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avis Citi Ro Mage Pra De Henri gered Caro (UNIFOR) Pra De Po Robert Cnet (PUC MG) PhD: Gre Fo (CFF) PD Ln Cl Fg (USF, PUC'S) Pris Dia Ebbets (etude ated FR) rh DA Mari ad (PUR) Bilé Tatit Sapienza ENCONTRO COM A DASEINSANALYSE A obra Sere tempo, de Heidegger, como fundamento da terapia daseinsanalitica (© Bato act par eda em lng orgs ‘edna 2088 “unt Re ges Proovslo seroma Dalen de Coa a abot (CP) Ect come Dacian: See tmp de Hee cove nda de ep nos / Ba SioPado Ew. 1. Pacotepl.2 Fesomenlogi Dandie Tio is50012 a ‘inci aponsek Daye Guimaras 2410S aay SP ala (1) 3090/3601 / 7-845 mal eatapuceom be B 103 Sumério Apresentagio, Tro Tati Sapienza Propésito do live Encontco com a Daseinsanalyse Referéacias Apresentagio Bile & do tempo em que os livos eram impressos em Papel Leitora atentae dedicads, estuda sublinhas fazendo anotagbes nasbordas das paginas. lo trechos e Adquire seu prmeiro exemplar de Ser ¢ tempo 30 encantar-se com o pensamento de Heidegger em um grupo de estudo de Dassinsanalyse, Suas pequenas anotasdes logo preenchem todas as bordas do livre. Com 0 tempo, outros texemplares da mesma obra unem-se 20 primeieo em sua estante,adquiridos tanto para comparar e saborear distintas tradugies como para abrir espago a novas anotagbes.. ‘A origem dos livros escrtos por Bilé esté vinculada a0 seu estudo cotidiano das obras de Heidegger e &reflexio Constante sobre a relagio entre © pensamento do filésofo € 0 atendimento clnico, fundamentada em sua pritica de terapeuta e ampliada no dislogo com seus colegas da Associasio Brasileira de Daseinsanalyse (ABD), © primero livee, Conversa sobre trap, trata do tema cde modo simples e diret acessivel a um publico leitor mais ample, No segundo, Do desabrigo & confiaga, a autora abre fespago As referéncias historicas e filoséficas necessiias & ‘compreensio da Daseinsanalyse pelos estudantes da rea. Em Encontro com « Daseinsanalse cla nos apresenta suas reflexbes « questionamentos a respeito do pensamento de Heidegger camo fundamentagao desta pritica terapéutica, convidando 0s interessados na clinica daseinsanaltica a aprofundar 0 cestudo de Sere tempo. Bile revela, neste terceiro livro, a histria de vida que alevaa dedicarse & Daseinsanalyse,vivida numa época em ‘que esta terapia ainda era quase desconhecida no Brasil Para refletrmos sobre esta revelagioe nossos encontros com o que nos é proprio, destaco o seguinte trecho da pigina 92 deste livro:"Emergir da absorga0 naimpropriedade que caracteriza ‘emgeral o exstrcotidiano é uma possibilidade do Dasein (..) ‘mas isso s6 pode se dar num contexto especial em que € ele ‘mesmo quem chama asi mesmo para se tornar propriamente arco Tatit Sapienza Propésito do livro ‘A Daseinsanalyse ver se tornando cada ver mais vsivel, rio s6 enquanto pensamento filoséfico de Heidegger, mas também como possibilidade de fundamento de wma pritica clinica, Para os que se aproximam dessa pritica, & frequente surgir a pergunta a respeito de como é possivel um processo, teraptutico baseado no pensamento de um filésofo que nio foi nem psicélogo, nem psiquiatra. Que pensamento é esse ‘que vigora fora das propostasj estabelecidas,sejapelasterias de origem psicanalitica, seja pelas que surgem das teorias ‘comportamentais? A estranheza ji comega com 0 uso da palaveaalema Dasein, Por que © uso dessa palavea nova para se referica cada um de nés? ‘Vemos o porque dessa palavra quando compreendemos que, no pensamento de Heidegger, estio rompidos os press postos metafisicos que, durante séculos,sustentaram nossa compreensio de homem e de mundo, Numa concepgio em que ja nao cabem mais as dicotomias interno-externo, stubjtivo-objetive, mente-munde, foi necessiria esta palavra nova, Dasein,cujatraducio & sera, para falar desse ente que, por pinelpi, A intengio dest livro é insistir na importanciafunda- mental de Sere tempo para a clinica daseinsanalitica. & af {que vore encontra as bases para a compreensio do que mais profundamente caracterizaaexisténcia. F é a existéncta que testi sempre em jogo para cada um de nés. Ea existincia do paciente que esti em foco na terapia. (© que pretendo aqui é apenas apresentar uma visio sgeral de Sere tempo para quem ainda no leu ou para quem ji lew e quer recordar um pouca. Nao tenho uma definigio que cesgote © que € a terapia daseinsanalitica, mas procure dizer ‘como ela tem feito sentido para mim ao longo dos anos. Entre as tracgbes de Sere tempo escolh para basear as incontaveisctagbes que rago aqui, atraducao para o espanol de Jorge Eduardo Rivera. Entretanto, diante de algumas expresses como “estar-en-el-mundo’ "por-mor-de' “el ente {que comparece dentro del mundo’; “la eaida ao passi-las para © portuguds, optel por: "Ser-no-mundo’, ‘emvirtude-de "0 ente que vem ao encontra dentro do mundo’,’a decadéncia’, «que sio mais familiares em nosso mei. serno-mundo, Encontro com a Daseinsanalyse Vamos conversar sobre terapia — era assim que co- megava hi 11 anos Conversa sobre terapia. Embora ali jé estivesse a Daseinsanalyse e seu modo fenomenoldgico de ‘olhar para as questdes, depois desses anos surgiu para mim aa necessidade de pensir e colocar mais em evidéncia 9 pen- samento heidegueriann em Ser e tempo como fundamento dla terapia daseinsanaltica. EntZo vamos agora conversars0- bbre Daseinsanalyse. E para iniciar a conversa, quero contar ‘como me aproximei dela Quando em 1978 encontret a Daseinsanalyse, nem sa- bia que ela existia. De repente meu camino intelectual e profissional, que estavé meio desnorteado, desembocou nela «ali chegando, olhel, gostei e fui fazendo dela © meu cami- ‘ho, mesmo sem saber bem onde ele iria dar. Sabia apenas que meu pensamento«stava confortivel ai ‘Mas mesmo quando as coisas acontecem de repente, meio por acas, elas acontecem no devorrer de uma historia, cea istoria vai resultando de tudo o que se deu e também de tudo o que no se do ma wida da gente, de como todos fo vivid, fi aceito. Se ea vivsse em outro lugar tives feito outros cursos eno oe fa, se euro estivese me sentindo tio desencontrad profisionalments, se eu nioesivese to desabrigada naquee moments, se eu no tvese encontrado as pesoas que encontre na minha vida — eh pessoas que Slo decsivas —, eu nfo estirin au excrevendo este texto Levei muito tempo para encontrar a Daseinsnalye 8 passou ourotanto de tempo depois disso. Einteresant pen- sar que viverleva tempo. Ainda jovem, recém-saida da Escola Normal, que era ‘um curso que formava os professores do entio chamado cur ‘0 primirio, deparet-me com a questio de © que eu faria em seguida, visto que nto fazia parte dos meus planos comesar uma careira de professora, o que demandaria provavelmente ter deie para cdadesdistantes ou até para zonasrurais para s6 depois de tempo obter uma vaga aqui em Sio Paulo. Sargiu a {questio. O que fazer agora? Minha familia e uma amige, Lygia ‘Tibirigs, me convenceram a fazer uma faculdade. Até entso ‘nunca tinha pensado em mim numa faculdade. Als, era uma poca em quendo era Ho comusm meninasirem para um curso superior. Mas qual faculdade? De qualquer forma, nao haveria muito 0 que escolher mesma, pois, apés a Escola Normal, si seria possivel fazer vestibular para ilosofia ou para pedagogia. ‘Minha amiga e eu resolvemos entio ir paraa pedagogia. Fiz a faculdade de pedagogia na antiga Faculdade de Filosofia Cigncias e Letras Sedes Sapientiae, que era na rua “Marqués de Paranagus. 4, durante os quatro anos, estudei os assuntos rclativos & educagio em geral, por exemplo historia da educacao, aprendizagem, diditca, filosofia da educagio; ‘mas o curso abrangia muito mais em termos de formacio acadtmica, com étimos professores de filosoia, histéria da filosoia,sociologia, bislogia,estatisticae outras matéras das {quais nao me recorda Para mim foram muito importantes © professor de filosofz, Heraldo Barbu, e o de sociolog Ignicio da Silva Tells; parece que eles abriam 0 mundo. Do Barbuy, guardo a lembranga do encantamento com que ele, a0 dar sua aula, nio apenas falava a respeito de filosofia, mas ppensava ilosofando, trzia como questio a palavra “set” para ‘meninas que jamais haviam sequer pensado que isso pudes- se ser questio e que, quase certamente,continuaram, em sua’ ‘maioria,ando ver queso alguma, Mas ele era encantado com, a filosofia, Eume lembro do dia em que, envolvido na questio das “esstncias ele fala da “anforidade da dnfora, Foi assim «que, mesmo sem fizer fhculdade de filosoia, a filosofia entrow ‘em minha vida. Até hoje me emociono a0 me lembrar dele, Do Silva elles me mercou a eapacidade que ele tinha para ios ers da cinclasciologi: ele entra num visio histirica do mand, numa losofa da his ‘Gra, numa eonsierago do humane. Eu me lembro de sua palavas dante da prgunta de uma ala sobre em que consis tea medioeriade de uma pesoa Ele respondeu 0D (SRemematetnMeRREEM 1 noneso me SR prego cm rare. posta nenhum critério comparativo, nenhuma referencia a0 ficarabaixo ou na média do que outra pessoas conseguem ou (@BidersEProfessoresassim nio sio apenas bons, sio grandes professores esses que ensinam algo mais que o conteddo de ‘uma matéria, que transmitem o gosto por aquele estudo. [Na faculdade Sedes Sapientiae,estudei sobretudo pst cologia. Além das aulas dadas por professores especiicos de psicologia experimental, de psicologia da aprendizagem, li estava a querida e inesquecivel madre Cristina, aquela que, anos mais tarde estaria presente no inicio do atual Instituto Sedes Sapientiae, esse curso de especializagao em psicologia ‘na raa Ministro Godéi. Durante os quatro anos da faculdade, cla ensinava histria da psicologia, desde o sentido dessa pa- lavra em Aristteles, a psicologia durante os séculos em que fo ligada 8 flosoia, osurgimento da psicologia experimental no laboratorio de Wundt e chegava 4 psicologia do século 20. Entio estudévamos Freud, Jung, Paget, as bases do bebavio- rismo, a psicologia da Gestalt em seu inicio, algumas idetas do existencialsmo sartriano. Além disso, ela ensinava tam: bbém psicologia do desenvolvimento epsicopatologia. Enfim, ‘numa épca em que nao havia ainda faculdade de psicologia ‘no Brasil, com a madre Cristina aprendiamos psicologia. Ela cexplicava cada teoria destacava a sua contribuigio e também seus pontos critics. Abria os horizontes da psicologia. Fico imaginando eacredite que ela teria gostado de vera fenome nnologia hoje. Madre Cristina foi uma pessoa muito importan- tepara desenvolver mina capacidade de pensar ‘Terminada a faculdade, se tivesse feito, no proprio Seales mais dos anos e uma especializagio dirigida pela ma- dre Cristina em psicologia clinica, eu teria tido wn diploma ‘que me permitiia atuarna einica desde aquela época. Mas 0 ‘que se deu foi que eu nio fiz esse curso. Em vez disso, fiz es ppecalizagio em orientagio educacional, mas nunca trbalhei nessa rea, Provavelmente, se tivesse feito naquela Epoca es pecializasio para a clinica, minha historia teria tomado outro ‘ume e hoje eu estaria longe da Daseinsanalyse. Depois da faculdade de pedagogia fi dar alas numa. Escola Normal onde, entre outras matérias, eu ensinava ps: cologia. Depois, com achegada dos filhos,parei com as aulas| € fiquei mais ou menos 8 anos cuidando s6 da familia. Nessa ‘poca, fiz um curso de psicodrama voltado para a educacio. “Mesmo longe dos estudos de psicologia,ndo me esque- cia dss teorias que tinhs aprendido, Nao me esquecia de como las explicavam o que se passa com as pessoas, o porqué dos confit chamados emacionais e acreditava que alguns te6- cos haviam desvendalo 6 chamado psiquisma, Por muitos anos leveiasério aqualas explicagoes e achava que as teorias| continham verdades indiscutiveis descobertas por autores goniais. Levei muito tempo para compreender que, exceto a psicologia comportamental, ue se atém ao abservive e, por isso, consegue especifcar as condigdes em que uma hipéte ‘se pode ser testaca, comprovada ou nio, as outras teorias de psicologia sio apenas conjuntos de hipdteses que, por seremn ‘muito bem concatenadas, estruturadas num sistema em que uma deia sustenta a outra, do a impressio geral de alg ire fativel, Mas sio sempre apenas hipéteses. Isso ficou muito claro para mim quando, em tomo de 1970, com a intengio de voltar a trabalhar, fiz mestrado na PUC na area da educagio, coordenado pelo professor Joe! ‘Martins. Fi entio quefiz dois cursos muito importantes com, ‘© professor Lebnidas Hegenbergs um de Idgica simbslica & outro de filosofia da ciéneia. Nunca mais tive noticia desse professor, mas ele fol uma figura marcante e decisiva, Depois esses cursos, passei a ver aqueles conceitos da psicologia ‘como o que eles realmente sio: construsdes hipotética. Sio conceitos que se justificam no ambito do conjunto de propo: sigGes, ou seja, da teoria & qual eles pertencem. Fas teoras ‘contam com esses conceit para formular as suas proposi- ‘goes explicaivas, geralmente causalistas, para tudo aquilo ‘que, nos seres humanos, diz respeito ao seu moda de ser con igo mesmo, com 0s outros, com © mundo. Para mim ficou a Ideiade que seria como se elas quisessem dar conta de alguns fenémenos humanos resumindo-os, compactando-os em conceitos proposigées. Mas os conctitos da psicologia no conseguem conter o modo de ser dos homens, eles si pobres para dizer © que é a existencia ¢, nesse sentido, sio esteitos. E, aomesmo tempo, por serem abstrasses generalizadas,si0 amplos demais acabam por dizer respeito a ninguém, visto «que aexisténcia humana ¢ sempre a de cada um, Entiojé ni0 Tevava toa sério as teoras ‘erminado o mestrado,passel a dar aulas de psicologia no Centro de Educagio da PUC e Ii eu tinha de ensinar as teoris. Entrava numa sala ¢ ensinava behaviorismo, pois 0 pensamento de Skinner era importante para a psicologia da aprendizagem; ia para outra sala e ensinava Piaget, pois era importante para a psicologia do desenvolvimento; na outra, ‘como a matéria se referia a teorias da personalidade, o foco era a psicanalise e precisava ensinar Fread, mas nesse caso, cu dava também Rogers, que eu prefers, e ai jé se encon: travam ecos de um pensamento fenomenolégica. O livro de Rogers Tornar-se pessoa foi fundamental para mim, Outro livro marcante dale foi Terapia contnada no cliente. Boi mut importante ter estudado Rogers com a professora Yolanda Forghiet Em 1978, estare sentindo que nio poderia mais dar aquelas aula; eu nao me sentia bem comigo mesma. Fui con- versar com 0 professor Joe! Martins, mew amigo, que tinha sco meu orientador no mestrada, De modo muito afivel le ime disse que eu estava precisando de uma reciclagem — foi essa sa expresso — eu precsava ver umas coisas novss para recuperaro gosto pels aulas,e me convidou entio para fazer tum curso dele ‘Comeceia frequentar o curso do Joel sem saber do que se tratava. Fiquei surpresa ao ver que ele, que j tnha sido li sgado‘ psicologia experimental, psicologia comportamental, depois 20 cognitivisme, naquele momento estava mergulha- do na fenomenologia, que eu nio sabia o que era, Eles esta vam lendo um texto de Heidegger em inglés: Conversa sobre 0 ppensamento em un caminko do campo. Foi meu primero con: {ato com esse fil6sofo, sem © menor preparo, sem nenhuma_ referencia, sem saber para que podera servir aquile e, 0 pior, sem entender nada. Mas fiquel encantada sem saber por qu. ‘A consequéncia disso foi que aquilo que deveria ser apenas uma reciclagem fecha um cicl, abriu outro novo 6 nesse novo, os conctitos com os quais cu lidava antes dei xxaram de ter importiacia. A partie de entao é que seria mais a8 minhas aulas, Isso, concomi- tantemente com questSes de ordem pessoal que me estavarn fazendlo pensit 0 que 2u queria fazer com a minha vida, me levou a, no final do semestre, deixar asaulas. Era uma decisio dificil ainda continua a dif, pois sgnifcaaabrc mio de alo que inka valor para min, see profesorad PUG, eabrirmio sem saber oq fa- exam seguids S6 sabia que queria continua extudaraquil cuja mostra eu tina tido no curso que havia acaba, mas no sabia como dar contnuidade Por asso conrersn depois com ums colega do cur $0, Maria — nunca mais ves moya, ela ni sabe o quan- to fi importante para mim —, el me fon de‘um grupo aque estudava Heidegger e me den um tlefone para conta Telfone e uma secretiria, dona Lins, me dea o endeeso, +a Bento Freitas, e matcou horiro para uma entrevista. No dia seguinte fui até Ise quem conversou comigo foi Solon Spanos enna tne mene ele ca gatien' Fale do mea intrese em estudar com eles, Queri explicar o porgué do meu intresse, queria que ele soubesse qu en tina sido professors, que tinh estado Heidegger por um Semestre com 0 Joc, que estava especialmente interessada tc enfim, extava com medo denio se cet, Ele fo muito acolhedor ede maneira muito simpsica, foi demonstrando aque nfo ora necesxisio expla ant edsse que eu podria ina semana seguinte entrar num grupo de estudo que estva ém andamento nagosle mesmo lngar Desde oprimeiro dia aque fao grupo percebi quel aconteca lguma cos: muito diferente. Era am mogo chamado Joio Augesto Pompéia, 0 Gato, quem coordenaa o gropo nese di ele etaa flan do apaixonadamente sobre Epo, Nida tnha aver com o tio rept compleno de Eapo. Eu nunca hava ouvido falar de Fdipo dagels manera, Depois,querendo contar para os outros como tnha silo grupo, sbre o que exatamente ele hava falado,nio sabia repetinada, ‘Sem saber tinha encontrado a Assaciagio Brasileira de ‘Daseinsanalyse, que jéexistiaem Sao Paulo desde 1974, iia «dajf existente na Sulca fundada por Medard Boss em 1971. ‘O tema do grupodo Guto era Sere tempo. Olivroservia dle base, mas as convessas tomavam rumos inesperados,sem- pre muito interessantes, em que a existéncia humana estava sempre em foco, Compre livro, uma tradueio em espanhol feita por Gaos. Por minha conta fui lendo o liv todo ea sen- sasio era de total incapscidade de compeeender alguma coisa, com jamais tha me acontecido quando lia um lio, Era d- ficil saber afnal do quese tratava aqui, qual eaaideia prin- cipal. Era um pensamento completamente novo diferente de tudo o que havia visto, que servia de eixo organizador daquelas ideias todas? Onde o autor estava querendo chegae? No entanto, que diferenga quando era 6 Guto falando. Fra tudo tio carol ‘Mas naquele grupo, aos poucos, fui me familiariando coma linguagem e verdo que se tratava de um pensamento {que fompia com a compreensio tradicional da filosofia, que ‘0s paramettos eram outros, ue © modo de pensar era out. Eu gostei do que vi Penso até hoje que, para quem quer se aproximar da Daseinsanalyse,sobretuda se tema intensio de trabalhar na clinica, a leitura de Sere tempo é fundamental Nao 6 uma leitura, mas esse é um livo para ser estudado, destinchado, saboreado devagar. Repetidas vezes. Embora 0 pensamento de Heidegger nto tenha parado aie ele tenha, 20 longo de sua vida, passadoadar énfaseaoutrostemas,embora tenha havido a chamaca “viragem” em seu pensamento, & em Sere tempo que esti a grande mudanca, a grande wirada 1a histia da filosofia. Po isso essa & uma obra tio especial. Ai nos deparamos com radical ompimento com as concepdes tradicionais de homem e de mundo e estamos diante da formulagao de algo inusitado na histéra da flosofia, um novo paradigma, como diz Erildo Stein em Seis estudos sobre ‘Ser € tempo’, 0 conceito de ser-no-mundo. F essa mudanga de paradigma faz todaa diferensa Alguns meses depois, comecel a minha terapiae devo ‘muito ao David Cytrynowicr, meu terapeuts.Além do estudo de Sere tempo, continue a fazer cursos com o Joel, na PUC «, por meio dele tomei coaheciment da fenomenclogia de Husser. Compreendi a importinci da ideia de intenciona lidade da conseiéncia.Fique surpresa com a recomendasio da saspensio fenomenolégica,o deixar de lado as teoras © “volta ds coisas mesmas” Vejo agora que ea sso 0 que eu j ‘ina fazendo hava muit tempo -A medida qu continuaa a ler sobre fnomenologia€ Daseinsanalyse e quando eu nio tisha mais nenfuma teoria de psicologa,s6 entio pude pensar em teabalhar na clinica «como terapeuta,o que havia sido um antigo desjo, Mas eu ‘io tinha um diploma de pricsloga, Conversando com 0 Joe, disse ele que etava pon sando em procurar uma faculdade de psiologia para ter 0 diploma necessirio. Ele fcou muito surpeso, quase nfo acre ditando,poiso mais normal é que depois do mestrado se faa ‘© doutorado e mio uma volta paras graduagdo, Mas ea no tinha nehuma motivagae para fazerum doutorado, pois nao tinka honestamente nenhuma questi académica a ser pes quisada eno queria fabricar uma para obter wen titulo. Nao Podia continuar indo par frente num caminho que nio era 0 ‘meu, pois eu ira ficar cada ver mais longe de mim. Ele com: preendeu plenaments Fai para uma ficuldade em Santo André, a Senador Flaquer, em que tive dspensa de algumas matérias que jha- via cursado na primeina faculdade, o Sedes, ede outras das {quais jf tinha dado aula na PUC. Depois de dois anos, apés ‘um susto quando, indo para Is numa noite de chuva em que 0 ‘ro Tamanduate‘havia ransbordado, o carro em que euestava parou no meio da enckente, decidi que no semestre seguinte ‘nto continuara mais , Pedi transferéncia para uma faculda- de de Sto Paulo, a Patlistana, onde conclu as matérias que ainda faltavam, Tinha enim o diploma, em 1985, 6 tinha ido em busca desse diploma para poder trabalhar como terapeuta porque jf havia encontrado a Daseinsanalyse; © pessamento heideggeriano 4 era refe- rencla para mim, antes disso, ndo via possbildade. Aquelas ‘deias doo interno” e“p externo da estrutura de um psiquis- mo e seus mecanismosficaram definitivamente para tris. Mew ponto de partidaestavs na existéncia, no Dasein, sera, que & ser-no-mundo. Sabia que, quando uma pessoa me procurasse, €0 10 iri ver nela processos psiquicos explicados pelos vitios con- ceitos de psicologia. A minha inguietagio s ‘com aquel existéncia inca na minha frente. Como essa pes- ‘03 foi se tornando esss que esta sendo agora? Como foi e 0 ‘mundo fitico em que cla existe? Que signficados estio pre sentes na sua maneira de compreender a propria vida, tendo lem vista o futuro, o pasado eo presente? Que tipo de dispo- sco afetiva ¢ prevalecente em sua vid cotidiana, no contato ia exatamente ‘com 0s outros, naguilo que faz parte de sua atividade didria? (© que ela quer para sua vida? Qual éo seu sofrimento? Eu s bia que nao estaralidando com “fatos psicolégicos’, mas com uma historia vivida, uma existencia humana que se sabe finita| «© por isso se preocupa com 0 tempo, que quer “se realizar, 'mas nio sabe bem como, pois nem tudo colabora, filta tanta coisa, faltou li ards, nao tem garantia de que nio vai altar na frente; falta coragem para decidir por algo, ila coragem Para renunciaro que é preciso. Sabia que quando esta pessoa ‘me procurasse eu estariadisponivel para percorrer com ela a hhstoria que € a sua vida. $6 nao sabia como ex fara parame aproximar disso tudo, Relendo viris vezes Ser e tempo e outros textos de Heidegger, fui me familiarizando com o eit fenomenoligico de olhar, de pensar. De fato, era um jito muito diferente do que num momento, ainda na dade pareca to interesante, empolgante mesmo — no con- sultério, junto a alguém que se est ali é porque espera algu- ma coisa dele, pode gerar uma grande inseguranga. Pode see dificil aguentar a sensagio de “desabriga” que surge por nio ter consigo alguma teora de psicologia tradicionalmente re- cconhecida como capaz de dar explicagdes,teoria que, supos- tamente, Ihe serviia como um anteparo diante do paciente, ‘como algo que Ihe dariaum aval para as suas interpretagSes, sah Com 0 passar do tempo foi fcando para mim cada ver _mais claro que aclinia baseada na Daseinsanalyse parte de ressupostostedricostctalmente diferentes dagueles que eu cconhecia antes, Nao termos uma teoris de psicologia pode parecer algo estranho, Como se trabalha nessa rea chamada psicologia sem falar em psiquismo, dinamismos, mecanis: mos, complexos, condicionamento, reforso dle conceitosestabelecidos? Entso desconsideramos tudo 0 ‘que as teoras ja nos ajudaram a compreender a respeito dos Jnumanos? Seria uma insensater tal desconsiderago. Mas fa zet fenomenologia nao significa nem ignorar nem desprezar asteorias, mesmo porque els ji fazem parte do nosso mundo, mas sim suspendé-ls isto & deixar que o fendmeno, ou se, aguilo que diante denés se mostra e20 mesmo tempo se ocul- ta, possa ser olhado por nésa partir dele mesmo, possaapare cersema interferéncia de tudo aquilo que terias jf disseram sobre ele. No dizer de Husser, “volta s coisas mesmas’ E, ‘no momento da terapia, ofendmeno para serexplicitado, para sercompreendido, &4 existéncia que est ai ‘Compreender 0 que surge na sessio é se projetar com ‘o paciente na procura do sentido que aquilo faz na existéncla dele, na procura de como aquilo se insere, no em uma teoria cexplicativa, mas na vida dele. No decorrer das sessdes, aque Ja existéncia vai ampliando sua transparéncia para si mesma naquilo tudo que ela comporta de desejos, de conflitos, de insatisfasio, de sentimento de injustica, de revolta, de medos, de arrependimentos, de incertezas, de dedicacio, de amor, de raivas, de desconfiangas, de projetos. Poder se ouvir falando de'si mesmo livremente, sem precissr se ocupar em se defen der algumas vezes, sem se sentir outtas vezes como quem esti cexibindo qualidades, pode ser a ocasito para alguém chegar ‘mais honestamente perto de si mesmo. Acrescenta-se a isso © fito de estar falando com alguém que est ali para isso mes- ‘mo para ouvir e dalogar com ele. Isso pode ser um primeiro passo paraa possibilidade de repensar sobre 0 que realmente cle quer, sobre as pessoas com as quas ele convive, de prestar stengio nos seus sentimentes, de reavaliar os motives de pos siveisinsucessos, deacreditar em seupotencil, de reconhecer seus eros, di alguma coisa cer signiicados, de eriar coragem para mudar Quando falamosem suspensio das teoras isso nio sig nica aquilo que alguns psicSlogos, embora trabalhando na_ referencia bem espectia de uma teoria psicoldgica, dizem: quando estou com o piciente ¢ fecho a porta do consult6- Fo, deixo a teoria do lado de fora, me esqueco dela. Mas uma_ teoria no & algo que se possalargar do outro lado da porta, pois as posigdes tedricas que temos fazem parte de nds, elas ‘compoem a nossa manira de pensar, aquelateoria que esse psicSlogo diz que delsa fora, sorrateiramente, entra com ele ‘no consult6rio como pao de fundo da compreensao que ele tem daquilo que o paciente trax. ‘Trabalhando na referencia da fenomenologia daseinsa- nalitica, nfo esquecemes uma teoria psicoldgica fora da sal, porque no a temos, &a realmente nio faz parte do nosso referencial compreensiv, Proposigies hipotiticas relativas| 4 dinamismos, mecanismos etc. $20 desnecessirias para a nossa compreensio de estruturas de significados, de senti- do, Quando estamos nasala com 0 pacient, estamos abertos « atentos para acolher squilo que ele esti trazendo naguela hora, abertos para o que surge no momento e para 0 como aquilo se entreaca com tudo mais que, 20s poucos, vem com- pondo a histria dele. Ao longo das sessdes, vio aparecendo as suas dlficuldades para respeitar compromissos,assumirres- pponsabilidades, pra sermenosrigido, para se doar, para amar para aceitar 0 outro, paca se aceitar, para aeitar os acontect ‘mentos como eles se di, as pers, aincerteza,os limites que se impiem, a morte para se permitirviver as alegrias, para perdoar,recomeyar, ousa, para renuncar, para ter esperanga, para deixar para tris o que precisa ser deixado, para reclamar quando & necessirio. Nao s6 aparecem as dificuldades, mas ‘ai surgindo também tudo aquilo que para ele fui mais facil ‘mente, suas disponibilidades, habilidades, competéncia, von: tade de rever © que tem sido a sua vida, sua possibilidade de encaminhar a propria existéncia mais em harmonia consigo mesmo, Estamos abertos para acolher seus sentimentos, 05 ‘que surgem na sessio, os que ji fazem parte do seu dia a dia, seus medos, sua possivel angistia, ‘Resumindo, naquilo tudo que o paciente traz so longo das sess0es vai se mostrando, aos poucos, aguela existéncia, ‘ou seja, aquele poderser que se encontea sempre jétendo-si- do no mundo fitico que & 0 dele, decado em meio a tudo que se apresenta na lida cotidiana, No que ele traz esti contido val se mostrando como ¢ o seu olhar para o futuro, visto que existir um poder-ser; 0 seu olhar para o passado, posto {que existir& sempre um ji ter-sido; o seu olhar para 0 pre- sente, pois o existir se desenrola no presente cotidiano, Nisso {que estou chamando de olharseja para o futuro, sej para © passado, seja para o presente, esti incluidos os significados embutidos ness olhar, bem como acargaaletiva que cles car- regam. O entrelagamento de todos os signifcados compe uma totalidade signiicativa que diz respeitoaquela pessoa, ‘pois, em tltima instincia essa significatividade se refere a um cem-virtude-do poder-ser daguele Dasein. A conexio entre a totalidade desigificatividadee esse poder-serconstituio que chamamos mundo, Entio, deixar que apareca tudoissoé deixar que aparesa ‘o mundo daquela pessoa que, como Dasein, éser-no-mundo. © que o paciente trax io se refere a algo que precisasse de uma teoria de psicologia para ser comproendid. O que ele traz expressa 0 seu mode de ser-no-mundo, Em todos os pen- samentos, em todas as recordagdes, em todos os devancios, em todos os desejos, ent todos os sentimentos, em todos os sonhos,o mundo esta sempre js incluldo, Na fila do paciente estio exprestos os sgnificados que ‘compéem 6 mundo fitico em que ele existe, ainda que o fal do por ele possa ser uma mentira, uma usio. Como ele se di entender e sentea passagem do tempo, a velice, as esperan- ‘8 frastradas, os desafios novos que esto por vir, o sucess, ‘omedo da morte, o semir-se culpado,o desprezo, oelogio, 0 fracass, © amor, arava o trabalho, o abandono, a alegra, a necessidade de encontrar um sentido para sua vida, 0 tédio, a perda das pessoas queridas a falta de garantia,o no ter sido mada, o poder, a submissio? Como esta sendo sua existén= «ia, ou seja, como ele, ue é um poder ser que se encontra ji sempre jogado num mundo com os outros, em meio a tudo «que vem a seu encontrona lida cotidiana, esti dando conta do seu encargo de existe? Ai eu penso: Hi alguma teoria de ps: cologia que dé conta disso? Alguém poderia dizer: mas estes so problemas existonchis, a psicologia cuida do psicl6g- 0, Mas hi algum problema "psicolégico” que nao sea da exis téncia? Onde se passa itvo que échamado de “o psicolgio’ Embora nfo tenhimos uma teoris de psicologia, pode mos evar em considerasio algumas contribuig6es dadss pelos peicanalista, junguianos, gestaltistas, behavioristas, cogni tivistas, na medida em cue trouxeram observagies que cola bboram para alargar nossa horizonte de compreenséo do que dia respeita aos cares humanos. E também devemos evar em conta o que nos chega por outras fontes como o pensamento dos fildsofos, as religides, os mitos, as grandes obras da lit ratura, Tudo isto nos conta muito 2 respeita de como si0 0 homens. Iss signifcaia que somos "scléticos"? Nao. O ato de levarmos em conta tudo que diz respeito ao humano eno nos basearmos numa determinada teoria de psicologia para com preendermos 0 paciente nio significa que trabalhemos sem ‘uma referéncia tedrica propeiamente nossa, 0 referencial tedrico que fandamenta nossa aividade clinica & 0 pensamento heideggeriano, Isso poderia parecer estranho, pois Heidegger nio foi psislogo, nio foi psiquia tra, mas “apenas” fildsofo, Acontece que ele nto foi so mais uum filésofo, mas foiaquele que deixouafilosofia do século 20 ‘marcada por diferengas fundamentals em relagio aos mais de dois mil anos de filesofiaocidental Seu livro Sere tempo, de 1927, & um marco na filoso- fia, Ba obra que propde um pensamiento novo, nio s6 com refertncia a algum deteeminado seter do conhecimento, mas novo porque rev8 os fundamentos que tim servido de base par a filosfia e porque seu préprio desenrolar-se acontece «de um modo nove, Por sso, num primeiro contato, € tio tra Dalhosa sualeitura, A pergunta que interessa a Heidegger é pergunta pelo sentido do ser. Segundo ele, Pltio e Arstoteles se ocuparam dol, mas depois, como tema de investigasio, essa pergunta ficou emudecida, caiu no esquecimento, Eo que hi de to importante nessa questio 8 qual Heidegger se dedicou por toda sua vida, ou seja, a pergunta| pelo sentido do sr? Po: que o lertar para 0 perigo de essa pergusta se calar? Tode mundo ji sabe o que ¢ ser! Ora, é justamente para isso que 0 fi6sofo apoata: 0 supormos este conceito como vazioe dio. Eon Sabre humanism, ele nox lembra: “Ji nos primérdios do pensamento, diz Parménides: % pois o ser (..) Todavia, porque o penssmento ainda deve chegar a dizer 0 er, em sua verdade, a0 invés de expic-lo comovum ents tom de Fcaralerta par. desvelocuidadoxo da pensamento a questi, see como o ser” (p.$6,57). Assim, 0 pensamenio deve estarstento, poisas palavras de Parmeénies sina nio fram sficietemente pensadas. Como encontramesno parigrafo2deSeretempo, aque la pergunta fundamental B todo perguntar 6 uma busca Como busca, perguntr supde que hsja previamente uma compreensio daguilo que ébuscado, pois 480 conteiio, no saberiamos o que estamos buscando, Sea buscado &o sentido dose entio ese j deveestar anda que nd temitiae explt- citamente, nossa dispesigo, deve ser de algamna mancira medianamente compreendido. Dessacompreensio mediana que temos & que brotaaperguntaexplicita pelo see Quando fazemos essa porgunts, que ets sendo posto em questio & “aquilo que determina oenteenguanto ents, sso com vistas 20 _qual cots, em qualquerforma que sa considera, com preendid sempre. O sed entenio ele mesmo, um ente (p.29). Heidegger pergunta pel sentide do see mis como ser ‘quer dizer ser do ent, o nterrogado nessa pergunta & 0 ente mesma. F, ness caso cat pilegiado ao qual deve seri sda. a pergunta peo sentido do ser éaqusle que sempre tz ‘em simesmo oer come questo, visto que, nele, Seu ser est sempre em jogo, aquele que ji tem do see uma compreensio smediana, ainda que nio explicitamente elaborada. “Por con seguint, eaborar a pergunta pelo ser significa fazer com que tum ente — © que pergunta — se tomne transparente em seu ser (..) Base ente que somos em cada caso nds mesmose que, entre outras coisas, tem essa possbilidade de ser que & 0 pet guntar, © designamos com o termo Dasein” (p. 30). Daseia, em seu ser, se relaciona com o ser, se compreende em seu ser, € aberto para o ser Por ss, Heidegger, interes na ques: tio do sentido do ser, drige sua investigagso na directo des- seente, Dasein, esse mesmo que fara pergunta pelo ser E esse o ente que precisa ser préva eadequadamente exposto no que diz respeito a seu se, 0 ente que o ilbsofo se prope a tornartransparente em sou set iso © que acontece em Ser «tempo; uma anata do Dasein, nbs mesmos, que i sempre ros movemos na compreensio de set. Heidegger, em Ser tempo, embora sun questso prin ipa seja a pergunta pelo sentido do ser, no chega a realizar seu intent, pois a segunda parte da obra nio foi escrita, Mas aguela pergunta continua presente em sua vida e, aps Ser ¢ tempo, ele percorte outros caminkos para se aproximar de sa questi, Entio, por que uma obra incompleta, ue no conclut aquilo que era seu objetivo inicial, ou sea, x questio do sen tido do ser em geri, se tora tio importante? Acontece que, _mesmo sem escrever © que seria a segunda pate do liveo, a0 sededicara esclarecer o ser daquele ente que € 0 que fz per- gunta pelo sere ese &0 por ele chamado Dasein, Heidegger resliza profandamente a analitica da existéncia e conclui que co sentido do ser do Dasein é temporalidade, Assim, ele deixa para os filésofos e também para aqueles que, nao sendo fi lsofos se interessam pelo que diz respeito 4 existéncia, um legado precioso para a compreensio dos caracteres mas fun- ddamentais desse ente, o Dasein, ou sea, exsténcia humana. ‘Fino século passado, na Europs, a psiquitria comesou «ser influenciada pel contrbuigSes da fenomenologa, es- pecialmente polo pensamento de Heidegger. Dos psiquiatra, Ludwig Binswanger e Medard Boss se destacaram nessa rea, Para eles, a analitca wistencal de Heidegger serviu de base para a compreensio dis maneiras de existir de seus pacien- tes, indo além do entendimento médico-psiquiitico dos seus sintomas. A conwite de Medatd Boss, Heidegger realizou na, Suica, em Zollikon, entre 1959 e 1970, seminivios com psi- «qiatras e psicdlogos ineressados em seu pensamento, Dessas| reunidesresultow Semindrios de Zollikon,cujaleitura & muito importante porque aproxima filosofia clinia, Também éim- portante que nosso estudo de Heidegger inclua a litura das obras posteriores a Sere tempo pois elas ampliam nosso hot zonte de compreensiado pensimenta do fldsof Em Sere tempo, questso do sentido do ser ¢ a funda mental ea fenomenologiaé 0 método para realizar sua inves tigagio. Lemos no pardgrafo 7: “O termo ‘enomenologia’ ex: pressi uma maxima que pode ser formulas assim: is coisas mesmas!’ — frente a todas as construgbes no ar, a achados fortuitos, frente & reeepgio de conceitos s6 aparentemente legitimados, frente is >seudoperguntas que com frequéncia se propagam como ‘problemas’ através de geragaes”(p. $1). Formalmentea fenomenologia pode significar omostar,o pet- mit vero ente como se mostra em si mesmo, pos o conceito formal de fendmeno € este: © que se mostra em si —_—— _Hogico de fendmeno,Entretanto,o que a fenomenclogia deve a “etm creo questio do sentido do ser €a que move Ser tempo, ou seja, uma questio primariamente filoséfica. Mas ness li vro, como otapa preparatéria para chegar 20 seu objetivo, “Heidegger se detém na anise do ente para quem ser é ques to aquele do cujo sr faz parte 0 pergunta pelo se, isto &,0 Dasein ou sera. F© que disso resulta é uma profunda analit «a do Dasein, em que se tornam manifestos 0s seus caracteres fandamentais. Mesmo quando nio somos fldsofos, tomaemos cconhecimento dessa descrigdo, dessa andlise do Dasein, causa ‘um impacto, pois, afinal, Dasein & cada um de nds. Na leitura, entramos em contato nao s6 com ideias novas, mas também «com o modo como afenomenclogia se aproxima das questbes. Em Ser etompo, Heidegger se utiliza do método fenome nnoldgico para investigaro ser do Dasein tendo em vista a sua {questio principal, a pergunta pelo sentido do ser. Entretanto, as as consideragies sobre 0 que éfendmeno e o que éfeno: ‘menologia sio vilidas também para nds terapeutas que, nio sendo fl6sofos, emos em vista uma fenomenologia daquele Dasein, daquela existincia particular, daquele ser humano, a ppesson que nos procura para uma terapia. Seu pensamento repercute em tudo © que diz respeito SEHR cexatamente isso que esti ne ‘As proposigdes heideggerianas implicam alteragbes ra- dicais em nosso pensar impregnado pela metafsica tradicio- nal esubvertea costuneira ordem que havia em nossa acelta ‘io tacta dos pressupostos relativos a uma esfera interior, a ‘uma realidade a fora, asubjetiidade, 3 objetivdade, a neces- sidade de explicar como essas duas instincias, por principio ‘to separadas,entrarian em contato, ou sea, como é possivel {que se dé o conhecimento da realidade. E interessante vee como Heidegger se refere a uma questio que tem feito parte da preocupasio de filisofos no decorrer da historia dh flosofia: aquela que diz respeito & existincia do mundo e8 possibilidade de seu conhecimento, Quanto a isso ele, no parigrafo 43 de Sere tempo, comenta a distingio que Kant faz entre o “em mim” ¢ 0 “fora de mim" e o fito de Kant considerar“o escindalo da filosofiae daraz30 Ibumana universal’ a filka de uma demonstracio peremptsria| da ‘existéncia das coisas Fora de nés’ que soja eapas de cles nar todo ceticismo” (p.224). Diante dessa maneira de pensar, Heidegger di: “o escindalo da filosofa’ no consiste em que esta demonstragio ainda nso tenha sido feta até agora, mas sim em que tas demonstragdes ainda continuem sendo esperadas « intentadas”(p. 226). “© problema nio esta em demonstrar que ‘existe’ ou como existe’ um “mundo exterior, mas em. mostrar por que Dascn tem, enquanto ser-no-mundo,a ten- imprdpria do Dasein, Seja propriamente, sejaimpropriamente, o Dasein & sempre hist6rico. Iso significa que, “entre” o nascimento & morte o Dasein meso se estende de tal modo que seu ser é constituido como extensio, ea especifica mobilidade des- se etender-seestendidoé 0 acontecer ow ogestar-se do Dasein, (p.391). Acestrutura deste acontecer & a historicidade,eujo fn:

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