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Introdução

O problema n ú m e r o u m da ciência social moderna foi, desde o início,


a própria modernidade: esta amálgama, historicamente sem precedentes,
de novas práticas e f o r m a s institucionais (ciência, tecnologia, produção
industrial, urbanização), de novos m o d o s de vida (individualismo, secula-
rização, racionalidade instrumental) e de novas formas de mal-estar (alie-
nação, ausência de sentido, u m a sensação de dissolução social iminente).
Hoje, é necessário equacionar o problema a p a r t i r de u m novo
ângulo: haverá aqui u m único f e n ó m e n o ou deverá antes falar-se de "múl-
tiplas modernidades", e o plural reflectirá então o facto de que outras
culturas não-ocidentais foram modernizadas à sua maneira e não poderão
entender-se de m o d o adequado, se t e n t a r m o s captá-las n u m a teoria geral
que, originalmente, foi projectada t e n d o e m m e n t e o caso do Ocidente?
Este livro explora a hipótese de que podemos arrojar alguma luz
sobre os problemas originais e contemporâneos acerca da modernidade,
se conseguirmos chegar a u m a definição mais clara das autocompreen-
sões que a constituíram. A m o d e r n i d a d e ocidental é, nesta perspectiva,
inseparável de u m c e r t o tipo de imaginário social, e as diferenças entre as
múltiplas modernidades de hoje hão-de entender-se sob o p o n t o de vista
dos divergentes imaginários sociais implicados.
Esta abordagem não é idêntica àquela que se poderia centrar nas
"ideias", em contraste com as "instituições", da modernidade. O imaginário
social não é u m c o n j u n t o de ideias; é, antes, o que possibilita, mediante
a atribuição de sentido, as práticas de u m a sociedade. Este p o n t o crucial
é desenvolvido no capítulo 3.
O meu objectivo é, aqui, modesto. Gostaria de esboçar u m a descrição
das formas do imaginário social que alicerçaram a ascensão da moderni-
dade ocidental. A m i n h a atenção centra-se nà história ocidental, e não
chega a mencionar a variedade das actuais modernidades alternativas. Mas
espero que u m a certa definição mais estrita da especificidade ocidental
nos possa ajudar a ver, c o m maior clareza, o que é c o m u m às diferentes
sendas da modernização contemporânea. Ao escrever isto, inspirei-me
muito, sem dúvida, na obra pioneira de Benedict Anderson, n o seu Imagined

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iMAtiiNÁRK >S S( M IAIS M( >1 >1 KN< )S

Communities1, e t a m b é m na obra de Jürgcn I labcrmas, de Mi< liacl Warner,


de Pierre Rosanvallon e de outros facto que reconhecerei, à medida que
o t e m a se for desfraldando.
A minha hipótese de base é a de que, no centro da modernidade
ocidental, existe u m a nova concepção da o r d e m moral da sociedade.
Esta começou p o r ser apenas uma ideia nas mentes de alguns pensadores
influentes, mas, mais t a r d e , veio a c o n f i g u r a r o imaginário social de
amplos estratos e, e m seguida, de sociedades inteiras. Tornou-se agora,
para nós, tão auto-evidente que t e m o s dificuldade em vê-la c o m o u m a
concepção possível e n t r e outras. A transmutação desta visão da ordem
moral em nosso imaginário social é a concretização de certas formas sociais
que caracterizam essencialmente a m o d e r n i d a d e ocidental: a economia
de mercado, a esfera pública e o autogoverno das pessoas, e n t r e outras.

1 Benedict A n d e r s o n , Imagined Communities ( L o n d r e s : Verso, 1991).


WÊtÊÊHtÊÊÊÊÊÊÊtÊKÊÊÊÈKÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊ

I. A ordem mor.il moderna

Começo pela nova visão da ordem moral. Esta foi formulada, com
a máxima clareza, nas novas teorias do Direito Natural que emergiram
no século xvii, sobretudo como uma resposta à desordem doméstica e
internacional suscitada pelas guerras de religião. Grotius e Locke são
ac|ui, para o nosso propósito, os mais importantes teóricos de referência.
Grotius vai buscar a ordem normativa, que está na base da sociedade
política, à natureza dos membros que a constituem. Os seres humanos são
agentes racionais, sociáveis, que são supostos colaborarem pacificamente
para benefício mútuo.
Iniciada no século XVII, esta ideia veio, cada vez mais, a dominar o
nosso pensamento político e o modo como imaginamos a nossa sociedade.
Irrompe na versão de Grotius como uma teoria daquilo que a sociedade
política é, ou seja, do que ela fomenta e de como ela se realiza. Mas qual-
quer teoria deste tipo oferece também, de m o d o inevitável, uma ideia
da ordem moral: diz-nos algo acerca do m o d o como temos de viver em
conjunto na sociedade.
A imagem da sociedade é a de indivíduos que chegam a instituir uma
entidade política sobre u m certo fundo moral preexistente e com certos
objectivos em vista. O fundo moral é u m f u n d o de direitos naturais; as
pessoas têm já entre si algumas obrigações morais. Os fins perseguidos
são certos benefícios comuns, dos quais o mais importante é a segurança.
A ideia subjacente da ordem moral realça os direitos e as obrigações
que, como indivíduos, temos uns para com os outros, mesmo antes ou
para além do vínculo político. As obrigações políticas encaram-se como
uma extensão ou aplicação desses laços morais mais basilares. A própria
autoridade política só é legítima porque é objecto do consentimento dos
indivíduos (o contrato original), e este contrato cria obrigações vinculatórias,
graças ao princípio preexistente de que as promessas são para cumprir.
A luz do que depois se fez com esta teoria do contrato, inclusive no
final do mesmo século por meio de John Locke, surpreende até que ponto
são insípidas as conclusões ético-políticas que Grotius dela extrai. Assu-
mindo que os regimes legítimos existentes assentavam, em última análise,
IMAtiINÁRIOS Si XI A IS M< >DI UN< >S

cm algum consentimento deste tipo, a radicação da lcgitimld.idr polític a


n o consentimento não é destacada de m o d o a contestar as credenciais
dos governos existentes; a finalidade d o exercício é antes desvalorizar os
motivos para insurreição que e r a m instigadas de forma irresponsável por
zelotas confessionais. Grotius p r o c u r a , pois, fornecer u m f u n d a m e n t o
f i r m e , para lá das cavilações confessionais, às regras básicas da guerra e
da paz. N o c o n t e x t o do início do século XVII, com as suas incessantes e
atrozes guerras de religião, esta ênfase era de t o d o compreensível.
Locke é o p r i m e i r o a usar esta teoria como u m a justificação da revo-
lução e como base para u m governo limitado. Os direitos p o d e m agora
ser seriamente alegados e defendidos e m face do poder. O consentimento
não é apenas u m acordo originário para instituir governo, mas u m direito
contínuo de participar na definição dos impostos.
Nos três séculos seguintes, desde Locke até hoje, embora a linguagem
do contrato se possa ter esbatido e seja usada apenas p o r u m a minoria de
teóricos, a ideia subjacente da sociedade como existindo para o benefício
(mútuo) dos indivíduos e para a defesa dos seus direitos ganha u m a impor-
tância cada vez maior. O u seja, torna-se a visão dominante, e m p u r r a n d o
anteriores teorias da sociedade e outras mais recentes para as margens
da vida e do discurso políticos, e engendra, p o r isso, pretensões cada vez
mais amplas sobre a vida política. A exigência do consenso originário,
mediante o compromisso do consentimento na tributação de Locke, torna-
-se a doutrina plenamente desenvolvida da soberania popular, sob a qual
agora vivemos. Á teoria dos direitos naturais acaba p o r gerar u m a densa
r e d e de limites à acção legislativa e executiva, graças às constituições
solidamente implantadas, que se t o r n a r a m u m a característica i m p o r t a n t e
da governação contemporânea. A presunção de igualdade, implícita no
p o n t o inicial do estado de Natureza, onde as pessoas se e n c o n t r a m fora
de todas as relações de superioridade e inferioridade', aplicou-se em

1 N o Second Treatise on Government, J o h n L o c k e definiu o e s t a d o de N a t u r e z a c o m o


u m a c o n d i ç ã o " e m q u e é r e c í p r o c o t o d o o p o d e r e t o d a a j u r i s d i ç ã o , n i n g u é m t e n d o mais
d o q u e o o u t r o : isto v ê - s e s o b r e t u d o no f a c t o d e q u e as C r i a t u r a s da m e s m a espécie e
c a t e g o r i a n a s c e r a m p r o m i s c u a m e n t e p a r a t o d a s as m e s m a s vantagens da N a t u r e z a , e o
u s o das m e s m a s f a c u l d a d e s seria e n t r e elas igual, s e m s u b o r d i n a ç ã o o u sujeição, a não
ser q u e o S e n h o r e M e s t r e d e t u d o colocasse, p o r q u a l q u e r D e c l a r a ç ã o m a n i f e s t a da sua
V o n t a d e , u m sobre os o u t r o s e lhe c o n f e r i s s e , m e d i a n t e u m d e c r e t o e v i d e n t e e claro,
u m D i r e i t o indubitável ao D o m í n i o e à Soberania". Ver Locke's Two Treatises of Government,
I A ORDliM MDKAI MODI KNA

contextos ta<la vtv m.iis numerosos, desaguando em múltiplas estipulações


de tratamento igual ou de nào-discriminação, que são uma parte integral
das constituições bem firmadas.
Por outras palavras, d u r a n t e estes últimos quatro séculos, a ideia de
ordem moral implícita nesta visão da sociedade sofreu u m duplo alargamento:
e m extensão (mais pessoas se regem p o r ela; tornou-se predominante) e
e m intensidade (as suas exigências são mais pesadas e mais ramificadas).
A ideia passou, p o r assim dizer, p o r u m a série de "redacções", cada u m a
delas mais rica e mais exigente do que a anterior, até ao dia de hoje.
Esta dupla expansão p o d e descrever-se de vários modos. O discurso
m o d e r n o do direito natural começou n u m nicho algo especializado.
Forneceu aos filósofos e aos teóricos legais u m a linguagem para falar da
legitimidade dos governos e das regras da g u e r r a e da paz, as doutrinas
inaugurais do direito internacional m o d e r n o . Mas, em seguida, começou
a infiltrar-se e a t r a n s f o r m a r o discurso n o u t r o s nichos. U m desses casos,
que desempenha u m papel crucial no que aqui apresento, é o m o d o como
a nova ideia da ordem m o r a l começa a inflectir e r e f o r m u l a r as descrições
da providência de Deus, e a o r d e m que ela estabelecera entre os h u m a n o s
e n o cosmos.
Mais i m p o r t a n t e ainda para as nossas vidas é, hoje, o m o d o como
esta ideia de ordem se t o r n o u cada vez mais central nas nossas noções de
sociedade e de política, refazendo-as ao longo do processo. N o decurso
desta expansão, esta ideia converteu-se de simples teoria que animava o
discurso de alguns peritos, em parte integrante do nosso imaginário social,
isto é, no m o d o como os nossos contemporâneos imaginam as sociedades
e m que habitam e que m a n t ê m .
Ao migrar de u m nicho para vários, e de u m a teoria para o imaginário
social, a expansão é igualmente visível ao longo de u m terceiro eixo, tal
c o m o é definido pelo tipo de exigências que esta o r d e m m o r a l nos faz.
Por vezes, u m a concepção da o r d e m moral não traz consigo u m a
real expectação do seu c u m p r i m e n t o integral. Isto não significa ausência
de expectação, pois, de o u t r o m o d o não seria u m a ideia de o r d e m moral,
no sentido em que uso o t e r m o . Ela encarar-se-á como algo a que se
aspira: será concretizada p o r alguns, mas o sentido geral p o d e r á ser o de

ed. Peter Laslett (Cambridge, Inglaterra: Cambridge University Press, 1967), p a r t e 2,


cap. 2, par. 4, p. 287.
IMA(ÍINAkI< >S S( (CIAIS M( >I>I:KNON

que só uma minoria conseguirá efectivamente .icgul l.i, pi lo menos nas


condições presentes.
Assim, o Evangelho cristão gera a ideia de uma comunidade dos
santos, inspirada pelo amor por Deus, pelos outros e pela humanidade,
cujos membros são refractários à rivalidade, ao ressentimento recíproco,
ao amor do lucro, à ambição de mandar, e quejandos. Na Idade Média
esperavam que só uma minoria de santos aspirasse realmente a esta ordem,
vivendo, no entanto, num mundo muito afastado desse ideal. Mas, na
plenitude do tempo, esta seria a ordem dos que se juntam em redor de
Deus na disposição final. Podemos falar, aqui, de uma ordem moral, e
não justamente de u m ideal gratuito, porque se pensa que ela se encontra
no processo de plena realização. Mas desta ainda não chegou o tempo.
Uma analogia longínqua noutro contexto residiria em certas defi-
nições modernas de utopia, que nos r e m e t e m para uma feição das coisas
que se podem realizar em certas condições eventualmente possíveis, mas
quê entretanto servem de padrão de orientação.
Diferentes, sem dúvida, são as ordens que exigem, aqui e agora, uma
efectuação mais ou menos plena. Isto pode entender-se de dois modos.
N u m , considera-se que a ordem está efectivada, que é subjacente ao modo
normal das coisas. As concepções medievais da ordem política eram,
muitas vezes, deste tipo. Na compreensão dos "dois corpos do rei", a sua
existência biológica individual concretiza e exemplifica u m "corpo" régio
que não morre. Na ausência de circunstâncias excepcionais e escandalosa-
mente desregradas, p o r exemplo na altura de alguma usurpação terrível,
a ordem está plenamente realizada. Não nos oferece tanto uma prescrição
quanto uma chave para compreender a realidade, tal como a Cadeia do Ser
o faz em relação ao cosmos que nos rodeia. Fornece a chave hermenêutica
para entender o real.
Mas uma ordem moral pode estar numa outra relação com a reali-
dade, como ainda não realizada, antes exigindo ser integralmente levada
a efeito. Fornece uma prescrição imperativa.
Resumindo estas distinções, podemos dizer que uma ideia de ordem
moral ou política pode ser ou derradeira, como a comunidade dos santos,
ou para o aqui e agora; e se este for o caso, ela pode ser hermenêutica
ou prescritiva.
A ideia moderna de ordem, em contraste com o ideal cristão medie-
val, foi, desde início, encarada como para o aqui e agora. Mas desloca-se

16
I A n u m M MOKAI MODI RNA

decerto .ii) longo «I»• iini.i acuda c, de mais hermenêutica, torna-se mais
prescritiva. lai como 1 <>i utilizada no seu nicho original por pensadores
como Grotius e Pufendorf, oferecia uma interpretação daquilo que deve
estar na base dos governos estabelecidos; estes, radicados n u m contrato
supostamente f undador, fruíam de uma legitimidade inquestionável. A teoria
do direito natural era, na sua origem, u m a hermenêutica de legitimação.
Mas a teoria política p o d e , já com Locke, justificar a revolução, e
torná-la até m o r a l m e n t e imperativa em certas circunstâncias; ao m e s m o
t e m p o , outras características gerais da situação moral humana facultam
uma hermenêutica da legitimidade em relação, por exemplo, à proprie-
dade. Mais tarde, e nesta direcção, tal noção de o r d e m será inserida em
redacções que exigem m e s m o mudanças mais revolucionárias, incluindo as
relações de propriedade, reflectidas, por exemplo, em teorias influentes
como as de Rousseau e M a r x .
Deste m o d o , ao deslocar-se de u m nicho para muitos e ao m i g r a r
de teoria para imaginário social, a ideia m o d e r n a de ordem viaja ainda ao
longo de u m terceiro eixo e os discursos que ela engendra estendem-se
ao longo da senda que vai desde o h e r m e n ê u t i c o ao prescritivo. D u r a n t e o
processo, acaba por se entrosar com u m a ampla série de conceitos éticos,
mas o elemento c o m u m das amálgamas resultantes é o uso essencial que
fazem desta compreensão da o r d e m política e moral, derivada da m o d e r n a
teoria do direito natural.

Esta expansão em t r ê s eixos é, sem dúvida, notável. Exige u m a


explicação; infelizmente, não faz p a r t e das m i n h a s intenções de focagem
bastante restrita oferecer u m a explanação causal da origem do imaginá-
rio social m o d e r n o . Ficarei satisfeito se conseguir clarificar algumas das
formas que assumiu. Mas a própria natureza destas ajudará a focar com
maior rigor os pontos da explicação causal, sobre a qual oferecerei, mais
tarde, alguns pensamentos de forma não sistemática. Por agora, quero
continuar a explorar as características peculiares desta ordem m o d e r n a .
U m ponto crucial que deveria ser evidente a partir do que foi refe-
rido é que a noção de o r d e m moral, por m i m utilizada, vai além de u m a
agenda proposta de n o r m a s que deveriam governar as nossas relações
mútuas e / o u a nossa vida política. O que u m a compreensão da o r d e m
moral acrescenta a u m a apercepção e aceitação das n o r m a s é u m a identi-
ficação das características do m u n d o , da acção divina ou da vida h u m a n a ,

17
IMAGINÁMOS N< XIA IS M( > I»I UN< )S

que tornam certas formas boas c (até ao ponto assiiul.ido) r m*« ju ÍVfis Por
outras palavras, a imagem da o r d e m inclui uma delinlç.io nào só do (jue
é recto, mas do contexto em que faz sentido intentar e esperar levar a
efeito (pelo m e n o s em parte) o que é recto.
E claro que as imagens da o r d e m moral que, através de uma série de
transformações, descendem das inscritas nas teorias d o direito natural de
Grotius e Locke são u m pouco diferentes das incrustadas no imaginário
social da era p r é - m o d e r n a . Vale a pena realçar aqui dois tipos importantes
da ordem moral p r é - m o d e r n a , p o r q u e podemos vê-los a ser gradualmente
ultrapassados, deslocados ou marginalizados pela corrente grocio-lockeana,
durante a transição para a m o d e r n i d a d e política. U m deles baseia-se na
ideia de que u m a Lei que regeu u m povo desde t e m p o s imemoriais t e m
dele e que, em c e r t o sentido, o define c o m o povo. Esta ideia esteve, apa-
rentemente, difundida entre as tribos indo-europeias que, em períodos
diferentes, i r r o m p e r a m na Europa. Foi muito poderosa na Inglaterra do
século XVH sob a f o r m a da Antiga Constituição e tornou-se u m a das ideias
nucleares que justificaram a rebelião contra o rei 1 .
Este caso deveria ser suficiente para mostrar que tais noções n e m
sempre são conservadoras no seu teor. Mas deveríamos igualmente incluir
nesta categoria o sentido de o r d e m normativa que parece ter sido transmi-
tido, através das gerações, em comunidades camponesas, que graças a ele
desenvolveram u m quadro da "economia moral", a partir do qual poderiam
criticar os fretes a eles exigidos pelos senhores ou t a m b é m as exacções
que lhes e r a m feitas pelo Estado e pela Igreja 2 . Aqui, mais uma vez, a
ideia r e c o r r e n t e foi, aparentemente, a de que u m a originária distribuição
aceitável de encargos fora deslocada p o r usurpação e deveria ser rejeitada.
O o u t r o tipo de o r d e m moral organiza-se e m t o r n o de uma noção
de hierarquia na sociedade que expressa e condiz c o m u m a hierarquia do
cosmos. Estas f o r a m , com frequência, teorizadas na linguagem eduzida do
conceito platónico-aristotélico de F o r m a , mas a noção subjacente emerge
t a m b é m f o r t e m e n t e nas teorias de correspondência: p o r exemplo, o rei
está no seu r e i n o como o leão e n t r e os animais, c o m o a águia entre as

1 V e r J . G. A. P o c o c k , The Ancient Constitution and the Feudal Law, 2 . ' e d . ( C a m b r i d g e ,


Inglaterra: C a m b r i d g e University Press, 1 9 8 7 ) .
2 O t e r m o " e c o n o m i a m o r a l " foi b u s c a r - s e a E. P. T h o m p s o n , " T h e M o r a l E c o n o m y
of t h e English C r o w d in t h e Eighteenth C e n t u r y , " Past and Present 5 0 (1971), pp. 7 6 - 1 3 6 .
I, A ( )IU >1 M M< >U Al M( >I >I UNA

aves, e assim por diante. I )esla visão deriva a ideia de que as desordens no
reino humano hão de ecoar na natureza, porque está ameaçada a efectiva
ordem das coisas. A noite em que Duncan foi assassinado foi perturbada
pelo "queixume ouvido no ar, estranhos gritos de morte", e permaneceu
escura, apesar de o dia já ter começado. Na terça-feira anterior, um fal-
cão fora morto por uma coruja caçadora de ratos e, durante a noite, os
cavalos de Duncan tornaram-se bravios, "resistindo à obediência, como
se fizessem / guerra à humanidade 3 ."
Nestes dois casos, sobretudo no segundo, temos uma ordem que
tende a impor-se pelo curso das coisas; as violações levam a uma reacção
adversa que transcende a esfera meramente humana. Trata-se, aparente-
mente, de uma característica muito c o m u m nas ideias pré-modernas da
ordem moral. Anaximandro liga todos os desvios do curso da natureza à
injustiça, e diz que tudo o que resistir à natureza há-de, por fim, "pagar
reciprocamente a pena e a retribuição pela sua injustiça, segundo o juízo
do tempo" 4 . Heraclito fala da ordem das coisas em termos semelhantes, ao
dizer que se, alguma vez, o sol se desviasse do seu curso determinado, as
Fúrias se apoderariam dele e o trariam de volta 5 . E, claro está, as Formas
platónicas estão activas na configuração das coisas e dos acontecimentos
no m u n d o da mudança.
Nestes casos, vê-se muito bem que uma ordem moral é muito mais
do que u m conjunto de normas; contém ainda o que se poderia chamar
uma componente "ôntica", identificando características do m u n d o que
t o r n a m exequíveis as normas. A ordem m o d e r n a que deriva de Grotius
e de Locke não é auto-realizadora no sentido invocado por Hesíodo ou
Platão ou no das reacções cósmicas ao assassínio de Duncan. É, pois,
tentador pensar que as nossas noções modernas de ordem moral carecem
inteiramente de uma componente ôntica. Mas seria u m erro. Existe uma
diferença importante, mas ela reside no facto de que esta componente

3 Macbeth, 2 . 3 . S 6 ; 2.4.17-18. Ver t a m b é m C h a r l e s Tailor, Sources of the Self ( C a m -


b r i d g e : H a r v a r d University P r e s s , 1992), p. 2 9 8 .

4 Citado in Louis D u p r é , Passage to Modernity ( N e w Haven: Yale U n i v e r s i t y Press,


1993), p. 19.

5 " O sol não ultrapassará os seus limites; se o fizer, as Erínias, servas da Justiça,
h ã o - d e encontrá-lo" Citado in G e o r g e Sabine, A History of Political Theory, 3. a e d . (Nova
Iorque: H o l t , R i n e h a r t and W i n s t o n , 1961), p. 26.
I M A G I N A M O S S O C I A I S M()|1| U N O S

é agora uma característica mais concernente .1 IIÓN, IUIUMIION, <lo que


relativa a Deus ou ao cosmos, e não na suposta aUNêucia lotai <lc uma
dimensão ôntica.
O que é peculiar à nossa compreensão moderna de o r d e m sobressai
mais claramente se nos centrarmos no m o d o como as idealizações da teoria
do direito natural diferem das que antes e r a m dominantes. O s imaginários
sociais p r é - m o d e r n o s , sobretudo os de tipo hierárquico, e r a m estrutu-
rados por vários m o d o s de complementaridade hierárquica. A sociedade
era vista como constituída p o r ordens diferentes. Estas exigiam-se e
complementavam-se umas às outras, mas tal não significava que as suas
relações fossem verdadeiramente m ú t u a s , porque elas não se situavam no
m e s m o nível. Pelo contrário, f o r m a v a m u m a hierarquia e m que alguns
t i n h a m maior dignidade e valor do que outros. U m exemplo é a idealiza-
ção medieval, muitas vezes repetida, da sociedade de três ordens: oratores,
bellatores, laboratores — os que rezam, os que lutam e os que trabalham. E
claro que cada u m precisa dos outros, mas não há dúvida de que temos
aqui u m a escala descendente de dignidade; algumas funções e r a m , na sua
essência, superiores a outras.
É crucial para este tipo de ideal que a distribuição de funções seja
u m a p a r t e fulcral da o r d e m normativa. Não se trata de cada h o m e m ter de
desempenhar as suas funções características para os outros, no pressuposto
de eles t e r e m entrado nestas relações de troca, enquanto mantemos aberta
a possibilidade de que as coisas p o d e r i a m ter u m arranjo diferente (por
exemplo, n u m m u n d o onde todos, em p a r t e , rezam, lutam e trabalham).
Não, a própria diferenciação hierárquica é encarada como a ordem genuína
das coisas. Era p a r t e da natureza ou f o r m a da sociedade. Nas tradições
platónica e neoplatónica, esta f o r m a já actuava no m u n d o , e qualquer ten-
tativa para o desviar dela viraria a realidade contra si m e s m a . A natureza
da sociedade seria alterada com esta tentativa, Daí o t r e m e n d o poder da
metáfora orgânica nestas teorias mais antigas. O organismo afigura-se o
lugar paradigmático das formas e m acção, tentando sarar as suas feridas
e curar as suas doenças. Ao m e s m o t e m p o , o alinho das funções que ela
exibe não é apenas contingente; é " n o r m a l " e justo. Q u e os pés estejam
abaixo da cabeça é c o m o deve ser.
A idealização m o d e r n a da o r d e m afasta-se radicalmente desta visão.
Não se trata de já não haver lugar para u m a Forma de tipo platónico em
acção: e m ligação c o m isto, qualquer distribuição das funções que u m a

20
I A OllDI M MORAL MODIIRNA I

.sociedade possa desenvolver e tida por contingente; justificar-se-á, ou


não, de modo instrumental; não pode, p o r si própria, definir o bem.
O princípio normativo básico é, de facto, que os m e m b r o s da socie-
dade satisfaçam as necessidades uns dos outros, se ajudem m u t u a m e n t e ,
em suma, se c o m p o r t e m c o m o criaturas racionais e sociáveis que são.
Complementam-se de m o d o recíproco. Mas a diferenciação funcional par-
ticular de que necessitam para tentar fazer o que é mais eficaz não possui
um valor essencial. E adventícia e potencialmente alterável. E m certos
casos, p o d e ser m e r a m e n t e temporária, c o m o acontecia com o princípio
da polis antiga, e p o d e m o s então ser governantes e, ao invés, governados.
Noutros casos, ela exige u m a especialização vitalícia, mas não há nisso
u m valor inerente e todas as vocações são iguais aos olhos de Deus. Seja
como for, a ordem m o d e r n a não confere n e n h u m estatuto ontológico à
hierarquia ou a qualquer e s t r u t u r a particular de diferenciação.
Por outras palavras, o p o n t o básico da nova o r d e m normativa
é o respeito e o serviço recíprocos dos indivíduos que c o n s t i t u e m a
sociedade. As e s t r u t u r a s reais destinavam-se a servir os fins e era sob
esta luz que eram i n s t r u m e n t a l m e n t e avaliadas A diferença p o d e r i a ser
ocultada pelo facto de que as ordens mais antigas garantiam t a m b é m
u m a espécie de serviço m ú t u o : o clero reza pelos leigos, e os leigos
d e f e n d e m / t r a b a l h a m para o clero. Mas o p o n t o crucial é j u s t a m e n t e
esta divisão em tipos n o seu o r d e n a m e n t o hierárquico, ao passo que na
nova c o m p r e e n s ã o c o m e ç a m o s com indivíduos e com a sua dívida de
serviço m ú t u o , e as divisões desvanecem-se à medida que dispensam
esta dívida de m o d o mais eficaz.
Assim Platão, no Livro 21 da República, infere a necessidade de u m a
ordem de serviço recíproco a p a r t i r da falta de auto-suficiência do indi-
víduo. Mas b e m depressa se torna claro que a e s t r u t u r a desta o r d e m é o
p o n t o básico; a última dúvida elimina-se ao vermos que há-de estar em
analogia e interacção com a ordem normativa na alma. Em contrapartida,
no ideal m o d e r n o , o p o n t o fundamental é o m ú t u o respeito e serviço,
t o t a l m e n t e realizado.
Aduzi duas diferenças que distinguem este ideal do anterior, as
ordens platonicamente configuradas de complementaridade hierárquica:
a Forma já não actua na realidade, e a distribuição de funções já não é em
si m e s m a normativa. U m a terceira diferença acompanha este processo.
Para as teorias de derivação platónica, o serviço recíproco que as classes
IMAGINÁRIOS SOCIAIS MOI>l UNOS

prestam umas às outras, quando se encontram na rclaçao cm recta, implica


levá-las à condição da sua mais elevada virtude; de lacto, este <• o serviço
que a ordem plena presta, por assim dizer, a todos os seus membros. Mas,
no ideal m o d e r n o , o respeito e o serviço recíprocos visam o Comento dos
nossos objectivos comuns: vida, liberdade, sustentação de si e da família.
A organização da sociedade, como acima afirmei, não é avaliada quanto à
sua forma inerente, mas de modo instrumental. Podemos agora acrescentar
que a organização é instrumental relativamente às condições básicas da
existência c o m o agentes livres, e não à excelência da v i r t u d e — embora
possamos julgar que necessitamos de u m elevado grau de virtude para
nela desempenhar o nosso próprio papel.
O nosso p r i m e i r o serviço de uns para os outros era, assim, utilizando
a linguagem de u m a época ulterior, o provimento da segurança colectiva,
t o r n a r as nossas vidas e a nossa propriedade seguras sob a lei. Mas t a m b é m
prestamos u m serviço recíproco, ao realizarmos a troca económica. Estes
dois fins principais, a segurança e a prosperidade, são agora os objectivos
principais da sociedade organizada, que poderá vir a encarar-se como algo
na natureza de u m a troca frutífera e n t r e os seus m e m b r o s constitutivos.
A ordem social ideal é aquela em que os nossos fins se m i s t u r a m e cada
u m deles, ao reforçar-se, ajuda os outros.
Esta ordem ideal não se concebia como uma simples invenção humana.
Era antes u m a o r d e m arquitectada p o r Deus, na qual t u d o se harmoniza
de acordo com os desígnios divinos. Mais tarde, no século xvni, o m e s m o
modelo é projectado no cosmos, n u m a visão do universo enquanto con-
j u n t o de partes perfeitamente entretecidas, em que os fins de cada tipo
de criatura se m i s t u r a m com os de todas as outras.
Esta o r d e m define a meta para a nossa actividade construtiva, na
medida em que ela reside no nosso p o d e r de a subverter ou realizar.
N a t u r a l m e n t e , q u a n d o olhamos o todo, vemos até que ponto a ordem
já se encontra realizada. Mas, ao m i r a r m o s os afazeres humanos, vemos
quanto dela nos desviámos e a subvertemos; ela torna-se a norma a que
devemos t e n t a r regressar.
Esta o r d e m concebia-se como evidente na natureza das coisas. Natu-
ralmente, se consultarmos a revelação, descobrimos t a m b é m a exigência
aí formulada de que nos devemos ajustar a ela. Mas só a razão nos pode
expressar os propósitos divinos. As coisas vivas, incluindo-nos a nós,
esforçam-se p o r se preservar a si mesmas. Tal é a acção de Deus:

22 |
r I A ORDI M MORAI MODI UNA

l'cz I )eus o homem e plantou nele, como em todos os outros animais,


um forte desejo de autopreservação, e abasteceu o m u n d o de coisas
aptas para alimento e vestuário e de outras precisões da vida, pô-lo
ao serviço do seu desígnio, para que o h o m e m vivesse e habitasse por
algum t e m p o sobre a face da Terra, e não para que esta interessante
e maravilhosa peça de arte houvesse de m o r r e r novamente p o r sua
própria negligência, ou ausência de necessidades... D e u s . . . falou-
-lhe, (isto é) guiou-o pelos seus sentidos e pela sua r a z ã o . . . para o
uso daquelas coisas que eram úteis à sua subsistência, e a ele dadas
como meios da sua preservação... Pois, tendo o desejo, o forte
desejo de preservar a sua vida e o seu ser, sido ele plantado como
u m princípio de acção pelo próprio Deus, a razão, que era a voz
de Deus nele, só podia ensiná-lo e garantir-lhe que, ao seguir esta
natural inclinação, que ele tinha para preservar o seu ser, ele fazia a
vontade do seu Criador 1 .

Sendo dotados de razão, vemos que não só as nossas vidas, mas todos
os seres humanos se hão-de preservar. Além disso, Deus fez de nós seres
sociáveis, pelo que "cada u m está obrigado a conservar-se a si próprio, e
a não abandonar arbitrariamente a sua Situação; assim, pela m e s m a razão,
quando a sua Preservação não entra e m concorrência, ele deverá, tanto
quanto puder, proteger o resto da humanidade 2 ."
De m o d o semelhante, Locke a r g u m e n t a que Deus nos deu os nossos
poderes de razão e de disciplina para p o d e r m o s , com a m á x i m a eficiência,
tratar da tarefa da nossa autoconservação. Daí que devamos ser "Industriosos
e Racionais" 3 . A ética da disciplina e do m e l h o r a m e n t o é u m a exigência
da ordem natural que Deus planeou. A imposição da ordem pela vontade
h u m a n a é t a m b é m exigida pelo seu esquema.
Podemos ver, na formulação de Locke, até que p o n t o ele encara o
serviço m ú t u o em t e r m o s de troca profícua. A actividade "económica"
(isto é, ordenada, pacífica, produtiva) t o r n o u - s e o modelo d o c o m p o r t a -
m e n t o h u m a n o e a chave para a coexistência harmoniosa. E m contraste

1 Locke's Two Treatises, p a r t e 7, cap. 9, par. 8 6 , p. 223.

2 Ibid., p a r t e 2, cap. 2, par. 6, p. 289; ver i g u a l m e n t e p a r t e 2, cap. 11, par. 135,


p. 376; e Some Thoughts concerning Education, par. 116.
3 Locke's Two Treatises, p a r t e 2, cap. 5, par. 34, p. 309.
I ! IMAUINÁKK )S S( H IAIS M( )l)liUN( )S

com as teorias da complementaridade hierárquica, eiic<intramo nos numa


zona de concórdia e de serviço mútuo, não ao ponto d< transcendermos
os nossos fins e propósitos comuns, mas, pelo contrário, 110 processo de
os levarmos a cabo de acordo com o desígnio de Deus.

Esta idealização estava, no início, em profunda dissonância com o


m o d o como as coisas, de facto, aconteciam; portanto, com o imaginário
social efectivo em quase todos os níveis da sociedade. A complementaridade
hierárquica era o princípio segundo o qual as vidas das pessoas realmente
actuavam, desde o reino à cidade, à diocese, à paróquia, ao clã e à família.
Temos ainda algum sentido vivo desta disparidade n o caso da família,
porque só no nosso t e m p o é que as antigas imagens da complementaridade
hierárquica e n t r e homens e mulheres estão a ser plenamente desafiadas.
Mas este é u m estádio derradeiro n u m a longa marcha, u m processo em
que a idealização m o d e r n a , avançando ao longo dos três eixos acima dis-
c u t i d o s , ligou e transformou o nosso imaginário social em quase todos
os níveis, com consequências revolucionárias.
A natureza genuinamente revolucionária das consequências garantiu
que aqueles que, pela primeira vez, acataram esta teoria não conseguiam
ver a sua aplicação n u m conjunto de áreas que, hoje, nos parecem óbvias.
A poderosa persistência das formas hierarquicamente complementares da
vida — na família, e n t r e o amo e o escravo na economia doméstica, entre o
senhor e o camponês no domínio, e n t r e a elite educada e as massas — fez
surgir como eVidente que o novo princípio da ordem se deveria aplicar
d e n t r o de certos limites. Isso não foi, muitas vezes, percebido como u m a
restrição. O que se nos afigura como u m a flagrante inconsistência, por
exemplo, quando os Whigs [liberais] do século xvni defenderam o seu poder
oligárquico em n o m e do povo, não passava, para os próprios líderes Whig,
de simples senso c o m u m .
De facto, eles inspiravam-se n u m a compreensão mais antiga de
"povo", dimanada de u m a noção p r é - m o d e r n a de o r d e m , do primeiro
tipo acima mencionado, onde u m povo é constituído c o m o tal por u m a
Lei que existe desde sempre, desde tempos imemoriais. Esta Lei pode
conferir a liderança a alguns elementos que assim, m u i t o naturalmente,
falam em n o m e do povo. Inclusive as revoluções (ou o que consideramos
c o m o tal) no início dos tempos m o d e r n o s eram levadas a cabo de acordo
com esta compreensão; assim, por exemplo, os monarcómacos nas guerras

24
I A (»Kl >1 M Ml >KAI M< lOFKNA

francesas de religião, que não concederam o direito à rebelião às massas


desorganizadas, mas aos "magistrados subordinados". Foi esta igualmente
a base da rebelião do Parlamento contra Carlos I.
Esta longa marcha está hoje, porventura, a chegar ao seu termo. O u
talvez sejamos igualmente vítimas de uma restrição mental, pela qual as
gerações futuras nos acusarão de inconsistência ou hipocrisia. De qualquer
modo, algumas extensões muito importantes desta jornada ocorreram
há muito pouco tempo. Mencionei, a este respeito, as relações de género
contemporâneas, mas devemos também recordar que, ainda não há muito,
segmentos inteiros da nossa sociedade supostamente moderna permane-
ciam fora deste imaginário social moderno. Eugen Weber mostrou como
muitas comunidades dos camponeses franceses foram remodeladas só no
final do século xix e inseridas na França como uma nação de 4 0 milhões
de cidadãos individuais 1 . Esclarece em que medida o seu anterior estilo de
vida dependia de modos complementares de acção que estavam longe de
ser iguais, sobretudo mas não só entre os sexos; havia também o destino
dos irmãos mais novos que renunciavam à sua parte da herança para man-
ter íntegra e viável a propriedade da família. N u m mundo de indigência
e de insegurança, de escassez sempre ameaçadora, as regras da família e
da comunidade eram, aparentemente, a única garantia de sobrevivência.
Os modos modernos do individualismo afiguravam-se u m luxo, uma
complacência perigosa.
Tal é fácil de esquecer porque, depois de estarmos bem instalados no
imaginário social moderno, ele afigura-se-nos o único possível, o único
que faz sentido. Ao fim e ao cabo, não somos todos indivíduos? Não nos
associamos em sociedade para nosso benefício mútuo? C o m o avaliar de
outro modo a vida social?
A nossa inserção em categorias modernas leva-nos, com facilidade, a
fomentar uma visão de todo distorcida do processo, e sob dois aspectos.
Primeiro, tendemos a ler a progressão deste novo princípio de ordem,
e a sua remoção dos modos tradicionais de complementaridade, como a
ascensão do "individualismo" à custa da "comunidade". No entanto, a nova
compreensão do indivíduo tem como sua inevitável vertente motriz uma
nova compreensão da socialidade, a sociedade de mútuo benefício, cujas

1 Ver Eugen W e b e r , Peasants into Frenchmen ( L o n d r e s : C h a t t o and W i n d u s , 1979),


cap. 28.
IMAíilNÁItK )S S( >1 1 AIS M( )|>l KN< )S

diferenciações funcionais são, cm última análise, contln^i i*l«t < cujos


m e m b r o s são f u n d a m e n t a l m e n t e iguais. Tal c o <|iic em i>n ai .1 ncnle de
vista. O indivíduo afigura-se prioritário porque lemos .1 desarl icnlação tias
formas mais antigas de complementaridade como a erosão da comunidade
enquanto tal. Aparentemente, d e f r o n t a m o s u m problema persistente de
c o m o induzir ou forçar o indivíduo a alguma espécie de ordem social, a
conformar-se e a obedecer às regras.
Esta experiência r e c o r r e n t e de r u p t u r a é assaz real. Mas não deveria
ocultar-nos o facto de que a m o d e r n i d a d e é t a m b é m o nascimento de
novos princípios de socialidade. A r u p t u r a ocorre, c o m o podemos ver
n o caso da Revolução Francesa, p o r q u e as pessoas são expulsas das suas
formas antigas — p o r meio da guerra, da revolução ou da brusca mudança
económica — antes de conseguirem encontrar pé nas novas estruturas,
isto é, associar algumas práticas transformadas aos novos princípios para
constituir u m imaginário social viável. Mas isto não prova que o indivi-
dualismo m o d e r n o seja, por sua própria essência, u m factor dissolvente
da comunidade, n e m que a condição política m o d e r n a seja a definida por
Hobbes: como resgataremos indivíduos atomizados do dilema do prisio-
neiro? O problema real, recorrente, foi mais bem definido p o r Tocqueville
ou, nos nossos dias, p o r François Furet.
A segunda distorção é familiar. O princípio m o d e r n o afigura-se-nos
tão evidente — não somos, por natureza e p o r essência, indivíduos? — que
somos aliciados p o r u m a explicação "subtractiva" do advento da moder-
nidade. Tivemos apenas de nos libertar dos horizontes arcaicos e, em
seguida, a concepção da ordem de serviço m ú t u o foi a alternativa óbvia
que nos restou. N ã o precisava de inteligência inventiva ou de esforço
construtivo. O individualismo e o benefício m ú t u o são as ideias residuais
evidentes que persistem, depois de nos t e r m o s livrado das religiões e
metafísicas passadas.
Mas o reverso é que é verdadeiro. O s seres humanos, na maior parte
da sua história, viveram em modos de complementaridade, mesclados com
u m maior ou m e n o r grau de hierarquia. Houve ilhas de igualdade, como
a dos cidadãos da polis, mas surgem implantadas n u m m a r de hierarquia,
assim que as vemos de u m a perspectiva mais ampla. Isto sem referir quão
estranhas são estas sociedades para o individualismo m o d e r n o . Deveras
surpreendente é que tenha sido possível chegar ao individualismo moderno,
não apenas ao nível da teoria, mas t a m b é m através da transformação e
I A OKI» M MOUAI MODI UNA

da descoberta do im.i|'iiúi i<> social. Dado cjue este imaginário se coligou


com sociedades de um podei sem precedentes na história humana, parece
impossível e irracional tentar resistir. Mas não devemos cair no anacro-
nismo de pensar que sempre assim foi.
O melhor antídoto para este e r r o é trazer, de novo, à m e n t e algumas
das fases da longa e, muitas vezes, conflituosa marcha pela qual esta teoria
acabou p o r se apoderar da nossa imaginação. É o que em p a r t e irei fazer,
à medida que o m e u a r g u m e n t o se expande. Nesta fase, quero condensar
a discussão anterior e delinear as principais características desta compre-
ensão m o d e r n a da o r d e m moral. Isto p o d e esboçar-se em três pontos, a
que acrescentarei, em seguida, u m quarto:

1. A idealização original desta o r d e m de m ú t u o benefício surge n u m a


teoria dos direitos e d o governo legítimo. C o m e ç a c o m os indi-
víduos e concebe a sociedade c o m o estabelecida p o r m o r deles.
A sociedade política é olhada c o m o u m i n s t r u m e n t o para algo de
pré-político.
Este individualismo significa u m a rejeição da noção, antes predo-
m i n a n t e , de hierarquia, segundo a qual u m ser h u m a n o só p o d e ser
u m agente moral genuíno quando inserido numa totalidade social mais
ampla, cuja verdadeira natureza deve exibir u m a complementaridade
hierárquica. Na sua f o r m a original, a teoria grocio-lockeana opõe-se
a todas as concepções, de que a de Aristóteles é a mais p r o e m i n e n t e ,
que negam que alguém possa ser u m sujeito h u m a n o plenamente
idóneo fora da sociedade.
A medida que esta ideia de o r d e m avança e gera novas redacções,
une-se novamente a u m a antropologia filosófica que, mais u m a vez,
define os seres h u m a n o s como seres sociais, incapazes de funcionar
m o r a l m e n t e p o r si mesmos. Rousseau, Hegel e M a r x fornecem
os exemplos mais antigos, e são hoje seguidos p o r u m a falange de
pensadores. Mas, a m e u ver, trata-se ainda de redacções da ideia
m o d e r n a , porque o que elas estabelecem c o m o u m a sociedade b e m
ordenada incorpora, enquanto elemento crucial, relações de serviço
m ú t u o entre indivíduos iguais. Esta é a m e t a , inclusive para aqueles
que pensam que o indivíduo burguês é u m a ficção e que o objectivo
se p o d e alcançar só n u m a sociedade comunista. Mesmo vinculado a
conceitos éticos antagónicos aos dos teóricos do direito natural e, na
IMAíiINÂUK >N S()('IAIS M< (I M UN( )S

realidade, mais perto do Aristóteles que eles rejeitaram, o cerne da


ideia moderna continua a ser uma iJcc force no nosso mundo.
2. C o m o instrumento, a sociedade política capacita estes indivíduos para
se ajudarem uns aos outros e m benefício m ú t u o , ao proporcionar a
segurança e ao encorajar a troca e a prosperidade. Quaisquer dife-
renciações n o seio da sociedade hão-de ser justificadas por este telos
[fim]; n e n h u m a forma, hierárquica ou não, é intrinsecamente boa.
O significado disto, c o m o acima vimos, é que o serviço m ú t u o se
centra nas necessidades da vida c o m u m , e não intenta garantir aos
indivíduos a suprema virtude. Visa assegurar as suas condições de
existência c o m o agentes livres. Aqui, t a m b é m , redacções ulterio-
res implicam u m a revisão. C o m Rousseau, p o r exemplo, a própria
liberdade torna-se a base para u m a nova definição de virtude, e u m a
ordem do verdadeiro benefício m ú t u o torna-se inseparável daquela
que garante a virtude da autodependência. Mas Rousseau e os seus
seguidores ainda p õ e m o acento tónico na garantia da liberdade, da
igualdade e das necessidades da vida ordinária.
3. A teoria começa com os indivíduos, que a sociedade política deve
servir.. Mais i m p o r t a n t e ainda, este serviço é definido em t e r m o s da
defesa dos direitos dos indivíduos. A liberdade está no centro destes
direitos. A importância da liberdade é atestada na exigência de que a
sociedade política se baseia no consentimento dos que por ela estão
vinculados.
Se r e f l e c t i r m o s no c o n t e x t o e m que esta teoria actuava, podemos
ver que a ênfase crucial posta na liberdade era sobredeterminada.
A ordçm do benefício m ú t u o é u m ideal a construir. Serve de guia
para aqueles que querem estabelecer u m a paz estável e, em seguida,
refazer a sociedade para a aproximar cada vez mais das suas normas.
O s proponentes da teoria já se vêem a si m e s m o s c o m o agentes que,
através da acção desinteressada, disciplinada, p o d e m reformar as suas
próprias vidas e t a m b é m a o r d e m social mais ampla. São entidades
pessoais protegidas, disciplinadas. A actuação livre é essencial à sua
autocompreensão. A ênfase nos direitos e o p r i m a d o da liberdade
entre estes não deriva j u s t a m e n t e do princípio de que a sociedade
deve existir p o r m o r dos seus m e m b r o s ; reflecte t a m b é m o sentido
que os seus detentores t ê m da sua própria actuação e da situação que
esta actividade normativamente exige no mundo, a saber, a liberdade.
I A (>IU >1 M Mi »UAI M()|)l UNA

Assim, a ótica aciui operante deveria definir-se tanto nos termos


desta condição de actuação como nos termos das exigências da ordem
ideal. Deveríamos pensar nela como numa ética da liberdade e do
mútuo benefício. Ambos os termos nesta expressão são essenciais.
É por isso que o consentimento desempenha um papel tão relevante
nas teorias políticas que dimanam desta ética.

Resumindo, podemos dizer que (1) a ordem do m ú t u o benefício


vigora entre indivíduos (ou, pelo menos, agentes morais que são inde-
pendentes de ordens hierárquicas mais amplas); (2) os benefícios incluem
c rucialmente a vida e os meios de vida, embora a salvaguarda destes se
relacione com a prática da virtude; e (3) a ordem institui-se para garantir
a liberdade e expressa-se facilmente em termos de direitos. A estes pode
acrescentar-se u m quarto ponto:

4. Há que garantir, a todos os participantes igual acesso a estes direitos,


a esta liberdade, a este benefício mútuo. O que se indica por igualdade
há-de decerto variar, mas que ela deve ser de algum m o d o afirmada
é uma consequência da rejeição da ordem hierárquica.

São estas as características cruciais, as constantes recorrentes na ideia


moderna de ordem moral, ao longo das suas variadas redacções.
2. Que é ti 111 "imaginário social"?

Nas páginas anteriores utilizei, várias vezes, o t e r m o "imaginário


social". Chegou, p o r v e n t u r a , o t e m p o de t o r n a r mais claro o que aqui
está implicado.
Por imaginário social entendo algo de m u i t o mais vasto e p r o f u n d o
do que os esquemas intelectuais que as pessoas p o d e m acoitar, quando
pensam, de forma desinteressada, acerca da realidade social. Estou a pensar
sobretudo nos modos c o m o imaginam a sua existência social, c o m o se
a c o m o d a m umas às outras, como as coisas se passam entre elas e os seus
congéneres, as expectações que n o r m a l m e n t e se e n f r e n t a m , as noções e
as imagens normativas mais profundas que subjazem a tais expectações.
Há importantes diferenças entre imaginário social e teoria social.
Adopto o t e r m o imaginário (1) porque a m i n h a focagem incide n o m o d o
habitual como as pessoas "imaginam" o seu ambiente social, e isto não se
expressa, muitas vezes, e m t e r m o s teóricos, mas apoia-se e m imagens,
narrativas ç lendas. Acontece t a m b é m que (2) a teoria é, c o m frequência,
a posse de u m a pequena minoria, ao passo que aquilo que é interessante
no imaginário social é a sua partilha p o r largos g r u p o s de pessoas, se não
por toda a sociedade. O que leva a u m a terceira diferença: (3) o imagi-
nário social é a compreensão c o m u m que possibilita práticas comuns e
u m sentido de legitimidade amplamente partilhado.
Acontece, muitas vezes, que o que c o m e ç o u como teorias adoptadas
p o r umas quantas pessoas acaba por infiltrar o imaginário social, primeiro
talvez das elites, e em seguida de toda a sociedade. Foi o que sucedeu, grosso
modo, às teorias de Grotius e Locke, embora as transformações t e n h a m
sido muitas ao longo do c a m i n h o e as formas últimas bastante variadas.
O nosso imaginário social é, em qualquer época, complexo. Incor-
pora u m sentido das expectações normais que temos uns dos outros, o
tipo de compreensão c o m u m que nos possibilita levar a cabo práticas
colectivas que constituem a nossa vida social. Isto inclui a l g u m sentido
do m o d o como todos nos ajustamos a exercitar a prática c o m u m . Seme-
lhante compreensão é, ao m e s m o t e m p o , factual e normativa; ou seja,
t e m o s u m sentido de c o m o as coisas habitualmente se passam, mas ele

31
está entretecido com uma ideia de como cl.is deviam •.< i, «I< qu> falsos
passos invalidariam a prática. Consideremos a nossa pi.illi .1 d< escolher
governos mediante eleições gerais. U m a parte da compreensão de fundo
que, para cada u m de nós, dá sentido ao acto de votar é a nossa .»percepção
da acção integral, envolvendo todos os cidadãos, em que cada um escolhe
individualmente, mas entre alternativas idênticas, e estas micro-escolhas
se combinam numa decisão vinculatória, colectiva. Essencial à nossa
compreensão do que está implicado neste tipo de macrodecisão é a nossa
capacidade de identificar o que constituiria uma infâmia: certos tipos de
influência, compra de votos, ameaças e quejandos. Por outras palavras,
este tipo de macrodecisão tem de satisfazer certas normas, se há-de ser
o que pretende ser. Por exemplo, se uma minoria pudesse obrigar todos
os outros a conformar-se com as suas ordens, o resultado deixaria de ser
uma decisão democrática.
Nesta compreensão das normas está implícita a capacidade de reco-
nhecer casoa ideais (por exemplo, uma eleição em que, de forma autó-
noma, cada cidadão exercia ao m á x i m o o seu juízo, em que cada um era
ouvido). E, para lá do ideal, existe alguma noção de uma ordem moral
ou metafísica, em cujo contexto as normas e os ideais ganham sentido.
O que eu chamo de imaginário social estende-se para lá da compre-
ensão básica imediata que dá sentido às nossas práticas particulares. Não se
trata de uma extensão arbitrária do conceito porque, assim como a prática
sem a compreensão não faria sentido para nós e, deste modo, não seria
possível, assim t a m b é m esta compreensão supõe, se é para fazer sentido,
uma apreensão mais ampla de toda a nossa situação: como atendemos uns
aos outros, como chegámos até onde estamos, como nos relacionamos
com outros grupos, e assim por diante.
Esta apreensão mais vasta não tem limites claros. Tal é a natureza
peculiar daquilo que os filósofos contemporâneos descreveram como o
"fundo" 1 . E, de facto, no seio desta compreensão em grande parte não-
-estruturada e inarticulada da nossa situação global que as características
particulares do nosso mundo nos mostram o sentido que elas têm. Ela
nunca se pode expressar adequadamente na forma de doutrinas explícitas,

1 Ver as discussões in H u b e r t D r e y f u s , Being in the World ( C a m b r i d g e : M I T Press,


1 9 9 1 ) e J o h n Searle, The Construction of Social Reality (Nova Iorque: F r e e Press, 1 9 9 S ) , q u e
se valem da obra d e H e i d e g g e r , W i t t g e n s t e i n e Polanyi.
) Qlll í UM "IMAUINÁKIO SOCIAI"? 1

devido à sua natureza irrestrita e indefinida. Eis outra razão para aqui
lalar de um imaginário, e não de uma teoria.
A relação e n t r e as práticas e a compreensão de f u n d o que está por
detrás delas não é, p o r t a n t o , unilateral. Se a compreensão possibilita a
prática, c t a m b é m verdade que a prática suporta, em ampla medida, a
compreensão. Podemos, e m qualquer altura, falar do "repertório" de
acções colectivas à disposição de u m dado g r u p o da sociedade. Estas são
.is acções comuns que os indivíduos sabem c o m o empreender, desde u m a
eleição geral, envolvendo toda a sociedade, até ao m o d o de saber como
iniciar u m a conversa polida, mas solta, com u m g r u p o casual n o átrio de
recepção. As avaliações que temos de fazer para as levar a cabo, sabendo
com q u e m falar, quando e como, incluem u m mapa implícito do espaço
social, dos tipos de pessoas a que nos p o d e m o s associar em que modos
e em que instâncias. Porventura, não inicio a conversa, se o g r u p o for
socialmente superior a m i m ou de categoria mais elevada ou se for cons-
tituído apenas por mulheres.
Esta captação implícita do espaço social não se assemelha a uma
descrição teórica de espaço, distinguindo diferentes tipos de pessoas e as
normas a eles associadas. A compreensão implícita na prática está para a
teoria social na mesma relação em que a m i n h a capacidade de m e mover
n u m ambiente familiar está para u m mapa (literal) desta área. Sou muito
bem capaz de me orientar, sem ter de adoptar a perspectiva da visão de
conjunto que o mapa m e oferece. De m o d o semelhante, d u r a n t e a maior
p a r t e da história humana e da vida social, funcionamos graças à apreen-
são que temos do r e p e r t ó r i o c o m u m , sem o auxílio da visão teórica de
conjunto. O s seres h u m a n o s actuaram c o m base n u m imaginário social,
muito antes de alguma vez se darem ao trabalho de teorizar acerca de si
mesmos 2 .

2 O m o d o como o imaginário social se estende b e m além do que foi (ou pode ser)
teorizado está ilustrado na interessante discussão de Francis Fukuyama sobre a economia
da confiança social. Algumas economias acham difícil c o n s t r u i r empresas não estatais de
grande escala, porque é inexistente ou fraco u m clima de confiança que se estenda além
da família. O imaginário social nestas sociedades assinala discriminações — e n t r e parentes
e não parentes — para fins de associação económica que, em grande p a r t e , passaram assaz
despercebidas nas teorias da economia que todos partilhamos, incluindo as pessoas dessas
sociedades. O s governos p o d e m ser induzidos a adoptar políticas, alterações legais, incen-
tivos, etc., sob o pressuposto de que a formação de empresas de qualquer escala figura no
IMAíiINÁKIl >S S<)('I AIS M< )DI KN( )S

Outro exemplo poderia ajudar-nos a tornai mali < on< I< la a atnpli
tude e a p r o f u n d i d a d e desta compreensão implícita. < hyanl/amos, por
exemplo, u m a manifestação. Q u e r isto dizer que este acto se encontra já
n o nosso r e p e r t ó r i o . Sabemos c o m o havemos de nos juntar, arranjamos
bandeiras e marchamos. Sabemos que t e m o s de p e r m a n e c e r dentro de
certos limites, quer espacialmente (não invadimos certos espaços) quer
n o m o d o como ela impressiona os outros (a vertente de u m limiar da
agressividade, não violência). C o m p r e e n d e m o s o ritual.
A compreensão de f u n d o que, para nós, torna possível este acto
é complexa, mas u m a p a r t e do que lhe confere sentido é u m a imagem
de nós mesmos c o m o falando a outros com os quais estamos de alguma
maneira relacionados — digamos, são compatriotas ou p e r t e n c e m ao
género humano. Há aqui u m acto de fala, emissor e receptores, e alguma
compreensão do m o d o como eles p o d e m estar nesta relação recíproca.
Há espaços públicos; já estamos nalgum tipo de conversação uns com os
o'utros. C o m o todos os actos de fala, ele é dirigido a u m a palavra já antes
pronunciada e m vista de u m a palavra a ser proferida 1 .
O m o d o de discurso reflecte a base e m que nos posicionamos rela-
tivamente aos nossos receptores; a acção é assertiva; visa impressionar,
talvez até prenunciar certas consequências, se a nossa mensagem não for
ouvida. Mas visa igualmente persuadir; persiste este lado da violência.
Concebe o r e c e p t o r c o m o alguém c o m que se pode, e deve, argumentar.
O sentido imediato do que fazemos, levar a mensagem ao Governo ou
aos nossos concidadãos de que, por exemplo, os cortes devem acabar, encaixa
b e m n u m contexto mais amplo, n o qual nos vemos a nós mesmos como
p e r m a n e c e n d o n u m a relação contínua c o m outros, no qual é apropriado
dirigir-nos a eles deste m o d o e não, digamos, com u m a súplica humilde

seu r e p e r t ó r i o e necessita apenas de e n c o r a j a m e n t o . Mas o sentido d e u m a b a r r e i r a rígida


da c o n f i a n ç a r e c í p r o c a e m t o r n o da família p o d e r e s t r i n g i r s e v e r a m e n t e o r e p e r t ó r i o , p o r
m u i t o que se consiga d e m o n s t r a r t e o r i c a m e n t e às pessoas que elas p o d e r i a m t e r u m a situação
m u i t o m e l h o r , se m u d a s s e m o m o d o de fazer negócio. O mapa implícito d o espaço social
t e m fissuras f u n d a s , q u e e s t ã o p r o f u n d a m e n t e ancoradas na c u l t u r a e n o imaginário, para
lá d o alcance da c o r r e c ç ã o m e d i a n t e u m a m e l h o r t e o r i a . Francis F u k u y a m a , Trust (Nova
Iorque: Free Press, 199S).

1 Mikhail B a k h t i n , Speech. Genres and Other Late Essays (Austin: University of Texas
P r e s s , 1986).

34
} Q U E fi UM " I M A G I N Á R I O S O C I A P P I

ou com ameaças de insurreição armada. Podemos acenar rapidamente a


tudo isto dizendo que este tipo de demonstração tem o seu lugar normal
numa sociedade estável, ordenada, democrática.
Não quer isto dizer que não haja casos — Manila 1985, Tiannamen
1989 - em que a insurreição armada seria perfeitamente justificada. Mas
justamente o objectivo deste acto nestas circunstâncias é convidar a tirania
a abrir a porta para u m a transição democrática.
P o d e m o s ver c o m o a c o m p r e e n s ã o d o que fazemos neste exacto
m o m e n t o (sem o que n ã o p o d e r í a m o s levar a cabo esta acção) t e m o
sentido que t e m , p o r causa da nossa apreensão da situação mais vasta:
do m o d o c o m o c o n t i n u a m e n t e estamos ou estivemos e m relação c o m
os o u t r o s e com o p o d e r . Isto, p o r seu t u r n o , abre perspectivas mais
amplas sobre o lugar o n d e nos e n c o n t r a m o s n o espaço e n o t e m p o — a
nossa relação com as outras nações e os o u t r o s povos (por exemplo,
c o m m o d e l o s e x t e r n o s de vida d e m o c r á t i c a que t e n t a m o s imitar, ou
de tirania de que t e n t a m o s distanciar-nos) — e t a m b é m sobre o p o n t o
e m q u e nos e n c o n t r a m o s na nossa história, na narrativa do nosso devir;
reconhecemos assim esta capacidade de nos manifestarmos pacificamente
c o m o u m a realização da democracia, alcançada laboriosamente pelos
nossos antepassados, ou algo a cuja possibilidade efectiva aspiramos
através desta acção c o m u m .
Este sentido de posicionamento no panorama internacional e na
história p o d e ser invocado na iconografia da própria manifestação, como
em T i a n n a m e n em 1989, com as suas referências à Revolução Francesa
e as suas citações do caso americano p o r meio da Estátua da Liberdade.
O contexto que dá sentido a qualquer acto é, assim, amplo e pro-
f u n d o . Não inclui todas as coisas do nosso m u n d o , porque as caracterís-
ticas relevantes que conferem sentido não p o d e m ser delimitadas; mas
p o d e m o s dizer que o dar sentido provém de t o d o o nosso m u n d o , isto
é, d o sentido que temos da nossa situação global no t e m p o e no espaço,
e n t r e os outros e na história.
U m a p a r t e i m p o r t a n t e deste contexto mais amplo é aquilo a que,
antes, chamei de sentido da o r d e m moral. C o m isto pretendo apenas sig-
nificar u m a apreensão das normas subjacentes à nossa prática social, que
são p a r t e da compreensão imediata que possibilita esta prática. Haverá,
por isso, t a m b é m u m sentido, como antes afirmei, do que torna exequíveis
estas n o r m a s . Também isso é u m a porção essencial do contexto da acção.
! IMACINAuIOS sociais modkrnos

As pessoas não fazem manifestações pelo impossível, pelo ulnplio 1 ou se


fazem, então isso torna-se, ipso facto, uma acção algo tlileiciile P.irte do
que estamos a dizer, ao m a r c h a r m o s em Tiannamen, e qur uma sociedade
(um pouco mais) democrática é possível, que podemos construí la, apesar
d o cepticismo dos nossos governantes gerontocratas.
Aquilo em que esta confiança se baseia — p o r exemplo, que os seres
h u m a n o s p o d e m c o n j u n t a m e n t e d e f e n d e r u m a o r d e m democrática, que
tal está d e n t r o das nossas possibilidades humanas — incluirá j u s t a m e n t e
as imagens da o r d e m moral mediante as quais c o m p r e e n d e m o s a vida e
a história humanas. Deveria já ser claro, a p a r t i r do que antes se disse,
que as nossas imagens da ordem m o r a l , e m b o r a possam conferir sentido
a algumas das nossas acções, não t e n d e m necessariamente para a conci-
liação com o statu quo. P o d e m , p o r isso, realçar a prática revolucionária,
c o m o em Manila e e m Pequim, tal c o m o p o d e m subscrever a ordem
estabelecida.
A m o d e r n a teoria da ordem moral infiltra-se e t r a n s f o r m a gradual-
m e n t e o nosso imaginário social. Neste processo, o que originalmente é
u m a idealização transmuta-se cada vez mais n u m imaginário complexo,
p o r ser assumido e associado a práticas sociais, em p a r t e tradicionais,
mas modificadas, muitas vezes, pelo contacto. Isto é crucial para aquilo
que acima apelidei de extensão da compreensão da ordem moral. Não se
poderia ter convertido na concepção dominante na nossa cultura, sem
esta p e n e t r a ç ã o / t r a n s f o r m a ç ã o do nosso imaginário.
Assistimos à o c o r r ê n c i a de transições deste tipo, p o r exemplo, nas
g r a n d e s revoluções f u n d a d o r a s do nosso m u n d o ocidental c o n t e m p o r â -
n e o , a A m e r i c a n a e a Francesa. A transição foi, na p r i m e i r a , m u i t o mais
suave e menos catastrófica, p o r q u e a idealização da soberania popular se
associava, de m o d o relativamente aproblemático, à prática existente de
eleição popular de assembleias, ao passo que, na segunda, a incapacidade

1 N ã o q u e r isto d i z e r q u e as utopias n ã o t e n h a m o seu p r ó p r i o t i p o d e possibilidade.


P o d e m descrever r e g i õ e s longínquas ou f u t u r a s sociedades r e m o t a s q u e hoje não p o d e m ser
i m i t a d a s , que talvez n u n c a c o n s i g a m o s imitar. M a s a ideia subjacente é q u e estas coisas são
r e a l m e n t e possíveis, n o s e n t i d o e m que r e s i d e m na predisposição da n a t u r e z a h u m a n a . Tal
era o q u e pensava o n a r r a d o r d o livro de M o r e : os habitantes da U t o p i a vivem de a c o r d o
c o m a n a t u r e z a . Ver Bronislaw Baczko, Les lmaginaires Sociaux (Paris: Payot, 1984), p. 75.
É t a m b é m o q u e Platão p e n s o u , o que f o r n e c e u u m dos m o d e l o s para o livro de M o r e e
p a r a u m g r a n d e n ú m e r o d e o u t r o s escritos "utópicos".

36
(,xii i' um "imaginArio s o c i a l " ? !

(Ir tr.ulu/ir o mesmo |>i ineípio para um conjunto estável e consensual de


práticas foi uma fonte imensa de conflitos e de incerteza, durante mais de
um século. Mas, nos dois g r a n d e s a c o n t e c i m e n t o s , houve alguma cons-
ciência d o p r i m a d o histórico da teoria, que é essencial à ideia m o d e r n a
de u m a revolução, pela qual nos decidimos a refazer a nossa vida política
de acordo c o m princípios consensuais. Este c o n s t r u t i v i s m o t o r n o u - s e
u m a característica nuclear da m o d e r n a c u l t u r a política.
Q u a i s são j u s t a m e n t e as implicações, q u a n d o u m a teoria p e n e t r a e
t r a n s f o r m a o imaginário social? Quase s e m p r e as pessoas e m p r e e n d e m ,
improvisam ou são induzidas a novas práticas. Estas g a n h a m sentido
e m v i r t u d e da nova visão, que c o m e ç o u p o r ser articulada na teoria;
esta visão é o c o n t e x t o q u e confere sentido às práticas. Por isso, a nova
compreensão torna-se acesssível aos participantes de u m m o d o q u e antes
não existia. C o m e ç a p o r d e f i n i r os c o n t o r n o s do seu m u n d o e p o d e ,
no f i m de contas, vir a i m p o r - s e c o m o a caucionada c o n f i g u r a ç ã o das
coisas, demasiado óbvia para ser digna de m e n ç ã o .
Mas este processo não é unilateral, u m a teoria a elaborar u m
imaginário social. A t r i b u i n d o sentido à acção, a teoria surge c o m o
aceitável, é-lhe dada, p o r assim dizer, u m a configuração p a r t i c u l a r
e n q u a n t o c o n t e x t o das práticas. Algo de s e m e l h a n t e à noção de Kant de
u m a categoria abstracta q u e se t o r n a "esquematizada" q u a n d o é aplicada
à realidade n o espaço e n o t e m p o , a teoria é esquematizada na densa
esfera da prática c o m u m 3 .
N e m o processo precisa de t e r m i n a r aqui. A nova prática, com a
c o m p r e e n s ã o implícita q u e engendra, p o d e ser a base para modificações
da teoria que, p o r seu t u r n o , p o d e i n f l e c t i r a prática, e assim p o r diante.
O que eu designo p o r longa marcha é u m processo pelo qual novas
práticas, ou modificações de outras antigas, se desenvolvem através da
improvisação em certos g r u p o s e estratos da população (por exemplo, a
esfera pública entre as elites educadas no século xvin, os sindicatos e n t r e
os trabalhadores no século XIX), ou foram iniciadas p o r elites de m o d o a
r e c r u t a r u m a base cada vez mais ampla (por exemplo, a organização jaco-
bina das secções em Paris). D e m o d o alternativo, no decurso da sua lenta
expansão e ramificação, u m conjunto de práticas alterou g r a d u a l m e n t e o

2 I m m a n u e l Kant, "Von d e m Schematismus d e r r e i n e n Verständnisbegriffe," in Kritik


der reinen Vernunft, Edição da A c a d e m i a (Berlim: W a l t e r d e G r u y t e r , 1968), 3, p p . 133-39.
I IMAUNAKH )S '.< X IAIS UNI >'.

seu significado para as pessoas e, por isso, ajudou > l oiiMlluli um novo
imaginário social (a "economia"). E m todos estes < a.sos, o i< sultado foi
uma profunda transformação do imaginário social nas sociedades oci-
dentais e, deste modo, do mundo em que vivemos.

38
J. O espectro <lo idealismo

Q u e eu haja começado esta discussão da modernidade ocidental com


uma ideia subjacente de ordem que foi, primeiro, uma teoria e, mais tarde,
ajudou a configurar imaginários sociais, terá talvez, para alguns leitores,
um sabor a "idealismo", a atribuição às ideias de uma força autónoma na
história. Mas a flecha causal, essa, vai decerto na direcção contrária. A
importância do modelo económico na moderna compreensão da ordem
reflectirá assim o que acontece no terreno, por exemplo, a ascensão dos
mercadores, das formas capitalistas de agricultura, o alargamento dos
mercados. Isto fornece a explicação correcta, "materialista".
Penso que este tipo de objecção se baseia numa falsa dicotomia, a
que existe entre ideias e factores materiais como agentes causais antagóni-
cos. Na realidade, o que vemos na história humana são séries de práticas
humanas coexistentes e concomitantes, isto é, práticas materiais levadas a
cabo por seres humanos no espaço e no t e m p o e, muitas vezes, mantidas
de forma coerciva, e simultaneamente concepções de si mesmo, modos
de compreensão. Estes, como já se referiu na discussão dos imaginários
sociais, são, com frequência, inseparáveis, porque as autocompreensões
são a condição essencial para que a prática tenha sentido para os partici-
pantes. Dado que as práticas humanas são o tipo de coisa que faz sentido,
são-lhes inerentes certas ideias; não é possível distinguir as duas de modo
a perguntar: o que causa o quê?
O materialismo, para ter sentido, deve formular-se de modo diferente,
à maneira como G. A. Cohen faz na sua explicação magistral do materia-
lismo histórico 1 . Uma tese do género seria a de que certas motivações são
dominantes na história, as motivações por coisas materiais, por exemplo
económicas, em vista dos meios de vida ou talvez do poder. Isto poderia
explicar uma transformação progressiva dos modos de produção em formas
"mais elevadas". N u m dado caso, u m certo m o d o exigiria certas ideias,
formas legais, normas geralmente aceites e tudo o mais. Reconhece-se,

1 Ver G. A. C o h e n , Karl Marx's Theory of History ( O x f o r d : O x f o r d U n i v e r s i t y Press,


1979), a cuja análise r e c o r r i n o s parágrafos seguintes.
IMAGINÁMOS'SOCIAIS MODlKNOS

assim, na teoria marxista que o capitalismo plenamente • l< '(envolvido é


incompatível com as condições feudais do trabalho; ele renuri lói malmente
(segundo a lei) trabalhadores livres que se podem deslocar e vender o seu
trabalho, c o m o acharem b e m .
A tese materialista afirma aqui que, em tudo o que envolve o m o d o
de produção, f o r m a s legais e ideias, e o primeiro que constitui o factor
crucial. A motivação subjacente que impele os agentes a adoptar o novo
m o d o levou-os t a m b é m a aceitar as novas formas legais, p o r q u e estas lhe
eram essenciais. A forma da explicação é aqui teleológica, não u m a ques-
tão de causação eficiente. Na explicação histórica supõe-se e incorpora-se
u m a relação causal eficiente: p o r q u e as formas legais proporcionam o
m o d o capitalista (causação eficiente), os agentes cujo m o v i m e n t o básico
se dirigiu para este m o d o foram induzidos a favorecer as novas formas
legais (mesmo se inicialmente não t i n h a m noção do que estavam a fazer).
Eis u m a explicação-em-vista-de ou, p o r outras palavras, u m a exposição
teleológica. •
Deve dizer-se que o materialismo, assim formulado, se torna coe-
r e n t e , mas à custa de ser implausível enquanto princípio universal. Há
muitos contextos e m que podemos discernir que o motivo económico é
primordial e explica a adopção de certas ideias morais, c o m o quando os
publicitários nos anos 1960 adoptaram a nova linguagem do individualismo
expressivo e se v i r a m , no fim de contas, compelidos aos novos ideais.
Mas u m a explicação em t e r m o s económicos da difusão da doutrina da
salvação pela fé, na época da R e f o r m a , não é m u i t o plausível. A única
regra geral na história é que não existe u m a regra geral que identifique
u m a só o r d e m de motivação c o m o a p e r m a n e n t e força impulsora. As
ideias surgem s e m p r e na história envolvidas em certas práticas, m e s m o
se estas são apenas práticas discursivas. Mas as motivações que levam à
adopção e à difusão destes conjuntos p o d e m ser m u i t o variadas; na reali-
dade, n e m sequer é claro que t e n h a m o s u m a tipologia de tais motivações
(económicas versus políticas versus ideais, etc.), que seja válida ao longo
da história h u m a n a .
Mas, j u s t a m e n t e p o r q u e as ideias surgem em tais c o n j u n t o s , dizer
alguma coisa sobre o m o d o c o m o a nova ideia de o r d e m m o r a l adquiriu
a força que lhe p e r m i t i u c o n f i g u r a r os imaginários sociais da m o d e r n i -
dade, p o d e r á ser útil e dissipar t a m b é m t o d o o m a l - e s t a r a propósito
do idealismo.
f O I M'l <TH<> I X ) 11)1 Al ISMO

Já mencionei um contexto, onde de certa forma reside a origem


desta ideia m o d e r n a de o r d e m , nas práticas discursivas dos teóricos que
reagiam à destruição ocasionada pelas guerras de religião. O seu fito era
encontrar uma base estável de legitimação para lá das diferenças confes-
sionais. Mas toda esta tentativa precisa de se inserir n u m c o n t e x t o ainda
mais amplo: naquilo que se poderia r o t u l a r de abrandamento ou domes-
ticação da nobreza feudal, que se estendeu desde o final do século xiv até
ao século xvi. Isto é, a transformação da classe nobre dos chefes militares
semi-independentes, muitas vezes com séquitos numerosos, que e m teoria
deviam obediência e fidelidade ao rei mas, na prática, eram m u i t o capazes
de usar o seu poder coercivo para todo o tipo de fins, não sancionados pelo
p o d e r real, n u m a nobreza de servidores da C o r o a / n a ç ã o , que p o d e r i a m ,
muitas vezes, fornecer u m a competência militar, embora já não fossem
capazes de actuar independentemente neste domínio.
Na Inglaterra, a mudança ocorreu principalmente sob os Tudors, que
instituíram u m a nobreza de novo serviço sobre o que restava da antiga
casta guerreira, que devastara o reino nas Guerras das Rosas. Na França,
o processo foi mais longo e mais conflituoso, implicando a criação de u m a
nova noblesse de robe ao lado da velha noblesse d'épée.
Esta t r a n s f o r m a ç ã o alterou a a u t o c o m p r e e n s ã o das elites nobres e
da p e q u e n a aristocracia, o imaginário social que elas t i n h a m não de toda
a sociedade, mas de si m e s m a s e n q u a n t o classe ou o r d e m d e n t r o dela.
T r o u x e consigo novos m o d e l o s de sociabilidade, novos ideais e novas
noções da f o r m a ç ã o r e q u e r i d a para d e s e m p e n h a r o seu papel. O ideal
já n ã o era o do g u e r r e i r o s e m i - i n d e p e n d e n t e , o preux chevalier, c o m o
aposto código de h o n r a , mas o do cortesão, a c t u a n d o j u n t a m e n t e c o m
o u t r o s no conselho e n o serviço do p o d e r real. O novo g e n t i l - h o m e m
não reivindicava, em princípio, u m t r e i n o nas armas, mas u m a educação
humanística que o capacitaria para se t o r n a r u m governante civil. A f u n -
ção era agora aconselhar e persuadir, p r i m e i r o , os colegas e, p o r f i m , o
p o d e r reinante. Era necessário cultivar as aptidões de auto-apresentação,
r e t ó r i c a , persuasão, criação de amizades, aparência i m p o n e n t e , aco-
m o d a d a e aprazível. Se os antigos nobres viviam nas suas p r o p r i e d a d e s
r o d e a d o s de servidores, q u e e r a m seus subordinados, o novo pessoal
de posição elevada t i n h a de actuar nas c o r t e s ou nas cidades, o n d e as
relações hierárquicas e r a m mais complexas, f r e q u e n t e m e n t e ambíguas
e, p o r vezes, ainda i n d e t e r m i n a d a s , p o r q u e a intriga hábil p o d e r i a n u m

41
ima<;inAki< >s s(»ciais m< >i>i hn< >s

instante alçar alguém ao píncaro (o os erros podi i i m i pii < ipii ti uma
queda abrupta)'.
Daí a nova i m p o r t â n c i a , para as elites, da !<n m.u,.u> humanista.
I m vez de se i n s t r u i r o filho para o t o r n e i o , que ele leia I la-.mo ou
Castiglione, para que saiba c o m o falar de m o d o adequado, causai' uma
boa impressão, conversar de f o r m a persuasiva c o m o u t r o s n u m a ampla
variedade de situações. Esta f o r m a ç ã o fazia sentido no novo tipo de
espaço social, nos novos m o d o s de sociabilidade, em que os filhos da
nobreza e da p e q u e n a aristocracia deveriam abrir o seu c a m i n h o . O
p a r a d i g m a que define a nova sociabilidade não é o combate ritualizado,
mas a conversação, o discurso, o agradar, o ser persuasivo, n u m con-
t e x t o de quase-igualdade. N ã o quero sugerir c o m isto u m a ausência de
hierarquia, p o r q u e a sociedade da c o r t e estava pejada dela, mas antes
u m c o n t e x t o e m que a hierarquia t e m , e m p a r t e , de ser posta e n t r e
parêntesis p o r causa da complexidade, da ambiguidade e da i n d e t e r m i -
n a ç ã o , a n t e s referidas. Aprende-se a falar c o m as pessoas n u m a ampla
série de níveis, n o interior de certos c o n s t r a n g i m e n t o s c o m u n s de
polidez, p o r q u e isto é o q u e exige ser agradável e persuasivo. Não se
p o d e chegar a n e n h u m lado, se se estiver s e m p r e a p u x a r dos galões e a
ignorar os que estão abaixo de nós, ou c o m a língua tão presa que não
se possa falar aos q u e estão acima.
Estas qualidades estavam, muitas vezes, reunidas no t e r m o "cortesia",
cuja etimologia aponta para o espaço em que elas tinham de ser exibidas.
O t e r m o era antigo, r e m o n t a n d o à época dos trovadores e passando pela
florescente corte borgonhesa do século xv. Mas o seu significado alterou-
-se. As cortes mais. antigas eram lugares em que os guerreiros semi-
-independentes se r e u n i a m , de tempos a tempos, para torneios e exibições
hierárquicas em t o r n o da casa real. Mas quando Castiglione escreve o seu
bestseller 0 Cortesão, o c o n t e x t o é a cidade-corte da Duquesa de Urbino,
onde o cortesão t e m a sua morada p e r m a n e n t e e onde a sua ocupação é
aconselhar o seu príncipe. A vida é u m a contínua conversação.

1 Esta é a t r a n s i ç ã o a q u e Michael M a n n , ao falar d o caso inglês, dá o n o m e de


deslocação do Estado " c o o r d e n a d o p a r a o Estado orgânico" (1: 4 5 8 - 6 3 ) . N o c o n t e x t o dos
r e g i m e s constitucionais d e s t e p e r í o d o (Inglaterra, Holanda), associa-a à criação d o que
ele c h a m a a "classe-nação" ( 4 8 0 ) . Michael M a n n , The Sources of Social Power ( C a m b r i d g e ,
I n g l a t e r r a : C a m b r i d g e U n i v e r s i t y Press, 1986).
I O ESI'I (TUODO 11)1 Al ISMO

No seu M|iinl u .itlo ulterior, cortesia veio a associar-se a o u t r o t e r m o ,


"civilidade", l a m b e m este invoca u m denso cenário.
U m elemento crucial neste relato começa na noção renascentista de
civilidade, o antepassado da nossa "civilização", e com igual força. E o que
nós t e m o s e outros não, os quais carecem das excelências, dos r e f i n a m e n -
tos, das realizações i m p o r t a n t e s que valorizamos n o nosso m o d o de vida.
Os outros e r a m os "selvagens". C o m o p o d e m o s ver a p a r t i r dos t e r m o s ,
o contraste sintético subjacente é entre a vida na selva e a vida na cidade.
A cidade, segundo os antigos, vê-se c o m o o lugar da vida h u m a n a no
seu m e l h o r e mais elevado p o n t o . Aristóteles esclarecera que só na pólis
os h u m a n o s alcançam a plenitude da sua natureza. O t e r m o civilidade
está ligado à palavra latina que traduz pólis (civitas); de facto, utilizavam -
-se t a m b é m derivações da palavra grega c o m u m sentido i n t i m a m e n t e
relacionado: no século xvii, os Franceses falavam de u m état policé c o m o
de algo que eles possuíam, e os sauvages não. (Mais à f r e n t e , discuto a
importância do ideal de sociedade 'polida'.)
Assim, p a r t e do que este t e r m o designava era o m o d o de governo.
Há que ser governado de u m a maneira ordenada, sob u m código legal,
segundo o qual governantes e magistrados exerciam as suas funções. O s
selvagens e r a m encarados c o m o desprovidos destas coisas, e m v i r t u d e
da projecção neles da imagem do " h o m e m natural". Mas aquilo de que
r e a l m e n t e careciam era, na maior p a r t e dos casos, das acções do que
concebemos como u m Estado m o d e r n o , u m i n s t r u m e n t o incessante de
governação em cujas mãos se concentrava u m a grande p a r t e do p o d e r
sobre a sociedade, de m o d o a p o d e r modelá-la de formas relevantes 2 .
Devido ao seu desenvolvimento, este Estado veio a encarar-se c o m o u m a
característica definidora de u m état policé.
O m o d o de governo requerido pela civilidade garantia t a m b é m u m
certo grau de paz doméstica. Não se harmoniza c o m a grosseria, c o m a
violência aleatória e ilegítima ou com as arruaças públicas, quer e n t r e os
jovens aristocratas quer e n t r e o povo. N a t u r a l m e n t e , no princípio dos
t e m p o s m o d e r n o s , estas coisas abundavam. E istó alerta-nos para u m a
diferença i m p o r t a n t e e n t r e o lugar que a civilidade tinha n o discurso

2 Isto inclui, m a s ultrapassa o i m p o r t a n t e " m o n o p ó l i o d o u s o l e g í t i m o da força


física", d e que fala M a x W e b e r . "Politics as a Vocation," H . H . G e r t h e C . W r i g h t Mills
eds., Max Weber (Nova Iorque: O x f o r d University Press, 1964), p. 7 8 .
IMAtlINÁHH IS S< (CIAIS M< >1 >1 KN< )S

renascentista e aquele que a civilização detém no IIONNU I M


nossos jornais da m a n h ã , as notícias acerca dos massacii . n.i II.. ni t no
Ruanda ou do colapso do governo na Libéria, tendemos a vei m.-, n.i |»...•..
tranquila do que chamamos civilização, embora sintamos algum embai açu
em dizê-lo em voz alta. U m m o t i m racial na nossa pátria p o d e p e r t u r b a r
a nossa equanimidade, mas depressa nos r e c o m p o m o s .
Na época do Renascimento, as elites e n t r e as quais circulava este
ideal t i n h a m plena consciência de que ele não só era inexistente n o estran-
geiro, c o m o estava incompleto no seu país. A gente c o m u m , embora não
ao nível dos selvagens na América e até m u i t o acima dos povos europeus
grosseiros e marginais (por exemplo, os Irlandeses, os Russos)', tinha
ainda u m longo c a m i n h o a percorrer. M e s m o os m e m b r o s das elites
governantes precisavam de ser sujeitos a u m a forte disciplina em cada
nova geração, como p r o p u n h a em 1551 u m a lei veneziana da educação
pública 2 . A civilidade não era algo que se obtinha n u m c e r t o estádio da
história e que se poderia dar p o r adquirido, que é o m o d o c o m o tendemos
a pensar acerca da civilização.
A civilidade r e f l e c t i a a t r a n s i ç ã o q u e as sociedades e u r o p e i a s
estavam a atravessar desde cerca de 1 4 0 0 , e p o r m i m d e s c r i t a c o m o
a d o m e s t i c a ç ã o da n o b r e z a . O novo (ou r e c e n t e m e n t e r e d e s c o b e r t o )
ideal r e f l e c t i a u m n o v o estilo de vida. Se c o m p a r a r m o s , p o r e x e m p l o ,
a vida da n o b r e z a inglesa e da p e q u e n a aristocracia, a n t e s das G u e r -
ras das Rosas, c o m o m o d o c o m o viviam sob os Tudors, a d i f e r e n ç a
é i m p r e s s i o n a n t e : o c o m b a t e já n ã o é u m a p a r t e d o estilo n o r m a l de
vida desta classe, e x c e p t o nas g u e r r a s ao serviço da C o r o a . Algo de
s e m e l h a n t e a este p r o c e s s o persiste ao longo de q u a t r o séculos, até
q u e , cerca de 1 8 0 0 , u m país civilizado n o r m a l é aquele q u e p o d e
g a r a n t i r u m a paz d o m é s t i c a c o n t í n u a e e m que o c o m é r c i o s u b s t i t u i u ,
e m larga m e d i d a , a g u e r r a c o m o a actividade p r e d o m i n a n t e c o m que

1 J o h n Hale, The Civilization of Europe in the Renaissance (Nova Iorque: M a c m i l l a n ,


1993), 362. Spenser falou da "selvagem b r u t a l i d a d e e da (abominável) i m u n d í c i e dos
Irlandeses; ver A n n a B r y s o n , From Courtesy to Civility ( O x f o r d : O x f o r d U n i v e r s i t y Press,
1998), p. S3. U m a visão c o m u m era a de q u e "as pessoas grosseiras [são] p o r n a t u r e z a
r u d e s , e n f a d o n h a s , d e s c o r t e s e s , b r u t a s , selvagens, c o m o se fossem b á r b a r o s " (citado in
B r y s o n , From Courtesy to Civility, Civilization of Europe, p. 64.)

2 Hale, pp. 3 6 7 - 6 8 .
t, () I Sl'l < 11« ) l)() II )EAI ISMO

a socied.idt política si- p r e o c u p a ou, pelo menos, partilha a pree-


minência com a guerra.
Mas esta mudança não sobreveio sem resistência. O s jovens nobres
e r a m capazes de acessos de desordem, os carnavais oscilavam na estreita
linha e n t r e a troça e a violência real, os salteadores eram numerosos, os
vagabundos podiam ser perigosos, os m o t i n s urbanos e as sublevações
camponesas, provocados pelas condições intoleráveis da vida, e r a m recor-
rentes. A civilidade t i n h a de ser, até c e r t o p o n t o , u m credo militante.
O governo r e g u l a m e n t a d o era u m a faceta da civilidade, mas havia
outras: u m certo desenvolvimento das artes e das ciências, que hoje
chamaríamos de tecnologia (também aqui, c o m o a nossa civilização); o
desenvolvimento do autodomínio moral racional; e t a m b é m , de forma
crucial, o gosto, as atitudes, o r e f i n a m e n t o — e m suma, a boa educação
e as boas maneiras 3 .
Mas estes desenvolvimentos, não m e n o s do que o governo regula-
m e n t a d o e a paz doméstica, encaravam-se c o m o os f r u t o s da disciplina e
da formação. U m a imagem fundamental era a da civilidade c o m o resultado
do adestramento ou da domação de u m a natureza originalmente selvagem,
bruta 4 . Eis o que subjaz à etnocentricidade, para nós s u r p r e e n d e n t e , dos
nossos antepassados. Por exemplo, eles não viam a sua diferença relati-
vamente aos Ameríndios c o m o a que existe e n t r e duas culturas, assim
diríamos hoje, mas c o m o a que existe entre cultura e natureza. Nós somos
adestrados, disciplinados, formados, e eles não. O c r u e n f r e n t a o cozido.
E i m p o r t a n t e não esquecer que há u m a ambivalência neste contraste.
Muitos e r a m tentados a a f i r m a r que a civilidade nos enerva, nos torna
débeis. Talvez a elevação da virtude se deva encontrar precisamente na
natureza não adulterada 5 . E, n a t u r a l m e n t e , havia honrosas excepções a
toda esta perspectiva etnocêntrica, como Montaigne 6 . Mas a compreensão
geral dos que pensavam d e n t r o do contraste selvagem/adestrado, fosse
qual fosse o lado para que tendiam, molda o processo que nos t r o u x e do

3 Ibid., p. 3 6 6 . O t e r m o "polido" é, claro e s t á , o u t r o e m p r é s t i m o d o t e r m o g r e g o ,


t r a d u z i d o p o r "civil".

4 Ibid., p. 367. Ver a e s t á t u a de Carlos V t r i u n f a n d o sobre a selvajaria.


5 Ibid., p. 369-71.

6 Ver M o n t a i g n e , "Les C a n n i b a l e s , " in Essais (Paris: G a r n i e r / F l a m m a r i o n , 1969),


livro 1, cap. 31.
IMAGINÁMOS S< (CIAIS M( >1 )| I<N( )S

p r i m e i r o para o segundo c o m o implicando u m a Ni vri ih . iplm. I i|< m


definiu-a como "o bordão de Circe que domava o homem i i In t.> <111<
com ele eram tocados, pelo que cada u m é levado ao n-spcilo . .1 jusi.t
obediência onde, antes, todos eram ferozes e desregrados 1 ." C) "bordão
de Circe" é u m a grande imagem literária e faz com que a disciplina sadia
pareça fácil, mas a segunda p a r t e da frase indica que esta transformação
é u m a árdua caminhada. A civilidade exige o trabalho sobre si m e s m o ,
não deixar as coisas c o m o estão, mas elaborá-las. Implica u m a luta para
nos r e c o n f i g u r a r m o s .
A compreensão que o alto Renascimento teve da cortesia aproxima-a,
pois, da compreensão de civilidade 2 , própria da mesma época. Esta con-
vergência reflecte a domesticação da aristocracia e a grande pacificação
interna da sociedade sob o nascente Estado m o d e r n o (a g u e r r a exterior
era u m a questão diferente). Ambas as virtudes designam as qualidades que
se r e q u e r e m para suscitar a coesão no novo espaço social da elite: "Pela
cortesia e humanidade', todas as sociedades e n t r e os homens são mantidas
e preservadas" e "os sinais basilares da civilidade são a quietude, a concór-
d i a , o acordo, a camaradagem e a amizade." As virtudes que p r o m o v e m
a h a r m o n i a social .e, sobretudo, a paz incluem, tal como a civilidade, "a
Cortesia, a Gentileza, a Afabilidade, a Clemência, a Humanidade" 3 .
A discussão da civilidade remete-nos para u m a terceira faceta da
transição para u m a elite pacificada. A civilidade não era u m a condição
natural dos seres h u m a n o s , n e m era de fácil obtenção. Exigia grandes
esforços de disciplina, a domação da natureza grosseira. A criança encarna
a condição "natural" da ausência de lei e t e m de ser trabalhada 4 .
Precisamos, p.or isso, de entender a noção de civilidade não n o con-
t e x t o da domesticação da nobreza, mas relativamente à tentativa, muito
mais difundida e ambiciosa, de maquilhar todas as classes da sociedade
m e d i a n t e novas formas de disciplina — económicas, militares, religiosas,
morais — que são u m a característica m a r c a n t e da sociedade europeia

1 Justus Lipsius, Six Bookes of Politickes, t r a d . W i l l i a m Jones ( L o n d r e s , 1S94), 17;


c i t a d o in Hale, Civilization of Europe, p. 3 6 0 .

2 Este é o p r o c e s s o q u e Bryson descreve na sua b r i l h a n t e obra From Courtesy to Civility.


A p r e n d i m u i t o c o m e s t e livro.

3 C i t a d o in ibid., p. 7 0 .

4 Bryson realça i g u a l m e n t e este p o n t o ; ver ibid., p. 72.


I O liSPECTKO DO II »1 Al ISMO 1

desde, pelo menos, o século xvii. Esta transformação foi reforçada pela
aspiração a uma reforma religiosa mais completa, simultaneamente p r o -
testante e católica, e pelas ambições dos Estados de alcançar maior p o d e r
militar e, consequentemente, c o m o condição necessária, u m a economia
mais produtiva. D e facto, estes dois p r o g r a m a s estavam, muitas vezes,
interligados; os governos da Reforma viam a religião como u m a boa
fonte de disciplina e as Igrejas c o m o i n s t r u m e n t o s vantajosos, e muitos
r e f o r m a d o r e s religiosos encararam a vida social regulamentada como a
expressão essencial da conversão.
A noção puritana da vida boa, p o r exemplo, via no santo u m pilar de
u m a nova ordem social. Perante a indolência e a desordem dos monges,
mendigos, vagabundos e gentis-homens ociosos, ele "entrega-se a u m
negócio honesto e decoroso, e não suporta que os seus sentidos sejam
mortificados com a ociosidade" 5 . Isto não significa u m a actividade qualquer,
mas aquela a que ele se entregou como vocação vitalícia. " Q u e m não t e m
u m negócio honesto do qual habitualmente se ocupa, e não estabelece
n e n h u m trajecto a que se possa dedicar, não p o d e agradar a Deus." Assim
se expressava o pregador p u r i t a n o Samuel Hieron' 1 .
Estes homens são industriosos, disciplinados, fazem trabalho útil e,
acima de tudo, pode confiar-se neles. "Estabeleceram trajectos" e, desse
m o d o , são m u t u a m e n t e previsíveis. Pode construir-se u m a o r d e m social
sólida, fiável, nas alianças que eles fazem u n s com os outros. Não são
tentados pela maldade, p o r q u e a ociosidade é a principal raiz que alimenta
t o d o o tipo de males: " O cérebro de u m h o m e m ocioso depressa se t o r n a
a loja do d i a b o . . . D o n d e nascem, nas cidades, os motins e as m u r m u r a -
ções contra os magistrados? Não se pode oferecer dela u m a causa maior
do que a ociosidade 7 ."
C o m tais homens, p o d e construir-se u m a sociedade segura, b e m
ordenada. Mas, claro está, n e m toda a gente será c o m o eles. Todavia, o
projecto puritano p o d e lidar com esta dificuldade: governaria o divino,
deveria ser mantido sob controlo o degenerado. O magistrado, c o m o pen-
sava Baxter, deve forçar todos os homens "a aprender a palavra de D e u s e

5 H e n r y Crosse, Virtue's Commonwealth; citado in Michael W a l z e r , The Revolution of


the Saints ( C a m b r i d g e , M A : H a r v a r d University P r e s s , 196S), p. 2 0 8 .

6 C i t a d o in Walzer, Revolution of the Saints, p p . 211-12.

7 D o d e Cleaver, Household Government, sig. X 3 ; c i t a d o in ibid., p. 216.

47
! I M A G I N Á M O S SOCIAIS MODI UNOS

a caminhar do um modo ordenado c pacífico... <iu< • • I• . .< j , i m li V.KION


a uma profissão voluntária e pessoal do cristianismo 1 ," 1 1.1 < ii.i i.imhéin,
no fundo, a mesma ordem que Calvino erigira cm (ícnchr.i
Assim, enquanto a Reforma calvinista definia a senda para .1 verdadeira
obediência cristã, parecia t a m b é m oferecer a solução para as graves, e até
pavorosas, crises sociais da época. A regeneração espiritual e a salvação
da o r d e m civil pareciam caminhar lado a lado.
Por outras palavras, p o d e m o s dizer que, enquanto as elites da
Idade Média tardia, n a t u r a l m e n t e clericais, mas com u m a crescente
c o m p o n e n t e leiga, desenvolveram ideais de mais intensa devoção e
chegaram a exigir a r e f o r m a da Igreja, m e m b r o s das m e s m a s elites —
ora as mesmas pessoas, ora outras — estavam a desenvolver/recuperar
o ideal da civilidade, c o m as suas exigências de u m a existência social
mais ordenada, menos violenta. Havia alguma tensão e n t r e as duas, mas
t a m b é m simbiose. Vieram a inflectir-se reciprocamente e, na realidade,
a t e r tlma agenda.sobreposta.
Assim, neste contexto, por detrás do facto de que o ideal da civilidade
desenvolve uma agenda activa e transformadora, existe u m a complexa
história causal. C o m o t e m p o , é decerto reforçada pela reivindicação cada
vez maior do poder militar e, por isso, fiscal; daí, a realização económica
por populações trabalhadoras, educadas, disciplinadas. Mas, c m parte,
é t a m b é m o resultado da simbiose e da inflexão mútua com a agenda da
r e f o r m a religiosa, em que o melhoramento se chegou a encarar como u m
dever por si mesmo, c o m o vemos na ética do neo-estoicismo.
Negativamente, é e m parte uma tentativa de evitar perigos reais para
a o r d e m social e, e m p a r t e , uma reacção a práticas como o carnaval e as
festas de balbúrdia que t i n h a m sido aceites no passado, mas que se torna-
r a m p r o f u n d a m e n t e perturbadoras para os que aspiravam a novos ideais.
É aqui que a simbiose com a reforma religiosa desempenha, outra vez,
u m papel óbvio, porque este tipo de susceptibilidade perante a exibição
p e r t u r b a d o r a do vício foi realmente u m a característica da consciência
religiosa severa.
Vemos exemplos claros no campo da moralidade sexual. Em muitas
partes da Europa, na Idade Média, toleravam a prostituição, que se afigurava

1 R i c h a r d Baxter, Holy Commonwealth ( L o n d r e s , 1659), p. 274; c i t a d o in Walzer,


Revolution ojthe Saints, p. 224.

48
t. O I M'l ( TUO DO IIII'At ISMO

uma |)roliluM,i sensível contra o adultério e a violação, com todas as suas


conseqüências disruptivas'. Inclusive, o Concílio de Constança organizou
bordéis temporários para o vasto número de participantes que afluíram à
cidade. Mas as novas tendências na devoção orientavam-se para a pureza
sexual e visavam desviar o foco principal dos pecados da violência e da
divisão social; altera-se, por isso, a atitude perante a prostituição. Torna-
-se inconcebível encorajá-la, mas é também profundamente perturbadora.
Desponta uma espécie de fascínio-repulsa, que se expressa nos esforços
difundidos e contínuos para redimir as mulheres perdidas: não se pode
permitir que isto continue; há que agir.
C o m o consequência, no início da Idade Moderna, as elites, sob a
força conjunta destes dois ideais, viram-se cada vez mais contra uma
vasta gama de práticas populares. Diminui a sua tolerância perante o que
elas consideram como desordem, turbulência e violência incontrolada.
O que antes se aceitava como normal é agora visto como inaceitável,
e até escandaloso. Já durante o século xvi e mesmo depois, os motivos
complexos, que tenho vindo a descrever, levam ao lançamento de quatro
tipos de programas:

1. Promulgam-se novos tipos de leis dos pobres. Estas implicam uma


importante mudança, e até inversão, do que antes acontecia. Na Idade
Média, existia uma aura de santidade em torno da pobreza. Não é
que esta sociedade, com uma consciência extrema da hierarquia,
não tivesse um desprezo robusto pelos indigentes e incapazes no
fundo absoluto da escala social. Mas, justamente por isso, a pessoa
pobre oferecia uma ocasião de santificação. Segundo o discurso de
Mateus 25, ajudar uma pessoa necessitada é ajudar Cristo. U m a das
coisas que os poderosos deste mundo faziam para compensar o seu
orgulho e as suas ofensas era presentear os pobres. Faziam-no os reis,
também os mosteiros e, mais tarde, igualmente os burgueses ricos.
As pessoas abastadas deixavam uma cláusula nos seus testamentos,
segundo a qual, no seu enterro, se deveriam dar esmolas a u m certo
número de pobres, os quais, por seu t u r n o , deveriam orar pela alma
do defunto. Contrariamente ao relato do Evangelho, a oração de

2 Ver J o h n Bossy, Christianity in the West: 1400-1700 (Oxford: O x f o r d University


Press, 1985), p p . 4 0 - 4 1 .
IMAGINÁRIOS SOCIAIS MOI» RNOS

Lázaro, atendida nos ccus, poderia apressai o liif.n "«xo do rico no


seio de Abraão 1 .
Mas, no século xv, em p a r t e c o m o resultado «!<• um aumento
da população, de más colheitas e de u m consequente afluxo dos
pobres às cidades, t e m lugar u m a m u d a n ç a radical nas atitudes.
Adopta-se u m a nova série de leis dos p o b r e s , cujo princípio é dis-
t i n g u i r n i t i d a m e n t e e n t r e aqueles q u e são capazes de t r a b a l h a r e
os que, em rigor, n ã o t ê m o u t r o r e c u r s o a não ser a caridade. Os
p r i m e i r o s são expulsos ou postos a t r a b a l h a r p o r u m salário m u i t o
baixo e, c o m f r e q u ê n c i a , e m condições severas. Aos incapazes de
trabalhar há que f o r n e c e r alívio, mas novamente e m condições
m u i t o controladas, as quais, muitas vezes, acabam p o r implicar a
reclusão em instituições, semelhantes, em certos casos, a prisões.
Fazem-se t a m b é m esforços para reabilitar os filhos dos indigentes,
para lhes ensinar u m mester, para torná-los m e m b r o s úteis e tra-
b a l h a d o r e s da sociedade 2 .
Todas estas operações — fornecer trabalho, auxílio, treino e reabili-
tação — p o d e m implicar segregação, quer como medida de economia
quer como medida de controlo. Isto inaugura o período daquilo que
foi chamado, segundo Michel Foucault, legrand renfermement (a grande
reclusão), que veio a englobar outras classes de pessoas desamparadas,
e m o r m e n t e os loucos 3 .
2. O governo nacional, os governos citadinos, as autoridades eclesiásticas
ou alguma combinação dos mesmos, chegaram, muitas vezes, a criticar
duramente certos elementos da cultura popular: charivaris, carnaval,
festas que fomentavam a barafunda, dança nas igrejas. T a m b é m aqui
vemos uma inversão. O que antes se encarara como normal, e em que
toda a gente estava preparada para participar, parecia agora de todo
condenável e assim, n u m certo sentido, p r o f u n d a m e n t e perturbador.
Erasmo condenou o carnaval que viu em Siena, em 1509, como
não cristão, p o r duas razões: a primeira, porque continha "vestígios
do paganismo antigo"; e a segunda, p o r q u e "as pessoas se entregavam

1 Ver Bronislaw G e r e m e k , La Poterne ou la Pitié (Paris: G a l l i m a r d , 1987), p. 35.

2 Ibid., p. 180.

3 Michel Foucault, Histoire de la Folie à l'âge classique (Paris: G a l l i m a r d , 1958).


I o BSI'1 ("I 1«) IX) 11 >I Al ISMO

à lieeiieio.NÍdadc'"t. O puritano clisabctano Philip Stubbes atacou "o


vício horrível da dança pestífera", que levava ao "apalpar obsceno e ao
toque impuro" e, p o r isso, se t o r n o u "uma iniciação na prostituição,
u m preparativo para a libertinagem, u m a provocação à imundície e
u m intróito para todos os tipos de lubricidade 5 ."
C o m o Burke salienta, os h o m e n s da Igreja t i n h a m criticado
estes aspectos d u r a n t e séculos 6 . Novo é (a) que o ataque religioso
se tenha intensificado, p o r causa das novas preocupações acerca do
lugar do sagrado, e (b) que o ideal de civilidade, as suas n o r m a s
de disciplina, polidez e r e f i n a m e n t o , t e n h a m alienado as classes
dirigentes destas práticas.
3. D u r a n t e o século xvii, estes dois tipos de acção foram subsumidos
n u m terceiro: as tentativas feitas pelas e s t r u t u r a s estatais de c u n h o
absolutista ou dirigista em desenvolvimento, na França e na Europa
central, para configurar, através de ordenanças, o b e m - e s t a r econó-
mico, educativo, espiritual e material dos seus súbditos, n o interesse
do poder, mas t a m b é m da melhoria. O ideal de u m Polizeistaat b e m
o r d e n a d o foi p r e d o m i n a n t e na Alemanha, desde o século xv até ao
século xviii 7 . O í m p e t o para esta actividade dirigista adveio da si-
tuação.a seguir à R e f o r m a , e m que o governante de cada t e r r i t ó r i o
teve de e n f r e n t a r a reorganização da Igreja (nas regiões protestan-
tes) e de impor a c o n f o r m i d a d e (em todos os territórios). Mas as
tentativas de controlo estendem-se ao século seguinte e abarcam os
objectivos económicos, sociais, educativos e morais. Estes cobriam
p a r t e do c a m p o que já explorámos: a r e g u l a m e n t a ç ã o da assistên-
cia e a supressão de algumas festas e práticas tradicionais 8 . Mas,

4 Citado in Peter Burke, Popular Culture in Earlj Modem Europe (Aldershot, Inglaterra:
Scholar, 1994), p. 209.

5 C i t a d o in ibid., p. 212.

6 Ibid., p. 217.
7 N a t u r a l m e n t e , isto n ã o significa u m "Estado policial" na acepção c o n t e m p o r â n e a .
Polizei ( o u t r o t e r m o derivado de polis) "tinha a c o n o t a ç ã o de a d m i n i s t r a ç ã o n o sentido mais
a m p l o , ou seja, meios institucionais e p r o c e d i m e n t o s necessários p a r a g a r a n t i r à p o p u l a ç ã o
do t e r r i t ó r i o u m a existência pacífica e ordeira." M a r e Raeff, The Well-ordered Police State
( N e w Haven: Yale University Press, 1983), p. 5.

8 Ibid., pp. 61, 8 6 - 8 7 , 89.

SI
IMAGINÁRIOS SOCIAIS MOIil UNOS

no século xvi, e x p a n d c m - s e e t e n t a m ostabolet ei \ i >n n|,u i .iç.io,


a u m e n t a r a produtividade c inculcar nos seus niiI>«III«»•• inii.i vls.io
mais racional, diligente, industriosa e orientada p.ir.i .1 | u< >«tii(,.«<).
A sociedade devia ser disciplinada, mas c o m o objectivo de induzir
à autodisciplina'.
E m suma, isto significava i m p o r algumas características do ideal
de civilidade em estratos cada vez mais amplos da população. Sem
dúvida, u m dos motivos principais desta imposição era criar uma
população da qual se pudessem extrair soldados obedientes e eficazes
e os recursos para os pagar e armar. Mas muitas destas ordenanças
p r o p õ e m a melhoria (do seu p o n t o de vista) como u m fim em si
m e s m o . A medida que entramos n o século xvni, os fins da legisla-
ção i n c o r p o r a m cada vez mais as ideias do Iluminismo, p o n d o u m a
ênfase sempre maior nos aspectos produtivos e materiais da activi-
dade humana, e m n o m e dos benefícios que trariam aos indivíduos e
à sociedade c o m o u m todo 2 .
4. Vemos todo este desenvolvimento sob outro ângulo, se olharmos para
a proliferação dos modos de disciplina, dos "métodos", dos procedi-
mentos. Alguns destes surgem na esfera individual como m é t o d o s de
autodomínio, de desenvolvimento intelectual ou espiritual; outros
são inculcados e impostos n u m c o n t e x t o de controlo hierárquico.
Foucault nota como, n o século xvi, se multiplicam os programas
de adestramento baseados na análise rigorosa do m o v i m e n t o físico,
dividindo-o em partes e, em seguida, exercitando as pessoas numa
f o r m a estandardizada. Estes programas encontram-se e m p r i m e i r o
lugar nos exércitos, que inauguram novos modos de treino militar;
e m seguida, alguns dos princípios chegam a aplicar-se às escolas, aos
hospitais e, mais t a r d e , às fábricas 3 .
Entre os programas metódicos que t i n h a m em vista a transforma-
ção do Si m e s m o , u m dos mais conhecidos consistia nos exercícios
espirituais de Inácio de Loiola, a meditação destinada à transformação
espiritual. Mas estas duas ideias fulcrais, meditação orientada pelo

1 Ibid., p. 87.

2 Ibid., p. 178.

3 Michel Foucault, Surveiller et Punir (Paris: G a l l i m a r d , 197S), p a r t e 3, cap. 1.

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i. O i sri r n « > DO ihi Al ISMO

método, surgem t a m b é m inesperadamente, u m século mais tarde,


no programa proposto p o r Descartes (que, no fim de contas, fora
educado pelos Jesuítas e m Laflèche).

Se r e u n i r m o s estas duas facetas, vemos, p o r u m lado, o desenvol-


vimento de u m novo m o d e l o de sociabilidade de elite ligada à noção de
civilidade, em que o paradigma é a conversação em condições de quase
igualdade; vemos, p o r o u t r o , o projecto de alargar esta civilidade, para lá
dos estratos governantes, a sectores m u i t o mais amplos da sociedade. Há
aqui afinidades como a m o d e r n a noção de o r d e m moral. A sociabilidade
c o m o conversação poderia sugerir u m m o d e l o de sociedade mais c o m o
troca recíproca do que c o m o o r d e m hierárquica, ao passo que o projecto
de t r a n s f o r m a r não-elites através da disciplina p o d e indicar que as carac-
terísticas da civilidade não p e r m a n e c e r ã o para sempre propriedade de
u m a única classe, mas são susceptíveis de u m a ampla difusão. Ao m e s m o
t e m p o , o próprio objectivo de transformação das pessoas sugere u m a
r u p t u r a com as noções mais antigas de o r d e m , n o m o d o semi-platónico
de u m a Forma ideal subjacente ao real e actuando em vista da sua pró-
pria efectuação — ou, pelo menos, f r e n t e a t u d o aquilo que a infringe,
tal c o m o os elementos que expressavam o seu h o r r o r perante o c r i m e de
Macbeth. Harmoniza-se antes com a noção de o r d e m enquanto fórmula
a ser efectivada em artifício construtivo, que é justamente aquilo que a
ordem m o d e r n a oferece; as sociedades e m e r g e m de u m a acção h u m a n a
através do contrato, mas Deus forneceu-nos o modelo que devemos seguir.
Estas são afinidades possíveis, mas, simultaneamente, há outras. Por
exemplo, a sociedade como conversação p o d e atribuir uma nova relevância
ao ideal de autogoverno republicano, c o m o fez na Itália renascentista e,
mais tarde, na Europa d o N o r t e , sobretudo na Inglaterra, d u r a n t e e após
a G u e r r a civil 4 . O u pode continuar presa d e n t r o daquele o u t r o agente de
transformação social, o Estado monárquico "absoluto".
O que, segundo parece, impeliu decisivamente a consciência social
da elite para o âmbito do imaginário social m o d e r n o foram os desenvol-
vimentos da nova sociabilidade que o c o r r e r a m n o século XVIII, sobretudo
na Inglaterra, onde c o m e ç a r a m u m pouco antes. Este p e r í o d o assistiu a

4 Ver J. A. G. P o c o c k , The Machiavellian Moment ( P r i n c e t o n : P r i n c e t o n U n i v e r s i t y


Press, 1975).

S3
IMAGINÀKK >S S( KM AIS M< »1 >1 UNI )S

um alargamento <lo estrato social da elite, os <pi< . ,i,n nu i i • >1 v l<lo«( no


governo ou na administração da sociedade, para incluli os i|iu ocupa
vam essencialmente das funções económicas, quer pohjiic m membros
da classe já dominante se tinham virado para estas funções, tornando-se,
por exemplo, proprietários em ascensão, quer porque se abrira um lugar
para comerciantes, banqueiros e, e m geral, os que tinham património.
As condições de quase-igualdade t ê m de superar u m largo fosso.
Sem gerarem a noção inteiramente contemporânea de igualdade, a com-
preensão da qualidade de m e m b r o na sociedade alargou-se e separou-se
da pequena aristocracia específica ou das características nobres, embora
preservando a linguagem da nobreza. A compreensão alargada de civili-
dade, chamada agora de "polidez", permaneceu encaminhada para o fito
de suscitar harmonia e facilitar as relações sociais, mas tinha de congregar
pessoas de diferentes classes e actuar em diversos locais novos, incluindo
cafés, teatros e jardins 1 . Como na anterior ideia de civilidade, ingressar
na sociedade polida implicava alargar a perspectiva pessoal e entrar num
m o d o de estar mais elevado do que o m e r a m e n t e privado, mas o acento
põe-se agora na virtude da benevolência e n u m estilo de vida menos
abertamente competitivo do que o fomentado pelos antigos códigos do
guerreiro ou do cortesão. A sociedade elegante do século xvin suscitou
mesmo uma ética da "sensibilidade".
Este relativo distanciamento da hierarquia e a nova centralidade da
benevolência aproximaram mais a época do moderno paradigma de ordem,
acima descrito. Ao m e s m o tempo, a inclusão das funções económicas na
sociedade intensificou a afinidade entre civilidade e esta noção de ordem.
Esta transição, do século XVIII é, n u m certo sentido, u m a transição
crucial no desenvolvimento da modernidade ocidental. A sociedade polida
e elegante tinha u m novo tipo de autoconsciência, que se poderia cha-
mar de "histórico" n u m novo sentido. Não estava apenas insolitamente
consciente da importância das suas bases económicas; tinha t a m b é m uma
nova compreensão do seu lugar na história, como u m m o d o de vida que
pertencia à sociedade comercial, uma fase da história a que recentemente
se tinha chegado. O século X V I I I gerou novas e gradativas teorias da histó-
ria, que encaravam a sociedade humana desenvolvendo-se através de uma

1 Ver Philip C á r t e r , Men and the Emergence of Polite Society ( L o n d r e s : L o n g m a n ,


2001), p p . 25, 36-39.
I ( ) I SN (TR< ) I X ) IDI Al ISMO

série de estádios, definidos pela forma da sua economia (por exemplo,


de caçador recolector, agrícola), c u l m i n a n d o na sociedade comercial
contemporânea 2 . Isto levou as pessoas a ver, sob u m novo prisma, toda
a transição, p o r m i m apelidada de domesticação da nobreza e t a m b é m a
pacificação interna das sociedades modernas. O comércio, le doux commeice,
foi dotado com o p o d e r de relegar os valores marciais e o estilo militar da
vida para u m papel subordinado, p o n d o f i m à sua predominância secular
na cultura humana®. As sociedades políticas já não podiam entender-se
simplesmente em t e r m o s perenes; era necessário atender à época e m que
as coisas aconteceram. A m o d e r n i d a d e foi u m a época sem precedentes 4 .

2 Ver, p o r e x e m p l o , A d a m F e r g u s o n , An Essay on the History of Civil Society ( L o n d r e s :


T r a n s a c t i o n Books, 1980).

3 Ver A l b e r t H i r s c h m a n n , The Passions and the Interests ( P r i n c e t o n : Princeton


U n i v e r s i t y Press, 1977).

4 Ver L G. A. P o c o c k , Barbarism and Religion ( C a m b r i d g e : C a m b r i d g e U n i v e r s i t y


Press, 1999); Karen O ' B r i e n , Narratives of Enlightenment ( C a m b r i d g e : C a m b r i d g e University
Press, 1 9 9 7 ) ; e P i e r r e M a n e n t , La Cité de l'Homme (Paris: Fayard, 1994), p a r t e 1.

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