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29 05 TAYLOR Charles Imaginarios Sociais Modernos PDF
29 05 TAYLOR Charles Imaginarios Sociais Modernos PDF
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iMAtiiNÁRK >S S( M IAIS M( >1 >1 KN< )S
Começo pela nova visão da ordem moral. Esta foi formulada, com
a máxima clareza, nas novas teorias do Direito Natural que emergiram
no século xvii, sobretudo como uma resposta à desordem doméstica e
internacional suscitada pelas guerras de religião. Grotius e Locke são
ac|ui, para o nosso propósito, os mais importantes teóricos de referência.
Grotius vai buscar a ordem normativa, que está na base da sociedade
política, à natureza dos membros que a constituem. Os seres humanos são
agentes racionais, sociáveis, que são supostos colaborarem pacificamente
para benefício mútuo.
Iniciada no século XVII, esta ideia veio, cada vez mais, a dominar o
nosso pensamento político e o modo como imaginamos a nossa sociedade.
Irrompe na versão de Grotius como uma teoria daquilo que a sociedade
política é, ou seja, do que ela fomenta e de como ela se realiza. Mas qual-
quer teoria deste tipo oferece também, de m o d o inevitável, uma ideia
da ordem moral: diz-nos algo acerca do m o d o como temos de viver em
conjunto na sociedade.
A imagem da sociedade é a de indivíduos que chegam a instituir uma
entidade política sobre u m certo fundo moral preexistente e com certos
objectivos em vista. O fundo moral é u m f u n d o de direitos naturais; as
pessoas têm já entre si algumas obrigações morais. Os fins perseguidos
são certos benefícios comuns, dos quais o mais importante é a segurança.
A ideia subjacente da ordem moral realça os direitos e as obrigações
que, como indivíduos, temos uns para com os outros, mesmo antes ou
para além do vínculo político. As obrigações políticas encaram-se como
uma extensão ou aplicação desses laços morais mais basilares. A própria
autoridade política só é legítima porque é objecto do consentimento dos
indivíduos (o contrato original), e este contrato cria obrigações vinculatórias,
graças ao princípio preexistente de que as promessas são para cumprir.
A luz do que depois se fez com esta teoria do contrato, inclusive no
final do mesmo século por meio de John Locke, surpreende até que ponto
são insípidas as conclusões ético-políticas que Grotius dela extrai. Assu-
mindo que os regimes legítimos existentes assentavam, em última análise,
IMAtiINÁRIOS Si XI A IS M< >DI UN< >S
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I A n u m M MOKAI MODI RNA
decerto .ii) longo «I»• iini.i acuda c, de mais hermenêutica, torna-se mais
prescritiva. lai como 1 <>i utilizada no seu nicho original por pensadores
como Grotius e Pufendorf, oferecia uma interpretação daquilo que deve
estar na base dos governos estabelecidos; estes, radicados n u m contrato
supostamente f undador, fruíam de uma legitimidade inquestionável. A teoria
do direito natural era, na sua origem, u m a hermenêutica de legitimação.
Mas a teoria política p o d e , já com Locke, justificar a revolução, e
torná-la até m o r a l m e n t e imperativa em certas circunstâncias; ao m e s m o
t e m p o , outras características gerais da situação moral humana facultam
uma hermenêutica da legitimidade em relação, por exemplo, à proprie-
dade. Mais tarde, e nesta direcção, tal noção de o r d e m será inserida em
redacções que exigem m e s m o mudanças mais revolucionárias, incluindo as
relações de propriedade, reflectidas, por exemplo, em teorias influentes
como as de Rousseau e M a r x .
Deste m o d o , ao deslocar-se de u m nicho para muitos e ao m i g r a r
de teoria para imaginário social, a ideia m o d e r n a de ordem viaja ainda ao
longo de u m terceiro eixo e os discursos que ela engendra estendem-se
ao longo da senda que vai desde o h e r m e n ê u t i c o ao prescritivo. D u r a n t e o
processo, acaba por se entrosar com u m a ampla série de conceitos éticos,
mas o elemento c o m u m das amálgamas resultantes é o uso essencial que
fazem desta compreensão da o r d e m política e moral, derivada da m o d e r n a
teoria do direito natural.
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IMAGINÁMOS N< XIA IS M( > I»I UN< )S
que tornam certas formas boas c (até ao ponto assiiul.ido) r m*« ju ÍVfis Por
outras palavras, a imagem da o r d e m inclui uma delinlç.io nào só do (jue
é recto, mas do contexto em que faz sentido intentar e esperar levar a
efeito (pelo m e n o s em parte) o que é recto.
E claro que as imagens da o r d e m moral que, através de uma série de
transformações, descendem das inscritas nas teorias d o direito natural de
Grotius e Locke são u m pouco diferentes das incrustadas no imaginário
social da era p r é - m o d e r n a . Vale a pena realçar aqui dois tipos importantes
da ordem moral p r é - m o d e r n a , p o r q u e podemos vê-los a ser gradualmente
ultrapassados, deslocados ou marginalizados pela corrente grocio-lockeana,
durante a transição para a m o d e r n i d a d e política. U m deles baseia-se na
ideia de que u m a Lei que regeu u m povo desde t e m p o s imemoriais t e m
dele e que, em c e r t o sentido, o define c o m o povo. Esta ideia esteve, apa-
rentemente, difundida entre as tribos indo-europeias que, em períodos
diferentes, i r r o m p e r a m na Europa. Foi muito poderosa na Inglaterra do
século XVH sob a f o r m a da Antiga Constituição e tornou-se u m a das ideias
nucleares que justificaram a rebelião contra o rei 1 .
Este caso deveria ser suficiente para mostrar que tais noções n e m
sempre são conservadoras no seu teor. Mas deveríamos igualmente incluir
nesta categoria o sentido de o r d e m normativa que parece ter sido transmi-
tido, através das gerações, em comunidades camponesas, que graças a ele
desenvolveram u m quadro da "economia moral", a partir do qual poderiam
criticar os fretes a eles exigidos pelos senhores ou t a m b é m as exacções
que lhes e r a m feitas pelo Estado e pela Igreja 2 . Aqui, mais uma vez, a
ideia r e c o r r e n t e foi, aparentemente, a de que u m a originária distribuição
aceitável de encargos fora deslocada p o r usurpação e deveria ser rejeitada.
O o u t r o tipo de o r d e m moral organiza-se e m t o r n o de uma noção
de hierarquia na sociedade que expressa e condiz c o m u m a hierarquia do
cosmos. Estas f o r a m , com frequência, teorizadas na linguagem eduzida do
conceito platónico-aristotélico de F o r m a , mas a noção subjacente emerge
t a m b é m f o r t e m e n t e nas teorias de correspondência: p o r exemplo, o rei
está no seu r e i n o como o leão e n t r e os animais, c o m o a águia entre as
aves, e assim por diante. I )esla visão deriva a ideia de que as desordens no
reino humano hão de ecoar na natureza, porque está ameaçada a efectiva
ordem das coisas. A noite em que Duncan foi assassinado foi perturbada
pelo "queixume ouvido no ar, estranhos gritos de morte", e permaneceu
escura, apesar de o dia já ter começado. Na terça-feira anterior, um fal-
cão fora morto por uma coruja caçadora de ratos e, durante a noite, os
cavalos de Duncan tornaram-se bravios, "resistindo à obediência, como
se fizessem / guerra à humanidade 3 ."
Nestes dois casos, sobretudo no segundo, temos uma ordem que
tende a impor-se pelo curso das coisas; as violações levam a uma reacção
adversa que transcende a esfera meramente humana. Trata-se, aparente-
mente, de uma característica muito c o m u m nas ideias pré-modernas da
ordem moral. Anaximandro liga todos os desvios do curso da natureza à
injustiça, e diz que tudo o que resistir à natureza há-de, por fim, "pagar
reciprocamente a pena e a retribuição pela sua injustiça, segundo o juízo
do tempo" 4 . Heraclito fala da ordem das coisas em termos semelhantes, ao
dizer que se, alguma vez, o sol se desviasse do seu curso determinado, as
Fúrias se apoderariam dele e o trariam de volta 5 . E, claro está, as Formas
platónicas estão activas na configuração das coisas e dos acontecimentos
no m u n d o da mudança.
Nestes casos, vê-se muito bem que uma ordem moral é muito mais
do que u m conjunto de normas; contém ainda o que se poderia chamar
uma componente "ôntica", identificando características do m u n d o que
t o r n a m exequíveis as normas. A ordem m o d e r n a que deriva de Grotius
e de Locke não é auto-realizadora no sentido invocado por Hesíodo ou
Platão ou no das reacções cósmicas ao assassínio de Duncan. É, pois,
tentador pensar que as nossas noções modernas de ordem moral carecem
inteiramente de uma componente ôntica. Mas seria u m erro. Existe uma
diferença importante, mas ela reside no facto de que esta componente
5 " O sol não ultrapassará os seus limites; se o fizer, as Erínias, servas da Justiça,
h ã o - d e encontrá-lo" Citado in G e o r g e Sabine, A History of Political Theory, 3. a e d . (Nova
Iorque: H o l t , R i n e h a r t and W i n s t o n , 1961), p. 26.
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I A OllDI M MORAL MODIIRNA I
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r I A ORDI M MORAI MODI UNA
Sendo dotados de razão, vemos que não só as nossas vidas, mas todos
os seres humanos se hão-de preservar. Além disso, Deus fez de nós seres
sociáveis, pelo que "cada u m está obrigado a conservar-se a si próprio, e
a não abandonar arbitrariamente a sua Situação; assim, pela m e s m a razão,
quando a sua Preservação não entra e m concorrência, ele deverá, tanto
quanto puder, proteger o resto da humanidade 2 ."
De m o d o semelhante, Locke a r g u m e n t a que Deus nos deu os nossos
poderes de razão e de disciplina para p o d e r m o s , com a m á x i m a eficiência,
tratar da tarefa da nossa autoconservação. Daí que devamos ser "Industriosos
e Racionais" 3 . A ética da disciplina e do m e l h o r a m e n t o é u m a exigência
da ordem natural que Deus planeou. A imposição da ordem pela vontade
h u m a n a é t a m b é m exigida pelo seu esquema.
Podemos ver, na formulação de Locke, até que p o n t o ele encara o
serviço m ú t u o em t e r m o s de troca profícua. A actividade "económica"
(isto é, ordenada, pacífica, produtiva) t o r n o u - s e o modelo d o c o m p o r t a -
m e n t o h u m a n o e a chave para a coexistência harmoniosa. E m contraste
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I A (»Kl >1 M Ml >KAI M< lOFKNA
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está entretecido com uma ideia de como cl.is deviam •.< i, «I< qu> falsos
passos invalidariam a prática. Consideremos a nossa pi.illi .1 d< escolher
governos mediante eleições gerais. U m a parte da compreensão de fundo
que, para cada u m de nós, dá sentido ao acto de votar é a nossa .»percepção
da acção integral, envolvendo todos os cidadãos, em que cada um escolhe
individualmente, mas entre alternativas idênticas, e estas micro-escolhas
se combinam numa decisão vinculatória, colectiva. Essencial à nossa
compreensão do que está implicado neste tipo de macrodecisão é a nossa
capacidade de identificar o que constituiria uma infâmia: certos tipos de
influência, compra de votos, ameaças e quejandos. Por outras palavras,
este tipo de macrodecisão tem de satisfazer certas normas, se há-de ser
o que pretende ser. Por exemplo, se uma minoria pudesse obrigar todos
os outros a conformar-se com as suas ordens, o resultado deixaria de ser
uma decisão democrática.
Nesta compreensão das normas está implícita a capacidade de reco-
nhecer casoa ideais (por exemplo, uma eleição em que, de forma autó-
noma, cada cidadão exercia ao m á x i m o o seu juízo, em que cada um era
ouvido). E, para lá do ideal, existe alguma noção de uma ordem moral
ou metafísica, em cujo contexto as normas e os ideais ganham sentido.
O que eu chamo de imaginário social estende-se para lá da compre-
ensão básica imediata que dá sentido às nossas práticas particulares. Não se
trata de uma extensão arbitrária do conceito porque, assim como a prática
sem a compreensão não faria sentido para nós e, deste modo, não seria
possível, assim t a m b é m esta compreensão supõe, se é para fazer sentido,
uma apreensão mais ampla de toda a nossa situação: como atendemos uns
aos outros, como chegámos até onde estamos, como nos relacionamos
com outros grupos, e assim por diante.
Esta apreensão mais vasta não tem limites claros. Tal é a natureza
peculiar daquilo que os filósofos contemporâneos descreveram como o
"fundo" 1 . E, de facto, no seio desta compreensão em grande parte não-
-estruturada e inarticulada da nossa situação global que as características
particulares do nosso mundo nos mostram o sentido que elas têm. Ela
nunca se pode expressar adequadamente na forma de doutrinas explícitas,
devido à sua natureza irrestrita e indefinida. Eis outra razão para aqui
lalar de um imaginário, e não de uma teoria.
A relação e n t r e as práticas e a compreensão de f u n d o que está por
detrás delas não é, p o r t a n t o , unilateral. Se a compreensão possibilita a
prática, c t a m b é m verdade que a prática suporta, em ampla medida, a
compreensão. Podemos, e m qualquer altura, falar do "repertório" de
acções colectivas à disposição de u m dado g r u p o da sociedade. Estas são
.is acções comuns que os indivíduos sabem c o m o empreender, desde u m a
eleição geral, envolvendo toda a sociedade, até ao m o d o de saber como
iniciar u m a conversa polida, mas solta, com u m g r u p o casual n o átrio de
recepção. As avaliações que temos de fazer para as levar a cabo, sabendo
com q u e m falar, quando e como, incluem u m mapa implícito do espaço
social, dos tipos de pessoas a que nos p o d e m o s associar em que modos
e em que instâncias. Porventura, não inicio a conversa, se o g r u p o for
socialmente superior a m i m ou de categoria mais elevada ou se for cons-
tituído apenas por mulheres.
Esta captação implícita do espaço social não se assemelha a uma
descrição teórica de espaço, distinguindo diferentes tipos de pessoas e as
normas a eles associadas. A compreensão implícita na prática está para a
teoria social na mesma relação em que a m i n h a capacidade de m e mover
n u m ambiente familiar está para u m mapa (literal) desta área. Sou muito
bem capaz de me orientar, sem ter de adoptar a perspectiva da visão de
conjunto que o mapa m e oferece. De m o d o semelhante, d u r a n t e a maior
p a r t e da história humana e da vida social, funcionamos graças à apreen-
são que temos do r e p e r t ó r i o c o m u m , sem o auxílio da visão teórica de
conjunto. O s seres h u m a n o s actuaram c o m base n u m imaginário social,
muito antes de alguma vez se darem ao trabalho de teorizar acerca de si
mesmos 2 .
2 O m o d o como o imaginário social se estende b e m além do que foi (ou pode ser)
teorizado está ilustrado na interessante discussão de Francis Fukuyama sobre a economia
da confiança social. Algumas economias acham difícil c o n s t r u i r empresas não estatais de
grande escala, porque é inexistente ou fraco u m clima de confiança que se estenda além
da família. O imaginário social nestas sociedades assinala discriminações — e n t r e parentes
e não parentes — para fins de associação económica que, em grande p a r t e , passaram assaz
despercebidas nas teorias da economia que todos partilhamos, incluindo as pessoas dessas
sociedades. O s governos p o d e m ser induzidos a adoptar políticas, alterações legais, incen-
tivos, etc., sob o pressuposto de que a formação de empresas de qualquer escala figura no
IMAíiINÁKIl >S S<)('I AIS M< )DI KN( )S
Outro exemplo poderia ajudar-nos a tornai mali < on< I< la a atnpli
tude e a p r o f u n d i d a d e desta compreensão implícita. < hyanl/amos, por
exemplo, u m a manifestação. Q u e r isto dizer que este acto se encontra já
n o nosso r e p e r t ó r i o . Sabemos c o m o havemos de nos juntar, arranjamos
bandeiras e marchamos. Sabemos que t e m o s de p e r m a n e c e r dentro de
certos limites, quer espacialmente (não invadimos certos espaços) quer
n o m o d o como ela impressiona os outros (a vertente de u m limiar da
agressividade, não violência). C o m p r e e n d e m o s o ritual.
A compreensão de f u n d o que, para nós, torna possível este acto
é complexa, mas u m a p a r t e do que lhe confere sentido é u m a imagem
de nós mesmos c o m o falando a outros com os quais estamos de alguma
maneira relacionados — digamos, são compatriotas ou p e r t e n c e m ao
género humano. Há aqui u m acto de fala, emissor e receptores, e alguma
compreensão do m o d o como eles p o d e m estar nesta relação recíproca.
Há espaços públicos; já estamos nalgum tipo de conversação uns com os
o'utros. C o m o todos os actos de fala, ele é dirigido a u m a palavra já antes
pronunciada e m vista de u m a palavra a ser proferida 1 .
O m o d o de discurso reflecte a base e m que nos posicionamos rela-
tivamente aos nossos receptores; a acção é assertiva; visa impressionar,
talvez até prenunciar certas consequências, se a nossa mensagem não for
ouvida. Mas visa igualmente persuadir; persiste este lado da violência.
Concebe o r e c e p t o r c o m o alguém c o m que se pode, e deve, argumentar.
O sentido imediato do que fazemos, levar a mensagem ao Governo ou
aos nossos concidadãos de que, por exemplo, os cortes devem acabar, encaixa
b e m n u m contexto mais amplo, n o qual nos vemos a nós mesmos como
p e r m a n e c e n d o n u m a relação contínua c o m outros, no qual é apropriado
dirigir-nos a eles deste m o d o e não, digamos, com u m a súplica humilde
1 Mikhail B a k h t i n , Speech. Genres and Other Late Essays (Austin: University of Texas
P r e s s , 1986).
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} Q U E fi UM " I M A G I N Á R I O S O C I A P P I
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(,xii i' um "imaginArio s o c i a l " ? !
seu significado para as pessoas e, por isso, ajudou > l oiiMlluli um novo
imaginário social (a "economia"). E m todos estes < a.sos, o i< sultado foi
uma profunda transformação do imaginário social nas sociedades oci-
dentais e, deste modo, do mundo em que vivemos.
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J. O espectro <lo idealismo
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ima<;inAki< >s s(»ciais m< >i>i hn< >s
instante alçar alguém ao píncaro (o os erros podi i i m i pii < ipii ti uma
queda abrupta)'.
Daí a nova i m p o r t â n c i a , para as elites, da !<n m.u,.u> humanista.
I m vez de se i n s t r u i r o filho para o t o r n e i o , que ele leia I la-.mo ou
Castiglione, para que saiba c o m o falar de m o d o adequado, causai' uma
boa impressão, conversar de f o r m a persuasiva c o m o u t r o s n u m a ampla
variedade de situações. Esta f o r m a ç ã o fazia sentido no novo tipo de
espaço social, nos novos m o d o s de sociabilidade, em que os filhos da
nobreza e da p e q u e n a aristocracia deveriam abrir o seu c a m i n h o . O
p a r a d i g m a que define a nova sociabilidade não é o combate ritualizado,
mas a conversação, o discurso, o agradar, o ser persuasivo, n u m con-
t e x t o de quase-igualdade. N ã o quero sugerir c o m isto u m a ausência de
hierarquia, p o r q u e a sociedade da c o r t e estava pejada dela, mas antes
u m c o n t e x t o e m que a hierarquia t e m , e m p a r t e , de ser posta e n t r e
parêntesis p o r causa da complexidade, da ambiguidade e da i n d e t e r m i -
n a ç ã o , a n t e s referidas. Aprende-se a falar c o m as pessoas n u m a ampla
série de níveis, n o interior de certos c o n s t r a n g i m e n t o s c o m u n s de
polidez, p o r q u e isto é o q u e exige ser agradável e persuasivo. Não se
p o d e chegar a n e n h u m lado, se se estiver s e m p r e a p u x a r dos galões e a
ignorar os que estão abaixo de nós, ou c o m a língua tão presa que não
se possa falar aos q u e estão acima.
Estas qualidades estavam, muitas vezes, reunidas no t e r m o "cortesia",
cuja etimologia aponta para o espaço em que elas tinham de ser exibidas.
O t e r m o era antigo, r e m o n t a n d o à época dos trovadores e passando pela
florescente corte borgonhesa do século xv. Mas o seu significado alterou-
-se. As cortes mais. antigas eram lugares em que os guerreiros semi-
-independentes se r e u n i a m , de tempos a tempos, para torneios e exibições
hierárquicas em t o r n o da casa real. Mas quando Castiglione escreve o seu
bestseller 0 Cortesão, o c o n t e x t o é a cidade-corte da Duquesa de Urbino,
onde o cortesão t e m a sua morada p e r m a n e n t e e onde a sua ocupação é
aconselhar o seu príncipe. A vida é u m a contínua conversação.
2 Hale, pp. 3 6 7 - 6 8 .
t, () I Sl'l < 11« ) l)() II )EAI ISMO
3 C i t a d o in ibid., p. 7 0 .
desde, pelo menos, o século xvii. Esta transformação foi reforçada pela
aspiração a uma reforma religiosa mais completa, simultaneamente p r o -
testante e católica, e pelas ambições dos Estados de alcançar maior p o d e r
militar e, consequentemente, c o m o condição necessária, u m a economia
mais produtiva. D e facto, estes dois p r o g r a m a s estavam, muitas vezes,
interligados; os governos da Reforma viam a religião como u m a boa
fonte de disciplina e as Igrejas c o m o i n s t r u m e n t o s vantajosos, e muitos
r e f o r m a d o r e s religiosos encararam a vida social regulamentada como a
expressão essencial da conversão.
A noção puritana da vida boa, p o r exemplo, via no santo u m pilar de
u m a nova ordem social. Perante a indolência e a desordem dos monges,
mendigos, vagabundos e gentis-homens ociosos, ele "entrega-se a u m
negócio honesto e decoroso, e não suporta que os seus sentidos sejam
mortificados com a ociosidade" 5 . Isto não significa u m a actividade qualquer,
mas aquela a que ele se entregou como vocação vitalícia. " Q u e m não t e m
u m negócio honesto do qual habitualmente se ocupa, e não estabelece
n e n h u m trajecto a que se possa dedicar, não p o d e agradar a Deus." Assim
se expressava o pregador p u r i t a n o Samuel Hieron' 1 .
Estes homens são industriosos, disciplinados, fazem trabalho útil e,
acima de tudo, pode confiar-se neles. "Estabeleceram trajectos" e, desse
m o d o , são m u t u a m e n t e previsíveis. Pode construir-se u m a o r d e m social
sólida, fiável, nas alianças que eles fazem u n s com os outros. Não são
tentados pela maldade, p o r q u e a ociosidade é a principal raiz que alimenta
t o d o o tipo de males: " O cérebro de u m h o m e m ocioso depressa se t o r n a
a loja do d i a b o . . . D o n d e nascem, nas cidades, os motins e as m u r m u r a -
ções contra os magistrados? Não se pode oferecer dela u m a causa maior
do que a ociosidade 7 ."
C o m tais homens, p o d e construir-se u m a sociedade segura, b e m
ordenada. Mas, claro está, n e m toda a gente será c o m o eles. Todavia, o
projecto puritano p o d e lidar com esta dificuldade: governaria o divino,
deveria ser mantido sob controlo o degenerado. O magistrado, c o m o pen-
sava Baxter, deve forçar todos os homens "a aprender a palavra de D e u s e
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! I M A G I N Á M O S SOCIAIS MODI UNOS
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t. O I M'l ( TUO DO IIII'At ISMO
2 Ibid., p. 180.
4 Citado in Peter Burke, Popular Culture in Earlj Modem Europe (Aldershot, Inglaterra:
Scholar, 1994), p. 209.
5 C i t a d o in ibid., p. 212.
6 Ibid., p. 217.
7 N a t u r a l m e n t e , isto n ã o significa u m "Estado policial" na acepção c o n t e m p o r â n e a .
Polizei ( o u t r o t e r m o derivado de polis) "tinha a c o n o t a ç ã o de a d m i n i s t r a ç ã o n o sentido mais
a m p l o , ou seja, meios institucionais e p r o c e d i m e n t o s necessários p a r a g a r a n t i r à p o p u l a ç ã o
do t e r r i t ó r i o u m a existência pacífica e ordeira." M a r e Raeff, The Well-ordered Police State
( N e w Haven: Yale University Press, 1983), p. 5.
SI
IMAGINÁRIOS SOCIAIS MOIil UNOS
1 Ibid., p. 87.
2 Ibid., p. 178.
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i. O i sri r n « > DO ihi Al ISMO
S3
IMAGINÀKK >S S( KM AIS M< »1 >1 UNI )S