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Palco Lingua estrangeira e auto-estima N. contexto de ensino de lingua estrangeira, uma das perguntas quase nunca feitas pelos pesquisadores e professores é: "Por que é que os alunos querem aprender uma lingua estrangeira?” Nao ¢ dificil adivinhar © porqué de tamanho descaso ¢ desinteresse em saber algo que com cer- teza deveria nortear a elaboracao de curriculos e contetidos curriculares, a adogao de metodologias apropriadas e a fixacao de metas a ser alcangadas. O simples fato é que, com rarissimas excegdes, sempre se pensou que s6 pode haver um tinico motivo para alguém querer aprender uma lingua estrangeira: o acesso a um mundo melhor. As pessoas se dedicam a tarefa de aprender linguas estrangeiras porque querem subir na vida. A lingua estrangeira sempre representou prestigio. Quem domi- ‘na uma lingua estrangeira é admirado como pessoa culta e distinta. Tan- to isso é verdade que a palavra “estrangeira’ é comumente reservada para qualificar uma outra lingua que conta com mais respeitabilidade que a lingua materna de quem fala — por mais incrivel que isso parega a pri- meira vista! A maior prova disso é que, quando a lingua ¢ considerada de menor prestigio, é quase sempre qualificada como “exotica” ou até mes- mo como um “dialeto’, e ndo como uma “lingua” propriamente dita (a esse respeito, vale a pena lembrar o velho ditado que diz: uma lingua é um dialeto.que conta com um exército e uma marinha). 65 Pon one unica LATIM, MeRTIOADE A QUSTAO NCA | Ka RACALAN E sabido que alguns dos mais destacados métodos de ensino de lin ‘gua estrangeira logo apés o término da Segunda Guerra Mundial — como o método audiclingual — foram aperfeigoados a partir das expe riéncias acumuladas através do estudo de linguas “exéticas”, Na primeira metade do século XX, quando o ensino de linguas estrangeiras adquiriu importancia estratégica para os Estados Unidos, em grande parte como resultado das necessidades impostas pelas duas grandes guerras, a lin giistica — sobretudo nos EUA — quase exclusivamente se resumia a0 estudlo de linguas “exéticas”.A expressio ‘linguista da selva’ (jungle linguist), cunhada pelo filésofo Willard Quine, se refere precisamente a essa carac- teristica distintiva da lingitistica da época. Quando requisitados para de- senvolver métodos e técnicas para ensinar Iinguas estrangeiras em um curto espaco de tempo, os linghistas simplesmente transferiam para 0 campo de ensino 0 conhecimento acumulado das linguas indigenas/exo- ticas (Rajagopalan, no prelo-2). Entretanto, a diferenga crucial entre linguas “exéticas’ e linguas “es trangeiras” continuou intacta. Afinal, trata-se, nao de uma diferenca ob- jetiva, mas de uma diferen¢a dependente de uma escala de valores. Trata- se, em outras palavras, de uma distingao com for cas. Como vém chamando a nossa atengao autores. e Pennycook (1994, 1998), 0 ensino de linguas estrangeiras sempre teve ‘uma dimensao fortemente colonialista. Phillipson (1992: 47) entende que ‘© imperialismo lingaistico faz parte daquilo que se convencionou chamar de “lingdicismo’, termo este que se refere “as ideologias, estruturas e pré- ticas que so mobilizadas para legitimar, efetuar, e reproduzir uma divi- io desigual de poder e recursos (tanto material como ndo-material) entre grupos demarcados com base linguiistica’. Nao seria dificil demonstrar que a linguistica enquanto disciplina moderna é herdeira da antropologia na forma como esta se desenvolveu no século XIX. A piada recorrente a respeito da antropologia do século XIX, segundo a qual antropologia seria fruto do olhar do homem branco em diregao ao indio (sendo o contrario considerado como mitologia), na verdade destaca o viés colonialista que, com freqiiéncia, marcou muitos 66 ncaa escent & AUTO eA dos estudos feitos nesse campo de pesquisa. Nao é de estranhar, portan- to, que a linguistica também demonstre resquicios da ideologia que tanto {nfluencion sua disciplina-mae. Voltando ao nosso ponto inicial, a principal diferenca, em termos praticos, entre uma lingua “exética’ e uma lingua “estrangeira’ — ou melhor, entre considerar determinada lingua como a primeira ou a se- gunda — esta em que, no caso da primeira, nosso interesse em estuda la se resume a uma curiosidade cientifica — 0 prazer de conhecer 0 es- tranho e 0 mitico — ao passo que, no caso da segunda, somos movidos pelo desejo de ampliar os nossos horizontes culturais, de nos langar a um melhor nivel de vida — em suma, de tirar proveito do contato com algo previamente entendido e encarado como superior ao que ja possuimos. E por este motivo que, no caso das linguas estrangeiras, sempre se fixou como meta para 0s esforcos didaticos nada mais nada menos que a aquisicao de uma competéncia perfeita, entendendo-se por competén- ia perfeita o dominio que o falante nativo supostamente possuii da sua lingua. Alids, a partir da chamada revolucao chomskiana na lingiiistica, tornou-se redundante qualificar a competéncia como perfeita. A compe- tencia do falante nativo de um idioma dado, segundo a visao tedrica de Chomsky, ¢ perfeita, O falante nativo sabe a sua lingua, e pronto. De acordo com essa cartilha, cabe ao aprendiz de lingua estrangeira fazer 0 possivel para se aproximar da competéncia do nativo. No entanto, havia também um corolario da premissa inicial — nao explicitado como tal, mas sempre tomado como um pressuposto no cam po de ensino de linguas: nenhum falante nao-nativo jamais pode sonhar em adquirir um dominio perfeito do idioma. Isso naturalmente levou 4 consequiéncia de que ensino de lingua estrangeira fosse, durante muito ‘tempo, considerado um empreendimento com um objetivo inatingivel — nto s6 na pratica, como também em principio. Daf as constantes propostas de melhorar a autenticidade do material didlatico na esperanga de que a distancia entre o objetivo almejado e o resultado efetivamente alcangado fosse cada vez mais diminuido. Ja argumentei em outras oportunidades que o proprio conceito de falante nativo é algo ideologicamente suspeito (Rajagopalan, 1997a, o Pow ma uncrica cxck UncNGEM, DERTIOADE A 1997b). Contrariamente a figura do nativo que, na época aurea da lin-~ ‘guistica estrutural era encarada como uma espécie de “bom selvagem’, 0 nativo que emergiu do modelo chomskiano foi um ser cartesianamente onipotente. Em matéria de ensino de lingua estrangeira, tal concepeao do nativo, marcada por um grau de veneragao desmedida, s6 deu ampla vazio 2 ideologia neocolonialista que sempre pautou o empreendimento. O que see;viu fol uma verdadeira “apotéose do.nativo" Nao é de estranhar que o ensino de lingua estrangeira ainda leve muitos alunos a se sentirem envergonhados da sua propria condicao lin- giistica. Pois o lado mais nocivo e macabro da ideologia que norteou, durante muito tempo, os programas de ensino de lingua estrangeira & ‘que, como resultado direto de determinadas praticas e posturas adotadas em sala de aula, os alunos menos precavidos se sentiam diminuidos em sua auto-estima, passando a experimentar um complexo de inferiorida- de. A lingua estrangeira e a cultura que a sustenta sempre foram apresen- “tadas como superiores as dos discentes. Felizmente, hé sinais de que a situagao esta comegando a sofrer mudancas significativas. Em grande parte, essas mudancas — sem davi- da, ainda timidas — tém a ver com a per ais ndo sao estanques, mas, pelo contrario, influéncia externa. Num mundo globalizado como o de hoje, as linguas esto sofrendo influéncias mituas numa escala sem precedentes. As ‘chamadas "Iinguas francas” do mundo moderno ja nao so mais linguas ‘cujas trajetérias historicas permaneceram continuas e sem influéncias externas ao longo do tempo. Sao todas elas formas de comunica¢ao que tiveram origem no contato efetivo entre povos, processo que continua com maior forca no ‘e espaco que éa marca Qs chamados “porturhol’, da realidade lingustica do mundo de hoje. Sao linguas mistas em cons- tante processo de evolugao, inconcebiveis no final do século XIX, quando Max Mille, grande indologo e estudioso das linguas indo-européias, chegou a decretar sumariamente a inexisténcia de linguas mistas. 68 i emailed, ‘Acexisténcia das linguas mistas nos dias de hoje corresponde & mis- cigenacao crescente entre povos e culturas no mundo inteiro. Quem ain- da pensa em termos de linguas estrangeiras, falantes nativos etc. como se tais conceitos fossem definidos de uma vez por todas ¢ incapazes de serem repensados, na verdade, ainda esta vivendo no século XIX quando entes como nacao, povo, individuo eram concebidos em termos de uma logica binaria segundo a qual sé se admitia uma resposta categorica do tipo “sim” ou ‘nao’ (Rajagopalan, 2002F). Vivemos, na verdade, uma épo- ca em que a questao da identidade j4 nao pode ser mais considerada como algo pacifico. As identidades estao cada vez mais sendo percebidas como precitias e mutaveis, suscetiveis a renegocia¢ao constante. Uma das maneiras pela qual as identidades acabam sofrendo 0 pro- cesso de renegociacao, de realinhamento, é o contato entre as pessoas, entre os povos, entre as culturas. £ por esse motivo que se torna cada vez mais urgente entender o processo de ‘ensino-aprendizagem’ de uma lin- gua “estrangeira” como parte integrante de um amplo processo de redefinigao de identidades. Pois as linguas nao sao meros instrumentos de comunicagao, como costumam alardear os livros introdutérios. As lin {guas sao a propria expressao das identidades de quem delas se apropria. Logo quem transita entre diversos idiomas esta redefinindo sua propria jidentidade. Dito de outra forma, quem aprende uma lingua nova esta se redefinindo como uma nova pessoa. Num mundo que serve de palco para 0 contato, 0 intercambio sem precedentes entre povos, 0 multilingaismo adquire novas conotacdes. O cidadao desse novo mundo emergente ¢, por definicao, multilingite. O multilingtismo como lingua franca (cf. Desai, 1995) j4 se tornou uma realidade no continente da Africa e nas comunidades como a Unido Européia. Ao que tudo indica, 0 mesmo deve se repetir em outras partes do mundo, se é que j nao esteja em curso. Falar de competéncia comunicativa em situacées de multilingitismo implica rever a propria nocao de competéncia comunicativa tal qual Dell Hymes a definiu em seu texto classico (Hymes 1972). Pois a competéncia comunicativa de um falante multilingite é algo em estado permanente de. 69 “mutacao. O destronamento da famigerada figura do falante nativo, junto com sua suposta competéncia lingistica, significa, no entender de Davies (1989: 169), a possibilidade de pensar em metas mais razoaveis ‘exeqaiveis no ensino de linguas estrangeiras. Significa, antes de mais nada, que 0 verdadeiro propésito do ensino de linguas estrangeitas ¢ formar “individuos capazes de interagir com pessoas de outras cultutas e modos de pensar e agir. Significa transformar-se em cidadaos do mundo. As atividades de ensino e aprendizagem de linguas “estrangeiras” personalidade: e jamais permitir que ela nos domine. | et) A construgao de identidades LINGUISTICA E A POLITICA DE REPRESENTACAO I] aque objeto tuséro doe etude flossicos ‘a historia incorma da cincia rave Fuse Be tre os pesquisadores que von la questdo da a Ecidis a WibeinT uh ood A identidade diz respeito nao 6 aos seres vivos ou objetos concretos no mundo, embora sejam eles que, por motivos dbvios, mais servem de exemplos

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