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Aplica-se o pregão nas licitações das estatais, pela lei nº

13.303/2016?
Adriana Edileuza de Sousa
Ronny Charles L. de Torres

1 Introdução. 2. Da interpretação baseada no elemento literal. 3. Da


interpretação baseada no elemento lógico-sistêmico. 4. Conclusão

1 Introdução

É imperioso reconhecer que a Lei das Estatais (nº 13.303/2016) inaugurou


relevantes mudanças no âmbito das contratações públicas. Como consequência dessas
modificações, alguns dispositivos desse diploma legal demandam do aplicador do direito
uma atividade interpretativa mais apurada.

Nesse mister, um dos pontos que merecem melhor atenção é, sem dúvida
alguma, a adoção da modalidade Pregão, insculpida como diretriz, no inciso IV do artigo
32, da referida Lei. O citado dispositivo indica como uma diretriz a “adoção preferencial
da modalidade de licitação denominada pregão, instituída pela Lei nº 10.520, de 17 de
julho de 2002, para a aquisição de bens e serviços comuns”. Vale transcrever o
dispositivo:

Art. 32. Nas licitações e contratos de que trata esta Lei


serão observadas as seguintes diretrizes:

I - padronização do objeto da contratação, dos instrumentos


convocatórios e das minutas de contratos, de acordo com normas
internas específicas;

II - busca da maior vantagem competitiva para a empresa


pública ou sociedade de economia mista, considerando custos e
benefícios, diretos e indiretos, de natureza econômica, social ou
ambiental, inclusive os relativos à manutenção, ao desfazimento de
bens e resíduos, ao índice de depreciação econômica e a outros
fatores de igual relevância;

III - parcelamento do objeto, visando a ampliar a


participação de licitantes, sem perda de economia de escala, e desde
que não atinja valores inferiores aos limites estabelecidos no art. 29,
incisos I e II;

IV - adoção preferencial da modalidade de licitação


denominada pregão, instituída pela Lei no 10.520, de 17 de julho de
2002, para a aquisição de bens e serviços comuns, assim
considerados aqueles cujos padrões de desempenho e qualidade
possam ser objetivamente definidos pelo edital, por meio de
especificações usuais no mercado;
V - observação da política de integridade nas transações
com partes interessadas.

Tal regra seria até compreensível, caso a própria Lei não adotasse um modelo
procedimental flexível, claramente inspirado no RDC, em que não há modalidades
estáticas (como ocorre na Lei nº 8.666/93). Assim, embora o dispositivo indique a adoção
preferencial do pregão, não há outras modalidades licitatórias indicadas pela Lei a serem
preteridas. A expressão “modalidades”, por sinal, é usada sem o devido rigor técnico, para
classificar espécies de regimes de execução ou espécies de garantia.

É evidente a necessidade de se buscar na hermenêutica jurídica, “teoria científica


da arte de interpretar”[1], as bases para a construção do sentido e do alcance dessa
prescrição normativa.

Embora não exista uma classificação que encontre aprovação geral, em relação
aos específicos modelos de interpretação[2], na tentativa de captar o espírito do referido
texto legal, é possível identificar, pelo menos, duas formas distintas de abordagem: a da
interpretação literal ou a da interpretação lógico-sistêmica. Na primeira, o intérprete se
contentará com o estudo isolado do dispositivo, não se preocupando com os aspectos do
todo normativo. Na segunda, o intérprete buscará compreender a letra da lei não
isoladamente, mas sim em harmonia com a anatomia normativa em que ela está inserida.

2. Da interpretação baseada no elemento literal.

In casu, optando pela primeira linha de interpretação, baseada no elemento


literal, o intérprete chegará a conclusão de que, para a licitação de bens e serviços comuns,
aplica-se a Lei nº 10.520/2002 (o pregão), e não o procedimento licitatório previsto na
Lei nº 13.303/2016.

Essa interpretação, embora pareça a “mais fácil”, não é a melhor ao atendimento


da “mens legis” ou vontade do legislador. Apesar da indiscutível importância do elemento
literal, sendo esse imprescindível na determinação do conteúdo, sentido e alcance das
expressões do direito, ele é absolutamente insuficiente, quando considerado
isoladamente.

Não é necessário implementar meditações profundas para verificar a fragilidade


da interpretação literal, na hipótese. A linha de raciocínio resultante dessa interpretação,
da qual discordamos, embora seja aparentemente uma obediência objetiva à Lei, pode
gerar, na verdade, diversas desvantagens e comprometer o próprio regime licitatório por
ela previsto, além de criar situações esdrúxulas ou incongruentes.

O art. 47, inciso III, da Lei nº 13.303/2016, dispõe que a estatal, na licitação para
aquisição de bens, poderá solicitar a certificação de qualidade do produto ou
do processo de fabricação. Caso adotemos o entendimento resultante da interpretação
literal, as aquisições, feitas pelas estatais, utilizando a Lei nº 10.520/2002, não poderão
dispor desta inovação legislativa, já que aquele diploma normativo, pela aplicação
subsidiária da Lei nº 8.666/93, não admite esta exigência[3].

Outrossim, inovações como contratações simultâneas, remuneração variável,


reabertura da licitação, pré-qualificação permanente e orçamento sigiloso também não
estariam disponíveis, pelo afastamento do novel regime licitatório, uma vez que sua
utilização não é prescrita pela Lei nº 10.520/2002 ou pela Lei nº 8.666/93. É inadmissível
admitir que o legislador abriria mão desta parcela da Lei, muitas delas essenciais para as
licitações de bens e serviços comuns, pela simples adoção da modalidade pregão. No
exercício da hermenêutica, deve-se realizar o exame das regras em conjunto, para se
deduzir o sentido de cada uma; necessário indagar se obedecendo uma, não viola outra, e
qual as consequências possíveis de cada exegese isolada[4].

Prevalecendo uma interpretação literal, que afaste as regras da Lei 13.303/2016,


para aplicação da Lei nº 10.520, nas licitações de bens e serviços comuns, afigurar-se-ia
ainda certa situação esdrúxula, pois a estatal, nestas licitações simples, teria um poder
sancionatório maior que em licitações para certames complexos (como uma grande obra),
uma vez que o regime sancionatório da Lei nº 13.303/2016 é relativamente menor que o
poder sancionatório estabelecido pela Lei nº 10.520/2002.

Portanto, seria correto afirmar que o dispositivo estudado impõe a aplicação da


Lei nº 10.520/2002 (pregão) para a licitação de bens e serviços comuns? Uma melhor
interpretação leva a crer que não, tendo em vista o reconhecimento de que tal opção
interpretativa roubaria à Lei da Estatais parte do teor de suas conquistas, prejudicando a
adoção de algumas de suas principais inovações, nas licitações para bens e serviços
comuns, além de gerar situações incongruentes, como a relacionada ao exercício do poder
sancionatório.

Adotar esse viés interpretativo (literal) ofertaria uma solução simplista à


formulação normativa apresentada. Nesse sentido, resta ao intérprete desvelar-se pelo
caminho da exegese construtora, aquela a quem compete “fecundar a letra da lei na sua
imobilidade, de maneira que se torne esta a expressão real da vida do direito”.[5]

3. Da interpretação baseada no elemento lógico-sistêmico.

A segunda interpretação identificada, baseada no elemento lógico-sistêmico,


parece construir uma melhor compreensão da norma investigada. No processo sistemático
compara-se o dispositivo a ser interpretado com outros do mesmo conjunto ou de leis
diversas, que sejam relacionadas ao mesmo objeto; nele, são enfrentadas as “questões de
compatibilidade em um todo estrutural”[6]. Por umas normas se conhece o espírito das
outras, conciliando-se as palavras antecedentes com as consequentes, e examinando-se as
regras de forma conjunta deduz-se o sentido de cada uma. [7]

Como é sabido, o sentido do dispositivo legal precisa guardar coerência com os


demais textos legais existentes no sistema. O significado e o alcance da norma sempre
serão limitados pelos demais enunciados que compõem o ordenamento jurídico. “A
coerência do sistema impede que se atribua a uma norma que o integra sentido que
produza momentos de incongruência”.[8]

Verificou-se anteriormente que a vicissitude encontrada na interpretação literal


foi a incoerência por ela gerada em relação a dispositivos da Lei nº 13.303/2016. Adotar
a interpretação sistemática, que prega justamente a necessidade de coerência entre os
enunciados prescritivos, parece ser uma excelente solução para esse problema
hermenêutico.
Ao analisar o contexto com uma visão sistemática, identifica-se que o dispositivo
estudado deverá ser encarado como “diretriz”; nesse prumo, o legislador quis indicar um
“traçado a ser respeitado”, quis apontar instrução de como deve se dar o procedimento
licitatório para a seleção de bens e serviços comuns, uma vez que o regime jurídico da
Lei das estatais não previu modalidades estáticas, mas um regime procedimental flexível,
permitindo que o gestor modele o certame de acordo com a pretensão contratual, podendo
optar por procedimento semelhante ao do Pregão, ao da concorrência ou mesmo opções
híbridas.

A diretriz firmada pelo legislador está, na verdade, a apontar que a flexibilidade


procedimental admitida pelo regime da Lei nº 13.303/2016 não admite que seja
estabelecida forma procedimental distante do modelo consagrado pela Lei do Pregão, o
qual adota fase única recursal e disputa de preços antes da análise da habilitação. Assim,
o legislador indicou o traçado, deu a devida instrução, para que a modelagem das
licitações de bens e serviços comuns adotasse lógica semelhante à da Lei nº 10.520/2002,
modelo simples e eficiente, mais compatível com este tipo de seleção.

Como ensina Alexy[9], os argumentos sistemáticos apoiam-se na ideia de


unidade e coerência do sistema jurídico, dividindo-se em subgrupos, entre eles, os
argumentos asseguradores de consistência, os quais visam que contradições normativas
sejam eliminadas.

Defender esta segunda linha de interpretação (lógico-sistêmica) permite que o


novo sistema da Lei das estatais funcione de forma completa e harmoniosa. Esse resultado
interpretativo, além de se coadunar com a lógica de inexistência de modalidades estáticas,
em favor da flexibilidade procedimental, admite que a licitação de bens e serviços comuns
seja feita com o regime jurídico da Lei nº 13.303/2016, mesmo que adotando
procedimento semelhante ao do Pregão, o que impede o prejuízo ao uso de algumas
“ferramentas” do novel regime, como: orçamento sigiloso, contratações simultâneas,
remuneração variável, pré-qualificação permanente, entre outros.

4. Conclusão

Pelos argumentos acima expostos, nesse breve texto, buscamos suscitar a


problemática relacionada à interpretação a ser dada ao dispositivo da Lei federal nº
13.303/2016, ao estabelecer a adoção da modalidade pregão como uma diretriz a ser
observada em suas licitações.

Da análise, percebe-se o destaque a duas correntes interpretativas. Uma baseada


no elemento literal, a qual defende a aplicação hermética da modalidade pregão, pelas
estatais, quando forem licitados bens e serviços comuns. Discordamos desta opção
interpretativa, entre outras coisas, pelas implicações por ela causadas, prejudiciais à
utilização de inovações relevantes do procedimento licitatório da Lei das estatais. Em
sentido oposto, convém firmar a existência de outra opção interpretativa, baseada nos
elementos lógico-sistemático. Esta, em nossa opinião, percebe a diretriz indicada pela Lei
(de adoção da modalidade pregão) como uma instrução para que o aplicador da norma,
diante do modelo procedimental flexível adotado pela nova Lei das estatais, observe
roteiro assemelhado ao prescrito para a modalidade pregão.
Entendemos que esta segunda interpretação, baseada nos elementos lógico-
sistêmático, resguarda a consistência das regras da Lei nº 13.303/2016, permitindo que o
procedimento licitatório, embora modulado de forma assemelhada ao prescrito pela
modalidade pregão, possa adotar importantes ferramentas previstas na Lei nº
13.303/2016, entre elas: a certificação de qualidade, o orçamento sigiloso e a
possibilidade de contratações simultâneas.

Partindo desse raciocínio, esta segunda corrente interpretativa atende melhor ao


interesse público de modernizar as licitações das estatais, admitindo que seus certames
adotem procedimento adequado à pretensão contratual, sem prejuízo do uso de
importantes ferramentas e opções criadas pelo legislador.

[1] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de


Janeiro : Forense, 2007.

[2] ALEXY, Robert. Direito, razão e discurso: estudos para a filosofia do direito.
Trad. Luis Afonso Heck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. P. 70.

[3] TCU. Acórdão nº 1.529/2006, Plenário

[4] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de


Janeiro : Forense, 2007. Págs. 104-105.

[5] Ibid., p. 39.

[6] FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do Direito:


técnica, decisão, dominação. 5ª edição. São Paulo: Atlas, 2007. p. 290/296.

[7] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de


Janeiro : Forense, 2007. p. 39.

[8] MACHADO, Hugo de Brito. Introdução ao estudo do direito. 2. ed. São


Paulo: Atlas, 2004.

[9] ALEXY, Robert. Direito, razão e discurso: estudos para a filosofia do direito.
Trad. Luis Afonso Heck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. P. 72.

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