetivos
político-sociais internos incompatíveis com os setores patrióticos, de­
mocráticos e pacifistas das respectivas burguesias. Daí que, em suas
últimas recomendações aos partidos comunistas (no discurso que
pronuncia no XIX Congresso do PCUS, em outubro de 1952), Stalin
não faça nenhuma referência à luta por objetivos socialistas dentro
dos países capitalistas. Afirma aos chefes comunistas do Ocidente

636
presentes ao congresso: “Se vocês quiserem ser patriotas e se con­
verter na força dirigente da nação, devem levantar bem alto a
bandeira da independência e da soberania nacional, das liberdades
democráticas burguesas e da paz” 31. A bandeira do socialismo deve
continuar prudentemente recolhida.

NOTAS
1 O congresso reuniu-se segmentado — os delegados da URSS e das demo­
cracias populares em Praga e os restantes em Paris — porque as autoridades
francesas negaram o visto aos representantes socialistas.
2 G r a n d e E n c ic lo p é d ia S o v ié tic a , 2a. ed., em russo, t. 13, p. 456.

3 Ib id ., p. 458.
4 Ib id ., t. 41, p. 28.
5 Ib id ., t. 13, p. 456.
à Ib id ., lâmina incluida entre as pp. 456 e 457.
7 Stalin, D e r n ie r s É c rits (19 5 0 -1 9 5 3 ), Éditions Sociales, Paris, 1953, pp. 125-126.
8 Cfr. artigo de Luís Carlos Prestes, secretário-geral do Partido Comunista Bra­
sileiro, no número 126 (5 de junho de 1953) do órgão do Centro de Infor­
mação dos Partidos Comunistas, P o r u m a p a z d u ra d o u r a , p o r u m a d e m o c r a c ia
p o p u la r.
9 cfr. Suslov, M., I n fo r m e à R e u n iã o d o C e n tr o d e I n fo r m a ç ã o d o s P a rtid o s
C o m u n is ta s, S e g u n d a Q u in ze n a d e N o v e m b r o d e 1949. Utilizamos a versão
espanhola publicada em folheto, junto com outros materiais da reunião, pelo
PCE, em 1950. A citação foi extraída da p. 21.
10 C a h ie rs d u c o m m u n is m e , n.° 5, maio de 1950, pp. 49-50, 53.
11 V I I C o n g r e so d e i P a rtito C o m u n is ta I ta lia n o (re s o c o n to ), Cultura Sociale,
Roma, 1954, pp. 21, 22 e 32. Os grifos são nossos.
12 Cfr. Fauvet, J., H is to ir e d u P C F , cit., t. II, pp. 242-243.
13 Informe citado na nota 9, p. 9. Sublinhados nossos. As citações que fazemos
em seguida encontram-se sucessivamente às páginas 20, 8, 15, 20, 14, 16,
17 e 14.
14 A p u d N o u v e lle C r itiq u e , n.° 50, 1953, p. 131. Quanto a Togliatti, tomamos a
referência das suas obras escolhidas em russo, Edições Literatura Política,
Moscou, 1965, t. I, p. 560.
15 Cfr. L a P en sée, Paris, n.° 44, setembro-outubro de 1952, p. 4.
18 P o r u m a p a z d u ra d o u r a , p o r u m a d e m o c r a c ia p o p u la r, 18 de fevereiro
de 1955, entrevista de Kruschev aos jornalistas americanos W. R. Hearst,
J. Kingsbury Smith e F. Connif, em 5 de fevereiro de 1955. Kruschev disse
textualmente: “A União Soviética não quis atuar em detrimento dos seus
aliados na luta contra o hitlerismo. H á c in c o a n o s as condições de mobi­
lização dos Estados Unidos eram menos avançadas que hoje. De acordo com
o ponto de vista dos que consideram que se deve atacar no momento mais
favorável, se a União Soviética quisesse agredir o Ocidente, deveria tê-lo
feito naquela época”. Os grifos são nossos.
17 Observe-se a conexão desta “teoria” com a formulada por Stalin, segundo a
qual a luta de classes se agravava indefectivelmente na União Soviética e

637
nas democracias populares na medida em que avançavam na construção do
socialismo. Além da sua nulidade científica, ambas têm em comum o seu
utilitarismo. A de Stalin serviu (e continua servindo), como bem se sabe,
para justificar entre muitas outras ações reacionárias — a repressão
contra os comunistas e outros cidadaos opositores do regime autocrático-
burocrático (ou acéfalo-burocrático, neste último período); serviu e serve
para mistificar a luta entre as tendências progressistas e conservadoras no
interior deste regime, batizando as primeiras de anti-socialistas e as segundas
de socialistas. A de Suslov (na verdade, de Stalin; Suslov era um simples
porta-voz) serviu, nos inícios dos anos cinqüenta, para justificar a linha impos­
ta por Stalin ao movimento comunista, o abandono da luta pelo socialismo, a
campanha antititoísta, os processos, etc. E hoje a encontramos em filigrana
entre as justificações da invasão da Tchecoslováquia, bem como, doze anos
antes, nas do envio dos tanques a Budapeste.
18 Cfr. André Fontaine, H isto ir e d e la G u e r re F ro id e , cit., t. II, pp. 420-427.
Ib id ., p. 14 e Fejto, F., C h in e -U R S S , la F in d 'u n e H é g é m o n ie , p. 77,
20 Cfr. Fontaine, o p . cit., t. II, p. 14.
21 Stalin, D e r n ie r s É c rits (1 9 5 0 -1 9 5 3 ), cit., pp. 80-81.
22 Ib id ., pp. 124-125.
23 Ib id ., p. 190.
24 H is tó r ia d o M o v im e n to O p e r á rio I n te r n a c io n a l e d o M o v im e n to d e L ib e rta ç ã o
N a c io n a l, em russo, Ed. Misl, Moscou, 1966, t. III, p. 592. Recordamos que
esta obra, a que nos referimos em outras passagens do nosso trabalho, serve
como texto na Escola Superior de Quadros do Partido Comunista soviético, o
que lhe confere especial autoridade dentro da ortodoxia oficial.
25 Os dogmas de Stalin condenam-se aqui em nome dos dogmas do XX Con­
gresso sobre a evitabilidade das guerras, a via pacífica ao socialismo, o papel
antiimperialista da burguesia nacional nos países atrasados, a unidade com
a social-democracia, etc. Uns e outros dogmas — além do seu parentesco
ideológico: improvisação e pragmatismo — tinham em comum servir à mesma
orientação estratégica: assentar a “coexistência pacífica” num compromisso
sólido e duradouro (a “paz sólida e duradoura” da campanha pacifista
do Centro de Informação dos Partidos Comunistas) com o imperialismo
americano. Dal o paradoxo que se encontra no texto de onde retiramos o
citado juízo crítico: ao mesmo tempo em que se condena severamente a
“atividade” do Centro de Informação dos Partidos Comunistas, qualifica-se de
inteiramente justa a sua “linha geral”. Na realidade, depois do XX Con­
gresso, o que se criticou foram certas modalidades táticas da aplicação desta
linha geral. Por outro lado, em relação ao Centro de Informação dos Par­
tidos Comunistas — como em relação a outros problemas mais importantes
, Stalin foi o bode expiatório de algumas das conseqüências nefastas da
política anterior, assim como o “culto da personalidade” se converteu em
receita magica para explicar todos os males. Desta maneira, escamoteava-se a
análise critica, marxista, das causas profundas, enraizadas na natureza mesma
do sistema staliniano, nas suas formas estatais como na sua forma de
movimento comunista” — o que facilitava o prosseguimento de uma política
e a utilização de métodos muito semelhantes aos do passado. Estes problemas
serão tratados na continuidade desta obra.
26 A seguir, fornecemos alguns dados sobre a evolução dos partidos comunistas
da Europa ocidental no período do Centro de Informação dos Partidos
Comunistas (a maior parte dos quais extraídos do livro, já citado, de
B. Lazitch, L e s P a rtis C o m m u n is te s d ’E u ro p e', as informações referentes

638
à imprensa comunista francesa foram tomadas da obra, também já citada,
de Annie Kriegel).
L e s C o m m u n is te s F ra n ça is,
P a rtid o C o m u n is ta Ita lia n o
1947: 1.889.505 militantes 1946: 19% de votos
1952: 2.093.540 militantes 1953: 22,7% de votos
P a rtid o C o m u n is ta F ra n c ê s
1946: 1.034.000 carteiras distribuídas, 804.229 militantes
1954: 506.250 carteiras distribuídas
Depois de 1946, a direção do PCF só tornou públicas as cifras de cartei­
ras distribuídas pelo Comitê Central às federações regionais, sem divulgar os
números efetivos de militantes que os subscreveram. Levando em conta a di­
ferença existente entre as duas cifras em 1946, é possível supor-se que em
1954 o número real de militantes girasse em torno de pouco menos que
400.000.
1946: 28,6% de votos
1956: 25,3% de votos
Em 1947, a imprensa do PCF tinha uma tiragem de 2.770.000 exem­
plares, sobre o total de 11 milhões da imprensa diária (nesse ano, o PCF
possuía mais de 30 diários ou semanários regionais). Em 1952, a tiragem da
imprensa do PCF cai para 900.000 exemplares (desaparecem publicações re­
gionais e se reduz a tiragem de L ’H u m a n itê )\ o conjunto da imprensa francesa
continua tirando cerca de 11 milhões de exemplares.
P e q u e n o s p a r tid o s c o m u n is ta s e u r o p e u s legais
P a ís M ilita n te s % d e v o to s
Áustria 150.000(1948) 28.000 (1951) 1945: 5,4 1953: 5,4
Bélgica 100.000(1945) 14.000 (1954) 1946: 12,7 1954: 3,5
Dinamarca 75.000 (1945) 21.000(1953) 1945: 12,5 1953: 4,3
Inglaterra 47.513 (1944) 34.801 (1953) 1945: 0,4 1955: 0,1
Finlândia 150.000(1946) 50.000 (1952) 1945: 23,5 1951: 21,6
Holanda 53.000(1946) 16.000 (1955) 1946: 10,5 1952: 6,2
Noruega 45.000 (1945) 13.000 (1953) 1945: 11,9 1953: 5,1
Suécia 48.000 (1946) 28.000 (1953) 1944: 10,3 1952: 4,3
Suíça 13.500(1945) 8.000 (1953) 1947: 5,1 1951: 2,7
Alemanha Ocidental (não há dados) 1949: 5,7 1953: 2,2
n Segundo dados de historiadores soviéticos, o conjunto dos partidos comunistas
latino-americanos, em 1947, tinha meio milhão de militantes (cfr. p. 385 da
obra citada na nota 24); em 1964, este número não chegava a 300.000
(cfr. Ponomariov, B., E l M o v im ie n to R e v o lu c io n á r io I n te r n a c io n a l d e la
C la se O b rera , Progreso, Moscou, em espanhol, p. 362). Levando em conta
que, de acordo com a primeira obra citada, houve um progresso importante
após 1956, torna-se visível o drástico refluxo do movimento comunista
latino-americano no período do Centro de Informação dos Partidos Co­
munistas.
Durante estes anos, as crises internas se sucederam nos partidos
latino-americanos. Em 1953, foi excluído do Partido Comunista Chileno o
grupo “fracionista” de Reinoso, acusado de propagar concepções anarco-
sindicalistas. Em 1955, sob a acusação de nacionalismo, o partido uruguaio
expulsou de suas fileiras o ex-secretário-geral Gómez Chiribano. O Partido
Comunista Venezuelano expulsou o grupo “fracionista encabeçado pelo
ex-secretário-geral Fuenmayor. Em 1952, o partido colombiano tomou me­
didas contra uma tendência acusada de desvios esquerdistas.

639
A crise mais importante, provavelmente, foi a do Partido Comunista
Argentino, cuja direção, dominada por Codovilla, sempre se distinguiu pela
imitação dos partidos europeus. Este mimetismo levou o partido a identificar
o peronismo ao fascismo preconizando, diante dele, uma tática de frente
popular. O melhor dirigente do partido, Juan José Real, criticou esta política,
sugerindo uma tática nova, centrada na aliança com as tendências antiimpe-
rialistas do peronismo, sob cuja influência se encontrava a maioria esma­
gadora da classe operária. Juan José Real, juntamente com outros militantes,
foi expulso e a camarilha de Codovilla desfechou contra ele uma ignóbil
campanha de calúnias.
xambém neste período (1948) iniciou-se a guerra civil colombiana de­
sencadeada com o assassinato do líder liberal Gaitán, na qual tomou parte
ativa o partido comunista. A guerra civil durou até 1958.
No seguimento desta obra abordaremos amplamente a problemática do
movimento comunista na América Latina e a sua trajetória histórica.
28 Durante estes anos, nos partidos comunistas do Sul e do Sudeste asiático
ocorreu uma aguda luta de tendências em torno dos problemas da luta
armada e da atitude diante da burguesia nacional. A estratégia do partido
chinês, como vimos, consistiu em promover a aliança com os núcleos antiimpe-
rialistas da burguesia nacional, mas conservando sempre a independência e
a hegemonia das forças revolucionárias. A política de Stalin, quando se inicia
a guerra fria, induziu aqueles partidos a uma posição sectária em face destes
problemas, partindo da influência que a demagogia anticolonialista da política
americana exercia sobre as burguesias nacionais. Por outro lado, a estratégia
maoísta na luta armada sempre se distinguira por sua prudência tática, re­
cusando qualquer movimento insurrecional prematuro. As tendências de
esquerda que, sob a influência da revolução chinesa, se desenvolveram nos
partidos do Sul e do Sudeste asiático não observaram esta prudência na luta
armada e se lançaram a ela sem a preparação suficiente — além de atacar
em bloco a burguesia nacional.
29 Em 1946, Stalin formulou pela primeira vez a tese de que “o comunismo num
só‘ país é perfeitamente concebível, particularmente num país como a URSS”
(entrevista ao S u n d a y T im e s , 17 de setembro de 1946).
Stalin, D e r n ie r s É.cvits (1 9 5 0 -1 9 5 3 ), ed. cit., p. 121. Na mesma página, diz;
“A experiência mostra que nenhum país capitalista teria podido oferecer aos
países de democracia popular uma ajuda tão eficaz e tecnicamente qualificada
como a que receberam da URSS”.
3' Ib id ., p. 188.

640
PRIMEIRO EPÌLOGO

N a história universal, as ações dos homens


resultam em algo distinto do que projeta­
ram e desejaram, do que sabem e querem
imediatamente. Os homens realizam os seus
interesses, mas, ao mesmo tempo, produz-se
outra coisa, oculta, que a sua consciência
não apreende e que não entrava nas suas
previsões. Hegel.

Com a morte de Stalin, o movimento comunista entra no seu


ocaso histórico, na etapa da sua crise geral, cujo estudo será o tema
da parte restante deste ensaio: a que sera dedicada ao período
compreendido entre o XX Congresso do PCUS e a ruptura sino-
soviética e a que se consagrará à fase atual’. O referido estudo será
iniciado com uma análise global das contradições internas do
regime soviético sob Stalin, cuja dialética levada a um ponto
crítico pelo desaparecimento do grande chefe carismático — provoca
a primeira comoção profunda no epicentro do movimento comunista.
As ondas desta comoção rompem diques ideológicos, políticos e
organizacionais nos regimes do “campo socialista e nos partidos
comunistas exteriores ao “campo”, nas relações interestatais e inter-
partidárias. Exacerbam-se os conflitos latentes e as tendências cen­
trífugas. Derrubam-se mitos e dogmas. A dúvida, quando não a
angústia, instala-se nas consciências. As crises parciais e periféricas
se fundem com a do centro soviético numa crise unica, geral, de
todo o movimento comunista.
Até a presente etapa do nosso estudo, não julgamos imprescin­
dível a análise global da evolução do regime soviético sob Stalin,
levando em conta que a crise do movimento comunista se inicia
historicamente na sua periferia. Como vimos, manifesta-se primeiro
no fracasso da Internacional Comunista, tanto no mundo capitalista
quanto no colonial; depois, na impotência do movimento comunista
europeu para oferecer uma solução revolucionária à crise catas­
trófica do capitalismo continental nos anos quarenta; e, mais tarde,
na ruptura iugoslava e na degradação das democracias populares
(refletida no espelho magicamente macabro dos processos). Entre­
mentes, o regime staliniano se afirma e fortalece no interior das

641
fronteiras soviéticas, destruindo implacavelmente tudo o que se
interpõe no seu caminho — da oposição reacionária do kulak à
revolucionária da velha guarda bolchevique. Constitui-se e se desen­
volve como sistema social totalmente inédito, não apenas na história,
mas ainda em face das previsões teóricas marxistas — nem capitalista
nem socialista, funda-se no usufruto dos principais meios de produção
por um novo tipo de classe social, que começa a se formar com os
elementos capazes de assumir a função mais útil e urgente num
enorme país arruinado e faminto: organizar e dirigir a economia.
Acreditando subjetivamente — ao menos durante algum tempo _
construir o socialismo, encarnar a ditadura do proletariado, realizar
o marxismo, esta nova classe dirigente se converte praticamente em
usufrutuária dos meios de produção, acima de toda intervenção e
controle das massas trabalhadoras, e adquire progressivamente as
características subjetivas de classe dominante. Nascido da liquidação
da democracia soviética de 1917, este regime revela a sua capacidade
para desenvolver as forças produtivas, tirar o país do atraso econô­
mico e cultural e industrializá-lo a ritmos sem precedentes na his­
tória da humanidade. Ao fim dos anos quarenta — como reconhe­
ceria de fato o XX Congresso —, as estruturas sócio-políticas já
haviam entrado em contradição com o nível alcançado pelas forças
produtivas, com as exigências do seu ulterior desenvolvimento. Se
a luta de camarilhas pela sucessão — unica maneira de resolver o
problema sucessório num sistema político privado de qualquer ele­
mento democrático, onde o ditador não é hereditário e as condições
para a revolução ainda não estão presentes — revestiu-se com a
conhecida implacabilidade, as coisas não se explicam fundamental­
mente por ambições pessoais, mas porque, na base desta luta,
estava a contradição referida, levada a certo grau de periculosidade
e entrelaçada a outros conflitos e tensões, tanto dentro do Estado
soviético como no conjunto do “campo socialista” e do mbvimento
comunista. A própria dialética da luta pelo poder, emitais condições,
produziu o “relatório secreto” de Kruschev, revelação brutal __
apesar das mistificações que deliberadamente continha — da natureza
profunda do sistema. O que até esse momento fora considerado
pelos comunistas como calúnias da burguesia ou dos “renegados”
vinha oficialmente confirmado pelo novo secretário-geral. Ocorria
que, na pátria do socialismo”, o poder nâo estava, há muitos anos,
nas mãos dos trabalhadores, nem sequer nas do partido que dizia
representá-los, mas nas de um ditador todo-poderoso, servido por uma

642
polícia onipresente, cujos principais métodos de governo eram o
crime político e a manipulação ideológica das massas. Ocorria que
a campanha contra a revolução iugoslava fora uma infame provocação
tramada por Stalin e sua polícia, no mesmo estilo dos processos
montados nas democracias populares — donde se deduzia que, nes­
tas, tampouco o poder estava com os trabalhadores ou com os par­
tidos que diziam representá-los ou com um ditador nacional, mas
cabia ao novo autocrata russo e sua polícia secreta. Ocorria que a
política geral do movimento comunista não só não fora decidida
pelos partidos membros, mas também não o fora pelo partido guia ,
uma vez que as altas instâncias deste último (congresso, comitê
central) eram arbitrariamente manipuladas pelo amo do Kremlin
e a camarilha de plantão, controlada, por seu turno, pela inevitável
polícia secreta. E assim por diante. O “relatório secreto reconhecia
—- ou dele se deduzia, tão certamente como dois e dois são
quatro — este fato chave, decisivo: em todas as esferas do mundo
staliniano — Estado, partidos, ideologia, política, economia, cul­
tura —, a última palavra era da polícia secreta. Stalin era simul­
taneamente o chefe máximo e o joguete de um gigantesco mecanismo
policial.
Até então, o regime soviético se irradiara sobre o movimento
comunista constituído ao seu redor não tanto pelo que era, mas
pelo que dizia e aparentava ser. Se pode impor-lhe seus dogmas e
modelos, subordiná-lo à sua política de Estado, é porque aparece
ante as forças revolucionárias mundiais como a primeira encarnação
do socialismo e o cume do pensamento marxista. E se pode aparecer
assim é porque a liquidação de certas formas históricas de opressão
e exploração — capitalistas e feudais — , mais os êxitos quantita­
tivos da industrialização e da difusão da cultura, possuem um efetivo
conteúdo libertador em relação ao regime czarista. Sob este real
conteúdo libertador podiam se ocultar, durante algum tempo e com
a ajuda da ideologia mistificadora segregada pelo próprio regime
(adaptando-se para tanto o “marxismo”), as novas formas de aliena­
ção, de opressão e de exploração do homem — que, sob certos
aspectos, significavam um retrocesso em comparação às conhecidas
no capitalismo “ avançado”. O movimento da história, mais uma vez,
revelava-se muito mais complexo e contraditório do que puderam
supor as mais lúcidas previsões teóricas.
No estudo precedente das primeiras manifestações históricas
da crise do movimento comunista esteve sempre subjacente esta con-
643
cepção da evolução do regime soviético, da sua realidade e da sua
aparência, e procuramos explicitar, segundo as exigências da análise,
os instantes que mais decisivamente contribuíram para gestar os
fatores de crise do movimento, seus fracassos e derrotas: a crença
no conteúdo socialista do regime soviético e a sua adoção como
modelo de Estado socialista e de partido revolucionário; a consa­
gração da sua ideologia como verdade definitiva do marxismo, fun­
damento da estratégia e da tática de todo partido comunista, do seu
programa e da sua política; a subordinação da estratégia mundial
da IC, primeiro, e, depois, do movimento comunista à política in­
ternacional do Estado soviético, etc. Porém, a partir dos aconteci­
mentos de 1953-1956 (denúncia de Beria e primeiras revelações dos
métodos da polícia secreta, levante dos operários de Berlim, “reabi­
litação” da Iugoslávia, “relatório secreto”, outubro polonês e outubro
húngaro, primeira intervenção armada do imperialismo staliniano
contra um povo insurreto), a partir daí o regime soviético começa
a incidir sobre o conjunto do movimento comunista, cada vez mais,
não pelo que até então parecera ser, mas pelo que realmente era.
De fato, as novas justificações ideológicas (utilização de Stalin como
grande bode expiatório, explicação do seu absolutismo pelo “culto”
e do “culto” pelo seu absolutismo, afirmação de que a aterrorizante
realidade descrita no “relatório secreto” não afetara em nada a
“essência socialista” do regime ou a essência científica do seu “mar­
xismo”), apesar da sua estultícia grosseira, satisfizeram a uma grande
massa de comunistas — revelando-se, uma vez mais, até que ponto
a sua formação ideológica perdera todo contacto com o marxismo
vivo —, enquanto outros as consideraram como uma primeira e
imperfeita autocrítica que poderia abrir a via à regeneração do
movimento. Entretanto, uma nova realidade irrompera irremissivel-
mente, e o seu formidável poder desmistificador, destrutor de dog­
mas e mitos, desbastava o seu caminho, contra'todas as resistências
subjetivas. Até então, os fracassos, as derrotas, a impotência dos
partidos comunistas sempre eram explicados — quando não Se tra­
tava dos fatores objetivos’ — como devidos às suas imperfeições
em face do modelo soviético: “ bolchevização” insuficiente, atraso
teórico em comparação com o nível ótimo que era próprio do par­
tido soviético, etc. A partir de então, começou a emergir a idéia
de que os males dos partidos comunistas e do conjunto do movi­
mento tinham origem na razão inversa — a sua semelhança com o
modelo soviético. A crise do partido soviético converteu-se, assim,

644
no espelho da crise de cada partido comunista e do movimento
comunista internacional. Daí a necessidade da análise global a que
nos referimos e que nos levará ao XX Congresso, símbolo histórico
da crise geral do movimento comunista.
Encerraremos agora esta parte do nosso estudo retornando, de
maneira sistemática, a alguns pontos que nos parecem essenciais
para a compreensão global da origem histórica e do processo seguido
pela crise do movimento comunista no período da Internacional
Comunista e na década que se estende da sua dissolução à morte
de Stalin.

1. Como vimos no capítulo sobre “a crise teórica”, a constitui­


ção da IC, a sua plataforma programática e as suas características
organizacionais, as suas concepções estratégicas e táticas estiveram
decisivamente condicionadas pela teoria leniniana da revolução russa
e da revolução mundial. Mas o curso dos acontecimentos no capi­
talismo avançado infirmou muito rapidamente as hipóteses de Lênin
sobre o grau de maturidade e o rumo imediato da revolução mun­
dial. Toda a história posterior evidenciou, cada vez mais claramente,
que esta infirmação era índice de carências e de pressupostos equivo­
cados na representação teórica leniniana da sociedade capitalista
ocidental; evidenciou que, a partir daquele momento, fazia-se obje­
tivamente necessário repensar toda a problemática da revolução so­
cialista neste tipo de sociedade. Esta necessidade objetiva, porém,
não foi reconhecida e assumida pelas forças agrupadas na IC, exceto
em aspectos muito parciais, fundamentalmente táticos. A frustração
da revolução no capitalismo avançado foi tomada como um passa­
geiro dilema — essencialmente devido a “traição ’ dos chefes social-
democratas — que não punha em questão as teses teóricas mar­
xistas, quer na sua versão ortodoxa clássica, quer na sua versão leni­
niana. Ao mesmo tempo, a vitória inicial da revolução proletária
num país atrasado, semicapitalista, semifeudal, foi interpretada
como a prova irrefutável de que a teoria marxista da revolução, na
sua versão leniniana, chegara ao cúmulo da perfeição científica. O re­
gime soviético era a concretização exemplar da ditadura do prole­
tariado; o partido bolchevique, o tipo perfeito de partido revolu­
cionário; a estratégia e a tática leninianas, o modelo de estratégia
e tática para todos os partidos comunistas, aos quais só restava adap­
tá-las às suas respectivas condições nacionais. No entanto, mesmo
esta adaptação só parcialmente estava em suas mãos: em última

645
instância, quem decidia era o Comitê Executivo da IC, vale dizer,
o centro bolchevique. Numa palavra, a verdade da revolução russa
se converteu em verdade da revolução em todas as latitudes, com
uns poucos ajustes menores.
De posse desta verdade universal, a IC enfrentou-se, com “in­
transigência bolchevique”, com as outras tendências e frações do
movimento operário. Não apenas fechou-lhes as suas portas: contri­
buiu, em larga medida, para tornar impossível a colaboração e a
discussão com elas. Ao mesmo tempo em que se desvanecia a expec­
tativa da guerra civil internacional e se iniciava a coexistência mais
ou menos pacífica entre o Estado soviético e os Estados capitalistas,
instaurava-se um clima de guerra civil no seio do movimento ope­
rário. Ao invés de propiciar o intercâmbio fecundo entre a expe­
riência e o pensamento dos revolucionários russos, por um lado, e,
por outro, os do movimento operário ocidental, a IC transformou-se
em barreira — não apenas para as correntes reformistas (o que já
era suficientemente grave, posto que envolviam a maioria do prole­
tariado e só a vinculação viva com essas massas poderia tornar eficaz
a luta política e ideológica contra o reformismo), mas também para
correntes revolucionárias de tipo sindicalista ou anarco-sindicalista e
inclusive para as de matiz autenticamente marxista, como o luxem-
burguismo, a expressa por Ordine Nuovo e outras, nascidas na es­
querda da social-democracia. As clarividentes reflexões críticas de
Rosa Luxemburgo sobre a revolução russa e o modelo bolchevique
de partido, a sua profética advertência sobre as graves conseqüências
que teria para o movimento operário internacional a pretensão de
lhe impor como norma o bolchevismo, as suas idéias sobre a estra­
tégia e a tática nas condições alemãs — tudo isto foi repudiado
liminarmente ou lançado no esquecimento, tanto como as primeiras
teorizações gramscianas.
Assim, ficaram sem resposta as inquietantes interrogações que
o movimento real da história colocava à teoria leniniana da revo­
lução e também à teoria marxiana. E, o que é pior, elas permane­
ceram sem ser reconhecidas enquanto interrogações. O imenso res­
plendor da Revolução de Outubro contribuiu para ocultar a crise
teórica que de fato se abrira. E o entusiasmo lógico pela primeira
vitória histórica do proletariado, salvo raras exceções, cegou ou de­
bilitou grandemente o espírito crítico dos marxistas revolucionários.
No entanto, a nova ortodoxia não foi consagrada sem resistências no
interior da IC, particularmente no que se refere ao tipo de partido

646
e à aceitação do comando russo. Mas estas resistências foram liqui­
dadas sem muita dificuldade, graças ao prestígio dos dirigentes bol­
cheviques, nomeadamente Lênin, e aos poderes extraordinários que
o sistema organizacional do “partido mundial” conferia aos seus
organismos supremos. Desaparecido Lênin, a ortodoxia “marxista-le­
ninista” logo degeneraria num dogmatismo sem precedentes na histó­
ria do marxismo, numa ideologia alienante, que expressava e servia
aos interesses da nova classe dominante formada no curso da indus­
trialização staliniana.

2. Entre os fundamentos da nova ortodoxia se destaca uma


concepção petrificada do capitalismo, de conteúdo essencialmente
economicista-catastrofista.
Nos anos vinte, quando ainda existia na IC e no partido bolche­
vique certa liberdade de pensamento e de discussão, os problemas
suscitados pela construção do socialismo deram lugar a importantes
debates e investigações entre os teóricos soviéticos. Algo parecido,
ainda que em menor escala, ocorreu na IC em face das revoluções
coloniais. Nos dois casos, mas sobretudo no primeiro, aparecia com
enorme evidência o fato de se estar diante de uma problemática
nova, pouco mais que aflorada pelos clássicos do marxismo. Enfim,
nestas matérias, como em todas as outras, se entronizou o esterili-
zante monolitismo ideológico de marca staliniana. Mas no que tange
à problemática do capitalismo, sequer houve uma fase criadora.
Neste terreno, partiu-se da idéia de que o essencial fora descoberto
por Marx ou, no que toca ao monopolismo e ao imperialismo, por
Lênin — e com a agravante de que tanto a herança marxiana quanto
a análise leniniana do imperialismo se interpretaram e dogmatizaram
cada vez mais no sentido economicista-catastrofista. De acordo com
esta interpretação, as estruturas capitalistas-monopolistas representa­
vam um insuperável obstáculo ao desenvolvimento das forças pro­
dutivas; o mecanismo econômico do sistema estava condenado, em
prazo mais ou menos breve, a uma inelutável bancarrota que provo­
caria a revolução, provavelmente através de uma nova guerra impe­
rialista.
Como se sabe, algumas formulações e análises de Marx parecem
atribuir à dialética capitalista um limite estrutural absoluto: o ponto
em que “ a centralização do capital e a socialização do trabalho se
tornam incompatíveis com o seu invólucro capitalista” e este, inelu-
tavelmente, vai “ se estilhaçar” 2. Contudo, o conjunto da teoria da

647
revolução de Marx não autoriza uma interpretação economicista-ca-
tastrofista de tais formulações. Apesar disto, elas foram interpretadas
desta maneira na época da Segunda Internacional, quer pela ortodo­
xia kautskiana dos primeiros tempos, quer pelos teóricos da esquer­
da. A análise leniniana do capitalismo imperialista, mesmo repre­
sentando sob certos aspectos um desenvolvimento criador do marxis­
mo, não escapa totalmente a esta herança. A sua caracterização do
imperialismo como capitalismo parasitário, putrefato, em decompo­
sição, e muito particularmente o conceito de Lênin que resume a
“essência econômica” do imperialismo (a idéia de “capitalismo ago­
nizante”3) não correspondem à tese de que a concentração do capital
e a socialização do trabalho já chegaram — e a guerra imperialista
seria a expressão catastrófica deste fato — ao limite extremo da
incompatibilidade com o “invólucro capitalista”, supostamente pre­
visto por Marx? E não é esta ótica teórica que induz Lênin a
considerar pienamente amadurecidas as “condições objetivas” da
revolução em escala mundial? Não é ela que o induz a visualizar a
revolução mundial em ato, em marcha, a partir da revolução russa?
Esta hipótese é abonada por uma série de colocações leninianas
deste período, especialmente os documentos dos quatro primeiros
congressos da IC, em cuja elaboração ou aprovação Lênin interveio.
O IV Congresso resume da seguinte maneira, ratificando-a, a carac­
terização do capitalismo fornecida pelo III (em cujo desenvolvimento
e conclusões, como é notório, Lênin teve uma intervenção diretís-
sima): “Depois de analisar a situação econômica mundial, o III Con­
gresso pôde constatar, com a maior precisão, que o capitalismo,
cumprida a sua missão de desenvolver as forças produtivas, caiu na
mais irredutível contradição, não só com as necessidades da atual
evolução histórica, mas ainda com as mais elementares condi­
ções da existência humana. [ . . . ] O capitalismo sobrevive a si
mesmo. [. . . ] O que experimenta hoje é a agonia. O colapso do
capitalismo é inevitável” 4. Os três primeiros congressos formularam
o mesmo diagnóstico em termos de “agonia”. No primeiro se sus­
tenta categoricamente a “incapacidade absoluta das classes dirigentes
para reger de agora em diante o destino dos povos”, “a incapaci­
dade do capitalismo financeiro para restaurar a economia destruída”,
“a impossibilidade de reconstruir a produção sobre as bases antigas”,
“a crise mortal geral que afeta a circulação de produtos no regime
capitalista” e “a impossibilidade de regressar, não só à livre con­
corrência, mas à dominação dos trustes, cartéis, etc.” . O segundo

648
afirma que “a Europa se arruina e, com ela, o mundo inteiro. Sobre
a base do capitalismo não há salvação” s. E o terceiro: “O nível
das forças produtivas cairá da sua atual altura fictícia. Somente
podem existir períodos de prosperidade de curta duração e de caráter
sobretudo especulativo” ; se o equilíbrio capitalista chegar a se
restabelecer, será “sobre a base do esgotamento econômico e de um
retrocesso tal da civilização que, comparativamente, a atual situação
da Europa pareceria o cúmulo do bem-estar”; toda melhoria das
condições de existência dos trabalhadores “está em contradição abso­
luta com as possibilidades objetivas do capitalismo”; “na sua agonia,
o mundo capitalista inclina-se novamente para a guerra mundial” 6.
Numa palavra, as contradições básicas, estruturais, do capitalismo
tinham chegado — de acordo com a IC leniniana — a um ponto
de incompatibilidade absoluta com o funcionamento do sistema. Este
é o conteúdo concreto que, neste período, possui o conceito de “capi­
talismo agonizante”.
É verdade que nos textos de Lênin se podem encontrar afirma­
ções aparentemente contraditórias com este conteúdo — enquanto
o proletariado não estiver em condições de golpeá-la decisivamente,
a burguesia sempre poderá viabilizar uma saída; a putrefação do
capitalismo não significa que a produção não possa crescer em tal
ou qual ramo, em tal ou qual país, enquanto noutros ramos econô­
micos e países ocorrer o contrário; a “lei do desenvolvimento desi­
gual” determina estas flutuações; mas a contradição é só aparente:
as flutuações inserem-se na situação limite a que supostamente che­
gara a contradição básica do sistema; quer tendam a uma direção
ou outra, apenas a agravam, aprofundam-na, exacerbam-na. Por isto,
assegura o III Congresso, “é incontestável que, na época atual, a
curva do desenvolvimento capitalista seja, em geral, descendente,
com passageiros movimentos de recuperação, e a curva da revolução,
com alguns refluxos, seja ascendente”; “as flutuações acompanham
o capitalismo na sua agonia, como o acompanharam na sua juven­
tude e na sua maturidade” 7.
Em 1924, quando já se iniciara o novo ciclo de auge na eco­
nomia capitalista, a resolução do V Congresso da IC sobre a situação
econômica mundial afirma que “a crise continua”, tomando a forma
de “crise industrial crônica nos principais países capitalistas” e de
“crise agrária no mundo inteiro”; não têm nenhum fundamento as
avaliações dos teóricos social-democratas (Hilferding) segundo as
quais o capitalismo superou a crise do pós-guerra e se encontra às

649
vésperas de um grande período de prosperidade mundial” 8. Meses
depois, uma sessão plenária do Comitê Executivo da IC era obrigada
a reconhecer a existência do auge, mas qualificando-o de “estabili­
zação relativa” do capitalismo. A concepção básica mantém-se inal­
terada. O VI Congresso inscreve no Programa da IC: “A época do
imperialismo é a do capitalismo moribundo. A guerra mundial de
1914-1918 e a crise geral do capitalismo que ela deflagrou pro­
vam [. . . ] que as condições materiais do socialismo no seio da socie­
dade capitalista já estão maduras e que o invólucro capitalista da
sociedade converteu-se num obstáculo intolerável para o ulterior de­
senvolvimento da humanidade. [. . . ] O sistema capitalista, em seu
conjunto, caminha para o crack definitivo” 9. Sob este ângulo foi
vista a crise de 1929. Vários autores reconhecem à IC o mérito de
haver previsto esta crise, mas, na realidade, rara era a análise econô­
mica da IC, desde a sua fundação, que não anunciava uma “crise
próxima” de grande envergadura. Algum dia a previsão se reali­
zaria, dadas as características cíclicas do desenvolvimento capitalista.
Entretanto, o acerto de 1929 não teve nenhum efeito político posi­
tivo, porque continuou inserido no grande equívoco — produto de
toda a concepção do “capitalismo agonizante” — que consistiu em
tomar a crise econômica mundial como a tão anunciada e esperada
“crise final” do sistema. E isto determinou (junto com outros fatores
ligados à política interna e externa do Kremlin) a linha ultra-esquer­
dista da Internacional nesse momento — linha caracterizada pela
subestimação do perigo fascista — , o sectarismo delirante em face
da social-democracia (definida como “social-fascismo”), a tática aven­
tureira imposta ao partido comunista chinês (depois de havê-lo subor­
dinado a Chiang Kai-Chek), a desnorteada orientação aplicada na
fase inicial (1930-1933) da revolução espanhola, etc.
O aspecto economicista-catastrofista que registramos era com­
pensado em Lênin pelo caráter global da sua teoria da revolução,
na qual o momento político, o partido e a luta de classes indiscuti­
velmente têm a primazia; era replicado pela sua metodologia
dialética no exame de qualquer problema, pela sua capacidade de
retificação em função das necessidades da ação política, baseada
sempre na análise concreta da situação concreta (embora certas fa­
cetas importantes da concepção leniniana do partido implicassem
uma tendência prejudicial a este enfoque dialético, como veremos
noutro ponto). Na medida em que o leninismo era dogmatizado na
teoria e na prática da IC, cada um de seus aspectos vai adquirindo

650
uma existência autônoma, deixando de ser tratado como elemento
de uma totalidade dialética. É o que se passa com o ingrediente
economicista-catastrofista. As “leis econômicas” do capitalismo são
manipuladas como algo transcendente à luta de classes, como forças
“objetivas” que determinam fatalmente o curso histórico, particular­
mente a “lei” da queda da taxa de lucros e a “lei” da pauperização
da classe operária, manejadas com a abstração das contratendências
assinaladas por Marx. A “lei” do desenvolvimento desigual do ca­
pitalismo no estágio imperialista adquire, nas análises da IC, uma
faculdade demonstrativa universal. Tanto serve para “demonstrar”
a possibilidade da construção do socialismo integral na URSS como
para explicar suficientemente o desenvolvimento de um país capi­
talista — apesar da “agonia” do capitalismo — ou a estagnação de
outro; serve para designar, em cada conjuntura, o “elo mais fraco”,
para fundamentar o perigo de guerra, para definir a previsível
coordenação dos contendores, etc.
Até a vitória do hitlerismo, a concepção economicista-catastro­
fista desempenhou a função ideológica — no sentido pejorativo do
conceito — de conciliar o postulado estratégico fundamental da IC
com a situação real. Segundo este postulado, a revolução mundial
deveria retomar a sua marcha a curto prazo. Mas a situação real se
caracterizava pelo refluxo da luta de classes revolucionária no capi­
talismo europeu e americano, eloqüentemente expresso na espeta­
cular progressão da social-democracia e do movimento sindical refor­
mista, assim como no outro lado do mesmo fenômeno: a acentuada
diminuição dos efetivos e da influência da IC. A concepção econo­
micista-catastrofista permitia interpretar esta evolução político-social
como um fenômeno de superfície, sob o qual a ação das “leis eco­
nômicas” continuava impulsionando inexoravelmente o capitalismo
para o abismo da “crise final”. Isto tornava mais crível o futuro
da revolução russa e justificava a razão de ser da IC enquanto par­
tido mundial ultracentralizado e semimilitarizado, pronto para di­
rigir a próxima guerra revolucionária mundial.

3. Evidentemente, a concepção economicista-catastrofista do ca­


pitalismo e a metodologia mecanicista que lhe era inerente tinham
que influir de modo negativo nas elaborações estratégicas e táticas
da IC referentes à luta revolucionária nos países capitalistas avan­
çados. Aqui reside, sem dúvida, uma das causas primordiais da
impotência da Internacional Comunista para penetrar no proleta­

ri
riado dos centros vitais do capitalismo (como os Estados Unidos e
a Inglaterra); da sua incapacidade para atrair as forças proletárias
decisivas noutro desses centros vitais, a Alemanha (apesar da impor­
tante base inicial que a IC teve ali e da debilitação do capitalismo
alemão pela derrota e pela tormenta revolucionária de 1918). Numa
palavra, da sua incapacidade para encontrar uma linguagem comum
com as grandes massas proletárias do capitalismo desenvolvido, assim
como formas adequadas de ação e de organização.
A visão economicista-catastrofista explica também, em grande
parte, o fato de a IC ter interpretado o fenômeno fascista como a
expressão exasperada da debilidade irremediável do capitalismo, a
sua última peripécia “agònica”, e o New Deal como outro intento
vão de superar as suas contradições estruturais. Esta visão, que
inspirou, como assinalamos, a linha ultra-esquerdista e sectária dos
anos que precedem a tomada do poder por Hitler, serviu depois
para cobrir ideologicamente a linha de colaboração de classe que
se inicia nos tempos da frente popular e alcança o seu apogeu no
período da “grande aliança”. A concepção economicista-catastrofista
continuou vigente no movimento comunista até o fim do reinado de
Stalin — sem desaparecer de todo, depois —; os “escritos econô­
micos” stalinianos de 1952 representam uma nova tentativa de teo-
rizá-la.
Destas premissas teóricas derivam aspectos permanentes e essen­
ciais da tática da IC. Em primeiro lugar, a significação que se atri­
bui à luta pelas reivindicações econômicas “elementares”, resumida
no seguinte ponto das teses sobre tática adotadas pelo III Congres­
so: “A natureza revolucionária da época atual consiste, precisamente,
em que as mais modestas condições de existência das massas operárias
são incompatíveis com a existência da sociedade capitalista e, por
esta razão, a luta pelas reivindicações mais modestas toma as pro­
porções de uma luta pelo comunismo” 10. Apesar de todas as viragens
políticas da IC, esta tese sempre constituirá um dos princípios teó­
ricos da sua ação. Na luta pelas “reivindicações mais modestas”, a
IC não vê apenas um patamar primário do processo de conscientiza­
ção classista e de organização unitária das massas mais amplas, mas
o meio mais eficaz de acelerar o crack do mecanismo produtivo
capitalista. E, simultaneamente, de minar a influência dos chefes
reformistas, partindo do seguinte raciocínio: se os capitalistas, na
fase “agònica” do sistema, objetivamente não podem ceder às rei­
vindicações econômicas dos trabalhadores — nem mesmo às “mais

652
modestas” —, os chefes reformistas, agentes por antonomásia da
burguesia, estão objetivamente impossibilitados de propiciar e liderar
qualquer luta efetiva pelas reivindicações econômicas.
Na prática, a grande beneficiária da luta econômica, até 1929,
foi a social-democracia, e a IC, inclusive, nos anos de grande crise
mundial, sofreu uma importante redução nos seus efetivos11. Apenas
o partido francês, a partir da frente popular, o tchecoslovaco durante
um breve período e o italiano depois de 1945 puderam competir
vantajosamente com a social-democracia e os sindicatos reformistas
neste terreno — mas à base de se inserirem, eles mesmos, numa pers­
pectiva reformista. Esta experiência não prova, é claro, que a luta
pelas reivindicações econômicas fosse, no período que estamos exa­
minando, uma dimensão irrelevante para a ação revolucionária no
capitalismo. Prova, simplesmente, que não possuía o significado que
lhe atribuía a concepção economicista-catastrofista. Até um certo
patamar quantitativo, ela não só era perfeitamente compatível com
o funcionamento do sistema como, ademais, constituía um impor­
tante motor do seu desenvolvimento tecnológico e organizativo. E a
ultrapassagem deste patamar requeria um grau de consciência de
classe e de politização revolucionária que a simples luta pelas “rei­
vindicações mais modestas” não podia criar, uma vez que os êxitos
desta luta alimentavam — ao invés de reduzi-las — as ilusões re­
formistas. Para que tivesse outro efeito, a luta econômica deveria
inserir-se numa ação política e ideológica embasada nas contradi­
ções e problemas — antigos e novos — que iam adquirindo relevân­
cia na existência das massas a medida em que a questão do “pedaço
de pão” perdia o seu anterior dramatismo. Mas a visão “ agônica”
do capitalismo, de essência economicista, induzia à subestimação
desta nova problemática, cujo núcleo central pode ser situado na
questão da democracia política e social.
A democracia burguesa — considerada pelas massas operárias
como uma conquista própria, a partir do momento em que incluiu
a existência legal das organizações operárias, a legalidade da greve, o
sufrágio universal, etc. — era (e continua sendo) susceptível de uma
utilização revolucionária; mas, ao mesmo tempo, constitui uma das
principais fontes do reformismo, tanto a nível ideológico e político
como a nível da luta reivindicativa cotidiana. Este efeito não pode
ser replicado com um desmascaramento abstrato dos aspectos
formais da democracia burguesa, mas é possível fazê-lo através da

653
luta concreta por uma democracia real em todos os aspectos da
vida social. A IC não somente subestimou este problema como, até
o VII Congresso, manteve diante dele uma atitude fundamentalmente
abstrata e negativa. Programaticamente, opunha à democracia bur­
guesa a democracia proletária de tipo soviético. O modelo concreto
de que se reclamava, porém, dificilmente podia suscitar entusiasmo
nas massas operárias educadas nos sindicatos reformistas (ou anarco-
sindicalistas) e nos partidos social-democratas, informadas, por suas
próprias organizações (e não precisamente com a maior benevolên­
cia), da evolução que ia sofrendo a “democracia soviética”. As mas­
sas operárias ocidentais não podiam compreender como a arregimen-
tação dos sindicatos, a privação das liberdades políticas (não só da
burguesia, mas também do proletariado), a hierarquização e a orga­
nização taylorista da produção configurariam uma forma de demo­
cracia superior à democracia formal burguesa, na qual, ao menos,
os trabalhadores tinham certas possibilidades legais de defender
as suas condições de existência. Taticamente, até a viragem do
VII Congresso, a IC preconizava a formação de “sovietes” a cada
vez que julgava chegada uma situação revolucionária em determi­
nado país; mas esta consigna, manejada abstratamente, desvinculada
das formas concretas que o movimento de massas assumia sob o
peso da experiência tradicional, nunca teve efeitos práticos em qual­
quer país capitalista. Para consegui-los, teria sido necessária outra
estratégia política, que incluísse a ação permanente para desenvolver
formas de democracia proletária em todos os aspectos da luta de
massas, particularmente nas empresas e sindicatos; teria sido neces­
sário que os partidos comunistas fossem os portadores — na sua
própria maneira de se relacionar com as massas, de elaborar a sua
política e de organizar-se internamente — da nova democracia.
Dados os seus fundamentos teóricos e organizacionais, o seu repú­
dio negativo às correntes e experiências européias que mais tendiam
ao desenvolvimento da democracia proletária no próprio processo da
luta contra o capitalismo, a IC sequer podia conceber uma estratégia
deste tipo. Depois do VII Congresso, sob os imperativos da defesa
da URSS e da luta contra o fascismo, a IC e as suas seções se situa­
ram no terreno da democracia, mas da democracia burguesa. Sobre
esta base, os partidos comunistas conseguiram estreitar os seus
vínculos com as massas trabalhadoras e, em alguns casos, muito
poucos, converter-se em partidos hegemônicos da classe operária. No

654
entanto, com isto iniciavam a evolução neo-reformista que haveria de
se consolidar e desenvolver no contexto da “grande aliança”.
Para este deslizamento dos partidos comunistas ao terreno da
democracia burguesa, do parlamentarismo e do legalismo, também
serviu de justificação teórica a concepção do capitalismo como re­
gime “agonizante” e a correspondente e já indicada interpretação do
fascismo. Formulou-se a tese de que a sobrevivência do capitalismo
era já incompatível com a conservação da democracia burguesa e,
portanto, a sua defesa — como a defesa dos interesses econômicos
imediatos das massas — conduzia inelutavelmente a colocar o con­
junto do sistema contra a parede.

4. Em meados dos anos vinte, a ortodoxia da IC se “enriquece”


com a doutrina do socialismo num só país, cuja função ideológica
inicial é análoga à da concepção economicista-catastrofista do capi­
talismo: emprestar maior credibilidade quer ao futuro da revolução
russa, quer à inexorabilidade da revolução mundial — mesmo que,
em realidade, reflita a desconfiança da fração staliniana nesta última.
Desconfiança que se expressa na tendência da doutrina de Stalin
para independizar a revolução russa da revolução mundial (ainda
que conservando a interdependência “em última instância”). Ela
afirma, com efeito, a possibilidade da construção do socialismo inte­
gral na Rússia, embora a revolução não se tenha dado no capitalismo
avançado — mas retém a necessidade desta revolução para garantir
definitivamente o “socialismo integral” russo contra qualquer ataque
externo. Sobre esta base, a doutrina do socialismo num só país
conjuga-se, nos textos da IC, com a perspectiva da revolução mundial
(até a viragem de 1934, quando esta perspectiva desaparece dos
textos). Este enxerto, porém, implica a revisão da teoria da revolução
mundial no que toca a aspectos essenciais — tanto na sua versão
marxiana quanto na leniniana. Aqui, vamos nos limitar a sintetizar
esquematicamente alguns dos principais pontos desta revisão.
a) A doutrina staliniana introduz o postulado — contrário à
fundamentação científica marxiana das condições materiais do so­
cialismo — de que o socialismo integral pode ser construído num
espaço regional, não necessitando do espaço mundial. Depois da
Segunda Guerra Mundial, Stalin até afirmará que o comunismo pode
ser construído no marco nacional da URSS. Trata-se, nos dois casos,
de proposições arbitrárias, carentes de qualquer fundamentação teó­
rica séria, impostas pela via da autoridade. E, enquanto demonstra­

655
ção empírica, a realidade do “socialismo integral”, dado como cons­
truído ainda em vida de Stalin, em qualquer caso ela fala a favor
das teses marxianas. Mas não vamos nos aprofundar aqui neste pro­
blema; além do que já dissemos no capítulo consagrado à “crise
teórica”, este aspecto da revisão staliniana será examinado na con­
tinuidade da nossa obra.
b) Para Marx e Lênin, a frente decisiva da revolução mundial
se localiza nos países capitalistas desenvolvidos. As revoluções de
tipo distinto na periferia do sistema podem, na sua ótica, desem­
penhar um grande papel para facilitar a vitória revolucionária do
proletariado nos centros vitais do sistema, mas apenas esta vitória
pode criar as condições econômicas e políticas para a construção
de uma sociedade socialista integral (é possível atribuir a Marx esta
posição, uma vez que, embora a primeira teorização global do papel
das revoluções periféricas na dialética da revolução mundial caiba
a Lênin, que contava com a experiência da revolução russa e das
primeiras revoluções coloniais, já em Marx se encontram apreciações
que vão na mesma direção). Até a morte de Lênin, o papel e o
lugar da revolução russa na revolução mundial foram enfocados
sobre esta base, e a construção do socialismo no interior das fron­
teiras soviéticas foi considerada como uma tarefa que só se podia
levar a cabo — desembocando numa verdadeira sociedade socia­
lista — se se fundisse com a revolução na área capitalista desen­
volvida. Tratava-se de avançar o “mais possível” nesta direção, en­
quanto os proletários do capitalismo não tomassem o poder e, ao
mesmo tempo, de ajudá-los o “mais possível”, em todos os terrenos,
para alcançar este objetivo.
Com a doutrina do socialismo num só país, a concepção estra­
tégica se altera radicalmente. A construção do socialismo na URSS
se converte — para dizer conforme as fórmulas do VI Congresso
da IC — no “motor internacional da revolução proletária” no
“maior fator da história universal”, no “fator essencial da libertação
internacional do proletariado”; a contradição entre a URSS e o
mundo capitalista passa a ser a “nova contradição fundamental”
que determina a marcha da revolução mundial — o que significa,
como Ponomarev recentemente recordou, que a construção do socia­
lismo na URSS se transformava na “frente decisiva da luta re­
volucionária da classe operária internacional” ,2. Ou seja: a tarefa
número um da IC deixava de ser a luta revolucionária pela derrocada

656
do capitalismo nos seus centros vitais e passava a ser a preservação
do Estado soviético de todo ataque exterior enquanto se edificava
o “socialismo integral”.
c) Para Marx e Lênin, a organização internacional do proleta­
riado revolucionário não podia, pela sua própria essência, estar
submetida a qualquer interesse nacional. Neste espírito é que foi
concebida a IC. O poder soviético era considerado como uma força
subordinada pienamente aos interesses e necessidades da luta revolu­
cionária mundial, um destacamento da Internacional Comunista e
não um poder acima dela (nos primeiros anos, o Exército Vermelho
jurava fidelidade à Internacional Comunista). Praticamente, como
vimos no decorrer da nossa exposição, a IC ficou subordinada desde
o primeiro dia aos chefes do Estado soviético e, apesar de todo o
incorruptível internacionalismo de Lênin, Trótski e outros dirigentes
bolcheviques, emergiu um certo divórcio entre a teoria e o compor­
tamento real. Mas Lênin — como revela, entre outras, a sua inter­
venção no IV Congresso da IC, criticando o caráter “demasiada­
mente russo” da resolução sobre as tarefas da Internacional — perce­
bia o perigo desta subordinação, contrária a toda a sua concepção
do internacionalismo.
Sob Stalin, a subordinação não só se acentua de fato: ganha
uma fundamentação teórica com a doutrina do socialismo num só
país. De fato, desde o momento em que a construção do socialismo
na URSS fica definida como a frente decisiva da revolução mundial;
desde o momento em que a tarefa prioritária da IC passa a ser a
preservação deste objetivo contra os perigos exteriores — então se
tornava coerente que a ação da IC estivesse controlada e superdiri-
gida pelos que assumiam a responsabilidade direta da construção do
socialismo na URSS.
d) O conjunto desta revisão staliniana confere à teoria “mar­
xista-leninista” da revolução um caráter ainda mais determinista do
que o já adquirido sob o influxo da concepção economicista-catas-
trofista. Se, de fato, o capitalismo “agonizante” não pode garantir
nenhum desenvolvimento prolongado e substancial das forças produ­
tivas, e, em troca, estas podem crescer ilimitadamente na URSS até
proporcionar a base material suficiente do “socialismo integral”, há
de chegar fatalmente o momento em que a relação de forças em
escala mundial se incline decisivamente a favor do socialismo, inclu­
sive se os proletários dos países capitalistas ainda não tenham sido

657
cão empírica, a realidade do “socialismo integral”, dado como cons­
truído ainda em vida de Stalin, em qualquer caso ela fala a favor
das teses marxianas. Mas não vamos nos aprofundar aqui neste pro­
blema; além do que já dissemos no capítulo consagrado à “crise
teórica”, este aspecto da revisão staliniana será examinado na con­
tinuidade da nossa obra.
b) Para Marx e Lênin, a frente decisiva da revolução mundial
se localiza nos países capitalistas desenvolvidos. As revoluções de
tipo distinto na periferia do sistema podem, na sua ótica, desem­
penhar um grande papel para facilitar a vitória revolucionária do
proletariado nos centros vitais do sistema, mas apenas esta vitória
pode criar as condições econômicas e políticas para a construção
de uma sociedade socialista integral (é possível atribuir a Marx esta
posição, uma vez que, embora a primeira teorização global do papel
das revoluções periféricas na dialética da revolução mundial caiba
a Lênin, que contava com a experiência da revolução russa e das
primeiras revoluções coloniais, já em Marx se encontram apreciações
que vão na mesma direção). Até a morte de Lênin, o papel e o
lugar da revolução russa na revolução mundial foram enfocados
sobre esta base, e a construção do socialismo no interior das fron­
teiras soviéticas foi considerada como uma tarefa que só se podia
levar a cabo — desembocando numa verdadeira sociedade socia­
lista — se se fundisse com a revolução na área capitalista desen­
volvida. Tratava-se de avançar o “mais possível” nesta direção, en­
quanto os proletários do capitalismo não tomassem o poder e, ao
mesmo tempo, de ajudá-los o “mais possível”, em todos os terrenos,
para alcançar este objetivo.
Com a doutrina do socialismo num só país, a concepção estra­
tégica se altera radicalmente. A construção do socialismo na URSS
se converte — para dizer conforme as fórmulas do VI Congresso
da IC — no “motor internacional da revolução proletária” no
“maior fator da história universal”, no “fator essencial da libertação
internacional do proletariado”; a contradição entre a URSS e o
mundo capitalista passa a ser a “nova contradição fundamental”
que determina a marcha da revolução mundial — o que significa,
como Ponomarev recentemente recordou, que a construção do socia­
lismo na URSS se transformava na “frente decisiva da luta re­
volucionária da classe operária internacional” ,2. Ou seja: a tarefa
número um da IC deixava de ser a luta revolucionária pela derrocada

656
do capitalismo nos seus centros vitais e passava a ser a preservação
do Estado soviético de todo ataque exterior enquanto se edificava
o “socialismo integral”.
c) Para Marx e Lênin, a organização internacional do proleta­
riado revolucionário não podia, pela sua própria essência, estar
submetida a qualquer interesse nacional. Neste espírito é que foi
concebida a IC. O poder soviético era considerado como uma força
subordinada pienamente aos interesses e necessidades da luta revolu­
cionária mundial, um destacamento da Internacional Comunista e
não um poder acima dela (nos primeiros anos, o Exército Vermelho
jurava fidelidade à Internacional Comunista). Praticamente, como
vimos no decorrer da nossa exposição, a IC ficou subordinada desde
o primeiro dia aos chefes do Estado soviético e, apesar de todo o
incorruptível internacionalismo de Lênin, Trótski e outros dirigentes
bolcheviques, emergiu um certo divórcio entre a teoria e o compor­
tamento real. Mas Lênin — como revela, entre outras, a sua inter­
venção no IV Congresso da IC, criticando o caráter “demasiada­
mente russo” da resolução sobre as tarefas da Internacional — perce­
bia o perigo desta subordinação, contrária a toda a sua concepção
do internacionalismo.
Sob Stalin, a subordinação não só se acentua de fato: ganha
uma fundamentação teórica com a doutrina do socialismo num só
país. De fato, desde o momento em que a construção do socialismo
na URSS fica definida como a frente decisiva da revolução mundial;
desde o momento em que a tarefa prioritária da IC passa a ser a
preservação deste objetivo contra os perigos exteriores — então se
tornava coerente que a ação da IC estivesse controlada e superdiri-
gida pelos que assumiam a responsabilidade direta da construção do
socialismo na URSS.
d) O conjunto desta revisão staliniana confere à teoria “mar­
xista-leninista” da revolução um caráter ainda mais determinista do
que o já adquirido sob o influxo da concepção economicista-catas-
trofista. Se, de fato, o capitalismo “agonizante” não pode garantir
nenhum desenvolvimento prolongado e substancial das forças produ­
tivas, e, em troca, estas podem crescer ilimitadamente na URSS até
proporcionar a base material suficiente do “socialismo integral”, há
de chegar fatalmente o momento em que a relação de forças em
escala mundial se incline decisivamente a favor do socialismo, inclu­
sive se os proletários dos países capitalistas ainda não tenham sido

657
capazes de fazer a sua revolução. Esta cairia, finalmente, como um
fruto mais que maduro, da árvore do socialismo num só país.

5. Enquanto esta perspectiva — tão otimista quanto ilusó­


ria — se convertia no eixo da estratégia da IC, outra, muito real,
começava a emergir cautelosamente nas relações entre o Estado so­
viético e o mundo capitalista.
Tanto Marx quanto Lênin supunham que a vitória da revolução
em algum dos principais países capitalistas seria inconciliável (dada
a articulação da economia mundial, o caráter das forças produtivas
avançadas e o sistema das relações internacionais) com a permanên­
cia do capitalismo em outros países do mesmo tipo — inevitavel­
mente se deflagraria uma luta mortal. E esta previsão tinha, sem
dúvida, sólidos fundamentos. Basta imaginar o caso possível da vitó­
ria da revolução proletária na Alemanha de 1918. As potências da
Entente teriam se limitado a uma intervenção análoga, pelas suas pro­
porções, à que efetuaram contra a revolução russa? Não lançariam
mão de todo o seu poderio econômico e militar para liquidá-la?
Inicialmente — e a intervenção da Entente lhes parecia dar ra­
zão —, os bolcheviques enfocaram sob esta ótica o destino da
revolução russa. Daí o tom de surpresa e incredulidade que trans­
parece nas suas primeiras reações à situação de coexistência mais
ou menos pacífica que se cria imediatamente depois da derrota da
contra-revolução interna e da intervenção estrangeira e o seu temor
de que uma nova intervenção, de envergadura muito maior, poderia
se dar a qualquer momento. A mobilização operária internacional e
outros fatores políticos não explicam, exceto muito parcialmente, o
fato de que tal intervenção não tenha ocorrido. Sem dúvidas, nisto
influiu, e de modo muito decisivo, que a Rússia czarista não desem­
penhasse na economia mundial um papel comparável, ainda que
de longe, ao dos principais países capitalistas. O mecanismo podia
continuar funcionando perfeitamente sem esta “peça”. E se, ademais,
se apresentava a oportunidade de comerciar com o inédito truste
estatal que entrava em cena, tanto melhor.
Inadmissível para as potências capitalistas era uma Rússia
soviética que fomentasse a revolução socialista para além das suas
fronteiras, quer pela ajuda teórica, política e material ao movimento
revolucionário no mundo capitalista, quer pela criação de um regime
social que desse efetivos passos para a libertação econômica, política
e cultural dos trabalhadores, constituindo assim um exemplo explo-

658
sivo para o proletariado mundial. A incredulidade de Lênin e seus
camaradas em face da possibilidade de uma coexistência duradoura
com o mundo capitalista explica-se também por esta razão: para eles,
a Rússia soviética era, antes de mais, esta força impulsionadora da
revolução em escala mundial.
A doutrina do socialismo num só país introduzia, como vimos,
uma alteração de ótica fundamental neste aspecto. Abriu a possibi­
lidade teórica de eliminar este fator de incompatibilidade nas rela­
ções entre o Estado soviético e os Estados capitalistas, posto que,
segundo esta doutrina, a revolução no capitalismo deixava de ser a
condição necessária da “construção do socialismo” na URSS. Natu­
ralmente, para que esta possibilidade se materializasse, era preciso
que a direção soviética abandonasse o internacionalismo proletário
e se encerrasse no seu “socialismo nacional” — e era preciso, tam­
bém, que este “socialismo nacional” não chegasse a ser o exemplo
explosivo atrás referido.
A burguesia internacional foi dosando a sua atitude para
com o Estado soviético em função da evolução deste e da sua polí­
tica. A industrialização russa não afetava os seus interesses econô­
micos essenciais e inclusive podia oferecer-lhe oportunidades sedu­
toras. Por outro lado, na medida em que se acentuava a liquidação
da democracia soviética, em que se reduziam os direitos políticos e
sindicais dos trabalhadores, a propaganda burguesa e social-demo­
crata se via abastecida de excelentes argumentos para desacreditar,
ante as massas operárias, não apenas o regime soviético, mas o mar­
xismo revolucionário em geral, a própria idéia da revolução e do
socialismo. Na medida em que este processo avançava, em que o
exemplo soviético deixava de ser estimulante para amplos setores
do movimento operário ocidental, o desideratum dos governos e
ideólogos burgueses foi se concentrando em que os chefes soviéticos
renunciassem à pretensão de fomentar a revolução fora das suas
fronteiras, valendo-se dos partidos comunistas. A linguagem da bur­
guesia internacional foi perfeitamente traduzida por Bukharin, em
finais de 1927, atribuindo a Chamberlain a frase: “ Não temos ne­
nhum problema em comerciar com vocês, mas, por favor, tenham a
amabilidade de acabar com a IC” ,3.
Até a ascensão de Hitler ao poder, os chefes soviéticos deram
uma resposta negativa a esta demanda da burguesia mundial. Na
luta interna pelo poder, bem como na realização das suas principais
tarefas econômicas — a coletivização forçada e a industrialização

659
acelerada —, a fração staliniana precisava cobrir-se com a ideologia
da revolução mundial. Por outro lado, enquanto durou a aliança
tácita com a Alemanha oprimida pelo Tratado de Versalhes, os gover­
nantes soviéticos consideraram relativamente seguras as suas frontei­
ras — mesmo que, por razões internas e externas se utilizassem con­
tinuamente do risco da agressão. Em conseqüência, a construção do
socialismo na URSS era apresentada abertamente como o motor da
revolução mundial e a IC como o seu grande instrumento. A teoria
da revolução mundial, dogmatizada e revisada no sentido que já
indicamos, encontra a sua formulação mais completa e coerente no
programa adotado pelo VI Congresso da Internacional. A prática
em que esta teoria se traduz no mundo capitalista e colonial reve­
la-se totalmente inoperante: conduz à catástrofe chinesa e, final­
mente, à alemã. Mas, ao menos, mantém o fogo sagrado. São os
anos heróicos e ultra-sectários da IC staliniana.
Em 1934 inicia-se uma viragem histórica. Começa na URSS o
Grande Terror, que consolida a ditadura de Stalin e, com ela, a
constituição de uma nova classe dominante. Tem início uma inversão
nas alianças no plano internacional. Os Estados Unidos e os capi­
talismos europeus coloniais passam a ser aliados potenciais da URSS
frente ao perigo hitleriano. Em 1935 se firma o pacto franco-sovié­
tico, primeiro acordo militar do Estado soviético com um Estado
capitalista. O concerto das novas alianças exige concessões e Stalin
não se limita, como demonstrará o curso ulterior da sua política, a
concessões táticas. Orienta-se decididamente a sacrificar o que for
necessário e até mais que o necessário — do movimento revolu­
cionário mundial no altar dos “interesses da URSS”, já identificados
com os interesses da nova classe privilegiada. Logo se relega ao
“esquecimento” a teoria da revolução mundial. O seu programa, tão
solenemente aclamado no VI Congresso, é substituído por um pro­
grama universal de antifascismo, democracia e paz (a democracia
deixa de ser adjetivada nos textos programáticos). A “construção do
socialismo na URSS” deixa de ser apresentada como o motor da
revolução mundial e passa a ser o motor da democracia mundial
e a garantia suprema da paz. Nesta hora, nada mais inoportuno que
uma revolução proletária na Europa “democrática”, aliada formal ou
potencial da URSS. Daí que quando a revolução proletária, em
1936, faz-se presente na Espanha e assoma na França, a IC se
dedique denodadamente a reconduzir a revolução espanhola ao seu
leito democrático-burguês e a bloquear qualquer possível materiali­
660
zação da revolução na França. Renuncia-se assim, sem sequer explo­
rá-la, a possibilidade aflorada em 1936 de imprimir um giro revo­
lucionário à luta contra o fascismo e contra o perigo de guerra. A
ajuda do Estado soviético à república espanhola, bem como o grande
movimento de solidariedade para com ela, mantém-se nos limites
compatíveis com a nova orientação da política exterior do Kremlin.
Quando do VII Congresso, cogita-se já da conveniência de dissolver
a IC, mas se a conserva viva para aplicar a nova política de frente
popular, com a que se inicia a grande viragem do movimento comu­
nista no rumo do reformismo. O seu prestígio revolucionário ainda
pode ser útil para encobrir a renúncia à revolução e controlar forças
que subjetivamente resistem a esta renúncia. Porque esta, consciente
para a camarilha staliniana, não o é para a maioria dos militantes e
quadros da IC.
Encerrado o breve parêntese do pacto germano-soviético, com
a sua grotesca ressurreição dos velhos esquemas, esvaziados já de
qualquer substância — e cuja função era encobrir a orientação de
Stalin voltada para um entendimento duradouro com a Alemanha
nazista —, a liquidação teórica e prática dos objetivos revolucio­
nários iniciais do movimento comunista se concretiza plenamente nos
anos da “grande aliança”. O seu símbolo é a dissolução da IC.
A Internacional Comunista não é liquidada por ser, como efetiva­
mente era, um sistema inadequado de direção e organização inter­
nacional da luta revolucionária. O ato dissolutório de 1943 apre­
senta-se assim, mas a verdadeira razão era a renúncia à perspectiva
revolucionária. A IC não é liquidada porque a sua extinção seria
a condição necessária para a derrota alemã, e sim porque era a
condição necessária para a divisão do mundo entre o Estado stali-
niano e os seus aliados capitalistas. A IC não é liquidada para
facilitar a ação nacional revolucionária dos partidos comunistas,
mas para facilitar a sua ação nacional reformista nos marcos da de­
mocracia burguesa. A IC não é liquidada porque está em crise, mas
pelo que, apesar da crise, ainda simboliza: a revolução proletária.
Toda a política dos partidos comunistas — à exceção dos pou­
cos que começam a insubordinar-se contra o comando de Mos­
cou — fica determinada pelo objetivo que Stalin se propõe (como
está documentalmente provado) desde as suas primeiras negociações
com os outros dois “grandes”: a divisão da Europa e do mundo
em esferas de influência. Isto implica que os partidos comunistas
renunciem a priori a toda tentativa de transformar a guerra antifas-
661
cista em revolução socialista. E esta renúncia, por si mesma, deter­
mina que a política dos partidos comunistas não favoreça a emer­
gência daquela possibilidade — bem ao contrário. A sua concepção
das alianças, da natureza do novo poder antifascista e das vias para
criá-lo, etc., tendem a colocar as forças mais avançadas da Resis­
tência sob a hegemonia política e ideológica da burguesia antifascista
nacional e dos “grandes aliados’’ da URSS. E quando, apesar de
tudo, apesar dos compromissos de Stalin e da linha geral que impõe
ao movimento comunista, a revolução se concretiza na Iugoslávia e
na Grécia, assoma na França e na Itália; quando, nessa fase final
e irreversível do fracasso do exército hitleriano, a superioridade
militar se inclina claramente para o exército soviético no cenário
europeu, e a esquerda da Resistência chega ao máximo da sua in­
fluência, envolvendo a grande maioria do proletariado e importantes
setores pequeno-burgueses; quando a conjunção destes fatores — su­
perioridade militar soviética no continente e hegemonia da ala radi­
cal da Resistência — viabiliza, ao menos, a constituição de poderes
antifascistas avançados, sob a direção de forças operárias e peque­
no-burguesas esquerdistas; quando aparece esta possibilidade real,
que podia ser o primeiro passo de um desenvolvimento revolucioná­
rio original em escala européia, as diretrizes que emanam de Moscou
e são acatadas por quase todas as direções comunistas nacionais ten­
dem a bloquear esta possibilidade, a travar o movimento, a fomentar
as máximas ilusões nas decisões dos Três Grandes, a fortalecer a
autoridade anglo-americana no Oeste e no Sul da Europa, a reco­
nhecer e aceitar a direção gaullista na França, democrata-cristã na
Itália, etc. E quando não se trata apenas de uma possibilidade de
desenvolvimento revolucionário, mas de uma realidade, como na
Grécia, Stalin não hesita em facilitar a intervenção militar inglesa
para sufocar a insurreição (em facilitá-la não só mediante o conhe­
cido compromisso com Churchill, mas ainda induzindo a direção
comunista grega à capitulação). Definitivamente, a transformação da
guerra antifascista em revolução se concretizará na Europa apenas
na Iugoslávia, onde os dirigentes comunistas, desde o início, se
orientam para esta perspectiva e a implementam conseqüentemente,
resistindo a todas as pressões de Moscou — ou nos países ocupados
pelo exército soviético, onde a liquidação dos velhos regimes era a
condição necessária para a constituição da área de projeção soviética.
Mas as revoluções deste segundo gênero acarretaram a perda da
independência nacional mal reconquistada. O poder não passa ao

662
povo, nem sequer aos partidos comunistas — muito minoritários
na maior parte desses países —, mas para as mãos de camarilhas
enfeudadas ao Kremlin.
Também a linha dos partidos comunistas coloniais e semicolo-
niais é adaptada à política da “grande aliança”. Os comunistas lati­
no-americanos devem colaborar com o imperialismo ianque, assim
como os hindus devem fazê-lo com o britânico. E, como é universal­
mente sabido, não haveria revolução na China se a direção maoista
assumisse a política de “união nacional” com Chiang, ao estilo fran­
cês ou italiano reclamado por Stalin.
Convertida em superpotência mundial, deslocando as suas fron­
teiras ao coração da Europa, reconhecida e respeitada como realidade
irreversível pelos Estados capitalistas, a URSS instala-se decidida­
mente no novo statu quo e o eixo de sua política internacional
passa invariavelmente pela busca de um entendimento planetário
com a outra superpotência. A “guerra fria” é apenas uma etapa aci­
dentada e perigosa desta busca, provocada pela pretensão do impe­
rialismo americano à hegemonia mundial. Não representa uma vira­
gem, de signo antiimperialista e revolucionário, na orientação de
Stalin. Como, igualmente, não o representa a criação do Centro de
Informação dos Partidos Comunistas, cuja missão real é facilitar a
arregimentação da área de projeção soviética e mobilizar o movi­
mento comunista como instrumento de pressão para impor à Casa
Branca o arranjo que o Kremlin procura.
Enquanto, no Oriente, a grande revolução chinesa inaugura a
época da insurreição do “terceiro mundo”, no Ocidente a perspectiva
socialista fica relegada na teoria — se é que ainda se pode falar
de teoria do movimento comunista — a um horizonte distante e
nebuloso, para cujo alcance o decisivo é a “emulação econômica”
entre os dois sistemas, predestinada a coroar-se infalivelmente com
a vitória do “comunismo” na URSS. A revolução se torna uma
eventualidade perturbadora, quase indesejável. O essencial é conser­
var a pax americano-soviética. A nível teórico, o marxismo oficial
fica pienamente convertido num esquema fossilizado de dogmas
e fórmulas estereotipadas; a nível político, num empirismo de vôo
curto e essência reformista. Assim, ao final do reinado de Stalin, o
abandono do marxismo vivo, da teoria da revolução e da práxis
revolucionária chega, na ortodoxia “marxista-leninista”, a um grau
muito mais avançado do que na ortodoxia da velha social-demo­
cracia, e o movimento comunista parece estar quase a ponto de

663
satisfazer a exigência que Bernstein apresentava à social-democracia
no fim do século: “É necessário que a social-democracia tenha a
coragem de emancipar-se da fraseologia do passado e a vontade de
aparecer como é realmente na atualidade: um partido de reformas
democráticas e sociais”.
O novo reformismo que entrava em cena se distinguia, no en­
tanto, por algumas particularidades importantes. Em primeiro lugar,
o seu nascimento foi determinado, antes de tudo, pela subordinação
da IC à política externa soviética, e pela missão fundamental que,
no interior desta subordinação, se atribuía à Internacional: a defesa
da URSS. As exigências desta defesa, no período da frente popular,
conjugavam-se com as necessidades da luta antifascista, mas sob a
condição — dada a concepção que a direção staliniana tinha da
defesa da URSS — de que esta luta não representasse uma ameaça
para a ordem burguesa nos Estados aliados da URSS ou susceptíveis
de o serem. Numa palavra, sob a condição de que a luta contra o
fascismo se situasse no plano da colaboração de classes. Condicio­
namento análogo continuou existindo depois da Segunda Guerra
Mundial, dado que o fundo da política staliniana, inclusive no pe­
ríodo da “guerra fria”, era a busca de um arranjo duradouro com
os Estados Unidos e seus satélites. Esta marca de nascimento, toda­
via, entrou em contradição, cada vez mais, com as exigências pró­
prias da política neo-reformista em cada país.
Em segundo lugar, a prática reformista iniciada pelos partidos
comunistas continua se conciliando com a perspectiva socialista
— tanto com a política “ultra-revolucionária” do período ante­
rior graças à doutrina do socialismo num só país (depois da guerra,
“socialismo em vários países” ou no “campo socialista”) e à concep­
ção economicista-catastrofista do capitalismo que, como dissemos,
continuou vigente até a morte de Stalin. Depois, a fé nesse socia­
lismo recebeu um golpe mortal com o “relatório secreto”, a denún­
cia dos “processos”, a insurreição húngara, o outubro polonês, etc.
E a idéia de um capitalismo no limite da sua capacidade produtiva
recebeu um golpe não menos sério com o espetacular desenvolvi­
mento dos capitalismos europeus americano e japonês. Esgotada esta
justificação ideológica, o neo-reformismo comunista começou a pro­
curar fundamentos doutrinários mais próximos aos do reformismo
tradicional.
Em terceiro lugar, o novo reformismo se diferenciava do tradi­
cional pelo modelo de sociedade socialista a que dizia aspirar, que

664
continuava sendo o modelo staliniano. Istó significava que todos
os eventuais aliados dos partidos comunistas, todos os que contri­
buíssem para o advento desse “socialismo” cavavam a sua própria
sepultura enquanto correntes, grupos e partidos distintos do partido
comunista. Os processos de Moscou, na época da frente popular, e
os das democracias populares, na etapa posterior, não eram propria­
mente tranquilizadores para os eventuais “companheiros de viagem”.
Durante a época de Stalin, este foi o flanco mais vulnerável da nova
linha dos partidos comunistas. Depois do XX Congresso, fez-se cada
vez mais evidente que, sem repudiar o modelo staliniano de “socia­
lismo”, a política neo-reformista se encontrava num beco sem saída.
Em quarto lugar, o novo reformismo se distinguia do tradicio­
nal pelo tipo de partido que o sustentava. Quando se iniciou a vira­
gem, as seções da IC tinham alcançado — através da “bolchevização”
e de sucessivas depurações — um grau de monolitismo ideológico e
organizacional que o VII Congresso saudou como expressão de
“maturidade”. Isto permitiu empreender a nova via sem dilacera-
mentos importantes e assimilar os novos militantes que vieram com
a Resistência e a Libertação. O sistema organizacional dos partidos
comunistas dotou o novo reformismo de maior eficácia em certos
aspectos e, conjugado com o monolitismo ideológico, dificultou ainda
mais que nos partidos social-democratas a luta interna por uma linha
revolucionária. Mas também estas características dos partidos comu­
nistas, particularmente o monolitismo ideológico e a ausência de
democracia interna, foram entrando em contradição com a política
de aliança exigida pela nova orientação.
Em resumo, a tendência do neo-reformismo comunista, visível
já no período que estudamos e acentuada depois, caracteriza-se por
ir reduzindo as distâncias que inicialmente o separavam do refor­
mismo tradicional. Esta tendência é uma das expressões globais mais
significativas da crise do movimento comunista.

6. Conforme tentamos demonstrar no capítulo sobre a “crise


teórica”, a premissa inicial, objetiva, da crise do movimento comu­
nista reside em que, quando da criação da IC, ainda não haviam
amadurecido — contrariamente ao que Lênin pensava — as condi­
ções objetivas para a revolução socialista no capitalismo desenvol­
vido — e, no entqnto, a IC foi concebida para atuar nestas condições
inexistentes (recordemos que no conceito “condições objetivas” in­
cluímos o estado geral de consciência do proletariado ocidental

665
naquele período — excluí-lo significaria dar a este conceito um con­
teúdo puramente economicista. Repitamos também que o índice mais
eloqüente da “imaturidade”, assim entendida, da revolução na socie­
dade ocidental é dado pelo fato empírico de que a guerra imperia­
lista — a primeira grande crise global do sistema capitalista — não
debilitou senão muito parcialmente o império do reformismo no
movimento operário, apesar dos sacrifícios de todo o tipo que impôs
às massas). Concebida como estado-maior e destacamento de choque
do assalto imediato ao capitalismo mundial, a IC teve que enfrentar
uma tarefa fundamentalmente diferente: ganhar as massas proletárias
para uma política revolucionária em condições não revolucioná­
rias. Logicamente, esta tarefa exigia uma reconversão profunda da
própria IC, mas esta necessidade, como já dissemos, sequer foi
reconhecida como tal. Para explicar este fato, não basta considerar
o fator exposto no ponto 1 desta síntese — o efeito deslumbrante
da Revolução de Outubro. Há que partir da concepção leniniana do
partido e da divergência entre ela e a de Marx.
Não há em Marx uma teoria sistemática do partido proletário,
mas os seus juízos sobre o tema, apreendidos em conexão com a sua
atividade de militante, primeiro na Liga dos Comunistas e, mais
tarde, na Primeira Internacional ou no partido socialista alemão,
formam um conjunto coerente e significativo. A idéia que Marx faz
do partido político proletário é um corolário da sua concepção da
revolução comunista como auto-emancipação da classe operária. Ne­
nhuma instância exterior — chefe carismático, grupo de conjurados,
partido político — pode, segundo Marx, substituir a “maturidade”
revolucionária da classe operária. Ou a revolução comunista será
obra sua ou não haverá revolução. De acordo com a teoria marxiana
da revolução, esta “maturidade” só pode ser engendrada pela própria
prática da luta de classes, a que os proletários se vêem impelidos
por sua situação nas relações de produção capitalistas. A experiência
desta luta ensina-lhes a necessidade da organização e a solidariedade;
revela a eles os seus interesses comuns e o seu inimigo comum;
vai convertendo-os de “classe em si”, atomizada, em “classe para si”,
consciente do antagonismo radical que a opõe à ordem capitalista.
A teoria elaborada pelos intelectuais procedentes da burguesia, que
“aderem à classe revolucionária” e se “elevam teoricamente à com­
preensão do conjunto do movimento histórico” u , contribui para
esta tomada de consciência, mas não funciona como o seu demiurgo.
Numa palavra, para Marx a consciência nasce da prática revolucio­

666
nária e, por seu turno, a aprofunda e a clarifica. Entre ambos os
aspectos da própria práxis, existe a interação dialética definida na
terceira tese sobre Feuerbach15.
Marx estava pienamente consciente — sobretudo depois de viver
o refluxo do espírito revolucionário que se seguiu à derrota das in­
tentonas proletárias nas revoluções de 1848 e de presenciar o “abur­
guesamento” da classe operária inglesa — de que o processo de
“maturação” do proletariado como classe revolucionária nada tinha
de linear, sendo antes profundamente contraditório, marcado por
avanços e retrocessos, ilusões e decepções — uma luta permanente
entre a ideologia burguesa predominante e a nascente ideologia pro­
letária. Porém, dada a natureza das contradições capitalistas, Marx
considerava que este processo, em definitivo, conduziria à maturação
do proletariado como classe revolucionária. E via neste processo
— como escreveu em 1860 — a constituição do partido proletário
“no grande sentido histórico do conceito”, do partidó proletário que
“nasce espontaneamente em todas as partes do solo da sociedade
moderna” 16 e no qual Marx incluía todas as formas — políticas,
sindicais, culturais — de manifestação da “auto-atividade” do pro­
letariado. Em outros termos: para Marx, o proletariado se constitui
em partido revolucionário como classe, não como uma entidade di­
ferenciada da classe e, menos ainda, colocada acima dela. Concepção
esta que não pode ser qualificada como “espontaneísta” no sentido
habitual do conceito, porque, mesmo o processo nascendo esponta­
neamente, determinado pela situação objetiva do proletariado na
sociedade capitalista, sua própria natureza implica que o fator cons­
ciente ganhe cada vez maior relevância, condicionando crescentemen­
te o curso ulterior, imprimindo-lhe um caráter organizado, fixando
cada vez mais precisamente os objetivos e os meios para alcançá-los.
Os partidos políticos operários em sentido corrente são, para
Marx, expressões parciais e transitórias — “episódicas”, segundo suas
palavras 17 — do partido proletário no grande sentido histórico do
conceito, tanto como os sindicatos ou outras formas de organização
operária. Marx valorizava altamente o papel dos sindicatos — criti­
cando, ao mesmo tempo, a sua tendência ao “economicismo” — , en­
quanto, em mais de uma ocasião, manifestou reservas diante dos
partidos políticos operários. “Todos os partidos políticos, sem exce­
ção, quaisquer que sejam — declara em 1869 — , só empolgam tem­
porariamente as massas operárias. Os sindicatos, ao contrário, cap­
tam as massas de modo duradouro; só eles são capazes de repre­

667
sentar um verdadeiro partido operário e de opor um dique ao poder
do capital” 18. Juízo que, como outros análogos, não implica nenhu­
ma subestimação da dimensão política da luta de classes — Marx,
insistentemente, chama os sindicatos a politizar a ação e a colocar-se
o problema do poder — ; ele expressa a prevenção de Marx contra a
separação do aspecto econômico-social da luta de classes do aspecto
especificamente político, bem como a sua prevenção contra a tendên­
cia natural dos grupos políticos a se independizarem da classe, a
conduzi-la e a moldá-la segundo as suas concepções e interesses de
grupo. Durante a sua atividade militante, Marx se confrontou repe­
tidamente com estas tendências. Em 1850, opôs-se aos membros
da Liga dos Comunistas que, “não contentes em organizar o prole­
tariado revolucionário” e “desprezando profundamente a atividade
mais teórica que consiste em explicar aos trabalhadores os seus
interesses de classe , dedicam-se a “antecipar o desenvolvimento do
processo revolucionário, a precipitar artificialmente a crise”. São
— agrega Marx incisivamente — “os alquimistas da revolução, com­
partilhando pienamente com os antigos alquimistas a confusão de
representações, a nebulosidade própria das idéias obsessivas” ,9. Em
1873, enfrentou-se com os bakuninistas, porque se acreditavam “os
representantes privilegiados da idéia revolucionária”, “erigindo-se
eles mesmos em estado-maior , pretendendo impor à Internacional,
com meios conspirativos e ditatoriais, uma “unidade de pensamento
e ação” equivalente ao “dogmatismo e à obediência cega”, ao perin-
de ac cadaver da Companhia de Jesus20. Em 1879, Marx e Engels se
insurgiram contra as tendências oportunistas que começam a se ma­
nifestar no núcleo dirigente do partido socialista alemão, particular­
mente contra a idéia de que “a classe operária não é capaz de se
libertar por si mesma” 21. Numa palavra — e poderíamos multiplicar
os exemplos — : Marx e Engels se opõem sistematicamente a qual­
quer tendência, de “esquerda” ou de “direita”, que tente substituir
o movimento real da classe operária, ditar-lhe uma política, impor-
lhe uma teoria. A ação dos comunistas, vale dizer, dos que compar­
tilhavam das suas concepções teóricas, Marx não a concebeu nunca
como a ação de um partido exterior à classe operária, titular de uma
função privilegiada de direção no sentido leninista. É como declara
o Manifesto: Os comunistas não formam um partido separado, opos­
to aos outros partidos operários” ; “não proclamam princípios par­
ticulares, a base dos quais queiram moldar o movimento operário”;
o seu objetivo imediato “é o mesmo de todos os partidos proletários:
constituição dos proletários em classe, derrubada da dominação
burguesa, conquista do poder político pelo proletariado”. Os comu­
nistas não constituem um partido separado, mas são um “setor” do
movimento operário: “o setor mais decidido”, que tem “ a vantagem
teórica da sua clara visão das condições, do curso e dos resultados
gerais do movimento proletário” e, por isto, “ sempre representam os
interesses do movimento no seu conjunto” 22. Certamente, esta “van­
tagem teórica” e esta “representação” dos interesses gerais do mo­
vimento contêm em si a possibilidade, e a tendência, à autonomiza­
ção em face da classe em seu conjunto, acarretando a contradição
com o princípio primeiro: os comunistas não formam um partido
separado e não pretendem moldar o movimento segundo princípios
particulares. Perigo tanto maior quando a teoria que proporciona
aquela “vantagem” aos comunistas implica um nível de elaboração
científica que o proletariado está impossibilitado de produzir por si
só nas condições do capitalismo — ela é trazida por intelectuais
procedentes, salvo exceções, das classes dominantes ou da pequena
burguesia. Assim se cria a premissa de uma ditadura da ciência
sobre o movimento operário e se aumenta a possibilidade de que o
grupo teórico venha a monopolizar a direção efetiva. Precisamente
contra este perigo, Marx preconiza o funcionamento autenticamente
democrático do partido, a eleição e o controle permanente dos diri­
gentes pelos militantes, a luta contra todo culto da autoridade e dos
chefes. Na sua polêmica contra os bakuninistas, Marx se pronuncia
contundentemente contra todo tipo de organização hierarquizada,
submetida a um regime interno autoritário, a uma doutrina oficial e
ortodoxa. Defende a legitimidade das divergências teóricas e políti­
cas no seio da Internacional e das suas seções, a plena liberdade de
discussão na imprensa, nas assembléias e congressos23. Ao mesmo
tempo, não admite a imposição de nenhum critério de “partido”
quando se trata da investigação científica2A. Nem a ciência pode im­
por as suas conclusões ao movimento operário, nem as instituições
em que este se expressa em cada momento podem erigir-se em tuto­
ras da ciência.
Em resumo, a concepção marxiana do partido político proletário
é extremamente flexível, fluida, aberta, democrática — no sentido me­
nos formal e mais radical do conceito de democracia. A sua concreti­
zação deve ser função, em todo momento, do processo de constituição
do partido proletário “no grande sentido histórico”. Para Marx, a
classe é o grande sujeito da ação histórica, da revolução. O partido

669
proletário não pode substituí-la neste papel — tem que ser o seu
instrumento, estar submetido ao seu controle. Cada vez que a forma
concreta adquirida pelo partido — Liga dos Comunistas ou Primei­
ra Internacional — lhes parece entrar em contradição com o movi­
mento real da classe, Marx e Engels não vacilam em propor o seu
desaparecimento. O partido político não é o “ dirigente” da classe,
no sentido leninista: é a mediação teórica e prática entre a compreen­
são científica da luta de classes, do desenvolvimento social, e a ação
autônoma do proletariado — mediação sujeita, ela mesma, a cons­
tante retificação e aprofundamento em função do movimento real.
A sua missão não é assumir a direção da classe, mas ajudá-la a
“autodirigir-se”. Como dizia Rosa Luxemburgo, polemizando com
Lênin e expressando fielmente o pensamento de Marx: “A social-de­
mocracia não está ligada à organização da classe operária; é o pró­
prio movimento da classe operária” 25.
Ingressado o capitalismo no seu estágio monopolista-imperialis­
ta, inicia-se uma evolução no movimento operário que parece con­
tradizer a perspectiva marxiana da constituição do proletariado em
classe revolucionária. Sob a pressão das lutas proletárias, o capita­
lismo revela-se capaz de suportar melhorias substanciais nas condi­
ções de existência das massas. Os anteriores progressos da consciên­
cia anticapitalista, revolucionária, parecem deter-se, e inclusive re­
troceder, em face do espírito acomodatício, reformista, que se pro­
paga entre amplas massas da classe operária. O revisionismo doutri­
nário, que expressa esta tendência ao mesmo tempo em que a ali­
menta, justifica o seu abandono da perspectiva revolucionária ren­
dendo culto à espontaneidade do movimento operário. O marxismo
ortodoxo reage exaltando o papel da teoria, do “socialismo científi­
co”, apresentando-a como a fonte da consciência socialista do pro­
letariado. Káutsky formula a sua tese famosa: “A consciência socia­
lista é algo introduzido desde o exterior [pelos intelectuais burgue­
ses] na luta de classes do proletariado e não algo que surge espon­
taneamente do seu interior” 26. Tese inconciliável, se tomada ao pé
da letra, com a concepção marxiana (é sintomático que Káutsky não
a respalde com nenhum texto de Marx, o que — dada a importância
do problema e o contexto em que formula o seu juízo — não teria
deixado de fazer se um texto corroborador existisse). Dizemos: se
tomada ao pé da letra — porque a leitura do documento onde se
encontra a passagem citada revela que Káutsky utiliza o conceito
de consciência socialista” como idêntico ao de “doutrina socialis-

670
ta”, entendido este como teoria científica do capitalismo e do socia­
lismo. Em Que Fazer?, Lênin assume a equívoca fórmula de Káutsky,
desenvolve-a por sua conta com a mesma confusão conceptual e, o
que é pior, faz dela a pedra angular da sua concepção do partido
revolucionário.
Esta posição de Lênin não se explica apenas porque, quando
da redação do Que Fazer?, Káutsky era para ele a máxima autori­
dade em marxismo; explica-se também porque a história da pene­
tração e da propagação do marxismo na Rússia, bem como o con­
texto em que elabora a sua teoria do partido, induzem-no a isto. O
marxismo, com efeito, começa a penetrar na Rússia e envolve rapi­
damente a juventude intelectual revolucionária — que busca novos
caminhos depois do fracasso da Vontade do Povo27 — antes que o
proletariado russo entre realmente em cena (o que ocorrerá quando
das greves de 1896). Assim como, no período precedente, a intelli-
gentsia populista via nos mujiques a sua base de massas, a intelli-
gentsia marxista das duas últimas décadas do século — analogamen­
te ao Marx de 1843 — vê nos operários, que o tardio capitalismo
russo mal começava a produzir, as “ armas materiais” da sua nova
filosofia. “ Introduz” neles a “consciência socialista”, que a prática
da luta de classes ainda não tivera tempo de despertar, mesmo que
embrionariamente. Este fato empírico aparecerá a Lênin como uma
comprovação da tese kautskyana. Acentuando inclusive o seu fundo
idealista, Lênin chega a dizer que “a doutrina teórica da social-de­
mocracia surgiu na Rússia inteiramente independente do ascenso es­
pontâneo do movimento operário, surgiu como resultado natural e
inevitável do desenvolvimento do pensamento entre os intelectuais
revolucionários socialistas” 28. Por outro lado, o contexto político e
social, tal como Lênin o vê — e os acontecimentos, a revolução de
1905, rapidamente lhe darão razão —, coloca com enorme urgência
o problema da preparação política e organizacional das forças revo­
lucionárias, particularmente do proletariado. Nestas condições, o
“culto da espontaneidade”, encarnado especialmente pelos marxistas
“economicistas”, parece-lhe um verdadeiro crime. Ademais, Lênin
está convencido de possuir a chave marxista da revolução russa.
Tudo isto permite compreender a violência e a intransigência da sua
polêmica contra qualquer posição que se desvie, ainda que por um
milímetro, do que ele considera a linha marxista revolucionária; per­
mite entender a sua tendência a exaltar o papel do fator teórico, da

671
organização, e a sua inapelável condenação de qualquer concessão
à espontaneidade.
“O desenvolvimento espontâneo do movimento operário _
afirma Lênin — conduz precisamente à sua subordinação à ideolo­
gia burguesa, porque a luta de classes, por si mesma, só engendra a
consciência trade-unionista”, e o “trade-unionismo implica a escra­
vização ideológica dos operários pela burguesia”. “A tarefa da so­
cial-democracia consiste em combater a espontaneidade, fazendo com
que o movimento operário abandone esta tendência espontânea do
trade-unionismo a situar-se sob a asa da burguesia e atraindo-o para
a social-democracia revolucionária” 29. Aos que o acusam de “opor
seu programa ao movimento como um espírito que está acima do
caos amorfo , Lênin replica: “Em que consiste o papel da social-de­
mocracia, senão ser o ‘espírito’ que não só está acima do movimento
operário espontâneo, mas que o eleva ao nível do ‘seu programa’?” 30.
Definitivamente, afirma Lênin, a direção a ser tomada pelo movi­
mento operário depende da luta entre a ideologia socialista (elabora­
da pelos intelectuais marxistas e por eles levada ao movimento ope­
rário) e a ideologia burguesa (ou suas variantes “marxistas”), que
tem uma força enorme porque é a ideologia mais antiga e conta com
todos os instrumentos do Estado e das classes dominantes. Idéia que
está em Marx — com a diferença radical de que, em Marx, o mo­
vimento operário tende espontaneamente para a ideologia socialista:
o proletariado e o sujeito central da luta ideologica, com a teoria
marxista intervindo nela para contribuir na formação da consciên­
cia revolucionária proletária, mas sem substituir o seu verdadeiro
demiurgo, a práxis revolucionária do proletariado. Em Lênin, pelo
contrário, o movimento operário aparece como o objeto da luta ideo­
lógica entre os teóricos marxistas e ideólogos burgueses. E, na me­
dida em que também é sujeito, tende espontaneamente a “situar-se
sob a asa da burguesia”. Daí que Lênin veja a necessidade de um
instrumento poderoso, capaz de preservar e aguçar a arma da teoria
revolucionária, tanto diante da ideologia burguesa como diante da
ideologia segregada espontaneamente pelo movimento operário _
um instrumento apto a inverter a tendência desta espontaneidade.
Instrumento que leve à prática a famosa fórmula leniniana: “Sem
teoria revolucionária não pode haver movimento revolucionário” __
cujo conteúdo exato, no contexto do Que Fazer?, é o seguinte: o
movimento revolucionário deve ser criado a partir da teoria, segundo
princípios, uma política, um plano e formas organizacionais previa­
672
mente elaborados pelos intelectuais marxistas, depositários do “so­
cialismo científico”. Este instrumento poderoso é o partido conce­
bido por Lênin. Em face do culto do espontaneísmo, Lênin inaugura,
na história do marxismo, o culto do partido; do partido depositário
da ortodoxia marxista, portador da consciência socialista, organiza­
dor e dirigente da classe operária, instrumento decisivo da revolução.
Se o princípio teórico básico da sua concepção de partido —
ser o portador de uma consciência exterior à classe —, Lênin o to­
ma de Káutsky, o princípio organizacional ele o resgata parcialmen­
te (apenas parcialmente porque, como veremos, há também uma
fonte alemã) da “magnífica organização dos revolucionários da dé­
cada de setenta, que deveria nos servir como modelo”. A nossa obri­
gação — diz Lênin — é “criar uma organização de revolucionários
tão boa como a dos partidários de Terra e Liberdade, ou criar uma
incomparavelmente melhor” 31. E, com efeito, Lênin se inspirará nes­
te modelo, mesmo que o aperfeiçoando. A sua figura central será a
mesma: o revolucionário profissional, cuja procedência social conti­
nuará sendo, salvo exceções, a dos revolucionários profissionais dos
anos setenta — a intelligentsia. Embora Lênin insista na necessidade
de converter em revolucionários profissionais, tirando-os do traba­
lho da fábrica, os operários mais avançados e instruídos, os resulta­
dos serão mínimos, sobretudo no que se refere ao núcleo dirigente
(quando eclode a Revolução de Outubro, o Comitê Central do parti­
do bolchevique contava com apenas um operário no seu interior).
Coisa lógica, dado o nível teórico que se exigia no partido para in­
gressar no núcleo dirigente e dado o nível cultural médio do prole­
tariado russo. O esquema geral da organização responderá também
ao modelo populista dos anos setenta: “Então — diz Lênin em Um
Passo Adiante, Dois Passos Atrás — , existia um centro bem organi­
zado, com uma disciplina perfeita; em torno dele existiam organiza­
ções por ele criadas, e o que estava fora destas organizações era caos
e anarquia” 32. Lênin propõe uma estrutura análoga para o partido
marxista: uma organização central de revolucionários profissionais;
em torno deste centro, subordinadas a ele, organizações de revolucio­
nários “não profissionais”. Um conjunto rigorosamente centralizado,
hierarquizado e disciplinado. Para que não haja dúvidas sobre a ti­
pologia da organização, Lênin recorre a analogias militares: “ Neces­
sitamos de uma organização militar de agentes”; “exigimos que todos
os esforços se orientem para reunir, organizar e mobilizar um exér­
cito regular”, que “organize devidamente o assédio da fortaleza ini-

673
miga” e prepare o assalto e que, na hora oportuna, “não seja ultra­
passado pela multidão, mas se coloque à frente dela, à sua cabeça” 33.
Essencialmente, o tipo de organização concebido por Lênin, nos
seus princípios organizacionais, parece uma réplica do tipo de or­
ganização do inimigo, assim definida por ele: “Uma organização pu­
ramente militar, rigorosamente centralizada, que até nos menores
detalhes está dirigida por uma vontade única — esta é a organização
do governo russo, nosso inimigo direto na luta política” 34. Um dos
principais instrumentos desta organização inimiga é a polícia polí­
tica, e as massas operárias — diz Lênin — são incapazes de lutar
eficazmente contra a polícia política; esta luta “exige qualidades es­
peciais, exige revolucionários profissionais [. . . ] bem treinados, pelo
menos tão bem quanto a nossa polícia” 3S.
A impressão de estar diante de uma tentativa de transpor para o
regime interno do partido o princípio autocrático e burocrático que
presidia todo o regime político do país foi tão forte entre os princi­
pais marxistas russos dos primeiros anos do século, de Plekhanov a
Trótski, que poucos deixaram de expressá-la abertamente na polêmi­
ca com Lênin. Mas este podia replicar com sólidos argumentos, em-
basados na análise do período no qual os social-democratas haviam
trabalhado com métodos “artesanais”, dispersamente, sem direção
central nem plano; ele podia demonstrar facilmente a impossibilidade
da democracia no partido sob o regime policial czarista. O tipo de
organização que preconizava satisfazia, evidentemente, a determina­
das exigências da luta revolucionária sob o czarismo. A organização
de revolucionários profissionais, auxiliada pelas organizações subor­
dinadas de revolucionários “não profissionais”, constituía um instru­
mento eficaz para levar ao movimento espontâneo, às amorfas orga­
nizações operárias, ao movimento estudantil e aos camponeses a
linha política elaborada por Lênin, para introduzir neste “caos” um
princípio de coordenação em escala nacional. Numa palavra, para
colocar o movimento operário, e o conjunto do movimento revolu­
cionário, sob a direção do partido detentor da teoria e da consciên­
cia, dotado de um plano e de objetivos precisos. Daí que Lênin fosse
apoiado por uma importante fração dos marxistas russos, apesar da
hostilidade das personalidades consagradas.
Por outro lado, o gênio revolucionário de Lênin, a sua capaci­
dade para a análise concreta da situação concreta, conduziu-o a in­
troduzir correções nas normas e idéias do Que Fazer? quando a ex­
periência da revolução de 1905 mostrou que o movimento espontâ-

674
neo das massas não tendia inevitavelmente a situar-se “sob a asa da
burguesia”, estando qualificado para uma colossal iniciativa revolu­
cionária. Nos escritos de 1905 e depois, Lênin saúda e sublinha a
grande significação desta iniciativa. Em novembro de 1905, chega a
dizer que “a classe operária é instintivamente, espontaneamente, so­
cial-democrata” 36 (embora formulações semelhantes sejam raras no
período seguinte e, por outro lado, Lênin não tenha retificado a sua
tese de que o movimento espontâneo só cria a consciência trade-unio-
nista, com esta tendendo a subordinar-se à burguesia). Diante da
limitada liberdade política arrancada ao governo pela revolução, Lê­
nin propugna por certa democratização do regime interno do partido.
A Conferência de Tammerfors adota o princípio do “centralismo de­
mocrático” — mas as próprias circunstâncias políticas limitaram,
em grande medida, a sua aplicação real.
Estas correções, no entanto, não devem ser interpretadas como
uma revisão fundamental da concepção do partido exposta no Que
Fazer?, Um Passo Adiante, Dois Passos Atrás, etc. Permanece, em
primeiro lugar, a idéia básica sobre a relação entre o partido e a
classe: o partido é o depositário da verdade teórica e da consciência,
entendidas no sentido da tese kautskyana (que nunca será refutada
por Lênin); a classe só pode constituir-se em classe revolucionária
sob a direção do partido — no sentido mais forte e direto da pala­
vra direção —, quando este lhe introduz a consciência socialista e
a educa politicamente; é o partido que controla a classe (não o in­
verso), substituindo-se a ela cada vez que a classe se desvia do justo
caminho traçado pelo partido; o partido é sempre o autêntico repre­
sentante da classe, ainda que esta não o reconheça como tal. Em suma,
permanece intocado o princípio da exterioridade do partido em rela­
ção ao proletariado. Exterioridade, pela origem da sua condição de
dirigente, que não provém da classe, mas de uma teoria elaborada
fora dela; exterioridade, pelo seu modo de se relacionar com a clas­
se, refletido nas fórmulas habituais segundo as quais, para ser in­
vencível, o partido tem que apoiar-se na classe, ligar-se a ela, colo
cá-la sob sua direção, etc.; refletido também, e sobretudo, na dife­
renciação radical que Lênin exige que se faça entre o partido e as
organizações de massas da classe operária, particularmente os sindi­
catos — diferenciação unida à subordinação. Todas elas devem estar
sob a direção do partido, reconhecer a sua autoridade. Os sovietes,
na concepção leniniana, só podem ser verdadeiros órgãos do poder
da classe operária se estão sob a direção do partido. O partido, numa

675
palavra, é o sujeito central da revolução; a classe, e tudo o mais, o
sujeito auxiliar.
Permanece, em segundo lugar, o essencial da concepção orga­
nizacional do partido. No “centralismo democrático” leniniano, o
“centralismo” sempre predomina sobre a “democracia” (a degene­
ração staliniana consistirá em liquidar totalmente o segundo termo),
porque está associada aos poderes extraordinários que, de acordo
com Lênin, devem possuir os órgãos dirigentes. E porque está asso­
ciado à supervalorização dos chefes, à sua estabilidade, às suas atri­
buições, o que lhes permite condicionar — normalmente, de forma
decisiva — o exercício da “democracia” pela base e pelos órgãos
inferiores. Lênin se indigna contra os “demagogos” que provocam a
desconfiança dos operários “em face de todos quantos lhes ofere­
cem desde o exterior conhecimentos políticos e experiência revolu­
cionária” e apresenta o exemplo dos social-democratas alemães: “Os
alemães alcançaram suficiente desenvolvimento político, têm sufi­
ciente experiência política, para compreender que sem uma ‘dezena’
de chefes de talento (os talentos não se contam às centenas), de che­
fes experientes, profissionalmente preparados e instruídos numa longa
prática, compenetrados, não é possível nenhuma firme luta de clas­
ses na sociedade contemporânea” 37 (até a “traição” de 1914, Lênin
manterá intacta a sua admiração pela organização da social-demo­
cracia alemã, pela autoridade e estabilidade da sua direção).
Lênin não considera que a essência da sua concepção organiza­
cional corresponda exclusivamente às condições russas, ainda que
tome nestas alguns traços específicos, derivados fundamentalmente
da luta contra a polícia política. Também seguindo Káutsky, observa
que as diferenças básicas, em matéria de organização, entre a orto­
doxia marxista e o revisionismo, resumem-se na fórmula “burocra­
tismo versus democratismo” (aqui, “burocratismo” quer dizer orga­
nização centralizada, hierarquizada e profissionalizada à base da es­
pecialização dos membros nas diversas tarefas do partido). “Buro­
cratismo versus democratismo — precisa Lênin — é o centralismo
versus autonomismo; é o princípio de organização da social-democra­
cia revolucionária em face do princípio de organização dos oportu­
nistas da social-democracia. Este segundo [princípio] procura avan­
çar da base para o topo, e é por isso que defende, sempre que possí­
vel e tanto quanto possível, o autonomismo, o ‘democratismo’ que
vai (nos casos em que há excesso de zelo) até ao anarquismo. O pri­
meiro tende a começar pelo topo, preconizando o alargamento dos

676
direitos e poderes do organismo central em relação às partes” 38. Na
sua polêmica com Lênin, Rosa Luxemburgo criticou muito especial­
mente semelhante identificação entre revisionismo (a nível teórico e
político) e democratismo (a nível da organização) — e é indiscutí­
vel que esta crítica do representante mais qualificado da social-de­
mocracia não russa refletia fielmente a concepção de Marx.
Em definitivo, as estruturas e o funcionamento do partido pre­
conizado por Lênin não são mais que a concretização organizacional
da concepção do partido como exterioridade dominante em relação
à classe, o modo de assegurar a independência e a preservação do
poder decisório do partido — na realidade, do seu núcleo dirigente
— tanto na definição da ortodoxia teórica como na elaboração e na
aplicação da política concreta. Para isto, não basta que o partido
tenha uma organização própria, diferenciada da classe, já que a or­
ganização deve estar vinculada às massas e, portanto, exposta às in­
fluências exteriores; é preciso que a organização esteja internamente
protegida contra a ideologia “espontânea”, o que exige que o poder
decisòrio se concentre num pequeno grupo particularmente “firme”
e, no seu interior, no chefe, concebido como a chave da coesão do
grupo. Já em 1904, Trótski resumiu concisamente a lógica inerente
ao modelo leniniano de partido — o partido tende a substituir a
classe; o comitê central tende a substituir o partido; o chefe tende
a substituir o comitê central39.
A vitória bolchevique de Outubro consagrou a teoria leniniana
do partido, da mesma forma como a derrota dos espartaquistas ale­
mães e dos conselhos operários italianos desacreditou as concepções
luxemburguistas ou gramscianas, mais próximas à de Marx. A IC
foi construída inteiramente sobre a base da teoria de Lênin. E, ao
adquirir a dimensão supranacional, todas as características de exte­
rioridade em face da classe, próprias do modelo leniniano de parti­
do, se acentuaram e reforçaram. O corpo central de revolucionários
profissionais (Comitê Executivo da IC, rede de delegados e instruto­
res, etc.) constituía um mundo longínquo e secreto para o movi­
mento operário de cada país. E como os revolucionários profissionais
de cada seção nacional ficavam subordinados a este corpo central,
o exercício da sua função se independizou da classe operária respec­
tiva — bem mais que no caso dos revolucionários profissionais bol­
cheviques.
No mesmo sentido influiu a maneira como foram criadas as
seções da IC. Enquanto o partido bolchevique se constituiu a partir

677
da originalidade do movimento revolucionário nacional, sobre a base
de uma elaboração teòrica e política autònoma, a constituição dos
partidos comunistas representa, em maior ou menor grau, um corte
com as tradições e experiências revolucionárias nacionais. Enquanto
a ruptura dos bolcheviques com as variantes russas do oportunismo
resulta de um processo complexo e prolongado de luta ideológica e
política, a IC e as suas seções rompem com o oportunismo ocidental
mediante os métodos autoritários e burocráticos simbolizados pelas
21 condições.
Daí as extraordinárias dificuldades com que se defrontaram os
novos partidos, na maioria dos casos, para ganhar raízes no movi­
mento operário. Se conseguem, apesar de tudo, manter-se e, em alguns
casos (muito poucos), conquistar efetivos importantes, é porque re­
presentam uma vontade revolucionária que atrai os núcleos mais ra­
dicalizados do proletariado, porque capitalizam o prestígio da Revo­
lução de Outubro e contam — fator de monta — com o apoio finan­
ceiro do Estado soviético. Mas estes dois últimos elementos contri­
buem para reforçar a dependência de cada seção nacional ao órgão
supremo instalado em Moscou, que controla os fundos e se identifica
com a fidelidade à causa de Outubro.
O núcleo bolchevique dirigente da IC se considera, ademais,
possuidor de títulos ainda mais indiscutíveis que o grupo bolchevi­
que de 1903, posto que chancelados pela grande vitória de 1917. A
resistência que o movimento real do mundo, e particularmente o mo­
vimento operário, opõe às suas concepções; a infirmação a que o efe­
tivo curso dos acontecimentos submete a representação teórica leni­
niana do grau de maturidade e da revolução no capitalismo avança­
do — nada disto debilita a sua convicção de possuir a chave da
interpretação científica da história. Aquele curso dos acontecimentos
só podia ser, a seu juízo, um desvio superficial, episódico, das pre­
visões teóricas em função das quais se conceberam a estratégia, as
estruturas e o funcionamento interno da IC. Não havia, pois, que
reformar o instrumento criado; ao contrário, havia que preservar a
sua pureza ideológica e as estruturas orgânicas até o momento —
próximo — em que a revolução mundial novamente se colocaria em
marcha e tomaria as formas previstas. Daí que fossem combatidas
com “intransigência bolchevique” todas as correntes — surgidas em
numerosas seções da IC nos primeiros anos — que lutavam por al­
cançar certa autonomia política e organizacional em relação ao cen­
tro de Moscou. A nova concepção ortodoxa da revolução mundial

678
exigia a conservação das formas organizacionais do “partido mun­
dial” e estas, por sua vez, constituíam a proteção idônea contra as
influências do meio exterior que, na conjuntura, lhe era francamente
hostil. Assim, tendem a se acentuar o caráter de exterioridade, a ló­
gica substituicionista e o grau de centralização e hierarquização,
próprios do modelo leniniano de partido. E o efeito global de tudo
isto é o crescente divórcio entre a IC e o mundo real.

7. As correntes autonomistas no interior da IC encontram o


seu aliado natural na oposição ao rumo staliniano no interior do par­
tido bolchevique, que se ergue contra o burocratismo, exige o res­
peito às “normas leninistas”, o restabelecimento da democracia pro­
letária, etc. É natural, portanto, que, depois da morte de Lênin, a
luta de Stalin e seus associados contra o trotskismo no partido bol­
chevique se vincule estreitamente à luta contra as tendências centrí­
fugas no interior da IC, o que não exclui — antes pressupõe — a
aliança episódica com algumas delas para melhor bater outras que,
no momento, se consideram mais perigosas. Por isto, a luta contra
a “direita” ou a “esquerda” no interior do partido bolchevique não
aparece sempre sincronizada com a luta contra a “ direita” ou a “es­
querda” em tal ou qual seção da IC. Estas etiquetas obscurecem o
verdadeiro fundo da luta, que reside — embora sempre se acompa­
nhe de determinada orientação política — no conflito entre o pro­
cesso de monolitização (ideológica e organizacional) e as tendências
centrífugas. A conquista da autonomia se converte na condição pré­
via da elaboração de qualquer política, revolucionária ou reformista,
capaz de influir na realidade. A política ditada de Moscou tem a pe­
culiaridade esterilizante de não ser nem revolucionária nem refor­
mista — é abstrata e ineficaz. O conteúdo essencial da chamada
“bolchevização” consiste, precisamente, na liquidação definitiva des­
sas tendências autonomistas, com o que se assegura a subordinação
total da IC à fração staliniana, sobre a base da justificação ideoló­
gica proporcionada pela doutrina do socialismo num só país. Desta
maneira, aprofunda-se ainda mais a contradição entre a IC e as exi­
gências da luta revolucionária em cada país. No capítulo dedicado
à dissolução da IC, vimos que a argumentação empregada pelo Pre-
sidium do Comitê Executivo para justificar o ato equivalia ao reco­
nhecimento de que a IC colidiu com o fator nacional. Mas este re­
conhecimento se baseava exclusivamente nas características organi­
zacionais da IC, ocultando, em primeiro lugar, que tais característi­

679
cas eram um aspecto inseparável de toda a concepção leniniana do
partido mundial; e, em segundo lugar, que a contradição entre a IC
e o fator nacional, derivada daquela concepção, foi levada ao extre­
mo, singularmente agravada, quando a IC se converteu num instru­
mento incondicional do Estado staliniano.
Por outro lado, os liquidantes da Internacional se apoiaram no
fato evidente de a IC, tal como fora concebida, ser uma forma ina­
dequada de organização do internacionalismo proletário para justi­
ficar a renúncia a qualquer tipo de organização internacional revo­
lucionária. Entretanto, na realidade, a experiência da Internacional
não prova que os imperativos nacionais sejam incompatíveis com
qualquer internacionalismo organizado e concretizado no plano teó­
rico e político; ela prova apenas o fracasso da forma IC, ou seja, o
fracasso de uma forma exterior, imposta, ao proletariado internacio­
nal, subordinada aos interesses de um Estado nacional. O fracasso
desta experiência induz à idéia de que a concretização do interna­
cionalismo proletário a todos os níveis — teórico, político, organiza­
cional — só pode ser o produto orgânico do movimento revolucio­
nário internacional tomado na sua diversidade. E, neste sentido,
adquirem grande atualidade as concepções de Marx sobre a Primeira
Internacional, a que aludimos anteriormente.
A transformação da IC numa instituição alienada e alienante,
a serviço da nova classe dominante que se foi formando sobre as
ruínas da democracia soviética, tem lugar, portanto, mediante a eli­
minação sucessiva das tendências, idéias e personalidades conflitivas
que surgem no seu interior. Este processo não consegue “reeducar”
todas as forças iniciais da IC, e nisto reside uma das razões essen­
ciais do rápido decréscimo dos seus efetivos. Os não assimiláveis são
expulsos ou se afastam voluntariamente. As novas gerações entram
já num meio mais condicionado e condicionante que o precedente.
E, por seu turno, nelas se opera análogo processo de seleção. Daí a
enorme flutuação — entrada e saída de filiados — de que se lamen­
tam continuamente todas as instâncias da Internacional.
Entre 1921 e 1928, a IC perde mais da metade dos seus efeti­
vos, o que significa, tendo em conta a flutuação indicada, que a
grande maioria dos primeiros militantes abandonara a organização
ou dela fora excluída. Entre eles, uma fração considerável de núcleos
dirigentes iniciais em cada país. Das sucessivas gerações, iam fican­
do aqueles cujo grau de alienação ideológica, de compenetração fi­
deista com os dogmas e os chefes — unido, quase sempre, a um

680
grande espírito de abnegação e combatividade — era suficientemente
“elevado”. Quando se produz a viragem do antifascismo, a IC reu­
nia já todas as características do que Marx entendia por seita — re­
ferindo-se concretamente aos proudhonianos mutualistas, aos lassa-
lianos e aos bakuninistas — , seita que “tenta afirmar-se contra o
movimento real da classe operária” 40. Na verdade, característica
muito mais acentuada porque o regime interno da IC ia muito mais
longe na preservação do dogma, no culto da autoridade, na disci­
plina e na mania do segredo.
Esta seita recebeu e educou a onda juvenil que acorreu à IC
nos anos do antifascismo, vendo nela — como as gerações anteriores
— a bandeira de Outubro, a depositária do marxismo revolucioná­
rio. As novas forças chegavam à IC sob o signo do ódio ao fascis­
mo e do ilimitado entusiasmo pelo novo mundo que aparentemente
surgia das ruínas da velha Rússia, ao compasso dos planos qüinqüe-
nais. Afora a combatividade antifascista, o traço distintivo destes no­
vos comunistas era a total carência de espírito crítico em face de
tudo o que trazia o selo soviético, a subestimação da teoria — posto
que todos os problemas importantes vinham resolvidos “de cima”
—, o “praticismo” (como se dizia no jargão partidário). Na medida
em que se interessavam pela teoria, nutriam-se basicamente das
obras de Stalin. Chegava-se a Lênin através de Stalin. Marx vinha
num remoto terceiro lugar. Desta geração sairá o plantei de quadros
médios e muitos dos quadros dirigentes na etapa da Resistência, da
Libertação, da “ união nacional”, da guerra fria, das democracias po­
pulares . . . — dado fundamental para compreender o comportamen­
to da maior parte dos partidos comunistas depois da dissolução da
IC. Não é de estranhar, pois, que a imensa maioria dos comunistas
dos anos trinta acreditasse piamente na versão oficial dos processos
de Moscou, especialmente quando esta fase aguda do terror stalinia­
no coincidia com a grande campanha propagandistica em torno da
nova Constituição, que — nas palavras de Stalin — “consagra o
fato, de alcance histórico-universal, de a URSS ingressar numa nova
etapa de desenvolvimento, a etapa da culminação da edificação da
sociedade socialista e da transição gradual à sociedade comunis­
ta” 41. No momento mesmo em que um terror massivo se abatia so­
bre a sociedade soviética, Stalin a apresentava como o reino da
liberdade, onde existe “liberdade de palavra, de imprensa, de reu­
nião [ . . . ] , inviolabilidade do domicílio e da correspondência [ . . . ] ,
completa democratização do sistema eleitoral” à base do sufrágio

681
universal. E todas estas liberdades são autênticas, não falseadas pela
exploração do homem pelo homem. Fundam-se na “propriedade so­
cialista dos meios de produção”. Segundo a propaganda staliniana,
não havia nenhuma contradição entre esta perfeita democracia socia­
lista e a liquidação das personalidades mais representativas da velha
guarda bolchevique porque, como demonstra a história, todas as revo­
luções têm os seus renegados. Haveria algo a estranhar, pois, no fato
de a maior revolução da história contar com uma alentada coleção de
“monstros”, “lacaios do fascismo” e “agentes dos serviços de espio­
nagem” — conforme as científicas caracterizações stalinianas? A
partir do momento em que se convertiam em “inimigos do povo”,
os heróis da Revolução de Outubro se transmudavam, de acordo com
os próprios termos de Stalin, em “insignificantes insetos contra-revo­
lucionários” 42. Para os comunistas de todo o mundo, somente calu­
niadores profissionais, agentes da burguesia e do fascismo, poderiam
questionar esta versão staliniana. E não só para os comunistas, mas
também para uma grande massa de trabalhadores e de antifascistas
que, mesmo discordando de diversos aspectos do regime soviético,
consideravam-no, no entanto, um regime socialista. E o socialismo
podia ser compatível com mentiras e crimes tão monstruosos como
os denunciados pelos trotskistas, liberais burgueses, social-democra­
tas e reacionários de todo o tipo? Os comunistas não só acreditavam
nesta versão staliniana dos processos, como ela passou a ser um ele­
mento essencial da sua formação ideológica e política. Graças a Sta­
lin, o chefe genial, à sua vigilância e sabedoria infalíveis, a teoria e
a prática do movimento operário se enriqueciam com a compreensão
de novos fenômenos — os meios diabólicos que o inimigo de classe
podia implementar para deter a marcha triunfal do socialismo — ,
não previstos por Marx e Lênin. Formados nesta experiência, os co­
munistas ficaram “preparados” para compreender — e “fazer com­
preender” à massa de neófitos que ingressou nos partidos comunis­
tas no calor da vitória anti-hitleriana — a repetição desses fenô­
menos nos anos da “guerra fria”: a transformação dos principais
quadros comunistas das democracias populares em outros tantos
“monstros”, agentes de todos os serviços secretos do imperialismo.
O enorme poder alienante do partido staliniano sobre sucessivas
gerações de revolucionários só se pode explicar, em definitivo, por­
que ele encarnava um grande mito, nascido do acontecimento que
mais ilusões e esperanças despertara nas massas proletárias e em
todas as forças avançadas do século XX: a Revolução de Outubro.

682
O mito de que na URSS se estava edificando a primeira sociedade
sem exploração do homem pelo homem, a primeira sociedade basea­
da na igualdade e na liberdade reais. E deste grande mito derivava
outro: o de que o partido staliniano era o portador indiscutível do
marxismo revolucionário. Por isto, mesmo que a crise do partido sta­
liniano tenha ido se manifestando, primeiro no plano da IC e depois
no dos partidos nacionais, através do processo que analisamos, ela
só poderia entrar na sua fase mais decisiva com a derrocada do
grande mito — daí a histórica significação do “relatório secreto” de
Kruschev. Com ele se abre a etapa da crise geral do movimento co­
munista, que estudaremos na continuidade da presente obra 43.

NOTAS
1 Como indicamos na “introdução” à edição brasileira (vol. 1, p. 7), a obra
A C rise d o M o v im e n to C o m u n is ta compreende duas partes — estes dois
volumes publicados pela Global Editora reproduzem a primeira parte, única
até agora concluída por Claudín. O que o autor designa aqui por “parte
restante deste ensaio” é precisamente a segunda parte ainda inédita, cujo
título provisório anunciado é “Do XX Congresso do PCUS à Invasão da
Tchecoslováquia” ( N o ta d o tra d u to r ).
2 Marx, E l C a p ita l, Fondo de Cultura Económica, México, 1969, I, pp. 648-649.
3 Lênin, ed. cit., t. 22, p. 288.
4 C o n g r e so s I - I V , cit., p. 155.
5 Ib id ., pp. 19, 20, 25, 31 e 74.
à Ib id ., pp. 87, 91 e 94.
7 Ib id ., p. 93.
8 V C o n g re so , cit., p. 395.
7 V I C o n g re so , cit., pp. 46 e 55.
'8 C o n g r e so s 1 -lV , cit., p. 100.
11 A IC passa de 445.300 membros em 1928 a 328.716 em 1931 (excluída a
URSS). Cfr. o capítulo sobre o monolitismo, p. 110 do volume anterior.
12 Sobre as formulações do VI Congresso, cfr. a nota 56 do capítulo “A crise
teórica”. As citações de Ponomarev encontram-se no seu artigo sobre o
aniversário da IC publicado em E a N o u v e lle R e v u e I n te r n a c io n a le , feverei­
ro de 1969.
13 Cfr. pp. 83-84 do volume anterior e a nota respectiva (74, do capítulo
“A crise teórica”).
14 Marx e Engels, O b ra s, ed. cit., t. 4, pp. 433-434.

is “A doutrina materialista sobre a mudança das contingências e da educação


se esquece de que tais contingências são mudadas pelos homens e que o
próprio educador deve ser educado. Deve por isso separar a sociedade em
duas partes — uma das quais é colocada acima da outra.
A coincidência da alteração das contingências com a atividade humana
e a mudança de si próprio só pode ser captada e entendida racionalmentv
como práxis revolucionária” (Marx, 3.a tese sobre Feuerbach, in M a r x , col. Os
Pensadores, vol. XXXV, Abril Cultural, S. Paulo, 1974, p. 57. N o ta d o
tr a d u to r ).
'4 Marx e Engels, O b ra s, ed. cit., t. 30, pp. 406, 400-401. A mesma idéia já
se encontra no M a n ife s to ; depois de descrever o processo através do qual o
proletariado se vai transformando em classe consciente, conclui: “[...] esta
organização do proletariado em classe e, portanto, em partido polí­
tico [ ...] ” (t. 4, p. 433).
17 Ib id ., t. 30, pp. 400-401.
is Marx, declaração a Hamann; reproduzido em L e s M a rx is te s, de K. Papaioan-
nou, cit., p. 223. A segunda edição russa das obras de Marx e Engels não
inclui este texto, sob o pretexto de que ele foi deformado pelo órgão do
partido social-democrata alemão, D e r V o lk s ta a t (t. 16, p. 774). Mas não se
conhece nenhuma declaração de Marx desautorizando a versão do periódico.
i’ Marx e Engels, O b ra s, cit., t. 7, pp. 287-288.
20 Ib id ., t. 18, p. 342.
21 Ib id ., t. 19, p. 175.
22 Ib id ., t. 4, pp. 437-438.

23 Cfr. pp. 115-116 do volume anterior e a nota respectiva (14 do capítulo


sobre “o monolitismo”).
24 Numa carta a Lafargue, de 11 de agosto de 1884, Engels caracteriza a po­
sição de Marx a este respeito da seguinte maneira: “Marx protestaria contra
o ‘ideal político-social e econômico’ que você lhe atribui. Quando se é
um ‘homem de ciência’, não se tem ideal: elaboram-se resultados cientí­
ficos — e quando, além disto, se é um homem de partido, combate-se
para levá-los à prática. Mas quando se parte de um ideal, não se pode ser
um homem de ciência, porque se tem uma posição a p rio r i” (C o rr e s p o n d a n -
ce E n g e ls-L a fa r g u e , Éd. Sociales, t. I, p. 325).
25 Rosa Luxemburgo, C e n tr a lis m o y D e m o c r a c ia ; incluído no folheto de Spar-
tacus, M a r x is m e c o n tr e D ic ta d u r e , 1946, p. 21.
26 Reproduzido por Lênin no Q u e F azer?, O b ra s, cit., t. 5, p. 355.
27 Dissidência, cristalizada em 1879, da organização de origem populista “Terra
e Liberdade” que, por sua vez, surgira, em 1876, do movimento populista
original. A “Vontade do Povo”, liderada por Zheliabov, Mikhailov e Vera
Figner, centrava as suas atividades no terrorismo ( N o ta d o tra d u to r ).
28 Lenin, O b ra s, cit., t. 5, pp. 347-348.
29 Ib id ., p. 356.
30 Ib id ., p. 367.
31 Ib id ., p. 443.
32 Ib id ., t. 7, p. 238.
33 Ib id ., t. 5, pp. 481, 476-477 e 478.
34 Ib id ., p. 452.

35 Ib id ., pp. 419, 434.


36 Ib id ., t. 10, p. 15.
37 Ib id ., t. 5, pp. 432, 431 e 430. Em U m P asso A d ia n te , D o is P a sso s A tr á s ,
expressa idéia análoga sob outra forma: “Um partido implica a criação de
uma autoridade, a transformação do prestígio das idéias em prestígio da
autoridade, a submissão das instâncias inferiores às superiores” (t. 7, p. 339).
38 Ib id ., t. 7, pp. 365-366.
39 Cfr. N a s h i P o litic h e s k ie Z a d a c h i, Genebra, 1904, p. 54.

684
40 Apud Michel Lowy, L a T h é o rie d e la R é v o lu tio n c h e z le J e u n e M a r x , Paris,
Maspero, 1970, p. 175.
41 H isto r ia d e i P a r tid o C o m u n is ta <B o lc h e v iq u e ) d e la U R S S , edição em espa­
nhol, Moscou, 1947, pp. 442-443.
42 I b id ., p. 444.
43 Cfr. nota 1 deste capítulo ( N o ta d o tra d u to r ).

685
LEM
John Reed
DEZ DIAS QUE ABALARAM O MUNDO
Maiakovsky
POÉTICA — COMO FAZER VERSOS
Karl Marx
A ORIGEM DO CAPITAL: A ACUMULAÇÃO
PRIMITIVA
Marta Harnecker
O CAPITAL: CONCEITOS FUNDAMENTAIS
Marx/Turgot
TEORIAS DA MAIS-VALIA: OS FISIOCRATAS
Alexandra Kollontai
A NOVA MULHER E A MORAL SEXUAL *
Leon Trotsky
COMO FIZEMOS A REVOLUÇÃO
Wilhelm Reich
PSICOPATOLOGIA E SOCIOLOGIA DA VIDA SE­
XUAL
Lenin
AS TRÊS FONTES E AS TRÊS PARTES CONSTITUTIVAS DO MARXISMO
Stalin
MATERIALISMO DIALÉTICO E MATERIALISMO HISTÓRICO
Lenin
COMO ILUDIR O POVO
Marx
DIFERENÇA ENTRE AS FILOSOFIAS DA NATUREZA EM DEMÓCRITO E EPICURO
Engels
DO SOCIALISMO UTÓPICO AO SOCIALISMO CIENTÍFICO
Trotsky
AS LIÇÕES DE OUTUBRO
Samora Machel/A. Kollontai/Vito Kapo e outros
A LIBERTAÇÃO DA MULHER
Marx/Engels
SOBRE LITERATURA E ARTE
Marx/Engels/Lenin
SOBRE A MULHER
Kropotkin/Bakunin/Malatesta/Engels
O ANARQUISMO E A DEMOCRACIA BURGUESA
AIthusser/ Badiou
MATERIALISMO HISTÓRICO E MATERIALISMO DIALÉTICO
Sweezy/Marx
PARA UMA CRÍTICA DA ECONOMIA POLÍTICA
Eric Hobsbawm
AS ORIGENS DA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL
Bakunin
O SOCIALISMO LIBERTÁRIO
Lenin
IMPERIALISMO FASE SUPERIOR DO CAPITALISMO
Kautsky
AS TRES FONTES DO MARXISMO
Marx/Adam Smith
TEORIA DA MAIS-VALIA: ADAM SMITH E A IDÉIA DO TRABALHO PRODUTIVO

Você também pode gostar