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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

ESCOLA DE MÚSICA

Mayra Pereira

DO CRAVO AO PIANOFORTE NO RIO DE JANEIRO

UM ESTUDO DOCUMENTAL E ORGANOLÓGICO

Rio de Janeiro
2005
Mayra Pereira

DO CRAVO AO PIANOFORTE NO RIO DE JANEIRO


UM ESTUDO DOCUMENTAL E ORGANOLÓGICO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Música da Escola de Música da
Universidade Federal do Rio de Janeiro para
obtenção do título de Mestre em Música.

Área de Concentração: Práticas Interpretativas


Cravo.

Orientador: Prof. Doutor Marcelo Fagerlande

Rio de Janeiro
2005
Para Augusto, com amor
AGRADECIMENTOS

Agradeço a CAPES pela concessão da bolsa de estudos, a qual foi de suma importância para o

financiamento desta pesquisa.

Aos funcionários das instituições visitadas – Biblioteca Nacional, Arquivo Nacional, Instituto

Histórico e Geográfico Brasileiro, Museu da Cidade e Museu Histórico Nacional – pela

acessibilidade, especialmente a Luiz Antonio Ewbank, curador do Museu Histórico e

Diplomático – Palácio Itamaraty e a Ana Luíza, museóloga do Museu Imperial, pela gentil

recepção e interesse por este trabalho.

Aos professores, funcionários, colegas e amigos da Escola de Música da UFRJ pela

colaboração e amizade.

A Marcos Holler e a Maurício Monteiro pelo material enviado.

Ao musicólogo Gerhard Doderer por gentilmente ter cedido informações a respeito do

instrumento português localizado em coleção particular no Rio de Janeiro.

Ao cravista e fortepianista Pedro Persone pela gentileza, delicadeza e prontidão nas inúmeras

consultas realizadas a respeito da terminologia dos instrumentos de teclado de uma maneira geral.

A cravista Rosana Lanzelotte pelo empréstimo de material bibliográfico, por intermediar a visita à

residência onde está localizado o instrumento português no Rio de Janeiro, e principalmente pelo

carinho, atenção e generosidade com que sempre me recebeu ao longo dos últimos anos.
Ao cravista Edmundo Hora pelo apoio, incentivo, atenção e carinho há anos dispensados, pelo

envio de informações diversas e, sobretudo, por me honrar com sua sincera amizade.

A Florence Gétreau, diretora do Institut de recherche sur lê patrimoine musical em France –

IRPMF, pelo gentil interesse e prontidão em ajudar nas questões de organologia e

terminologia, pelo empréstimo de material bibliográfico e em especial, pela contribuição que

seu curso trouxe a este trabalho.

A meu orientador Marcelo Fagerlande pelos ensinamentos, paciência, confiança depositada

em mim, muitos empréstimos de materiais fonográficos e bibliográficos e sobretudo, pela

seriedade e competência com que orientou esta pesquisa.

A meus amigos e familiares pelo apoio e compreensão, especialmente a Thaís Borges pela

ajuda nos textos em inglês, a Ana Cecília Tavares pela ajuda nos textos em francês, e a Tia Rita pela

revisão do texto de parte deste trabalho.

A meus Pais, Márcia e Nelson, pelo amor incondicional, dedicação, companheirismo e

presença, sempre. Em especial à minha mãe, por mais uma vez me segurar no colo nos

momentos em que pedras surgiram no meio do caminho, fazendo com que esta longa

caminhada não fosse tão árdua.

Ao Augusto Carvalho Souza pela paciência, apoio, compreensão, carinho, ajuda e amor. Por

sua constante presença que, mesmo a longa distância, foi o consolo e a grande alegria para

todos os momentos.
RESUMO

Este trabalho pretende resgatar informações referentes à existência e coexistência de

cravos e pianofortes no Rio de Janeiro, até precisamente o ano de 1830, voltando-se, também,

para os aspectos da organologia e terminologia. A localização de dados históricos a respeito

da existência, origem e características estruturais destes instrumentos constituíram o objetivo

central da pesquisa documental em fontes primárias. Estudou-se, primeiramente, o processo

de transição entre cravos e pianos na Europa e a problemática da nomenclatura atribuída aos

primeiros pianofortes para compreender o processo histórico em questão. Em seguida,

desenvolveu-se um estudo sobre características organológicas das escolas construtivas de

cravos e pianofortes comprovadamente encontradas durante a pesquisa documental, a fim de

possibilitar um melhor entendimento dos registros observados. Finalmente, foi feita uma

extensa consulta a fontes documentais primárias, as quais estão parcialmente disponibilizadas

nos Anexos. A análise e interpretação das evidências encontradas revelaram fatos inéditos

sobre o cravo e o pianoforte no Rio de Janeiro, até o início do século XIX. Foram

desvendados os primeiros registros até hoje levantados a respeito de ambos os instrumentos e

também muitas outras evidências que permitiram, de um modo geral, a reconstrução de uma

perspectiva histórica da existência do cravo e do pianoforte na cidade.

Palavras-chave: Cravo. Pianoforte. Organologia. Terminologia. Rio de Janeiro. Transição.


ABSTRACT

This assignment intends to gather information related to the existence and coexistence

of harpsichords and pianofortes in Rio de Janeiro, up to 1830 exactly, and also refers to the

aspects of organology and terminology of these instruments. The ultimate aim of the research

in primary document sources consists of the location of historical data in relation to the

existence, origin and structure characteristics of the same instruments. The process of

transition from harpsichords to pianofortes in Europe and also the given nomenclature issue

concerning the first pianofortes were firstly studied so that the historical process in task could

be comprehend. Then, the study of organological characteristics of harpsichords and

pianofortes building schools was developed, bared on the ones found in evidences during the

document research, in order to allow a better understanding of the observed registers. Finally,

an extended search of primary document sources was made, some of which are partially

attached to the assignment. The analysis and interpretation of the found evidences showed

facts about the harpsichords and pianofortes in Rio de Janeiro, until the beginning of the 19th

century, never seen before. Not only the first registers on both instruments ever gathered up to

now were discovered but also many other evidences were put together, which permitted the

general rebuilding of a historical perspective of the existence of harpsichords and pianofortes

in the city of Rio de Janeiro.

Keywords: Harpsichord. Pianoforte. Organology. Terminology. Rio de Janeiro. Transition.


LISTA DE FIGURAS

Fig. 1 – Cravo Italiano anônimo – 1700 – página: 21.

Fig. 2 – Pianoforte Bartolomeo Cristofori – 1720 – página: 21.

Fig. 3 – Ação do Cravo – página: 22.

Fig. 4 – Ação desenvolvida por Bartolomeo Cristofori para o Pianoforte – 1726 – página: 22.

Fig. 5 – Primeira ilustração conhecida do mecanismo do pianoforte por Scipione Maffei em

seu artigo de 1711 – página: 23.

Fig. 6 – Fac-símile da página frontal da edição de 1732 das composições de Lodovico

Giustini – página: 25.

Fig. 7 – Esquema da difusão dos primeiros pianofortes a partir de Bartolomeo Cristofori –

página: 25.

Fig. 8 – Forma asa - originada do cravo italiano – página: 32.

Fig. 9 – Forma retangular – página: 32.

Fig. 10 – Fac-símile da página frontal do método de Antoine Bemetzrieder – 1796 – página: 33.

Fig. 11 – Cravo Antunes – 1785 – página: 37.

Fig. 12 – Pianoforte Antunes – 1767 – página: 40.

Fig. 13 – Ação Piano Português – 1767 – Antunes – página: 41.

Fig. 14 – Stossmechanik – c. 1770 – página: 44.

Fig. 15 – Pianoforte de mesa Johann Matthäus Schmahl – c. 1770 – página: 44.

Fig. 16 – Clavicórdio Christian Kintzing – 1763 – página: 45.

Fig. 17 – Sistema mecânico do clavicórdio – página: 45.

Fig. 18 – Prellmechanik – c. 1779 – página: 46.

Fig. 19 – Pianoforte de mesa Wilhelm Constantin Schiffer – c. 1779 – página: 46.

Fig. 20 – Prellmechanik com escapamento – Pianoforte Heilmann c. 1785 – página: 47.


Fig. 21 – Cravo Johann Christoph Fleisher – 1710 – página: 47.

Fig. 22 – Pianoforte J. A. Stein – 1775 – página: 47.

Fig. 23 – Mecânica Vienense – Pianoforte Conrad Graf 1826 – página: 48.

Fig. 24 – Esquema do desenvolvimento dos mecanismos do pianoforte alemão nos séculos

XVIII e XIX – página: 48.

Fig. 25 – Transformação da cabeça dos martelos – página: 50.

Fig. 26 – Pianoforte Joseph Brodmann, c. 1810 – página: 50.

Fig. 27 – Giraffe Piano André Stein 1809/1811 – página: 51.

Fig. 28 – Pyramid Piano anônimo – página: 51.

Fig. 29 – Nähtisch – página: 51.

Fig. 30 – Orphica Joseph Klein – página: 51.

Fig. 31 – Homem tocando Orphica - Viena c. 1820 – página: 51.

Fig. 32 – Piano de Mesa Zumpe – 1769 – página: 53.

Fig. 33 – Ação Inglesa Simples – Estilo Zumpe – 1775 – página: 54.

Fig. 34 – Forte Piano Backers – página: 55.

Fig. 35 – Cravo Kirckman – página: 55.

Fig. 36 – Piano de Cauda Broadwood – 1794 – página: 55.

Fig. 37 – Ação Inglesa Broadwood – 1799 – página: 56.

Fig. 38 – Dimensão de Cordas e Martelos em Broadwood – página: 57.

Fig. 39 – Pianoforte Vertical Broadwood – sem data – página: 58.

Fig. 40 – Pianoforte de J. H. Silbermann – 1776 – página: 60.

Fig. 41 – Ação Duplo Escapamento Erard – 1821 – página: 61.

Fig. 42 – Piano de Cauda Erard – 1803 com quatro pedais – página: 62.

Fig. 43 – Piano de Cauda Erard – 1832 com dois pedais – página: 62.

Fig. 44 – Pianino Pleyel – 1852 – página: 63.


Fig. 45 – Trecho do documento original (registro de carta régia de 1721) – página: 70.

Fig. 46 – Nome do construtor e data da Espineta – página: 73.

Fig. 47 – Espineta Mathias Bostem – 1785 – página: 73.

Fig. 48 – Carro das Cavalhadas – página: 76.

Fig. 49 – Carro das Cavalhadas Burlescas – página: 76.

Fig. 50 – Trecho da capa do Inventário de Antônio Pereira Ferreira – página: 78.

Fig. 51 – Trecho do Inventário de Antonio Pereira Ferreira – página: 78.

Fig. 52 – Trecho do Inventário de Antonio Ribeiro de Avellar – página: 85.

Fig. 53 – Trecho do Ofício sobre a compra de piano para D. Maria da Glória – página: 91.

Fig. 54 – Trecho do Ofício sobre a compra de piano para família real – página: 92.

Fig. 55 – Pianoforte de mesa Broadwood – início séc. XIX – página: 93.

Fig. 56 – Pianoforte de mesa Collard & Collard – início séc. XIX – página: 93.

Fig. 57 – Nome do construtor e data do Cravo transformado – página: 97.

Fig. 58 – Cravo transformado Joze Cambiazo – 1769 – página: 98.

Fig. 59 – Detalhe da parte interna da tampa – Cravo transformado Joze Cambiazo – 1769 –

página: 98.

Fig. 60 – Detalhe da parte externa da tampa – Cravo transformado Joze Cambiazo – 1769 –

página: 98.

Fig. 61 – Esboço em aquarela de Henrique Bernardelli – s/d – página: 99.

Fig. 62 – Tela a óleo de Henrique Bernardelli – s/d – página: 99.

Fig. 63 – Croqui piano de cauda – página: 108.

Fig. 64 – Croqui piano de mesa – página: 108.

Fig. 65 – Presença de cravos e pianofortes no Rio de Janeiro – página: 117.


LISTA DE TABELAS

Tab. 1 – Alguns dos métodos para teclado do século XVIII – página: 34.

Tab. 2 – Nomenclatura do piano nos formatos ‘asa’ e ‘retangular’ dos séculos XVIII e XIX,

na Europa – página: 34.

Tab. 3 – Cronologia do Pianoforte em Portugal, Alemanha, Inglaterra e França até 1830 –

página: 66.

Tab. 4 – Transcrição da listagem de preço de alguns produtos entrados pela Alfândega do Rio

de Janeiro em 1721 – página: 70.

Tab. 5 – Trecho da pauta das avaliações das Fazendas pelas quais se cobram os direitos da

Dízima da Alfândega em 1766 – página: 71.

Tab. 6 – Instrumentos e artigos musicais importados pelo Rio de Janeiro em 1799 – página:

81.

Tab. 7 – Registros de importações declarados nos jornais no período de 1808 – 1830 – página:

87.

Tab. 8 – Preços de Cravos e Pianos fixados pelo decreto régio de 1829 – página: 96.

Tab. 9 – Nomenclatura do piano no Rio de Janeiro até 1830 – página: 111.

Tab. 10 – Cronologia de Cravos e Pianofortes no Rio de Janeiro até 1830 – página: 115.
SUMÁRIO

Introdução ................................................................................................................ 13

Capítulo 1 – Do Cravo ao Pianoforte na Europa .................................................. 18


1.1 – Aspectos históricos do surgimento do Pianoforte e sua coexistência com
18
o cravo .................................................................................................................
1.2 – A questão da nomenclatura ........................................................................ 28

Capítulo 2 – Cronologia e aspectos organológicos ................................................ 35


2.1 – Cravo e Pianoforte Portugueses ................................................................. 36
2.2 – Pianoforte Alemão ..................................................................................... 42
2.3 – Pianoforte Inglês ........................................................................................ 52
2.4 – Pianoforte Francês ...................................................................................... 58
2.5 – Comentários sobre as escolas tratadas ....................................................... 64

Capítulo 3 – Do Cravo ao Pianoforte no Rio de Janeiro ..................................... 67


3.1 – Dos primeiros Cravos à significativa presença do Pianoforte ................... 67
3.2 – A problemática da terminologia ................................................................. 100
3.2.1 – Cravo ................................................................................................. 100
3.2.2 – Pianoforte .......................................................................................... 102

Considerações Finais ............................................................................................... 112

Referências Bibliográficas ...................................................................................... 119

Glossário ................................................................................................................... 134

Anexos ....................................................................................................................... 137


Anexo 1 – Inventários ......................................................................................... 138
Anexo 1.1 – Fazenda Santa Cruz .................................................................. 139
Anexo 1.2 – Antonio Pereira Ferreira ........................................................... 140
Anexo 1.3 – Antonio Ribeiro Avellar ........................................................... 142
Anexo 2 – Documentos Diversos em Manuscrito .............................................. 145
Anexo 2.1 – Registro de Carta Régia de 1721 .............................................. 146
Anexo 2.2 – Ofício de compra de pianoforte para D. Maria da Glória ......... 150
Anexo 2.3 – Ofício de compra de pianoforte para S. A. Imperiais ............... 151
Anexo 3 – Tabela Balança Geral do Commercio ................................................ 153
Anexo 4 – Jornais ................................................................................................ 156
Anexo 4.1 – Gazeta do Rio de Janeiro 157
Anexo 4.2 – Semanario Mercantil, Folha Mercantil e Diario Mercantil ...... 163
Anexo 4.3 – Jornal do Commercio ............................................................... 174
Anexo 5 – Tabela de Importações ....................................................................... 217
Anexo 6 – Decreto Régio de 1829 ...................................................................... 219
INTRODUÇÃO

A história dos instrumentos de teclado foi significativamente marcada pela invenção

do pianoforte na Itália, concebido ainda em fins do século XVII, e pelo subseqüente processo

de decadência do cravo que este novo invento desencadeou na Europa. As circunstâncias que

propiciaram este acontecimento, assim como todo o desenvolvimento do período em que

ambos os instrumentos coexistiram tem sido objeto de estudo de músicos e pesquisadores ao

redor do mundo, há muitos anos. Embora já se tenham descoberto dados relevantes que

possibilitaram a reconstituição de uma perspectiva geral deste longo período de transição,

muitos questionamentos ainda se encontram sem resposta e inúmeros documentos

permanecem perdidos em arquivos e museus.

Em relação ao Brasil, verifica-se que poucos foram os estudos dedicados à

investigação de evidências documentais a respeito dos cravos e dos pianos antigos no país.

Aliás, quase nada foi pesquisado sobre os cravos. O interesse maior esteve sempre

relacionado aos pianos, sobretudo no que se refere à sua inserção no meio social. Parece que o

período em que ambos os instrumentos estiveram presentes no cotidiano do século XIX e na

época anterior foram quase esquecidos. Informações e questionamentos específicos sobre

ambos os instrumentos também não foram, de maneira alguma, estudados.

Diante desta lacuna na literatura brasileira, pensou-se em desenvolver um trabalho de

resgate das informações referentes à existência e coexistência de cravos e pianofortes no

Brasil, incluindo uma abordagem organológica, ou seja, um estudo descritivo e analítico de

tais instrumentos. A organologia se fez importante uma vez que não se desenvolveu até então

nenhuma investigação sobre este aspecto no país. Pode-se ainda acrescentar que muito pouco

se escreveu sobre este assunto em língua portuguesa, sendo todas as pesquisas desenvolvidas

em Portugal e voltadas para os instrumentos daquele país.

13
Entretanto, em virtude da extensão territorial do Brasil, optou-se por se concentrar na

cidade do Rio de Janeiro por dois motivos. O primeiro por ser a cidade mais importante do

Brasil colônia tanto sob a ótica política e social quanto a comercial e, segundo, por ter sido

cenário de atuação do principal músico que transitou, comprovadamente, entre o cravo e o

pianoforte, o padre José Maurício Nunes Garcia (1767-1830).

Foi necessário também limitar o período de estudo da pesquisa. O marco final foi

fixado em 1830 por ser o ano do falecimento de José Maurício. Quanto ao marco inicial, este

não teve uma delimitação a priori. Tomou-se como data inicial, por conseguinte, o

documento mais antigo encontrado que versava sobre a existência de cravos e/ou pianos.

No entanto, logo se esbarrou com uma séria dificuldade condizente com uma pesquisa

que se predispunha a buscar informações anteriores ao século XIX. A inexistência de livros e

periódicos anteriores ao ano de 1808, quando foi criada a Impressão Régia, fez com que se

procurassem, de forma aleatória, dados a respeito de cravos e pianofortes em documentos

manuscritos de natureza diversa. Estes foram consultados em acervos e arquivos da Biblioteca

Nacional do Rio de Janeiro, Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, Instituto Histórico e

Geográfico Brasileiro, Museu Nacional de Belas Artes, Museu Histórico e Demográfico –

Palácio Itamaraty, Museu Histórico Nacional, Museu da Cidade e Museu Imperial.

Inicialmente foram buscados registros sobre importações e alfândega, onde se

descobriu material raro e interessante através das Pautas de avaliação da Alfândega (séc.

XVIII), dos volumes da Balança Geral do Commercio de Portugal com seus Domínios (séc.

XVIII e XIX) e de Decretos, leis e alvarás (séc. XIX). Procurou-se também em relações de

bens pessoais, nos quais os inventários post-mortem e a documentação da Casa Real e

Imperial revelaram dados inéditos.

Os relatos de festividades do Rio de Janeiro do séc. XVIII, assim como o testemunho

de viajantes estrangeiros desta época e do séc. XIX, foram também considerados importantes

14
pelas observações sobre aspectos da vida musical, incluindo informações referentes à

presença de instrumentos de teclado na cidade.

Além disso, foi feita a leitura integral de uma sucessão de jornais impressos no Rio de

Janeiro no início do séc. XIX, abrangendo o período em estudo. A Gazeta do Rio de Janeiro

(setembro de 1808 – dezembro de 1822), o Diário Mercantil e suas variações Semanario e

Folha Mercantil (janeiro de 1823 – setembro de 1827) e o Jornal do Commercio (outubro de

1824 – dezembro de 1830) foram os periódicos escolhidos por estarem voltados não somente

ao noticiário local e internacional, mas principalmente aos anúncios de compra, venda e

aluguel e registros das cargas dos navios aportados na cidade.

Para a abordagem organológica, recorreu-se a uma revisão bibliográfica de fontes

internacionais abrangendo catálogos, periódicos e livros de referência. É importante enfatizar

novamente a quase inexistência de literatura em português dedicada ao assunto, mais um fato

que justifica o estudo desenvolvido para este trabalho.

O prosseguimento da pesquisa documental e teórica suscitou ainda, questionamentos a

respeito da terminologia empregada para a denominação dos cravos e pianofortes no período

em estudo, tanto no Rio de Janeiro quanto na Europa. A ambigüidade encontrada nas fontes

nacionais e internacionais tornou imprescindível a discussão relacionada à nomenclatura dos

vários tipos de instrumentos de teclado.

Assim, os objetivos deste trabalho são recuperar parte da história do cravo e do

pianoforte no Rio de Janeiro, até o ano de 1830, e identificar a extensão do período de

transição entre ambos, a partir do levantamento e sistematização de toda e qualquer

informação a respeito dos instrumentos. As questões que se propõe discutir, e possivelmente

responder, referem-se a quando, de onde vieram e como eram os cravos e pianofortes

existentes na cidade até o início do séc. XIX, baseando-se, sobretudo, em aspectos da

organologia e terminologia dos mesmos.

15
A presente dissertação de mestrado está organizada em três capítulos, sendo os dois

primeiros referentes à Europa e o restante, à cidade do Rio de Janeiro. No Capítulo 1 – Do

Cravo ao Pianoforte na Europa – são apresentadas informações históricas do surgimento do

pianoforte na Itália e sua disseminação para outras regiões européias, além de abordar

algumas passagens sobre a transição dos instrumentos e a dubiedade observada em sua

nomenclatura. O Capítulo 2 – Cronologia e aspectos organológicos – trata das características

formais e estruturais dos instrumentos fabricados por escolas construtivas que

comprovadamente tiveram exemplares exportados para o Rio de Janeiro. São elas a de

Portugal, Alemanha, Inglaterra e França. Tanto o Capítulo 1 quanto o Capítulo 2 compõem o

referencial teórico que norteou o objeto de estudo propriamente dito, apresentado no Capítulo

3. Finalmente, neste capítulo – Do cravo ao Pianoforte no Rio de Janeiro – encontra-se,

portanto, a exposição e discussão dos dados levantados ao longo de toda a pesquisa

documental, sendo muitos deles inéditos, além de trazer uma análise detalhada a respeito da

terminologia aplicada aos instrumentos.

O trabalho foi ainda complementado com a inclusão de um Glossário e de Anexos. No

Glossário, encontram-se termos específicos sobre os antigos instrumentos de teclado em geral.

Dentre os seis anexos inseridos, estão disponibilizadas cópias de parte dos inventários post-

mortem e de manuscritos de documentos referentes à fixação de preços e compra de cravos e

pianofortes, tabelas condensando as importações registradas nos volumes da Balança Geral

do Commercio do Reyno de Portugal com seus Dominios e nos jornais pesquisados, além de

se apresentar a transcrição integral de todos os anúncios referentes a cravos e pianos

localizados nos periódicos Gazeta do Rio de Janeiro, Diario Mercantil (Folha Mercantil e

Semanario Mercantil) e Jornal do Commercio (até dezembro de 1830) e o Decreto Régio de

1829, o qual determina os valores de inúmeros instrumentos musicais dentre outros produtos.

16
É necessário esclarecer que, em cada um dos anúncios de jornais transcritos, optou-se

por grifar apenas o nome do instrumento de teclado citado, a fim de possibilitar sua

visualização direta e permitir uma consulta clara para várias finalidades.

Espera-se, assim, que o presente trabalho contribua para o contínuo desvendar da

longa história do cravo e do pianoforte no Rio de Janeiro, e consequentemente, ofereça

referência e subsídios para novas pesquisas neste âmbito musical. De maneira alguma existiu

a pretensão de se esgotar o assunto; almeja-se, pelo contrário, incentivar outros músicos e

pesquisadores a continuar o trabalho de descoberta e revelação dos muitos documentos,

informações e mistérios que permanecem escondidos em arquivos, bibliotecas e museus.

17
CAPÍTULO 1 – DO CRAVO AO PIANOFORTE NA EUROPA

1.1 – ASPECTOS HISTÓRICOS DO SURGIMENTO DO PIANOFORTE E SUA COEXISTÊNCIA

COM O CRAVO

O impulso fundamental para o processo de suplantação de alguns dos principais


1
instrumentos de teclado do século XVIII – o cravo e o clavicórdio – pelo pianoforte foi,

essencialmente, a capacidade deste de superar as limitações técnico-construtivas dos demais.

A cronologia dos fatos transparece, em um primeiro momento, a prioridade de resolução das

limitações mencionadas. Além disso, não se pode omitir a relação entre as novas

necessidades musicais da época e este grande invento, visto que há evidências documentais

comprovando que alguns músicos responderam com uma linguagem técnica ao novo

instrumento, quase simultaneamente ao momento de sua aparição 2.

O clavicórdio3, de construção simples e barata, permitia ao intérprete tanto um íntimo

e completo controle da intensidade e qualidade de seu som, quanto a realização de efeitos

sonoros como o vibrato4. Entretanto, sua sonoridade muito suave e discreta restringia-o a um

uso privado. O cravo, em contraposição, possuía um volume suficientemente alto e um timbre

brilhante para o salão, teatro ou igreja. Todavia, só era capaz de produzir um sutil contraste

dinâmico através da intensidade do toque ou da própria escrita musical, alcançando uma

1
Baseando-se em C. P. E. Bach, existem muitos instrumentos de teclado no século XVIII, porém os principais
são o cravo e o clavicórdio, por terem recebido maior aprovação (para citação integral ver p. 26). Além disso,
exclui-se o órgão por este ser do grupo dos aerofones – instrumentos nos quais o som é produzido a partir do ar
como principal agente – e não do grupo dos cordofones – instrumentos cujo som é produzido pela vibração de
cordas retesadas e fixas em sua extremidade – do qual fazem parte o cravo, clavicórdio e pianoforte. O órgão,
desde sua criação, nunca deixou de ser tocado e, principalmente, em momento algum rivalizou com o pianoforte.
2
SUTHERLAND, David. A. La evidencia más temprana del lenguaje técnico del piano. Claves y pianos
españoles: interpretación y repertorio hasta 1830. Ed. Luisa Morales. Barcelona: Instituto de Estudos
Almerienses, 2000, p. 135.
3
Ver Glossário.
4
Ver Glossário.

18
substancial gradação de dinâmica apenas pela utilização de recursos mecânicos como os dois

manuais e os registros. 5

Estas restrições mecânicas dos instrumentos foram relatadas por importantes

tecladistas da época. François Couperin (1668-1733), em seu método L’art de toucher le

clavecin6, descreve, em pelo menos duas passagens, a impossibilidade do cravo em crescer e

decrescer seu volume:

Os sons do cravo, uma vez definidos, cada um em particular, por


conseqüência não podem ser aumentados nem diminuídos. Pareceu quase
insustentável, até o presente, que se pudesse dar alma ou sentimento a este
instrumento. Entretanto, pelas pesquisas nas quais eu apliquei o pouco de
inteligência que o céu me deu eu procurarei me fazer compreender por
quais razões eu soube adquirir a felicidade de sensibilizar as pessoas de
bom gosto que me deram a honra de me escutar, e de formar alunos que
talvez me ultrapassem. 7

Este instrumento tem suas características assim como o violino tem as


suas. Se o cravo não pode aumentar sua sonoridade e se os batimentos
repetidos sobre uma mesma nota não combinam particularmente com o
instrumento, este, por sua vez, possui outras vantagens que são a precisão,
clareza, brilho e a extensão. 8

Outro notável tecladista, Carl Phillip Emanuel Bach (1714-1788) em seu tratado para

teclado Versuch über die wahre Art das Clavier zu spielen9, também faz algumas ressalvas a

respeito das características do cravo:

No cravo não há possibilidade de se sustentar o som por muito tempo,


ou de fazê-lo crescer ou decrescer, o que se chama com razão exprimir
pictoricamente a sombra e a luz. (...) Este defeito do cravo pode ser
suficientemente bem compensado por diversos expedientes, como os

5
EHRLICH, Cyril. The Piano: A History. Clarendon Press, 1990, p. 11.
6
Editado pela primeira vez em 1716 e seguido de novas edições em 1717 e 1745.
7
COUPERIN, François. L’art de toucher le clavecin. Édition de 1717. France: Éditions J. M. Fuzeau S. A.,
1996, p. 15/16 (tradução nossa).
8
Ibid., p. 35 (tradução nossa).
9
Obra editada, apenas a primeira parte, em 1753 e posteriormente em 1759, sendo lançada a edição da segunda
parte em 1762.

19
acordes arpejados; além disso o ouvido suporta mais movimento sobre um
teclado que em outros instrumentos. 10

Além disso, como confesso amante do clavicórdio, Carl Phillip explana sobre as qualidades

de uma interpretação no instrumento, que julga ser o melhor dos teclados, mas admite “sua

sonoridade mais fraca”.

Apesar da consciência das intrínsecas limitações do cravo e clavicórdio, fica claro com

as passagens aqui expostas que ambos os compositores dispunham de possibilidades

interpretativas para suprir tais particularidades, o que certamente configurava uma prática

usual. No entanto, estes relatos de época também sugerem que a compreensão destas

‘deficiências’ dos instrumentos delineava um ambiente propício para o surgimento de um

novo instrumento, capaz de ao mesmo tempo aliar as virtudes do cravo e do clavicórdio e

suprir suas carências.

Assim, concebeu-se em Florença, Itália, uma ‘variação’ do cravo no ano de 1698,

sendo esta realmente materializada, em termos de patente, apenas em 1700. Seu criador,

Bartolomeu Cristofori, era o responsável pelos instrumentos do Príncipe Ferdinando dei

Medici em Florença desde 1688 e tornou-se conhecido por toda uma posteridade pelo sucesso

de sua criação. Um inventário do próprio Príncipe, datado de 1700, enumera todos os

instrumentos musicais de sua propriedade, listando uma grande variedade de cravos sendo um

descrito detalhadamente como arpicimbalo di Bartolomeo Cristofori, di nuova inventione, che

fa il piano e il forte: 11

Um cravo de Bartolomeu Cristofori de nova invenção, que toca piano


e forte, com dois jogos de cordas em uníssono, com tampo harmônico de
cipreste sem rosácea, os lados da caixa possuem uma meia curva
emoldurada com marchetaria em ébano, com salterelos com panos
vermelhos, que abafam as cordas, e martelos produzindo o piano e força,

10
BACH, Carl Philip Emanuel. Ensaio sobre a maneira correta de se tocar teclado. Trad. Fernando Cazarini.
São Paulo: Unesp, 1996, p. 105.
11
COLE, Michael. The Pianoforte in the Classical Era. Oxford: Oxford University Press, 1998, p. 3.

20
todo o mecanismo coberto com um tampo de cipreste com tiras de ébano.
Teclas de buxo e ébano, sem sustenidos divididos, em número de 49 do
começando e terminando no C, com blocos pretos no final com puxadores
redondos pretos em cima (...) 12

O arpicimbalo, universalmente conhecido como pianoforte13, era então um cravo

italiano14 transformado, isto é, tendo seus saltarelos15 com plectros16 - responsáveis pela ação

de pinçar a corda - substituídos por martelos17 acionados por um sistema de alavanca –

encarregados de golpear a corda (Fig. 1, 2 e 3). Possuía também um mecanismo de escape,

que fazia com que os martelos voltassem imediatamente após haverem golpeado a corda,

deixando-a livre para vibrar, e um sistema de abafadores que caíam por sobre as cordas

apenas quando as teclas fossem soltas, interrompendo sua vibração e, conseqüentemente,

cortando o som 18 (Fig. 4).

Fig. 1 - Cravo Italiano anônimo – 1700


(Staatliches Institut für Musikforschung) Fig. 2 - Pianoforte Bartolomeo Cristofori – 1720
(http://www.metmuseum.org)

12
V. Gai, Gli strumenti musicali della corte Medicea e il Museo del Conservatorio ‘Luigi Cherubini’ (Florence,
1969), p. 11 e R. Russel, The Harpsichord and Clavichord (London, 1959), p. 125-30, citados em COLE, 1998,
p. 3. (Tradução nossa).
13
Uma maior discussão sobre a questão desta terminologia será especialmente abordada no item 1.2.
14
O cravo italiano é o mais antigo dentre os demais (flamengo, inglês, francês, alemão, espanhol e português) e
caracteriza-se por possuir apenas um manual com um ou dois jogos de cordas de 8’ e uma extensão de quatro ou
quatro oitavas e meia (SCHOTT, Howard. Playing the Harpsichord, Mineola, N. Y.: Dover, 2002, p. 20 e 25).
Seu timbre é bastante peculiar, pois a distância entre o ponto de tangência do plectro na corda em relação à
cravelha é maior, resultando em um timbre com maior presença de sons fundamentais, ou seja, com menos
harmônicos. Sua caixa é leve, construída com madeira de cipreste e paredes finas, o que possibilita um maior
volume sonoro.
15
Ver Glossário. Adota-se aqui o termo italiano saltarelo, ainda que exista uma palavra em português para a
peça em questão – ‘martinete’- já que a palavra italiana é a mais usual.
16
Ver Glossário.
17
Ver Glossário.
18
Diccionário Oxford de la Musica, p. 959.

21
B
C
A
A- Plectro
E B- Abafador
C- Corda
D- Saltarelo
E- Lingüeta

D
Fig. 3 – Ação do Cravo
(The New Grove Dictionary of Music and Musicians, 1980)

C
B A- Tecla
B- Corda
D C- Abafador
E D- Martelo
A F E- Braço Intermediário
G F- Cápsula Vertical
G- Ajuste da Cápsula Vertical

Fig. 4 – Ação desenvolvida por Bartolomeo Cristofori para o Pianoforte – 1726


(The New Grove Dictionary of Music and Musicians, 1980)

Contudo, parece que o pianoforte não foi significativamente modificado no berço de

sua criação. A manufatura dos instrumentos pode ser documentada em Florença, de 1700 a

1746, sendo provavelmente continuada até pelo menos meados do século, antes de ser

interrompida por dificuldades políticas19. Cristofori faleceu em 1731, e mesmo seu trabalho

sendo prosseguido através de seu fiel discípulo Giovanni Ferrini, o qual continuou a produzir

tanto a ação de martelos quanto a de pinçar dos cravos20, sabe-se que o desenvolvimento dos

projetos iniciais do inventor do arpicimbalo deu-se em outras regiões.

19
SUTHERLAND, David. The early pianoforte. Early Music, London, vol. xxiv, maio 1996, p. 340.
20
SCHOTT, Howard. From harpsichord to pianoforte – a chronology and commentary. Early Music, London,
vol. xiii, fevereiro 1985, p. 29.

22
Certamente, as fronteiras italianas foram ultrapassadas com a publicação do artigo de

Scipione Maffei, no Giornale de’ letterati d’Italia em 1711, o qual continha toda uma

descrição da nova criação de Bartolomeo Cristofori juntamente com uma ilustração de seu

mecanismo (Fig. 5). Este documento foi reimpresso em 1719, sendo finalmente traduzido e
21
publicado na Alemanha em 1725 por Johann Mattheson (1681-1764) no Critica musica .

Nesta região, a construção do pianoforte encontrou terreno fértil em torno de Gottfried

Silbermann (1683-1753)22, o qual teve sua tradição difundida, através de importantes

discípulos como seu sobrinho Johann Heinrich Silbermann23 e os chamados ‘12 apóstolos’,

até a Inglaterra 24.

Fig. 5 – Primeira ilustração conhecida do mecanismo do pianoforte por Scipione


Maffei em seu artigo de 1711
(CLEMENICIC, 1973)

J. H. Silbermann manteve fielmente a ação dos pianos de seu tio Gottfried, ou seja, a

de Cristofori, basicamente sem modificação alguma. Além disso, sabe-se que esses

21
PASCUAL, Beryl Kenyon de. Investigating early pianos, Early Music, London, vol. xxviii, p. 503.
22
Ver Cap. 2, item 2. 2, p. 42-44.
23
Ver Cap. 2, item 2. 4, p. 58.
24
SCHOTT, 1985, p. 29.

23
25
instrumentos exerceram grande influência em Paris no último quarto do século XVIII.

Quanto aos ’12 apóstolos’, estes migraram da Alemanha para Londres por volta de 1756,

antes da devastação da Guerra dos Sete Anos (1756-63). Dentre eles estava Johannes Zumpe

(1735-1783), notável construtor que por volta de 1760 abriu seu próprio ateliê e inventou uma

nova forma para o pianoforte denominado square piano ou piano de mesa26. 27

Ainda seguindo a linha inicial de difusão dos primeiros pianofortes, verifica-se por

volta de 1761, na França, a presença e conseqüente influência de alguns exemplares de J. H.

Silbermann. Posteriormente, abertura do ateliê do construtor Sebastién Erard (1752-1831) 28,

o qual, após certo período em Londres, passou a fabricar instrumentos à semelhança dos de

Zumpe, configura um marco na subseqüente supremacia da escola francesa no século XIX.

A direta herança cristoforiana foi levada não só para as regiões germânicas, inglesas e

francesas, mas também para Portugal e Espanha. Por parte dos portugueses, verifica-se o

estabelecimento de fiéis ‘imitações’ do projeto do pianoforte florentino provavelmente a partir


29
de 1730 , o que talvez possa explicar a dedicatória das primeiras composições para o

instrumento, intituladas Sonate da Cimbalo di Piano, e Forte detto volgarmente di martelletti

de Lodovico Giustini (1685-1743) ao Infante D. António de Bragança (Fig. 6). Já os

hispânicos, importavam os instrumentos italianos, pelo menos para a Rainha Maria Bárbara,

desde o início do século, desenvolvendo uma manufatura local somente a partir dos anos de

1780 30.

25
SUTHERLAND, 1996, p. 340.
26
Ver Cap. 2, item 2. 3, p. 52-53.
27
ADLAM, Derek. The fortepiano from Silbermann to Pleyel. Early Music, Advance Access published on
August 2005, p. 1.
28
Ver Cap. 2, item 2. 4.
29
SUTHERLAND, 1996, loc. cit.
30
SCHOTT, 1985, p. 29.

24
Fig. 6 – Fac-símile da página frontal da edição de 1732
das composições de Lodovico Giustini
(DODERER, 2002)

Assim, pode-se observar que a propagação do pianoforte, seja ela de cópias fiéis do

projeto de Cristofori ou de readaptações de seu mecanismo, estendeu-se por boa parte da

Europa em um período aproximado de setenta anos (Fig. 7). Fixando a atenção neste aspecto

temporal, percebe-se que o novo instrumento, por significativas razões, não suplantou

imediatamente seus antecessores e, por conseqüência, conviveu pacificamente com eles

durante longos anos.

Itália Alemanha Inglaterra França


final Tradução do Imigração dos Instrumentos de
1725 1756 1761
séc. XVII artigo de Maffei ‘12 apóstolos’ de J.H. Silbermann
G. Silbermann

Portugal / Espanha
início séc. XVIII

Fig. 7 - Esquema da difusão dos primeiros pianofortes a partir de Bartolomeo Cristofori

É possível compreender que, assim como nos tempos atuais, ainda que um invento

seja de grande expectativa e utilidade, ele não dominará o mercado comercial e superará seus

antecessores enquanto sua confiabilidade não for comprovada. Trazendo esta analogia até a

25
época em estudo, verifica-se que o pianoforte teve que ultrapassar sérias imperfeições, desde

sua invenção, para finalmente ser aprovado de forma expressiva pelo meio musical.

De acordo com o artigo de Maffei de 1711, parece que o próprio Bartolomeu

Cristofori estava atento ao principal problema inerente ao piano: o som da corda golpeada ser

mais ‘escuro’ em comparação com o da corda pinçada devido ao tamanho e textura da

superfície do martelo. Duas soluções foram utilizadas pelo inventor para se tentar resolver a

questão: mudar o ponto de golpeamento da corda e aumentar a tensão da mesma. Tais

recursos assemelham-se àqueles propostos posteriormente para a solução de problemas do

piano moderno – o que comprova a genialidade de Cristofori. No entanto, estes ainda

precisaram ser severamente desenvolvidos, ao mesmo tempo em que outros recursos do

mecanismo, para que fossem alcançados resultados realmente satisfatórios. 31

Através de uma citação de C. P. E. Bach pode-se comprovar que a construção do

instrumento, bem como a própria técnica exigida ao toque em seu teclado, ainda era um

campo a ser explorado em meados do século XVIII:

Há muitos tipos de teclado, alguns dos quais são pouco conhecidos,


seja por suas deficiências, seja por não terem sido ainda difundidos por
toda parte, mas dois tipos principalmente, o cravo e o clavicórdio, são os
que têm recebido maior aprovação. O primeiro geralmente se usa em
conjunto com outros instrumentos, e o outro para se tocar sozinho. O
fortepiano, mais recente, quando é resistente e bem construído, tem muitas
vantagens, ainda que sua utilização exija um estudo especial, o que não
ocorre sem dificuldade. 32

Desta forma, torna-se perfeitamente compreensível o fato de que os cravos

continuaram a ser usados indiscriminadamente ao longo do século, persistindo também sua

produção, mesmo com a possível rivalidade com o pianoforte. Um bom exemplo para esta

afirmação é a coleção de instrumentos de teclado de Frederico II da Prússia. Este reuniu

31
SUTHERLAND, 1996, p. 341.
32
BACH, 1996, p. 7.

26
grande número de pianofortes de Silbermann, demonstrando sua admiração pelo novo

invento. Todavia, por volta de 1765 foram enviados de Londres pelo menos três grandes

cravos de Bukard Shudi33 para ele, seu irmão e sua irmã. Além disso, em 1775 o rei também

presenteou a Imperatriz da Áustria com um cravo grande de Shudi, demonstrando que o

entusiasmo de Frederico pelo pianoforte não contribuiu para que o cravo fosse banido

permanentemente de sua corte. 34

Além disso, segundo relata Johann Joachin Quantz (1697-1773) 35 em seu tratado para

traverso Versug einer Anweisung die Flöte traversière zu spielen, em 1752 as qualidades do

pianoforte eram evidentes sem inibir, contudo, a importância da execução ao cravo na época:

É verdade que no cravo, especialmente se ele tem apenas um teclado,


o volume do som não pode ser aumentado ou diminuído tanto quanto o
instrumento chamado de pianoforte, no qual as cordas não são pinçadas
com plectros, mas golpeadas com martelos. Todavia, no cravo a maneira de
tocar é extremamente importante. Deste modo, passagens marcadas Piano
neste instrumento podem ser melhoradas por uma moderação do toque e
por diminuição do número de partes, e aquelas marcadas Forte por aumento
da força no toque e por crescimento do número de partes em ambas as
mãos. 36

Portanto, a evidente coexistência pacífica dos vários instrumentos de teclado durante

esta época indica que cravo e pianoforte se complementavam na vida musical ativa dos

palácios e certamente na realidade de muitos compositores deste período. Wolfgang Amadeus

Mozart (1756-1791) e Joseph Haydn (1732-1809), já no fim do século XVIII, ainda se


37
apresentavam ao cravo . Outros casos de uso ainda mais tardios do instrumento são os de

33
Ver nota p. 55, Cap. 2, item 2.3.
34
SCHOTT, 1985, p. 29.
35
J. J. Quantz, assim como C. P. E. Bach, era flautista, compositor e fabricante de flautas na corte de Frederico II
da Prússia. Provavelmente seu contato com os instrumentos de teclado do rei e com Bach foi amplo, o que o
permitiu fornecer significativa descrição técnica-interpretativa sobre cravos e pianos.
36
QUANTZ, Johann Joachim. On Playing the Flute: The Classic of Baroque Music Instruction. Translated by
Edward R. Reilly. Second Edition, London: Faber and Faber, 2001, p. 253 (tradução nossa).
37
SCHOTT, 1985, loc. cit.

27
Giuseppe Verdi (1813-1901) – que, no início do século XIX, se utilizou de uma espineta38

como seu primeiro instrumento 39 – e Georges Bizet (1838-1875) – o qual aprendeu a prática

do teclado com seu tio F. Delsarte sobre um cravo 40.

O desenrolar da história do pianoforte mostra finalmente que a grande aceitação e

curiosidade pelo instrumento fez emergir das firmas dos construtores muitos modelos e estilos

diferentes. Curioso é perceber que apesar da direta relação entre compositores e fabricantes, o

então conceituado instrumento tornou-se um especial item do mobiliário doméstico. A

ascensão da burguesia permitiu uma maior acessibilidade de músicos amadores ao ‘consumo’

da música – partituras impressas, instrumentos musicais e concertos públicos. Sinônimo de

status social, o pianoforte, que certamente era um objeto caro, passou a ser utilizado na

educação de jovens moças e considerado peça importante na ornamentação doméstica,

refletindo mais a riqueza de seu proprietário do que sua própria função musical como

instrumento. 41

1.2 – A QUESTÃO DA NOMENCLATURA

Uma grande variedade de termos foi utilizada ao longo dos séculos XVIII e XIX para

se referir ao instrumento criado por Bartolomeo Cristofori. Percebe-se que desde as primeiras

descrições, seu nome esteve mais diretamente associado à capacidade dinâmica que lhe é

peculiar – a gradativa variação entre o piano e o forte – do que ao mecanismo responsável

pela obtenção de tal efeito – a ação de martelos. Contudo, a nomenclatura usada para

38
Instrumento de teclado e cordas pinçadas, de tamanho menor que o do cravo, cuja forma pode ser poligonal,
triangular ou de ‘asa’. Possui apenas um manual com um jogo de cordas de 8’ (SCHOTT, 2002, p. 15).
39
RUSHTON, Julian. A Música Clássica: uma história concisa e ilustrada de Gluck a Beethoven. Trad.
Clóvis Marques. 2ª edição, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1991, p. 78.
40
Dictionaire de musique en France au XIXème . J. M. Fauquet. Paris: Fayard, 2003, p. 284.
41
CLINKSCALE, Martha. Makers of the Piano (1700-1820). Oxford: Oxford University Press, 1993, p. ix-x.

28
distinguir o pianoforte dos demais instrumentos de teclado da época em estudo configura-se

completamente imprecisa, tornando amplamente confusa sua diferenciação com o cravo.

De acordo com os documentos mais antigos encontrados a respeito da invenção de

Cristofori, datados respectivamente de 1700 e 170442, o nome original do instrumento parece

ter sido Arpicimbalo ou Arpi cimbalo, uma possível combinação entre cimbalo ou cembalo

(do italiano, cravo) e arpi (do italiano, harpa). Segundo especulações, a expressão

Arpicimbalo seria uma referência ao novo tipo de cravo não usual, diferente do clavicembalo

– cravo com registro de 4’ ou cravo pequeno – e do gravecembalo – cravo com registros de 8’

ou cravo grande. Além disso, ambas as citações adicionam ao nome do instrumento a

expressão piano e forte, evidenciando a principal característica da nova criação. 43

Já em 1711, quando Scipione Maffei publica seu artigo intitulado Nuova invenzione

d’un gravecembalo col piano e forte sobre o instrumento de Cristofori, verifica-se uma

modificação em sua nomenclatura. O arpicimbalo é alterado aqui para o gravecembalo, mas

assim como nas descrições anteriores, parece que o foco principal é a possibilidade de

dinâmica do ‘novo tipo de cravo’, não havendo de maneira evidente uma preocupação com a

divulgação de um nome específico para tal invento.

Lodovico Giustini ao publicar as primeiras composições para o pianoforte em 1732

classifica-o como Cimbalo di piano, e forte detto volgarmente di martelletti, ou seja, ‘Cravo

de piano e forte dito vulgarmente de martelos’. Fica então explícita a necessidade de se

ressaltar que o novo instrumento é um cravo transformado, capaz de produzir o piano e o

forte. Entretanto, observa-se que Giustini acrescentou ainda o termo popular e mais utilizado,

42
De 1700 tem-se o inventário do Príncipe Ferdinando dei Medici, cuja citação já foi transcrita aqui no item 1.1,
p. 20. A ocorrência de 1704 é verificada na cópia do tratado de harmonia de Gioseffo Zarlino (1517-1590) Le
istitutioni harmoniche de 1558 feita por Federigo Meccoli, músico da corte de Florença. Nela fala-se do Arpi
Cimbalo del piano e forte, inventado por Cristofari no ano de 1700 (RIPINS, Edwin M.; POLLENS, Stewart.
Pianoforte – Origins to 1750. In: GROVE Music Online. Edited by L. Macy. Disponível em:
<http://www.grovemusic.com>. Acesso em 20 de abril de 2004).
43
GOOD, Edwin M. What did Cristofori call his invention? Early Music, London, vol. xxxiii, fevereiro 2005, p.
96.

29
pelo qual o instrumento era conhecido em Portugal – ‘cravo de martelos’ –, demonstrando que

neste país a nova ação de martelos exerceu forte influência na questão da nomenclatura.

No entanto, graças à falta de uma convenção para se nomear a criação de Cristofori,

encontra-se ainda em terras portuguesas o uso das palavras Piano Forte e Forte Piano. Um

importante construtor de instrumentos de teclado português, Mathias Bostem44, foi o primeiro

a se utilizar do termo Piano Forte para se referir ao ‘cravo de martelos’ em Portugal,

provavelmente no último quarto do século XVIII. Já em 1806, um anúncio de jornal convida


45
para um leilão dos bens pertencentes ao próprio construtor, no qual se lê Forte Piano. Ao

que parece, ambos os termos são efetivamente uma simplificação das outras expressões

usadas no início do século XVIII, deixando claro mais uma vez a importância da

especificidade dinâmica do instrumento.

Da mesma forma, na Alemanha também se verifica a grande utilização de uma

terminologia aplicada à mecânica do instrumento. As expressões Hammerklavier (‘Teclado

com martelo’) e Hammerflügel ([instr.] ‘em forma de “asa” com martelo’) são igualmente

empregadas para designar o pianoforte, em contraposição à Kielklavier (‘Teclado com

plectro’) e Kielflügel ([instr.] ‘em forma de “asa” com plectro’) que se referem ao cravo 46. É

interessante relembrar que tanto a região germânica quanto a portuguesa foram as que

tiveram, de maneira direta, o primeiro contato com a invenção florentina ainda no início do
47
século XVIII . Coincidência ou não, esta linha de difusão sugere a relevância da ação de

martelos, pelo menos no momento inicial de sua propagação, na classificação do instrumento.

As expressões Pianoforte e Fortepiano, além disso, também são empregadas nos

domínios alemães. J. J. Quantz em 1752 refere-se à execução e acompanhamento ao

Pianoforte em seu tratado para flauta, enquanto C. P. E. Bach, em seu tratado para teclado de

44
Ver Cap. 2, item 2.1.
45
VIEIRA, Ernesto. Diccionario Biographico de Musicos Portuguezes – Historia e Bibliographia da Musica
em Portugal, 2 volumes. Lisboa: Typographia Mattos Moreira & Pinheiro, 1900, p. 482-483.
46
CLINKSCALE, 1993, p. ix.
47
Ver esquema da difusão dos primeiros pianofortes a partir de Bartolomeu Cristofori no item 1.1, p. 25.

30
48
1753, explana sobre algumas características do Fortepiano . O compositor Johann Adam

Hiller (1728-1804), em 1769, descreve alguns instrumentos de J. A. Stein49 utilizando na

mesma página tanto Fortepiano quanto Pianoforte 50.

Nas outras regiões em que o pianoforte também foi difundido verifica-se a mesma

dubiedade na nomenclatura. Na Inglaterra, sabe-se que Charles Jennens possuía um Piano-

forte Harpsichord (‘Cravo piano-forte’) vindo de Florença em 1732 51. Em 1772, o construtor

Americus Bakers denomina seu instrumento de Forte Piano, o qual é literalmente copiado por

Robert Stodart em 1777, mas chamado então de Grand Piano forte 52. Na França, o primeiro

registro do instrumento, em 1761, é anunciado como Piano e forte clavecins (‘Cravo piano e

forte’) do construtor de Strasburgo J. H. Silbermann, mas em 1763 o compositor J. G. Eckard


53
fala sobre a execução ao Pianoforte no prefácio de suas Sonatas Op. 1 . Em 1786,

Francesco-Pasquale Ricci (1732-1817) publica um método para Forte-piano, enquanto que

em uma enciclopédia editada por Panckoucke em 1788 encontra-se a entrada Forte-piano ou

Clavecin à marteau com a seguinte descrição:

Forte-piano ou Cravo de martelo: é um pequeno cravo de um


formato oblongo, onde cada tecla faz levantar uma espécie de martelo de
papelão, revestido de pele, que bate em duas cordas uníssonas ou em uma
somente. 54

É válido ressaltar também que a conhecida abreviação Piano já era muito utilizada no

século XVIII como nome de instrumento e não somente como um sinal referente à dinâmica.

48
Para mais informações das citações sobre o instrumento nos tratados de Quantz e Bach ver item 1.1, p. 26 e
27.
49
Ver Cap. 2, item 2. 2, p. 44-46.
50
COLE, 1998, p. xi.
51
COLE, In: Grove Music Online.
52
COLE, 1998, loc. cit.
53
COLE, In: Grove Music Online.
54
Encyclopédie Méthodique. Édition de Panckouche de 1788. France: Éditions J. M. Fuzeau S. A., 2001
(tradução e grifo nosso).

31
Um caderno de apontamentos sobre afinação dos anos de 1770 emprega amplamente ao longo

do texto os termos Forte piano, Piano forte, e nas últimas páginas Piano 55.

Assim, a análise história sugere o uso indiscriminado de vários nomes para se

denominar o instrumento inventado por Bartolomeo Cristofori, o que torna equivocada a

conotação atual de que o termo Fortepiano seria sinônimo do piano antigo e Pianoforte, o
56
piano mais recente, próximo do tipo de concerto moderno . Talvez o único denominador

comum seja que toda a nomenclatura aqui exposta refere-se ao piano em forma de ‘asa’ ou

também chamado de grand ou de cauda, de tradição tipicamente florentina, isto é, originado

totalmente a partir do formato de um cravo italiano (Fig. 8). Quanto a outros modelos de

instrumento, sabe-se que até os anos de 1830 só havia basicamente os de forma retangular

denominados pianos de mesa57 (Fig. 9), cuja nomenclatura é bem específica em todas as

regiões aqui abordadas, não causando confusão alguma em sua distinção (ver Tab. 2, p. 34).

Fig. 9 – Forma retangular

Fig. 8 – Forma asa - originada do cravo italiano

Os limites deste assunto expandem-se ainda mais quando se verifica a marcação do

instrumentarium feita por alguns compositores em meados do século XVIII e durante o século

XIX. Mozart utilizou-se indistintamente das palavras Cembalo e Clavier ou Klavier (do

55
COLE, 1998, p. xi.
56
Ibid., p. xi.
57
Ver Cap. 2, item 2.2, p. 52-54.

32
italiano cravo e do alemão teclado, respectivamente) em suas obras para teclado 58, referindo-

se à execução não só ao cravo, mas também ao pianoforte. As primeiras sonatas de Haydn

são chamadas Divertimenti para Cembalo e as últimas foram compostas para o piano inglês

dos anos de 1790, porém a maioria delas também pode ser interpretada em ambos os
59
instrumentos . Ludwig van Beethoven (1770-1827) escreveu na primeira edição de um trio

para teclado, flauta e fagote a expressão Cembalo, significando provavelmente pianoforte 60.

Dada a efetiva coexistência entre os instrumentos de teclado, é compreensível que por

motivos comerciais a utilização indiscriminada de termos referentes não só ao piano, mas

também ao cravo e clavicórdio possibilitava a venda de partituras para os proprietários de

quaisquer instrumentos de teclado e cordas. Os próprios editores, atentos a esta realidade,

“evitavam incluir indicações de dinâmica ou pedal, que dificultariam a execução no

instrumento mais antigo: não se presumirá, portanto que as partituras com notação de

dinâmica destinam-se exclusivamente ao piano, ou que só convêm ao cravo as que não a têm” 61.

Em métodos para teclado franceses, alemães e ingleses é possível encontrar títulos referentes ao

estudo do cravo ‘ou’ piano, certamente para não excluir sua aplicação a um ou outro instrumento

(Fig. 10 e Tab. 1).

Fig. 10 - Fac-símile da página frontal do método de Antoine Bemetzrieder - 1796


(http://www. fuzeau.com)

58
FAGERLANDE, Marcelo. O Método de Pianoforte do Padre José Maurício Nunes Garcia, Rio de
Janeiro: Relume Dumará, 1996, p. 19.
59
RUSHTON, 1991, p. 80.
60
FAGERLANDE, 1996, loc. cit.
61
RUSHTON, op. cit., p. 80.

33
Tab. 1 - Alguns dos métodos para teclado do século XVIII

Ano Localização Autor Título do Método


DESPRÉAUX, Louis-
1783 Paris Cours D’éducation de Clavecin ou Piano-forte
Félix
BACH, Johann Christian
Méthode ou Recueil de Connoissances Elementaires pour le
1786 Paris / RICCI, Francesco-
Forte-Piano ou Clavecin
Pasquale
c. 1790 Londres CAMIDGE, Matthew Instructions [for the] Piano Forte or Harpsichord
1794 Westminster MALME, George A Sett of Practical Essays for the Harpsichord or Pianoforte
BEMETZRIEDER,
1796 Paris Nouvelles leçons de clavecin ou pianoforte
Antoine
1796 Paris DREUX, C. Príncipes du clavecin ou piano forte
The Elements of Music with Progressive Practical Lessons for
c. 1800 Londres PARSONS, John
the Harpsichord or Piano Forte
c. 1800 Paris TAPRAY, Jean-François Prémiere Eléments du Clavecin ou du Piano

Deste modo, a partir das informações históricas aqui apresentadas, pode-se ter a

consciência de que há total liberdade para se classificar o piano dos séculos XVIII e XIX na

Europa. Observa-se, portanto, que as evidências documentais não apontam para uma possível

convenção de nomenclatura referente ao instrumento de cauda (Tab. 2).

Tab. 2 - Nomenclatura do piano nos formatos ‘asa’ e ‘retangular’ dos séculos XVIII e XIX, na Europa

Nomenclatura
Região
formato de asa formato retangular
Arpicimbalo; Cimbalo di piano e forte;
Itália -
Pianoforte
Cravo de Martelos; Piano forte; Forte
Portugal -
piano
Hammerklavier; Hammerflügel;
Alemanha Tafelklavier
Pianoforte; Fortepiano
Pianoforte; Fortepiano;
Inglaterra Square piano
Grand Pianoforte; Grand Piano
Forte-piano carré;
Pianoforte; Fortepiano;
França Pianoforte carré;
Clavecin à marteau
Piano carré

34
CAPÍTULO 2 – CRONOLOGIA E ASPECTOS ORGANOLÓGICOS

Os estudos concisos desenvolvidos ao longo deste capítulo objetivam uma melhor

compreensão e esclarecimento a respeito dos instrumentos comprovadamente encontrados

durante a pesquisa documental, ou seja, cravos e pianofortes que, até 1830, foram importados

para o Rio de Janeiro de algumas das principais regiões européias cuja tradição na construção

de instrumentos de teclado é amplamente reconhecida.

Obviamente, a primeira escola construtiva a merecer destaque é a de cravos e pianos

portugueses, não pela sua importância no panorama da fabricação dos mesmos, mas pela

posição deste país como colonizador do Brasil e certamente, pela influência e permanência de

seus instrumentos de teclado na cidade carioca. Em seguida serão abordadas respectivamente

as escolas alemã, inglesa e francesa de pianofortes visto que, a partir do início do séc. XIX,

seus pianos foram importados com freqüência.

A explanação do texto abrange as múltiplas características organológicas das escolas

de construção especificadas, tendo como base sua inserção cronológica no contexto histórico

musical do período compreendido entre o séc. XVIII e meados do séc. XIX. Ressalta-se,

contudo, que as abordagens referentes à mecânica dos instrumentos serão meramente

introdutórias, pois a intenção é enfocar, de forma sucinta, apenas traços básicos para a

qualificação e distinção das escolas construtivas, bem como fornecer informações para se

delinear um paralelo entre suas principais características histórico-organológicas.

35
2.1 - CRAVO E PIANOFORTE PORTUGUESES

A história dos instrumentos de teclado em Portugal desenvolveu-se de forma peculiar

em relação a outras regiões da Europa graças ao grande apreço por parte da família real pela

arte da música e conseqüente incentivo para o desenvolvimento do conhecimento e difusão de


1
práticas e saberes musicais. Desde o séc. XVI, Lisboa já possuía muitas oficinas de

construção e, com o estímulo dos membros da corte e amplo interesse de músicos

profissionais e amadores, a manufatura de cravos e clavicórdios foi se estabilizando

fortemente ao longo dos anos, culminando no precoce conhecimento do pianoforte no meio

musical português por volta dos anos de 1730 e nas oficinas de construção, com intensa

atividade, em meados de 1760. 2

No entanto, apesar da longa e comprovada atividade de construtores de instrumentos

de tecla em Portugal até o séc. XVIII, como Henrique van Casteel, Joaquim José Antunes,

Manuel Antunes, Manuel Ângelo Villa e Mathias Bostem, entre outros, sabe-se que muitos

instrumentos, sobretudo cravos, foram importados de outros países. O motivo da importação

era a insatisfação dos músicos profissionais frente a pouca variedade de recursos oferecida

pelos exemplares nacionais. 3

Os cravos portugueses do séc. XVIII possuíam uma estrutura simples, totalmente

baseada na do cravo italiano4; isto é, eram compostos por um teclado e dois registros de 8’,

assim como os pés em forma de coração invertido (Fig. 11). Evidenciavam, nitidamente,

[...] uma forte e bem estabelecida tradição de artesanato musical com


orientações estéticas próprias. Alguns elementos de ordem técnica,
morfológica e idiomática como a cor exterior verde-escura, com ou sem
pinturas adicionais, a utilização de madeira de coníferas para o corpo e para

1
MONTEIRO, Antenor de Oliveira. Musica e Musicos de Portugal. Rio Grande do Sul: Typ. Oliveira Junior,
1936, p. 11.
2
DODERER, Gerhard. Clavicórdios portugueses do século dezoito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
1971, p. 22.
3
Ibid., p. 15.
4
Ver nota p. 21, Capítulo 1, item 1.1.

36
o tampo harmônico, [...], bem como o encordoamento em latão, podem ser
apontados como extremamente típicos para a escola nacional de construção
de instrumentos de tecla e corda. 5

Fig. 11 - Cravo Antunes – 1785


(http://www.edenbridgetown.com/places_of_interest/tunbridge_wells/finchcocks.shtml)

Outra importante especificidade apresentada pelos instrumentos portugueses foi o

aumento de sua extensão em meados do séc. XVIII que, mais rápido do que em outras regiões

da Europa, modificou-se de dó1-ré5 para sol1-sol5, ou seja, expandiu-se de 51 para 56 notas.

Além disso, possuíam também uma pesada construção interna de seu corpo assim como

alguns exemplares demonstravam, em sua aparência exterior, a influência do mobiliário

inglês. 6

Por justamente conterem a peculiaridade da utilização de madeiras exóticas, muito

preciosas, os cravos portugueses restringiram-se aos salões aristocratas e da corte, pois eram

instrumentos caros. Estes fatores econômicos de um modo geral, aliados ao “gosto e o poder

de compra da classe de músicos e executantes à qual os instrumentos de tecla e cordas se

destinavam parecem ter favorecido bastante a divulgação do clavicórdio” 7, tornando-se este o

provável instrumento mais popular para uso doméstico até então. Entretanto, os cravos

mantiveram-se nas oficinas de construção como objeto de comercialização até pelo menos o

5
DODERER, Gerhard. Instrumentos de tecla e corda portugueses dos séculos XVI, XVII e XVIII: clavicórdios,
cravos e pianofortes. FÁBRICA DE SONS - Instrumentos de Música Europeus dos séculos XVI a XX:
catálogo. Lisboa: Lisboa 94 e Electa, 1994. p. 24.
6
DODERER, 1994, loc. cit.
7
Ibid., p. 22.

37
final do séc. XVIII, visto que o último exemplar sobrevivente até os dias de hoje é de 1789,

do construtor Mathias Bostem.

É interessante ressaltar que as composições musicais ibéricas para teclado deste

período eram executáveis tanto no clavicórdio quanto no cravo ou órgão, sem perda alguma

de suas características estéticas ou sonoras. O próprio caráter e escrita das mesmas

possibilitavam a variação do instrumento para a execução. 8

A partir de 1707, com a subida de D. João V ao trono, a sociedade e a cultura

portuguesa iniciaram um processo de mudança profunda. A instalação de uma ação política

capaz de reerguer a economia do país bem como sua posição frente a toda Europa
9
transformou Portugal em uma metrópole do mercantilismo e da arte. As preocupações

musicais do rei voltaram-se para a reformulação da prática musical da Capela Real, cujo

modelo pretendia seguir ao da Capela do Papa. Para isso, muitos músicos estrangeiros foram

contratados e foi também criada uma estrutura pedagógica voltada para a formação de

músicos portugueses. 10 A oferta de salários vultuosos e o esforço investido para a contratação

de músicos para a Capela Real, sobretudo italianos, atraiu muitos cantores e instrumentistas,

destacando-se entre eles Domenico Scarlatti (1685-1757), cuja relevância para a história dos

instrumentos de tecla portugueses é inquestionável.

O tecladista chegou a Portugal em fins do ano de 1719 para exercer as funções de

professor de cravo e mestre da capela real portuguesa, estabelecendo-se no país até 1729.

Algumas evidências comprovam que as composições para teclado de Scarlatti foram escritas

não só para cravo, mas provavelmente para pianoforte também, visto que seu contato com o

instrumento foi anterior a sua ida para Portugal. Além disso, algumas destas sonatas foram

possivelmente escritas durante sua estada no país, podendo-se acreditar que o músico esteve

8
DODERER, 1971, p. 17.
9
NERY, Rui Vieira; CASTRO, Paulo Ferreira de. História da Música. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da
Moeda, 1991, p. 84-85.
10
FAGERLANDE, Marcelo. O Baixo Contínuo no Brasil: a contribuição dos tratados em língua
portuguesa. Tese (Doutorado em Música) – Universidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2002, p. 18.

38
em contato com exemplares de pianos no país durante o período de sua permanência e que

certamente foi um grande estímulo para o desenvolvimento da escola nacional de construção. 11

Outro fator importante relacionado com a precoce existência de pianos em Portugal é a

dedicatória da edição das primeiras composições para pianoforte Sonate da Cimbalo di Piano

e Forte de Lodovico Giustini ao Infante D. António de Bragança. A oferta não foi feita pelo

próprio compositor, mas sim pelo mecenas D. João de Seixas (1691-1758), bispo brasileiro

que exerceu plena atividade religiosa e musical em Lisboa entre os anos de 1734 e 1740, o

qual deve ser reconhecido como “um dos mais essenciais mediadores no setor da construção

de ‘cravos de pena’ e ‘de martelos’12 florentinos” 13


em Portugal. Isto se deve ao fato de que

Seixas, tendo sido apresentado a Giustini por provável intermédio de Bartolomeu Cristófori,

ao ofertar as composições ao Infante, soube conduzir as novas correntes musicais de sua

época a um adequado destinatário.

Assim, verifica-se que ainda nos anos de 1730 o pianoforte possivelmente já era bem

conhecido na corte lisboeta. Mesmo sendo muito importado de outros países, sua ascensão

como instrumento central da produção musical portuguesa deu-se rapidamente e, por volta de

1760, a construção dos mesmos já estava intensamente cultivada. Infelizmente não se

conservou nenhum piano anterior a esta data, provavelmente devido ao terremoto que

avassalou Lisboa em 1755. Entretanto, esta destruição pode ter sido também um outro fator a

estimular os construtores locais a fabricar novos instrumentos nos anos seguintes. 14

Neste período, dois importantes construtores de instrumentos de teclado obtiveram,

por privilégio régio, o direito exclusivo de construir e comercializar cravos de martelos. O

11
SUTHERLAND, David. Domenico Scarlatti and the Florentine piano. Early Music, London, v. xxiii, maio
1995, p. 245-246.
12
Ver Capítulo 1, item 1.2, p. 29-30.
13
DODERER, Gerhard. Apresentação da edição de Sonate da Cimbalo di Piano e Forte Ludovico Giustini di
Pistoia. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Música, 2002, p. 11.
14
KOSTER, John, Three Grand Pianos in the Florentine Tradition. Musique – Imagens – Instruments: revue
française d’organologie et d’iconografhie musicale. Paris: Editions Klincksieck, Nº4, 1999, p. 101.

39
primeiro foi Manuel Antunes que o conseguiu no próprio ano de 1760 e provavelmente por

volta de 1770, Mathias Bostem (1740-1806). 15

Os pianofortes portugueses manufaturados nas oficinas de tais construtores assim

como na de Henrique van Casteel – cujo instrumento datado de 1763 é o mais antigo

exemplar português que se conservou até a atualidade – e Joaquim Antunes entre outros,

caracterizavam-se por serem fortemente remanescentes da tradição de Cristofori16. O desenho

da caixa possuía grande semelhança com o da escola florentina, isto é, bem parecido com os

cravos italianos. No entanto, os instrumentos não eram cópias de pianos florentinos, já que os
17
métodos de construção da caixa e o do tampo de ressonância eram bem peculiares. O

acabamento externo, sofisticado e elegante, mantinha a mesma aparência dos cravos

portugueses: pintura verde escura, eventualmente ornamentada e também possuíam a extensão

alargada, variando entre dó1-ré5 e sol1-sol5 (Fig. 12). 18

Fig. 12– Pianoforte Antunes – 1767


(http://www.usd.edu/smm/abell1.html)

15
VIEIRA, Ernesto. Diccionario Biographico de Musicos Portuguezes – Historia e Bibliographia da Musica
em Portugal. Lisboa: Typographia Mattos Moreira & Pinheiro, 1900, vol. 1, p. 37 e vol. 2, p. 482.
16
Ver Capítulo 1, item 1.1, p. 21-22.
17
SUTHERLAND, 1995, p. 246.
18
DODERER, 1991, p. 45.

40
A ação utilizada nestes instrumentos também se assemelhava fortemente ao modelo

cristoforiano. Algumas modificações foram realizadas – como na parte traseira do martelo

que, diferentemente da de Cristofori, não possuía o formato de um semicírculo e na própria

cabeça do martelo que era um pouco mais alongada – mas muitos elementos eram

praticamente idênticos – o desenho dos abafadores e o formato da cápsula vertical entre

outros (Fig. 13).

D C

B A- tecla
B- martelo
F C- abafador
A E D- corda
E- cápsula vertical
F – alavanca intermediária

Fig. 13 - Ação Piano Português – 1767 – Antunes


(KOSTER, 1999)

O encordoamento utilizado era em geral duplo e de metal, tinham uma extensão

inalterável de 51 notas (dó1-ré5) e um dispositivo manual para acionar o efeito una corda19,

não havendo pedais. A qualidade sonora e de execução era mais uma aproximação entre estes

instrumentos e os de Cristofori: o timbre era suave e redondo, parecido com o de um violão; a


20
profundidade das teclas era rasa, assim como nos cravos, e o toque era leve. Outra

característica evidente nos pianos portugueses era o fato de alguns de seus exemplares não

serem novos instrumentos construídos, ou seja, eram instrumentos antigos modificados.

Tratavam-se simplesmente de cravos transformados em pianos.

Apesar da escola nacional de construção de pianofortes ter se voltado para a

construção dos modelos grand, de acordo com os que foram conservados até os dias de hoje,

19
Ver Glossário.
20
POLLENS, Stewart, The early Portuguese piano. Early Music, London, vol. xiii, fevereiro 1985, p. 24-26.

41
muitos dos instrumentos importados no início do séc. XVIII eram square pianos, e

provavelmente foram desenhos bem divulgados em Portugal.

Um importante aspecto a ser destacado em relação à tradição construtiva de

instrumentos de tecla portugueses é que, mesmo o pianoforte tendo alcançado precocemente

uma posição de evidência, o cravo ainda continuou a ser manufaturado por muitos anos; ou

seja, ambos os instrumentos coexistiram durante muito tempo na vida musical portuguesa.

Para confirmar esta observação, basta atentar para a data do exemplar de um piano mais

antigo conservado (1763, do construtor Henrique van Casteel) e a data do cravo mais recente

conservado (1789, de Mathias Bostem). Mais interessante ainda é ressaltar que, assim como

este último instrumento, o pianoforte mais recente conservado também é datado de 1789 (de

Mathias Bostem) 21.

2.2 - PIANOFORTE ALEMÃO 22

Assim como em Portugal, a região germânica teve um precoce conhecimento a

respeito do invento de Cristofori, certamente antes dos anos de 1730. No entanto, os alemães

não só foram os precursores de uma influente escola construtiva baseada diretamente na

tradição de construção florentina, como foram os responsáveis pelo desenvolvimento de um

sistema mecânico completamente novo, o qual dominou a escola alemã até o século XIX.

O primeiro a manufaturar pianos na Alemanha foi o conceituado construtor de órgãos

e cravos Gottfried Silbermann que, a partir da tradução germânica de J. Mattheson do artigo

21
Existem alguns relatos sobre a manufatura de instrumentos de tecla e corda portugueses ainda no início do séc.
XIX, como o relatado no periódico Gazeta de Lisboa de 1806 sobre a morte do construtor Matias Bostem e os
cravos e pianofortes que se encontravam inacabados em sua oficina à espera de um leilão (DODERER, 1994, p.
25).
22
São chamadas de ‘alemãs’ as escolas construtivas das regiões de língua germânica, como Alemanha e Áustria.

42
de S. Maffei em 172523, iniciou seus trabalhos por volta de 1730. Seus instrumentos possuíam

o mesmo formato de cauda e a mesma ação dos italianos e foram oferecidos por ele próprio a

Johann Sebastian Bach, o qual os desaprovou devido ao toque pesado e à fraca sonoridade dos

agudos. 24

Assim, na década seguinte, Silbermann desenvolveu melhorias em seus instrumentos

adicionando hand stops ou chaves manuais25 para levantar os abafadores do soprano e baixo e

um dispositivo para fazer deslizar as laterais do teclado, possibilitando que estas golpeassem

somente uma corda das duas estabelecidas para cada nota. Frederico II da Prússia adquiriu

alguns destes instrumentos e os mostrou novamente para J. S. Bach, quando este visitava

Potsdam em 1747, que então os aprovou completamente. 26

Outros construtores alemães também desenvolveram pianofortes paralelamente a

Silbermann, porém exploraram um sistema mecânico muito menos complexo do que o de

Cristofori dando origem à chamada Stossmechanik (a qual posteriormente foi utilizada pelos

ingleses e transformada na ‘mecânica inglesa’27). Ao que parece, esta foi criada com o intuito

de se adaptar ao formato de mesa e parte fundamentalmente do princípio cristoforiano – a

troca dos saltarelos pelos martelos –, reduzido ao máximo de simplicidade. Ou seja, este

sistema é composto apenas pela própria tecla do instrumento, um bloco fixado no fim desta e

o braço do martelo, fixado em uma peça de madeira totalmente independente da tecla (Fig.

14). 28

23
Ver Cap. 1, item 1.1, p. 23.
24
Diccionário Oxford de la Musica, p. 960.
25
Ver Glossário.
26
RIPINS, Edwin M.; POLLENS, Stewart. Pianoforte – Origins to 1750. In: GROVE Music Online. Edited by
L. Macy. Disponível em: <http://www.grovemusic.com>. Acesso em 20 de abril de 2004.
27
Ver Cap. 2, item 2. 3 e Fig. 33.
28
HAASE, Gesine e KRICKEBERG, Dieter. Tasteninstrumente des Museums: catálogo. Berlin: Staaliches
Institut für Musikforschung, 1981, p. 80.

43
B

C A- tecla
A B- corda
C- braço do martelo

Fig. 14 – Stossmechanik – c. 1770


(HAASE; KRICKEBERG, 1981)

Os pianofortes com tal mecânica caracterizam-se por uma sonoridade semelhante à do

cravo italiano, devido à espessura mais fina das cordas em contraposição aos martelos rígidos

de madeira, porém menos brilhante e com muito menos intensidade. Também são constituídos

por um manual, não possuem registros para alteração do timbre e sua extensão geralmente é

de pouco mais de 4 oitavas (Dó1 a Fá5) (Fig. 15).

Fig. 15 – Pianoforte de mesa Johann Matthäus Schmahl – c. 1770


((HAASE; KRICKEBERG, 1981))

Após a segunda metade do século XVIII, houve um declínio na produção dos pianos

germânicos segundo o mecanismo de Cristofori. Entretanto, alguns construtores rumaram

para o desenvolvimento de um instrumento baseado no formato e mecanismo do clavicórdio e

não mais nos do cravo, visto que esta era uma das únicas regiões que ainda o estimavam (Fig.

16 e 17). Surgia então a Prellmechanik, ação aparentemente atribuída apenas aos modelos de

44
mesa, muito utilizada pelo construtor alemão Johann Andreas Stein (1728-1792) de

Augsburgo. 29

Fig. 16 – Clavicórdio Christian Kintzing – 1763


(http://www.metmuseum.org/toah/hd/cris/ho_1986.239.htm)

D B
C A A- tecla
B- corda
C- tangente
D- abafador

Fig. 17 – Sistema mecânico do clavicórdio


(HAASE; KRICKEBERG, 1981)

Esta nova mecânica segue algumas idéias de Cristofori como o ‘sistema de alavanca’,

o ‘sistema de abafadores’ e o ‘sistema de escape’, no entanto, como parte do clavicórdio como

instrumento base, caracteriza-se pela ação de ‘empurrar’ e não pela de ‘golpear’, assegurada

pela fixação indireta do braço do martelo à tecla (Fig. 18 e 19). Além disso, a sonoridade

29
BELT, Philip R.; MEISEL, Maribel; HUBER, Alfons. Germany and Austria, 1750-1800. In: GROVE Music
Online. Edited by L. Macy. Disponível em: <http://www.grovemusic.com>. Acesso em 20 de abril de 2004.

45
característica de um pianoforte com Prellmechanik é bem suave e seu toque é extremamente

leve – cerca de 12 a 20 gramas 30.

D A- tecla
B B- corda
G C- martelo
C E A
D- abafador
F E- golpeador fixo do
abafador
F- cápsula vertical
G- barreira dentada
Fig. 18 – Prellmechanik – c. 1779
(HAASE; KRICKEBERG, 1981)

Fig. 19 – Pianoforte de mesa Wilhelm Constantin Schiffer – c. 1779


(HAASE; KRICKEBERG, 1981)

Stein continuou trabalhando em detalhes da Prellmechanik, sobretudo no que diz

respeito ao desenvolvimento de um escapamento individual para tal ação (Fig. 20). Os pianos

desta época caracterizavam-se por conter cinco oitavas na extensão do teclado (fá1-fá6) e pelo

formato da caixa dos modelos de cauda assemelhar-se com o dos cravos austríacos e do sul da

Alemanha (Fig. 21 e 22), os quais possuíam a chamada fascia a doppia curva ou face dupla

curva31. 32

30
BELT; MEISEL; HUBER. In: GROVE Music Online.
31
Ver Capítulo 3, item 3.2, p. 107.
32
BELT; MEISEL; HUBER. In: GROVE Music Online.

46
D
B
A- tecla
B- corda
C C- martelo
A F
E D- abafador
E- cápsula vertical
F- escapamento

Fig. 20 – Prellmechanik com escapamento – Pianoforte Heilmann c. 1785


(The New Grove Dictionary of Music and Musicians, 1980)

Fig. 21 – Cravo Johann Christoph Fleisher - 1710


(EINFÜHRUNG, 1978)
Fig. 22 – Pianoforte J. A. Stein – 1775
(HAASE; KRICKEBERG, 1981)

Entretanto, no final do século XVIII, um grande número de construtores austríacos de

pianos foi para o Sul da Alemanha e Bohemia, destacando-se entre eles Anton Walter (1752-

1826). Em meados de 1780, tal construtor desenvolveu ainda mais a Prellmechanik, a qual se

afastou severamente da trabalhada por Stein, passando a se chamar ‘mecânica vienense’ a

partir do século XIX (Fig. 23) – pode-se observar melhor este desenvolvimento das ações dos

pianos através do esquema representado abaixo na Fig. 24. Ambas as ações eram suscetíveis

47
de grande expressividade e variação dinâmica, mas a de Walter era capaz de produzir maior

volume. 33

D B
A- tecla
B- corda
A E C- martelo
C
F D- abafador
E- check34
F- escapamento

Fig. 23 – Mecânica Vienense – Pianoforte Conrad Graf 1826


(The New Grove Dictionary of Music and Musicians, 1980)

CRAVO ITALIANO

CRISTOFORI

SILBERMANN CLAVICÓRDIO

STOβ MECHANIK PRELLMECHANIK

MECÂNICA INGLESA MECÂNICA VIENENSE

Fig. 24 – Esquema do desenvolvimento dos mecanismos do pianoforte alemão nos séculos XVIII e XIX

Tanto os pianos de cauda quanto os de mesa possuíam um ou mais dispositivos para

modificar a ‘cor’ do timbre, conhecidos como stops ou registros35. Algumas vezes, nos

instrumentos mais antigos, eles eram divididos entre as áreas do baixo e soprano. Os registros

33
BELT; MEISEL; HUBER. In: GROVE Music Online.
34
Ver Glossário.
35
Ver Glossário.

48
mais comuns eram o forte36, o piano37 e o basson stop38, sendo mais raro o lute ou harp

stop39. Tais mutações podiam ser operadas pelas mãos, assim como no órgão, ou pelos

joelhos, os chamados knee levers ou joelheira. 40

Até então, havia aproximadamente 60 ativos construtores em Viena os quais podiam

ser separados em três grupos de tradições distintas. O primeiro era o dos herdeiros da tradição

de Stein, especialmente seus filhos Nannette Stein (posteriormente Streicher) e Matthäus

Andréas Stein (conhecido como André Stein) que mudaram sua oficina de Augsburgo para

Viena em 1794. O segundo grupo era o dos seguidores de Walter, dentre eles Kaspar

Katholnik (1763-1829) e Michael Rosenberger (1766-1832). Finalmente, o terceiro grupo

caracterizava-se pela precisa construção da Stossmechanik e pela inserção da rosácea no

tampo harmônico, tendo como principal representante Gottfried Mallek (1731-1798). 41

Já no início do século XIX, o número de fabricantes ativos ultrapassava 200,

destacando-se entre eles Anton Walter, Nannette Streicher e André Stein – que separaram sua

firma em 1802 –, Joseph Brodmann (c. 1771-1848) e Conrad Graf (1782-1851).

Em 1800, as muitas tendências características dos pianofortes da primeira metade do

século XIX já eram totalmente perceptíveis. A extensão dos instrumentos germânicos e

austríacos foi expandida, assim como a estrutura da caixa tornou-se mais pesada para
42
acomodar o crescimento do tamanho do instrumento e a grossura das cordas.

Consequentemente, a cabeça dos martelos, por ser a responsável por golpear o espesso

encordoamento, também teve sua dimensão sensivelmente aumentada e sua forma modificada

(Fig. 25).

36
Ver Glossário.
37
Ver Glossário.
38
Ver Glossário.
39
Ver Glossário.
40
BELT; MEISEL; HUBER. In: GROVE Music Online.
41
BELT; MEISEL; HUBER. In: GROVE Music Online.
42
BELT, Philip R.; MEISEL, HECHER, Gert. The Viennese piano from 1800. In: GROVE Music Online.
Edited by L. Macy. Disponível em: <http://www.grovemusic.com>. Acesso em 20 de abril de 2004.

49
J. A. Stein A. Walter J. Schöfstoss
1783 1790 c. 1800 1820/24

Fig. 25 – Transformação da cabeça dos martelos


(WITTMAYER, 2004)

Além disso, as cores das teclas foram alteradas para tons claros nas notas naturais e

escuros nos sustenidos, como é verificado hoje nos pianos modernos (Fig. 26). O número de

mutações também aumentou e as joelheiras foram substituídas pelos pedais, provavelmente

pelos anos de 1810.

Fig. 26 – Pianoforte Joseph Brodmann, c. 1810


(EINFÜHRUNG, 1978)

Por volta de 1820, os típicos pianos de cauda vienense mediam aproximadamente 2,3

metros de comprimento e 1,25 metros de largura, possuíam extensão de seis ou seis oitavas e

meia e o número de pedais variava de dois a seis. Além disso, novos formatos de instrumento

ganhavam evidência por economizarem espaço e para fins de decoração. Em estilo vertical

50
encontram-se o Giraffe 43 e o Pyramid 44 (Fig. 27 e 28), e em forma retangular destacam-se o

Nähtisch 45 e o Orphica 46 (Fig. 29, 30 e 31). 47

Fig. 28 – Pyramid Piano anônimo


(HAINE, 1989)
Fig. 27 – Giraffe Piano André Stein Fig. 29 – Nähtisch
1809/1811 (EINFÜHRUNG, 1978)
(http://www.ptg.org/resources_historyOfPianos_upright.php)

Fig. 30 – Orphica Joseph Klein - 1820


(http://www.usd.edu/smm/KEYBOARD.HTM#klein)
Fig. 31 – Homem tocando
Orphica - Viena c. 1820
(EINFÜHRUNG, 1978)

Assim, entre os anos de 1820 e 1830, a construção de pianos em Viena foi se

aperfeiçoando ainda mais. A busca pelo aumento do volume fez com que se voltasse atenção

para elementos estruturais como o tampo harmônico, visto que os instrumentos precisavam

sustentar o constante crescimento da tensão das cordas.

43
Ver Glossário.
44
Ver Glossário.
45
Ver Glossário.
46
Ver Glossário.
47
BELT; MEISEL; HECHER. In: GROVE Music Online.

51
2.3 - PIANOFORTE INGLÊS

O interesse dos ingleses pelo pianoforte foi tardio e apenas impulsionado de forma

bastante significativa nos anos de 1760. A chegada de J.C.Bach em Londres, em 1763, para

exercer o cargo de mestre de música da então Rainha da Inglaterra foi certamente o maior

estímulo para o desenvolvimento do instrumento na região, pois segundo Charles Burney

(1726-1814)48, “(...) logo estabelecidos seus concertos com Abel, todos os fabricantes de

cravos trataram de fabricar pianofortes (...)” 49.

Existem, contudo, fontes documentais de época que indicam a presença de alguns

exemplares italianos e germânicos em Londres entre os anos de 1730 e 1760. Charles

Jennens, libretista de o Messias de Handel, possuía um Piano-forte Harpsichord vindo de

Florença em 1732 juntamente com o livro de sonatas composto intencionalmente para o Piano

forte (presumivelmente o livro de Sonate da cimbalo di piano e forte de Lodovico Giustini).

Handel também tocou em um instrumento de origem anônima em Londres em 1740. Burney,

em 1747, tocou em um piano italiano construído por um inglês chamado Wood. Em 1755 o

Rev. William Mason escreve em carta que comprou um Pianoforte em Hamburgo por um

preço muito baixo. Tais instrumentos encantaram os ouvintes pela sua sonoridade, mas eram

severamente limitados pela pobre repetição de notas. 50

Assim, os pianofortes foram sendo pouco a pouco explorados nas oficinas de

construção. Em 1761, Johannes Zumpe (1735-1783), discípulo de Gottfried Silbermann51 e

um dos componentes da “primeira geração de construtores germânicos que imigraram para a

48
Historiador da música e compositor inglês. Viajou pela Europa para coletar material para uma história da
música, conhecendo importantes músicos e ouvindo muitas apresentações. Não se notabilizou como compositor
(Dicionário Grove de Música – edição concisa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994, p. 147).
49
Diccionario Oxford de la Música, p. 960.
50
COLE, Michael. Pianoforte – England and France to 1800. Grove Music Online. Edited by L. Macy.
Disponível em: http://www.grovemusic.com. Acesso em 20 de abril de 2004.
51
Ver Cap. 2, item 2. 2, p. 42-44.

52
Inglaterra” 52, abriu sua própria oficina e, como os outros fabricantes de pianos, dedicou-se à

produção dos modelos de cauda. No entanto, posteriormente criou um novo formato, de

desenho e tamanho similares ao clavicórdio e virginal53, o chamado piano de mesa (Fig. 32),

o qual o transformou no primeiro grande construtor da Inglaterra e precursor do período da

supremacia dos pianos londrinos que alcançou seu ápice na primeira metade do século XIX.

Fig. 32 – Piano de Mesa Zumpe – 1769


(HAINE, 1989)

O exemplar mais antigo sobrevivente do piano de mesa de Zumpe é datado de 1766.

Por décadas este formato de instrumento foi o mais popular para uso doméstico em toda a

Europa e América do Norte devido ao seu tamanho compacto (reduzidas dimensões do corpo

e extensão do teclado de 58 notas), boa repetição, baixo preço (cerca de um terço do valor de

um cravo novo) e um timbre doce. 54

Até então, os pianos ingleses caracterizavam-se por este som delicado, o que refletia a

suavidade de um instrumento de ainda poucos recursos e com uma extensão que variava de

cinco a cinco oitavas e meia. A caixa do instrumento era totalmente estruturada em madeira,

as cordas eram duplas e mais tensas e espessas que as do cravo ou clavicórdio e os martelos

eram muito pequenos, inteiramente constituídos de madeira e revestidos com leves camadas

52
HAINE, Malou. Musical Instruments in Belgian collections: catálogo. Liège: Pierre Mardaga, 1989, p. 66.
53
Ver Glossário.
54
COLE, In: Grove Music Online.

53
de pele. O acionamento de recursos sonoros extras, como os abafadores, era feito sempre

através de chaves manuais.

Além disso, a mecânica empregada nos pianos era de ‘ação inglesa’ elaborada por

Zumpe. Tal sistema baseava-se no mecanismo de Cristofori / Stossmechanik, porém com

algumas alterações como a substituição dos saltarelos e da alavanca intermediária por uma

‘guia’ (barra de arame) agindo diretamente sob o martelo (Fig. 33).

C
D A- tecla
B B- martelo
A E C- abafador
D- corda
E- guia
Fig. 33 - Ação Inglesa Simples – Estilo Zumpe – 1775
(The New Grove Dictionary of Music and Musicians, 1980)

Ainda em fins do século XVIII, o construtor alemão de cravos Americus Backers

(1763-1778) apresentou em uma exibição em Londres um novo invento de Forte Piano (Fig.

34), considerado um antecessor direto do piano de cauda moderno. Apesar da aparência

semelhante ao cravo de Kirckman55 (Fig. 35), suas características mecânicas representavam

avançado nível de desenvolvimento da ação inglesa e a introdução de dois pedais frontais – o

da esquerda, una corda, e o da direita, de sustentação56 – configuravam o estabelecimento de

um formato padrão para os instrumentos modernos. 57 O pioneirismo de Backers sobre a ação

inglesa foi seguido por Robert Stodart58 e John Broadwood (1732-1812), porém este alcançou

resultados mais significativos em termos sonoros.

55
Grande firma londrina de construtores de cravos que também se voltou para a fabricação de pianos, sendo
comprada por Collard & Collard em 1896 (SCHOTT, Howard. Victoria and Albert Museum – Catalogue of
Musical Instruments – Keyboard Instruments, v. 1: catálogo. London: Her Majesty’s Stationary Office, 1985,
p. 91).
56
Ver Glossário.
57
COLE, In: Grove Music Online.
58
Fundador da firma de pianos Stodart, em 1775, a qual veio a se chamar William Stodart & Son por volta de
1825. Em 1861 fechou suas portas (CRANMER, Margaret. Stodart. In: The New Grove Dictionary of Music
and Musicians. Edited by Stanley Sadie. London: 1980, vol. 18, p. 163).

54
Fig. 34 – Forte Piano Backers Fig. 35 – Cravo Kirckman
(http://www.iprase.tn.it/pianoforti/biografie/backers.htm) (HAASE; KRICKEBERG, 1981)

Broadwood iniciou seus trabalhos no início dos anos de 1770 construindo pianos de
59
mesa, após período como aprendiz na oficina de Burkat Shudi (1702-1773) . Desenvolveu

algumas melhorias neste formato, porém, provavelmente em 1781, voltou-se para a

construção dos modelos de cauda (Fig. 36), nos quais também implementou modificações,

inclusive no sistema mecânico (Fig. 37). Tais instrumentos foram aclamados como os

primeiros pianofortes musicalmente importantes a serem construídos na Inglaterra,

alcançando total superioridade na fabricação destes instrumentos60.

Fig. 36 – Piano de Cauda Broadwood – 1794


(http://www.concertpitchpiano.com/VM_Broadwood.html)

59
Imigrante suíço, de nome original Buckhardt Tschudi, que chegou a Londres em 1718. Construtor de cravos e
pianos e sócio de seu genro Broadwood a partir dos anos de 1769 (SCHOTT, 1985, p. 103).
60
ADLAM, Derek; CONNER, William J. Pianoforte – England and France to 1800. In: The New Grove
Dictionary of Music and Musicians, London: 1980, vol. 14, p. 962.

55
D C
A- tecla
B- martelo
B C- abafador
D- corda
E- escapamento
E
A

Fig. 37 – Ação Inglesa Broadwood – 1799


(The New Grove Dictionary of Music and Musicians, 1980)

Os avanços sonoros dos pianos ingleses obtidos por Broadwood foram possibilitados

pela equalização da tensão das cordas em uníssono e as de diferentes metais para sua tensão

ideal. Deste modo, conseguiu-se um som muito mais puro do que anteriormente. Além disso,

em 1794 Broadwood estende o âmbito do teclado para seis oitavas.

No início do século XIX, os proeminentes fabricantes ingleses eram, além de

Broadwood e Stodart, Kirkman e Muzio Clementi. A firma de Clementi possuiu muitos

sócios, dentre eles John Longman e Frederick William Collard, sendo conhecida não só como

Clementi & Co., mas a partir de 1822 como Clementi, Collard and Collard e finalmente, em

1832, como Collard & Collard. 61

Continuamente, experimentos e transformações foram feitos nos pianofortes ingleses

pelos inúmeros construtores desta região, sendo que, ao longo do século XIX, estas mudanças

tornam-se extremamente rápidas e expressivas. As características do piano suave de cinco ou

cinco oitavas e meia do século XVIII deram lugar a uma potente máquina de sete oitavas.

O encordoamento foi em geral padronizado em cordas duplas, resistentes e pouco a

pouco bem mais espessas. Em 1806 encontravam-se cordas medindo 0,5 mm de espessura e

em 1823 esta medida foi elevada para 0,66 mm (Fig. 38). Sua tensão, que progressivamente já

havia aumentado, passava a crescer de forma implacável. Enquanto o dó3 empregava 10kg

61
SCHOTT, 1985, p. 89.

56
em 1801, em 1815 equivalia 15kg e em 1825, 24kg. O peso dos martelos, obviamente

relacionado com a grossura das cordas e que influenciava diretamente no peso do toque,

também elevou: para o mesmo dó3 utilizam-se 34gr em 1800 e 80gr em 1860.

Consequentemente a profundidade do toque foi alterada: de 7.5mm até 1810 para 9mm em

1845.62

1806 1823

Fig. 38 – Dimensão de Cordas e Martelos em Broadwood


(The New Grove Dictionary of Music and Musicians, 1980)

Para suportar tais modificações que basicamente referiam-se ao aumento de peso e

força, muitos materiais empregados tanto na parte interna quanto externa dos instrumentos

também se transformaram. Os revestimentos dos martelos foram ficando mais leves e mais

espessos e finalmente substituídos pelos feltros comprimidos. As caixas dos pianos foram

cada vez mais reestruturadas com madeiras espessas até 1817, quando Broadwood utiliza no

piano de Beethoven estrutura de metal. Os bons resultados obtidos com tal estrutura marcou

definitivamente o metal como material indispensável na elaboração dos instrumentos.

Assim, todas estas significativas alterações na concepção dos pianofortes ingleses

contribuíram para uma reformulação das dimensões do próprio corpo do instrumento. Dos

dois modelos existentes na época, o de cauda e o de mesa, apenas o primeiro sobreviveu. O

segundo, por sua vez, necessitou de um crescimento em seu tamanho para comportar as

modificações realizadas e então, caiu em desuso a partir de 1840, dando lugar um novo

formato, o vertical, que posteriormente assumiu popularidade para uso doméstico (Fig. 39).

62
COLE, In: Grove Music Online.

57
Fig. 39 – Pianoforte Vertical Broadwood – sem data
(http://www.concertpitchpiano.com/VM_Broadwood.html)

2.4 - PIANOFORTE FRANCÊS

Até meados do séc. XVIII, o cravo exerceu total influência no repertório e na

performance em instrumentos de teclado na França. Desta forma, os primeiros pianofortes

franceses, datados do início do século, foram escassos se comparados com o número de

cravos existentes e, assim como na Inglaterra, a reação de receptividade também foi lenta e

tardia.

Os primeiros exemplares a influenciar o meio musical francês foram os piano e forte

clavecins construídos por Johann Heinrich Silbermann em Strasburgo, após a morte de seu tio

Gottfried Silberman em 1753. Segundo o periódico L’avant coureur de 6 de abril de 1761,

existiram apenas quatro destes instrumentos em Paris – modelos de cauda de 5 oitavas, com

ação inglesa, cordas duplas e chave manual para levantar os abafadores – avaliados a preço

altíssimo.

Devido ao provável contato com estes instrumentos, em 1763 o compositor germânico

Johann Gottfried Eckard (1735-1809), muito ativo em Paris, foi o primeiro músico a compor e

a demonstrar grande preferência pelo pianoforte na França. Incluiu no prefácio de suas

Sonatas Op.1 esclarecimentos sobre as meticulosas marcações de dinâmica encontradas nas

58
peças; estas apareciam para tornar a música “igualmente aproveitável na performance ao

cravo, clavicórdio e pianoforte” 63.

Todavia, evidências indicam que alguns instrumentos híbridos foram criados sem

êxito e exibidos na Académie des Sciences. O primeiro foi o clavecin à maillets de Jean

Marius64, cujos esboços apresentados em 1716 geraram muitos questionamentos. Um outro

apresentado 43 anos mais tarde foi igualmente interrogado. Tratava-se de um cravo contendo

os saltarelos convencionais juntamente com a ação de martelos, elaborado por Weltman65.

Uma combinação de piano e órgão, fabricada por Adrien l’Epine66, foi exposta em 1772.

Pascal Taskin67, em 1787, mostrou seu curioso piano no qual os saltarelos responsáveis pelo

golpe dos martelos nas cordas são fixados nos próprios martelos e não nas teclas.68

Portanto, a construção francesa de pianofortes iniciou seu desenvolvimento sob total

influência dos modelos ingleses a partir de J.H.Silbermann (Fig. 40) e também de Sebastién

Erard (1752-1831), que inicia seus trabalhos em 1777. Seu primeiro exemplar era um piano

de mesa, cópia de um modelo Zumpe tanto na forma quanto na ação. Este formato tornou-se

amplamente utilizado na França a partir do ano de 1784.

63
COLE, In: Grove Music Online.
64
Construtor de cravos e inventor francês. Tornou-se conhecido por seu clavecin brisé – cravo dobrável em três
partes, desenhado para viagens – também apresentado a Académie em 1700 (CRANMER, 1980, vol. 11, p. 690).
65
Possivelmente o construtor germânico Andries Veltman (COLE, In: Grove Music Online).
66
Membro de uma família de construtores de órgãos, o qual, além destes instrumentos, construiu também cravos
(CRANMER, 1980, vol.10, p. 682).
67
Fabricante de cravos francês, formado no ateliê de Blanchet em Paris, do qual assumiu a gerência da firma em
1766. Passou a construir pianos também, os quais tiveram um aumento em sua fabricação a partir de 1770
(Dicionário Grove de música, p. 932).
68
ADLAN; CONNER, 1980, p. 692.

59
Fig. 40 – Pianoforte de J. H. Silbermann – 1776
(EINFÜHRUNG, 1978)

Erard trabalhou algum tempo em Londres, onde estabeleceu uma filial de sua firma em

1792, e abriu sua própria firma em Paris cerca de 1780. Inicialmente, adotou ação e caixa

inglesas para todos os seus pianofortes, inclusive os modelos de cauda, que passaram a ser

fabricados por ele a partir de 1794. Porém, tal construtor começa a dar indícios de novas

concepções técnicas introduzindo, primeiramente, algumas mutações extras nos pedais a

partir da inclusão de um moderador69 e um buff stop70.

Deste modo, em 1808 Erard inventa uma mecânica própria – mecánisme à étrier – a
71
qual possuía uma repetição de notas fácil e rápida graças a um escape duplo. Uma nova

patente foi registrada em 1821 cujo foco principal foi, novamente, a repetição. “Esta, com

somente poucas modificações, fornece a base da ação de todos os pianos de cauda


72
modernos” e caracteriza-se pelo fato de que para se repetir as notas não é necessário um

retorno total da tecla para sua posição original (Fig. 41).

69
Ver Glossário.
70
Ver Glossário.
71
Diccionário Oxford de la Música, p. 962.
72
COLE, In: Grove Music Online.

60
D
C
B A- tecla
B- martelo
E C- abafador
J H G D- corda
F E- escapamento
F- duplo escapamento
I
G- botão do escapamento
A H- alavanca de repetição
I- alavanca intermediária
J- check

Fig. 41 – Ação Duplo Escapamento Erard – 1821


(The New Grove Dictionary of Music and Musicians, 1980)

Os construtores franceses, ao contrário dos ingleses, foram os que mais trabalharam

para o aprimoramento deste sistema de repetição de notas. Tal solução foi, certamente, a mais

bem sucedida para a minimização dos problemas advindos de um toque mais profundo e

pesado dos primeiros pianofortes.

No entanto, muitos pianos de mesa franceses ainda apresentavam uma simples ação de

duas alavancas sem escapamento (à maneira da ação inglesa) no início do séc. XIX. Ainda

que fosse possível uma rápida reiteração dos martelos com prática, os ricochetes e batidas

duplas foram tornando-se impossíveis de se conter em virtude dos pesados martelos e então,

uma sucessão de inovações foram adicionadas para a resolução destes problemas nestes

modelos de instrumento.

Assim, entre os anos de 1820-1840, a firma de Erard desenhou e patenteou ações

inovadoras para o piano de mesa, nas quais, juntamente com a ação de escapamento,

encontrava-se um check. Além disso, para aumentar o volume do som destes instrumentos,

empregou-se encordoamento triplo ao invés de cordas duplas mais fortes como preferido na

Inglaterra. 73

73
COLE, In: Grove Music Online.

61
O modo no qual eram construídos os pianofortes também foi modificado a fim de

suportar as cargas enormemente aumentadas em toda a estruturação do mecanismo de ação.

Foram adicionados, então, sob uma patente de Erard de 1825, aço e metal à estrutura da caixa.

Os típicos pianos de cauda franceses até 1825 possuíam quatro pedais - assim como o

presenteado por Erard a Beethoven em 1803 (Fig. 42) - sendo eles o buff stop, o de

sustentação, o moderador e o una corda. Já os de mesa possuíam em geral um basson stop,


74
“cujo som sussurrado acrescentou impulso rítmico para a música de dança” . A partir de

1830, estabeleceram-se para os pianos o uso de somente dois pedais: o de sustentação e o una

corda (Fig. 43).

Fig. 42 – Piano de Cauda Erard - 1803 Fig. 43 – Piano de Cauda Erard - 1832
com quatro pedais com dois pedais
(http://www.beethoven.li/seiten/bildergalerien/pianos.html) (http://www.iprase.tn.it/pianoforti/strumenti/doppio_s
cappamento_mecc.htm)

Certamente, além destas modificações mecânicas e estruturais desenvolvidas tanto nos

modelos de mesa quanto nos de cauda, a própria caixa do instrumento também sofreu

transformações. À semelhança da construção inglesa, os de cauda sobreviveram com o passar

dos anos, mas o de mesa foi radicalmente reformulado a fim de minimizar sua dimensão.

74
COLE, In: Grove Music Online.

62
Em 1828, o construtor Jean Henri Pape (1789-1875)75 idealizou uma nova disposição

para as cordas do pouco difundido piano vertical com o intuito de reduzir sua altura que até

então era muito grande. Provavelmente não alcançou êxito e voltou-se para a reformulação de

um outro desenho de piano também pouco conhecido, o de console76. Neste, compactou sua

forma de maneira a perder sonoridade e confiança na ação. Sendo assim, a forma alternativa

mais popular para uso doméstico foi, dos anos de 1835 a 1860, o pianino77 (Fig. 44).

Fig. 44 – Pianino Pleyel – 1852


(EINFÜHRUNG, 1978)

A supremacia de Erard na construção de pianofortes franceses foi incontestável até a

primeira metade do séc. XIX. Entretanto, outros construtores eminentes também fabricaram

importantes exemplares, destacando-se entre eles Ignace Pleyel (1757-1831)78 e o próprio J.

H. Pape.

75
Fabricante de pianos francês, cuja própria firma foi aberta em Paris em 1815, após período em Londres para
ajudar Pleyel na organização de sua fábrica de pianos. Descrito no periódico Musical World (1836) como o
“Broadwood da capital francesa” (CRANMER, 1980, v. 14, p. 170).
76
Ver Glossário.
77
Ver Glossário.
78
Compositor, editor e fabricante de pianos austríaco que fundou sua firma de pianos em 1807 em Paris. Seguiu
a tradição da construção inglesa de pianos e a princípio desenvolveu os modelos cottage para posteriormente
também se dedicar aos grands (Dicionário Grove de música, p. 730).

63
2.5 - COMENTÁRIOS SOBRE AS ESCOLAS TRATADAS

Alguns aspectos importantes, sobretudo em relação aos pianofortes referentes às

quatro escolas de instrumentos de teclado tratados nos estudos desenvolvidos neste capítulo,

merecem ser destacados e comentados.

Os pianofortes construídos em Portugal, Alemanha, Inglaterra e França assemelham-se

pelo fato de que se basearam, de maneira direta ou indireta, na tradição florentina.

Portugueses, alemães e ingleses partiram da ação de Cristofori e ambos, apesar de algumas

modificações dos traços originais – em Portugal diferenciações morfológicas e na Inglaterra,

na própria mecânica originando a ação inglesa –, mantiveram-se na mesma linha construtiva.

Já os alemães e os franceses, após a construção dos primeiros pianos regidos diretamente

pelas normas cristoforianas, rapidamente se encarregaram de elaborar novos sistemas

mecânicos – Prellmechanik e mecânica vienense na região germânica e ação com duplo

escape na França –, os quais se distanciaram severamente daquele italiano.

Por outro lado, enquanto construtores alemães, ingleses e franceses esforçaram-se em

reformular elementos já existentes nos instrumentos ou então conceber outros novos a fim de

minimizar problemas recorrentes e melhorar sua eficácia e potência, parece que os

portugueses pouco fizeram em relação à adição de novidades na construção dos pianofortes.

Entretanto, ao contrário do que se pode concluir, “a tradição de pianos em Portugal, embora

conservadora, foi intensamente cultivada” 79 e, mesmo não alcançando a superioridade técnica

das outras escolas tratadas, a escola portuguesa manteve sim uma tradição nacional.

Um outro fato importante também deve ser observado sobre a relação de Portugal com

os pianofortes florentinos. Evidências convergem para um precoce conhecimento e até

interesse por parte dos portugueses sobre os pianos antigos – a ligação entre Scarlatti e Lisboa

79
SUTHERLAND, 1995, p. 246.

64
e a oferta das Sonatas de Giustini a um membro da corte – as quais atestam, mais uma vez, a

sólida tradição portuguesa na construção destes instrumentos e ainda uma peculiaridade frente

aos ingleses e franceses, que se deixaram influenciar tardiamente pelo instrumento, como se

pode observar através tabela 3 apresentada na página seguinte.

É importante ressaltar ainda que, a tradição portuguesa na construção de instrumentos

de tecla e cordas também compreende a manufatura de cravos, os quais foram também

fortemente influenciados pela escola italiana, não apresentando significativas modificações

estruturais, a não ser o uso de madeiras exóticas e preciosas.

65
Tab. 3 – Cronologia do Pianoforte em Portugal, Alemanha, Inglaterra e França até 1830

Portugal Alemanha Inglaterra França

1725: tradução de
1720

1719: Scarlatti na corte


Mattheson do artigo de
portuguesa
Maffei

Pianofortes bem
1730

difundidos G. Silbermann inicia sua


1734: Sonatas de Giustini produção de pianos
dedicadas ao Infante

Silbermann faz melhorias Existência de pianofortes Construção de alguns


1740

no mecanismo sem maiores interesses pianofortes sem êxito


1747: J. S. Bach aprova os
pianos de Silbermann
1750

1761: Zumpe abre sua


Manuel Antunes obtém Utilização de duas ações: 1761: pianos de J. H.
oficina
privilegio régio para Stossmechanik (baseada no Silbermann em Paris
1763: J. C. Bach em
1760

construir pianos cravo) e Prellmechanik Londres


(baseada no clavicórdio). 1763: J. G. Eckard compõe
1766: piano de mesa de
1763: Pianoforte mais Stein utiliza a Prellmechanik para pianoforte
Zumpe mais antigo
antigo conservado
conservado
Pianos de 5 oitavas Broadwood constrói pianos
Mathias Bostem obtém de mesa 1777: Erard inicia seus
1770

privilegio régio para 1771: A. Backers apresenta trabalhos construindo


construir pianos seu Forte Piano e squares
desenvolve ação e pedais
1780

Walter cria a Mecânica Broadwood constrói pianos Erard abre sua própria
Vienense de cauda firma
1790

1794: Primeiro grand de 6 1794: Erard constrói


oitavas de Broadwood pianos de cauda

Aumento da extensão, das 1808: Erard inventa sua


1800

mutações e da caixa dos Pianos de 7 oitavas própria mecânica


pianos

1817: Broadwood utiliza


1810

Introdução dos pedais metal na estrutura da caixa


dos pianos

1822: nova patente de


Pianos de 6 e 6 oitavas e
Erard enfocando a
1820

meia
repetição
Novos formatos, tanto
1825: Erard introduz metal
verticais quanto de mesa
na caixa dos pianos
1830

Aperfeiçoamento da c. 1840: ascensão dos Novos formatos, sobretudo


estrutura dos pianos formatos verticais verticais

66
CAPÍTULO 3 – DO CRAVO AO PIANOFORTE NO RIO DE JANEIRO

3.1 – DOS PRIMEIROS CRAVOS À SIGNIFICATIVA PRESENÇA DO PIANOFORTE

A música, ao que tudo indica, sempre esteve presente na vida da cidade do Rio de

Janeiro. Desde o século XVI, quando a cidade colonial era apenas uma orla de mar, até o

século XIX, tempo em que já se impunha como capital do Brasil, significativos foram os

relatos acerca das manifestações e práticas musicais ali encontradas. Da mesma forma,

registrou-se, ainda, os instrumentos conhecidos e utilizados pelos cariocas, observando, desde

os tempos mais remotos, a presença freqüente dos instrumentos de teclado.

Assim como nas outras colônias brasileiras, a introdução de conhecimentos de música

e conseqüente importação de cravos, clavicórdios e órgãos no Rio deu-se provavelmente

através dos jesuítas em suas missões catequizadoras. Estes, no século XVI, instalaram-se na

cidade propriamente dita, no Morro do Castelo e na Fazenda Santa Cruz, distante cerca de

oitenta quilômetros. 1

Através do inventário dos bens dos jesuítas encontrados na Fazenda Santa Cruz

seqüestrados em benefício da Coroa, datado de 1768 e publicado em 1894 sob o título

Treslado do autto de Inventario da Real Fazenda de Santa Crus ebenz que nella seacham que

fes o Desembargador dos Aggravos e Juis do Sequestro geral feito aos denominados Jezuitas

o Doutor Manoel Francisco da Silva e Veiga, pode-se comprovar a utilização de instrumentos

musicais nas missões jesuíticas:

INSTRUMENTO DA MUZICA PERTENCENTES A IGREJA

Tres Rabecas huma quebrada-


Hum Rabecam velho-
Hum cravo-

1
REZENDE, Carlos Penteado de. Notas para uma História do Piano no Brasil (século XIX). Revista Brasileira
de Cultura, nº 6, Rio de Janeiro: Cons. Nac. Cultura, 1970, p. 23.

67
Hum manicordio-
Duas flautas doses-
Huma violla quebrada-
Oito xoromellas que constão dos Instrumentos seguintez-
Hum baxo demetal amarelo-
Hum tenor depau amarello epé demetal amarello digo depau vermelho epé
demetal amarello-
Hum contralto damesma forma-
Hum tiple depau amarelo-
Dous Tiples depao vermelho Com sintos demetal-
Dous bues depáo amarello-
Hum dito depáo pintado- 2

Sabe-se também que os padres, em outras regiões do país, ensinavam aos nativos a

arte da manufatura de instrumentos musicais, inclusive de órgãos de câmara, estes podendo

ser equiparados aos fabricados na Europa. O relato do padre Antonio Sepp, importante

missionário no Sul do Brasil, atesta a qualidade destes instrumentos e ainda narra sobre a

construção de clavicórdios:

(...) Temos dois órgãos, um dos quais trazido da Europa, ao passo que o
outro foi feito pelos índios, e tão semelhantes, que a princípio eu mesmo me
enganei e levei o órgão indígena por conta do europeu. 3

(...) Os índios constroem órgãos, como referi acima. Providenciei a que


fabricassem cítolas, clavicórdios, saltérios, fagotes, flautas, tiorbas e
cornetas em diversas reduções. 4

Uma vez construídos órgãos e clavicórdios em outras regiões do Brasil, nada impede

que cravos fossem da mesma forma manufaturados no Rio, sob os ensinamentos dos padres

missionários. Desta forma, pode-se especular sobre a correta procedência dos instrumentos

2
ARCHIVO DO DISTRICTO FEDERAL: revista de documentos para a história da cidade do Rio de Janeiro.
Rio de Janeiro, vol. 1, n. 1, Typ. Leuzinger, 1894, p. 77, grifo nosso. Ver Anexos 1, item 1.1.
3
Preiss, Jorge Hirt. A música nas Missões Jesuíticas nos séculos XVII e XVIII. Martins Livreiro Editor, Porto
Alegre, 1988, p. 37.
4
Idem, p. 45 (grifo nosso).

68
listados no inventário da Fazenda de Santa Cruz, sobretudo a do cravo e manicórdio, visto

que ao longo do documento não é indicada a sua origem5.

Retornando ao século XVI, constata-se que a música estava totalmente associada às

funções religiosas. A princípio para auxiliar na catequização instruída pelos jesuítas e

posteriormente no acompanhamento das cerimônias religiosas ocorridas em igrejas e

conventos, os cravos provavelmente eram instrumentos conhecidos e usualmente encontrados

e utilizados. 6

No século XVII, a música mostrava-se presente não só em eventos religiosos, mas

também em ocasiões festivas de caráter político. Segundo o testemunho de Jorge Rodrigues,

redator da Relaçam da aclamação, em 1641 comemorou-se no Rio de Janeiro a restauração

do trono português com um desfile de carros alegóricos “prenhados de música” e com a

cidade “ornada de luminárias”. 7

Ao final deste século, as notícias sobre o ouro em Minas Gerais atraíram para o Rio a

atenção de muitos, pois em seu porto escoariam as riquezas descobertas nas terras mineiras 8.

Este fato, associado ao crescimento quantitativo e qualitativo da cidade, contribuiu

sensivelmente para uma transformação social, comercial e econômica do Rio de Janeiro 9.

Assim, no século XVIII, o Rio de Janeiro já se configurava como importante centro

comercial do Brasil. Circulavam por lá muitos comerciantes e artesãos, e seu porto recebia

mercadorias de todos os tipos. Dentre os inúmeros objetos importados, certamente podia-se

encontrar instrumentos de música, destacando-se entre eles os cravos.

5
Ver documento completo (o que se refere aos instrumentos musicais) em Anexos 1, item 1.1.
6
REZENDE, Carlos Penteado de. Notas para uma História do Piano no Brasil (século XIX). Revista Brasileira
de Cultura, nº 6, Rio de Janeiro: Cons. Nac. Cultura, 1970, p. 23.
7
Citado em TINHORÃO, José Ramos. As festas no Brasil colonial. São Paulo: Editora 34, 2000, p. 156.
8
REZENDE, op. cit., p. 23 e 24.
9
REIS, Arthur Cezar F. Vida social nos séculos XVI e XVII. Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, Rio de Janeiro, vol. 288, julho-setembro 1970, p. 41.

69
A partir do Registro de Carta Régia datado de 172110, o qual trazia a avaliação dos

gêneros a se tirar a dízima da Alfândega, verificava-se a presença de cravos grandes de tocar

em meio a outras variadas mercadorias (Tab. 4). Este documento é o registro mais antigo

localizado que se refere à entrada de cravos no porto do Rio e, conseqüentemente, à existência

dos instrumentos na cidade carioca (Fig. 45).

Tab. 4 – Transcrição da listagem de preço de alguns produtos entrados pela


Alfândega do Rio de Janeiro em 1721
(Registro das Cartas, Provisões, Ordens..., AN, Ano de 1721)

Novos Generos
Aseites a duzia 1$000
Barretes de Seda detear cada hú $180
Cravos de metal dourado a duzia $120
Canotilho a caixa $750
Caldeirinhas de Estanho Euá $200
Cacáu do Maranhão ma 2$000
Cravos grandes de tocar* 19$000
Culheres de Estanho a duzia $320
Escrivaninhas de Estanho $500
Talher de Estanho 1$000
Fita de prata couro dalarugra de hum dedo $640
Linha tecida com erva [?] ap $550
Ligas de seda a duzia $480
Manoquim a duzia 7$500
Mezas pequenas 2$800
Martelos cada hú $120
Moinhos de Café $480
Paliteiros de toda alasta a duzia $800
Reladores a duzia $800
Relojos de parede grandes a duzia $240
Ceringas de latão cada huá $550
Froguezes de toda acasta o maço $320
Tromentina ama. 2$560
Vistas de osso para Lembranças a cento 1$500
* Grifo nosso

Fig. 45 – Trecho do documento original


(Registro das Cartas, Provisões, Ordens... AN, Ano de 1721)

10
Ver manuscrito completo em Anexos 2, item 2.1.

70
Em 1763, o Rio de Janeiro tornou-se capital da Colônia portuguesa, passando a

representar seu centro político, econômico, administrativo e cultural. A existência de “um

excelente porto e um ativo centro de comércio, em constante crescimento, beneficiado por ser

a cidade o centro convergente dos negócios de exportação e abastecimento das regiões

mineradoras e também devido à sua influência política” 11 foram características decisivas para

sua nova posição.

Desta maneira, um expressivo aumento na importação de novos gêneros comerciais foi


12
verificado, sendo necessária uma atualização no regulamento de cobranças . Em 1766, era

emitida então, uma Pauta das Avaliações das Fazendas, pelas quais se cobram os direitos da

Dízima da Alfândega do Rio de Janeiro13, na qual constavam muitos instrumentos e

acessórios musicais, destacando-se os cravos de tocar grandes, cravos de tocar pequenos e as

espinetas (Tab. 5).

Tab. 5 – Trecho da pauta das avaliações das Fazendas pelas quais se cobram os direitos da
Dízima da Alfândega em 1766
(Citado em Rezende, Carlos Penteado)

Cravos de tocar - grandes cada hum 19$200


Cravos de tocar - pequenos cada hum 12$000
Cravos de tocar mais pequenos, a esse respeito, aliás,
cada hum 6$000
Espinhetas
Espinhetas cada huma 6$000

Percebe-se a partir deste documento de 1766, assim como no registro de 1721, que o

cravo era identificado, no Rio de Janeiro, como cravo de tocar. Frequentemente eram

adicionadas ainda as expressões grande e pequeno, que sugerem duas possíveis

interpretações.

11
CARDOSO, Tereza Maria R. F. L. A Gazeta do Rio de Janeiro: subsídios para a história da cidade (1808-
1821). Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, vol. 152 (371), abril-junho
1991, p. 342.
12
REZENDE, 1970, p. 24.
13
Citado em REZENDE, op. cit., p. 23 e 24.

71
Visto que os instrumentos aqui encontrados eram oriundos de Portugal, pelo menos até

1808, ou então possivelmente manufaturados na própria cidade14, mas regidos segundo as

tradições construtivas portuguesas, imagina-se que os adjetivos empregados referem-se à

extensão do teclado do instrumento e/ou ao seu tipo ou formato.

Como abordado no capítulo 2, item 2.1, os cravos portugueses caracterizavam-se por

conterem apenas um teclado, de extensão máxima de 5 oitavas. Desta forma, um cravo

grande poderia ser um instrumento com extensão alargada de 5 oitavas e um cravo pequeno,

com uma extensão menor, por exemplo, de 4 oitavas apenas. Contudo, há também a

possibilidade de se determinar como cravo grande, um cravo de tradição portuguesa em

forma de ‘asa’, enquanto um cravo pequeno ou um cravo mais pequeno, poderia ser uma

espineta – como está descrito na própria pauta de avaliações de 1766 –, cujas características

evidenciam seu tamanho menor que o do cravo15.

Curiosamente, um dos únicos instrumentos de teclado do século XVIII que sobreviveu

até os dias de hoje, porém sem se saber ao certo o período de sua importação, é uma espineta.

Fabricada pelo construtor lisboeta Mathias Bostem16 e datada de 1785 (Fig. 46), tal espineta

pertencia a José da Cunha Porto e foi doada à Escola Nacional de Belas Artes, no Rio de

Janeiro, em 1902. Constam na listagem referente à doação, vários instrumentos musicais,

ressaltando-se entre eles um cravo e uma espineta:

1 Cravo - trabalho portuguez do seculo 18o. - authenticado e datado. Tem


imbutidos de diversas madeiras e a caixa é toda dourada, guarnecida de fina
pintura grotesca; e um quadro a óleo na parte interna da tampa.
1 Psalterio portuguez, authenticado. Lisbôa - 1780 - trabalho de obra de
talha e madeiras incrustadas.
1 Psalterio portuguez - authenticado e assinado - Rio de Janeiro - 1765 -
marchetado de madeiras e com sua caixa de madeira curiozamente pintada.
1 Espinheta, trabalho portuguez.
1 Guitarra portugueza, authentica de Galvam - Lisbôa 1767.
1 Guitarra portugueza, antiga.
14
Ver maior discussão sobre legislação comercial na p. 79.
15
Ver nota 38, Capítulo 1, item 1.1, p. 28.
16
Ver Capítulo 2, item 2.1, p. 36 a 40.

72
1 Harpa franceza Luiz XVI (da época) obra de talha dourada, guarnecida de
pinturas e verniz martin.
1 Pequeno instrumento japonez de bambú axaroado. 17

Contudo, ao se comparar o instrumento sobrevivente – hoje localizado no Museu

Imperial – com a descrição do cravo na lista acima (“tem imbutidos de diversas madeiras e a

caixa é toda dourada, guarnecida de fina pintura grotesca; e um quadro a óleo na parte interna

da tampa”), verifica-se uma total semelhança entre os dois. Isto ilustra como era comum, até o

século XX, confundir um cravo com uma espineta (Fig. 47).

Fig. 46 – Nome do construtor e data da Espineta


(Encarte CD Marcelo Fagerlande)

Fig. 47 – Espineta Mathias Bostem - 1785


(http://www.museuimperial.gov.br)

Assim, a freqüente importação de cravos, espinetas e outros instrumentos, em meados

do século XVIII, indicavam que a contínua expansão do Rio de Janeiro podia também ser

17
Proposta de José da Cunha Porto, 1902; Escola Nacional de Belas Artes; Coleções / Doações (s/d); Armário
06016 - AI/EN64. MNBA, Arquivo Histórico (Documentação Textual), p. 2 (grifo nosso).

73
observada no meio musical. A prática musical estendia-se, então, a um número maior de

executantes e espectadores. Seu emprego, além de cerimônias religiosas, festividades políticas

e salões aristocratas, abarcava agora um novo e prolífero setor: o do teatro.

Um ilustre viajante alemão que aportou na cidade por volta de 1767, o príncipe

Charles-Othon de Nassau-Siegen, descreveu em seu periódico Journal de Charles-Othon

Nassau-Siegen, passager de la Boudeuse duas visitas suas ao teatro. Em uma delas relatou:

[...] existe uma ópera, onde se representam peças italianas, traduzidas para o
português, [...]. Aí se encontrará o necessário a formar um pequeno conjunto
entre os atores, tendo-se cinco padres, sendo quatro músicos e um dançarino,
todos muito aplaudidos por um grande número de carmelitas e outros padres,
que nunca faltam ao espetáculo indecente. 18

Já em 1782, o pastor F. L. Langstedt também narrou as manifestações musicais que

presenciou em sua passagem pela cidade. Em sua visita ao convento Justiniano para assistir à

profissão de uma freira, descreveu aparentemente surpreendido: “a música que ouvi neste

convento de religiosas é muito mais agradável do que a que me prometeram nesta zona”19. E

relatou ainda: “assisti ainda a um oratório em homenagem a São João e a uma ópera intitulada

Bona Filia. Os cenários não brilhavam e a ópera não estava de acordo com o gosto mais

moderno, a mímica e a ação, no entanto, eram excelentes” 20.

É interessante observar através das exposições dos viajantes acima mencionados que,

mesmo estando patentes suas deficiências, a música executada na cidade não podia ser

desprezada. “O ambiente musical do Rio de Janeiro, ao findar o século XVIII, não era

18
Citado em SOUZA, José Antônio S. O Rio de Janeiro nas balanças de comércio de Portugal, de 1796 a 1807.
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, vol. 342, janeiro-março 1984, p. 19.
19
OBERACKER Jr., Carlos H. O Rio de Janeiro em 1782 visto pelo Pastor F. L. Langstedt. Revista do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, vol. 299, abril-junho 1973, p. 8.
20
Idem, p. 9.

74
propriamente inexpressivo, na medida cabível a uma cidade colonial distante centenas de

quilômetros dos grandes centros de cultura da Europa, e ainda separados por um oceano” 21.

Os instrumentos de teclado continuavam da mesma forma, muito presentes nos

ambientes e eventos em que se executasse música. Em 1786, ocorreu na capital da colônia

brasileira um grande desfile público para a comemoração do casamento, em Portugal, do

príncipe D. João com a princesa Carlota Joaquina. Além de quatro orquestras localizadas

próximas à platéia e uma situada embaixo do camarote do vice-rei Luis de Vasconcelos, a

festividade contava principalmente com seis carros ‘alegóricos’ que eram verdadeiros

cenários sobre rodas.

O tenente agregado Antônio Francisco Soares foi o encarregado de construir estes

carros e também de descrevê-los, assim como todo o desfile, em um relatório. Tal documento,

intitulado Relação dos Magnificos carros, que se fizerão de arquitetura, prespetiva, e fogos:

os quais, se executaram por ordem do Illustmo. e Excelmo. Senhor Luis de Vasconcelos

Capitão General de Mar, e Terra, e Vice Rei dos Estados do Brasil, nas festividades dos

Despozorio dos Serenissimos Senhores Infantes de Portugal, contém ainda desenhos bem

realistas de todos os carros, feitos à pena, merecendo destaque o quinto e o último carro.

No Carro das Cavalhadas, o quinto a desfilar, “hião sentados pelos degràis 16 Muzicos

com instrumentos todos de sopros; a saber trompas, frautaz, clarins, boezes, fagotes, e

atabales, vestidos estes atrajica, com vestidos de cabaias, e gorguroens de diverças cores, com

turbantes nas cabeças” 22 (Fig. 48).

21
MATTOS, Cleofe Person de. José Maurício Nunes Garcia – Biografia. Rio de Janeiro: Fundação biblioteca
Nacional, Dep. Nacional do Livro, 1996, p. 29.
22
Relação dos magníficos carros que se fizeram de arquitetura e fogos, os quaes se executaram por ordem de
Ilmo. e Exmo. Senhor Luiz de Vasconcelos e Sousa, Capitão General de Mar e Terra & Vice Rei dos Estados do
Brasil nas Festividades dos despozorios dos Sereníssimos Srs. Infantes de Portugal Nesta Cidade do RJ...
(Antônio Francisco Soares). IHGB, Lata 51; Doc. 20, Ano de 1786.

75
Fig. 48 – Carro das Cavalhadas
(Relação dos magníficos carros... IHGB, Ano de 1786)

E fechando o desfile, o Carro das Cavalhadas Burlescas exibia, de forma imponente,

um órgão de tubos (Fig. 49):

hum carro jocoso formado de arquitetura de edeficio aluinado, e em partes


quebrado de baixo do mesmo preceito de arquitetura, pintado tão natural,
que parecia ser fabricado de obra de cantaria: e pelas ruinas, tinhão suas
arvores, limos, musgos crescidoz, e dentro desta quadra de arquitetura tinha
hum formozo orgão. 23

Fig. 49 – Carro das Cavalhadas Burlescas


(Relação dos magníficos carros... IHGB, Ano de 1786)

23
Relação dos magníficos carros que se fizeram de arquitetura e fogos, os quaes se executaram por ordem de
Ilmo. e Exmo. Senhor Luiz de Vasconcelos e Sousa, Capitão General de Mar e Terra & Vice Rei dos Estados do
Brasil nas Festividades dos despozorios dos Sereníssimos Srs. Infantes de Portugal Nesta Cidade do RJ...
(Antônio Francisco Soares). IHGB, Lata 51; Doc. 20, Ano de 1786.

76
Estas raras iconografias, salvo erro as primeiras imagens conhecidas de um

instrumento de teclado no Brasil, demonstram a importância da música na sociedade

fluminense do séc. XVIII e atestam ainda, o destaque atribuído aos instrumentos de teclado. O

órgão foi o instrumento escolhido para este desfile, certamente, por produzir um maior

volume sonoro em comparação aos cravos e clavicórdios.

Enquanto o órgão era exposto publicamente, o cravo (e certamente a espineta e o

clavicórdio) encontrava-se em ambientes mais privados. O viajante inglês Sir George Stauton,

em seu passeio pelo Rio de Janeiro, em 1792, constatou que em algumas casas as mulheres

“distraíam-se, às noites, tocando em algum tipo de instrumento musical, especialmente o

cravo ou viola” 24.

Por esta mesma época, famílias importantes dedicavam-se à prática musical, chegando

a formar um conjunto amador de excelentes instrumentistas e cantores. Uma bem conhecida

foi a dos Correa Leal, cujo talento para música era hereditário, há quatro gerações. Francisco,

o pai, considerado um dos melhores médicos do Rio de Janeiro, tocava violino com perfeição

e possuía raros conhecimentos musicais, assim como seus dez filhos, todos instrumentistas ou

cantores amadores.25 Para a execução da música de câmara e acompanhamento dos membros

cantores da família, provavelmente deveria ser utilizado um cravo, visto que esta situava-se

em um privilegiado extrato social capaz de adquirir tal instrumento não muito barato. 26

O inventário post-mortem do botânico Antônio Pereira Ferreira27, de 1798 (Fig. 50),

aliado aos relatos expostos até aqui, comprova que não era muito raro encontrar cravos nas

residências mais abastadas do Rio nesta época. O precioso documento lista os bens do

24
Citado em REZENDE, 1970, p. 25 (tradução e grifo nosso).
25
ANDRADE, Ayres. Francisco Manuel da Silva e seu tempo, volume 1, Rio de Janeiro : Tempo brasileiro,
1967, p. 50.
26
O inventário post-mortem do matriarca da família Francisco Correa Leal foi localizado no AN, sob o registro
Caixa 3606; N. 220; Ano de 1786, porém não se encontrou disponível em nenhuma das inúmeras incursões feitas
ao Arquivo. Infelizmente não se puderam comprovar os possíveis instrumentos musicais pertencentes à família,
ficando em aberto a especulação sobre a existência de um cravo ou outro instrumento de teclado.
27
Ver cópia do documento em Anexo 1, item 1.2.

77
falecido, onde constam dois instrumentos de teclado: um cravo pequeno e um valiosíssimo

pianoforte feito no Rio de Janeiro (Fig. 51).

Fig. 50 – Trecho da capa do Inventário de Antônio Pereira Ferreira


(Inventário post-mortem Antonio Pereira Ferreira. AN, Ano de 1798)

Fig. 51 – Trecho do Inventário de Antonio Pereira Ferreira


(Inventário post-mortem Antonio Pereira Ferreira. AN, Ano de 1798)

De acordo com o manuscrito, o “Piano forte feito no Rio de Janeiro” estava “avaliado

na quantia de noventa e cinco mil réis”, enquanto o “Cravo Pequeno de Penas avaliado na

quantia de vinte e dous mil réis”. Ao que parece, o piano deveria ser um novo gênero

comercial, uma modernidade, um novo invento, o que justificaria seu valor tão alto em

comparação ao do pequeno cravo, 73 mil réis mais barato.

78
Deve-se atentar, além do preço dos instrumentos, para dois aspectos importantíssimos.

Não foi encontrado, ao longo de toda pesquisa, nenhum documento com data anterior a 1798

que mencionasse o piano, fato este que torna o inventário de Antonio Pereira Ferreira a

evidência documental mais antiga acerca dos pianos no Rio de Janeiro. Surpreende não só a

precoce existência do pianoforte nesta cidade, como também a afirmação de que, em fins do

século XVIII, estes já eram fabricados no Rio.

Entretanto, é pertinente fazer alguns questionamentos, sobretudo em relação à

manufatura de instrumentos musicais na capital brasileira. Nesta época, vigorava no Brasil o

pacto colonial, o qual impunha a seguinte norma:

O Brasil recebia de toda a Europa e da Ásia qualquer espécie de mercadoria,


mas sempre por intermédio do comércio português, transportada por
embarcações portuguesas, e desde que se não fizesse concorrência às
mercadorias de produção portuguesa. Para que não existisse essa
concorrência, considerava-se essencial a proibição de qualquer indústria do
Brasil, rudimentar que fosse, até um simples tear caseiro.28

É de se estranhar, portanto, como poderia ter sido fabricado um pianoforte, no Rio de

Janeiro, instrumento este de grande porte e que certamente necessitava de um local de

tamanho razoável para sua construção. Seriam necessários também diversos tipos de

utensílios para moldar, cerrar, furar e trabalhar a madeira e outros materiais. Toda esta prática

configurava uma produção considerável, por mais simples que fosse, e conforme a legislação

que prevalecia, estava terminantemente proibida.

Sabe-se, porém, que ainda que se proibissem muitas atividades, era possível burlar as

leis e manter vivos diversos negócios. Talvez um dos mais censurados e contraditoriamente o

menos respeitado era o contrabando. Muitas mercadorias eram introduzidas nos portos

brasileiros pela Inglaterra, Suécia, Dinamarca e Estados Unidos, pois estes países,

28
SOUZA, 1984, p. 8 e 9.

79
na segunda metade do século XVIII e nos primeiros anos do século XIX,
desrespeitavam [...] as normas tacanhas, por que se regia o pacto colonial,
infringindo-as com freqüência, senão com uma certa continuidade. Na
verdade se tornava cada vez mais difícil a observância de semelhantes
normas, quando os interesses, tanto dos brasileiros quanto das nações
industrializadas, com a Inglaterra à frente, se enleavam a fim de burlá-las. 29

É plausível, desta forma, acreditar que artesãos instalados no Brasil também

conseguiriam desrespeitar as leis vigentes, sendo possível existir, no Rio de Janeiro,

construtores de pianos e cravos, ainda no século XVIII. Estes artífices de instrumentos

musicais, além de brasileiros natos, poderiam ser portugueses migrados da metrópole, o que

realmente ligaria esta possível escola construtiva de instrumentos fluminenses à tradição

construtiva portuguesa.

Outro aspecto a ser discutido é a precisão quanto à nomenclatura empregada para

denominar tais instrumentos de teclado. Como exposto na tabela 5 referente à pauta de

avaliação da alfândega de 1766, parece que os examinadores das mercadorias tinham dúvidas

ao classificar cravos de tocar mais pequenos ou espinhetas. Analogamente, pode-se

questionar se o avaliador dos bens do inventário de 1798 em questão não teria se confundido

ao mencionar pianoforte onde seria, por exemplo, um cravo grande.

Entretanto, tudo leva a crer que, se este instrumento especificamente não era um

piano, provavelmente já havia, nesta época, o conhecimento da existência do mesmo no Rio

de Janeiro. Como pode ser visto no item 3.2 deste capítulo, ao que parece, não houve

ambigüidade entre a terminologia de cravos e pianos nesta cidade ao longo de todo o período

em estudo. Assim, acredita-se que, na capital da colônia portuguesa, a entrada e/ou fabricação

de pianofortes se deu, realmente, antes da virada do século XVIII para o XIX.

No final da última década do século XVIII, coexistiam cravos e pianos no Rio de

Janeiro, mas certamente o instrumento mais antigo era o mais encontrado e utilizado. Segundo

29
SOUZA, José Antônio S. Aspectos do comércio do Brasil e de Portugal no fim do século XVIII e começo do
século XIX. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, vol. 289, outubro-
dezembro 1970, p. 93.

80
registrou o volume da Balança Geral do Commercio do Reyno de Portugal com os seus

dominios (BGC) – província do Rio de Janeiro – no ano de 1799, foram importados de Lisboa

artigos e instrumentos musicais, dentre eles cravos. Não foi indicado o valor unitário do

instrumento, mas o preço total dos instrumentos musicais (exceto as trompas e os clarins) era

estimado em 755 mil réis (Tab. 6).

Tab. 6 – Instrumentos e artigos musicais importados pelo Rio de Janeiro em 1799


(BGC – 1799, BN, Seção de Manuscritos)

Valor Valor
Ano Origem Classificação Quant. Gênero
unit. total
Metaes - Cordas de cytra e manicórdio* - 1968$040
(outras ferragens miudas) 80 Trompas e Clarins - 640$000
1799 Lisboa
Varios Gêneros Instrumentos de muzica,
- - 755$000
(diversos generos) como cravos* Salter [?]
*
Grifo nosso

Este ano de 1799 é o único em que os cravos são citados na Balança. Outros

instrumentos e artigos de música, por sua vez, foram encontrados entre os anos de 1796 a

1819, período de existência da BGC, como violas, rabecas, trompas, trombetas, fagotes,
30
clarins, flautas e cordas de manicórdio, viola e rabeca . Entretanto, é possível que mais

cravos ou outros instrumentos musicais tenham chegado ao porto do Rio sem serem

discriminados neste registro oficial português, pois “passaram as balanças a serem muito

resumidas e, assim, não se ter especificado artigo por artigo e, sim, englobados numa única

anotação que se encontra sob a denominação de ‘Outros pequenos artigos’ ou ‘Outros

gêneros’” 31.

Além disso, a partir de 1808, quando foi decretada a abertura dos portos brasileiros, a

contabilidade portuguesa não registrava, obrigatoriamente, as transações comerciais das

capitanias do Brasil com outras nações estrangeiras. Figuravam nas Balanças nesta época,

30
Ver listagem completa dos instrumentos e acessórios musicais na BGC em Anexo 3.
31
SOUZA, 1984, p. 56.

81
basicamente as mercadorias trocadas entre Brasil e Portugal, diminuindo, portanto, a

quantidade de produtos importados. 32

No entanto, se os registros oficiais não mais traziam detalhadamente os gêneros

comercializados pelo Brasil devido a abertura dos portos, a criação da Impressão Régia

permitiu, em contrapartida, que fosse descrita não só a vida comercial e política da colônia

portuguesa, mas também o cotidiano da cidade. Esta mudança significativa – que possibilitou

a identificação de muitos instrumentos de teclado não discriminados na BGC – foi reflexo da

transladação da Corte portuguesa para o Brasil.

A cidade [do Rio de Janeiro] – e por reflexo a província – passou por


transformações importantes após 1808, devido à nova condição assumida de
sede do Império português, seja pelas melhorias materiais realizadas, com
grande número de obras públicas e privadas, seja pelas melhorias culturais,
como o acesso mais fácil à transformação através de livros, jornais e
cursos de nível superior. Dessa forma, enquanto o aspecto externo da
cidade foi modificado em função da necessidade de nela se acomodarem
todos os membros da Corte, além dos órgãos públicos, o aspecto mental da
sociedade também foi modificado em função da mesma Corte, de seus
hábitos e costumes, do fascínio que exercia sobre seus habitantes, de
suas exigências de consumo, etc. 33

Assim, o primeiro jornal a ser publicado no Brasil foi a Gazeta do Rio de Janeiro

(GRJ), que passou a circular nesta cidade no mesmo ano de 1808. Já em 1809, apareceu o

primeiro anúncio de venda de pianoforte no Rio de Janeiro, o único deste ano. Não fornecia

nenhum detalhe a respeito do instrumento, tampouco sua procedência ou construtor:

Vende-se um Piano forte muito bom, quem o quizer comprar, falle na rua
Direita nas loges das casas No. 15. 34

Em 1810, contudo, os anúncios de venda de pianos cresceram para três no ano, e

passaram a indicar também a origem e o fabricante do instrumento. Verifica-se que os

32
Idem, p. 8.
33
CARDOSO, 1991, p. 343 (grifo nosso).
34
Gazeta do Rio de Janeiro, 26/04/1809, N. 65, Avisos p. 4 (grifo nosso).

82
pianofortes existentes na cidade eram portugueses, ingleses e franceses, estes últimos

pertencentes ao construtor Erard:

Quem quizer comprar hum Piano-forte, de bom author, e de excellentes


vozes, chegado ultimamente de Lisboa, dirija-se à rua Direita ao segundo
andar das casas, que se seguem à Alfandega, onde o poderá examinar, e
ajustar o seu preço. 35

Quem quizer comprar hum Piano-forte Inglez de muitas boas vozes, e com
seus registros, pode fallar com Agostinho da Silva Hofman em a rua da
Candelaria, n. 5, que o tem para vender. 36

Antonio José de Araujo, morador da rua do Alecrim, n. 135, tem para vender
hum Forte-Piano Francez de Eraud [sic]. 37

Ainda neste ano de 1810, o primeiro anúncio de cravo apareceu no jornal. Não

informava seu construtor, mas apontava características intrínsecas ao instrumento como sua

extensão e sua sonoridade:

Quem quizer comprar hum cravo de pennas [sic] de cinco oitavas, e muito
boas vozes; pode-o ir ver á rua das Mangueiras No. 8. 38

Gradativamente, a Gazeta publicava um número maior de anúncios – não

ultrapassando, porém, o total de oito por ano –, os quais se referiam tanto à venda quanto aos

leilões de pianos, estes de vários tipos, englobando inclusive os pianos mecânicos, e das

escolas construtivas inglesa e francesa. Em 1812, leiloava-se o primeiro pianoforte de

Broadwood na cidade e, com o passar dos anos, uma razoável variedade do instrumento era

oferecida.

35
Gazeta do Rio de Janeiro, 13/01/1810, N. 4, Avisos p. 4 (grifo nosso).
36
Idem, 09/02/1810, N. 10, Avisos p. 4 (grifo nosso).
37
Idem, 25/07/1810, N. 57, Avisos p. 3 (grifo nosso).
38
Idem, 14/02/1810, N. 3, Avisos p. 4 (grifo nosso). Para maior esclarecimento a respeito do termo cravo de
penas, ver item 3.2.1.

83
No dia 15 do corrente, às 10 horas da manhã, se venderá na residencia do
Ex. Marquez de Casa Trujo, á Gloria, quantidade de varios Móveis, entre
elles, os seguintes: Hum Magnifico Piano forte de Broadwood (...). 39

Quem quizer comprar alguns Pianos Fortes, e grandes Pianos, chegados


proximamente de Londres, e do melhor author daquela Capital, pode
procurar na rua dos Pescadores No. 4. 40
Diogo Wood faz saber, que se mudou da rua dos Barbonios para a rua
Direita N. 12, onde se achão para vender pianos fortes, de varias
qualidades perpendiculares e horizontais, arpas elegantes, e outros
instrumentos musicos, que chegarão de Inglaterra, pelo ultimo comboi. 41

No armazem Francez, rua do Rozario No. 60, se achão Veneras da Ordem


de Christo, moveis de Senhoras, moveis de sala de veludo, muitos bello
leitos, hum grande sortimento de porcelana fina de toda a especie, licores
finos, (?)anizera, marrasquim, &c. Vinhos de Bordeos, de Rhin, de Chipre,
espelhos de todo o tamanho, hum forte piano, que toca por si mesmo
trinta arias differentes, principios de Desenho, Desenho para bordar, e hum
grande sortimento de quadros, tudo por preço muito commodo. 42

Gadet e Fallason, morador na rua Direita No. 55, fazem saber aos curiosos
das artes, que receberão modernamente de Paris hum sortimento de violas
de differentes preços, com cordas para viola, rebeca, e forte piano, assim
como todas as peças de musica nova dos melhores Mestres Italianos,
Allemães e Francezes; e igualmente papel pautado para escrever musica,
tudo vindo das fabricas mais famosas daquella Capital. 43

Além de ser visto como um moderno instrumento musical, o piano representava,

sobretudo, um prezado investimento de capital44. Era tomado como um produto de grande

valor comercial, servindo, até, como forma de pagamento de dívidas. Ainda em 1816, um

pianoforte de oitava larga, avaliado na quantia de 64 mil réis, foi entregue à família do finado

Antonio Ribeiro de Avellar (falecido em 1794) para liquidar um débito constante no

inventário post-mortem do mesmo45 (Fig. 52).

39
Idem, 08/01/1812, N. 3, Aviso de Leilão p. 4 (grifo nosso).
40
Gazeta do Rio de Janeiro, 09/02/1813, N. 11, Avisos p. 4 (grifo nosso).
41
Idem, 19/11/1814, N. 93, Avisos p. 4 (grifo nosso).
42
Idem, 19/04/1817, N. 32, Avisos p. 4 (grifo nosso).
43
Idem, 21/10/1818, N. 84, Avisos p. 4 (grifo nosso).
44
FARIA, Paulo Rogério Campos de. Pianismo de Concerto no Rio de Janeiro do século XIX, Dissertação
(Mestrado em Música) – Escola de Música – Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 1996, p. 31
e FONSECA, Anna Cristina Cardozo. História Social do Piano – Nacionalismo/Modernismo – Rio de
Janeiro – 1808/1922, Dissertação (Mestrado em Música) - Escola de Música - Universidade Federal do Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro, 1996, p. 72.
45
Ver cópia do documento em Anexo 1, item 1.3.

84
Fig. 52 – Trecho do Inventário de Antonio Ribeiro de Avellar
(Inventário post-mortem Antonio Ribeiro de Avellar. AN, Ano de 1794)

Possivelmente, o termo oitava larga46 refere-se à grande extensão do teclado do

pianoforte. Como visto no capítulo 2, a tradição construtiva das escolas portuguesa, inglesa e

francesa (as que se encontravam na cidade até então), variavam a extensão de seus pianofortes

de quatro a até sete oitavas. O piano mencionado no inventário, desta forma, poderia ter no

máximo sete oitavas, mas, como é percebido através da leitura dos jornais da época, a oitava

larga neste caso deveria representar uma extensão de cinco oitavas47.

Em 1817, os viajantes austríacos Spix e Martius visitaram o Rio de Janeiro e fizeram a

seguinte observação a respeito dos pianos na cidade, provavelmente em comparação com a

Europa: “O violão, tanto como no Sul da Europa, é o instrumento favorito; o piano é um dos

móveis mais raros e só se encontra nas casas dos abastados” 48. Entende-se a razão de somente

os aristocratas, naquela época, possuírem pianos, pois os altos preços pedidos nestas

modernas e valiosas mercadorias restringiam sua posse às altas camadas da sociedade.

Entretanto, não se acredita na raridade de tais instrumentos na cidade49, visto que nos

anúncios de jornal deste mesmo ano de 1817 verificam-se muitos pianos, tanto para serem

vendidos quanto leiloados. Alguns exemplos comprovam que a quantidade comercializada

dos instrumentos não era tão pequena:


46
A expressão oitava larga pode ter sido empregada em oposição ao termo oitava curta, prática muito utilizada
em instrumentos de teclado desde o séc. XVI ao início do XIX. A oitava curta diz respeito à afinação de
algumas notas mais graves de um instrumento de teclado em alturas abaixo das suas alturas aparentes ou a
divisão de algumas teclas do grave para o maior aproveitamento da extensão de um instrumento com um número
de notas restrito.
47
Ver sobre a extensão dos pianofortes no Rio de Janeiro nas páginas 88 e 89.
48
SPIX; MARTIUS. Viagem pelo Brasil: 1817-1820, volume 1, 3ª edição, Edições Melhoramentos, p. 50.
49
REZENDE, 1970, p. 26.

85
Joao Ferguson, Inglez de nação, vindo de Londres, participa ao publico que
tem para vender huma porção de pianos fortes, e também uma porção de
rabecas, e com as suas competentes encordoações, e um bom orgão para
qualquer Igreja e he mestre de afinar pianos e orgãos pelo preço mais
moderado; e qualquer pessoa que o precize pode procurar na rua de S. José,
No. 9 ou 10. 50

Na rua dos Pescadores No. 4, ha para vender pianos fortes de diversas


qualidades e preços, chegados proximamente de Londres, e do melho
author daquella Cidade, J. Broadwood Sons. 51

Quinta feira 4 de Setembro se ha de vender em leilão publico Guilherme


Lennox em caza de May Lukin No. 49 rua do Ouvidor, as 10 horas manhã de
hum grande sortimento de trastes Francezes muito ricos e de ultimo
gosto, - camas, soffas, commodas, cadeiras, espelhos, pianos, mezas de
costura para senhoras, vidros lapidados, secretarias, e outros diversos
trastes.52

Todavia, a comprovada proliferação dos pianofortes no Rio de Janeiro não retirou do

comércio e do meio musical o antigo cravo no início do século XIX. No ano de 1819, a

Gazeta do Rio de Janeiro exibia dois anúncios de venda que refletiam, claramente, a

coexistência dos cravos e pianos na cidade. Enquanto era oferecido no mês de abril um

derivado do piano de mesa, criado na Alemanha e chamado orphica53, era vendido em julho,

um cravo português de Mathias Bostem.

Acha-se para vender na rua das Violas No. 19, hum piano forte novo e
moderno, tambem huma orphica, instrumento de nova invenção. 54

Vende-se hum cravo de penas de Mathias Boltheim [sic], na rua da


Alfandega No. 14, casa de leilão. 55

50
Gazeta do Rio de Janeiro, 01/02/1817, N. 10, Avisos p. 6 (grifo nosso).
51
Idem, 22/03/1817, N. 24, Avisos p. 4 (grifo nosso).
52
Idem, 27/08/1817, N. 69, Avisos p. 4 (grifo nosso).
53
Ver Capítulo 2, item 2.2, p. 51.
54
Gazeta do Rio de Janeiro, 28/04/1819, N. 34, Avisos p. 4 (grifo nosso).
55
Idem, 28/07/1819, N. 60, Avisos p. 4 (grifo nosso).

86
Já na década de 20, um número maior de pianofortes foi importado, vindos agora de

mais uma outra região da Europa. Além da Inglaterra, França e Portugal, a Alemanha passou

a exportar pianos para o Rio de Janeiro, ao que tudo indica a partir de 1824. Curiosamente,

foram contabilizados mais pianofortes alemães do que os vindos das outras regiões européias

na seção intitulada Importações dos jornais pesquisados Folha Mercantil (FM), Diario

Mercantil (DM) e Jornal do Commercio (JM), a qual registrava a carga existente nos navios

aportados na cidade (Tab. 7). No entanto, parece que esta documentação não corresponde à

evidenciada através dos anúncios de vendas. No ano de 1827, por exemplo, pode-se encontrar

pianos recém-chegados de Londres que sequer são citados pelas Importações 56:

Chegarão proximamente de Londres, superiores pianos fortes, de


authores conhecidos, de boa madeira bem trabalhada, e de muito bellas
vozes, os quaes vendem-se por preços razoaveis: quem precisar póde dirigir-
se a rua d'Ouvidor n. 77. 57

Tab. 7 – Registros de importações declarados nos jornais no período de 1808 - 1830

Ano Origem Quantidade


1808 / 1823 - -
França 1 piano forte
1824
Alemanha 1 piano
1825 Inglaterra 2 pianos fortes
América/Bahia[?] * 1 piano forte
1826
Alemanha 1 forte piano
França 3 pianos fortes
1827 Holanda [?] * 1 piano forte
Alemanha 6 pianos fortes
2 forte pianos;
3 pianos pequenos;
Alemanha
1828 2 pianos fortes
6 cx. 1 piano; 1 piano envernizado
Inglaterra 8 pianos fortes
1829 / 1830 - -
*
Estas regiões não possuem grande tradição construtiva de pianofortes assim como as outras mencionadas, por isso elas não
estão sendo consideradas. Além disso, não se pode afirmar que os pianos vindos destes lugares foram realmente ali fabricados.

56
Ver também Anexo 4 e Anexo 5.
57
Diario Mercantil, 21/05/1827, Vol. 8o, N. 114, Vendas p. 2 (grifo nosso).

87
Imagina-se que esta disparidade se deu pela razão de que nem todo navio que chegava

ao porto tinha sua carga descrita por este meio de comunicação. Assim, sendo coincidência ou

não, houve mais registros de instrumentos alemães do que de outras escolas.

Não só uma nova região exportadora passou a ser mencionada nos jornais da época,

mas também novos nomes de importantes construtores europeus foram sendo citados. Em

1820, na Gazeta do Rio de Janeiro, anunciava-se pela primeira vez um piano de Stodart,

enquanto que em 1828, no Jornal do Commercio, ofereciam-se pianos de Clementi.

John Ferguson na rua da Quitanda No. 93, anuncia huma nova partida de
piannos chegados de proximo do melhor author, que se intitula G.me Stodart,
approvado por todos os melhores mestres em musica; e o mesmo promete ter
sempre bom surtimento de piannos, e mais instrumentos. 58

Leilão que se faz hoje Sexta feira na rua do Ouvidor n. 63 de pianos fortes,
e fortes pianos de vários auctores assim como de Broadwood, Clementi, e
outros nomes conhecidos; também hão de vender vários trastes, a saber:
cadeiras, mezas, escrevaninhas &c. o leilão terá principio as 11 horas meia.59

Além disso, o Jornal do Commercio e ainda o Diario Mercantil exibiam anúncios que

retratavam a extensão crescente do teclado dos pianofortes, que aumentavam de seis para seis

oitavas e meia. Mostravam também, a introdução de um novo formato de piano para a época

– o vertical –, e um curioso tipo de instrumento, o piano de harmônica60:

Vende-se na primeira mão hum piano forte de 6 oitavas, vozes muito


aflautadas e iguaes e o exterior o mais elegante possivel com duas gavetas, e
de afinação muito segura, pode-se ve-lo e ajustar o preço na rua Direita n.
153. 61

58
Gazeta do Rio de Janeiro, 08/01/1820, N. 3, Avisos p. 4 (grifo nosso).
59
Jornal do Commercio, 29/02/1828, N. 124, Vol. II, Leilões p. 4 (grifo nosso).
60
Não se conseguiu determinar ao certo o que seria um piano de harmônica. Há possibilidades de ser um
harmônio, mas por falta de maiores informações, não se chegou a nenhuma conclusão plausível.
61
Diario Mercantil, 17/08/1825, Vol. 4°, N. 14, Vendas p. 1 (grifo nosso).

88
Quem quizer comprar hum bom forte-pianno com seis oitavas e meia de
teclado, e seis differentes registros, queira ter a bondade dirigir-se à rua do
Lavradio n. 92, seu preço será por metade do que se estão vendendo
presentemente. 62
Na rua do Ouvidor n. 19, vende-se hum riquissimo pianno forte, novo,
muito bem construido, acrescentado para cima conforme os modernos, e
de muito boas vozes. 63

Na rua da Quitanda n. 201, acha-se para vender hum sortimento de pianos


fortes de harmonica, e de parede de seis, e seis e meia oitava,
ultimamente chegados da Inglaterra, estes instrumentos são do mais
moderno gosto, e destingão-se por huma bellissima voz. 64

Assim, com o visível crescimento da oferta de pianos que apesar de caros, iam sendo

aos poucos vendidos a pessoas de todas as classes sociais65, surgia também um mercado

paralelo de profissionais voltados para o restauro, reforma, afinação e construção dos

instrumentos. Eram criadas, então, lojas de música – nas quais se encontravam desde pianos e

acessórios musicais até trabalhadores para o conserto de instrumentos – e fábrica de pianos –

onde se encarregavam da compra e venda dos mesmos. Os anúncios destacados abaixo

mostram bem este novo mercado que se delineava no Rio de Janeiro a partir de então:

Carlos Crockatt, annuncia ao respeitável Publico que recebeo proximamente


em sua loja de muzica, rua da Quitanda n. 111, hum grande sortimento de
cordas da Itália para rebeca, frautas de buxo e de ébano com bomba, de
huma até nove chaves, clarinetas de 5 a 13 ditas, requintas, cornetas de
chaves, trompas e todos os mais instrumentos de sopro, tudo de superior
qualidade. Também recebeo ricos pianos do insigne author W. Studart, e
hum elegante e bem ornamentado órgão, próprio para qualquer Igreja, por
ser obra em tudo perfeitamente acabada, e todos os gêneros acima vendem-
se por preços mui módicos. Na mesma loja de instrumentos se acha um
homem que faz e concerta órgãos. 66

Na Fabrica de Pianos na rua da Cadeia n. 142 há para vender por preço


commodo hum órgão novo, e em muito bom estado, próprio para o serviço

62
Jornal do Commercio, 10/12/1827, N. 58 - Vol. 1, Vendas p. 3 (grifo nosso).
63
Diario Mercantil, 19/08/1825, Vol. 4°, N.16, Vendas p. 2 (grifo nosso). A expressão acrescentado para cima
conforme os modernos, certamente indica o formato vertical.
64
Jornal do Commercio, 11/04/1829, Vol. VII, N. 448, Vendas p. 2 (grifo nosso).
65
REZENDE, 1970, p. 26.
66
Jornal do Commercio, 13/12/1827, Vol. 1, N. 61, Vendas p. 3 (grifo nosso).

89
Divino de qualquer capella, ou igreja. Também há para vender huma harpa,
e differentes Pianos; quem os pertender dirija-se à mesma casa. 67
Chegou proximamente á esta Corte hum Artista de muzica, que faz,
conserta, e afina orgão, e pianos com toda a perfeição; as pessoas que se
quiserem utilisardo seu prestimo; podem dirigir-se a rua do Senhor dos
Passos casa n. 104, afiançando, que serão bem servidos, e por preço
commodo. 68

J. Christiano, que tem annunciado ao Publico, offerecendo-se para afinar, e


concertar todas as qualidades de Pianos fortes, e arranjar as suas
maquinas quando estiverem desconcertadas, participa aos Srs. Amadores
deste Instrumento, que elletem descuberto a qualidade de forros para os
martellos, que ferem as cordas, ainda não visto no Brasil, que fazem melhor
armonia, e hum som mais agradavel do que o vulgar de todos os Pianos
ordinarios; as pessoas que se quizerem utilizar, e servir desta invenção,
podem procurar na rua detraz do Hospicio n. 120, onde tambem a
encarrega de vender, ou comprar todos os Pianos que lhe
encomendarem. 69

Não se pode deixar de mencionar, que a família real era, provavelmente, a mais

importante compradora de pianofortes, os quais eram utilizados não só para o deleite da corte,

mas, sobretudo, em aulas de música para as altezas reais. Em 1826, foi adquirido por 400 mil

réis, adicionado de mais 2 mil 560 réis para o transporte, um pianoforte para uso pessoal de

D. Maria da Glória, sendo este conferido pelo compositor e tecladista português Marcos

Antonio Portugal (1762-1830)70. O pagamento de tal compra foi todo documentado, como

pode ser visto no ofício redigido pelo tesoureiro da Casa Imperial, Plácido Pereira de Abreu71:

67
Jornal do Commercio, 19/12/1827, Vol. 1, N. 66, Vendas p. 4 (grifo nosso).
68
Idem, 22/05/1828, Vol. III, N. 190, Noticias Particulares p. 3 (grifo nosso).
69
Idem, 18/11/1828, Vol. V, N. 336, Noticias Particulares p. 3 (grifo nosso).
70
Chegou ao Rio de Janeiro em 1811 passando a dividir com o padre José Maurício as atribuições de mestre de
capela da Capela Real. Também lecionou piano para as altezas reais.
71
Ofício do Plácido Antonio Pereira de Abreu, Tesoureiro da Casa Imperial, a José Feliciano Fernandes
Pinheiro, Ministro dos Negócios do Império sobre compra de piano para D. Maria da Glória. AN, Fundo /
Coleção: Casa Real e Imperial – Mordomia Mor; Cód. Fundo: Ø0; Seção de Guarda: SDE; Caixa 4; Pacote 5,
Doc. 35, Ano de 1826, p. 1. Ver o documento completo em Anexo 2, item 2.2.

90
Fig. 53 – Trecho do Ofício sobre a compra de piano para D. Maria da Glória
(Ofício de Plácido Antonio Pereira de Abreu..., AN, Ano de 1826)

Já no ano seguinte, um novo pianoforte foi comprado por 586 mil réis – sendo 6 mil

referentes ao transporte – especificamente para as aulas de música da família real. Também

foi feito um ofício, pelo Bispo de Anemuria, para que o tesouro público se encarregasse,

posteriormente, do pagamento do bem adquirido72:

72
Ofício do Bispo de Anemuria Coadjuntos do Capelão-Mor encaminhando Relação de objetos comprados para
posterior pagamento pelo Tesouro Público, e utilizados na educação de S. A. Imperiais. AN, Fundo / Coleção:
Casa Real e Imperial – Mordomia Mor; Cód. Fundo: Ø0; Seção de Guarda: SDE; Caixa 4; Pacote 6, Doc. 60,
Ano de 1827, p. 2. Ver o documentação completa em Anexo 2, item 2.3.

91
Fig. 54 – Trecho do Ofício sobre a compra de piano para família real
(Ofício do Bispo de Anemuria..., AN, Ano de 1827)

Ambos os documentos, como se pode constatar, não oferecem informações a respeito

da procedência ou escola construtiva dos instrumentos comprados para a família real. Sabe-se,

no entanto, através dos anúncios de jornais já expostos e dos registros de importações também

encontrados nos jornais, que eles poderiam ser de origem portuguesa, inglesa, francesa ou

alemã. É bem provável, entretanto, que tais instrumentos tenham sido importados da

Inglaterra, França ou Alemanha e não de Portugal, pois estas regiões desenvolveram muito

mais inovações na fabricação de pianos do que a metrópole portuguesa73 e, certamente, todos

os produtos que fossem adquiridos para o uso na corte deveriam ser dos mais modernos e

sofisticados para a época.

Além disso, um pianoforte que parece ter pertencido à D. Leopoldina, construído por

volta dos anos de 1820, e sobrevivente até os dias de hoje é um piano de mesa de origem

inglesa e fabricado por J. Broadwood. Localizado atualmente no Museu Imperial e vindo

transferido diretamente do Paço Imperial do Rio de Janeiro, o instrumento está em bom estado

e contém ainda todas as partes originais como teclado de marfim e ébano, martelos e cordas.

73
Como pode ser visto detalhadamente ao longo do Capítulo 2.

92
Sua caixa possui decoração com a coroa imperial e a extensão do teclado é de 6 oitavas (Fá-1-

Fá6) e 1 pedal, provavelmente de sustentação (Fig. 55).

Fig. 55 – Pianoforte de mesa Broadwood – início séc. XIX


(Museu Imperial)

Um outro instrumento sobrevivente do início do início do século XIX, porém não

pertencente à família real, merece ser citado ainda que provavelmente não incluído no período

desta pesquisa. É também um exemplar em formato de mesa de origem inglesa, da firma

Collard & Collard, que como visto no Capítulo 2, item 2.3 recebeu este nome após a morte de

seu fundador, Muzio Clementi, a partir de 1832. Encontrado na reserva técnica do Museu da

Cidade, o instrumento não está bem conservado tendo muitos problemas em seu teclado, um

dos pés quebrados e não apresentando nenhum pedal. Todos os seus elementos são

aparentemente originais e a extensão de seu teclado é de 6 oitavas (Fá-1- Fá6) (Fig. 56).

Fig. 56 – Pianoforte de mesa Collard & Collard – início séc. XIX


(Secretaria Municipal das Culturas - Museu da Cidade)

93
Um evento relevante a ser destacado é quanto à exportação74 de pianos do Rio de

Janeiro para a região sul do Brasil. Nos anos de 1828 e 1829 o Jornal do Commercio registrou

a saída de dois navios do porto da cidade para o Rio Grande e para Porto Alegre, contendo

cada um deles, dois destes instrumentos.

Sumaca Catharina para o Rio Grande, Mestre Antonio Joaquim Pinto


[...]
2 caixões com pianos
[...] 75

[saída em 23 de Dezembro de 1828]


Bergantim Novo Triumpho para Porto Alegre, Mestre Jose Francisco Seta
[...]
2 sofas e 2 pianos
[...] 76

A exportação de produtos a partir do Rio de Janeiro, contudo, não era um fato

incomum. Visto que a cidade era um centro comercial por excelência, era usual importar

artigos para posteriormente exportá-los.

As suas importações foram sempre muito maiores do que as exportações de


seus produtos, pois as mercadorias adquiridas não se destinavam apenas ao
consumo local, senão também a serem negociadas e revendidas não só em
Minas Gerais, mas ainda no Rio Grande do Sul, São Paulo e Rio da Prata. 77

Desta maneira, os pianos enviados para o Rio Grande do Sul poderiam ter sido

importados das principais regiões de fabricação dos instrumentos na Europa desta época –

Alemanha, Inglaterra e França – ou também de Portugal. Não se pode descartar, porém, a

possibilidade de os pianos ter sido feitos na própria cidade do Rio de Janeiro, já que nesta

época fábricas e construtores se estabeleciam neste local.

74
O sentido do termo exportação na época em estudo é o de venda ou saída de gêneros exportados tanto para
outra cidade ou estado, quanto para outro país.
75
Jornal do Commercio, 21/08/1828, Vol. IV, N. 262, Exportações p. 2 (grifo nosso).
76
Idem, 16/01/1829, Vol. VI, N. 380, Exportações p. 2 (grifo nosso).
77
SOUZA, p. 88.

94
A consolidação do pianoforte na cidade do Rio de Janeiro como principal instrumento

de teclado, sobretudo a partir dos anos de 1820, trouxe, obviamente, reflexos para a vida do

mais importante compositor e tecladista da cidade, o padre José Maurício Nunes Garcia. Em

1821, José Maurício escreveu um Compêndio de Música e Methodo de Pianoforte, o qual é a

primeira obra brasileira escrita para teclado de que se tem notícia78. Apesar da indicação no

título referir-se especificamente ao piano, o conteúdo de alguns trechos do Methodo sugere

uma possível utilização do cravo para a execução de algumas peças 79. Sendo claramente um

músico da transição do cravo para o pianoforte no Rio de Janeiro, é razoável, deste modo,

acreditar que José Maurício não apenas tinha em mente o antigo cravo, mas ainda continuava

a fazer uso do instrumento ao longo da segunda década do século XIX.

Além disso, constata-se que, entre os anos de 1827 e 1830, o cravo ainda era vendido

e leiloado. Sua utilização, contudo, foi adquirindo nova função dentro das residências. O

antigo instrumento passava a servir apenas como meio de iniciação à prática do piano.

Na rua dos Barbonios n. 61, a chegar aos Arcos, vende-se hum cravo
proprio para qualquer Sra. que queira aprender a tocar; assim como
tambem humas pessas de chitas de 37 covados, que se dão a 3$200 e huma
porção de fitas de relogios a 1$920 e 1$440 a duzia, huma porção de bordões
de guitarra, que se vendem por 240 a duzia, e tambem ha pano de linho em
pessa, ou em varas. 80

Quem quizer comprar hum cravo em muito bom estado, e se dá por preço
commodo; póde procurar na rua dos Barbonios n. 61 ao pé dos Arcos. 81

Quem quizer comprar hum cravo pequeno, de muito boas vozes, e bom
para aprender a tocar piano; póde hir vêlo na casa n. 47, na rua dos
Quarteis de Bragança, que se dará em conta. 82

78
FAGERLANDE, Marcelo. O Método de Pianoforte do Padre José Maurício Nunes Garcia, Rio de
Janeiro: Relume Dumará, 1996, p. 87.
79
Idem, p. 87.
80
Diario Mercantil do Rio de Janeiro, 27/03/1827, Vol. 8°, N. 69, Vendas p. 4 (grifo nosso).
81
Idem, 23/07/1827, Vol. 9°, N. 19, Vendas p. 2 (grifo nosso).
82
Idem, 11/08/1827, Vol. 9°, N. 35, Vendas p. 3 (grifo nosso).

95
Braga Rivarola e Comp. fazem leilão hoje 8 do corrente, em sua casa na rua
d’Ouvidor, n. 188, de huma porção de fazenda avariada, chita, panos, gangas
amarellas, e hum grande sortimento de flores de penas de muito bom gosto.
Também se venderão dois cavallos, que servem para cavallaria muito bons,
pianos, cravos, e outros muitos artigos. Principiará as 10 horas e meia. 83

Um decreto régio de 1829, o qual mandava “cumprir a nova pauta geral das avaliações
84
para o despacho dos generos e mercadorias pela Alfandega desta Côrte” , também

evidenciava a presença do cravo no Rio de Janeiro desta época. Juntamente com os do

pianoforte e fortepiano, eram fixados preços para cravos grandes e cravos pequenos ou

espinetas, o que indica que estes instrumentos ainda eram produtos importados (Tab. 8).

Tab. 8 – Preços de Cravos e Pianos fixados pelo decreto régio de 1829


(COLEÇÃO DAS LEIS DO BRASIL DE 1829)

Cravos grandes para tocar (um) 80$000


Cravos pequenos ou espinhetas (um) 30$000
Fortes pianos (um) 600$000
Pianos fortes (um) 400$000

A presença tardia do cravo no Rio de Janeiro constatada através de tantas fontes

documentais não levou, contudo, à preservação de exemplares do antigo instrumento, vindos

comprovadamente no período estudado, até os dias atuais. Uma exceção novamente

merecedora de destaque, ainda que não seja referente a um cravo, é a espineta do construtor

português Mathias Bostem, datada de 1785. Seu valor histórico deve-se mormente ao fato de

ser o único instrumento de teclado e corda pinçada (mecanismo idêntico ao do cravo) deste

construtor preservado até a atualidade, sem ter sofrido qualquer tipo de transformação em sua

mecânica ao longo do tempo.

Durante toda a pesquisa documental desenvolvida não se encontrou nenhum cravo

sobrevivente desta época em estudo, mas foi localizado um instrumento que apesar de não se

83
Jornal do Commercio, 08/10/1830, Vol. 1, N. 47, Leilões p. 2 (grifo nosso).
84
COLEÇÃO DAS LEIS DO BRASIL DE 1829. Rio de Janeiro: Typografia Nacional, 1877, p. 58. Ver
documento integral em Anexo 6.

96
saber ao certo a data de sua chegada ao Rio de Janeiro, merece ser registrado. Tal instrumento

é um cravo transformado, isto é, um cravo cuja mecânica de saltarelos foi totalmente

substituída por martelos85, cuja construção é datada do ano de 1769, por Joze Cambiazo86

(Fig. 57).

Fig. 57 – Nome do construtor e data do


Cravo transformado
(Coleção particular no Rio de Janeiro)

O proprietário do instrumento pode ter sido o Sr. Paulo Perestrelo da Câmara, cidadão

português, que deixou Portugal no início do séc. XIX para se instalar no Rio de Janeiro,

porém não se sabe nada acerca do percurso do instrumento, nem sobre o local onde se fez a

transformação87. Atualmente encontra-se em uma residência particular, mas, infelizmente, seu

estado de conservação está muito ruim. Foram retiradas todas as suas cordas (que ainda eram

originais), seu teclado e toda a parte mecânica. Apenas as cordas foram disponibilizadas para

uma breve observação, pois parece que o teclado e os martelos estão guardados em um outro

local.

Este cravo transformado é um exemplar característico português. O formato de sua

caixa é semelhante ao italiano, a decoração externa é em estilo chinoiserie na cor vermelho

escuro, com detalhes em verde escuro no interior da tampa, e os pés são em forma de coração

invertido (Fig. 58, 59 e 60).

85
Como visto no Capítulo 2, item 2.1, os cravos transformados eram muito comuns na metrópole portuguesa.
86
Também não foi encontrada nenhuma informação a respeito deste construtor.
87
Informações gentilmente cedidas pelo musicólogo Gerhard Doderer em maio de 2005.

97
Fig. 58 – Cravo transformado Joze Cambiazo – 1769
(Coleção particular no Rio de Janeiro)

Fig. 60 – Detalhe da parte externa da tampa –


Cravo transformado Joze Cambiazo – 1769
(Coleção particular no Rio de Janeiro)

Fig. 59 – Detalhe da parte interna da tampa –


Cravo transformado Joze Cambiazo – 1769
(Coleção particular no Rio de Janeiro)

Assim, mesmo sem a preservação de nenhum cravo existente no Rio de Janeiro,

constata-se que sua presença estendeu-se até pelo menos o ano de 1830, data do último

registro escrito sobre o instrumento dentro do período pesquisado. É preciso comentar

também, que ainda que a significativa presença do piano na cidade, desencadeando,

consequentemente, o processo de decadência do instrumento, não fez com que o cravo fosse

de todo esquecido.

Em 1830, faleceu José Maurício Nunes Garcia, o típico músico carioca desta

transição. Tanto a lembrança de sua figura como padre compositor quanto a sua imagem de

exímio improvisador ao cravo e ao pianoforte perdurou ao longo dos anos. Este retrato,

síntese da coexistência entre o cravo e o pianoforte, ainda pôde ser desenhado, já no início do

século XX, pelo artista Henrique Bernardelli (1858-1936). Em sua obra intitulada D. João VI

98
ouvindo o padre José Maurício88, o pintor esboçou o padre músico tocando para a corte em

um instrumento de teclado que pode ser identificado como um cravo, um cravo transformado

ou pianoforte do século XVIII.

Fig. 61 – Esboço em aquarela de Henrique Bernardelli – s/d Fig. 62 – Tela a óleo de Henrique Bernardelli – s/d
(Museu Histórico e Democrático - MHD) (Museu Histórico e Nacional - MHN)

88
Na verdade, existem dois trabalhos de Bernardelli com este tema. Tudo indica que a aquarela localizada no
MHD seja um estudo para o quadro a óleo pertencente ao MHN.

99
3.2 – A PROBLEMÁTICA DA TERMINOLOGIA

Ao longo de toda a pesquisa documental foram encontrados termos distintos para a

denominação do cravo e do pianoforte no Rio de Janeiro. No entanto, se a nítida diferenciação

entre ambos os instrumentos de teclado no período em estudo é perceptível, o mesmo não se

pode constatar em relação à terminologia específica para a qualificação do piano. Assim como

ocorreu na Europa durante os séculos XVIII e XIX, foi utilizada nesta cidade uma grande

variedade de nomes para se referir ao piano, porém de uma maneira ainda mais confusa.

3.2.1 – CRAVO

As expressões utilizadas para mencionar o cravo nos registros dos séculos XVIII e

XIX no Rio de Janeiro eram cravo de tocar e cravo de penas. Em documentos de cunho

comercial, o instrumento musical de teclado precisava ser diferenciado dos outros gêneros

existentes de mesmo nome, como os cravos da índia e os cravos de ferragem.

Exportação de Lisboa para o Rio de Janeiro


[...]
Produções da Ásia
[...]
90 – Arráteis – Cravo da Índia, a 2$808 – 252$720
[...]
Metais
[...]
1.024 – Milheiros – Cravos dourados de $800 a 1$700 – 984$000
[...]
4 – Milheiros – Cravo de Tanolino, a 1$000 – 4$000 [...]86

Exportação do Porto para o Rio de Janeiro


[...]
Metais
[...]

86
BGC – 1796. Biblioteca Nacional: Seção de Manuscritos, 18, 4, 3, fl. 1, 14 e 18.

100
(a) outras ferragens miudas
[...]
621 – Quintais – Cravo de furar
1.628 – – Espingardas e pistolas – 8:126$400 [...]87

Exportação para o Rio de Janeiro do Porto


[...]
Metais
[...]
Ferragens miúdas (a)
[...]
138 – Quintais – Cravo de ferrar – 844$000 [...]88

Deste modo, compreende-se a necessidade de uma melhor caracterização na

nomenclatura do instrumento, não o chamando simplesmente de cravo e adicionando,

portanto, os complementos de tocar e de penas. Obviamente, o termo simplificado cravo era

também usado, sobretudo nos anúncios em jornais demonstrados no item 3.1, mas em um

contexto que não gera dúvidas de seu significado.

Além disso, a definição cravo de penas ressalta o tipo do mecanismo empregado no

instrumento, referindo-se então à ação de pinçar obtida através do movimento do plectro

(sinônimo de pena) na corda. Muito conhecida tanto no Rio de Janeiro quanto em Portugal, tal

classificação pode também ajudar na distinção da ação de martelos, utilizada no pianoforte.

Ainda que não encontrado nenhum registro nos documentos pesquisados, a nomenclatura

cravo de martelos deveria ser conhecida graças à popularidade do termo na metrópole

portuguesa. Assim, devido à significativa presença do piano na cidade carioca durante o início

do século XIX, talvez tenha sido necessária a diferenciação entre os dois ‘tipos’ existentes de

cravo: o de penas e o de martelos.

Eventualmente, o uso dos adjetivos grande, pequeno ou mais pequeno junto ao termo

cravo também era encontrado, configurando uma provável qualificação da extensão ou

87
BGC – 1801. Biblioteca Nacional: Seção de Manuscritos, 11, 4, 022, fls. 10 e 12.
88
BGC – 1807, fls. 9 e 12, citado em SOUZA, José Antônio Soares de. O Rio de Janeiro nas balanças de
comércio de Portugal, de 1796 a 1807. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro,
vol. 342, janeiro-março 1984, p. 223.

101
tamanho e tipo do instrumento. Como explanado anteriormente no item 3.1, os cravos

pequenos ou mais pequenos eram frequentemente confundidos com as espinetas.

Observa-se, portanto, que ao contrário do que ocorreu durante longo período na

Europa89, a nomenclatura do cravo no Rio de Janeiro parece não ter se confundido em

momento algum com a do pianoforte.

3.2.2 – PIANOFORTE

Baseando-se nas evidências documentais encontradas, sobretudo nos jornais da época,

verifica-se que a variada nomenclatura indiscriminadamente empregada para o piano no

período em estudo esteve sempre relacionada à possibilidade dinâmica de se produzir o piano

e o forte. Todavia, a falta de uma terminologia precisa torna complexa a definição dos tipos

de instrumentos mencionados nos registros pesquisados e, consequentemente, leva a diversas

possibilidades de interpretações.

Desde 1798, data da primeira ocorrência do nome pianoforte, até 1830, último ano

pesquisado, foram quantificadas três possibilidades gerais de nomes distintos – piano forte,

forte piano e piano:

Quem quizer comprar hum excellente Piano forte, de muito bom Author;
falle con Caetano Pirro na rua de S. Pedro, n. 39. 90

Quem quizer comprar hum forte piano e hum reallejo dos melhores
authores, procure José Antonio Costa, com loja de varejo na rua do Ouvidor,
N. 20. 91

89
Ver Cap. 1, item 1. 2, p. 32 e 33.
90
Gazeta do Rio de Janeiro, 01/01/1812, N. 1, Avisos p. 4 (grifo nosso).
91
Idem, 13/11/1816, N. 91, Avisos p. 4 (grifo nosso).

102
Mr. Imbert faz saber ao Publico, que elle acaba de receber hum grande
sortimento de todas as qualidades de moveis, cristaes, porcelanas, serviços
de meza; e hum piano, que vende por preço commodo. 92

No entanto, ao observar outros anúncios de jornais, pode-se constatar que

provavelmente estes três termos utilizados indicavam alguma diferenciação específica para o

instrumento:

J. Ferguson na rua da Quitanda No. 93, tem para vender huma porção de
pianos fortes, e fortes pianos, chegados recentemente, de diversos
authores.93

Na rua do Ouvidor n. 79, entre a rua da Quitanda, e o beco das Cancellas, há


para vender fortes pianos, e pianos fortes muito ricos, de jacarandá, e de
mogno, e na mesma casa se continua a vender trastes de mogno de todas as
qualidades, chegado ultimamente. 94

Carlos Cannell faz leilão hoje Sabbado 21 do corrente em sua casa na rua
detraz do Hospicio n. 3, de huma porção de lampiões, louça e vidros, e huma
caixa de vinho tudo pertencente a carga do Bergantim Tennis, que tudo será
vendido infallivelmente junto com algumas fazendas com varia por conta do
Seguro; e hum grande surtimento de ferragens, diversos moveis, 2 pianos
(hum piano forte, e hum forte piano) e 50 seiras de figos, 120 caixas de
massas, e 100 caixas de vinho da Madeira, que tudo será vendido
infallivelmente. Principiará as 10 horas e meia. 95

Na rua da Cadeia, n. 142 na Fabrica de piannos de Mr. Chretien, ha hum


excellente forte pianno novo, 2 piannos fortes e 1 orgão para se venderem
por preço commodo. 96

Em um primeiro momento, a partir dos exemplos acima demonstrados, pode-se

especular duas possíveis interpretações da nomenclatura usada, sendo elas a escola

construtiva do instrumento ou procedência, e o tipo ou formato do instrumento. Entretanto,

nota-se que a primeira suposição deve ser desconsiderada analisando os trechos abaixo:

92
Gazeta do Rio de Janeiro, 27/05/1820, N. 43, Avisos p. 4 (grifo nosso).
93
Idem, 17/11/1819, N. 92, Avisos p. 4 (grifo nosso).
94
Jornal do Commercio, 19/01/1828, N. 90, Vol. II, Vendas p. 3 (grifo nosso).
95
Idem, 21/06/1828, N. 213, Vol. III, Leilões p. 2 (grifo nosso).
96
Idem, 23/08/1828, N. 264, Vol. IV, Vendas p. 2 (grifo nosso).

103
Quem quizer comprar alguns Pianos Fortes, e grandes Pianos, chegados
proximamente de Londres, e do melhor author daquela Capital, pode
procurar na rua dos Pescadores No. 4. 97

John Ferguson avisa ao publico a venda de huma nova partida de pianos


fortes, e fortes pianos do melhor author, chegados novamente de Londres,
de todas as qualidades, assim como de todos os instrumentos sortidos, na
caza No. 13, na rua dos Latoeiros, e na rua da Quitanda No. 93. 98

Na rua d'Ouvidor n. 79, entre a rua da Quitanda, e o beco das Cancellas ha


para vender huma porção de trastes de mogno, muito ricos, e de gosto muito
moderno, chegados ultimamente de Hamburgo, constando de secretarias de
diversos feitios, ..., pianos fortes, e fortes pianos de jacaranda muito ricos,
... &c. 99

Armazem de mobília, rua d’Alfandega n. 47, sortido de novo de huma


grande variedade de trastes de mogno de modelos elegantes e modernos;
bem como secretarias, mezas para gabinete e escritório, guarda roupas de
Sra; espelhos, e toucadores de diversos tamanhos, mezas, de jogo, ditas para
o meio de salas, cadeiras e sofás com assento de palhinha, ditas cobertas de
barrigana, ditas de clina de cavallo, forte pianos e pianos fortes Ingleses e
da Alemanha, guitarras francesas, soberbos lustres para salas e Igrejas,
gaiolas para pássaros, lindos carrinhos e sociáveis de criança, &c. o que tudo
se vende por preços modicos. 100

Na rua Direita No. 28, defronte do Banco vende-se hum grande sortimento
de fazendas Francezas, como pianos, violas, musica, moveis, quadros,
espelhos, vidros, porcelana, louça, perfumerias, relogios, fazendas de seda e
de linho, panos, cambraia, chales, franjas, chapeos de palha, flores, plumas,
vestidos e outros varios objectos para senhoras. 101

Gadet e Fallason, morador na rua Direita No. 55, fazem saber aos curiosos
das artes, que receberão modernamente de Paris hum sortimento de violas
de differentes preços, com cordas para viola, rebeca, e forte piano, assim
como todas as peças de musica nova dos melhores Mestres Italianos,
Allemães e Francezes; e igualmente papel pautado para escrever musica,
tudo vindo das fabricas mais famosas daquella Capital. 102

Assim, nota-se que os mesmos termos são aplicados para instrumentos vindos de

regiões diferentes, o que realmente torna equivocada a relação da origem com o nome. Resta,

97
Gazeta do Rio de Janeiro, 09/02/1813, N. 11 Avisos p. 4 (grifo nosso).
98
Idem, 20/09/1820, N. 11, Avisos p. 4 (grifo nosso).
99
Diario Mercantil, 01/10/1827, N. 76, Vol. 9, Vendas p. 2/3 (grifo nosso).
100
Jornal do Commercio, 09/06/1829, N. ?, Vol. 8, Vendas p. 2 (grifo nosso).
101
Gazeta do Rio de Janeiro, 25/01/1817, N. 8, Avisos p. 4 (grifo nosso).
102
Idem, 21/10/1818, N. 84, Avisos p. 4 (grifo nosso).

104
portanto, a sugestão de que as várias nomenclaturas digam respeito ao formato da caixa do

instrumento. Analisando cautelosamente o contexto no qual os termos estão inseridos, pode-

se chegar a algum esclarecimento.

Quando encontrados em mesmo anúncio, grande piano103 e piano forte parecem

especificar, respectivamente, piano de cauda e piano de mesa. As expressões piano forte e

forte piano, por sua vez, também sugerem determinar entre si formatos diferentes, enquanto

que o abreviado termo piano pode englobar qualquer um dos tipos de instrumento. No

entanto, os dados extraídos dos documentos estudados são insuficientes para se determinar

uma precisa classificação dos termos piano forte, forte piano e piano.

A comparação dos preços dos instrumentos seria uma boa referência para se tentar

determinar o significado dos termos em questão. Entretanto, como estes preços observados

estão muito distantes no tempo, é razoável considerar que eles estejam sujeitos a variações

(inflação ou deflação), as quais não são possíveis de serem ponderadas na avaliação104, mas

seriam indispensáveis nas comparações de valor dos instrumentos.

Recorrendo, porém, ao único documento onde se encontra conjuntamente o valor

unitário dos instrumentos – o decreto régio de 1829 –, no qual um forte piano é avaliado em

600$000 e um piano forte, em 400$000, ainda assim não é possível tirar qualquer conclusão

segura, uma vez que esta diferença de preços não é capaz de indicar a diferença estrutural ou

mecânica do instrumento.

Além disso, de acordo com dicionários musicais e dicionários de língua portuguesa do

século XIX, localizados no Rio de Janeiro ainda hoje, o conceito de alguns destes termos

destacados não era nada esclarecedor. A mais antiga das obras, um dicionário musical datado

de 1842, definia como forte-piano:

103
Sinônimo de Grand piano, isto é, piano de cauda. Ver Capítulo 1, item 1. 2, p. 32.
104
Não existia índices de inflação para aquela época (http://www.ipeadata.gov.br).

105
[...] nome dado antigamente ao instrumento que pela sua propriedade de
modificar a intensidade dos sons do forte ao fraco, e ao contrario, tomava
este nome; hoje denomina-se simplesmente Piano. 105

Em uma outra entrada, a conceituação de piano-forte limita-se a descrever com mais

detalhes as características do instrumento e, como na anterior, a considerá-lo como sinônimo

de Piano:

[...] por abreviatura, chama-se hoje piano; instrumento de teclado de seis


oitavas e mais; he o cravo muito aperfeiçoado; seu uso acha-se geralmente
espalhado, e suas vantagens lhe tem grangeado a estima de que hoje goza;
reunindo em si os poderes da harmonia elle por si só póde apresentar todas
as partes de que ella se compõe e os seus effeitos. Facil em harmonisar e
desenvolver as melodias as mais complicadas, poderoso nos effeitos da
intensidade he sobre elle que se tem desenvolvido os maiores genios, os
grandes compositores que até ao presente tem escripto. 106

Já em 1873, um dicionário de língua portuguesa trazia em um mesmo verbete as três

denominações como sinônimas:

Piano, ou Piano-Forte, ou Forte-Piano, s.m. Instrumento de musica com


teclado, onde se póde reformar ou diminuir o som á vontade. - Cantar ao
piano. - Piano de cauda. - Uma das melhores fabricas de pianos é a de
Hertz. 107

E, em 1881, outro dicionário português seguia a mesma linha:

Piano, s.m. instrumento musical formado por uma grande caixa sonora, com
um systema especial de cordas e teclado, e que dá as notas por percussão:
Piano de concerto. Piano de estudo. [Tambem se chama piano forte e forte
piano.]|| Piano vertical, piano cujas cordas estão collocadas
verticalmente.||108

105
MACHADO, Rafael Coelho. Diccionario Musical. Rio de Janeiro: Typographia Franceza, 1842, p. 80 (grifo
nosso).
106
Ibid., p. 170 (grifo nosso).
107
Grande Diccionario Portuguez ou Thesouro da lingua portugueza pelo Dr. Fr. Domingos Vieira dos eremitas
calçados de Santo Agostinho. Ed. Porto, 1873, vol. 4, p. 530 (grifo nosso).
108
Diccionario Contemporaneo da Lingua Portugueza feito sobre um plano inteiramente novo. Lisboa: Imprensa
Nacional, 1881, p. 373 (grifo nosso).

106
Percebe-se, desta maneira, que ambos os termos piano, piano forte e forte piano

referem-se, provavelmente, tanto aos formatos de asa quanto aos retangulares, e inclusive aos

tipos verticais, sem uma exata convenção. Convém lembrar que estas obras de referência são

de um período posterior ao pesquisado, quando os pianos verticais já eram bastante

conhecidos. Assim, poderia se esperar uma definição mais clara quanto à terminologia, mas

ela manteve-se imprecisa.

Outras expressões de significado ambíguo também foram localizadas nos registros

pesquisados, como piano de uma frente, piano de duas frentes e piano de duas faces:

A rua Direita n. 25, chegarão agora proximamente de Londres Pianos de


muito superior qualidade, de huma e de duas frentes, do bom author
Broadwood ja bem conhecido neste Paiz, e tambem alguns de Stodart e
Clementi, moxos, copos, cordas separadas para os mesmos, relojos de todos
os tamanhos, alguns com tambor e triangulo com a maior parte das peças [...
ilegível], orgãos para Igrejas de [... ilegível]; freios, mallas, ..., cornetas de 7
chaves, frautas de todas as qualidades &c. e muito mais cousas miudas que
na mesma loja se verão. 109

Tinelli e Comp. Rua Direita n. 34 acabão de receber de Pariz hum


sortimento de instrumentos de sopro e muzica dos primeiros fabricantes,
muzica impressa de differentes authores, e differentes methodos, como de
pianos, de rebecas, de flautas &c. &c. &c., das ultimas edições do
conservatorio de Pariz, e tem recebido mais violões, dos melhores e tambem
tem recebido pianos ricos de duas faces do Fabricante Stodart. 110

De acordo com a nomenclatura convencional européia, as palavras face e frente

correspondem, respectivamente, aos termos italianos fascia e frontalino111 e indicam lado e

frente. Nomeando ainda as partes do formato das caixas dos instrumentos em questão – de asa
112
e retangular – de acordo com as Figuras 63 e 64, observa-se que as expressões utilizadas

109
Jornal do Commercio, 11/06/1828, N. 205, Vol. III, Vendas p. 4 (grifo nosso).
110
Idem, 23/04/1828, N. 166, Vol. III, Noticias Particulares p. 4 (grifo nosso).
111
Keyboard Instruments – flexibility of sound and Expression, Lousanne, 2002. Anais… Ed. Thomas Steiner.
German: Peter Lang, 2004, p. 313.
112
Exclui-se o formato vertical, pois se acredita que a dimensão da ‘altura’ não possa ser desconsiderada. Desta
forma, se no anúncio não se menciona esta importante característica – e o que para época era uma novidade,
sendo, portanto ressaltada – provavelmente não se trata deste tipo de instrumento e sim dos outros dois formatos
mais conhecidos – de cauda e de mesa.

107
nos trechos acima destacados podem dizer respeito exatamente aos lados retos da caixa dos

instrumentos:

Face dupla curva


(fascia a doppia curva)

Face longa [Frente]


(fascia lunga)

Face Face
Face curta
(fascia) (fascia)
(fascia corta)

Frente do teclado Frente do teclado


(frontalino del tasto) (frontalino del tasto)

Fig. 63 – Croqui piano de cauda Fig. 64 – Croqui piano de mesa

Sendo assim, um piano denominado de uma frente possivelmente indica um piano de

cauda, e um piano de duas frentes, um piano de mesa. Seguindo a mesma linha de raciocínio,

um piano de duas faces também deve significar um piano retangular, provavelmente por

conter duas faces iguais e ao contrário do piano em forma de asa, o qual possui lados

diferentes.

Algumas outras nomenclaturas foram também utilizadas para se referir aos dois tipos

de instrumentos – de cauda e de mesa –, porém com menos ambigüidade na conotação.

Podem ser identificados como referência ao primeiro tipo (de cauda) os termos grande piano

ou grande piano forte (como visto anteriormente, grand piano em forma de ‘asa’), piano

comprido (formato da caixa do instrumento), piano forte horizontal (a relação das cordas com

o teclado):

108
Leilão que faz Marcos Archer no dia Quinta feira 25 do corrente as 10 horas
da manhã na rua do Ouvidor No. 64, por conta de Alexandre Mo.Groutber,
de hum orgão grande de Igreja, com elegante frontespício, hum grande
piano forte, e hum piano forte e varios instrumentos de musica, que
infallivelmente se hão de vender pelo maior preço, a que chegarem. O dito
Alexandre Mo. Groutber avisa ao publico, que elle se mudou para a rua da
Alfandega No. 4. 113

Quem quizer comprar hum grande piano, poderá dirigir-se a rua da


Alfandega caza de leilão de J.J. Dodsworth. 114

Pianno comprido de seis oitavas e meia de huma qualidade muito superior;


a vender-se n rua do lado da [... ilegível]. 115

Diogo Wood faz saber, que se mudou da rua dos Barbonios para a rua
Direita N. 12, onde se achão para vender pianos fortes, de varias
qualidades perpendiculares e horizontais, arpas elegantes, e outros
instrumentos musicos, que chegarão de Inglaterra, pelo ultimo comboi. 116

Analogamente, o segundo tipo (de mesa) também pode ser denominado como piano

perpendicular (a relação das cordas com o teclado), piano de mesa, piano portatil e pequeno

piano ou manicorne117:

Na rua Direita n. 33, se vende hum magnifico piano perpendicular, de


author Inglez, quase novo, e por preço commodo. 118

Na rua das Viollas n. 41, ha pianos de mesa de muito bom gosto e vozes;
quem os quizer comprar pode dirigir-se ao n. acima. 119

Na rua d'Alfandega n. 81 tem para vender tres pianos portatis muito lindos,
chegados ultimamente de Hamburgo; quem quizer compra-los pode
examinalas a qualquer hora do dia. 120

113
Gazeta do Rio de Janeiro, 24/09/1817, N. 77, Avisos p. 4 (grifo nosso).
114
Diário Mercantil, 03/08/1825, N. 3, Vol. 4, Vendas p. 2 (grifo nosso).
115
Jornal do Commercio, 21/01/1830, N. 15, Vol. I, Vendas p. 2 (grifo nosso).
116
Gazeta do Rio de Janeiro, 19/11/1814, N. 93, Avisos p. 4 (grifo nosso).
117
Termo provavelmente originado das palavras portuguesas manicórdio ou monocórdio. Estas são sinônimas de
clavicórdio ou cravo, mas neste caso, a palavra manicorne deve estar se referindo ao formato do clavicórdio em
virtude de seu formato retangular, semelhante ao do piano de mesa, que é um instrumento portátil.
118
Jornal do Commercio, 14/08/1830, N. 3, Vol. I, Vendas p. 3 (grifo nosso).
119
Idem, 16/10/1828, N. 309, Vol. V, Vendas p. 3 (grifo nosso).
120
Idem, 21/10/1828, N. 313, Vol. V, Vendas p. 3 (grifo nosso).

109
Vende-se hum pequeno piano, ou manicorne, muito próprio para apprender
a tocar; quem o pertender procure na rua dos Ciganos n. 45 do meio dia por
diante. 121

Quanto ao formato vertical, apesar de se empregar muitos nomes para sua

caracterização, não há dúvidas quanto ao seu significado:

Quem quizer comprar hum forte piano de parede, muito rico, e muito
elegante, de muito boas vozes; dirija-se á rua da Quitanda n. 240, loja de
fazendas entre a rua das Viollas e a dos Pescadores, advertindo que não se dá
por menos de 700$000 réis. 122

Vende-se hum pianno forte de parede da primeira qualidade, na rua dos


Ourives n. 112, pegado a rua do Ouvidor. 123

Vende-se na rua d'Alfandega n. 38, hum rico forte pianno de muito boas
vozes, do feitio d'almario, o qual occupa pouco lugar em huma salla,
tambem espingardas de dois canos, pistolas fulminantes, e bolças de couro
para viagem. 124

J. J. Dodsworth faz leilão no primeiro andar da sua casa rua d'Alfandega n.


38, no dia Terça feira 2 do corrente, de huma grande porção de trastes
pertencentes a huma pessoa que se retira desta Corte, a saber: secretarias,
mezas de jogo, tremós, [...], hum piano de feitio de almario, [...] 125

Assim, após a consideração de todos os registros históricos aqui demonstrados,

verifica-se claramente que a terminologia do piano no Rio de Janeiro é extremamente diversa

e, devido à falta de uma maior especificação nos termos utilizados, configura-se também

imprecisa. Encontra-se esta ambigüidade ao longo das três décadas iniciais do século XIX e

ao que parece, como visto nos dicionários de meados e fins do mesmo século, ainda nas

últimas décadas os termos continuavam confusos.

121
Jornal do Commercio, 23/11/1830, N. 85, Vol. I, Vendas p. 2 (grifo nosso).
122
Idem, 12/06/1828, N. 206, Vol. III, Vendas p. 3 (grifo nosso).
123
Idem, 12/01/1829, N. 377, Vol. VI, Vendas p. 2 (grifo nosso).
124
Idem, 15/12/1828, N. 357, Vol. V, Vendas p. 2 (grifo nosso).
125
Idem, 01/09/1828, N. 309, Vol. V, Leilões p. 2 (grifo nosso).

110
Fica claro que a nomenclatura empregada para se referir ao piano indica

fundamentalmente sua capacidade dinâmica, mas se percebe também que em alguns casos ela

pode esclarecer sobre aspectos formais do instrumento. Deste modo, os formatos aqui

existentes na época – de cauda, de mesa e vertical – só eram facilmente identificados através

do nome quando explicitada sua característica formal; do contrário, os termos mais comuns –

piano forte, forte piano e piano – poderiam ser empregados para qualquer tipo de

instrumento, dificultando muito sua especificação (Tab. 9).

Tab. 9 – Nomenclatura do piano no Rio de Janeiro até 1830

Terminologia geral
Piano forte; Forte piano; Piano

Formato de asa Formato retangular Formato vertical


Grande piano; Piano de duas faces; Forte piano de parede;

Grande piano forte; Piano de duas frentes; Piano forte de parede;

Piano de uma face; Piano portátil; Forte piano de feitio d’almario;

Piano de uma frente; Piano de mesa; Piano de feitio d’almario

Piano comprido; Piano pequeno ou manicorne;

Piano forte horizontal Piano forte perpendicular

111
CONSIDERAÇÕES FINAIS

A abordagem histórica contida neste trabalho demonstrou dois importantes aspectos da

música na cidade do Rio de Janeiro. Por um lado, através da grande quantidade de

documentos estudados constatou-se mais uma vez a existência de uma vida musical

extremamente ativa. Mesmo contendo limitações pela pouca interação com os importantes

centros culturais europeus, esta contínua prática musical não pode ser considerada

desprezível. Por outro, percebeu-se que os instrumentos de teclado se fizeram não só

presentes, mas mereceram destaque desde os procedimentos de colonização, como

mecanismos de catequização, até as diversas manifestações culturais da própria colônia.

As informações encontradas ao longo de toda esta pesquisa documental revelaram

evidências inéditas sobre o cravo e o pianoforte no Rio de Janeiro, até o início do século XIX.

Foram desvendados os primeiros registros até hoje levantados a respeito de ambos os

instrumentos e também muitos outros que permitiram, de um modo geral, a reconstrução de

uma perspectiva histórica da existência do cravo e do pianoforte na cidade.

Os cravos foram provavelmente importados e até manufaturados na própria cidade a

partir do séc. XVI ou XVII, em função das missões catequizadoras instauradas pelos jesuítas.

Entretanto, o primeiro registro encontrado a mencionar tais instrumentos data de 1721, uma

carta régia que avaliava o valor de gêneros entrados na Alfândega.

Tais instrumentos eram frequentemente chamados de cravos de tocar – para distinguí-

los de outros gêneros comerciais de mesmo nome como os cravos da índia ou de ferragem –

ou cravos de penas – para evidenciar a mecânica inerente ao instrumento –, podendo haver

ainda, a complementação dos adjetivos grandes, pequenos ou mais pequenos. Estas

expressões complementares podiam estar associadas tanto à extensão do teclado do

instrumento – com mais ou menos notas – quanto ao tamanho de sua caixa – com um formato

112
maior ou menor –, de acordo com as características construtivas herdadas diretamente

daquelas ditadas por Portugal. Assim, é razoável acreditar que os cravos existentes no Rio de

Janeiro possuíam apenas um teclado, tanto por influência da escola portuguesa quanto pela

não localização de registros que mencionasse instrumentos de dois teclados. Foi verificada

certa dubiedade na terminologia referente aos instrumentos qualificados como menores. Os

termos pequeno e mais pequeno muitas vezes confundiam-se com a espineta, por esta ser um

instrumento menor que o cravo mas de idêntico sistema mecânico.

Somente um construtor de cravos foi citado dentre os documentos localizados: o

fabricante real de cravos e pianofortes da corte portuguesa, Mathias Bostem, cuja espineta

preservada em Petrópolis é o único exemplar de instrumento de teclado e cordas pinçadas do

construtor que não teve sua ação transformada.

Quanto aos pianofortes, sua introdução no Rio de Janeiro foi, sem dúvida alguma,

muito precoce. Ao contrário do que sempre se especulou, os primeiros exemplares foram

conhecidos ainda no final do séc. XVIII. De acordo com o mais antigo documento descoberto,

um inventário post-mortem, no ano de 1798 um piano já havia sido fabricado na cidade, fato

realmente surpreendente, mas que pode ser compreendido como reflexo da metrópole

portuguesa, onde da mesma forma, existiu conhecimento e interesse precoces sobre o invento

de Cristofori. Ainda que a fabricação de um pianoforte na cidade em fins do séc. XVIII possa

ser questionável, a citação do instrumento em tal registro, é pelo menos a comprovação de que

os pianos já eram conhecidos e encontrados na colônia portuguesa.

Foi, contudo, a partir do séc. XIX, especialmente na década de 20, que se verificou,

segundo os anúncios de jornais da época, um aumento significativo da quantidade de pianos

na cidade, o que acarretou consequentemente, o surgimento de um mercado paralelo voltado

especificamente para a construção e manutenção dos instrumentos. Este aumento da

importação significou uma maior diversificação quanto aos tipos e origens dos instrumentos.

113
Foram importados pianos de mesa, de cauda e verticais das principais regiões européias

dedicadas à fabricação dos mesmos – Portugal, Alemanha, Inglaterra e França.

Constatou-se, ainda, que para os vários tipos de piano foi empregada

indiscriminadamente uma variada nomenclatura. Desta forma, a falta de uma terminologia

precisa tornou complexa a definição, sobretudo, dos formatos de asa e retangulares dentre os

instrumentos mencionados nos documentos pesquisados, em oposição ao que aconteceu na

Europa, onde apenas as denominações para pianos de cauda se mostraram ambíguas.

Acredita-se ter encontrado uma interpretação plausível para os termos dúbios utilizados no

Rio de Janeiro: as expressões piano de duas frentes e piano de duas faces provavelmente

significam piano de mesa, já a expressão piano de uma frente, por sua vez, indica piano de

cauda.

Além disso, os termos pianoforte e fortepiano, sugerem ora uma aplicação geral para

se referir ao piano, ora uma qualificação relacionada ao formato do instrumento. Todavia, não

foi possível definir claramente os significados desta nomenclatura para esta última

interpretação.

Os construtores de pianofortes mencionados nos documentos pesquisados foram os

conhecidos Erard, Broadwood, Stodart e Clementi, ou seja, somente fabricantes franceses e

ingleses. Como era de se esperar, a predominância de instrumentos e construtores era inglesa,

porém com forte concorrência a partir de 1824 de instrumentos vindos da Alemanha. No

entanto, estranha-se o fato de não se ter localizado nenhuma referência a nomes de

construtores alemães. Curioso também é o fato de existir mais registros específicos sobre

importação de pianofortes alemães do que ingleses, certamente devido à irregularidade dos

registros de entrada de produtos no porto da cidade.

A proeminência dos pianofortes nesta época, contudo, não fez com que os cravos

desaparecessem por completo do Rio de Janeiro. Ainda que em um processo de utilização

114
decrescente, os cravos não só continuaram presentes em anúncios de vendas de jornais, mas

também em documentos oficiais listando produtos a serem importados até pelo menos o ano

de 1830 (data limite fixada para esta pesquisa), como se observa na ordenação cronológica da

tabela 10 abaixo.

Tab. 10 - Cronologia de Cravos e Pianofortes no Rio de Janeiro até 1830


(Datas dos registros mais relevantes organizadas por décadas)

1720 1721: carta régia avaliando preço de cravos grandes de tocar.


1766: pauta das avaliações da dízima da alfândega informando preço de cravos e espinetas;
1760
1768: registro de um cravo e um manicórdio no inventário dos bens da Fazenda Santa Cruz.
1798: registro de um pianoforte fabricado no Rio de Janeiro;
1790 1799: importação de cravos vindos de Lisboa.

1800 1809: primeiro anúncio de venda de pianoforte em jornal;


1810: anúncio de venda de piano vindo de Lisboa;
anúncio de venda de piano inglês;
primeiro anúncio de venda de cravo de 5 oitavas em jornal;
1810 anúncio de venda de piano Erard;
1812: anúncio de venda de piano Broadwood
1819: anúncio de venda de uma Orphica
anúncio de venda de um cravo Mathias Bostem
1820 anúncio de venda de piano Stodart.
1824: importação de um piano vindo de Hamburgo;
1825: anúncio de venda de piano de mesa de 6 oitavas;
anúncio de venda de piano vertical.
1826: importação de um piano vindo da Bahia em navio americano;
compra de um piano para D. Maria da Glória.
1827: anúncio de restaurador de pianos;
dois anúncios de venda de cravo;
anúncio de venda de piano de 6 oitavas e meia;
anúncio de loja de música;
1820
anúncio de fábrica de pianos;
compra de um piano por Marcos Portugal para a família real.
1828: anúncio de venda de piano Clementi;
dois anúncios de leilão de cravo;
exportação de 2 pianos para o Rio Grande;
anúncio sobre descoberta de material para forros de martelos de pianos.
1829: exportação de 2 pianos para Porto Alegre;
anúncio de abertura de um colégio para meninas que também ensina piano;
anúncio de venda de piano de harmônica;
decreto régio fixando preço de cravos e pianos.
1830: anúncio de leilão de cravos;
1830 anúncios variados sobre pianos.

115
A utilização tardia do cravo no século XIX no Rio de Janeiro, tanto como instrumento

de iniciação musical quanto como produto comercial, não gerou ambigüidade com o

pianoforte em termos de nomenclatura. Ao contrário do que ocorreu na Europa, onde a

palavra cembalo foi aplicada para a designação tanto de cravo como de piano, na cidade

foram empregados termos distintos para a qualificação dos instrumentos que em momento

algum suscitou dúvidas quanto a diferenciação entre o cravo e o pianoforte.

O período de transição ou de coexistência entre o cravo e o pianoforte na cidade do

Rio de Janeiro configurou-se longo, assim como na Europa, porém com uma característica

peculiar. Na região européia, o cravo conviveu durante todo o séc. XVIII com um instrumento

ainda em fase de desenvolvimento, cuja plena aceitação no meio musical foi demorada devido

às inúmeras deficiências encontradas em sua nova mecânica. Já no Rio de Janeiro, no

momento da introdução dos primeiros exemplares de pianos por volta de 1798, estes já

estavam bem difundidos na Europa, o que o qualificava lá como um evidente substituto do

cravo. Desta forma, o cravo no Rio de Janeiro coexistiu com um instrumento já aprimorado,

fruto de tudo o que foi desenvolvido ao longo do séc. XVIII, e que se encontrava em um

estágio de franca aceitação no ambiente musical europeu, o que certamente foi decisivo para

sua rápida ascensão como principal instrumento de teclado na cidade.

Ambos os instrumentos de teclado estiveram presentes na vida do padre José

Maurício, considerado o músico da transição do cravo para o pianoforte da cidade, e

certamente do Brasil. Nos seus 63 anos de vida, o compositor e tecladista conviveu

aproximadamente a primeira metade de sua existência com o cravo (1767-1798) e a segunda

metade, com o pianoforte e também com o cravo (1798-1830). José Maurício literalmente

transitou do cravo ao pianoforte em vida, sendo que a maior parte de seu período de efetiva

produtividade musical foi emoldurada pela coexistência dos dois instrumentos, como se

116
ilustra na figura 65 da página seguinte. O método de Pianoforte é um testemunho musical

desta afirmativa.

1767: 1830:
Nascimento de José Morte de José
Maurício Maurício

1798

Pianofortes

Cravos
1721 1730 1740 1750 1760 1770 1780 1790 1800 1810 1820 1830

Fig. 65 – Presença dos Cravos e Pianofortes na vida de José Maurício Nunes Garcia

Deve-se ressaltar ainda a existência de instrumentos sobreviventes dos séculos XVIII e

XIX – a espineta de Mathias Bostem, o cravo transformado de Joze Cambiazo e os

pianofortes de mesa de Broadwood e Collard & Collard – que se fazem muito importantes no

contexto de um país novo como o Brasil. Apesar de não se saber precisamente a data da

chegada destes exemplares ao Rio de Janeiro, eles constituem os registros de uma época,

especialmente a espineta e o cravo transformado portugueses, que são instrumentos

raríssimos.

Certamente, outros instrumentos de teclado preservados poderão futuramente ser

localizados, bem como muitos outros documentos referentes aos cravos e pianofortes que

existiram no Rio de Janeiro até o início do séc. XIX. As informações esparsas e

principalmente a irregularidade observada nos documentos oficiais de importação de gêneros

desta época são, sem dúvida alguma, os maiores limitadores das pesquisas e, em

contrapartida, são também o maior incentivo para novas buscas. Acredita-se que todo o

material levantado possa ser pouco em relação à realidade da época. O que se encontrou

foram traços que delineiam uma presença destes instrumentos muito mais marcante do que

sempre se imaginou.

A reconstrução histórica de parte do panorama da existência dos instrumentos de

teclado no Rio de Janeiro apresentada neste presente trabalho permite que se parafraseie uma

117
das declarações mais conhecidas e citadas a respeito dos pianos na cidade durante o século

XIX. Em 1856, Manuel de Araújo Porto Alegre chamava o Rio de Janeiro de “a cidade dos

pianos”. Hoje, já no séc. XXI e à luz de novas informações, é possível dizer que pelo menos

até 1830 a antiga capital do Brasil ainda era “a cidade dos cravos e dos pianos”.

118
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GLOSSÁRIO DE TERMOS MUSICAIS

Ação – a ação inclui todas as partes mecânicas envolvidas na projeção dos martelos às cordas.

Basson stop – pedal que produz um som murmurado devido ao contato de uma barra coberta

com pergaminho ou papel por sobre as cordas do baixo.

Buff stop – também chamado de Harpa, é um efeito pizzicato produzido pelo contato de

pequenas peças de couro ou feltro com as cordas do piano. Ironicamente, a sonoridade não se

assemelha à da harpa.

Chave manual (Hand stop) – alavanca manual que quando movida adiciona ou retira

registros para a modificação do som, exatamente como os pedais.

Check (Backcheck) – é um artifício para segurar o martelo do piano após este ter golpeado a

corda, evitando o ricochete.

Clavicórdio – instrumento de teclado cuja caixa possui formato retangular. Ao se pressionar a

tecla, uma tangente metálica presa à extremidade posterior de cada tecla vai de encontro à

corda, percutindo-a. A tangente permanece em contato com a corda enquanto a tecla estiver

pressionada, fato que permite a modificação do volume e a produção de efeitos sonoros.

Console piano – ver Pianino.

Escapamento – dispositivo que permite o martelo voltar a sua posição inicial depois de

golpear a corda, ainda que a tecla não tenha sido abandonada.

Espineta – Instrumento de teclado e cordas pinçadas, de tamanho menor que o do cravo, cuja

forma pode ser poligonal, triangular ou de ‘asa’. Possui apenas um manual com um jogo de

cordas de 8’.

Forte (Sustentação) – pedal, chave manual ou joelheira dos pianofortes que quando acionada

ergue os abafadores de todas as cordas, permitindo que estas vibrem livremente.

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Fraco – (Mute; surdina) – pedal, chave manual ou joelheira dos pianofortes que quando

acionada insere uma tira de pano entre as cordas e os martelos, fazendo com que o som

produzido pelo instrumento tenha uma ‘cor’ levemente fraca, de volume baixo.

Giraffe Piano – upright piano de formato semelhante ao do pyramid piano, porém com um

detalhe arredondado de ornamentação na parte mais alta da caixa que faz lembrar a cabeça de

uma girafa e toda extensão da caixa, seu pescoço.

Lute (Harp stop) – registro mais raro encontrado nos pianofortes o qual ao ser acionado

pressionava um couro ou tira coberta de pano contra o fim das cordas produzindo um som

anasalado.

Manicórdio – designação portuguesa para cravo e clavicórdio.

Martelo – peça fundamental da ação de um piano responsável por golpear e percutir as

cordas.

Moderador (Moderator) – dispositivo pedal ou manual que faz com que uma tira de pano

seja introduzida entre os martelos e as cordas do piano para produzir um efeito abafado.

Mutações (stops; chave; registro) – dispositivo encontrado em instrumentos de teclado cuja

finalidade é possibilitar a modificação do timbre.

Nähtisch (Sewing table) – versão ainda menor que o square piano, com o mesmo formato

retangular e parecido com uma máquina de costura.

Orphica – pequeno piano portátil, derivado do square piano, porém em forma de ‘asa’.

Pianino – nomenclatura mais usual na França para denominar uma forma menor do piano

vertical. Também conhecido pelos franceses como Console piano e em outros países como

Cottage piano e Cabinet piano.

Piano Vertical (Upright piano) – piano cujas cordas são dispostas verticalmente

proporcionando uma maior ocupação do espaço vertical e não do horizontal como nos pianos

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de cauda. Os primeiros exemplares eram muito altos e eram conhecidos também como

Upright-grand piano.

Plectro – pequena peça de pena, de couro ou de plástico responsável por pinçar as cordas para

que o som seja produzido nos cravos, espinetas e virginais.

Pyramid Piano – upright piano, cuja parte vertical da caixa do instrumento possui a forma de

um triângulo isósceles alongado.

Saltarelo (Martinete; Jack) – nos cravos é a peça vertical que leva o plectro a pinçar a corda;

já nos pianofortes corresponde à peça vertical que leva o martelo a golpear a corda.

Square piano (Piano de Mesa; Tafelklavier; Pianoforte carré) – piano cujo formato da caixa

horizontal e retangular descende diretamente do clavicórdio. Suas cordas são também

dispostas em um plano horizontal assim como no piano de cauda.

Una corda (Uma corda) – dispositivo pedal ou manual que permite aos martelos percutirem

apenas uma corda de cada nota (no caso de haver duas) ou então duas cordas (se houver três).

Virginal – instrumento de teclado em forma de caixa retangular, cujas cordas são dispostas

paralelamente ao teclado e são pinçadas por plectros como no cravo e na espineta. Os

saltarelos estão dispostos na diagonal do teclado.

Vibrato – efeito de oscilação da altura ou da intensidade sonora produzido pelo aumento da

pressão na tecla do clavicórdio.

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