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REVISTA DE

HISTÓRIA
Maria Cristina Cortez Wissenbach / Revista de História 150 (1º - 2004), xxx-xxx

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO


Reitor: Prof. Dr. Adolpho José Melfi
Vice-Reitor: Prof. Dr. Hélio Nogueira da Cruz

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS


Diretor: Prof. Dr. Sedi Hirano
Vice-Diretor: Profa. Dra. Sandra Margarida Nitrini

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
Chefe: Prof. Dr. Osvaldo Luiz Angel Coggiola
Suplente: Prof. Dr. Carlos Alberto Ribeiro de Moura Zeron

REVISTA DE HISTÓRIA
Número 150 (Terceira Série) – 1º semestre de 2004 – ISSN 0034-8309

Conselho Editorial Produção


Profa. Dra. Maria Helena P.T. Machado (Editora) Secretário: Joceley Vieira de Souza
Prof. Dr. Elias Thomé Saliba Diagramação, Projeto Gráfico do miolo: Joceley
Profª Drª Cecília Helena L. Salles Oliveira Vieira de Souza (joceley@usp.br)
Profª Drª Maria Inez Machado Borges Pinto
Prof. Dr. Julio Cesar Pimentel Pinto Filho

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Caio Boschi (PUC-MG) José Carlos Sebe Bom Meihy (DH-USP)
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2 Euclides Marchi (UFPA) Luis Henrique Dias Tavares (UFBA)
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Holien Bezerra (UFGO) Sergio Miceli (USP)
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Jean-Claude Schmitt (EHESS) Vavy Pacheco Borges (UNICAMP)

Órgão Oficial do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – USP
Fundada em 1950 pelo Professor Eurípedes Simões de Paula, seu Diretor até seu falecimento em 1977

Endereços para correspondência:


Comissão Executiva: Compras:
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05508-900 – São Paulo – SP – Brasil Rua do Lago, 717 – Cidade Universitária
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Este número contou com o apoio financeiro do


Programa de Pós-Graduação em História Social - FFLCH/USP

© Copyright 2004 dos autores. Os direitos de publicação desta edição são da


Universidade de São Paulo – Humanitas Publicações FFLCH/USP – dezembro/2004
Maria Cristina Cortez Wissenbach / Revista de História 150 (1º - 2004), xxx-xxx

REVISTA DE 3

HISTÓRIA
Maria Cristina Cortez Wissenbach / Revista de História 150 (1º - 2004), xxx-xxx

Serviço de Biblioteca e Documentação da Faculdade de Filosofia, Letras e


Ciências Humanas da Universidade de São Paulo

Revista de História / Departamento de História. Faculdade de Filosofia, Letras


e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo. n. 1 (1950). São Paulo:
Humanitas / FFLCH / USP, 1950-

Nova Série - 1º Semestre, 1983


Terceira Série - 1º Semestre, 1998.

Semestral
ISSN 0034-8309

1. História I. Universidade de São Paulo. Faculdade de Filosofia, Letras e


Ciências Humanas. Departamento de História

CDD 900
Maria Cristina Cortez Wissenbach / Revista de História 150 (1º - 2004), xxx-xxx

EDITORIAL
07

DOSSIÊ
São Paulo - 450 anos
Maria Cristina Cortez Wissenbach 11 A Mercantilização da Magia na
Urbanização de São Paulo, 1910-1940

James P. Woodard 41 Regionalismo Paulista e Política Partidária


nos Anos Vinte

Petrônio Domingues 57 "Paladinos da Liberdade". A Experiência


do Clube Negro de Cultura Social em
São Paulo (1932-1938) 5
Damião Duque de Farias 81 Representações Historiográficas Católicas
por ocasião da Comemoração do IV
Centenário da Cidade de São Paulo

ARTIGOS
Cielo G. Festino 99 A História nas Estórias das Mulheres
do Raj

Márcia de Almeida Gonçalves 129 Narrativa Biográfica e Escrita da História:


Octávio Tarquínio de Sousa e seu tempo

Eduardo Natalino dos Santos 157 As Tradições Históricas Indígenas diante


da Conquista e Colonização da América:
Transformações e Continuidades entre
Nahuas e Incas

Lincoln Secco 209 Biblioteca Gramsciana: os Livros da


Prisão de Antonio Gramsci
Maria Cristina Cortez Wissenbach / Revista de História 150 (1º - 2004), xxx-xxx

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Maria Cristina Cortez Wissenbach / Revista de História 150 (1º - 2004), xxx-xxx

EDITORIAL

Fazendo eco às comemorações dos quatro séculos e meio de fundação da


cidade de São Paulo, o número 150 da Revista de História abre com o Dossiê
São Paulo 450 anos, cuja composição reflete a variedade de temas e aborda-
gens que hoje enriquecem a historiografia paulistana interessada no estudo
da cidade no século XX. Contando com os artigos de Maria Cristina Cortez
C. Wissenbach, James P. Woodard, Petrônio Domingues e Damião Duque de
Farias, os textos apontam para diferentes perspectivas historiográficas, apre-
sentando estudos sobre temas tais como a inserção das práticas mágicas e do
curandeirismo na cidade que se aburguesava nos anos de 1910 a 1940 (A Mer-
cantilização da Magia na Urbanização de São Paulo, 1910-1940), a questão
da formação política dos grupos paulistanos e sua projeção no cenário nacional
da década de 1920 (Regionalismo Paulista e Política Partidária nos Anos
Vinte), a eclosão de uma pioneira experiência de movimento e imprensa negra 7
na São Paulo na década de1930 (Paladinos da Liberdade”. A Experiência
do Clube Negro de Cultura Social em São Paulo, 1932-1938) e, finalmente,
o quarto artigo (Representações Historiográficas Católicas por ocasião da
Comemoração do IV Centenário da Cidade de São Paulo) enfoca as
representações produzidas por um imaginário paulistano católico e conserva-
dor, de viés bandeirista e empresarial, cujo escopo têm agora, em torno dos
450 anos da cidade, sido objeto de uma merecida crítica historiográfica.
A seção de artigos da Revista de História número150 se inicia com o texto
de Cielo Festino sobre a literatura de língua inglesa na Índia do Raj (A História
nas Estórias das Mulheres do Raj) e cujo objetivo foi o de apontar as ligações
entre a literatura, gênero e imperialismo. A seguir encontramos o artigo de
cunho historiográfico de autoria de Márcia de Almeida Gonçalves (Narrativa
Biográfica e Escrita da História: Octávio Tarquínio de Sousa e seu Tempo)
que enfoca a questão da construção narrativa da biografia na obra de Otávio
Tarquínio de Sousa. O artigo de Eduardo Natalino dos Santos (As Tradições
Indígenas diante da Conquista e Coloniazação da América: Transforma-
ções e Continuidades entre Nahuas e Incas), ao se deter sobre a questão da
história indígena frente à conquista, apresenta perspectivas analíticas de um tema
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tão rico quanto carente de abordagens em nosso meio acadêmico. Por último,
na tradição da história das idéias, Lincoln Secco (Biblioteca Gramsciana: os
Livros da Prisão de Antonio Gramsci) aborda a construção do pensamento
gramsciano por meio da análise de sua biblioteca no cárcere.

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DOSSIÊ

São Paulo
450 anos
9
A MERCANTILIZAÇÃO DA MAGIA NA
URBANIZAÇÃO DE SÃO PAULO, 1910-1940*

Maria Cristina Cortez Wissenbach


Depto. de História - FFLCH/USP

Resumo
Com base em processo movidos contra réus incursos nos artigos que
criminalizavam o curandeirismo, o espiritismo, a feitiçaria e outras prá-
ticas similares, o texto busca o significado histórico de crenças religio-
sas na perspectiva de um universo citadino em transformação. Contem-
pla questões como a propagação do espiritismo, diferenças entre rituais
do “baixo” e do “alto” espiritualismo e o tratamento dado ao tema pela
imprensa e pelas autoridades que lideravam as campanhas antimagia.

Palavras-Chave
Religiosidade popular • Espiritismo • Urbanização • Ritos e Crenças Afro-
brasileiros • São Paulo

Abstract
Based on legal proceedings against those who practised withcraft and
sorcery, spiritism, healings rituals and other practices considered as cri-
me by the Legal Code of 1890, this article seeks the historical meannings
of religious faiths in a changing urban context. The study focuses on
questions such as the propagation of spiritism, the differences between
“low” and “high” spiritual rituals, and the way in which these thems were
treated by the press and by the leadership of the campaigns against magic.

Keywords
Popular religions • Spiritism • Urbanization • Afro-brazilian rituals and
cults • São Paulo

*
Este artigo é parte de uma pesquisa mais ampla, financiada pelo Capes/CNPq, que re-
sultou na tese de doutorado Ritos de magia e sobrevivência. Sociabilidades e práticas
mágico-religiosas no Brasil, 1890-1940. Departamento de História, USP, sob orienta-
ção da Profa. Dra. Maria Odila Leite da Silva Dias, 1998.
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"Faço milagres. Sim, faço milagres ! Mas milagres ... científicos!!"


(Ariosto Palombo, ou Mahatma Patiala, ou João de Minas, Diretor
da Academia Brasileira de Ciência Divina, São Paulo, 1939)

No Brasil dos primeiros anos da República, sob os auspícios de novos tem-


pos e de um novo século que se aproximava, assistiu-se a eclosão de uma série
de movimentos sociais nos quais a religiosidade popular, o misticismo e o pro-
fetismo apresentaram-se como elementos capazes de levantar as populações
sertanejas. Tais foram os movimentos de Canudos, do Contestado e de Juazeiro
que chegaram a abalar os alicerces do regime que se implantava e a atemorizar
uma sociedade que nascia sob o signo das profundas modificações sociais e
políticas ocorridas nas últimas décadas do século XIX. Fenômeno que traduziu
anseios, o descontentamento e a visão de mundo de populações afastadas dos
centros de modernização, o poder mobilizador das crenças religiosas não se
manifestou somente nas regiões que constituíam o Brasil das áreas do interior.
Nas cidades brasileiras, sobretudo nas capitais do Sudeste, convulsionadas
12 pelas transformações trazidas pela Abolição e pela imigração, por ritmos inu-
sitados de crescimento populacional e de urbanização, assistiu-se igualmente
uma onda de religiosidade difusa, que se manifestou sob outras formas e teve
significados sociais diferenciados. Conduzido por crenças variadas e veiculado
pela proliferação de práticas de cura, de adivinhação e rituais de proteção, este
movimento esteve marcado por um encontro sugestivo entre antigas tradições
e práticas mágicas e as correntes do pensamento espiritualista que se firmavam
na época, entre elas especialmente o espiritismo que, nascido na segunda me-
tade do século XIX, aqui rapidamente se projetou.
Na cidade de São Paulo, onde a propagação das diferentes vertentes do pen-
samento espiritualista por meio de rituais e de ações individuais rapidamente
recebeu a designação de o comércio da ilusão, proliferaram, desde os inícios
do século, consultórios de videntes, quiromantes e cartomantes que, em sua
maioria, se apresentavam como madames de origem estrangeira (francesas,
sírias, espanholas e ciganas, entre outras), e de curandeiros, médiuns e
benzedeiras. Posteriormente, ao lado desse atendimento individualizado e ao
longo do período de 1920 a 1940, surgiram também centros e institutos
destinados ao tratamento de doenças para as quais a ciência médica oferecia
poucas chances de cura – tuberculose, lepra, sífilis, doenças da pele, entre outros
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males – e ao desenvolvimento de novas terapêuticas para as doenças de fundo


nervoso, em meio a recursos magnéticos – passes ou aparelhos – , e técnicas de
exorcismo associadas ao sonambulismo e ao hipnotismo.
É difícil dar conta da extensão do fenômeno, tal a profusão de consultórios,
centros e institutos que foram se formando na cidade destinados a atender uma
clientela cada vez maior, ansiosa em aliviar as tensões próprias aos momentos
históricos em que viviam. Na documentação criminal, no noticiário de jornais
e na linguagem comum, foram, a princípio, distinguidas entre correntes e expe-
rimentações ligadas ao alto espiritismo e práticas e rituais catalogados como
sendo de baixo espiritismo. Enquanto o termo alto espiritismo designava algu-
mas das vertentes do pensamento espiritualista, especialmente o espiritismo
científico ou o kardecismo, ramos do ocultismo oriental e a fenomenologia
experimental do sonambulismo, do hipnotismo e do magnetismo animal, o
termo baixo espiritismo era atribuído a uma multiplicidade de práticas de
origens e características diversas mas, no geral, destinadas ao diagnóstico e
cura das doenças do corpo e da alma e à resolução das adversidades da vida,
especialmente daquelas trazidas pelo estilo de vida urbano e moderno. Práticas
criminalizadas já pelo Código Penal de 1890, entre os acusados de exercer o 13
baixo espiritismo poderiam ser encontrados curandeiros de diferentes tipos –
ocultistas, magnetizadores, hipnotizadores, médiuns receitistas – , benzedeiras
que praticavam as simpatias da medicina mágica e do catolicismo popular e
quiromantes, cartomantes e pitonisas versadas em adivinhações. E, principal-
mente, feiticeiros e macumbeiros, denominação que recebiam os indivíduos
envolvidos nos rituais e nas crenças oriundos da população de afro-descen-
dentes da cidade1.
De pouco adiantaram as campanhas progressivamente travadas contra os
diversos tipos sociais ligados a essas práticas. Em São Paulo, nas décadas
iniciadas em 1920 e em 1930, só fizeram acentuar a tendência à instituciona-
lização de suas agremiações, fazendo aumentar progressivamente o número

1
Neste sentido, a documentação básica sobre o tema são processos criminais de réus
indiciados nos artigos do Código Penal de 1890 que criminalizavam o exercício ilegal
da medicina (artigo 156), o uso do espiritismo, da magia e de seus sortilégios para iludir
os incautos (artigo 157) e a prescrição de fórmulas medicamentosas (artigo 158). No pre-
sente artigo a documentação citada foi localizada no Arquivo do Poder Judiciário do Esta-
do de São Paulo (no extinto Arquivo da Vila Leopoldina).
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daquelas registradas junto às autoridades policiais. Pressão das autoridades


que demandou, igualmente, uma melhor definição das doutrinas e dos pressu-
postos que as norteavam: além de oferecerem lenitivos para as doenças do
corpo e da alma, os dirigentes das agremiações espíritas e ocultistas passaram
a buscar a comprovação empírica dos fenômenos naturais e sobrenaturais em-
blemáticos das teses de Mesmer e de Allan Kardec; procuraram estabelecer
as distinções entre os verdadeiros espiritualistas e os charlatães e, principal-
mente, contestar os limites entre as ciências da aparência e o conhecimento
oculto. Atestando a busca de uma racionalidade cientificista em meio a crenças
espirituais, constituíam expressões de uma nova mentalidade que procurava
eliminar a cisão entre magia e ciência; ou ao menos reverter o racionalismo
positivista em proveito das práticas mágicas.
Pela intensidade com que se manifestou na sociedade urbana e pelas
discussões mais profundas que envolveu, a presença do tema se fez notar tam-
bém na literatura e na imprensa da época e entre os homens ligados aos vários
ramos da ciência oficial. Os jornais, da mesma forma que destinavam espaços
nas seções de anúncios para os proclamas de ocultistas sírios, de cartomantes
14 renomadas e das publicações das editoras espiritualistas, guardavam igual-
mente amplos espaços para noticiar, de maneira sensacionalista, as campanhas
policiais movidas contra feiticeiros e bruxos. A partir de outro ponto de vista,
os expoentes da medicina legal, da antropologia criminal, da psiquiatria social,
os modernistas e os botânicos entre outros, observavam os transes mediúnicos
e os poderes paranormais, estabeleciam as relações entre misticismo e doença
mental, penetravam nas influências da música nas possessões mágicas, inven-
tariavam o valor terapêutico das ervas da farmacopéia popular e, em linhas
gerais, procuravam aprisionar tais conhecimentos e manifestações nos quadros
de explicações intelectualistas e sistêmicas.
Tendo em mente o alastramento das correntes mágico-religiosas no contex-
to das sociedades urbanas, para os cientistas que lideravam as campanhas anti-
mágicas, a permanência da magia e das superstições era a prova cabal da equi-
paração dos incautos, dos ingênuos e de seus mistificadores aos estágios mais
primitivos da evolução humana. Utilizavam-se à vontade das teorias evolucio-
nistas de Gustave Le Bon, indicando a equivalência entre a magia antiga e suas
formas revividas no mundo moderno:

A magia antiga devia, ainda uma vez, reaparecer, mudando de nome


sem sofrer notável modificação. Chama-se hoje ocultismo e espiritis-
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mo, os augures se denominam médiuns, os deuses inspiradores dos


oráculos se intitulam espíritos, as evocações dos mortos têm o nome
de materializações (Le Bon, apud César, 1939: 50-1).

E, a partir da correspondência evolutiva, adequavam a lógica dos credos então


em voga às chamadas leis da magia e às do pensamento primitivo, nas formulações
desenvolvidas por James Frazer e por Lucien Lévy-Brulh2. Assim, por exemplo,
sob a inspiração culturalista deste último, Arthur Ramos estabelecia a equiparação
dos curandeiros ao shaman e ao medicine-man das tradições indígena e africana
e propunha uma nova forma de abordagem ao problema social do curandeirismo
pois, dentro de sua formulação, “a lógica do primitivo não pode ser idêntica à do
homem branco, adulto e civilizado” (Ramos, 1931: 979).
Em particular, os representantes da psiquiatria social, membros dos
institutos médico-legais que então se afirmavam, ao lado dos teólogos do cato-
licismo, travavam intenso debate com o espiritismo, tentando invalidar a pre-
tensão da doutrina de Allan Kardec de se erigir enquanto categoria de verdade,
cientificamente demonstrada, e focalizaram as experimentações realizadas
pelos espíritas como sendo simples embustes de charlatães. Acusando também 15
o espiritismo como um dos grandes responsáveis pelo desencadeamento da
loucura, consideraram, na perspectiva dos avanços da ciência médica, os fun-
damentos das doutrinas mediúnicas. Já nas primeiras décadas do século XX,
quando as teorias sobre a natureza das doenças mentais e sobre o inconsciente
difundiam-se na Europa, os intelectuais brasileiros puderam observar as
possessões mágicas e os transes na perspectiva dos ensinamentos de Charcot
e de Freud. À luz dessas teorias, afirmavam que os transes nada mais eram do
que estados de sugestão induzida nos quais, sob o efeito de bebidas, danças e
cânticos, e de repetições monótonas, manifestava-se o inconsciente de indi-
víduos portadores de personalidades cindidas ou dissociadas, isto é, de esquizo-
frênicos – quando os incorporadores eram homens – , e de histéricas – quando

2
Sobre a extensão da influência das teorias de Frazer entre etnólogos, sociólogos, historia-
dores, juristas e teólogos e a polêmica que se estabelecia, já nos finais do século passa-
do, referente às relações entre ciência e magia, magia e religião, ver Gurvitch, G. (1950),
esp. cap. VII, "La magie, la religion et le droit".
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mulheres (Ribeiro/Campos, 1931: 30 e seguintes)3. As crenças na reencarnação


e na transmigração da alma – premissas centrais das correntes mediúnicas –
eram, por sua vez, explicadas como desejos inconscientes de regressão ao pa-
rasitismo uterino. No depoimento dado ao inquérito conduzido por Leonídio
Ribeiro, afirmava Júlio Porto Carrero, catedrático de Medicina Pública da
Faculdade de Direito do Rio de Janeiro:

O espiritismo, com a sua doutrina da actividade do espírito dos mortos


e de reencarnação opportuna e repetida, vem ao encontro desse desejo
que dorme no fundo de todos os conscientes – a ânsia pela volta ao parasi-
tismo uterino (Carrero, apud Ribeiro/Campos, 1931: 162-63).

Também da psicanálise se retirava a correspondência evolutiva da magia


à fase narcísica, quando se manifesta o princípio da onipotência das idéias,
“quando o pensamento infantil julga submeter o mundo a seus desejos”
(Ramos, 1932: 43)4.
Amplamente debatido, o recrudescimento do espiritualismo e a propagação
de práticas mágicas, nos inícios do século XX, não era experiência particular
16
à São Paulo. A imprensa paulistana faz questão de reafirmar, a todo momento
e não sem uma ponta de orgulho que, sob esse aspecto em especial, comparti-
lhava-se de características presentes nas cidades as mais modernas, modelos
de nossa civilização:

Paris é considerada um expoente da civilização moderna – e, como ela,


nenhuma outra grande metrópole prolifera em adivinhos, mágicos, so-
nâmbulos, quiromantes, ocultistas, augures e iluminados de toda a sorte.
O viveiro dessa classe de industriais sem matrícula é a capital orgulhosa
da Europa, a ville-lumière, que é o berço do Pensamento e da Idéia
(“O comércio da ilusão”, Correio Paulistano, 27/05/1913).

3
Correspondências similares entre os estados de transe, o sonambulismo e a histeria são
encontradas no estudo pioneiro de Nina Rodrigues, publicado em 1896 na Revista Bra-
sileira e, em 1900, na edição francesa. Nina Rodrigues, O animismo fetichista dos ne-
gros bahianos, 1935: 109.
4
Na raiz das formulações de Arthur Ramos – sobretudo em Os horizontes mythicos do
negro na Bahia, 1932 –, encontrava-se o trabalho de Freud, Totem e tabu, especialmente
parte III, Animismo, magia e a onipotência de pensamentos, de 1913.
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O mesmo fenômeno alastrava-se pelas demais capitais do mundo ocidental:

a epidemia ocultista grassa publicamente em Londres e Nova York, medrando


à sombra dos positivismos do dólar e da libra, vicejando maravilhosamente
entre as flanelas de Oxford e os algodões do Kentucky ... (idem).

Num processo de urbanização marcado pela afluência de imigrantes de


várias nacionalidades, acentuava-se a feição multi-étnica de São Paulo que
recebia constantemente levas de populações que mantinham as crenças da so-
ciedade de origem. Para os contemporâneos, o comércio da ilusão era assim,
em parte, explicado pela “cobiça asfixiante daqueles que os grandes transa-
tlânticos diariamente despejam nos nossos portos” e para os quais “a crendice
popular oferece-lhes palco cômodo para as suas escamoteações” (“Cartoman-
tes e feiticeiros”, Comércio de São Paulo, 27/05/1913). No entanto, os mesmos
articulistas eram obrigados a reconhecer que uma parte considerável dessas
práticas era, genuinamente, de nossa responsabilidade:

Feiticeiros, porém, negros de carapinha cosmeticada dançando ao redor


17
de um pobre Cristo mergulhado num caneco de espírito de vinho com
arruda ou carobinha, é privilégio nosso, que temos nas veias um pouco
do sangue dos tocadores do Congo, e muito dos costumes dos homens
de yatagan recurvado, lá das bandas de Benguela (“Uma cabeleira no
estomâgo. A feitiçaria em São Paulo”. A Capital, 18/11/1915).

É impossível não associar este aspecto em particular da vida da cidade a


um contexto marcado por rupturas e mudanças radicais, pelas crises sociais
que acompanharam a história de São Paulo desta época. Pelo contrário, é pos-
sível afirmar que traduziam, numa outra linguagem, o custo social dos pro-
cessos ocorridos desde os finais do século XIX, indicando as inferências que
os fatos históricos – entre eles a Abolição, a República, a imigração e as novas
condições de vida urbana – impingiram à organização da vida de largos con-
tingentes populacionais. O estudo das práticas mágicas de São Paulo dos inícios
do século XX, permite que sejam desvendados fragmentos dos anseios, das
expectativas e dos dramas cotidianos de uma sociedade que, ao fazer uso de
concepções algumas delas seculares, demonstrava a necessidade de uma
sustentação a mais para enfrentar as condições de instabilidade e de mudança
presentes na época em questão.
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De outra parte, indicada pela documentação repressiva, a expansão das


práticas de cura, de adivinhação e de proteção na sociedade citadina deve ser
avaliada no interior de uma política disciplinar que acompanhou a urbanização
e que, conforme tem sido avaliada pela historiografia social sobre as primeiras
décadas da República, fazia avolumar os índices de contravenções como a em-
briaguez e a vadiagem (Fausto, 1984), aumentar a exclusão dos chamados
demi-fou das ruas da cidade (Cunha, 1984), ou a regular o comércio da pros-
tituição (Rago, 1991). Política que procurava coibir, na ótica da criminologia
e do alienismo, os desatinos e a desordem social, vista esta como necessidade
imperiosa da civilização diante da explosão urbana.
As instituições disciplinares visavam não somente as formas consideradas
como as mais evidentes de desajustamento social. Conforme deixa claro
Fernandes, em consonância com o processo de urbanização, passavam também
a dirigir uma pressão mais drástica contra os elementos culturais que perpetua-
vam o estado de ignorância e incultura, herdados do passado e da mestiçagem
do povo brasileiro, processo que entendiam numa ótica extremamente exclu-
dente e preconceituosa (Fernandes, 1979). Entre estes, ressaltavam aspectos
18 da cultura e da religiosidade popular, repleta de conteúdos e formas organiza-
cionais autônomos, contra os quais se empenhou também a Igreja Católica
em sua política de neutralizar as irmandades e os rituais do catolicismo popular,
especialmente a partir da segunda metade do século XIX (Oliveira, 1980;
Monteiro, 1978). Assim, iniciadas já nos últimos anos do século XIX e pri-
meiros do XX, as campanhas repressivas contra as práticas mágicas e o
exercício ilegal da medicina notabilizaram-se por mobilizar diversos setores
desse poder disciplinar, coadunando-se autoridades policiais, fiscais do Serviço
Sanitário, representantes da Medicina Legal, psiquiatras das instituições asi-
lares e membros da Igreja oficial. Campanhas estas que, a partir de 1928, pas-
saram a ser coordenadas pelo Serviço de Repressão ao Baixo Espiritismo,
anexo à Delegacia de Costumes5.

5
Conforme o Relatório do Chefe de Polícia do Estado de São Paulo, de 1928, localizado
no DAESP, tais perseguições foram conduzidas, inicialmente pelo Serviço de Inspeção
dos Costumes, anexo à 2ª Delegacia Auxiliar (1914), depois, pela Delegacia de Costu-
mes e Fiscalização de Jogos do Gabinete de Investigações e Capturas (1924), e final-
mente pelo Serviço de Repressão ao Baixo Espiritismo (1928), organismos que, suces-
sivamente, especializaram-se na repressão aos crimes em questão.
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Na perspectiva da história social de São Paulo desta época, o processo de


urbanização, marcado por ritmos inusitados de aumento populacional, mostrou-
se incapaz de absorver, nos setores da economia formal, os largos contingentes
atraídos pelo crescimento da cidade. E, conseqüentemente, como tem sido com
freqüência apontado por Maria Odila da Silva Dias, criava formas não
convencionais de sobrevivência ligadas às atividades informais, no limiar de
meios considerados como infrações e crimes (Dias, 1984; Dias, 1985; Pinto,
1994). Uma primeira observação na caracterização social dos réus envolvidos
nos processos criminais consultados revela que grande parte deles era consti-
tuída por indivíduos provenientes dos setores populares e remediados da socie-
dade que procuravam improvisar a sobrevivência ou buscar uma determinada
ascensão social. Nos termos da documentação: imigrantes recém-chegados à
cidade; filhos de imigrantes “ávidos por enriquecimento fácil”; homens negros
que deixaram de lado seus ofícios manuais para se dedicarem inteiramente à
“exploração de um centro espírita” ou dos dons de cura “há pouco tempo revela-
dos”; viúvas encarregadas de prover o sustento do lar, versadas na leitura de
cartas ou das linhas das mãos; ex-militares desmobilizados ou expulsos das suas
corporações que investiam algum tempo no estudo dos fatos ocultos e sobrenatu- 19
rais – homens e mulheres que, apesar da longa itinerância e da infixidez próprias
à dinâmica daquele tempo, mantinham tradições culturais, fórmulas mágicas e
milagrosas, crenças e fetiches que pareciam encantar uma sociedade predisposta
a aceitar o que lhe era oferecido.
Uma vez estabelecidos, rapidamente formavam suas clientelas mediante
informações que circulavam entre as pessoas das ruas, nas vizinhanças de
bairros como o Cambuci, o Brás ou a Barra Funda, no interior de grupos étnicos
ou profissionais determinados. As investigações criminais indiciaram imigran-
tes acusados de exercer ilegalmente a medicina junto aos grupos de sua nacio-
nalidade de origem: o enfermeiro Carlos Stosicka que, em 1936, atendia a
comunidade germânica; Schokichi Itow que, desde 1914, assistia aos imi-
grantes japoneses com autorização das autoridades sanitárias da época. Como
aparece nos noticiários da imprensa, alguns grupos sociais elegiam também
suas pitonisas prediletas, como Fortunata Barbatte, “especializada no atendi-
mento às moçoilas da fábrica Penteado”, Maria Cauwinsky, “cartomante das
cozinheiras”, Mme Thebas, “a protegida do escol da sociedade paulistana”.
Mobilizando laços solidários que as adversidades da urbanização e da insta-
bilidade acabavam por solidificar, para qualquer infortúnio haveria sempre uma
determinada simpatia, qualquer desesperança poderia ser sanada com um jogo
Maria Cristina Cortez Wissenbach / Revista de História 150 (1º - 2004), 11-39

dos baralhos, uma leitura das mãos, com um chá, uma mezinha, um passe
magnético, um transe hipnótico. E logicamente, pessoas especializadas neste
tipo de atendimento.
Enquanto alguns curandeiros transformavam-se em ambulantes, como
Amaro Issa, imigrante sírio que podia ser visto, em 1933, “andando pelas ruas
com uma valise, contendo medicamentos e objetos da magia” (Justiça e Amaro
de Almeida Issa, 1933), outros preferiam oferecer seus serviços por meio de
folhetos impressos ou em anúncios publicados nos jornais da cidade. Utilizan-
do-se de um codinome com acento afrancesado, Pedro dos Santos Boemer
prometia, em 1918, receitas magnéticas para aqueles que o procurassem:

Para serdes feliz o que deveis fazer e tentar? Ide à rua Canindé, 123,
ou escrevei a Pedro Casnot, com selo para resposta (Justiça e Pedro
dos Santos Boemer, 1918).

As cartomantes destacavam sua origem estrangeira, a tradição da magia


cigana, a ligação com o ocultismo oriental. De um cortiço da rua Bresser, pro-
20 pagava também Idalina Tairovitch, natural da Sérvia, “pertencente à raça ci-
gana”, seus conhecimentos mágicos utilizados no sustento do lar e de seus oito
filhos, complementando os parcos rendimentos do marido, vendedor ambulante
de bugigangas:

Quiromancia – Grafologia – Interessa a qualquer pessoa. Acha-se nes-


ta bela Capital Mme Naime a célebre cientista, professora de quiroman-
cia, com sua família, que se acha residindo à Rua Bresser n. 1550.
Compromete-se a fazer qualquer trabalho sobre qualquer fim. Tem
viajado por diversos países da Europa, visitando as Capitais e percor-
rendo vários Estados do Brasil. (Justiça e Idalina Tairovich, 1939)

Outros, como é o caso do ocultista professor Baçú – Miguel Ruiz da Silva


Bassuraça, brasileiro, mulato, que agia tanto em São Paulo quanto no Rio de
Janeiro – preferiam anunciar aos leitores dos jornais da época seus talismãs,
provenientes de seitas indianas:

Assombrosa Maravilha! 1996 curas em menos de 90 dias!! Casamen-


tos realizados! Uma sorte grande na loteria a um possuidor dos talismãs!
Últimos dias de distribuição dos pássaros Inhaburús e dos Talismãs,
Maria Cristina Cortez Wissenbach / Revista de História 150 (1º - 2004), 11-39

proclamava o ocultista, não sem antes advertir aos interessados de que se tratava
de uma prorrogação que fazia do prazo, tendo em vista o “justo pedido da classe
operária e funcionários que somente recebem seus salários e ordenados no
princípio do mês” (Folheto anexo à Justiça e Bento de Paula Souza e José Furtado,
1910). Ao lado destes, curandeiros negros, como Benedito Antônio da Silva,
vulgo Benedito Garfudo, limitavam-se a proclamos mais simples, ofertando:
“Curas gratuitas pelos meios simpáticos, homeopáticos e cópias alopáticas”
(Justiça e Benedicto Antonio da Silva, 1927).
As possibilidades de sobrevivência e em alguns casos de ascensão social
dos que transformavam o comércio da ilusão em ganha-pão estavam direta-
mente relacionadas a uma sociedade afeita a tais apelos, ávida em solucionar
por meio de recursos mágicos, fossem quais fossem, questões amorosas, insu-
cessos econômicos, problemas familiares e principalmente a cura de doenças.
Assim, confirmando o grande temor dos cientistas que lideravam as campanhas
anti-mágicas, as práticas mágicas, muitas vezes provenientes das classes ínfi-
mas da sociedade, consideradas pelos observadores como manifestações de
processos de involução das camadas populares, demonstravam, no entanto,
possuir uma capacidade extrema em se expandir, em contaminar e fascinar a 21
sociedade como um todo6.
Descrevendo, em 1912, a ante-sala de um famoso ocultista de São Paulo,
o articulista do Comércio de São Paulo, pôde observar:

[...] ao lado da costureirinha gentil e ingênua, em transes dubitativos sobre


a fidelidade do namorado, via-se a mundana devorada pela paixão, cheia
de zelos e cold-cream. A supersticiosa siciliana, de cabelos entrancados
na garibaldina touca, acotovelava repetidas vezes a aristocrática repre-
sentante de nosso patriciado, recendendo a ociosidade e a opopenax (“O
comércio da ilusão”, O Correio Paulistano, 24/09/1912).

6
Segundo as teorias de Gustave Le Bon, expressa em sua obra Psychologia das multi-
dões, um dos autores mais citados nos inquéritos da época, a degeneração era uma ameaça
social pois continha os germes da contaminação, podendo fazer com que a multidão,
mediante sugestão quase que hipnótica, regredisse a um estágio atávico e primitivo. As-
pecto indicado pela leitura do trabalho de Dain Borges, ‘Puffy, Ugly, Slothful and Inert’:
Degeneration in Brazilian Social Thought, 1880-1940, 1993: 237.
Maria Cristina Cortez Wissenbach / Revista de História 150 (1º - 2004), 11-39

Às portas do templo da rua Guarani, onde atendia o quiromante professor


Schiloch e oferecia aos consulentes as maravilhosas pedras de Cevar, prove-
nientes do Sudão, que emprestavam vigor e energia aos seus possuidores, o
jornalista via chegar não só os indivíduos oriundos das “ínfimas camadas, onde
a instrução ainda não penetrou”, como também representantes das classes abas-
tadas da cidade:

Não eram somente os bondes que ali vazavam a população rude e in-
culta; também os automóveis e as carruagens particulares tomavam com
freqüência o caminho da Cabala, em procura de um pouco desta Ilu-
são, sem a qual a vida não seria possível. (Idem).

Cidade de múltiplas etnias, onde se mesclavam línguas e tradições culturais


diversas, em que se procurava a todo custo improvisar meios de obter sobre-
vivência, a proliferação das práticas mágicas relaciona-se à chegada de levas
de imigrantes das mais variadas nacionalidades. Os credos de suas culturas
de origem vinham se acrescentar a um caudal de tradições fortemente arrai-
gadas na sociedade brasileira, provenientes das crenças africanas e das fór-
22
mulas da magia ibérica e indígena.
Liana Trindade, ao estudar a religiosidade popular na cidade de São Paulo
dos inícios do século, pôde estabelecer a presença de cinco vertentes às quais
se encontrariam referidos os credos em voga: as correntes do ocultismo, mag-
netismo e esoterismo; centros espíritas kardecistas; curandeiros, benzedores
e milagreiros; a magia européia; os cultos africanos, entre eles especialmente
a macumba (Trindade, 1991: 164-173). No entanto, conforme ela própria assi-
nala, a magia urbana esteve marcada por sucessivos processos de sincretismo,
entendidos como reelaborações culturais e religiosas ocorridas diante das con-
dições peculiares da cidade na época; no seu dizer, construções míticas que
foram se moldando aos diversos contextos presentes na história da cidade do
século XVIII às épocas mais recentes. Desta maneira, nos processos criminais
aqui indicados, nas acusações de práticas de baixo espiritismo estão presentes
– sob o crivo das autoridades e enredados por preconceitos – simbologias, téc-
nicas de cura e rituais retirados das várias correntes.
Afirmada pelos estudiosos das tradições religiosas brasileiras, os movi-
mentos sincréticos dominavam a feição da magia urbana (Bastide, 1983). Em
dinâmicas que se orientavam nas mais diferentes direções: crenças afro-bra-
sileiras ou de origem banto que se aproximavam do espiritismo; combinações
Maria Cristina Cortez Wissenbach / Revista de História 150 (1º - 2004), 11-39

entre as tradições da magia européia e as simpatias das benzedeiras do mundo


rural; do próprio espiritismo com as formas que lhe deram origem – do hip-
notismo, do sonambulismo clarividente e do magnetismo animal, ou mesmo
com o ocultismo de origem oriental. Nada mais compreensível se for consi-
derado o ecletismo da magia, sua atenção na eficácia e, sobretudo, levando-
se em conta o processo de mercantilização que ocorreu no mundo urbano desta
época. Nada mais revelador, também, do que o caso relatado por Oswaldo
Xidieh sobre o marceneiro italiano que, uma vez estabelecido em Mogi das
Cruzes nas primeiras décadas do século XX, rapidamente transformou sua pro-
dução de bonecos de madeiras em imagens para os rituais afro-brasileiros, rea-
lizando, conforme denota o título de seu artigo, uma fusão entre elementos
ítalo-brasileiro-africanos (Xidieh, 1944). Envolvendo na maior parte das vezes
crenças não cristalizadas, as práticas mágicas enquanto espaços reveladores
das experiências sociais dos setores pobres e remediados da sociedade no
contexto da urbanização traduzem, acima de tudo, um amplo movimento de
readequações, de re-significações e de trocas.
Alguns processos criminais consultados são exemplares para ilustrar esse aspecto
pois que envolviam, já na década de 1930, centros espíritas que, a pretexto de não 23
possuírem licença, foram investigados em razão da condição social e étnica de seus
integrantes. Em 1931, foi acusado textualmente de praticar bruxarias, Amaro
Cardoso, diretor do Centro Espírita Sociedade Democrática Maria Caridade, estabe-
lecido no Cambuci e com filiados em sua maioria provenientes dos setores negros
da população, como informam as testemunhas do caso:

“que pode afirmar que a casa de Amaro é freqüentada somente por


homens e mulheres de cor preta, os quais ali faziam com Amaro cenas
que surpreendiam a depoente ...” (Justiça e Amaro Cardoso, 1931).

Das descrições infere-se que o acusado praticava rituais que combinavam


passes magnéticos e fórmulas de exorcismo para o combate de feitiços. A
presença de espíritos invocados justificava, por outro lado, junto aos pontos
de riscado, o uso de pólvora e de facas de ponta para proteção dos participantes
da reunião: “que é verdade que, durante suas sessões, costuma fincar punhais
nas paredes que circundam o Centro, para evitar que seus associados sejam
vitimas da magia negra” (Justiça e Amaro Cardoso, 1931).
Embora fato ainda não explicitado no contexto das investigações criminais,
trata-se provavelmente de centros nos quais se realizava o encontro entre os
Maria Cristina Cortez Wissenbach / Revista de História 150 (1º - 2004), 11-39

elementos do espiritismo e as crenças afro-brasileiras, do qual se originariam


as vertentes da umbanda e da quimbanda (Trindade, 1991: esp. parte V). Assim,
revelando tendências mais amplas, a mesma mescla se encontra presente no
Centro Espírita Na. Sra. da Aparecida, onde atendia Francelino Inácio da Silva,
preto, sapateiro, chamado pelos filiados de Pai Francelino, acusado de “aliar
a religião, o espiritismo e a macumba” e de ser homem ignorante. Especiali-
zado, segundo ele próprio declarou, “no tratamento de mordidas de cobras,
males da cabeça, feridas bravas”, atendia sobretudo “clientes que se apresenta-
vam com o corpo desacorsoado, com doenças que o acusado identificava como
mal contraído” (Justiça e Francellino Ignácio da Silva, 1939). Numa direção
diferenciada, no Centro Espírita São Miguel Arcanjo, José Francisco do Monte,
ex-militar, coadjuvado por sua mulher, dedicava-se à leitura da sorte em uma
bola de cristal e recebia seus consulentes vestido com um quimono roxo,
desenhado com sinais cabalísticos, segundo informam as autoridades policiais:
“onde se nota o sol, a lua e as estrelas” (Justiça e José Francisco do Monte, 1933).
O exemplo mais esclarecedor precede no tempo os acima referidos e diz
respeito às ações de Bento de Paula Souza, curandeiro negro-ocultista-espírita,
24 indiciado em 1910 (Justiça e Bento de Paula Souza, 1910; Trindade, 1991: 147-
150; Koguruma, 2001: 139). Proveniente do Rio de Janeiro, ex-tipógrafo e ex-
combatente das forças patrióticas do marechal Hermes da Fonseca, Paula Souza
estabeleceu na cidade uma entidade denominada Grêmio Ocultista de São Paulo,
da qual constavam, entre outros objetivos, o de “fazer uso das ciências ocultas,
de realizar sessões do espiritismo científico e psiquismo”, de promover escolas
para a educação cristã, de fornecer tratamento para os obsedados, consultas
mediúnicas e, por fim, “impedir as desavenças desavergonhadas nas famílias”.
A esses objetivos heterogêneos coadunavam suas práticas de curandeirismo, nas
quais se evidenciam explicitamente os elementos de religiosidade negra, pro-
vavelmente relacionados à macumba, florescente tanto no Rio de Janeiro quanto
em São Paulo. Elementos que haviam sido indicados não só pelos objetos e
fetiches encontrados em sua casa, como também pelas descrições de seus proce-
dimentos, feitas pelas testemunhas. Utilizando-se de uma valise que o acom-
panhava quando atendia à domicílio,

de dentro retirou um rosário grande, três facas de ponta, um pedaço de


giz e outros objetos [...] e com eles dizia algumas coisas que a depo-
ente não entendia por serem ditas em língua de Congo, conforme ele
próprio declarava,
Maria Cristina Cortez Wissenbach / Revista de História 150 (1º - 2004), 11-39

afirmava Maria Isabel Siqueira de Figueiredo, que colocou sob seus cuidados
uma filha que padecia de “ataques desde os sete anos”. Diante das pressões das
autoridades policiais, afirmava ainda a testemunha, de nacionalidade portuguesa,
que “não pode classificar as práticas a que já se referiu, mesmo porque a depoente
nunca viu iguais”; estranheza em que depositava suas esperanças, depois de haver
passado por quase todos os curandeiros de São Paulo e de Santos.
No encontro de credos, de correntes e de simbologias revelado pela docu-
mentação, o espiritismo aparece como elemento catalisador. A influência consi-
derável que exercia é repetidamente assinalada pelos estudos feitos na época.

Não é possível pegar a feição de nossa gente, conhecer a moral e a reles


formação espiritual dela, pondo de parte os centros onde se ensina e
se pratica a doutrina que, sobretudo nas cidades, exerce sobre o povo
a ascendência do baixo catolicismo supersticioso e macumbeiro de
tempos atrás,

considerava Antônio de Alcântara Machado, num inquérito realizado em 1930


sobre o que ele qualificava como sendo o comércio e a indústria do espiritismo
25
no Estado de São Paulo (Machado apud Ribeiro e Campos 1931: 126). Neste
mesmo inquérito, avaliou os números que indicavam tal expansão: em menos
de um ano, de outubro de 1929 a junho de 1930, haviam sido legalizados junto
às autoridades policiais do Estado cerca de 20 centros espíritas, crescimento
que se manteve na mesma razão, no período subseqüente de julho de 1930 a
setembro de 31, conforme continua Leonídio Ribeiro.
De outra parte, analisando os estatutos anexados aos processos de legaliza-
ção dessas agremiações, Alcântara Machado fez questão de destacar, em pas-
sagens irônicas, o semi-analfabetismo de seus redatores e a confusão de dou-
trinas aí apresentadas. Diante do fato generalizado, concluiu sua investigação,
afirmando que “a pajelança está sendo desbancada pelo espiritismo”. Fato in-
dicativo nos processos criminais, é preciso notar que muitas das agremiações
que se legitimavam como centros espíritas apresentavam de fato outras tradições
que, possivelmente buscavam proteção sob o rótulo do espiritismo. Neste sentido,
usando dos próprios termos de Alcântara Machado, é possível afirmar que a paje-
lança e o catolicismo popular imiscuíam-se no interior dos centros espíritas.
A história do espiritismo no Brasil esteve marcada por um lento processo
de legitimação junto aos órgãos oficiais, sobretudo nas batalhas travadas nos
fóruns do Rio de Janeiro por juristas renomados como Viveiros de Castro e
Maria Cristina Cortez Wissenbach / Revista de História 150 (1º - 2004), 11-39

Macedo Soares (Maggie, 1992; Machado, 1983).7 Mediante o seu reconheci-


mento enquanto religião, os defensores do espiritismo esperavam abrandar as
disposições do artigo 157 do Código Criminal de 1890 que, textualmente, cri-
minalizava as práticas do espiritismo. E, em contraposição, fazer valer os direi-
tos constitucionais previstos no artigo 72 da Constituição da República, que
determinava a liberdade de cultos. Incongruências do novo regime também fre-
qüentemente notadas pelos setores populares nos seus embates com as autori-
dades públicas; em nome da liberdade de culto agiam os profissionais ligados
aos vários ramos do comércio da ilusão; em nome das reformas educacionais
apelavam também para contestar a não validade de seus títulos, nas acusações
de exercício ilegal das profissões: “- E a lei Rivadávia, meu caro senhor, [...] se
é questão de diploma, amanhã lhe apresentarei um”, dizia, em 1913, a espanhola
Mme Carmem, cartomante e parteira nas horas vagas, ao delegado Cantinho Filho,
referindo-se à reforma Rivadávia Corrêa que havia retirado o ensino profissiona-
lizante da tutela pública, fazendo proliferar institutos particulares (“O comércio
da ilusão”, O Comércio de São Paulo, 19/06/1913).
No entanto, imaginar uma pureza doutrinária ou fidelidade às premissas
26 espíritas compartilhada entre os inúmeros centros que se formavam, é ignorar
a feição aberta da doutrina espírita e a dinâmica que as tradições da religiosi-
dade popular tomavam na época. Segundo colocam os estudiosos do assunto,
o espiritismo apresentava-se, a um tempo, como religião, filosofia e ciência,
aliando essa feição doutrinária a propostas pragmáticas voltadas à caridade
cristã, à formação de entidades que tinham muito em comum com as sociedades
de auxílio mútuo dos inícios da industrialização, orientadas ao atendimento,
nos hospitais e nas curas mediúnicas, dos setores desprotegidos da sociedade
urbana (Ferreira, 1973: esp. parte IV). Filosofia, religião e ciência, o espiritismo
embora considerado herético pelas bulas papais e pelas pastorais dos bispos
brasileiros, não se colocava frontalmente contra as tradições do catolicismo
profundamente enraizadas nas populações brasileiras e nos imigrantes latinos,

7
De acordo com Yvonne Maggie (em Medo do feitiço) e Ubiratan Machado (em Os in-
telectuais e o espiritismo) tratava-se de um movimento que procurava, de fato, isolar do
chamado espiritismo científico as práticas consideradas como sendo próprias ao baixo
espiritismo. Além disso ambos defendem a tese de que os artigos do Código de 1890,
especialmente o art. 157, em seus sub-textos, denotavam o endosso às crenças pois par-
tiam do reconhecimento e da aceitação da eficácia e do poder que tinham as práticas da
magia em curar e seduzir aqueles que as procuravam.
Maria Cristina Cortez Wissenbach / Revista de História 150 (1º - 2004), 11-39

propondo antes uma convivência pacífica.8 Finalmente, diante das demais cor-
rentes religiosas do contexto brasileiro, o espiritismo guardava também ele-
mentos em comum: a possibilidade de comunicação direta com as entidades
sobrenaturais por meio da mediunidade e dos transes, a crença na imortalidade
da alma, a utilização de magnetismos para os processos de diagnóstico e exor-
cismo dos infortúnios e das doenças – núcleos em comum que possibilitavam
as aproximações.
Defendido nos inícios do século pelos expoentes da ideologia positivista,
em nome da liberdade de cultos, das religiões e do exercício profissional, o
espiritismo agiu rapidamente entre os setores médios das populações urbanas.
A penetração na classe média veio tanto de sua proposta cientificista quanto
das experiências e demonstrações públicas que freqüentemente eram realiza-
das, no Brasil, na França e nos Estados Unidos, para a comprovação da vera-
cidade de suas crenças. Com esse discurso cientificista, o espiritismo realiza
amplas conversões entre intelectuais, médicos, funcionários públicos e mili-
tares, alguns deles já anteriormente convertidos ao positivismo9.
De fato, pouco importava se a comunidade científica e católica teimasse
em contestar meticulosamente cada uma dessas experimentações, pois confor- 27
me aponta Keith Thomas, uma vez aceitas, as crenças religiosas prescindem
de comprovação, passando a ter uma qualidade autoconfirmatória indiscutível
e inabalável (Thomas, 1991: 522). Tendo em vista a mentalidade do homem
desta época, é impossível minimizar os efeitos de reclamos que prometiam a
equiparação de fenômenos míticos a procedimentos científicos: “Faço mila-
gres. Sim! faço milagres! Mas milagres ... científicos!!”, expressava um
ocultista que agia em São Paulo, desenvolvendo seus poderes em “sessões es-
píritas ao sistema indiano e não kardecista”, recebendo ondas magnéticas ema-

8
Neste sentido, no contexto das doutrinas espíritas no Brasil, prevaleceram as vertentes
preconizadas por Roustaing que, aliando os ensinamentos de Alan Kardec ao texto do Evan-
gelho, enfatizava a configuração de um espiritismo evangélico-católico. Sobre Roustaing e
sua influência sobretudo no pensamento de Bezerra de Menezes – um dos principais teóri-
cos do espiritismo brasileiro – ver: Hess, David. The Many Rooms of Spiritism in Brazil,
1987; Warren, Donald. A terapia espírita no Rio de Janeiro por volta de 1900, 1984.
9
Entre as conversões à nova religião, junto à comunidade científica internacional, os
estudiosos do espiritismo ressaltam a de César Lombroso, teórico da Antropologia Cri-
minal que aqui fez escola. César Lombroso, Hipnotismo e mediunidade, 1975.
Maria Cristina Cortez Wissenbach / Revista de História 150 (1º - 2004), 11-39

nadas do “Santuário Violeta, Terceira Montanha, Hymalaia, Índias Inglesas”,


e onde havia recebido o grau de Mahatma (Justiça e Ariosto Palombo, vulgo
João de Minas e outros, 1939).
De outra parte, a penetração do espiritismo nas camadas populares – e por-
tanto, como diriam os espíritas científicos, sua conversão em práticas do baixo
espiritismo – veio, sem dúvida, do ecletismo de sua doutrina que permitia
adequações às tradições religiosas da cultura popular. Mas, principalmente,
conforme apontam os estudiosos do assunto, o elemento responsável pelo
sucesso do espiritismo esteve localizado não em sua ênfase intelectualista mas
na prática taumatúrgica dos médiuns curadores (Damazio, 1994: 152-4;
Trindade, 1991: 142; Hess, 1987: 19-21; Warren, 1984). Acoplando-se à figura
dos curandeiros em conversões reais ou aproximadas, a prática de cura dos
médiuns ia ao encontro dos anseios de uma sociedade profundamente ator-
doada por um mundo em transformação, mas nem por isso capaz de responder
as angústias criadas por ele mesmo.
Se uma parte dos trabalhos feitos junto aos homens da magia destinou-se
à endireitar vidas atrapalhadas, grande parte dos que procuravam os curan-
28 deiros, magnetizadores, ocultistas e espíritas buscavam as práticas da medicina
espiritualista e da cura mediúnica, afligidos pelos males físicos para os quais
a ciência médica não encontrava solução. Diante de diagnósticos médicos
conclusivos em doenças como a sífilis, a tuberculose, a lepra, ou mesmo frente
à incapacidade da ciência de minimizar a ação das epidemias que com fre-
qüência grassavam nas cidades, a população urbana continuava a preferir as
concepções mágicas das doenças e dos infortúnios, atribuindo-os à depurações
vindas dos céus, à feitiçaria, à encostos, ao mau-olhado, à ação de espíritos
que obsedavam os mortais e, portanto, vistos como males que seriam diag-
nosticados pela clarividência de médiuns ou de incorporadores e por eles exor-
cizados10. Além do mais, a própria linguagem da medicina oficial poderia ser
também traduzida em códigos fetichistas, reelaborados pelos setores sociais
que dela faziam uso. Muitas vezes, diante da linguagem hermética dos diag-

10
Entre os males exorcizados pelos médiuns curadores, sobressaíam-se as doenças cha-
madas de fundo nervoso, consideradas como estado mórbido induzido por ação fluídica
de influências estranhas, inteligentes, segundo Adolpho Bezerra de Menezes, em sua obra
de 1893, A loucura sob um novo prisma: estudo psiquico-fisiológico, cf. Donald Warren,
A terapia espírita no Rio de Janeiro por volta de 1900, 1984. Concepções de doenças e
de males próximos, sem dúvida, das visões de africanos e afro-descendentes.
Maria Cristina Cortez Wissenbach / Revista de História 150 (1º - 2004), 11-39

nósticos médicos, os leigos transformavam os resultados dos exames em sinais


mágicos: “que os médicos dizem que ele tem três cruzes”, explicava Jorge José,
tuberculoso e sifilítico, não só sua doença como também, homem marcado
por tais sinais, sua predestinação e sua conversão às artes da quiromancia (Jus-
tiça e Jorge José, 1939).
Enquanto o espiritismo agia como elemento agregador das diversas cor-
rentes da magia urbana, um grande poder continuava a emanar do feitiço negro,
estivesse ou não protegido sob a capa dos centros espíritas. Por isso mesmo,
tendo em vista o temor e o preconceito que circundavam as avaliações de seus
rituais, a maior parte das acusações registradas nos processos criminais incidia
sobre os setores negros e mestiços que se dedicavam ao que era qualificado
como baixo espiritismo. Aliás, para o curandeiro negro de pouca valia repre-
sentava o simulacro espírita, legalizado ou não. O critério que norteava as
investigações dos centros era absolutamente discricionário, conforme revela
o texto dos relatórios dos chefes da polícia da época. Em 1928, relatava-se:

“foram fechados vários centros espíritas onde se verificou não ser o


seu intuito a caridade, mas sim o aproveitamento da ignorância dos 29
incautos que os freqüentavam. Na concessão de licenças para a organi-
zação de centros espíritas foi adotado o critério de estudar e investigar
não só a moralidade senão também a capacidade intelectual dos seus
dirigentes” (Relatório do Chefe de Polícia, 1928).

O viés discriminatório duplicava-se quando se tratava de investigar ou no-


ticiar as ações de curandeiros negros; sinônimo de baixo espiritismo, eram
estes, no geral, aprioristicamente chamados de feiticeiros e macumbeiros; seus
rituais eram rapidamente associados a festivais de depravações e de lascividade
e as descrições de suas moradias e de seus locais de atendimento, enfatizavam
nítida e ironicamente o primitivismo dos objetos rituais e seus odores:

O feiticeiro habitava o último cômodo desse grande cortiço [na Rua


dos Imigrantes]. O seu cubículo estava repleto de raízes, ervas em con-
fusão, peles de víboras, cornos de boi, de carneiros e de cabras, cou-
ros de lagarto, de jibóia, um turbilhão de ossos, um fêmur inteiro, uma
tíbia partida, fragmentos de ossos humanos, um crânio solto, dois maxi-
lares desdentados, guizos de cascavel, tranças louras, negras e casta-
nhas, um chumaço encarapinhado, dentes esparsos...
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tudo isso sendo observado por: “um S. Onofre, de braços cruzados, metido
num boião de banha” (“O comércio da ilusão. Cartomantes e feiticeiros”, O
Comércio de São Paulo, 27/05/1913).
De fato, porém, embora avessa a qualquer conotação intelectualista ou
cientificista, evocando crenças afro-brasileiras vindas do passado escravista,
a magia dos negros exercia uma atração sem medidas. No levantamento feito
por Maynard Araújo sobre abusões populares, o homem negro, na cultura po-
pular e na medicina mágica do Vale do Paraíba, é visto por excelência como
um homem mágico (Araújo, 1958). Dos que portam em sua bagagem cultural
amuletos e rituais de cura, de proteção e também de malefícios, ele é também
o mais temido. Seus talismãs exercem um efeito considerável. Permanecem
intocados até hoje, após mais de meio século, em envelopes lacrados e anexa-
dos aos processos criminais; as autoridades judiciárias não ousaram examinar
a prova que constava dos autos, limitando-se a ler as descrições feitas pelos
escrivães policiais: “composto de um pedaço de gesso com inscrições, uma
figa, um cavalo marinho, dois guizos de cobra, objetos que se acham misturados
com um pó cinza”. (Justiça e Maria Aurora, 1939). Os pesquisadores também
30 souberam respeitar os lacres que os protegem de possíveis efeitos. No interior
dos patuás podem ser encontradas rezas ou orações protetoras, que revelam a
violência que se mantinha acoplada à vida dos setores negros da população.
Poderosas são também suas infusões, preparadas com ervas e produtos da far-
macopéia popular, que dominam com destreza.
Esse poder que emana dos feiticeiros, e sobre o qual a documentação da
época fez questão de pontuar, advém da força de crenças e de rituais seculares
numa sociedade aparentemente convertida aos argumentos cientificistas. Para
setores da clientela que buscam suas estratégias de cura, de feitiço e de contra-
feitiço, ou a ação protetora de seus patuás, talismãs e amuletos, são eles por
vezes o último recurso, talvez o mais poderoso entre as fórmulas de magia
existentes. A imagem mítica do homem negro na posse de poderes ocultos se-
duz também os imigrantes recém-chegados, que vislumbram, por detrás de
uma certa estranheza que sentem, ilimitadas possibilidades.
Embora os sinais do passado escravista tenham sido pulverizados pela
penetração vertiginosa de imigrantes; embora muitas das tradições culturais
e sociais dos negros paulistas possam ter se diluído na convivência entre eles
e os estrangeiros, compartilhando os mesmos cortiços e os mesmos bairros
de São Paulo, manteve-se aparentemente íntegra a força de sua magia. As prá-
ticas sociais da magia facultavam aos homens negros espaços de reconheci-
Maria Cristina Cortez Wissenbach / Revista de História 150 (1º - 2004), 11-39

mento num universo social que acima de tudo os discriminava. Respeitados


como indivíduos portadores de atributos mágicos, as causas deste prestígio
devem ser consideradas sob a perspectiva de um passado de exploração que,
para o bem ou para o mal, havia exacerbado a utilização de artifícios variados
na luta contra a dominação escravista. Provavelmente guardava-se na memória,
dos tempos não muito longínquos, as histórias dos enfeitiçamentos praticados
pelos negros escravos contra seus algozes. Num artigo sobre a feitiçaria negra,
Arthur Ramos remarcou os complexos processos cognitivos entranhados nos
envenenamentos causados por escravos, demonstrando que por detrás de cada
uma das poções disponíveis, encontrava-se a escolha de agonias diferenciadas.
Entre as ervas utilizadas existia uma predileção pelo pipi ou titi, chamada
também de herva da Guiné ou de amansa senhor, pois caracterizava-se por
uma ação insidiosa e lenta, causando estados de letargia que precediam a morte.
Além disso, acreditando no ordálio africano de que “se o veneno age, é unica-
mente porque a vitima terá sido condenada”, os escravos transferiam o julga-
mento final de seus atos às entidades que eram por eles evocadas (Ramos,
1935). Os procedimentos religiosos e mágicos, independentemente de suas
origens, pressupunham aprendizados e escolhas muito mais profundas, plenos 31
de significados sociais.
O espaço da magia como possibilidade de projeção de individualidades
oprimidas estendia-se em direção a outros setores sobre os quais incidiam o
preconceito, o descrédito e a moralidade estreita da sociedade da época: ci-
ganos, portadores de defeitos físicos, doentes estigmatizados e, sobretudo mu-
lheres. As mulheres transformavam também os espaços das práticas mágicas
em experiências libertadoras, entendidas como desforras: “se a mulher é um
ser impotente e passivo no domínio da religião, ela se vinga no domínio da
magia, onde é particularmente apta às obras da feitiçaria”, dizem os etnólogos
(Aragão, 1980). Ou, como já sinalizavam os observadores da época, criava-
se nessas esferas a possibilidade da vingança de Eva. Ao contrário do que
ocorria, por exemplo, na hierarquia eclesiástica do catolicismo, tanto no espi-
ritismo quanto nos demais cultos de possessão, as mulheres passaram a exercer
um papel incontestável: dirigindo centros espíritas, chefiando as largas comu-
nidades do candomblé, recebendo santos ou incorporando os espíritos, a figura
feminina projetava-se e expunha suas qualidades sensitivas e de liderança nos
domínios da espiritualidade, mesmo que estas estivessem contidas nos marcos
de sua vida doméstica e rotineira.
Maria Cristina Cortez Wissenbach / Revista de História 150 (1º - 2004), 11-39

Entre as que se dedicavam à arte de curar, as peças criminais destacaram a


figura das benzedeiras que, tal como os curandeiros negros, estabeleciam linhas
de continuidade com as tradições da medicina mágica e do catolicismo popular
da história colonial e imperial brasileira. Florestan Fernandes pontuou a
complexidade dos poderes e dons das benzedeiras que escondiam, sob uma apa-
rente simplicidade e domesticidade, uma arte conduzida por fórmulas especiais,
evocações e exorcismos advindos de um saber transmitido em gerações de
linhagens femininas (Fernandes, 1979: 344-46). Na cultura popular e na
sociedade da época foram conhecidas pela eficácia de seus benzimentos e sim-
patias para determinados males: ninguém melhor do que elas para a cura de dores
de cabeça e doenças infantis ocasionadas por quebrantos ou mau olhado, e
sobretudo para as bicheiras. Também reconhecia-se o poder de suas infusões, e
por isso mesmo eram por vezes descritas à imagem das bruxas medievais, com
seus grandes caldeirões: “que Rosalina tem um grande caldeirão, onde prepara
um caldo com ossos diversos, que o caldo é vendido aos mesmos doentes”,
descreviam as testemunhas sobre os preparados da espanhola Rosinha Maior
que, além destes, administrava a seus pacientes outros métodos de cura: “que
32 outros doentes ela declarante tem curado com rezas e salivas, pois tem o poder
de curar com sua própria saliva a doentes acometidos de moléstias de somenos
gravidade” (Justiça e Rosinha Cinero Carrion Mayor, 1927; 1931).
Numa sociedade marcada por concepções morais estreitas, que aprisionavam
as mulheres em papéis sociais pré-determinados e rígidos, e impregnada pela idéia
de culpa e de pecado vinda da tradição judaico-cristã, as pitonisas exerciam uma
ação social positiva. O afluxo aos consultórios das videntes de pessoas das mais
variadas camadas e a projeção que muitas delas conquistaram no mundo urbano
revelam mecanismos liberadores das amarras do tradicionalismo social.

A feiticeira só poderá ser substituída por outra feiticeira, porque os desa-


bafos que a sociedade levava confiantemente áquela e levará à que lhe
vier tomar o lugar em nada se parecem com o assunto das sagradas
confissões da Igreja,

observava um articulista no elogio fúnebre dedicado à Mme Zizinha – Hermínia


de Lacerda Nascimento Câmara – célebre pitonisa do Rio de Janeiro,
pertencente à conhecida família da sociedade carioca, mas, conforme lembra
o mesmo, portadora de um defeito físico desde a infância que, segundo ele,
procurou compensar com os estudos ocultistas (Oscar Lopes, “Necrológio a
Maria Cristina Cortez Wissenbach / Revista de História 150 (1º - 2004), 11-39

Mme. Zizinha”, O País, 5/12/1915). Nos consultórios das cartomantes e das


quiromantes, as cartas e as linhas da mão colocavam-se como mediações que
revelavam o íntimo das almas de pecadores, pretextos de confissões alternativas
nas quais homens e mulheres podiam relatar suas pequenas e grandes faltas,
seus casos amorosos e seus defeitos, livres de qualquer pré-julgamento.
Nicolau Sevcenko, em seu estudo sobre a São Paulo dos anos vinte, pro-
jetou numa imagem sensível o impacto de processos históricos vertiginosos
sobre os habitantes da cidade:

Essa cidade que brotou súbita e inexplicavelmente, como um colossal


cogumelo depois da chuva, era um enigma para seus próprios habitan-
tes, perplexos, tentando entendê-lo como podiam, enquanto lutavam
para não serem devorados (Sevcenko, 1992: 21).

No contexto de um mundo em ebulição, cadenciado por uma relação am-


bivalente entre adversidades e promessas de progresso, em que o olhar do imi-
grante desgarrado e o do homem negro esgarçado dos laços escravistas só
poderiam focar o futuro, a diversidade de formas e o conteúdo mesmo da
33
magia, tal como esteve configurada nesta época, devem ser igualmente refe-
ridos às exigências que eram impostas pela economia de mercado, pelo mundo
da concorrência e pela indústria.
Conforme deixaram claro em seus depoimentos, para os homens deste
tempo a aproximação a qualquer uma das correntes então em voga, o perten-
cimento a centros espíritas ou a institutos esotéricos deveria se traduzir em
resultados diretos e imediatos, objetivando-se o conteúdo transformador aí pro-
posto como ferramenta capaz de protegê-los da ameaça de serem devorados.
Tendo em vista a concorrência desleal que era imposta por uma economia
instável, as vicissitudes da vida, averbadas na percepção que faziam das causas
dos infortúnios, eram, quase sempre, projetadas no outro. Dos conflitos amoro-
sos – casos não resolvidos, desarranjos de lares – aos insucessos profissionais
ou financeiros, as suas vidas atrapalhadas eram vaticinadas à inveja alheia,
ao mau-olhado, a feitiços feitos por adversários ou rivais. A luta pela sobre-
vivência – questão que se colocou em última instância na interpretação das
práticas mágicas – implicava também em vencer a concorrência, projetando-
se individualmente através, quem sabe, das fórmulas de sucesso que eram
oferecidas pelo comércio da ilusão.
Maria Cristina Cortez Wissenbach / Revista de História 150 (1º - 2004), 11-39

A modernidade, palavra-fetiche que encerra um universo de evocações


no dizer de Sevcenko, esteve acompanhada pela instalação de institutos
espiritualistas, ocultistas e de magnetização, como o Instituto Humanitário de
Radiação Mental (1937), a Academia Brasileira de Ciência Divina (1939), o
Grêmio Ocultista de São Paulo (1910), a União Beneficiente Espiritualista
(1939), a Cruzada de Reavivamento Moral. Nestes locais desenvolviam-se
cursos que prometiam o acesso aos Segredos de Rasputin, e aos dos Faraós,
às receitas de como desenvolver o magnetismo latente em cada um dos assis-
tentes e, desta maneira, poder “atuar diretamente sobre as pessoas [...] domi-
nando-as por tal maneira, a torna-las verdadeiras escravas de nossa vontade”,
conforme o folheto Segredos da Magia, de autoria de Pedro Casnot (Justiça e
Pedro dos Santos Boemer, 1918).
De outra parte, a pedagogia que conduzia estes cursos adequava-se igual-
mente aos ritmos da modernidade: “racionalmente práticos, com um ensino
nu, rápido, sem palavras difíceis e complicações cabalísticas”, em que seriam
divulgados, entre outros, os ensinamentos de um “ocultismo vital, biológico,
científico, o ocultismo-alavanca para se vencer na vida terrestre” (Justiça e
34 Ariosto Palombo e outros, 1939). Ensinamentos estes que poderiam ser
complementados em conferências ou leitura das publicações da editora O
Pensamento, prolixa em títulos até os dias de hoje: A vida triunfante, O homem
completo, O caminho da iniciação, Regras para o viajar etc.11. Além do
almanaque O Pensamento que acompanhava o homem urbano nas rotinas do
dia-a-dia, poder-se-ia acessar, na Emissora de Rádio Esotérica, projeto de
Ariosto Palombo, ondas magnéticas que do longínquo Oriente trariam aos
ouvintes Fortuna, Harmonia, Paz, Saúde, Felicidade e Juventude.
Ao lado da divulgação dos ramos alternativos da ciência médica,
especialmente da homeopatia e da medicina naturalista, que realizavam amplas
aproximações às receitas da farmacopéia popular, surgiam também terapêu-
ticas renovadas que propagavam os cuidados com o corpo, com a alimentação
e com o clima, como por exemplo aqueles difundidos pelo Instituto Psicote-

11
Além dos títulos mencionados, a editora O Pensamento, de São Paulo, contribuía tam-
bém com a divulgação das chamadas ciências ocultas, em publicações como: Magnetis-
mo e hypnotismo (1940); Radiopatia, ciências herméticas e psicologia experimental;
Dicionário de sciências occultas (1937); Fisiognomia e frenologia; Os mystérios da
maçonaria e das sociedades secretas (1937), entre outras.
Maria Cristina Cortez Wissenbach / Revista de História 150 (1º - 2004), 11-39

rápico Salus, de Francisco Fritelli (1930), ou pelo sistema, batizado por Moura
Lacerda, de “Autocura Física de Piroterapia Brasileira”. Dizendo-se professor
higienista, Moura Lacerda ensinava aos que o procuravam “os meios para se
livrarem dos males físicos que os afligem, recomendando-lhes sol, ginástica,
regimens alimentares, curas por clima e chás de plantas comuns” (Justiça e
Francisco Xavier Galvão de Moura Lacerda, 1930). Além da divulgação dos
esportes, da ginástica e dos espetáculos públicos, a nova sensibilidade em
relação ao corpo vinha inscrita também em novas maneiras de tratá-lo
(Sevcenko, 1992: esp. cap. 1).
Cursos, conferências, leituras, atendimentos individuais e filiação aos
institutos conformavam algumas das múltiplas alternativas que poder-se-ia
encontrar difundidas na cidade, para se aperfeiçoar diante das exigências que
eram feitas pelo mundo urbano. O ritmo da cidade e as pressões multivariadas
produziam, uma sociedade nervosa, sensível e atenta aos temas relacionados
ao psiquismo. Uma parte das ações desenvolvidas e catalogadas como sendo
de exercício ilegal da medicina ou de uso da magia envolveu indivíduos que
se diziam psiquistas e se especializavam no tratamento das doenças nervosas,
por meio de novas terapêuticas a elas associadas. Em 1938, Ítalo Benassi era 35
investigado por oferecer “tratamentos para psicoses comuns e espiritóides,
fobias, tics nervosos, desânimo, gagueira, vícios e embriaguez”, por meio de
métodos igualmente numerosos: “sugestão, magnetismo, hipnotismo, clarivi-
dência sonambúlica, receitas de banhos com guiné, arruda, alecrim, saco-saco,
dentes de alho etc” (Justiça e Ítalo Benassi e outros, 1938). Também as teorias
psicanalíticas que aqui se difundiram de maneira tardia, poderiam se popula-
rizar na forma de exercícios destinados a ensinar o homem moderno a “maneira
como deve respirar, pensar e [...] dialeticamente viver” (Justiça e Amandus
Quart Siloe Schoen, 1931). Nos marcos da cidade das primeiras décadas do
século, magia e ciência gravitavam por vezes em círculos concêntricos, em
torno de procedimentos e crenças similares.

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indiciado.
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indiciados.
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indiciados.
1939. A Justiça Pública, autora; Francellino Ignácio da Silva, indiciado.
1939. A Justiça Pública, autora; Idalina Tairovitch, indiciada.
36 1939. A Justiça Pública, autora; Jorge José, indiciado.
1939. A Justiça Pública, autora; Maria Aurora, indiciada.

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“Uma cabelleira no estômago. A feitiçaria em São Paulo. Danças, rezas, drogas
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39
Maria Cristina Cortez Wissenbach / Revista de História 150 (1º - 2004), 11-39

40
REGIONALISMO PAULISTA E POLÍTICA
PARTIDIÁRIA NOS ANOS VINTE*

James P. Woodard
Brown University

Resumo
Os conflitos políticos do final dos anos vinte entre o Partido Republica-
no Paulista e o Partido Democrático de São Paulo tiveram um papel mui-
to maior no cenário político dos anos 30 do que a historiografia atual tem
apontado. Em particular, estes conflitos possibilitaram a mobilização do
estado de São Paulo contra o governo federal chefiado por Getúlio Vargas,
pois encorajaram a especie de identidade regionalista/nacionalista que ser-
viria de grito de protesto para os rebeldes paulistas de 1932.

Palavras-Chave
São Paulo • Regionalismo • Política

Abstract
The political conflicts of the late 1920s between the Paulista Republican
Party and the Democratic Party of São Paulo played a much larger role in
the politics of the 1930s than indicated by the existing historiography. In
particular, these conflicts helped to lay the groundwork for the mobiliza-
tion of the state of São Paulo against the federal government headed by
Getúlio Vargas by encouraging the kind of regionalist-cum-nationalist iden-
tification that would serve as a rallying cry for the Paulista rebels of 1932.

Keywords
São Paulo (Brazil - State) • Regionalism • Politics

*
Este trabalho – uma adaptação de um paper que apresentei ao congresso da Associação
de Estudos Brasileiros em abril de 2002 – deve muito às pesquisas que fiz para minha
tese de doutoramento, defendida em setembro de 2003. Gostaria de expressar meus agra-
decimentos à banca examinadora: Thomas E. Skidmore, Barbara Weinstein, e R. Douglas
Cope. Devo também agradecer a contribuição valiosa do meu amigo João Felipe Gonçal-
ves, que leu e corrigiu uma tradução preliminar deste artigo.
James P. Woodard / Revista de História 150 (1º - 2004), 41-56

No final dos anos 20 o estado de São Paulo vivenciou um importante con-


flito político entre o estabelecido Partido Republicano Paulista e o recém-fun-
dado Partido Democrático de São Paulo. Embora este conflito político não ten-
do sido totalmente sem precendentes, e embora a organização do partido
político dissidente não tenha sido tão inusitada ou importante como se tem
acreditado, o conseqüente conflito político foi de considerável importância.
Pela primeira vez desde o final do Império, viu-se um grupo político organizado
por todo o estado ser capaz de apresentar-se como uma oposição ideológica,
ao contrário da política clientelística do PRP.
As interpretações do PD têm sido múltiplas, indo desde evocações da “classe
média ascendente” até as mais variadas especulações sobre mudanças sociais, eco-
nômicas e políticas. Cada uma delas contribuiu a seu modo para a historiografia
do período, mas tem-se praticamente negligenciado o papel que o partido desempe-
nhou para efetuar mudanças críticas na prática política do estado. Em particular,
a formação da Frente Única entre o PD e o PRP em 1932 e a persistência de 1930
como ponto crítico na periodização da história contemporânea do Brasil tem levado
alguns historiadores a acreditar que os conflitos dos anos 20 exerceram pouca ou
42 nenhuma influência na história da década seguinte.
Como resultado, pouca atenção tem sido dada aos efeitos deste conflito a
longo prazo, isto é, à maneira como as lutas políticas dos anos 20 prefiguraram
e até prepararam o caminho para as lutas políticas subseqüentes. Pesquisas
nessa direção revelam que os conflitos políticos dos anos 20 tiveram um papel
muito maior no cenário político dos anos 30 do que a historiografia atual tem
apontado. Talvez ainda mais importante seja o fato de que estes conflitos possi-
bilitaram a mobilização do estado de São Paulo na revolta contra o governo
federal chefiado por Getúlio Vargas, pois criaram as estruturas organizacionais
que foram essenciais para a formação da rebelião (o Centro das Indústrias do
Estado de São Paulo e o próprio PD1) e encorajaram o tipo de identidade regio-

1
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Ática, 1986, capítulo 2, parte B; SANTOS, Francisco Martins dos. História de Santos, 1532-
1936. São Paulo: Empreza Graphica da Revista dos Tribunaes, 1937, capítulo 26.
James P. Woodard / Revista de História 150 (1º - 2004), 41-56

nalista/nacionalista que serviria de grito de protesto para os rebeldes paulistas


de 1932. Em discursos, cartas, artigos de jornais e material iconográfico, as
principais figuras políticas do final dos anos 20, tanto da situação quanto da
oposição, utilizaram-se do discurso da grandeza paulista e de imagens como
a do bandeirante para reforçar suas tentativas de obter poder. Esse tipo de iden-
tidade regionalista antecipou o chauvinismo paulista de 1931 a 1932, usado
por líderes estaduais na mobilização da população de São Paulo na rebelião
contra o governo federal.
Os participantes do conflito político no final dos anos 20 certamente não
inventaram este tipo de identidade (estava presente no movimento separatista
do fim do Império, como demonstra Cássia Chrispiniano Adduci no seu livro
A “pátria paulista”, e é onipresente nos anos seguintes, segundo o que já come-
ça a sinalizar a atual pesquisa de Barbara Weinstein2), mas garantiram que ele
estivesse na agenda política do final dos anos 20. Mais notavelmente, eles o
fizeram não apenas em pequenas discussões internas da elite e em edições par-
ticulares distribuídas aos amigos e outros escritores, mas também no âmbito
que alguns chamariam de uma “esfera pública”: na crescente imprensa perió-
dica do período, em comícios públicos freqüentados por membros das cha- 43
madas “classes conservadoras” e das “classes populares”, e em material de
propaganda direcionado a um público mais abrangente.3 Essa disseminação
da ideologia regionalista/nacionalista foi um dos meios pelos quais a política
partidária divisória do final dos anos 20 – e isso inicialmente pode parecer
como um paradoxo – antecipou a política “apolítica” de 1932, quando perre-
pistas e democráticos se uniram contra um inimigo comum. Como o uso do
ícone do bandeirante indica, havia em jogo mais do que uma mera identificação
com um lugar geográfico (com o que os nossos colegas mexicanistas chama-
riam de uma “patria chica”) e conexões emocionais com este. De fato, esta
identidade incluía uma lista de qualidades associadas ao estado de São Paulo,
resumidas tão habilmente pelo cônsul geral dos Estados Unidos em agosto de
1932: “São Paulo has an extraordinary morale engendered by 20 months of

2
ADDUCI, Cássia Chrispiano. A “pátria paulista”: o separatismo como resposta à crise
final do império brasileiro. São Paulo: Arquivo do Estado, 2000; WEINSTEIN, Barbara.
“Racializing regional difference: São Paulo vs. Brazil, 1932”. In: Race and nation in modern
Latin America. Nancy Appelbaum, Anne Macpherson e Karin Rosemblatt (orgs.). Chapel
Hill: University of North Carolina Press, 2003, pp. 237-262, e correspondência com o autor.
James P. Woodard / Revista de História 150 (1º - 2004), 41-56

humiliation and the realization that it is fighting for its political position, its
white man’s culture, and the wealth, the lives, and the homes of its citizens”
(‘São Paulo tem uma moral extraordinária gerada por 20 meses de humilhação
e pela consciência de que está lutando por sua posição política, sua cultura de
homens brancos, e pela riqueza, vidas e lares de seus cidadãos’).4 Neste mo-
mento podemos lembrar o comentário de Katia Maria Abud sobre a figura do
bandeirante: “O bandeirante representa, por excelência, a entidade paulista
que se tornou sinônimo de bravura, integridade, arrojo, progresso, superiori-
dade racial e até mesmo democracia”.5
Essa identificação entre oposição política e paulistinidade era evidente
antes mesmo da fundação do Partido Democrático. Em uma declaração publi-
cada em setembro de 1925, o futuro líder honorário do partido, Antônio Prado,
declarou: “Já tarda que os paulistas, filhos da terra dos verdadeiros grandes
homens que contribuíram para a formação da nacionalidade brasileira, resol-
vam fundar um verdadeiro partido político, baseado nos princípios democrá-
ticos da nossa Constituição” 6.

44

3
Com algumas reservas, uso aqui o conceito habermasiano da “esfera pública” em uma
maneira similar ao uso do conceito pela Hilda Sabato em suas pesquisas sobre a partici-
pação política na cidade de Buenos Aires durante o século dezenove. SABATO, Hilda.
“Citizenship, political participation, and the formation of the public sphere in Buenos
Aires, 1850s-1880s”. Past & Present. Oxford: Oxford University Press, 136, pp. 139-
163, 1992; idem, The many and the few: political participation in republican Buenos Aires.
Stanford: Stanford University Press, 2001.
4
Carta de C. R. Cameron a Walter C. Thurston, São Paulo Political Report No. 49, São
Paulo, 9 de agosto de 1932, United States National Archives (USNA), College Park,
Maryland, Record Group 59 (RG59), 832.00/811. Cameron foi muito ligado às pessoas
que ele chamava de “better class Paulistas” e suas reportagens refletem essa familiari-
dade (citação de uma carta de C. R. Cameron a Walter C. Thurston, São Paulo Political
Report No. 48, São Paulo, 30 de julho de 1932, USNA, RG59, 832.00/810). Ao contrário
de Cameron, o embaixador norte-americano, baseado na capital federal de Rio de Janei-
ro, inclinou-se bem mais a responsabilizar os próprios paulistas pela “revolução” de 1932,
explicando que “The fanatical attitude of the population must be broken before the nor-
mal life of the city can be restored”. Carta de E. V. Morgan a Secretary of State, Rio de
Janeiro, 14 de otubro de 1932, USNA, RG59, 832.00/818.
5
ABUD, Katia Maria. “O bandeirante e o movimento de 32: alguma relação?”. In: O
imaginário em terra conquistada, Maria Isaura Pereira de Queiroz (org.). São Paulo: Cen-
tro de Estudos Rurais e Urbanos,1993, p. 36.
6
“O voto secreto”, O Estado de S. Paulo, 1 de setembro de 1925, p. 3.
James P. Woodard / Revista de História 150 (1º - 2004), 41-56

No primeiro comício público do novo partido, os líderes se esforçaram para


acentuar o “nacionalismo” do PD e minimizar o seu regionalismo (presumivel-
mente para atrair apoio fora de São Paulo), com Luiz Augusto de Queiroz Aranha
afirmando: “A nossa ação partidária começa em S. Paulo sem que tenhamos em
mente o menor vislumbre de regionalismo. Daqui partem os primeiros passos,
os mais custosos sem dúvida, mas que não contam ainda e que só contarão quan-
do a eles se ajuntarem outros passos, muitos passos, depois de longas jornadas
até que trema o solo pátrio ao tropel de um grande partido nacional. .......... Ou
nós, os brasileiros, executaremos este programa de homens livres, altivos, cons-
cios dos seus deveres para com a Pátria ou seremos indignos da soberania desta
formosa terra, pela qual o Cruzeiro do Sul luminosamente vela”.7
Com a fundação do PD, uma espécie de identidade nacionalista/regionalista
menos evidente na correspondência política dos líderes republicanos tornou-se
uma constante na correspondência dos aderentes ao novo partido. Apelos
patrióticos foram combinados com referências à preeminência de São Paulo na
federação e a símbolos desta preeminência, dos quais o mais importante era o
bandeirante. Em Altinópolis, Simplício Ferreira, um dos primeiros aderentes,
previu que o PD “vai ser, em breve, o crisol da política nacional, especialmente 45
da do Estado [de São Paulo], pelo qual mais nos interessamos”.8 Ferreira foi seguido
por um negociante de Bernardino de Campos que previu que com a fundação do
partido dissidente “havemos de ver o reerguimento da Terra Paulista e da Pátria
Brasileira”.9 O comitê local do PD na cidade histórica de Itu saudou a liderança
central do partido como grandes brasileiros e líderes “do grande movimento de
civismo para o qual ora convergem as esperanças e o apoio populares e que, re-
flectindo-se pelo País inteiro, abala os velhos alicerces da tradicional Terra dos
Bandeirantes”, destinado a levar adiante os sonhos de antigos patriotas de criar
“Um Brasil livre, ordeiro, progressista e ‘ipso facto’, feliz”.10

7
PRADO, Nazareth (org.). Antonio Prado no imperio e na republica. Rio de Janeiro: F.
Briguet, 1929, pp. 423-424.
8
Carta de Simplício Ferreira a Antônio Prado, Altinópolis, 24 de março de 1926, Arqui-
vo do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (AIHGSP), Arquivo Partido Democrá-
tico (APD), pacote 33.
9
Carta de Manuel Ahies [?] a “Illustre Commição Diretora do Partido Democratico”,
Bernardino de Campos, 18 de abril de 1926, AIHGSP, APD, pacote 33.
10
Carta de Joaquim da Fonseca Bicudo et al. ao Diretório Provisório do PD, Itu, 29 de
junho de 1926, AIHGSP, APD, pacote 33.
James P. Woodard / Revista de História 150 (1º - 2004), 41-56

Representantes da liderança central do partido enviados para o interior


ecoavam esses temas em seus discursos públicos. Em um discurso em Jaú,
Waldemar Ferreira propôs perante um público de “Mais de mil pessoas” que
os paulistas estavam destinados a liderar a renovação nacional:

Estava S. Paulo fadado para ser o ponto de cristalisação desse grande


empreendimento político, porque, como disse Cincinato Braga, “está
na massa do sangue do paulista a preocupação indefesa de pertencer a
uma pátria que se imponha ao mundo pela amplitude de seu território,
pelo valor de suas riquezas, pelo brilho intelectual e moral dos seus
filhos”. Mas não somente por isso. Principalmente porque a responsabi-
lidade de S. Paulo, na integração territorial e política do Brasil, desde
o bandeirismo até a proclamação da República, lhe impõe a obrigação
de caminhar para a sua finalidade historica.11

Este discurso foi “constantemente interrompido por vibrantes aplausos”,


segundo um artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo.12
Plínio F. da Silva, um negociante paulista, escreveu ao Diretório Central do
46 partido depois de ter lido o discurso de Waldemar Ferreira em um jornal. Silva,
como “brasileiro legítimo..., principalmente paulista, amante do progresso e da
ordem, da justiça, do trabalho legítimo e honesto”, ficou extremamente entu-
siasmado com o discurso. A carta dele revela uma mistura estranha mas não inco-
mum de identidade regionalista, reformismo desenvolvimentista, pessimismo,
ufanismo, paternalismo, liberalismo e insegurança nacionalista:

Senhores Democratas, precisamos reagir. Ou novamente proclamamos


a independência do Brasil ou daqui há dez ou vinte annos isto aqui não
passará de uma colônia à feição do Norte da África. Precisamos restabe-
lecer entre brasileiros o reino da justiça: precisamos acabar com as
oligarquias, principalmente essa terrível de nosso querido Estado: preci-
samos dar alento ao povo brasileiro: precisamos curá-lo dos males físi-
cos: precisamos ensiná-lo a ler: a trabalhar, a prezar a si próprio, a res-
peitar o seu próprio direito e o alheio: precisamos estimulá-lo ao amor
de seu país que lhe oferece oportunidades aos milhões para viver ar-

11
“Partido Democrático”, O Estado de S. Paulo, 27 de abril de 1926, p. 6.
12
Ibid.
James P. Woodard / Revista de História 150 (1º - 2004), 41-56

ranjado, contente e feliz: precisamos mostrar ao nosso povo que o


governo não é pai de ninguem e simplesmente exerce as funções de
regulador da vida político [e] econômico da nação, bem como a soci-
al: precisamos dizer ao nosso povo que procure trabalhar com inteli-
gência, persistência, honestidade, cada vez mais e melhor, porque o
Governo lhe GARANTE estabilidade, facilidade de crédito, de trans-
porte, de propaganda e finalmente de colocação de tudo quanto se pro-
duzir. Senhores Democratas, precisamos voltar neste país a ser homens
de bem, a viver de acordo com os preceitos de nossa bela religião, a sã
moral e o bom senso comum de toda gente. Estou a crer que o mundo
inteiro se ri de nós por nos verem possuidores de uma das mais belas
e das mais ricas regiões do globo, sem, no entanto irmos para frente.13

Silva identificava a si mesmo e aos fundadores do PD como “bandeirantes”,


acrescentando: “Auspiciosamente o Brasil inteiro acredita em S. Paulo. S. Paulo
é o Brasil. De novo gritemos Independência ou Morte!”.14
Uma reivindicação chave, clara em alguns dos discursos citados acima,
era que a modernização política não havia acompanhado o surpreendente pro-
gresso material do estado durante os últimos quarenta e poucos anos. Um es- 47
critor na cidade de Faxina, escrevendo num jornal habilmente chamado O Pro-
gresso, ecoou Monteiro Lobato, o pai do Jeca Tatu, declarando que

O caipira nada vale. Carcomido pelas molestias, perece, no matto, enquanto


os norte americanos com a missão “Rockefeller” tentam salval-o, apezar
de estrangeiros... São Paulo tem escolas, estradas de ferro; cafezais; boa
justiça – [mas] péssima política. Graças ao clima e qualidades da terra e
ainda às correntes imigratórias, o estado é rico e próspero.
Mas, até hoje não tinha oposição política superiormente organizada.
.... O Partido Democrático é a oposição dentro da lei que vem apelar
para os homens de boa vontade e independentes para o trabalho
reconstrutor da nação, roubada desde 89.15

13
Carta de Plínio F. da Silva aos “Diretores do Partido Democrata”, Rio de Janeiro, 29
de abril de 1926, AIHGSP, APD, pacote 48.
14
Ibid.
15
“Pelos direitos do povo”, recorte de jornal (O Progresso [Faxina], 10 de agosto de 1927),
AIHGSP, APD, album VI.
James P. Woodard / Revista de História 150 (1º - 2004), 41-56

Os jornais foram um espaço especialmente importante para a divulgação


da identidade regionalista/nacionalista. Cássia Chrispiniano Adduci mostrou
a importância do Diário Nacional do PD, cujo título já sintesiza sua pretenção
à status “nacional” (e nacionalista), assim como a Revista do Brasil, excelen-
temente examinada por Tania Regina de Luca.16 Mais uma vez, apela-se ao
mito do bandeirante:

As terras, como as criaturas humanas, nascem de si apontadas aos seus


destinos heróicos ou vulgares. .... S. Paulo, célula geográfica da nacionali-
dade, haveria de ter, nos seus primordios, o germe revelador de seus belos
destinos. ......... A fusão do sangue luso, plasmador de navegadores e de
guerreiros, com a raça altiva dos índios, teria que florir no tipo audaz do
bandeirante, mixto de sonhador e de soldado, evangelizador de selvas e
conquistador de montanhas. Enquanto as outras florescências da nova raça
americana mal cobriam com a sua sombra a região do seu nascimento, o
paulista antepoz-se ao tempo, sempre e cada vez mais dilatado.
.......................
Depois da conquista da terra na extensão geográfica, veio a conquista
48 do solo, no esplendor das atividades agrícolas.... O trabalho dos novos
bandeirantes deu ao Brasil a maior indústria agrícola do mundo, fulcro
gigantesco da economia nacional.17

Na época o Diário Nacional era o segundo ou terceiro jornal mais vendido


em São Paulo, segundo um observador.18
Como reação à intensa identidade regionalista-nacionalista dos democrá-
ticos, os oponentes perrepistas buscaram identificar o seu partido com São
Paulo e com um projeto semelhante. Em um discurso numa próspera cidade
do interior, Alexandre Marcondes Filho louvou o “esforço criador do paulista”,

16
ADDUCI, Cássia Chrispiniano. “O reforço da ‘mística paulista’ nas páginas do Diário
Nacional”. Lutas sociais. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 7,
pp. 101-114, 2001; DE LUCA, Tania Regina. A “Revista do Brasil”: um diagnóstico para
a (n)ação. São Paulo: Editora da UNESP, 1998.
17
Diário Nacional, 1 de abril de 1928, citado em ADDUCI, op cit., pp. 113-114.
18
C. R. Cameron, Report # 151, “São Paulo Press on the Kellogg Pact”, São Paulo, 4 Sept.
1928, USNA, Record Group 84, American Consulate, São Paulo, Correspondence, 1928,
vol. 7; idem, Report #167, “Fascism in São Paulo”, São Paulo, 29 Oct. 1928, in: ibid.
James P. Woodard / Revista de História 150 (1º - 2004), 41-56

rejeitando a identificação do PD com a paulistinidade e declarando-se contra


a importação do voto secreto baseado no fato de que os brasileiros não deviam
abandonar suas tradições, “o subsolo da nacionalidade”.19
A eleição presidencial de 1930, quando o paulista Júlio Prestes de Albuquer-
que competia com a coalizão gaúcho-mineiro por trás de Getúlio Vargas, consti-
tui-se uma grande oportunidade para os partidários do estadista de Itapetininga (a
maioria deles clientes políticos do PRP) ostentarem sua boa fé paulista e denuncia-
rem seus oponentes como desleais e desrespeitosos para com o orgulho paulista.
O arquivo pessoal de Júlio Prestes oferece inúmeros exemplos deste tipo de ex-
pressão, o que contrasta significativamente com a correspondência anterior, na
qual tal expressão é quase muda, quando não totalmente ausente.
Uma carta de um ex-democrático fornece um dos melhores exemplos deste
tipo de identidade. Voltando de uma viagem ao Rio Grande do Sul, Antônio
Amaral Mello endereçou uma carta a Júlio Prestes, em que, como “paulista
amante de sua terra natal”, explicou que naquele estado meridional havia visto
“um furor belicoso” nos “comícios e... proclamações populares” da Aliança
Liberal. Agora afastado do PD, ele ofereceu seu apoio ao “nosso Presidente
do Estado, que encarna neste momento trevoso para a segurança da Pátria, 49
um estadista capaz de assegurar a integridade de S. Paulo e manter a [sua]
hegemonia no concerto da Federação”.20
Nestor Siqueira de Macedo, o primeiro juiz de paz em exercício do distrito
de Ipiranga, protestava sua “inteira solidariedade” à candidatura da situação
paulista, declarando que “Minas Gerais só tem vida ao lado do Governo Fe-
deral, amparada pelo progresso de S. Paulo”.21 Xará de um antigo cliente de
Fernando Prestes (pai do presidente estadual), o “modesto patrício” Pedro Voss
Filho prometeu a sua “solidariedade, neste momento em que está em jogo além

19
Alexandre Marcondes Machado, “Conferência política realizada na cidade de Jaú, por
ocasião do primeiro comício de propaganda do Partido Republicano Paulista, reproduzi-
do de acordo com as notas tacquigráficas, em 1926”, CPDOC, Arquivo Marcondes Fi-
lho, doc. pi 1926.00.00.
20
Carta de Antônio Amaral Mello a Júlio Prestes de Albuquerque, São Paulo, 22 de se-
tembro de 1929, Arquivo do Estado de São Paulo (AESP), Arquivo Júlio Prestes de
Albuquerque (AJPA), caixa AP11.
21
Carta de Nestor Siqueira de Macedo a Júlio Prestes de Albuquerque, São Paulo, 13 de
agosto de 1929, AESP, AJPA, caixa AP10.
James P. Woodard / Revista de História 150 (1º - 2004), 41-56

do seu nome, de notavel republicano, o do meu grande Estado”.22 Em São Bento


do Sapucaí, a cidade natal de Plínio Salgado, Luís Gonzaga Raposa (um aliado
do futuro chefe do fascismo brasileiro) mobilizou o “seu” eleitorado para votar
em Júlio Prestes, “para [o] orgulho de São Paulo e para [a] grandeza do Brasil”.23
E, no município de Itatinga, um funcionário público manifestou sentimentos bem
similares, protestando sua solidariedade à candidatura perrepista “porque o seu
lema é: TUDO PELO DR. JÚLIO PRESTES E TUDO PELO BRASIL”.24
Monteiro Lobato, escrevendo de Nova York, congratulou o candidato per-
repista e ofereceu o seu apoio:

primo) porque está em causa Júlio Prestes;


secundo) porque sua política na presidência significará o de que mais
precisa o Brasil: continuidade administrativa;
tercio) porque é tempo do posto supremo ser ocupado por um moço.25

Finalmente, concluiu Lobato, “porque não é com queijo, nem carne seca que
os graves problemas que defrontam o Brasil serão resolvidos. É com café, audácia,
visão, iniciativa e as mais outras qualidades yankees que caracterizam o paulista”.26
50
O próprio Vargas teve que apelar à estes valores durante a sua campanha
eleitoral. Em janeiro de 1930 o candidato gaúcho declarou:

Paulistas! Glorioso povo paulista! Terra bem fadada que permitiu o


surto dos bandeirantes, raça privilegiada, que desbravou a terra e lan-
çou as bases de uma civilização nova. Daqui partiu o grito da indepen-
dência, na colina simbólica do Ipiranga, na palavra dos oradores e na
vibração cívica dos comícios prepararam-se as campanhas da aboli-
ção e da República.

22
Carta de Pedro Voss Filho a Júlio Prestes de Albuquerque, Tatuí, 17 de setembro de
1929, AESP, AJPA, caixa AP11; O Estado de S. Paulo, 22 de dezembro de 1909, p. 4.
23
Carta de Luiz Gonzaga Raposa a Júlio Prestes de Albuquerque, São Bento de Sapucaí,
31 de janeiro de 1930, AESP, AJPA, caixa AP14.
24
Carta de Chrispiano Cid Costa a Júlio Prestes de Albuquerque, Itatinga, 16 de janeiro
de 1930, AESP, AJPA, caixa AP14.
25
Carta de Monteiro Lobato a Júlio Prestes de Albuquerque, Nova York, 28 de agosto de
1929, citado em DEBES, Célio. Júlio Prestes e a primeira república. São Paulo: Im-
prensa Oficial, 1982, p. 96.
26
Ibid.
James P. Woodard / Revista de História 150 (1º - 2004), 41-56

Todas as forças dinâmicas da nacionalidade, todos os grandes movi-


mentos que agitaram a alma da raça, quando não partiram de S. Paulo,
encontraram em seu seio um eco vibrante e decisivo.27

Nem todos, claro, estavam entusiasmados com este tipo de identidade e


com a forma como ele saturava o discurso político da época. Nas paginas do
Diário da Noite, J. Canuto declarou:

Nunca é demasiado queixar-se a gente desses excessos de regionalis-


mo que as coisas e os homens da República vêm reacendendo, cada
vez mais, no coração do Brasil. A unidade nacional – patrimônio a nós
legado pelas gerações passadas à custa de ingentes sacrificios – vai so-
frendo, pouco a pouco, quase imperceptivelmente, pequeninos golpes,
mais permanentes, que divorciam, sempre e em todos os Estados, as
diversas regiões do país.
Os Estados brasileiros – quase todos – têm a sua bandeira. Oficial ou não,
esse símbolo existe, como uma imposição de regionalismo à massa anônima.
..............
Em São Paulo, não só o povo, mas até as agremiações políticas, tim- 51
bram em frisar o caráter regionalista de toda a sua atividade: osten-
tam, nas festas e comemorações cívicas, o pano de listas pretas e can-
to vermelho, reconhecido como “a bandeira paulista”.
O Partido Democrático, num dos seus congressos, único a que assisti,
instalou a bandeira paulista ao lado da bandeira brasileira, como se fora
coisa muito natural e justa. O Partido Republicano Paulista adotou co-
mo distintivo o mesmo desenho da flâmula de S. Paulo.28

Antecipando o Estado Novo, Canuto pedia a proscrição das bandeiras


estaduais e, de uma maneira geral, pelo fim da identificação regionalista.
Entretanto, mesmo esse escritor anti-regionalista foi incapaz de se expressar sem
recorrer àquele símbolo mais paulista de todos, o bandeirante, declarando que
“O culto dos bandeirantes… deve ser acoroçoado para que toda a gente, desde

27
“Como foram recebidos os candidatos liberais”, O Estado de S. Paulo, 5 de janeiro de
1930, p. 6.
28
J. Canuto, “Campanha em prol da unidade nacional”, recorte de jornal (Diário da Noite,
11 de setembro de 1929), AIHGSP, APD, pacote 59.
James P. Woodard / Revista de História 150 (1º - 2004), 41-56

o Amazonas até o Prata, se convença definitivamente de que a maior riqueza


que nos legaram os nossos maiores foi essa enorme Pátria una e coesa”.29
O comentário de Canuto indica como símbolos – bandeiras, insígnias, e
seu uso em relação aos outros – foram muito importantes na difusão da iden-
tidade regionalista. Um pôster do famoso cartunista Belmonte (Benedicto
Carneiro Bastos Barreto) serve como uma ótima ilustração deste ponto. O pôs-
ter mostra um bandeirante muito branco em pé com uma cédula eleitoral em
uma mão e uma espada etiquetada “Partido Democrático” na outra, de frente
para três figuras bem menores: um “eleitor de cabresto” afro-descendente, um
eleitor estrangeiro, e um “fósforo eleitoral” dando uma olhada por trás de uma
lápide. A legenda diz: “De Pé, S. Paulo! Nas eleições de 24 de fevereiro, com
esta arma, defender-te-ás do assalto dos pigmeus!”30 Ao descrever o bandei-
rante deste modo, Belmonte estava ecoando materiais iconográficos mais anti-
gos (a propaganda da Liga Nacionalista da década anterior) e antecipando o
uso do bandeirante como um ícone na propaganda da revolta de 1932.31
Pode-se também observar que a racialização da figura do bandeirante (e
do eleitor de cabresto) ecoava debates sobre o voto secreto que se remontavam
52 às décadas de 1910 e 1920. Na época, a reforma eleitoral foi comparada à aboli-
ção da escravidão. Intelectuais proeminentes sugeriam que o Brasil tinha sido
“o último [país] a proclamar a liberdade do negro e pode ser o derradeiro a
libertar a consciência do branco” através da introdução do voto secreto, descrito
como “um 13 de Maio branco” e que legitimamente seria introduzido primeiro
em São Paulo, já que o estado desempenhava seu papel natural de “leader da
união”, depois do que, “por contágio, [a liberdade de consciência] dominando
o país inteiro, e o Brasil começaria, enfim, a matar esse atraso de cem anos a
que a dupla escravidão do corpo do preto, outrora, e da consciência do branco,
hoje”.32 O “13 de Maio branco” foi um tema importante na correspondência

29
Ibid.
30
AIHGSP, APD, pacote 13, item 8. O pôster é reproduzido em SÃO PAULO, Assem-
bléia Legislativa. Legislativo paulista: parlamentares, 1835-1999. Auro Augusto Caliman
(org.). 2a. edição, São Paulo: Imprensa Oficial, 1999, p. 77.
31
Pôster de propaganda promovendo o alistamento eleitoral, AIHGSP, Arquivo Liga
Nacionalista, pacote 1. O pôster é reproduzido em SÃO PAULO, op cit., p. 71. Para a
manipulação da imagem do bandeirante em 1932, ver ABUD, op cit., pp. 41-44.
32
LOBATO, Monteiro et al. O voto secreto: carta aberta ao Exmo. Snr. Dr. Carlos de
Campos. São Paulo: 1924.
James P. Woodard / Revista de História 150 (1º - 2004), 41-56

da oposição política. Notamos isso, por exemplo, numa carta de um partidário


do PD que orgulhosamente diz: “Lancei o meu humilde nome na lista dos com-
batentes pelo 13 de Maio branco”, identificando-se com a “gente de bem” do
partido.33 A referência ao “13 de Maio branco” teria eco no início dos anos 30
no discurso regionalista racializado descrito tão bem por Barbara Weinstein.34
Nos anos que se seguiram, a identidade paulista encontrou ecos
importantes em livros, artigos, comemorações públicas, e até em correspon-
dências particulares. Podemos encontrar exemplos disto na excelente intro-
dução que Vavy Pacheco Borges faz sobre esse tema em sua Memória paulista
ou numa carta endereçada a Paulo Duarte em meados dos anos trinta em que
a correspondente (uma paulista) declarou: “Odeio aos brasileiros, e ao jugo
deles prefiro o estrangeiro”.35 Mesmo os seguidores do major Miguel Costa,
que naquele momento apoiou o governo federal encabeçado por Getúlio
Vargas, declaravam no início dos anos trinta que o seu herói, apesar de ter
nascido em Buenos Aires, tinha “coração paulista”.36
Depois do fracasso da rebelião de 32, as marcas da superioridade paulista
(a aclamada modernidade, civilização, dinamismo econômico, e “brancura”
de São Paulo) foram unidas à evocação do sacrifício nas trincheiras. O “cons- 53
titucionalismo” paulista era identificado com sacrifício e não com precedentes
liberais, com “dever” em vez de com “reforma”. Em 1934, por exemplo, o
Partido Constitucionalista (recém fundado pela coligação da Federação dos
Voluntários de São Paulo, os dissidentes perrepistas da Ação Nacional, e os
membros restantes do PD37) distribuíram panfletos que mostravam soldados
caídos na guerra olhando de cima para a cidade de São Paulo com uma legenda
que dizia: “Cumprimos o nosso dever: cumpra agora o seu! Vote no Partido

33
Antonio Monteiro da [ilegível] aos diretores do PD, São Paulo, 27 de março de 1926,
AIHGSP, APD, pacote 45.
34
WEINSTEIN, op cit.
35
BORGES, Vavy Pacheco. Memória paulista. São Paulo: Editora da Universidade de
São Paulo, 1997, capítulo 3; DUARTE, Paulo. Memórias. São Paulo: Hucitec, 1974-1980,
volume 2, p. 187.
36
BEZERRA, Holien Gonçalves. O jogo do poder: revolução paulista de 32. São Paulo:
Editora Moderna, 1989, p. 101.
37
RAMOS, Plínio de Abreu. “Partido Constitucionalista de São Paulo”. In: Dicionário
histórico-biográfico brasileiro. Alzira Alves de Abreu et al. (orgs.). 2a. edição. Rio de
Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 2001, p. 4283.
James P. Woodard / Revista de História 150 (1º - 2004), 41-56

Constitucionalista”.38 Neste discurso, a própria revolta torna-se uma espécie


de equivalente paulista do “bloody shirt” da pós-Guerra Civil do nordeste e
Meio Oeste dos Estados Unidos (símbolo do sacrifício da guerra e do martírio
do presidente Abraham Lincoln para membros do Partido Republicano da épo-
ca), um ponto de referência a que todo político ambicioso tinha que se referir.
De fato, o poder emotivo de 1932 parecia tão forte que em certos momentos
específicos até a esquerda internacionalista usou este mesmo apelo ao tentar
conseguir apoio popular. Em 1935, por exemplo, quando Luís Carlos Prestes
convocou a “frente única revolucionária”, ele apelou para a “juventude heróica
de São Paulo que pensou defender nas trincheiras de 1932, a democracia e a
liberdade contra a ditadura de Vargas”.39
Esse tipo de apelo ecoava um discurso regionalista mais amplo, com ori-
gens no século dezenove. O final dos anos vinte – e, em particular, o conflito
político entre o PD e o PRP – foi um dos muitos momentos em que este discurso
foi ensaiado e incitado.

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Diário Nacional”. Lutas sociais. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica
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38
O pôster é reproduzido em SÃO PAULO, op cit., 107.
39
A Manhã (Rio de Janeiro), 5 de julho de 1935 (2a edição), citado em FONSECA, Vitor
Manoel Marques da. “A ANL na legalidade”. Tese de mestrado da Universidade Federal
Fluminense, 1986, p. 236. Emquanto o PCB estava na legalidade, em meados dos anos
quarenta, biografias oficiais de certos candidatos do partido fizeram referências especi-
ais à participação dos candidatos nos eventos de 1932. Ver as biografias de Catullo Branco
e Milton Cayres de Brito, Hoje (São Paulo), 21 de novembro de 1945, p. 8, e 26 de no-
vembro de 1945, p. 6.
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56
“PALADINOS DA LIBERDADE”.
A EXPERIÊNCIA DO CLUBE NEGRO DE
CULTURA SOCIAL EM SÃO PAULO (1932-1938) *

Petrônio Domingues
Doutorando do Programa de História Social-FFLCH/USP
Professor da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE)

Resumo
O objetivo desse artigo é romper com o relativo silêncio historiográfico que
envolve a luta organizada do negro no combate ao racismo neste país, em
particular, nas primeiras décadas do período republicano. Por isso, resol-
vemos oferecer subsídios para se fazer, pioneiramente, um resgate históri-
co da entidade Clube Negro de Cultura Social (1932-1938) e, centralmen-
te, analisar seus dois veículos informativos oficiais: a revista Cultura, na
primeira fase, e o jornal O Clarim, na segunda fase da organização.

Palavras-Chave
Negro • Racismo • Movimento Negro • Relações Raciais

Abstract
The purpose of this article is to break with the historiographical silence
that persists in the organized black movement against racism in Brazil,
in particular with respect to the first decades of the Republican period.
The article offers elements for a pioneer study of a social entity called
the Clube Negro de Cultura Social (1932-38), analyzing its two official
publications: the magazine Cultura, during the first phase, and the
newspaper O Clarim, during the organization’s second phase.
Keywords
Black People • Racism • Black People Movement • Racial Relationships

*
Agradeço a leitura minuciosa de Marcos Cesaretti e os comentários do Prof. Antônio
Sérgio Alfredo Guimarães.
Petrônio Domingues / Revista de História 150 (1º - 2004), 57-79

(...) em lugar de um choque frontal entre pretos e brancos, a solu-


ção brasileira seria negar e sempre negar que no Brasil exista qual-
quer tipo de questão ou problema de preconceito e discriminação
raciais. Isto a despeito das incontáveis denúncias da imprensa, das
várias pesquisas da ciência social, dos livros publicados, dos depoi-
mentos e das reivindicações coletivas dos afro-brasileiros, afirman-
do, provando o contrário. A classe dominante no Brasil procede co-
mo uma antecipação dos ensinamentos de Goebbels, o famoso
ideólogo do III Reich, de que a mentira, sustentada insistente e
reiteradamente, é capaz de criar uma nova verdade. (...) O Brasil
oficial dispendeu grande esforço tentando criar a ficção histórica
segundo a qual o país representa o único paraíso da harmonia raci-
al sobre a terra, o modelo a ser imitado pelo mundo. (...) Com a
queda do colonialismo na África e o levante dos povos negros de
todas as partes do globo, também no Brasil se desintegra a parafer-
nália de artifício, de subterfúgio, de hipocrisia, montada para ocul-
tar o crime que se pratica contra as massas negras.

Abdias do Nascimento

58
Introdução
Reconhecemos os avanços significativos na construção da história do negro
no Brasil, entretanto, muitos capítulos dessa história ainda precisam ser des-
vendados. Uma das lacunas reside na tradição de luta das organizações negras
no pós-abolição. Excetuando as maiores – como a Frente Negra Brasileira
(1931-37), Teatro Experimental do Negro (1944-68) ou Movimento Negro
Unificado (1978- ) – não se aborda ou raramente se aborda a experiência das
outras organizações, quanto à sua linha política, estrutura, seu poder de mobi-
lização, dinamismo de funcionamento, grau de organização e articulação com
os demais setores da sociedade e do Estado brasileiro.
A fim de romper com esse relativo silêncio historiográfico que paira
na luta coletiva do negro neste país, em particular nas primeiras décadas
do período republicano, é que aceitamos o desafio de escrever esse artigo.
A proposta é oferecer subsídios para se fazer um resgate histórico da enti-
dade Clube Negro de Cultura Social (1932-1938) e, centralmente, analisar,
seus veículos informativos oficiais: a revista Cultura, na primeira fase, e
o jornal O Clarim, na segunda fase.
Petrônio Domingues / Revista de História 150 (1º - 2004), 57-79

1. O ocultamento historiográfico
O Clube Negro de Cultura Social (CNCS) ainda não foi objeto de uma
pesquisa rigorosa. Sua vida continua submersa nos porões dos arquivos e da
memória histórica. De toda sorte, encontramos algumas pesquisas que, secun-
dariamente, fazem referência à trajetória dessa entidade. A obra A integração
do Negro na Sociedade de Classes, de Florestan Fernandes, foi a precursora
em tirar o CNCS do esquecimento e definir sua importância para a organização
da luta anti-racista no início do século XX: “A atuação desse grupo foi sempre
muito coerente, mantendo a bandeira do negro, ou seja, as reivindicações rela-
cionadas com o levantamento econômico, social e cultural do negro, com uma
mistura equilibrada de idealismo e de realismo, o que imprimiu às suas posições
um caráter marcantemente construtivo” (Fernandes 1978:87).
No entanto, esse consagrado autor não tece maiores considerações sobre
a “saga” da referida entidade, que, em última instância, permanece no semi-
anonimato. Depois de décadas, uma outra pesquisa intitulada O movimento
negro em São Paulo: luta e identidade, de Regina Pahim Pinto, aborda, apenas
num único parágrafo, algumas das iniciativas desportivas dessa entidade: “O
Clube Negro de Cultura Social foi a associação que incentivou o esporte, não
59
só promovendo competições e mantendo quadro esportivos, mas também pro-
curando criar uma estrutura para o desenvolvimento, como a construção de
uma praça de esportes (Pinto 1993:82).”
Por sua vez, a dissertação Visibilidade e respeitabilidade: memória e luta
dos negros nas associações culturais e recreativas de São Paulo (1930-1968),
de Maria Aparecida Pinto Silva, se credencia como a principal pesquisa a pers-
crutar, ainda que de maneira efêmera, a trajetória do CNCS. Através da me-
mória de seus ativistas, Silva faz uma reconstituição histórica da entidade. A
sua principal hipótese é demonstrar que as atividades culturais e recreativas
promovidas pela referida entidade foram colocadas a serviço do projeto polí-
tico do movimento negro: “O Clube Negro de Cultura Social, embora tendo
todo esse caráter combativo e francamente politizado, caracterizou-se por uma
intensa programação social, cultural e recreativa. Essas práticas não ficavam
descoladas da prática política. Assim, os praticantes de esportes e os freqüen-
tadores das sessões literárias estavam também vinculados às reivindicações
do movimento negro (Silva 1997: 112).”
O nosso artigo se inscreve justamente nesse quadro mais amplo de recons-
trução histórica do movimento negro e de suas organizações. A despeito da
Petrônio Domingues / Revista de História 150 (1º - 2004), 57-79

escassez de trabalhos nessa área temática – haja vista o relativo ocultamento


que ainda permeia sobre o CNCS – entendemos ser de fundamental impor-
tância recuperarmos a luta de milhares de negros e negras em prol da tão so-
nhada cidadania prometida pelo regime republicano, quase meio século após
o fim da escravidão.

2. O movimento negro organizado no pós-abolição em São Paulo e o nasci-


mento do Clube Negro de Cultura Social (CNCS)
Após a abolição, a luta organizada do negro entrou em nova fase. Surgiram
dezenas, centenas de grêmios ou associações negras em diversos Estados, de
cunho mais assistencial, recreativo e/ou cultural, tendo como principal ativida-
de social a realização de bailes. Em São Paulo, nesta época, a maior foi o Grupo
Dramático e Recreativo Kosmos, fundado em 1908. Essas associações con-
seguiam aglutinar um número expressivo de negros em seus eventos. Simulta-
neamente, apareceu o que se denominou posteriormente imprensa negra: jornais
publicados por negros e voltados para comunidade negra (Bastide 1951). Em
60 São Paulo, o primeiro periódico a ser publicado foi A Pátria, tendo como subtítulo
Orgão dos Homens de Cor, em 1899 (Machado 1994: 140), entretanto, o
principal, desta época, foi, sem dúvida, o Clarim da Alvorada, lançado em 1924,
sob a direção de José Correia Leite e Jayme Aguiar. Até 1930, contabilizamos
a existência de, pelo menos, 31 jornais circulando em São Paulo (Domingues
2004). A imprensa negra conseguia reunir um grupo representativo de pessoas
para empreender a batalha anti-racista. Surgiram jornais dessa mesma natureza
em outros estados, como Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Rio de Janeiro
(Ferrara 1986). Nessa primeira etapa, o movimento negro organizado era
desprovido de caráter político mais deliberado, com um programa ou projeto
ideológico que acenasse na construção de um novo modelo de sociedade.
Na década de 1930, a luta organizada do negro deu um salto qualitativo,
com a fundação no ano de 1931, em São Paulo, da Frente Negra Brasileira
(FNB), que, por sinal, é considerada a sucessora do Centro Cívico Palmares,
de 1926 (Moreira, s/d). Estas foram as primeiras organizações negras com
reivindicações políticas mais gerais. Na primeira metade do século XX, a FNB,
em especial, foi a mais importante entidade negra do país. Com delegações
(filiais) em alguns Estados (Minas Gerais, Rio de Janeiro, Espírito Santo) e
em várias cidades do interior paulista, chegou a reunir no seu auge
aproximadamente 30 mil militantes (Pinto 1994). A FNB mobilizava centenas,
Petrônio Domingues / Revista de História 150 (1º - 2004), 57-79

milhares de negros, conseguindo converter, por determinado espaço de tempo,


o movimento negro em movimento de massa. Sua força política chegou a ponto
de ser atendida em audiência pelo Presidente da República da época, Getúlio
Vargas. Esta entidade desenvolveu um elevado nível de organização, mantendo
escola, grupo musical, time de futebol, grupo teatral, departamento jurídico,
oferecendo serviço médico e odontológico, cursos de formação política, de
artes e ofícios, além de ter publicado o jornal A Voz da Raça.
Em 1936, a FNB transformou-se em partido político e participou, mas não
teve oportunidade de passar pelo teste das urnas. Influenciada pela conjuntura
internacional de ascensão da extrema direita, esta entidade notabilizou-se por
defender um programa político ultranacionalista e conservador (Andrews 1998).
O subtítulo do jornal A Voz da Raça era revelador: “Deus, Pátria, Raça e Família”.
Esta consigna diferenciava-se da palavra de ordem dos integralistas1 apenas no
acréscimo do termo “Raça”. A FNB mantinha, inclusive, uma milícia, semelhante
aos boinas verdes do fascismo de Benedito Mussolini, na Itália.
A tendência fascista desta entidade negra aflorou, a princípio, na escolha
de seu presidente, Arlindo Veiga dos Santos, figura carismática que, na época,
destacava-se como principal liderança do movimento patrianovista2. Através 61
de seu poder de persuasão, foi aprovado um estatuto de conotação nitidamente
fascista. Essa tendência ficou ainda mais evidenciada devido à participação
de Arlindo Veiga dos Santos no Primeiro Congresso da Ação Integralista, oca-
sião na qual teria proferido um discurso prometendo o apoio da FNB e de seus
200.000 negros aos integralistas (Leite & Moreira s/d:13). Esta linha doutri-
nária foi rechaçada pelo grupo de “frentenegrinos” que se aglutinava em torno
do jornal O Clarim D`Alvorada. Como os ativistas deste grupo não admitiam
se tornar massa de manobra dos ideais protofascistas de Arlindo Veiga dos
Santos, protagonizaram o primeiro rompimento coletivo da FNB. Especula-
se que os dissidentes tinham idéias socialistas3. Pelo menos esse foi o caso de

1
Integrantes de um movimento ultranacionalista de extrema direita, outrossim, conhe-
cido como versão brasileira do fascismo italiano, que surgiu na década de 1930.
2
Arlindo Veiga dos Santos foi o responsável pela criação do movimento patrianovista,
fundando, em 1928, o Centro Monarquista de Cultura Social e Política e, em 1932, a
Ação Imperial Patrianovista Brasileira. Este movimento, na ótica de Roy (1978), defen-
dia o nacionalismo, o tradicionalismo, o catolicismo e a reinstauração da monarquia e
implantação do III Império.
3
Entrevista de Francisco Lucrécio a Regina Pahim Pinto, em 23.06.1989, p.1.
Petrônio Domingues / Revista de História 150 (1º - 2004), 57-79

José Correia Leite. Em 23 de dezembro de 1931, ele enviou uma carta aos
membros do Conselho daquela entidade solicitando seu desligamento do cole-
giado. Nesse documento, Correia Leite apontava como causa do pedido de
afastamento sua “incompatibilidade com o personalismo, clericalismo”, mo-
narquismo e posições políticas “ultranacionalistas” do presidente da FNB.
Além disso, esse dissidente fazia questão de declarar que condenava a monar-
quia, a religião cristã e a “república aristocrática”, tendo como sonho a cons-
trução do “socialismo democrático”. Apesar de sua defecção do cargo de dire-
ção, Leite escrevia que ainda se dispunha a continuar nas “fileiras” da
organização como “soldado”4.
A FNB, então, passou a tratar o grupo que se aglutinava em torno do jornal
O Clarim D‘Alvorada como inimigos. Acusavam-lhes de traidores, “envenena-
dores da raça”, inoperantes, de nunca terem feito nada pelos negros e “só sabe-
rem falar e criticar”. Um dos dirigentes da FNB vociferava: “Os nossos segui-
dores não precisam de intelectuais; precisamos de mais ação e menos palavras”
(Leite & Moreira s/d: 14). Com efeito, um episódio agravou o clima de tensão
que se instaurou no movimento negro. Isaltino Veiga dos Santos, secretário
62 geral da FNB e irmão de Arlindo Veiga dos Santos, incorreu em uma postura
considerada imoral na viagem de inauguração, em São Sebastião do Paraíso
(MG), de mais uma delegação da FNB. Como nenhuma medida punitiva foi
tomada pela entidade, o grupo de O Clarim D‘Alvorada resolveu fundar um
novo jornal, o Chibata, somente para denunciar o caso. Quando estava no ter-
ceiro número, a redação do Chibata – que funcionava na casa de José Correia
Leite – foi violentamente empastelada por uma milícia a mando do Presidente
da FNB, Arlindo Veiga dos Santos. Revoltado, o grupo de O Clarim D‘Alvo-
rada resolveu republicar o jornal com o nome original:

O Clarim D‘Alvorada, reaparece hoje, em edição extra, para atirar a sua cuspa-
rada de desprezo, no rosto dos negros repugnantes, que na noite de 19 deste,
evadiram a nossa redação, com o fito de depredar os nossos materiais.

4
Carta de Snr. José Correia Leite aos membros do Conselho da Frente Negra Brasileira.
São Paulo, 23 de dezembro de 1931. Prontuário 1538 (Frente Negra Brasileira). Arquivo
DEOPS. Em todas as citações de documentos foi respeitado o português da época, pre-
servando-se, desta maneira, o original.
Petrônio Domingues / Revista de História 150 (1º - 2004), 57-79

Esses lacaios dos irmãos Veiga dos Santos, tipos nojentos da vasa bai-
xa, agrediram estupidamente duas mulheres, e assustaram os indefe-
sos filhinhos do nosso companheiro, José Correia Leite, em atitudes
selvagens dignas do bando de “Lampeão” (O Clarim da Alvorada. São
Paulo, 27.03.1932, p.1).5

Abriu-se uma fase de trocas de acusações no meio negro. Como rememora


o antigo ativista, José Correia Leite: “Formou-se no espírito dos membros da
Frente Negra, graças ao trabalho de Isaltino Veiga dos Santos, a idéia de que
a divergência entre o grupo do Clarim e eles não passava de uma mera questão
de despeito e inveja, porque aquele grupo queria ser dono da Frente. Isto, dizia
o Isaltino, porque não foram capazes de organizar uma sociedade como era a
Frente. Foi este o motivo pelo qual se resolveu fundar o Clube Negro de Cultura
Social. Era a resposta a acusação que nos faziam”. (Leite & Moreira, s/d:15).
Portanto, o Clube Negro de Cultura Social nasceu no cenário do movimento
negro paulista para fazer oposição à Frente Negra Brasileira (Andrews,1998:239)
e seu núcleo fundador era proveniente do jornal “O Clarim da Alvorada”
(Ferrara,1986:76). As duas entidades, contudo, resolveram estabelecer uma
63
espécie de “acordo moral” de não agressão mútua6.

3. Clube Negro de Cultura Social: um baluarte dos negros em São Paulo.


O Clube Negro de Cultura Social (CNCS) foi fundado em 1º de julho de
1932, idealizado por José de Assis Barbosa. Sua sede ficava na rua Quedino, nº
23, no centro de São Paulo. Coloquialmente, era conhecido como “Cultura So-
cial”. Do grupo inicial, destacavam-se os ativistas José Correia Leite, Osvaldo
Santiago, Raul Joviano do Amaral, Benedito Vaz Costa, Átila J. Gonçalves, Luís
Gonzaga Braga, Benedito C. Toledo, Sebastião Gentil de Castro, Manoel Antônio
dos Santos, Antunes Cunha, entre outros. A entidade tinha como questão de prin-

5
O empastelamento do jornal Chibata ainda foi noticiado na Folha da Manhã. São Pau-
lo, 22.03.1932, p.14; Folha da Noite. São Paulo, 22.03.1932, p.3. Em todas as citações
de documentos foram respeitadas o português da época, preservando-se, deste maneira,
o original.
6
Entrevista de Aristides Barbosa a Regina Pahim Pinto, em 18.11.1989, p.12. Em razão
do CNCS atrair essencialmente o público juvenil, muitos de seus filiados eram parentes
(filho ou sobrinho, mormente) dos frentenegrinos.
Petrônio Domingues / Revista de História 150 (1º - 2004), 57-79

cípio a independência política dos negros na luta anti-racista, tal como foi sinteti-
zado nas palavras de um de seus dirigentes e uma das principais lideranças do
movimento negro da época, José Correia Leite (1992:118):

A gente lutava para conscientizar o negro que ele era quem tinha que
advogar sua causa, não esperar que alguém viesse advogar sua causa,
não esperar que alguém viesse advogar por ele. Já sabíamos que nin-
guém vinha tratar do desamparo, do erro da abolição. E não deixáva-
mos de reivindicar os direitos que o negro tinha em denunciar os pre-
juízos sofridos. A gente tinha de lutar... e foi o que a gente levou para
o Clube Negro de Cultura Social.

Oito dias depois de formação oficial do CNCS, em 9 de julho de 1932,


deflagrou-se, em São Paulo, a denominada Revolução Constitucionalista. Um
grupo de militantes daquela associação participou desse conflito armado,
ingressando na Legião Negra, um batalhão constituído apenas por negros, loca-
lizado na Chácara do Carvalho, na Barra Funda, e sob o comando civil de
Guaraná de Santana. Neste intervalo de tempo, o Clube Negro de Cultura So-
64 cial ficou esvaziado. Com o fim da guerra civil, em outubro de 1932, suas ativi-
dades foram retomadas.
O Clube Negro de Cultura Social era uma entidade democrática. Ele reali-
zava eleições periódicas, adotava o regime presidencial e estava estruturado
administrativamente, pelo menos, nos seguintes departamentos: educação físi-
ca (também denominado departamento de esporte), intelectual e cultura.

Realizou-se no dia 16 do corrente a assembléia geral para a eleição ge-


ral para a eleição da nova diretoria do Clube Negro de Cultura Social.
A eleição decorreu num ambiente de grande entusiasmo, visto estar
empenhadas na disputa a corrente da Ala-moça e Chapa Oficial.
Venceu a chapa oficial, sendo os seguintes os candidatos eleitos:
Para Presidente: José Correia Leite
Para Vice Presidente - José Teixeira
º
Para 1 Secretário - Átila José Gonçalves
º
Para 1 Tesoureiro - Luiz Gonzaga Braga
Para Bibliotecário - Ascanio de Barros. (Cultura. São Paulo, janeiro de 1934)7.

7
A eleição da nova diretoria do CNCS, igualmente, foi notícia em outro jornal: “De acordo
com as eleições realizadas em 17 do corrente, ficou assim composta a diretoria que re-
Petrônio Domingues / Revista de História 150 (1º - 2004), 57-79

O Clube Negro de Cultura Social conseguiu mobilizar em seus quadros


um número significativo de jovens, que não se sentiam contemplados em outras
associações negras: “nada tem evoluído mais que o CNCS no seio da mocidade
negra” (Cultura. São Paulo, março de 1934). O compromisso dos jovens, de
um lado, com a entidade e, de outro, com a militância negra deveria ter um
sentido religioso, conforme era apregoado pelo seu órgão de imprensa: “o Cul-
tura deve ser para a mocidade negra Piratiningana, o mesmo que o alcorão é
para os muçulmanos! (Cultura. São Paulo, março de 1934).
A maioria dos associados do CNCS vivia em condições de penúria. O
depoimento de José Correia Leite (1992:126) é emblemático: “A nossa vida
era muito difícil. Arrumar dinheiro para comer não era fácil. A gente tinha
de, às vezes, passar fome ou ir pra casa tomar café com pão porque não tinha
dinheiro para almoçar”. Apesar das privações materiais, esses associados
reivindicavam ser da “elite negra” e se vestiam nos padrões de elegância da
época: os homens usavam camisa, colete, peças de casimira, paletó, terno e
gravata; as mulheres usavam vestidos e polainas. A proposta, portanto, era
erigir um clube de ambiente seletivo.
O CNCS desenvolvia muitas ações de caráter recreativo, voltadas, preci- 65
puamente, para a prática desportista, diferenciando-se, assim, da natureza mais
politizada da Frente Negra Brasileira (FNB), conforme podemos apurar no
depoimento de um antigo ativista:

O primeiro clube que comecei a ir se chamava (...) Clube Negro de


Cultura Social. tinha o Clube Negro e tinha a Frente Negra Brasileira,
mas nosso clube naquele tempo era mais uma coisa de cultura, tinha
os grandes vultos negros. A gente fazia sessões literárias de Cruz e
Souza, fazia assim uma espécie de teatro. O pessoal cantava, represen-
tava, mas tudo dentro da sede, que é hoje na Rua da Consolação com

gerá os destinos do Club este ano: Presidência, José Correia Leite e José Teixeira; Se-
cretaria, Atila J. Gonçalves e Patrício Valente Soares; Tesouraria, Luiz G. Braga e Alcides
Paulino de Moura; Bibliotecário, Ascanio de Barros; Comissão de Sindicância, Sebasti-
ão Gentil de Castro, Rubens dos Santos, Sebastião Laurindo, Alberto Cabral e Durvalino
Camargo; Conselho Deliberativo, Benedito de Souza, Amador de Barros, Alipio Anto-
nio da Silva, Galdino G. de Souza e Onofre dos Santos. (A Voz da Raça. São Paulo, 20 de
Janeiro de 1934, p. 3).
Petrônio Domingues / Revista de História 150 (1º - 2004), 57-79

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in: Silva 1997: 109).

Entretanto, suspeitamos que a prática desportiva ou cultural desta entidade


não passava de uma tática de conscientização e mobilização racial no bojo do
projeto político do movimento social dos negros na época, cujos resultados foram
satisfatórios. Uma evidência do relativo sucesso desse projeto (permeado, reite-
ramos, pelo uso dos meios desportivos/culturais com fins políticos) foi que, na
década de 1930, o CNCS configurou-se como a entidade que mais rivalizou com
a Frente Negra Brasileira na arregimentação de negros em São Paulo.
Todos os anos essa associação comemorava o 13 de Maio com “passeatas
cívicas, sessões solenes, bailes pomposos, partidas célebres” (O Clarim. São
Paulo, maio de 1935, p.4). Além disso, organizava uma corrida de rua conheci-
da como “pedestrianismo”. O percurso tinha como ponto de partida e chegada
o Largo do Arouche, ao pé da herma do Luiz Gama. Participavam da prova ape-
nas atletas negros e mestiços. No ano de 1935, destacaram-se os atletas Masca-
renhas, Eugênio, Manoel Nogueira e Elias Amâncio. (O Clarim. São Paulo, maio
66 de 1935, p. 8). O Clube Negro de Cultura Social era afiliado da Liga Suburbana
de Pedestrianismo. Em sua sede, havia jogos de pingue-pongue, de xadrez e de
dama. Na quadra social da rua Álvaro de Carvalho, realizavam-se jogos de
futebol, “volebol” e “bola ao cesto”, nos quais tomavam parte as turmas
masculinas, femininas e infantis (O Clarim. São Paulo, março de 1935, p.3).
Decerto, a prática desportiva era uma das prioridades desta entidade:

Eu comecei a tomar conhecimento do Clube Negro de Cultura Social


em 1939, eu estava disputando o Campeonato Aberto do Interior, em
Campinas, e eles fizeram um piquenique. A minha delegação estava
hospedado no Bosque, e o Clube fez o piquenique lá. Foi onde tive
contato com eles, porque eles estavam contratando. Eu jogava basquete.
O falecido Barbosa, ele ficou empolgado de ver uma pessoa de cor,
que era muito difícil, jogando bola ao cesto (...). Naquele tempo, o
Clube tinha seção esportiva, bola ao cesto, tênis de mesa, atletismo
(...). Quando cheguei a São Paulo, fui procurar o clube”. (Entrevista
de Arnaldo in: Silva 1997: 110).

Os confrontos desportivos com os associados da Frente Negra


Brasileira, sua co-irmã do movimento negro, aconteciam em clima de
Petrônio Domingues / Revista de História 150 (1º - 2004), 57-79

grande rivalidade8. O CNCS também organizava excursões (pic-nics) 9 para


o litoral e o interior, sessões literárias e musicais, assim como promovia o
concurso “Rainha da Simpatia” (O Clarim. São Paulo, maio de 1935, p.8).
Nas sessões literárias, um dos poetas negros mais recitado era Cruz e Souza.
Segundo Silva (1997:109), “a poesia negra lida no Clube despertava nos
negros a consciência de si e de seus iguais, permitindo que (...) a identidade
negra emergisse”. O CNCS ainda mantinha uma respeitável biblioteca.
Em função das divergências internas, o Clube Negro de Cultura Social so-
freu uma série de dissidências. No geral, os dissidentes defendiam que a enti-
dade devia ser estritamente de lazer e realizar uma única atividade, os bailes.
O setor majoritário da entidade, em contra partida, denunciava esta tendência
“festiva” para a luta anti-racista:

É simplesmente lamentável que moços evoluídos aproveitem a sua evo-


lução cogitando a realisação de vesperaes dansante sem outra finalidade
do que o baile, o simples baile, e, que para isso disperdisem forças e
energias que seriam melhor aproveitadas no ambiente onde estão actu-
ando, que é o Clube Negro de Cultura a quem a maioria pertence. (Cul-
tura. São Paulo, Janeiro de 1934)
67

Entretanto, esta admoestação foi debalde. O primeiro grupo que saiu


fundou exatamente um clube de bailes denominado Kevy; o segundo –
conhecido como Os Evoluídos – criou, da mesma maneira, uma associação
promotora de festas e bailes; o terceiro, por sua vez, fundou uma associação
recreativa denominada Clube dos Vinte (Leite 1992: 113, 128). Depois de anos,
o CNCS mudou de endereço, estabelecendo-se em uma sede maior, na Rua
Conselheiro Ramalho. Em 1934, essa entidade iniciou a publicação da revista
Cultura, que tinha como subtítulo Revista da Mocidade Negra.

8
Contudo, não podemos distorcer o caráter da rivalidade que havia entre o CNCS e a FNB
Pelo menos no plano político, selou-se uma aliança tática entre essas duas entidades negras.
Segundo Aristide Barbosa (depoimento in Barbosa, 1998:22), o CNCS não lançou candi-
datura própria às "eleições de 1937[1934]" para poder apoiar o candidato da Frente Negra.
9
O piquenique era um dos programas de lazer mais concorridos. Como assinala Silva
(1997:113), “todos participavam e compartilhavam esse momento significativo. Iam
juntos de trem ou de ônibus, ao interior ou à praia, comiam juntos. O piquenique signi-
ficava um contraponto, uma alternativa para o convívio social, já que lá fora havia a in-
terdição, principalmente em restaurantes para o negro.”
Petrônio Domingues / Revista de História 150 (1º - 2004), 57-79

4. A Primeira Fase do Clube Negro de Cultura Social (1932-1934): a revista Cultura

Editada pelo Clube, apareceu hoje a revista “Cultura”, quinzenário So-


cial-Esportivo. Essa revista encontra-se à venda nesta redação ao preço
de 400 réis. (A Voz da Raça. São Paulo, 20 de Janeiro de 1934, p.3).

Sob o título “Club Negro de Cultura Social”, a sucinta matéria do jornal A


Voz da Raça anunciava que a referida entidade negra estava promovendo o
lançamento da revista Cultura. As condições de publicação desta revista eram
precárias. Sem nenhuma forma de patrocínio, a escassez de recursos para man-
tê-la era permanente. Para viabilizar a publicação, os ativistas – que eram jorna-
listas amadores – compravam o refugo de papel de bobina do jornal Diário
da Noite e, depois, cortavam em forma de papel de resma. Por último, impri-
miam o novo periódico na tipografia de uma outra revista, situada na Ladeira
São Francisco, no centro da cidade (Leite 1992: 111).
No primeiro número, os editores se orgulhavam do pioneirismo: “Cultura
é a primeira e única revista negra em São Paulo” (Cultura. São Paulo, jan./
68 1934). Desconfiamos que seu pioneirismo não se restringiu a São Paulo, mas
a aludida publicação foi, provavelmente, a primeira revista produzida por ne-
gros e voltada especialmente para a comunidade negra do país10. No editorial
de fundação, a revista declarava: “a nossa finalidade é servir à coletividade a
que pertencemos.” (Cultura. São Paulo, janeiro de 1934). Isto é, a revista foi
um precioso instrumento de defesa dos interesses da população negra deste
país. A publicação era mensal; depois se tornou bimestral. Além do editorial
e artigos avulsos, a revista dividia-se nas seguintes seções: página de honra,
vida social, música, esportes, página literária e movimento associativo.
A revista Cultura, como assinalamos, dividia-se em várias seções ou colu-
nas. Em linhas gerais, “página de honra ou negros ilustres” era um espaço de
homenagens às eminentes lideranças e símbolos históricos da “negritude”, sen-
do que a principal era o escritor Cruz e Souza, seguido pelos abolicionistas

10
Encontramos, entretanto, o lançamento, um ano antes, de uma revista denominada
Evolução, que trazia em seu subtítulo Revista dos Homens Pretos de São Paulo, lançada
em único número para as comemorações do 13 de Maio, data da abolição da escravatura
no Brasil. (Evolução. São Paulo, 13 de maio de 1933).
Petrônio Domingues / Revista de História 150 (1º - 2004), 57-79

Luiz Gama e José do Patrocínio. Ainda havia o enaltecimento do médico psi-


quiatra Juliano Moreira, do historiador e político Teodoro Sampaio, do diri-
gente haitiano Touissant L´Ouverture e do jurista Evaristo de Morais, entre
outros; em “vida social”, noticiava-se todas as atividades sociais vinculadas à
comunidade negra: formaturas, aniversários, batismos, festas, casamentos e
falecimentos; em “música”, informava-se sobre a situação dos músicos
(Sebastião Mariano, Alfredo Pires, Antonio Silva), cantores (Henrique Felipe
Costa; o “Henricão”, Antenor Silva) e grupos musicais blacks (Jazz “Batutas
Rio Clarenses”); em “esportes”, apresentava-se o panorama do “mundo” es-
portivo, em que havia participação de atleta negro, dispensando atenção espe-
cial para o futebol e o atletismo; em “página literária”, reservava-se um espaço
para a publicação de poemas escritos pelos membros da própria comunidade
(Cruz e Souza, Belmiro Braga, Figueiredo Silva, Paulo Gonçalves, Fernando
Lopes, José Correia Leite, entre outros); em “movimento associativo”, divul-
gava-se o trabalho social e os eventos realizados pelas outras entidades negras
(São Geraldo, 3 de Maio, Palmares, Flor da Mocidade, Campos Elyseos); cla-
mava-se pela união da “raça” e fazia-se consecutivas convocações para as ativi-
dades do movimento negro. A revista ainda era ocupada por anúncios publi- 69
citários de oficina mecânica, salão de beleza, de festa, farmácia, empório,
medicamentos, serviços de pintura, tinturaria, chapelaria. Estes anúncios eram
voltados especificamente para o/a consumidor/a negro/a.
A linha editorial da revista Cultura era moderada e mitificadora. Esta, por
exemplo, era a tônica da descrição quixotesca da “Rainha Izabel”, considerada
defensora dos “anseios do povo” e da “causa dos cativos”. Daí o atributo de
“redentora” imputado a ela, de quem a “raça negra” deveria preservar “devo-
tado respeito” (Cultura. São Paulo, abril/maio de 1934).
Contudo, não podemos ler essa imprensa de maneira linear. Pelo contrário,
o discurso do movimento negro daquela época era permeado por certa con-
tradição nas suas posições políticas. Na mesma edição, a revista estampava
em primeira página um editorial trazendo como título: “13 de Maio: Negros,
uni-vos”, tecendo sérias críticas à farsa da abolição:

“13 de Maio! Data que poderia ser o marco das reivindicações de uma
raça espoliada e espezinhada, é, apenas, uma ironia para nós os ne-
gros, e uma piedosa legenda para os brancos.
Negros fascistas, monarquistas, socialistas, perrepistas ou perrapados
- UNI-IVOS, num trabalho perfeito pela nossa emancipação integral.
Petrônio Domingues / Revista de História 150 (1º - 2004), 57-79

Pela elevação moral, material e cultural da raça e nada mais”. (Cultu-


ra. São Paulo, abril/maio de 1934)

Este editorial acima ainda revela qual era a concepção de luta predomi-
nante do movimento negro da época: a “questão racial” estava acima das
diferenças políticas e ideológicas que cindia os diversos setores e estratos
sociais da população negra. A luta anti-racista devia ser suprapartidária:
“Todos nós tínhamos nossas idéias políticas, mas quando nós estávamos
reunidos em função das nossas idéias de negritude nós não misturávamos”
(Depoimento de José Correia Leite in: Barbosa 1998: 73) com política. A
tarefa de todos os negros seria, antes de mais nada, costurar uma unidade
de ação na luta pela sua emancipação, independentemente de suas convicções
partidárias. Nesse sentido, as contradições de classe, gênero, etc, deviam ser
colocadas em segundo plano; afinal, o interesse do negro era supostamente
comum: “elevação moral, material e cultural da raça e nada mais”. Daí a
política a favor da aliança de forças políticas e ideológicas antagônicas (“fas-
cistas, monarquistas, socialistas”).
70 Para o Clube Negro de Cultura Social, um dos instrumentos privilegiados
de conscientização dos negros, reiteramos, era o esporte:

(...) no esporte, nós possamos encontrar o que não temos conseguido com
palavras bonitas e doutrinárias. Mas o esporte só não basta para nós, dirão
os céticos. É preciso a educação moral e intelectual. Mas diremos nós:
o esporte, e mormente o atletismo, é um educador perfeito da moral e
do intelecto. E é por isso, que apontamos mais uma vez o Clube Negro
de Cultura Social. (Cultura. São Paulo, março de 1934).

O esporte, nesta perspectiva, abria os horizontes, desenvolvia a


disciplina, o espírito competitivo, a educação moral, enfim, valores que
precisavam ser incorporados – na nova ordem estabelecida – pela comuni-
dade negra no geral e pelos jovens desta comunidade em particular. Por isso,
havia uma política deliberada de incentivo à prática desportiva, que, entre
outros benefícios, possibilitava a inserção social do negro e sua visibilidade
na cidade, minimizando, dessa forma, os efeitos draconianos da marginaliza-
ção racial. Depois de cinco volumes, a primeira revista da “imprensa negra”
saiu de circulação em São Paulo.
Petrônio Domingues / Revista de História 150 (1º - 2004), 57-79

5. A Segunda Fase do Clube Negro de Cultura Social (1935-1938): o jornal Clarim


Em 1934, Fernando Goes – um mulato extremamente intelectualizado11 –
se aproximou do Clube Negro de Cultura Social. Rapidamente, este intelectual
despontou no meio negro sob a alcunha de Gandhi. Com a colaboração de outros
ativistas (José de Assis Barbosa, Eunice de Paula, Henrique Cunha e Oscar de
Paula Assis), criou o órgão jornalístico daquela entidade, batizado de O Clarim,
marcando a transição para uma nova fase da luta (Leite 1992: 121).
O jornal era mensal. Seu subtítulo era sugestivo: “Publicação mensal da
mocidade negra”. Uma sessão específica comunicava quais eram os aniver-
sariantes do mês e uma outra servia como tribuna literária. Ele também reser-
vava espaço para divulgar as atividades das outras entidades negras, como
“Elite”, “Centro Cívico Campineiro” e “Grêmio Recreativo Brinco da Prin-
cesa”. Inclusive, alguns noticiários descreviam as ações das associações bene-
ficentes, como foi o caso da “Aliança de Cooperativismo dos Homens de Cor”,
cujo programa previa:

“Assistência médica, farmaceutica, dentária e judiciária, funerais, es-


colas, profissões, comércio, colocações e amparo aos necessitados, 71
cegos e inválidos. Trabalhos agrícolas, enfim, um programa vasto e de
maior interesse para o bem estar, alevantamento e defesa da Raça
Negra”. (O Clarim. São Paulo, maio de 1935, p.7).

As páginas do jornal, esporadicamente, refletiam os acontecimentos polí-


ticos da conjuntura mais geral, tanto nacional como internacional. Em março
de 1935, um artigo de primeira página condenava a invasão da Abissínia (país
do norte da África) pelas tropas fascistas de Mussolini. (O Clarim. São Paulo,
março de 1935, p. 1)

11
Encontramos, inclusive, um artigo em que Fernando Goes - escrevendo sob o pseudô-
nimo de Ghandi de Araújo - demonstra ter afinidade com o que existia de mais avançado
em matéria de conhecimento antropológico, o princípio da diversidade cultural, que
negava o dogma da hierarquia biológica entre as raças: “Um cérebro sensato, desprovi-
do de preconceitos raciais absurdos é lido em Franz Boas, que afirma não existir inferi-
oridade de inteligências entre as raças, mas tão somente diversidade de culturas (O Cla-
rim. São Paulo, maio de 1935, p.6).
Petrônio Domingues / Revista de História 150 (1º - 2004), 57-79

Nesta segunda fase, o órgão de imprensa da entidade, o jornal O Clarim, con-


tinuou tendo uma linha editorial conciliatória, propondo que os negros abolissem
os “ódios e ressentimentos” (O Clarim. São Paulo, março de 1935, p.4). Entretanto,
as denúncias de casos de discriminação racial eram freqüentes, demonstrando que
as relações sociais entre negros e brancos em São Paulo eram conflituosas.
Uma das saídas propalada para enfrentar o racismo era o engajamento dos
negros em suas organizações:

“Não é só com a espada que se torna herói, mas também, com palavras
e ações. Será que os negros não sentem os prejuízos originados pelos
preconceitos? Somente nas organizações modelares é que se pode lutar
pela nossa Emancipação”. (O Clarim. São Paulo, março de 1935, p.1)

Entretanto, não era qualquer tipo de emancipação que se vislumbrava:


“lentamente e penosamente, vamos construindo as bases para a nossa eman-
cipação integral” (O Clarim. São Paulo, maio de 1935, p.1). Dentre as estraté-
gias apregoadas para superar a marginalização do povo negro, a mais enfati-
zada era, sem dúvida, a instrução ou educação formal: “Queremos escolas para
72
instrução moral-social dos negros em geral, porque somos um povo de influ-
encia direta na formação etnica do Brasil” (O Clarim. São Paulo, maio de 1935,
p.5). A elevação cultural, através do aprendizado escolar, era vista como a
panacéia: “concorramos para o milagre que a nossa gente deve realizar que é
a alfabetização de nossa casta: supremo ideal a que devemos todos aspirar”
(O Clarim. São Paulo, maio de 1935, p.5). A avaliação era simples. Na medida
em que se instruísse, o negro estaria qualificado para conquistar mais espaço
na sociedade e, por conseguinte, eliminar todas as barreiras de seu progresso.
No limite, essa concepção sustentava que o negro era discriminado não pelo
fator racial (linha de cor), mas pelo seu pretenso atraso cultural, isto é, pelo
fato de que era desprovido de uma cultura formal. Por isso, ele precisava se
libertar, urgentemente, da mentalidade herdada do cativeiro, marcada pelo su-
posta atrofia cultural e deformação moral. O artigo “A escravatura espiritual”
é um registro sintomático dessa avaliação:

“O 13 de Maio de 1888 pôs abaixo a “Bastilha” da escravatura física.


Mas, resta ainda uma batalha a se travar, a maior de todas que a raça
negra tem travado, pois é a mais importante. É a batalha pela abolição
da escravatura espiritual do negro.
Petrônio Domingues / Revista de História 150 (1º - 2004), 57-79

Sim meus amigos de São Paulo, de minha terra, o negro no Brasil é


livre, mas não tem instrução. Esta é que é a triste verdade.
E nós, que temos tido alguma instrução a custa de nosso próprio esfor-
ço, que temos a noção da realidade, que temos a compreensão das ne-
cessidades da raça, devemos despertar os nossos irmãos na cor para
mais essa luta, a luta pela cultivo do espírito.
Negros de São Paulo, negros de toda vasta nação brasileira, levantae a
vossa maior campanha de todos os tempos, a campanha pela abolição
da Escravatura Espiritual”. (O Clarim. São Paulo, maio de 1935, p.2).

Chegou-se a ponto do discurso em prol da elevação moral do negro ser tradu-


zido pela palavra de ordem “segunda libertação” ou abolição: “Proclamemos a
nossa segunda libertação, não da nossa escravidão física, mas sim moral” (O
Clarim. São Paulo, maio de 1935, p.5). A sensibilização da mulher, outrossim,
fazia parte do projeto maior de mobilização da população negra na luta
organizada de combate ao “problema” do racismo. A convocação era incisiva:

“Moças, minhas patrícias, é de nós mulheres que talvez dependa uma


parte da resolução desse problema. Imitemos as mulheres de outrora, 73
sejamos corajosas, trabalhamos em prol da nossa geração, dentro das
organizações de finalidades sãs e seguras.
Sejamos como uma heroína do passado, uma Luiza Mahin e outras mulhe-
res que se evidenciaram na história. Esforcemo-nos para o progresso do
C.N.C.S. de modo a formar um forte contra o qual os seres de outras raças
não terão armas para destrui-lo. Se não pensarmos assim o que será de
nossos sucessores?”. (O Clarim. São Paulo, março de 1935, p.1).

Este artigo foi escrito por Eunice de Paula, uma das redatoras do jornal O
Clarim, sinalizando que as mulheres participavam ativamente do processo de
conscientização racial e política da população negra. Eunice de Paula era res-
ponsável pela coluna feminina do jornal, a qual fazia sucesso entre os leitores.
Aliás, o discurso contrário ao machismo e a favor da emancipação feminina im-
primia a tônica de alguns artigos como “A mulher moderna e a sua educação”:

“Malgrado todos os ensinamentos da vida prática, muitos pais exis-


tem ainda que não compreendem as vantagens de uma educação mo-
derna e, só por si, capaz de libertar suas filhas de uma situação de mani-
festa inferioridade moral e material.
Petrônio Domingues / Revista de História 150 (1º - 2004), 57-79

A vida ativa dos nossos dias, mobilizando todos os seres capazes, não
pode deixar de utilizar como elemento de primeiro plano, a mulher
válida, principalmente aquela que, pela instrução, se tornou capaz para
certos serviços de homem”. (O Clarim. São Paulo, maio de 1935, p.5).

Este setor do movimento negro não ficou isento da “ideologia do bran-


queamento”12. Em todos os números do jornal O Clarim, encontramos uma
ou mais inserções publicitárias do gênero:

“O ´Atelier Henricão´, Largo do Arouche, 15-A, deve ser o seu prefe-


rido. Henricão alisa o cabelo mais rebelde por um sistema americano
especial. Alisa para homens a 5$000, para senhoras a 10$000” (O Cla-
rim. São Paulo, maio de 1935, p.8).

Trata-se de uma propaganda do “Atelier Henricão”, o qual utilizava um es-


pecial sistema americano de alisamento do cabelo. Como podermos inferir, o
alisamento não era voltado exclusivamente para as mulheres da comunidade
negra, mas também servia para os homens dessa comunidade. Alisar o cabelo
74 era prática, provavelmente, não rara para sua fração mais elitizada. Mas, mal-
grado a influência alienadora da “ideologia do branqueamento”, a população
negra, no geral, desenvolveu uma respeitável consciência racial. Um desses indi-
cadores era a rede de salões étnicos. A propaganda em si é reveladora: “Salão
Brasil. Rua Amaral Gurgel, 5. Amplo e confortável salão. Especialista em
cabelos de pessoas de cor” (O Clarim. São Paulo, março de 1935, p. 3)
Esses salões, normalmente, ficavam localizados em locais estratégicos na
região central da cidade, funcionando como ponto de encontro dos membros
da comunidade negra. É necessário ressaltar que a busca por afirmação racial
era um dos principais motes do jornal O Clarim. Em artigo denominado “Sou
Negro”, o ativista Raul Joviano Amaral conclama todos os negros a:

“(...) conquistar para a Raça o conforto que ela merece, e aos seus ele-
mentos os direitos que lhe são devidos como cidadãos.

12
A “ideologia do branqueamento” é uma alusão ao desejo de um setor da comunidade
negra daquele período eliminar seus traços fisionômicos, a fim de se aproximar, no pla-
no das aparências, ao modelo fisionômico considerado superior, o branco (cabelo liso,
nariz afilado, lábio fino, cútis clara, por exemplo).
Petrônio Domingues / Revista de História 150 (1º - 2004), 57-79

Sou Negro! Sou Negro cônscio dos meus deveres!


Sou Negro livre pelo Negro!
Sou Negro! Sou soldado de minha Raça dentro do meu Brasil!”. (O
Clarim. São Paulo, maio de 1935, p.5)

Este artigo é uma evidência de que a atuação do CNCS foi pautada pelo
desejo confesso de despertar no negro o orgulho racial, de modo que tal seg-
mento da população pudesse assumir, na plenitude, a luta a favor dos “direitos
que lhe são devidos como cidadãos”. Depois de quatro números, O Clarim
saiu de circulação, deixando, dessa forma, o CNCS órfão de um veículo de
comunicação jornalístico.

6. O cinqüentenário da abolição e o fim do Clube Negro de Cultura Social


O Clube Negro de Cultura Social indicou a comissão que organizou as come-
morações do Cinqüentenário da Abolição, marcada para o 13 de maio de 1938.
A princípio, os preparativos foram feitos em parceria com o Departamento de
Cultura da Prefeitura, que, naquele instante, estava sob a direção de Mário de
Andrade, mas, devido a uma mudança de governo, este foi demitido e o seu subs- 75
tituto não se interessou pelos festejos. Resultado: o CNCS, em conjunto com a
União Negra Brasileira, ficaram sozinhos na empreitada de organizar as come-
morações do cinqüentenário. Para arrecadar recursos destinados ao referido
evento, o CNCS promoveu, entre outras iniciativas, um almoço coletivo na sede
da entidade, contando com a presença de algumas personalidades ilustres, como
as de Mário de Andrade e Arthur Ramos.
O primeiro evento público dos festejos do Cinqüentenário da Abolição foi
a corrida “pedestrianista”, com saída e chegada no Largo do Arouche. Em se-
guida, as principais lideranças do movimento negro realizaram um ato político
em frente a herma do Luiz Gama e discursaram para aproximadamente 3 mil
pessoas, fazendo um balanço do significado da lei Áurea e reivindicando a
Segunda Abolição. Depois, aconteceu a romaria ao cemitério da Consolação,
em homenagem ao túmulo dos abolicionistas, sobretudo Luiz Gama e Antônio
Bento (Leite 1992: 133,136). À noite, realizou-se um ato solene no Teatro Mu-
nicipal, com a presença massiva de negros e alguns aliados brancos, entre os
quais, Jorge Amado, Mário Donato, Edgar Cavalheiro, Rossini Camargo
Guarnieri, Oswaldo de Andrade e Arhur Ramos. Os oradores da noite foram
Fernando Goes e os poetas negros Lino Guedes e Couto Magalhães. Para fina-
Petrônio Domingues / Revista de História 150 (1º - 2004), 57-79

lizar, houve uma sessão de declamação poética. Este foi o último ato público
de cunho mais político promovido pela entidade.
A implantação da ditadura “Varguista” do Estado Novo, em 1937, debelou
com todas as entidades políticas, inclusive, com as organizações do movimento
negro. Segundo a elite política do país, as lutas sociais dos negros eram peri-
gosas, pois criavam um problema que presumivelmente não existia, o racismo,
e colocavam em risco seu projeto étnico de Estado Nação. Por isso, após as
comemorações do Cinqüentenário da Abolição, o Clube Negro de Cultura
Social foi arbitrariamente fechado pelos órgãos de repressão do regime dita-
torial do governo de Getúlio Vargas. Na verdade, a polícia política ainda
permitiu que o Clube continuasse a funcionar, mas fez duas exigências: a
supressão do termo negro e o fim das atividades políticas. Após a desmobili-
zação dos últimos militantes, o Clube Negro de Cultura Social foi extinto, em
definitivo, meses depois. A última festividade de monta da entidade foi a
comemoração de aniversário, naquele mesmo ano, de sua fundação. Primeira-
mente, realizou-se um sensacional espetáculo teatral, literário e musical. A
partir de meia noite aconteceu um concorrido baile, que se estendeu até às 4
76 horas da manhã, no Salão do Paulistano, na rua da Glória.

Considerações finais
O Clube Negro de Cultura Social foi, acima de tudo, um pólo de resistência
cultural, que teve, entre outros méritos, a preocupação permanente de reforçar
os laços de união étnica de um grupo específico, através da aglutinação dos
afiliados na sede para se confraternizarem nos bailes, nos jogos, na prática
desportiva, nas apresentações cênicas, nas declamações poéticas, nas refeições
coletivas, nas palestras, nas festividades de datas comemorativas. Era um local
onde efetivamente o negro se sentia “gente”. Quando Elysário Petrus escreveu
para a revista Cultura, exultando os “negros da paulicéia” a “cerrar fileiras
em torno do Clube”, ressaltou o que tal gesto significava: “Lá estaremos em
nosso ambiente, livres dos `olhos vermelhos´ do preconceito”. (Cultura. São
Paulo, março de 1934).
O CNCS contribuiu para a elevação do nível de consciência política e racial
do negro em São Paulo, canalizando o descontentamento difuso deste segmento
da população em disposição de aderir às lutas sociais: “Este 13 de Maio, veio
alcançar o homem negro perfeitamente integrado nas lutas políticas sociaes”.
(O Clarim. São Paulo, Maio de 1935, p.1).
Petrônio Domingues / Revista de História 150 (1º - 2004), 57-79

Ao contrário do que Silva (1997:111) sustenta13, o CNCS publicou apenas


dois periódicos, a revista Cultura, em 1934, e o jornal O Clarim, em 1935. Roger
Bastide (1951) e Miriam Ferrara (1986) inserem tais publicações na segunda
fase da imprensa negra. Esta fase se caracterizaria, sobretudo, pelo discurso da
combatividade, que, nesse instante, adquire um caráter nitidamente político.
Além disso, esta produção jornalística, nessa fase, passaria a reivindicar direitos
e reclamar, de maneira mais contundente, a inclusão do negro na sociedade. Um
dos indicadores dessa mudança de perfil ideológico desses periódicos (Cultura,
O Clarim) frente à produção da fase anterior é a substituição, cada vez mais
crescente, do uso da expressão “homem de cor” pelo termo “negro”.
Dado o contexto histórico desfavorável do pós-abolição, a simples exis-
tência de uma associação de negros e negras em São Paulo, com seus órgãos
específicos de imprensa (jornal e revista), era uma façanha, digna de um povo
que revelou considerável capacidade de coesão e autodefesa face ao discurso
racial dominante da época, o qual apregoava a inferioridade moral, cultural e
intelectual dos descendentes de africanos.
A despeito de ter sido abortado discricionariamente, o CNCS cumpriu um papel
valioso: representou mais um passo do negro brasileiro na efetiva conquista de direitos 77
civis e na construção de uma identidade racial específica no “mundo dos brancos”.
Assim, em 1938, selou-se ponto final em mais uma experiência de luta do negro
brasileiro: de um lado, contra a marginalização racial e, de outro, contra a exclusão
social do regime republicano, abrindo-se, por conseguinte, um quadro de refluxo
do movimento negro pela conquista de igualdade de direitos e oportunidades no país.

13
Segundo Silva (1997:111), o CNCS publicou duas revistas (Chibata e Cultura) e um
jornal (O Clarim da Alvorada). Ora, tanto o jornal O Clarim da Alvorada (1924-1932) quanto
a Chibata (1932) - que era jornal e não revista - foram publicações que antecederam em
anos e meses, respectivamente, a fundação do CNCS Portanto, não podemos confundir: as
únicas publicações desta entidade foram a revista Cultura (1934) e o jornal O Clarim (1935).
Petrônio Domingues / Revista de História 150 (1º - 2004), 57-79

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Petrônio Domingues / Revista de História 150 (1º - 2004), 57-79

80
REPRESENTAÇÕES HISTORIOGRÁFICAS CATÓLICAS
POR OCASIÃO DA COMEMORAÇÃO DO
IV CENTENÁRIO DA CIDADE DE SÃO PAULO

Damião Duque de Farias


Doutorando em História Social FFLCH-USP
Prof. de História do Brasil – UFMS

Resumo
Esse artigo é fruto da leitura do livro A Igreja dos Quatro Séculos de São
Paulo - 1554-1954. Verificamos que em primeiro lugar, este livropossui, em
sua análise histórica, as características da historiografia e das representações
do passado da elite paulista: o espírito bandeirante e a vocação nacional dos
paulistas. Assim, constitui-se um passado católico em São Paulo relaciona-
do com a seleção dos momentos e de determinados elementos históricos,
recaindo a preferência sobre a presença dos jesuítas em terras paulistas na
primeira fase colonial e sobre a fundação oficial da cidade de São Paulo. Nos
demais períodos, são escolhidos os fatos e atores que não chocam a repre-
sentação geral que, entre outras coisas, procura mostrar a força perene da
religiosidade católica em terras paulistas e brasileiras.
Palavras-Chave
Historiografia • Representações • Bandeiras • Catolicismo • Jesuítas
Abstract
This article results from a critical reading of the book A Igreja dos Qua-
tro Séculos de São Paulo – 1554-1954. In its historical approach, this book
expresses two characteristics of a historiography and representation of
the past associated with São Paulo’s elite: the bandeirante spirit and the
Paulistas’ role in shaping the nation. The book constructs São Paulo’s
Catholic past in relation to a selection of specific historical moments and
elements, emphasizing the presence of Jesuits during the early colonial
period and especially their role in the official establishment of the city.
During subsequent periods, this approach selects facts and actors that do
not contradict the general representation, which seeks to show the
perennial force of Catholicism in São Paulo and in Brazil.
Keywords
Historiography • Representation • Expeditions • Catholicism • Jesuits
Damião Duque de Farias / Revista de História 150 (1º - 2004), 81-95

Texto e Contexto
Neste ensaio bibliográfico analisaremos a obra A Igreja dos Quatro Séculos
de São Paulo - 1554-1954, composta no ano dos festejos do IV Centenário da
capital paulista e publicada pela Editora Documentários Nacionais Ltda. em
1955. O volume traz uma coletânea de textos (alguns originais e outros não)
de vários autores pertencentes ao Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo
(entre eles, Enzo Silveira), à Academia Paulista de Letras (por exemplo, J. P.
Leite Cordeiro) e à própria Igreja Católica (vide o Cônego Luiz Castanho de
Almeida). Escritores filiados a outras entidades literárias e científicas também
figuram, em menor número, no crédito dos autores1.
Podemos, com alguma liberdade, dividir o conjunto dos artigos apresenta-
dos na obra a ser analisada em dois grupos: o primeiro empreende uma análise
histórica e simbólica da presença da Igreja na cidade de São Paulo e, por extensão
(como veremos), no Estado de São Paulo e no Brasil. Esse grupo é constituído
por dois subgrupos: um composto pelos cinco primeiros artigos e o décimo pri-
meiro, intitulado “A Igreja em São Paulo, no Período Imperial”, de autoria do
Cônego Luiz Castanho de Almeida, e o outro constituído por outros nove artigos,
82 que compõem um quadro simbólico da presença da instituição católica em São
Paulo, apresentando resumos biográficos, dados genealógicos, símbolos oficiais,
etc. O artigo do Cônego Luiz Castanho de Almeida, isolado dentre os artigos
que compõem o primeiro subgrupo, demonstra, como observaremos, uma leitura,
consciente ou inconsciente, da história da Igreja em São Paulo.
O segundo grupo é composto de três partes: da primeira consta uma relação
de lugares públicos que receberam nomeação católica; a segunda refere-se às
igrejas e capelas da cidade de São Paulo; quanto à terceira, alude às paróquias
da Arquidiocese de São Paulo e ao trabalho social e religioso desenvolvido
por elas. Parece-nos que a intenção geral desse segundo grupo é demonstrar
o gigantismo da estrutura, a força e o trabalho da Igreja a acompanhar o desen-
volvimento da grande metrópole brasileira, uma cidade que carrega consigo
certos símbolos ligados ao trabalho, ao desenvolvimento, à modernidade.

1
O exemplar por nós analisado encontra-se no Arquivo D. Duarte Leopoldo e Silva, da
Cúria Metropolitana de São Paulo. Nele há uma nota introdutória de D. Carlos Carmelo
de Vasconcello Motta, então Arcebispo de São Paulo, aprovando elogiosamente a pu-
blicação da obra.
Damião Duque de Farias / Revista de História 150 (1º - 2004), 81-95

Neste trabalho, focaremos nossa análise apenas nos textos que tratam dire-
tamente da presença católica na história paulista e brasileira, compondo uma
narrativa historiográfica.
Para fundamentar nossa leitura, pareceu-nos interessante levantar alguns
elementos do contexto no qual está inserido nosso objeto de análise. Eviden-
temente o primeiro desses elementos são as comemorações do IV Centenário
da cidade de São Paulo, ocorridas em 1954. Nesse sentido, podemos considerar
que A Igreja dos Quatros Séculos de São Paulo: 1554-1954 é também uma
obra comemorativa, festiva. Possivelmente esse elemento suscitou uma análise
histórica da presença da Igreja em São Paulo mais gloriosa do que crítica. Com
essa afirmação, deixamos claro a presença de um certo valor relativo, haja vista
que a análise contida na obra em questão foi uma iniciativa da hierarquia, cuja
visão histórica até então estivera conformada pelos valores heróicos e positivos
que marcaram (e marcam) parte de nossa historiografia.
As festividades do IV Centenário têm sua importância realçada quando
consideramos que sobre o nascimento da cidade paira a iniciativa do Padre
Manuel da Nóbrega, considerado o primeiro grande nome da Igreja Católica
em terras paulistas e brasileiras. Nesse sentido, a hierarquia católica, acom- 83
panhada pela “Legião de São Paulo Pró-Catedral”, reuniu todos os esforços
com o fito de, na data considerada como a do IV Centenário da fundação da
cidade, ou seja, em 25 de janeiro de 1954, inaugurar a nova Catedral da Sé,
após décadas de trabalho de construção. Com esse ato pretendiam não só re-
lembrar a atuação de Nóbrega 400 anos antes, mas também marcar a impor-
tância e a presença católica na cidade de São Paulo. No Boletim Eclesiástico
da Arquidiocese de São Paulo, de janeiro de 1954, lemos o seguinte:

(...) a vida religiosa, humildemente começada na igrejinha de palha do Pá-


tio do Colégio em 25 de Janeiro de 1554 e que vai manifestar-se esplendo-
rosamente, 400 anos depois, neste 25 de janeiro de 1954, na magnífica e
imponente Catedral do Largo da Sé, para a maior glória de Deus.
A inauguração da Nova Catedral será o fato culminante das comemora-
ções religiosas do IV Centenário de São Paulo.(...)
Conta agora a Arquidiocese com uma Sé à altura de sua grandeza
material e espiritual. Não nos precisamos deter sobre o valor artístico
e monumental da Nova Catedral. Aí está para ser vista e admirada. Se
nenhum outro monumento permanecer, marco comemorativo do IV
Centenário, será bastante a Catedral. E a púrpura do Príncipe da Igre-
Damião Duque de Farias / Revista de História 150 (1º - 2004), 81-95

ja, a dignidade máxima que pode receber uma Diocese, está agora
condignamente abrigada em São Paulo.

Envolvendo as comemorações do IV Centenário em 1954, outra “grande


obra” seria inaugurada: o Parque do Ibirapuera. Construído a partir da iniciativa
dos poderes públicos, o Parque deveria ser símbolo da metrópole cosmopolita
(Exposição Internacional) e de convivência humana, mas antes de tudo deveria
ser a representação da “cidade que mais cresce no mundo”, como era então o
slogan paulistano divulgado na época. Este sentido ficou claramente enunciado
no símbolo do IV Centenário, projeto de Oscar Niemeyer. Como sabemos a
idéia de crescimento constitui um dos lemas centrais da ideologia dominante
no Estado de São Paulo, presente inclusive em sua historiografia.
Outro elemento importante do contexto e que é presença marcante nos tex-
tos de análise histórica da Igreja é o catolicismo romanizado, expressão de
uma autocompreensão católica surgida com o Concílio tridentino em meados
do século passado e que moldou profundas transformações nas diversas práxis
católicas em todo o mundo, inclusive no Brasil, quando a hierarquia da Igreja
84 brasileira passou a ter maiores vinculações com a Sé romana e com a ortodoxia.
O movimento de reformas ultramontanas na Igreja Católica brasileira
iniciou-se também em meados do XIX, no interior da estrutura eclesiástica.
A partir da década de 20 deste século, passou a avançar em direção a outras
organizações sociais, inclusive os aparelhos do Estado. Este movimento foi
nomeado de neocristandade; seu objetivo: alojar no interior de todas as institui-
ções os valores católicos2. A partir do anos 50, o movimento conhecerá uma
nova fase, com um novo desafio: conseguir a incorporação daqueles valores
por todos os cidadãos que assim contribuiriam para a reforma da sociedade.
A chamada Ação Católica e suas várias ramificações, bem como outros mo-
vimentos como o Movimento por um Mundo Melhor – MMM, eram conside-
rados os instrumento adequados para tal proposição.
A partir desse momento, ocorreu uma tentativa de levar os fiéis a um pro-
cesso de internalização deliberada dos valores morais e sociais do catolicismo
institucional, o pressuposto para legitimar as concepções e práticas da socie-

2
Ver: FARIAS, Damião Duque de. Em defesa da ordem: aspectos da práxis conservado-
ra católica no meio operário em São Paulo (1930-1945). São Paulo: História Social/ USP,
Ed. Hucitec, 1998.
Damião Duque de Farias / Revista de História 150 (1º - 2004), 81-95

dade moderna no contexto da vida urbana e para intervir na realidade social;


configurava-se, assim, nova fase de expansão do catolicismo romanizado. De
certa maneira, esse movimento apresentava aos católicos a necessidade de uma
espécie de movimento catequético, não mais sobre a população indígena, no
entanto, no contexto da atuação da Igreja em São Paulo, sobre a massa da po-
pulação urbana, enormemente aumentada graças à chegada de migrantes do
interior do Estado de São Paulo e de outras regiões do país, especialmente do
Nordeste. Embora nomeadamente católica, essa população de migrantes trazia
consigo valores e práticas religiosas bastante distantes das concepções roma-
nizadas. Grande desafio para a Igreja que, ao tentar equacioná-lo nas décadas
seguintes, provocou transformações no catolicismo brasileiro e mundial3.

A análise histórica católica


Como já referimos no início deste trabalho, são seis os artigos que analisam
a história da presença da Igreja na cidade de São Paulo. Levantaremos alguns
dos elementos mais importantes da constituição discursiva dessa análise, par-
tindo da idéia da “fundação da cidade”.
O mito fundador aparece com destaque na obra analisada, sendo inclusive
85
objeto do primeiro artigo da coletânea, “A fundação de São Paulo”, de Enzo
Silveira. Tal enfoque deve-se ao contexto comemorativo do IV Centenário,
incluindo a inauguração da nova Catedral, mas também porque ele se amal-
gama com vários outros mitos: da fundação do território, da formação do povo,
portanto, da formação da própria nação.
Nos textos analisados, verificamos a presença decisiva de Manuel da
Nóbrega na fundação de São Paulo em 25 de janeiro de 1554, data da come-
moração da conversão do Apóstolo Paulo, considerado também o “Apóstolo
dos gentios”. Outras figuras, como João Ramalho, Leonardo Nunes, José de
Anchieta, são desqualificados enquanto fundadores da cidade. A fixação de
25 de janeiro de 1554 também torna-se definitiva como data de fundação da
cidade e a construção do Colégio é o momento inaugural.

3
Conf. FARIAS, Damião Duque de. Crise e renovação na Igreja Católica em São Pau-
lo: impasses do progressismo e permanências do conservadorismo (1945-1975). Tese
de Doutorado, FFLCH-USP, 2002.
Damião Duque de Farias / Revista de História 150 (1º - 2004), 81-95

Segundo o artigo de Silveira, Nóbrega teria escolhido pessoalmente o lugar


no planalto piratininga para o início da “formosa povoação”, determinando que
ali fosse construído um colégio favorável à catequese. Sua escolha obedeceria
a uma visão estratégica de defesa contra possíveis ataques de indígenas inimigos:
“Da pequena Igreja, colocada à beira dessa escarpa e no ângulo da mais funda
das suas reentrâncias, não só se dominava o horizonte donde era possível uma
surpresa ou ataque como se podia fazer a polícia da povoação que lhe crescia
na vizinhança”. Haveria, ainda, um plano missionário estratégico maior a
envolver a escolha, também concebido por Nóbrega. A decisão de instalação
no planalto ocorreu por motivos de defesa e expansão da fé. Longe do litoral e,
portanto, de ataques piratas e da vida desregrada, os jesuítas poderiam fundar
uma civilização baseada na moral cristã, dando continuidade à expansão da fé
católica contra os “vândalos embuçados com a capa de reformadores”:

Enaltecendo os jesuítas, deles disse com grande eloquência, o Padre


Américo de Novaes, vulto proeminente da notável Companhia que eram
“verdadeiros guardas avançadas do Catolicismo, empenhados na luta gi-
gantesca contra a heresia, não só combatendo-a de frente e desalojando-a
86
dos baluartes em que se acastelara no Velho Mundo, mas vedando-lhe
também a entrada nas regiões novamente descobertas, onde penetram para
delatar para o domínio da fé, ressarcindo desta arte, na Ásia e na Améri-
ca, os danos que haviam causado à Religião Católica, na Europa, os vân-
dalos embuçados com a capa de reformadores. (A Igreja...1955: 26).

Nóbrega é o responsável pela fundação da cidade de São Paulo; sua re-


presentação é vinculada à imagem de Paulo de Tarso, o Apóstolo, a quem a
fundação do povoado é dedicada, inclusive recebendo o seu nome. Nóbrega é
um guerreiro, um missionário disposto a converter, a catequizar os gentios do
Novo Mundo, como fizera o Apóstolo no Velho Mundo. Aliás, nesse imaginário
o próprio Apóstolo por vezes é tido como um “grande” bandeirante4.
4
“Cultuemos o augusto Padroeiro da Cidade. Rendamos nossas homenagens ao preclaro Santo
que nos patrocina todas as iniciativas e todos os esforços e quer e sabe e pode mansamente
levar-nos à feliz conquista dos nossos destinos – temporais e eternos. Aí o vedes, bem figu-
rado pelo pincel de Edmundo Migliaccio. Dir-se-ia que o artista quis propositadamente dar-
lhe as feições dos nossos audazes “bandeirantes”. Talvez porque “bandeirante” ele o foi de-
veras e no mais alto e lídimo sentido do já consagrado termo.” Discruso proferido em 03/05/
57 na Câmara Municipal de São Paulo por ocasião de inauguração do retrato do Apóstolo
São Paulo. Provavelmente proferido por auxiliar imediato de Dom Carlos Carmello Motta.
Damião Duque de Farias / Revista de História 150 (1º - 2004), 81-95

Como notamos, a presença da Igreja Católica em terras paulistas é mar-


cante e não apenas isto: é fundadora. Por intermédio dos jesuítas, ela está ligada
ao Estado, a Roma, à elite (presente com João Ramalho), mas também ao povo
gentio, que é educado em nome da Igreja e da Coroa. Tal presença, portanto,
é legitimada pela história da cidade, ou melhor, a história da Igreja e da cidade
(do Estado de São Paulo e do Brasil?) se confunde; “Durante este período a
sua vida e a sua obra constituem a própria história da nossa formação Pátria.”(A
Igreja... 1955: 29)
Na verdade, o destino da “formosa povoação” fora traçado, profetizado
por outro “grande jesuíta”, o Padre Anchieta:

Mas entre aqueles evangelizadores recém aportados à terras brasílicas


figurava um adolescente em quem ocorria o dom da antevisão do futu-
ro através dos séculos. Apontava-lhe a instigação do dom profético,
predicado dos eleitos da graça, a consciência daquilo que mais tarde o
levaria a tornar pública a sua profecia a saber: aquela humílima funda-
ção da sua Companhia viria representar uma das maiores tarefas reali-
zadas na terra de Santa Cruz e no Novo Mundo.
Aquele taba de choças do cacique Tibiriçá, reservava-se o mais grandio- 87
so futuro convertendo-se como afirmaria, o noviço canarino na maior
aglomeração do continente Sul Aericano. Em substituição daquele
misérrimo altar de taquaras, cobertas de sapé, erguer-se-iam as naves
de suntuosa Catedral uma das mais destacadas do mundo católico. (A
Igreja... 1955: 29)

De acordo com o texto de Afonso Taunay, intitulado “Quatro séculos


paulistanos”, a cidade estava destinada a ser grande! Assim, a idéia de cresci-
mento se faz presente. “E o taumaturgo do Brasil provavelmente no mesmo
tempo perceberia que à sua humílima casa missionária e as chopanas dela avi-
zinhantes traria o perpassar dos anos a existência de imenso conjunto de enor-
mes edifícios de arquitetura a mais arrojada e variada num vulto incompara-
velmente maior do que o das maiores capitais do seu mundo quinhentista ...”.
(A Igreja... 1955:35)
Ao finalizar seu artigo, Taunay nos remete novamente à idéia de progresso,
patriotismo paulistano, religiosidade, grandiosidade e glorificação: “Permita
Deus que a comunidade paulistana inspirada no mote do seu brasão de armas,
caminhe sempre pela via da honra de seu governo e do progresso moral, intelec-
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tual, material para maior renome da Nação em cuja história seus filhos ins-
creveram numerosos e tão gloriosos florões por vezes repassadas da maior
grandiosidade.” (A Igreja... 1955: 43).
Vejamos um trecho de “Súmula História de Quatro Séculos” de Antonio
de Arruda Camargo:

Plantando o Colégio no cimo da Colina dominada pelo Anhangabaú e pelo


Tamanduateí, começou o frade a catequese do índio. Subindo e descendo
diariamente as suas íngremes ladeiras, alongava cada vez mais o raio de
ação de suas atividades. Não era possível contentar-se com o domínio do
Colégio, ignorando-se o que havia além dessas praias ribeirinhas. E as-
sim desceu ao Tietê, desceu mais até Pinheiros, traçando um grande círculo
que, possivelmente, abrangia o Jaraguá. Quanto, porém, aumentava o
casario do Burgo, ao redor dos muros do Colégio, mais urgente se tornava
a ampliação do círculo, cujo epicentro era a própria Casa de Piratininga,
de onde emanavam todas as forças, todo o entusiasmo daquele movimen-
to que se expandia nas quatro direções. (A Igreja... 1955:61)

88 Na imagem construída sobre as atividades de Nóbrega, confunde-se a São


Paulo de 1554 com a metrópole do IV Centenário, dado o ritmo, as distâncias,
o crescimento. Não podemos esquecer que na década de 50 o antigo Centro
não perdeu sua importância completamente.
O missionário Manuel da Nóbrega também é considerado o “Gigante da
Colonização”. De acordo com a análise histórica empreendida pelos textos ora
estudados, o trabalho do jesuíta faria parte das intenções e ações da Coroa por-
tuguesa, personificada na figura de Dom João III, o “rei Povoador”. Este, ao
lançar as bases para a colonização do Brasil, estabeleceu que não haveria “dis-
tinção entre europeus e aborígenes; mas entre cristãos e indígenas. Cristianizado
o brasilíndio, entra no grêmio nacional, faz parte da comunidade portuguesa”.
Portanto, de acordo com o texto “Manoel da Nóbrega e São Paulo de Piratininga”,
de autoria de Tito Lívio Ferreira, o elemento que distinguiria os indígenas com
a cidadania portuguesa seria a religiosidade católica, a ser difundida entre os
gentios das terras coloniais pelos membros da Companhia de Jesus.
No entanto, o trabalho jesuítico não ficaria apenas no plano religioso. Foi
Nóbrega o disseminador do plano de expansão territorial da Coroa portuguesa
em terras brasileiras. O maioral da Companhia de Jesus teria escrito o seguinte
a Dom João III no ano de 1553:
Damião Duque de Farias / Revista de História 150 (1º - 2004), 81-95

para cumprir com a devoção de Vossa Alteza e com os desejos que em


Nosso Senhor tenho destas partes serem favorecidas dêle, somente lhe
direi alguma coisa desta Capitania de São Vicente onde a maior parte da
Companhia residimos, por ser ela a terra mais aparelhada para a conver-
são do gentio, que nenhuma das outras, porque nunca tiveram guerra com
os cristãos, e É POR AQUI A PORTA E O CAMINHO MAIS CERTO E
SEGURO PARA ENTRAR NAS GERAÇÕES DO SERTÃO, de que
temos boas informações”. (grifo do autor)(A Igreja... 1955: 50)

De fato, o texto de Ferreira refere-se a Nóbrega como o primeiro a tecer


considerações, ainda no ano de 1554, sobre os perigos decorrentes do Tratado
de Tordesilhas, que facilitava a penetração dos espanhóis em terras portugue-
sas. Por isso, Nóbrega teria defendido a vigilância, defesa e o “expansionismo
da obra da catequese ‘nos sertões do Paraguai’”. Aliás, essa teria sido uma
das motivações da fixação no planalto, havendo, inclusive, “várias alusões (na
documentação) em torno da Igreja de São Paulo, que falam de modo eloqüente
deste seu descortinado propósito”. (A Igreja... 1955: 31)
De acordo com os textos analisados, Nóbrega e os demais jesuítas a ele
subordinados foram os primeiros bandeirantes das terras paulistas. Suas inten- 89
ções e ações precederam e profetizaram o bandeirantismo de muito tempo de-
pois. Qualidades consideradas próprias dos caçadores de índios e metais pre-
ciosos não faltavam aos membros loiolanos, “síntese dos sentimentos de fé,
tenacidade, bravura e abnegação”.
É interessante notar que, logo após o texto dedicado à obra de Nóbrega, a
coletânea traz um fragmento do livro Paulistíadas, de Enzo Silveira, e também
do poema “O Bandeirante”, de Olavo Bilac5. Há uma clara intenção de se esta-
belecer relações entre as representações bandeirantes desses textos e a vida e
obra de Nóbrega, relatadas nos vários outros artigos.

5
“Sete anos: combatendo índios, febres paludes/ Feras, reptis, — contendo sertanejos
rudes,/ Dominando o furor da amotinada escolta .../ Sete anos!... ei-lo de volta, enfim,
com seu tesouro! / Com que amor, contra o peito, a sacola de couro / Aperta, a transbor-
dar de pedras verdes! — volta ... / Mas um desvão da mata, uma tarde de sol posto, /
Pára. Um frio livor, se lhe espalha no rosto... / É a febre: o Vencedor não passará dali! /
É a febre: é a morte. / E o Herói, trôpego e envelhecido, / Roto, e sem forças, cai junto
do Guaicuí .../ Na terra que venceu há de cair vencido”.
Damião Duque de Farias / Revista de História 150 (1º - 2004), 81-95

O texto de Tito Lívio Ferreira anota claramente o bandeirantismo profético


de Nóbrega quando diz:

Padre Manoel da Nóbrega profetiza: ‘É por aqui a porta e o caminho


mais certo e seguro para entrar nas gerações do sertão’, porque antevê,
no seu espírito arguto, os bandeirantes rumo ao oeste, na formidável jor-
nada do devassamento da terra brasileira, meio século antes dos paulis-
ta começarem a formigar por todos os quadrantes do continente.(...)
Também na carta de 15 de junho de 1553 reafirmara a constante de seu
pensamento, sobre a centralização de poderes nas mãos do rei, para unifi-
cação territorial brasileira. (A Igreja... 1955: 50)

Na verdade, trata-se de uma leitura histórica orientada pelo “destino ma-


nifesto” paulista: ser a locomotiva da nação6.
Ainda sobre a ação missionária de Nóbrega, outros feitos são caracteri-
zados em favor da formação do território nacional brasileiro. Destacam-se,
por exemplo, sua atuação no Tratado de Iperoig, quando foi selada a paz com
os tamoios (aliados aos franceses), e também o assalto aos franceses na Guana-
90 bara, quando os expulsou daquela região.
O território da província portuguesa do Espírito Santo para baixo estava
ameaçado agora de desagregação, com a presença dos franceses na Guanabara.
Urgia desalojá-los dali definitivamente.

era o pensamento inflexível de Nóbrega, senhor profeta do futuro do


Brasil. Neste momento, pela última vez, sua figura ia sobrepujar a de
todos; ele ia representar no palco histórico a última epopéia de sua via
épica. Preparou a luta e assumiu a responsabilidade dela. Com arrojo

6
“Não terá sido sem particular desígnio da Providência. Se de São Paulo partiram os
destemidos bandeirantes, que, deslocando o meridiano de Tordesilhas, alargaram consi-
deravelmente as fronteiras da então colônia portuguesa – em que outros ombros mais
robustos poderia descansar a responsabilidade de manter íntegro o território da nova nação
que surgia no continente americano? A que outros braços mais afeitos ao manejo das
armas se havia de confiar a defesa da terra e da gente brasileiras, entregues doravante à
sua própria sorte? E em que outros peitos mais fundo se radicara a invicta paixão da li-
berdade?” Discurso proferido por ocasião da comemoração da Independência do Brasil,
provavelmente de Dom Carlos Motta, s/data.
Damião Duque de Farias / Revista de História 150 (1º - 2004), 81-95

admirável, dispõe-se a desfalcar a defesa de São Vicente, a fim de en-


grossar a tropa a seguir para o Rio. Por seu intermédio, o mais adiante
glorioso Estado de São Paulo ia dar tudo que tinha em favor da unida-
de nascente da nossa pátria.(A Igreja ... 1955: 57)

Com base nesses atos, pode-se dizer que Nóbrega é, para os autores ora
analisados, o fundador da Nação na representação dominante que conhecemos:
seu território e sua unidade religiosa. Para completar o quadro, falta ainda con-
siderar a formação do povo nacional, da sociedade brasileira em seus aspectos
social e moral. Aqui também a obra jesuítica teria sido de destaque.
Evidentemente o povo nacional em formação era composto por índios e
mestiços catequizados pelos jesuítas e que estabeleceram alianças com o colo-
nizador português. Antonio de Arruda Camargo anota que o cacique Tibiriça,
sogro de João Ramalho, é considerado a origem simbólica desse povo em for-
mação. “Martim Afonso - nome que adotou quando recebeu o batismo, em
homenagem ao grande amigo, cujas virtudes tanto admirava - Tibiriça é o enca-
deamento dos fatos. É o tronco, o primeiro varão da terra. A origem do povo
paulista.” (A Igreja... 1955: 61)
91
Aqueles considerados rebeldes ao cristianismo e às intenções dos coloniza-
dores eram desqualificados como povo nacional. Serão estrangeiros em suas
próprias terras, caçados, guerreados e mortos, como no episódio da Guerra
dos Tamoios. O plano colonizador de Nóbrega apresentava, pois, a intenção
de catequizar e aliciar para o trabalho os milhares de índios do Novo Mundo.
Assim, Ferreira analisa o Plano de Jesuíta Provincial:

Nos seus aspectos fundamentais o plano nobreguense quer servir à ci-


vilização brasileira: combate à antropofagia e nomadismo indígena;
estabelecimento da monogamia e do trabalho agrícola; autoridade ci-
vil e educação em bases cristãs. O plano de Nóbrega foi executado em
parte por Duarte da Costa. Mem de Sá não lhe opôs reservas algumas.
E daí a perfeita compreensão e unidade de vistas entre o governador
do Brasil e o provincial da Companhia. (A Igreja... 1955: 56).

Outros ações envolvendo os missionários poderiam ser destacadas, como


por exemplo, os esforços dos membros da Companhia de Jesus para a formação
a uma língua geral do povo nacional. Por isso, o seu principal, o Padre Manuel
da Nóbrega, é considerado um verdadeiro estadista, o primeiro estadista
Damião Duque de Farias / Revista de História 150 (1º - 2004), 81-95

brasileiro. Todo esse conjunto de intenções e ações proféticas revelam ou estão


envoltos na representação do “destino manifesto paulista”. No plano histo-
riográfico, essa representação apresenta o Estado de São Paulo como o sentido
e, ao mesmo tempo, o sujeito histórico de toda realização e grandeza nacional.
Tais elementos são perceptíveis nos textos analisados, por exemplo como des-
taca Tito Lívio Ferreira:

Iniciado com Tomé de Souza e prolongada até Mem de Sá, cerca de vinte
anos, a obra de Nóbrega não tem paralelo na história do Brasil e na Histó-
ria de São Paulo. E São Paulo foi fundada por Manoel da Nóbrega, por ser
o posto-chave da colonização e da catequese. (A Igreja... 1955: 58).

Ou seja: São Paulo não se tornou apenas o “posto-chave”, ele já o era antes
da escolha: este era o seu destino.
Como se vê, em A Igreja dos Quatro Séculos de São Paulo - 1554-1954, a
análise da presença da Igreja nos quatro séculos de São Paulo foi reduzida ao
período colonial, com destaque para os seus primórdios e a atuação de Manuel
da Nóbrega na colônia portuguesa. Os demais períodos, o imperial e o repu-
92
blicano, carecem de textos analíticos. Quanto ao período imperial, temos um
único texto de dimensões reduzidas e que aparece separado, na estrutura do
livro, dos demais textos de análise histórica. Para o período da República não
há textos analíticos. Por quê ?
Ao tentar responder à questão, podemos levantar dois argumentos, ainda
que inseguros:

a) o período inicial da presença da Igreja Católica no Brasil, em particular dos


jesuítas na Capitania de São Vicente, ajusta-se mais facilmente com as repre-
sentações tradicionais do passado paulista, em especial com seus signos mais
fortes: o bandeirantismo (deslocado de sua singularidade histórica e estendido
a uma representação total do passado paulista, com suas idéias fortes - bravura,
independência, modernidade, etc.) e São Paulo - Nação (o Estado de São Paulo
considerado a locomotiva do país, lugar original das iniciativas que formaram
o Brasil: seu território, seu povo, seu espírito moral, sua independência e sua
liberdade republicana);
b) por outro lado, tal período da história da Igreja no Brasil fortalece a
autocompreensão ultramontana católica dos anos 50 naquilo que essa
representação apontava como características de todo o mundo católico: a ação
Damião Duque de Farias / Revista de História 150 (1º - 2004), 81-95

catequética (os anos 50 no Brasil são especialmente ricos em iniciativas


favoráveis ao catecismo popular), a reforma dos costumes (era o objetivo
principal da Ação Católica, levando os “verdadeiros” sentimentos cristãos até
a população, retirando-lhe ou reformando sua religiosidade devocional) e a
aliança com o Estado (tal como a Igreja, o Estado e a família eram considerados
modelos de sociedades perfeitas a serem orientadas moralmente pela Igreja).

Mesmo o pequeno texto intitulado “A Igreja em São Paulo no Período


Imperial” aponta para os elementos apresentados acima: notam-se várias
críticas às teorias liberais no interior da Igreja - cujo expoente da época era o
Padre Feijó -, consideradas um desvio do verdadeiro credo católico. O Cônego
Luiz Castanho de Almeida, autor do texto, inclusive caracteriza como atitude
sem propósitos a idéia da separação entre a Igreja e o Estado.
Ao analisar as realizações da Igreja durante o período imperial, Almeida
destaca as atuações dos dois principais bispos reformadores ultramontanos da
segunda metade do séculos XIX: Dom Antonio Joaquim de Melo (1852-1861)
e Dom Lino Deodato de Carvalho (1874-1894). O primeiro foi o responsável
pelas mudanças na formação dos membros do clero paulista e parte do clero 93
brasileiro, ao propugnar a criação de seminário na cidade de Itu, trazendo como
docentes um grande número de católicos pertencentes às ordens mais afinadas
com a ortodoxia defendida por Roma. Já Dom Lino Deodato de Carvalho é,
entre outros feitos, o responsável pela introdução da devoção ao “Sagrado
Coração de Jesus” e das “Filhas de Maria” no Brasil que, com o passar do
tempo, substituíram as antigas associações populares devocionais caracterís-
ticas do período anterior. Essas novas práticas devocionais e associativas do
catolicismo romanizado ainda eram, na década de 50 deste século, as mais
freqüentes nos meios populares.
Com relação ao período republicano, há no conjunto dos textos analisados
um grande silêncio. É difícil encontrar uma resposta que seja razoavelmente
convincente. Dentro de nossa linha de análise, faremos apenas conjecturas.
O período republicano dificilmente serviria à construção da representação his-
tórica positiva que verificamos até agora, uma vez que, no tocante à religião,
alguns fatos marcantes dentro da República foram: a separação oficial entre a
Igreja Católica e o Estado, a liberdade de culto (o liberalismo religioso) e as
contendas entre as duas instituições, sendo constante o ataque da Igreja ao
agnosticismo presente nas instituições e no meio elitista republicano.
Damião Duque de Farias / Revista de História 150 (1º - 2004), 81-95

É bem verdade que durante todo o período republicano e após a primeira


década do século XX, ocorrera uma sensível melhora no relacionamento entre
as elites que comandavam o Estado brasileiro (principalmente o Estado de São
Paulo) e a hierarquia católica. No entanto, essa assertiva não é suficiente para
a construção de uma imagem positiva de tal relação. De uma maneira geral,
durante o primeiro período republicano, as instituições e os costumes das elites
são condenados pela Igreja.
Bastante diferentes são as relações entre as duas esferas após os anos 20
e principalmente após a década de 30, na Era Vargas, quando verificamos uma
grande aproximação entre Igreja e Estado, colaborando mutuamente na cons-
trução do regime autoritário. Nesse processo destacam-se duas personalidades
não originárias de São Paulo: o Cardeal Leme e Getúlio Vargas. Aparentemente
o destino histórico do Brasil fugia das mãos paulistas. Tratava-se, na verdade,
de uma continuidade histórica com outros caminhos. A Igreja paulista não era
protagonista desse novo processo de entendimento, aliás, colocou sérios obstá-
culos a ele tanto no episódio de 1930 como no de 1932, quando não mediu
esforços para combater ao lado dos “paulistas”. Mas, mais importante era que
94 a hierarquia católica nutria uma vontade de distanciamento em relação ao var-
guismo, não apenas em função da crise conjuntural que viveu o governo fede-
ral, que resultou no suicídio de Getúlio Vargas, como principalmente em rela-
ção à memória do período ditatorial do Estado Novo, com o qual colaborou
nacionalmente, mas que após a Segunda Guerra e a derrota do fascismo, procu-
rava distanciar-se daquelas vinculações ideológicas. O segundo governo de
Vargas (1951-1954) foi bastante combatido pela imprensa católica de São
Paulo, particularmente através de seu importante jornal “O Legionário”.
Portanto, nem a Primeira República, nem a Segunda República são perío-
dos ideais para a representação histórica presente nos textos da coletânea A
Igreja dos Quatro Séculos de São Paulo: 1554 - 1954.
Concluindo, podemos dizer em primeiro lugar, o livro possui, em sua análise
histórica, as características da historiografia e das representações do passado da
elite paulista: o espírito bandeirante e a vocação nacional dos paulistas (no decorrer
da coletânea, é significativa a reprodução de figuras e retratos de bandeirantes
paulistas bem como de instrumentos geralmente vinculados a sua imagem); em
segundo, a referida obra é claramente marcada pelo contexto, ou seja, as
comemorações pelo IV Centenário da cidade de São Paulo, a construção da nova
Catedral da Sé e os novos movimentos de catequese inspirados no catolicismo
romanizado, bem como por uma rejeição à herança varguista ou pelo medo da
Damião Duque de Farias / Revista de História 150 (1º - 2004), 81-95

força social deste poder político-teológico, que em uma visão perspectiva do


passado apresentava delineamentos para envolver a sociedade em uma ideologia
sacralizada, mas não propriamente controlada pela Igreja Católica.
Assim, instaura-se um passado católico em São Paulo relacionado com a seleção
dos momentos e de determinados elementos históricos, recaindo a preferência sobre
a presença dos jesuítas em terras paulistas na primeira fase colonial e sobre a fundação
oficial da cidade de São Paulo. Nos demais períodos, são escolhidos os fatos e atores
que não chocam a representação geral que, entre outras coisas, procura mostrar a
força perene da religiosidade católica em terras paulistas e brasileiras.
Trata-se, portanto, de uma imagem histórica descontínua e, no entanto,
linear. Podemos também dizer que é uma história elitista, pois retrata tão so-
mente a visão e os feitos de uma parcela da hierarquia católica, o que lhe imputa
um caráter fatalista e triunfalista. A iconografia apresentada ao longo da obra
confirma nossas afirmações: retratos de membros da elite eclesiástica paulista,
de reis, governadores e papas e seus símbolos.
As camadas populares não estão presentes nessa história, a não ser como
vencidos. Sua representação ocorre através da figura do índio catequizado e aliado
dos colonizadores. Aos membros do baixo clero, índios, negros, trabalhadores 95
pobres e mulheres que de fato foram responsáveis, ao longo dos séculos, pela
expansão da religião católica no Brasil foi concedido apenas o silêncio.

Referências Bibliográficas
A Igreja dos Quatro Séculos de São Paulo: 1554-1954. São Paulo: Editora
Documentários Ltda, 1955.
FARIAS, Damião Duque de. Em defesa da ordem: aspectos da práxis católica
no meio operário em São Paulo (1930-1945). São Paulo: História Social –
USP, Ed. Hucitec, 1998.
História da Igreja no Brasil: ensaio de interpretação a partir do povo. São Paulo:
Ed. Paulinas; Petrópolis: Vozes, 1992, 3a edição.
LUSTOSA, Oscar F. A Igreja Católica no Brasil República. São Paulo: Paulinas, 1991.
MAINWARING, Scott. Igreja e política no Brasil: (1916-1985). São Paulo:
Brasiliense, 1989.
VILLAÇA, Antônio Carlos. O pensamento católico no Brasil. Rio de Janeiro:
Zahar, 1975.
WERNET, Augustin. A igreja paulista no século XIX. São Paulo Ática, 1987.
,
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ARTIGOS

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A HISTÓRIA NAS ESTÓRIAS
DAS MULHERES DO RAJ

Cielo G. Festino*
Doutoranda em Letras Modernas - FFLCH/USP

Resumo
Nosso artigo tem como intuito mostrar a centralidade da literatura das
mulheres do Raj durante a presença do império britânico no subcontinente
indiano. Com esse propósito analisaremos três contos, escritos entre o
fim do século XIX e início do século XX, para mostrar como essas escrito-
ras vão além dos limites da ficção do pitoresco, o local epistmológico a
que elas são relegadas pelo discurso imperial, para expressar a sua visão
da história colonial.

Palavras-Chave
História • Estória • Pitoresco • Anedota • Hermenêutica do Cotidiano

Abstract
In this article we propose to discuss the relevance of the literature written
by the women of the Raj during the time of the English Empire on the
Indian subcontinent. Therefore we will interpret three short stories written
at the end of the nineteenth and beginning of the twentieth century to show
how these women writers go beyond the ‘literature of the pictureseque’,
the epistemological locus in which they are imprisoned by imperial
discourse, in order to express their own views on colonial history.

Keywords
History • Fiction • Picturesque • Anecdote • Hermeneutics of everyday life

* Bolsista do CNPq.
Cielo G. Festino / Revista de História 150 (1º - 2004), 99-127

I. Introdução
O propósito do presente artigo é elaborar uma releitura de textos literários
escritos pelas mulheres do Raj (governo imperial inglês na Índia) com o intuito
de mostrar como, embora reduzidos ao pitoresco, o anedótico e o cotidiano
são centrais no projeto da história colonial. Essas narrativas pertencem à
tradição literária “anglo-indiana”, ou seja, a literatura inglesa sobre a Índia
escrita principalmente pelos oficiais coloniais ingleses, suas mulheres,
viajantes e demais ingleses residentes no sub-continente, na segunda metade
do século XIX e primera metade do século XX.
Segundo Jacques Derrida, o conceito do suplemento carrega em si mes-
mo duas significações. Por um lado, o suplemento se acrescenta a si mesmo;
é um excedente, uma plenitude que enriquece uma outra plenitude mas, por
outro lado, o suplemento se acrescenta para substituir, se insinua no “lugar
de”. Se prencheer, é como preencher um vazio. Se representar e fizer uma ima-
gem, é pela omissão de uma presença (1992:83).
Entendemos que esse segundo caráter do suplemento, segundo a definição
de Jacques Derrida, se aplica às narrativas das escritoras do Raj porque, embora
100 pensadas como apêndice do discurso histórico colonial masculino no sentido de
que simplesmente acrescentam algo a um original, esses textos fornecem uma
visão aguda do choque cultural que teve lugar nesses anos entre ingleses e indianos,
a ponto de poderem ser entendidos como plenitude ou presença em justaposição
ao discurso sendo suplementado (Menezes de Souza 1994:61). Assim, essas
narrativas femininas parecem superar, implicitamente, nas palavras de Maria Odila
Leite da Silva Dias, “as polaridades tanto das relações de gênero como das
categorias de pensamento” que lhes são impostas (1994:373). No primeiro caso
porque, embora limitadas ao plano do ficcional e, por isso, entendidas como simples
gesto estético, são testemunhas da história de contato que se gerou a partir do
encontro entre colonizador e colonizado e, no segundo caso, devido a este
fenômeno, elas também pertencem ao marco das narrativas da história colonial.
Segundo nossa leitura, quanto mais as autoras tentam reduzir o narrado a
um gesto pitoresco, como que obedecendo à epistemologia imperial, mais se
destaca a consciência da importância histórica daquilo que está sendo contado
e fica mais claro que é nas entrelinhas da estória que a história é narrada.
Lemos essas estórias/histórias, então, como carregadas de “…sentidos implí-
citos, à margem do normativo e do institucional, que podem ser vislumbrados
nas entrelinhas, ou nos intervalos intertextuais, de certa forma sempre subver-
sivos da ordem, do permanente, cuja existência negam” (Silva Dias 1994:377).
Cielo G. Festino / Revista de História 150 (1º - 2004), 99-127

Ao mesmo tempo, essas narrativas de estilo oblíquo e impregnadas de


silêncio em seu desejo de auto-redução à linguagem do decoro (característica
da literatura vitoriana do século XIX e conveniente ao discurso colonial) falam
também, de maneira eloqüente, não só do confinamento da mulher inglesa
dentro dos limites do cantonment, o exclusivo distrito dos britânicos nas cidades
da Índia, mas também das próprias narrativas ditas pitorescas.
Segundo apontado, essas estórias foram escritas durante a segunda metade
do século XIX e a primeira metade do século XX, momento significativo das
narrativas inglesas sobre a Índia, porque nessa época a resistência indiana ao impe-
rialismo britânico foi muito intensa e organizada devido à formação do Movimento
Nacionalista Indiano pela Independência, o que por sua vez representou uma gran-
de ameaça para o governo britânico na Índia. O que isto produziu foi uma narrativa
ainda mais articulada por parte dos britânicos sobre a importância da sua presença
no subcontinente (Hubel 1996:2). É com esse pano de fundo que as mulheres escri-
toras que estudaremos a seguir constroem seus textos.
Para mostrar então como o discurso da história, associado com o real, é sufo-
cado nessas estórias, consideraremos primeiramente a redução da Índia ao exó-
tico como parte da missão civilizatória dos ingleses no subcontinente em “Lâl” 101
(1894) de Flora Annie Steel; a recriação dos temas das narrativas mestres da
história colonial, como o Amotinamento de 1857, através do anedótico em “Ann
White” (1901) de Alice Perrin e o estudo da “hermenêutica do cotidiano” (Silva
Dias 1994), segundo apresentado em “Uma mãe na Índia” (“A Mother in India”)
(1903) de Sara Jeannete Duncan. Enquanto as duas primeiras escritoras mencio-
nadas são inglesas, Sara Jeannette Duncan é canadense. Porém incluímos a sua
narrativa porque entendemos que, embora de outra colônia do império, os
colonos originários da Inglaterra que moravam no Canadá se acreditavam
brancos e ingleses e, portanto, diferentes dos outros nativos.
Como marco teórico, consideraremos os artigos “O pitoresco feminino”
(“The Feminine Picturesque”) (1992) da crítica paquistanense Sara Suleri,
“Novas subjetividades na pesquisa histórica feminista: uma hermenêutica das
diferenças” (1994) da historiadora brasileira Maria Odila Leite da Silva Dias,
assim como os estudos sobre escritores do Raj de Benita Parry (1972), Teresa
Hubel (1996) e Patrick Brantlinger (1988).
Cielo G. Festino / Revista de História 150 (1º - 2004), 99-127

II. Relendo as narrativas femininas do Raj


No seu livro A retórica da Índia inglesa (1992), Sara Suleri explica que
nas narrativas das mulheres inglesas na Índia, sua responsabilidade social es-
taria limitada a reafirmar a qualidade do pitoresco na imagem do Outro indiano.
Suleri acrescenta que, como etnógrafas amadoras, as mulheres podiam “…
desenhar a paisagem ou representar fisonomias. Porém, elas tinham que se
manter alheias a qualquer conclusão sociológica de seus própios dados. Elas
podiam se aventurar no terreno do político com um interesse estético, mas
nunca para analisá-lo1 ” (1992:74). Então, nas narrativas literárias femininas,
como contos e romances, o nativo e a vida na Índia são domesticados em ima-
gens que pretendem refletir a visão aceita e garantida pelo Raj.
Mas toda representação textual é uma construção de significados, já que
ela é, em si mesma, uma forma de interpretação daquilo que está sendo narrado.
Então o olhar etnográfico das inglesas, embora amador e tentando se restringir
ao estético, implica uma criação do Outro em que o posicionamento ideológico
nunca se separa do elemento estético. Aliás, como aponta Bakhtin (1981), uma
das características da linguagem é o seu caráter heteroglóssico, já que as pala-
102 vras nos precedem e são carregadas de significados, além daqueles que quere-
mos imprimir através da nossa ilusão de agência. Assim, as estórias/histórias
aqui analisadas, ao mesmo tempo em que querem guardar seu lugar periférico
no discurso imperial, denunciam não só a visão histórica das mulheres, que
tanto pode reafirmar como contradizer o olhar masculino, mas também o pró-
prio sentido de confinamento em uma estrutura social da qual elas nunca dizem
abertamente serem vítimas. Em outro nível, essa tensão entre o dito e o não-
dito vem demonstrar a repressão da mulher no discurso colonial e, ao mesmo
tempo, segundo o conceito de Silva Dias (1994), o seu desejo de subvertê-lo
indo além dos papéis normativos que lhes são impostos.

1
Nossa tradução.
2
Flora Annie Steel escreveu romances dentre os quais se destacam The Potter´s Thumb
(1894), On the Face of the Waters (1896), e coletâneas de contos como From the Five
Rivers (1893), The Flower of Forgiveness (1894), In the Permanent Way and Other Stories
(1898) e In the Guardianship of God (1903).
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II.1 “Lâl”: além dos limites do pitoresco


Flora Annie Steel (1847-1929) foi uma das escritoras mais prolíferas do
2
Raj . Como os oficiais britânicos, ela também sentia que conhecia de perto a
cultura indiana, não só pelo fato de morar na Índia mas porque, junto com o
seu marido, muitas vezes esteve em postos militares britânicos onde eles eram
os únicos brancos. Ela ajudou nas escolas, ensinou inglês e também aprendeu
línguas locais.
Segundo a crítica Benita Parry, sua existência na Índia foi menos vicária
em relação à de outras mulheres inglesas. Porém, Steel escreveu na sua auto-
biografia que o fato de conhecer as línguas dos indianos e estudar os seus hábitos
e costumes, era a melhor maneira de os controlar, o que significa que seu desejo
não era conhecê-los mas sim manter o seu lugar de poder. Ao mesmo tempo, Parry
explica que para Steel, quando o homem branco faz parte do contexto indiano,
defronta-se com costumes tão primitivos que, se ele não tentar manter certos limites,
poderá perder sua equanimidade e o respeito do nativo como senhor. Então, para
Steel, conhecer o colonizado significa digerir aquela informação que será útil para
melhor governá-lo. Essa ideologia vai se refletir em sua literatura, numa leitura
da Índia que claramente vai além dos limites do pitoresco.
103
Assim, os eventos que Steel narra nas suas estórias e romances são apre-
sentados de tal maneira que a vida do indiano, na terminologia de Homi Bhabha
(1992), é narrada como uma contingência no fluir da experiência britânica na
Índia, porque mais do que tentar contar a estória/história do Outro, nos seus
próprios termos, a autora está preocupada com o seu lugar de enunciação como
uma maneira de reafirmar a identidade inglesa e justificar a sua presença num
local onde se sabe ser invasora.
Assim, embora “Lâl”, o conto que estudaremos a seguir, faça parte do seu
livro Tales from the Punjab (1894), a Índia continua sendo a grande personagem
ausente porque para Steel é quase que impossível resignificar a vida do indiano
a partir dos seus próprios códigos sociais, uma vez que sua missão civilizatória
ignora as diferenças culturais, devido ao seu desejo de se auto-impor. Nas pala-
vras de Suleri, “A Índia é aquele local ausente que as narrativas anglo-indianas
do século dezenove tentam representar mas que nunca podem possuir. Nesse
processo, as identidades nacionais e culturais desaparecem no vazio da repre-
sentação”3 (1992: 48).

3
Nossa tradução.
Cielo G. Festino / Revista de História 150 (1º - 2004), 99-127

Em “Lâl” essa idéia está contida no subtexto da narrativa. A estória trata


das experiências de um funcionário da administração do império na Índia numa
de suas viagens de reconhecimento do subcontinente, com o objetivo de marcar
a área fértil do rio Hindus e, assim, “racionalizar” os cultivos segundo os pa-
drões ingleses. Seu desejo de impor sua própria lógica não se reduz à geografia,
mas se faz extensivo às comunidades de camponeses indianos com os quais
ele se defronta.
O que é significativo na narrativa de Steel é o fato de ela escolher um nar-
rador masculino e não feminino. Entendemos que isso se deve ao fato de ela
estar ciente de que sua narrativa vai se concentrar em um tipo de experiência
que vai além do limite do pitoresco e, por isso, é privativa dos homens, já que
só eles podiam se aventurar em lugares longínquos. Então, por um lado, ela
se constrói como sujeito narrador colocando-se atrás do olhar masculino, com
a pretensão de se restringir ao lugar designado à mulher ao mesmo tempo em
que, por outro lado, ela subverte esse locus de enunciação para se pronunciar
sobre a história colonial, paradoxalmente, segundo a visão feminina.
Nessa viagem, o narrador se defronta com uma personagem lendária chamada
104 “Lâl” que é apresentada como parte do mistério que os ingleses associam à Índia:

Quem era Lâl? O que era ele? Essa era uma pergunta que eu fazia muitas
vezes: e embora ela fosse devidamente respondida, Lâl permanecia, e
permanece ainda, uma quantidade desconhecida – uma abstração, um
nome e nada mais. LAL. O mesmo de frente para trás, contido em si
mesmo, auto-suficiente (51)4

Embora aceitando que seu questionamento tenha sido respondido, o nar-


rador segue com a mesma interrogação do princípio: ele não pode entender
as palavras dos indianos porque sempre tenta decodificá-las segundo seus
próprios parâmetros culturais. A pergunta que o narrador de Steel coloca re-
forçaria, por um lado, o grande desconhecimento que os ingleses tinham do
subcontinente já que, para ele, Lâl tanto pode ser um objeto como uma pessoa,

4
“Who was Lâl? What was he? This was a question I asked many times; and though it was
duly answered, Lâl remained and remains still, an unknown quantity – an abstraction, a name
and nothing more. LAL. The same backwards and forwards, self-contained, self-sufficing”.
Cielo G. Festino / Revista de História 150 (1º - 2004), 99-127

indiretamente mostrando como, para os ingleses, os indianos, mais que hu-


manos, seriam parte da geografia. Por outro lado a pergunta mostraria o seu
desejo de controle ao tentar reduzir o Outro ao seu próprio discurso. Assim, a
narrativa se estrutura a partir da pergunta e não da resposta. Por sua vez, o
que se lê nas palavras do indiano, além da intencionalidade da autora, é sua
maneira pacífica de resistir: “Ora, Lâl era Lâl” (53)5, porque a Índia era a Índia
e para eles, indianos, a sua própria cultura estava além de toda explicação.
Mas o narrador insiste com a mesma categoria de perguntas que, uma vez
mais, falam mais do contexto de enunciação de onde elas foram formuladas
do que do desejo de tentar se comunicar com o Outro. A próxima passagem
do texto mostra o questionamento ainda mais longe do indiano quando o inglês
tenta medir o desconhecido em termos de impostos, o seu verdadeiro interesse:

Detido pela minha curiosidade, refugiei-me nos negócios perguntan-


do que impostos Lâl pagava em seu campo. Isso foi demais para a gravi-
dade educada dos meus ouvintes. A idéia de Lâl pagando impostos era
evidentemente irresistivelmente cômica, e o venerável bufão se engas-
gou entre uma tossida e uma risada, pedindo para ser erguido e levar
uns tapinhas nas costas (54)6.
105

Interpretamos o fato de o inglês tentar reduzir a cultura do Outro, neste caso


representada por Lâl, segundo a sua própria racionalidade, como uma manifestação
do medo do colonizador, sempre latente no contato com o Outro, de ser
contaminado pela cultura local e assim enfraquecer o seu local de poder. Con-
forme já apontamos anteriormente, nesse contexto, aquilo que resiste ao impulso
de tradução cultural do colonizador é reduzido a uma contingência. Segundo a
teoria de Menezes de Souza7, isso vem demonstrar que há um grande desejo na

5
“Why Lâl was Lâl”.
6
“Baulked in my curiosity, I took refuge in business by inquiring what revenue Lâl paid
on his field. This was too much for the polite gravity of my hearers. The idea of Lâl paying
revenue was evidently irresistibly comic, and the venerable pantaloon choked himself
between a cough and a laugh, requiring to be held up and patted on the back”.
7
O tema da relação entre símbolo e signo foi um tema desenvolvido pelo Prof. Dr Lynn
Mario T. Menezes de Souza no curso de pós-graduação “Identidade e Narrativa” minis-
trado no Departamento de Letras Modernas da Universidade de São Paulo no segundo
semestre de 2002.
Cielo G. Festino / Revista de História 150 (1º - 2004), 99-127

literatura colonial de domesticar a cultura do Outro apresentando-a como símbolo


e não como signo no sentido de não tentar resignificar esses costumes considerados
exóticos. Isto é, reconsiderar o significante, em termos do seu contexto cultural, o
significado que lhe é conferido pela própria comunidade.
Então, quando a cultura do Outro não se encaixa nos parâmetros racionais
do colonizador, ela é obliterada ou reduzida a um mistério: “Há tantos mistérios
na vida camponesa indiana, seguramente escondidos dos olhos alheios, que
eu me contentava preguiçosamente em deixar Lâl e seu campo cair no limbo
das coisas não inteiramente compreendidas e, então, logo eu me esqueci
completamente dele” (54)8.
O que se vê pelas fissuras da estória é o que a autora, através de seu
narrador, conta sobre a história do encontro/desencontro entre colonizador e
colonizado. E assim temos, por um lado, a falta de interesse do colonizador
em conhecer a cultura do Outro e, pelo outro, a resistência do colonizado por
meio de um discurso propositalmente irônico, carregado de silêncios e enigmas
já que, enquanto o narrador tenta fixá-lo num estereótipo, as suas respostas,
que o colonizador considera como infantis ou simplórias, representam seu
106 modo de resistência a um desejo de controle.
Como já for apontado, uma das características da literatura feminina seria
a suposta pretensão de se manter neutra com relação ao narrado, nas margens
dos textos históricos do projeto colonial. Assim como nas narrativas de viagem,
a maior parte de “Lâl” tem a ver com a descrição da paisagem através de um
texto aditivo de coordenação, mais do que um texto explicativo de subordi-
nação. O primeiro estilo discursivo se restringiria a uma simples enumeração
de tudo aquilo que o narrador enxerga, num desejo (caso fosse possível) de
representação mimética da realidade na qual a interpretação do narrador está
ausente. O segundo modo, ao estabelecer uma hierarquia entre os termos re-
presentados, implicaria um posicionamento critico com respeito ao que está
sendo narrado:

8
“There are so many mysteries in Indian peasant life, safe hidden from alien eyes, that
I was lazily content to let Lâl and his field slip into limbo of things not thoroughly unders-
tood, and so, ere long, I forgot all about him.”
Cielo G. Festino / Revista de História 150 (1º - 2004), 99-127

Assim, de uma cena de perda ou ganho para outra, enquanto o sol bri-
lhava no céu claro. Por poças de água cristalina onde garças-azuis de
bico vermelho se equilibravam sobre uma perna, como se sentissem frio
no ar revigorante da manhã. Nos trechos desertos de areia onde córregos
límpidos e bandos de garças brancas combinavam para formar um bor-
dado prateado na imensidão marron. Por sobre o vau raso onde jacarés
narigudos entravam silenciosamente no córrego, ou ficavam imóveis
como sombras na areia escaldada pelo sol. Descendo o grande rio, onde
a água sinuosa se partia para a esquerda ou direita, e onde os anciãos
deitavam na água seus potes de barro para decidir qual dos dois córregos
iria provar sua força levando o maior número deles – uma questão de
peso, não facilmente resolvida, uma vez que a terra à oeste do grande
córrego pertencia a um vilarejo, e a terra à leste pertencia a outro (52)9.

Nessa geografia detalhadamente explicada em termos de advérbios de


lugar, onde o tempo não parece transcorrer, a Índia aparece como que estag-
nada através dos séculos, enquanto o indiano se confunde com as caracterís-
ticas estáticas da paisagem, não tendo, assim, nem nome nem fisionomia clara.
A obliteração do cronotopo10 do indiano na narrativa de Steel responde 107
ao que Sara Suleri chama de “uma estética amorfa”, na qual o nativo é reduzido
a um tempo que claramente difere daquele do narrador. Nesse contexto, a cul-
tura da Índia é apresentada de maneira sincrônica, segundo a qual o indiano
vive num estágio do passado anterior ao do colonizador, enquanto este, sujeito

9
“So from one scene of loss or gain to another, while the sun shone in the cloudless sky
overhead. Past pools of shining water where red-billed cranes stood huddled up on one
leg, as if they felt cold in the crisp morning air. Out on the bare stretches of sand where
glittering streams and flocks of white egrets combined to form a silver embroidery on
the brown expanse. Over the shallow ford where the bottle-nosed alligators slipped silently
into the stream, or lay still as shadows on the sun-baked sand. Down by the big river,
where the swirling water parted right and left, and where the grey-beards set their earthen
pots a-swimming to decide which of the two streams would provide its strength by bearing
away the greater number, -a weighty question, not lightly decided since the land to the
west of the big stream belonged to one village, and the land eastward to another”.
10
Mikhail Bakhtin (1981:425) define o “cronotopo” como uma unidade de análise para estu-
dar a natureza das categorias temporais e espaciais representadas nos textos. A diferença desse
conceito com outros usos de tempo e espaço na análise literária encontra-se no fato de que
nestes ambas categorias são interdependentes e, portanto, nehuma delas é privilegiada.
Cielo G. Festino / Revista de História 150 (1º - 2004), 99-127

cartesiano, vive entre o presente e o futuro. Assim, ao fixar o Outro numa ima-
gem pitoresca que o desfigura, a escritora coloca-se numa situação de controle
e poder que a protege frente ao desconhecido.
Nesse sentido, o indiano é apresentado como um ser sem qualquer tipo de
conhecimento científico, já que para os ingleses os seus métodos de controle sobre
a natureza, como no caso das enchentes do Hindus, são irracionais. Por sua vez,
o narrador é um funcionário do governo, que todo ano vem, com seu conhecimento
onipotente, tentar controlar até os rios da Índia a serviço da coroa britânica:

Pois ano após ano, armado da majestade da lei e escudado por réguas
e mapas, o Governo da Índia, na pessoa de um de seus oficiais, vinha
gravemente e alterava as proporções de terra e água na superfície do
globo, enquanto o rio gorgolejava e formava covinhas, como se risse
furtivamente (50)11.

Se a ameaça que os indianos representam para os ingleses pode ser diluída


quando apresentada sob a perspectiva do exótico, também a violência do pro-
jeto colonizador fica disfarçada quando o desejo de possuir e controlar está
108
encoberto pelas descrições de caráter pitorescas do rio e da natureza.
Porém, aquilo que se tenta reprimir vem à superficie nas entrelinhas da
narrativa: “Mas a implacável corrente de ferro seria reclamada, e um outro
trecho verde seria marcado no mapa de impostos, pois Governos ignoram o
acaso. Ainda assim ela formava covinhas e gorgolejava com uma alegria inte-
rior; pois se deu a ervilhaca, não havia tirado o trigo?” (52)12.
A paisagem pitoresca torna-se apenas uma outra possessão do Raj claramen-
te marcada no “Atlas do Império”, ao passo que o rio, com seu mistério, produz
ou destrói colheitas e representa mais ou menos ingressos para o Raj. Uma vez
mais, tudo se reduz ao projeto colonial de ocupar terras e recolher impostos.

11
“For year after year, armed by the majesty of law and bucklered by foot-rules and maps,
the Government of India, in the person of one of its officers, came gravely and altered
the proportions of land and water on the surface of the globe, while the river gurgled and
dimpled as if it were laughing in its sleeve”
12
“But the ruthless iron chain would come into requisition, and another green spot be
daubed on the revenue map, for Governments ignore chance. And still dimpled and gurgled
with inward mirth; for if it gave the vetch, had it not taken the wheat?”
Cielo G. Festino / Revista de História 150 (1º - 2004), 99-127

Segundo tentamos demonstrar através da leitura de “Lâl”, e voltando ao ques-


tionamento de Suleri sobre o lugar das narrativas femininas no projeto colonial,
podemos dizer que elas evidentemente têm o valor de suplemento como plenitude
e não aditivo, já que mais que estilizar o discurso hegemônico masculino, o
desenvolvem revelando a consciência da mulher sobre os objetivos dos ingleses
na Índia. Lido dessa perspectiva, “Lâl” é uma metáfora, altamente ideologizada,
sobre a confronto entre dois estilos de vida suficientemente diferentes para impedir
qualquer tipo de compreensão mútua. Isso colocaria a estória de Steel não na
periferia do pitoresco mas no centro do projeto histórico colonial.

II.2 “Ann White”: Entre a história e a ficção


As escritoras do Raj também adentraram o discurso da história sob a forma
de anedotas, representações de eventos de caráter histórico na forma de estórias
curtas. Conforme Sara Suleri, as mulheres nas colônias transformavam “…a his-
tória em contos ou fábulas. Assim, ao se utilizar dos termos “compassivos” da
anedota, reduziam a violência da história ao mesmo tempo que evitavam exa-
minar as implicâncias simbólicas dessas vinhetas13 ” (1992:100)
Segundo nossa leitura, se por um lado as escritoras do Raj se utilizaram
109
da anedota para narrativizar a história, como uma das formas aparentemente
inocentes de narrar, por outro, o tom e os eventos narrados ultrapassam clara-
mente os limites do gênero. Uma vez mais, essas estratégias mostrariam o de-
sejo de se rebelar contra o locus de enunciação que lhes é imposto, já que enten-
demos que há nessas estórias um desejo implícito das autoras de participar do
projeto de interpretação da história, “…a fim de que se possa emergir, não
apenas a história de dominação masculina, mas sobretudo os papéis informais,
as improvisações, a resistência da mulher” (Silva Dias 1994:274). Dessa ma-
neira, a escrita feminina quebraria furtivamente o cerco que lhe é imposto para
se colocar, uma vez mais, no centro do projeto histórico colonial.
Um dos eventos históricos mais narrados da Anglo-Índia tem sido o Amo-
tinamento de 1857 que, como explica Suleri, foi o epítome da violência do con-
fronto colonial no século XIX. Se para os indianos esse evento representou um
dos primeiros movimentos de rebelião contra a presença inglesa na Índia, para

13
Nossa tradução.
Cielo G. Festino / Revista de História 150 (1º - 2004), 99-127

os ingleses ele foi visto como uma conspiração que confirmava a barbárie dos
indianos, já tantas vezes representada nos textos dos Orientalistas14, o que, por
sua vez, justificava a presença inglesa na Índia como parte da missão civilizadora.
Assim, o Amotinamento tornou-se não só um dos temas principais da nar-
rativa histórica inglesa na Índia mas também motivo de uma literatura melo-
dramática que encontrou inspiração nas atrocidades perpetradas nos sangrentos
eventos. Como assinala Patrick Brantlinger em seu livro Rules of Darkness,
nenhum outro episódio da história imperial britânica teve tanta repercussão
nem produziu tantos artigos de jornais e narrativas históricas e ficcionais como
o Amotinamento de 1857 (1988:199).
Muitas dessas narrativas foram escritas por mulheres, ainda que tempos
depois do Amotinamento, com o objetivo não só de relembrar os fatos, mas
porque o temor de um novo levante estava sempre presente. Tal é o caso do
conto “Ann White” de Alice Perrin.
O público alvo dessa escritora, conforme Benita Parry, eram os ingleses
back home, bem como os anglo-indianos. Seus livros mais conhecidos são duas
coleções de contos, East of Suez (1901) e Red Records (1906), que apresentam
110 mistérios, horrores e uma obsessão pela morte violenta e desastres sinistros.
Em “Ann White” a memória de 1857 é recriada através da figura fantasma-
górica de uma velha mulher, sobrevivente do Amotinamento, cuja mente, ainda
na sua velhice, está fixada nesses eventos, sobretudo no momento em que ela
foi deixada na floresta, vestida com roupas nativas como um último gesto de
desespero da sua mãe para salvar sua vida. Desde então, ela representa para a

14
Segundo Patrick Brantlinger em Rules of Darkness (1988), “A causa imediata da rebe-
lião foi munição para os rifles Enfield; os soldados do exército bengalês suspeitavam
que os cartuchos haviam sido untados com gordura de vaca e porco. As pontas de papel
tinham que ser arrancadas com a boca antes de ser usadas, e uma vez que gordura de
vaca era tabu para os hindus e gordura de porco para os muçulmanos, os britânicos pare-
ciam estar forçando os dois grupos de soldados a cometer um sacrilégio. Havia, é claro,
causas mais importantes – Disraeli disse no Parlamento que ‘a ascenção e queda dos
impérios não são uma questão de cartuchos untados’ – mas a maioria dos analistas bri-
tânicos encontraram insatisfação somente entre os regimentos de nativos, o que os pou-
pou de admitir uma agitação generalizada. Entre os historiadores britânicos e indianos,
o debate ainda se dá sobre se o levante foi apenas um ‘motim’ militar, ou uma ‘rebelião
civil’, bem como, ou como nacionalistas indianos sustentaram, ‘a primeira guerra de
independência da Índia” (200-201) (nossa tradução).
Cielo G. Festino / Revista de História 150 (1º - 2004), 99-127

comunidade a memória viva da rebelião indiana, bem como o temor de que


algo do mesmo tipo possa voltar a acontecer.
A narradora começa o relato num cemitério na Inglaterra, que ela descreve
como um local pacífico e fresco, o qual é, indireta e implicitamente, comparado
ao calor e ao pó (heat and dust) que os ingleses associam à Índia: “pessoas
que moraram no Oriente sentem o calor mais fortemente do que os que nunca
experimentaram meses a fio de dias e noites sufocantes, céus metálicos impla-
cáveis, o clarão branco de um sol mortal” (190)15.
Numa outra passagem, o cemitério inglês é descrito quase que como um
paraíso verde com flores e abelhas, quando comparado com os cemitérios indianos,
nos quais os ingleses, apresentados como vitimas do exílio, são esquecidos:

Quando eu olhei ao meu redor eu pensei: que contraste com os cemi-


térios áridos que eu havia visto na Índia, com seus memoriais descui-
dados das vítimas do exílio, todas as inscrições trágicas que falavam
de mortes prematuras; mulheres e crianças que na Inglaterra poderi-
am ter se recuperado de doenças, homens ceifados em sua juventude,
ou quando a tão aguardada aposentadoria se aproximava; às vezes fa-
mílias inteiras varridas pelo cólera (191)16.
111

O que primeiro parece chamar atenção do leitor é o fato de que esses mor-
tos, segundo a narradora, são vitimas da Índia e não do projeto de conquista
colonial. A presença inglesa no subcontinente nunca é questionada, o que indi-
retamente mostra o posicionamento ideológico da narradora.
Nesse momento, o túmulo de uma mulher chamada Ann White, lembra a
narradora de um outro túmulo, também de uma mulher, chamada Ann White
na Índia. Revelando o caráter misterioso da estória, que denota as convenções
da literatura romântica vitoriana, a narradora entra num estado de vigília e

15
“…people who have lived in the East feel the heat more severely than those who have
never experienced months on end of stifling days and nights, pitiless metallic skies, the
white glare of a death-dealing sun.”
16
“As I glanced about me I thought what a contrast to the arid cemeteries I had seen in
India, with their neglected memorial to victims of exile, all the tragic inscriptions that
told of untimely deaths; women and children who in England might have recovered from
sickness, men cut off in their youth, or when long-looked-for retirement was in sight;
sometimes whole families swept off by cholera”.
Cielo G. Festino / Revista de História 150 (1º - 2004), 99-127

começa a relembrar uma “história” (não “estória”) acontecida na Índia há mui-


to tempo: “Inebriado pelo perfume quente e a paz, eu deixei a história daquela
outra Ann White adentrar minha cabeça, lentamente, vagamente” (192)17. Já
desde o começo, a narradora, leal ao Raj (como a autora mesma do conto),
marca as diferenças entre o olhar masculino e feminino na Índia. Ela lembra
a primeira vez que se encontrou com Ann White:

A primeira vez que a vi foi no começo da estação quente, logo após eu


ter chegado à Índia para cuidar da casa do meu irmão. Ela estava sen-
tada, com uma aia de aparência descuidada, agachada ao lado dela, na
beira do antigo coreto de concreto que ainda permanecia em uma das
extremidades da abandonada quadra de desfiles. [...] Eu me lembro de
ter comentado com meu irmão, quando passávamos pelo coreto, que
era realmente incomum ver uma inglesa daquela idade vivendo na Ín-
dia – quem era ela? E Tom disse, indiferente, que não sabia; ele acre-
ditava haver uma lenda sobre a velha senhora, mas não conseguia
lembrá-la. Que importância tinha isso? (192)18.

112 O irmão da narradora, como oficial do Raj, ocupa-se, em todo caso, em


fazer a história e não com fantasias. Mas ela, reconhecendo o espaço textual
designado à mulher, e constituindo-se em sujeito narrativo a partir dele, ime-
diatamente sente-se atraída pela estória e quer desvendar o mistério. Porém,
é a partir dessa lenda que ela irá reconstruir um evento histórico, no qual Ann
White, a velha mulher com sua mente suspensa no tempo, funcionará como a
memória viva do Motim:

17
“Drowsed by the warm perfume and peace, I let the history of that other Ann White
steal through my mind slowly, dreamily.”
18
“The first time I saw her was at the beginning of the hot weather, soon after I had arrived
in India to keep house for my brother. She was seated, with an untidy-looking ayah,
squatting beside her, on the edge of the old concrete bandstand that still remained at one
end of the deserted parade-ground. […] I remember remarking to my brother as we rode
past the bandstand, that it was surely unusual to see an Englishwoman of that age living
in India – who was she? And Tom said indifferently, he didn´t know; he believed there
was some legend about the old lady, but he couldn´t remember. What did it matter?”
Cielo G. Festino / Revista de História 150 (1º - 2004), 99-127

Tendo uma disposição imaginativa ou, mais precisamente, inquisitiva,


eu senti um desejo de investigar a história da velha senhora. O que ela
estaria fazendo na Índia naquele período da vida, e parecendo um fan-
tasma do passado, vestindo um gorro e um vestido cinza vultoso? Ela
quase poderia estar vestindo uma saia-balão. Deve ter sido uma histó-
ria interessante (193)19.

É interessante notar que, se num primeiro momento ela se define a partir


do olhar masculino, descrevendo-se como uma pessoa de natureza imaginativa,
o que seria considerado como uma característica naturalmente feminina, no
entanto ela imediatamente parece se rebelar contra a possibilidade de ser cate-
gorizada dessa maneira e se redefine como inquisitiva. Enquanto o primeiro
termo estaria associado com a literatura de caráter fantasioso e, por isso, fe-
minino, o segundo pertenceria ao terreno da pesquisa histórica, considerado
como masculino.
Assim, estes sutis traços mostram como as fronteiras entre a história e a
estória parecem sub-repticiamente se apagar em “Ann White”. Aliás, embora
tentando narrar os fatos de maneira neutra e com ênfase nos seus aspectos mais
espetaculares e fantasiosos, a narradora mostra não ser indiferente a sua signi-
113
ficância histórica e indiretamente tenta justificar a maneira de agir dos ingleses
culpando, de uma maneira velada, os missionários com os quais Ann White
morava pela rebelião indiana.
Segundo Brantlinger, antes do Amotinamento de 1857 os ingleses pensa-
vam que a catequização dos missionários ajudaria a converter os indianos do
barbarismo ao modo de vida ocidental e, em particular, britânico (1988:200).
Mas, depois do levante os ingleses se mostravam céticos com respeito ao tra-
balho dos missionários, já que achavam que mais do que ajudar o Raj, estes
indispunham os nativos contra eles, porque ao tentar impor o cristianismo, ata-
cavam as religiões locais20.

19
“Being of an imaginative, or, perhaps, more truthfully, an inquisitive disposition, I felt
a longing to ferret out the old lady´s history. What was she doing in India at her time of
life, and looking like a ghost from the past, dressed in a poke bonnet and a voluminous
greygown? She might almost have been wearing a crinoline. There must have been some
interesting story”.
20
No seu romance The Devil´s Wind. Nana Saheb´s Story (New York: The Viking Press,
1972) o escritor indiano Manohar Malgonkar narra o Amotinamento de 1857 da perspec-
tiva indiana. A estória/história é narrada para os ingleses por Nana Saheb, uma persona-
Cielo G. Festino / Revista de História 150 (1º - 2004), 99-127

Ciente desse conflito, Perrin faz uma digressão indo da narrativa ficcional
para a narrativa da história, e assim cruzando as barreiras do gênero, problema-
tiza a questão dos missionários na Índia e os mostra através de duas perspec-
tivas: a da colônia inglesa residente no subcontinente e a dela própria, uma
recém chegada:

As outras senhoras da missão me asseguraram que quando eu estives-


se morando há muito tempo na Índia eu entenderia que o ardor de mis-
sionários como o Senhor Grigson fazia mais bem que mal, interferin-
do em crenças antigas que convinham ao povo, enchendo garrafas
velhas com vinho novo, freqüentemente criando problema nos baza-
res onde problemas o bastante já estavam se armando. Aqui em Jutpore,
por exemplo, era bem sabido que existia um sentimento forte contra a
influência da missão. Qualquer coisa a qualquer momento poderia le-
var a uma revolta; os missionários seriam os primeiros a sofrer se a
multidão ficasse fora de controle, e então provavelmente nós todos
teríamos nossas gargantas cortadas (198)21.

114 Porém, por meio de sua narradora, Perrin oferece uma perspectiva diferente
sobre o trabalho dos missionários no sentido de que, embora nem sempre
eficazmente, o seu propósito seria resgatar os indianos de sua “ignorância”.

gem mais cruel do que Napoleão, para os indianos o primeiro líder no caminho à indepen-
dência. Ele explica que o incidente dos cartuchos com gordura de porco e vaca era enten-
dido pelos indianos como uma manobra, por parte dos ingleses, de conversão massiva
ao cristianismo: “O rumor de que os britânicos estariam tramando uma conversão em
massa do exército por meio dos novos cartuchos havia se espalhado com a velocidade de
uma brisa de monsão”(105). Também, “Agora a Companhia [da Índia Oriental] estava
tentando uma conversão em massa das cidades adulterando farinha de trigo com sangue
e ossos de vacas e porcos. Os portugueses não haviam feito o mesmo em Goa – converti-
do vilarejos inteiros jogando carne bovina dentro dos poços comunitários? Esses eram
os dispositivos reconhecidos do proselitismo” (133) (nossa tradução).
21
“The other ladies in the mission assured me that when I had lived long in India I should
realize that the ardour of missionaries like Mr Grigson did more harm than good, interfering
with ancient faiths that suited the people, forcing new wine into old bottles, often making
trouble in the bazaars where already trouble enough was brewing. Here in Jutpore, for
example, it was well known that a strong feeling existed against mission influence. Anything
at any moment might lead to a riot, the missionaries would be the first to suffer if the mob
got out of hand, and then probably we should all have our throats cut”.
Cielo G. Festino / Revista de História 150 (1º - 2004), 99-127

Eu passei a entender e apreciar seus esforços, a compartilhar sua convic-


ção de que embora o trabalho pudesse parecer apenas um arranhão na
superfície da idolatria, ele valia a pena infinitamente, e deveria no final
levar a uma profunda diminuição da ignorância e da superstição de um
povo mergulhado na adoração à Natureza, oprimido cruelmente por
castas superiores, o sacerdócio, e indiretamente por ele mesmo (197)22.

A idéia de não confiar na missão civilizatória dos missionários teria a ver


com o fato de que depois do Amotinamento os ingleses pensavam que a Índia
nunca progrediria. Como aponta Brantlinger, depois do Amotinamento, e sob
uma perspectiva claramente etnocêntrica, a Índia é apresentada como irreme-
diavelmente imersa em superstição e violência (1988:200). Esta é justamente
a idéia que Perrin parece estar transmitindo sobre a Índia na sua estória: uma
cultura onde a violência e a morte, como havia mostrado o Amotinamento,
nunca seriam erradicados, já que mais do que serem produzidos pela ação dos
ingleses eles eram o resultado de alguma qualidade própria dos indianos, o
que vem demonstrar o posicionamento ideológico da escritora. Porém, como
também assinala Brantlinger, os ingleses reagiram à violência dos indianos
com mais violência, embora esses fatos nunca apareçam em “Ann White”.
115
Segundo nossa leitura, o relato de Perrin vai além do pitoresco e o anedótico
ao se posicionar com a relação um tema histórico controvertido. Por meio do
sentimental e do imaginativo, ferramentas literárias femininas, a narrativa, mar-
cadamente ideológica, rescreve a história oficial do Amotinamento de 1857 mas,
ao mesmo tempo, revela a atmosfera de temor e morte na qual as famílias inglesas
residentes no subcontinente permanentemente vivem, revelando o lado escuro da
conquista imperial. É o discurso da ficção a serviço do discurso da história.

II.3 “Uma mãe na Índia”: A Hermenêutica do Quotidiano


Segundo Suleri, a grande pergunta com a qual o leitor se defronta na leitura
dos textos das memsahibs é “…até que ponto a mulher britânica esta envolvida

22
“I grew to appreciate understand and appreciate their efforts, to share their conviction
that though the work might seem but a scratch on the surface of idolatry, it was infinitely
worth while, and must lead eventually to a deep undermining of ignorance and superstition
among a people steeped in Nature worship, cruelly oppressed by higher castes, the
priesthood, and indirectly by each other”.
Cielo G. Festino / Revista de História 150 (1º - 2004), 99-127

na estrutura do colonialismo, e que fronteira pode ser traçada entre sua conivência
e seu confinamento na colonização do subcontinente23” (1992:76). Entendemos
que a resposta que Suleri dá a essa pergunta é que a mulher inglesa está duplamente
confinada, geograficamente no espaço colonial, como apontado anteriormente, e
textualmente por meio do discurso restritivo do belo e do pitoresco.
Elas são cativas de um sistema colonial de governo que impõe o seu des-
locamento geográfico para a Índia com o intuito de usá-las como barreira entre
o homem inglês e a mulher indiana, entendida essa última como a grande amea-
ça à pureza da raça branca.
Como as indianas, as inglesas também personificam a sua tradição: “A
mulher anglo-indiana estava na Índia como símbolo do lar inglês; ela era a
personificação de tudo o que o inglês deve proteger. Ela era uma salvaguarda
contra os perigos apresentados pela mulher oriental24” (Suleri 1992: 76). Po-
rém, comparada à mulher inglesa, a mulher indiana, que também devido ao
duro sistema patriarcal vive confinada na zenana25, é paradoxalmente mais
independente. Como explica Suleri, isto deve-se ao fato de que os filhos das
mulheres indianas fazem parte da sua vida, enquanto a mulher inglesa tem
116 que se separar muito cedo de seus filhos quando estes são enviados para estudar
na Inglaterra a fim de conservar a pureza da raça e da cultura. Tudo isso vem
mostrar que as arrogantes memsahibs, como as mulheres inglesas têm sido
muitas vezes representadas, são também vítimas da violência de um sistema
colonial que produz uma crise na estrutura familiar ao provocar seu desloca-
mento da Inglaterra para outro local do império. Então, embora o gênero do
pitoresco tente restringir o poder de expressão da mulher anglo-indiana, a lite-
ratura, como terceiro espaço, é uma das saídas que essa mulher tem para esca-
par dos papéis normativos que lhe são impostos.
Um dos contos mais refinados da tradição Anglo-Indiana que narra a sepa-
ração traumática entre mães e filhos é “Uma mãe na Índia” (1903) escrito,
como já apontado, não por uma escritora inglesa mas por uma canadense, Sara
Jeannette Duncan (1861-1922), que emigrou para a Índia aos trinta anos com
seu marido, curador do Museu de Calcuttá, e passou o resto de sua vida entre

23
Nossa tradução.
24
Nossa tradução.
25
Área de uma casa indiana onde as mulheres da familia vivem em reclusão.
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o subcontinente e a Inglaterra, voltando só esporadicamente para o Canadá.


Porém, o fato de ser originariamente do Canadá, colônia não de conquista mas
de assentamento (Ashcroft et al 1996), onde os colonos eram e se sentiam bran-
cos, faz de Duncan parte da elite imperial e, portanto, a coloca em uma situação
de superioridade em relação aos indianos. Ao mesmo tempo, o posicionamento
de Duncan faz de sua narrativa um testemunho de relevância, já que ela está,
ao mesmo tempo, por dentro e por fora do conflito colonial na Índia. No pri-
meiro caso porque devido a sua nacionalidade, ela pôde olhar a relação entre
ingleses e indianos em perspectiva, de uma maneira crítica e, no segundo caso,
porque como membro do Commonwealth Britânco, ela fez parte da colônia
inglesa na Índia. Como as mulheres residentes nessa comunidade, ela mesma,
como explica Teresa Hubel, foi vítima do conflito gerado pelo fato de fazer
parte do aparato imperial além de ser uma mulher que criticava o sistema patri-
arcal (1996: 47).
Nessa perspectiva, Duncan escreveu três romances: The Simple Adventures
of a Memsahib (1893), His Honour and a Lady (1896) e The Burnt Offering
(1909), assim como quatro contos publicados com o título The Pool in the
Desert (1903), dentre os quais está “Uma mãe na Índia”. 117
A partir do foco feminino, entendemos que o propósito de Duncan seria
recriar a relação entre Índia e Inglaterra por meio de metáforas familiares. A
primeira metáfora lida com a relação entre mães e filhos e a segunda, com o
casamento entre ingleses e, nesse conto em particular, os anglo-indianos.
Em “Uma mãe na Índia” Duncan, no que Suleri chama de “irônico tom de
decoro”, mostra a violência silenciosa perpetrada pelo sistema colonial na re-
lação entre uma mãe e sua pequena filha quando esta é levada a Londres e é
criada por sua avó e tias, segundo os padrões da Inglaterra do século XIX; quando
volta para se reunir com sua mãe na Índia, ambas são perfeitas estranhas.
Devido às doenças que constantemente ameaçam os ingleses na Índia,
quando a criança tem um mês de vida é levada para a Inglaterra porque corre
risco de morte, produzindo-se assim a separação de sua mãe:

Ela tinha apenas cinco semanas de vida quando o médico nos disse
que deveríamos levá-la para casa imediatamente ou a perderíamos, e
no dia seguinte John pegou uma disenteria. Então Cecily foi enviada
para a Inglaterra com a mulher de um sargento que havia perdido seus
gêmeos, e eu me coloquei sob a orientação de um médico nativo para
lutar pela vida do meu marido, sem gelo ou comida adequada, ou um
Cielo G. Festino / Revista de História 150 (1º - 2004), 99-127

leito ou conforto de qualquer espécie. Ah! O Forte Samila com o sol


resplandecendo na areia! (75)26.

O que se lê por atrás do tom de eqüidade da narrativa é uma história de


doença, morte e sacrifício num lugar totalmente longínquo e alheio. A narra-
dora não só tem que se separar de sua pequena filha mas, ainda convalescente
do parto, tem que cuidar de seu marido doente em condições de grande pre-
cariedade. Entendemos, então, que embora livre de qualquer tipo de sentimen-
talismo, a grande história, mais do que estória, sendo narrada além do caracte-
rístico da vida de Anglo-Índia, é a do grande sacrifício realizado pelos súditos
ingleses pela grandeza do Raj, principalmente e num tom paradoxalmente amor-
tecido, a história da impotência da mulher inglesa presa ao sistema colonial.
Assim a narradora conta como a mãe e irmãs do marido, mulheres de
grande gentileza (gentility) embora de recursos limitados, a informam sobre
a educação de sua filha nas cartas semanais que ela, por sua vez, lê escondendo
sua raiva ou frustração atrás de uma pretensa tranqüilidade que, como discute
Suleri, tem mais de histeria do que de calma:
118
Enquanto isso nós notávamos o progresso semanal com muito do senti-
mento que se teria por um pedacinho longínquo de prosperidade que
não dava nenhum trabalho e se saía extremamente bem. Nós teríamos
a custódia de Cecily ao nosso dispor; até lá, era gratificante saber que
havíamos conquistado um realce em suas covinhas e em seus doces
cachinhos (77)27 .

Quando finalmente a mãe tem a possibilidade de viajar para a Inglaterra


não é para ver sua filha, mas acompanhar o marido que foi promovido, fato

26
“She was just five weeks old when the doctor told us that we must either pack her
home immediately or lose her, and the very next day John went down with enteric. So
Cecily was sent to England with a sergeant´s wife who had lost her twins, and I settled
down under the direction of a native doctor, to fight for my husband´s life, without ice or
proper food, or sick-room or comforts of any sort. Ah! Fort Samila with the sun glaring
up from the sand!”.
27
“Meanwhile we noted the weekly progress with much the feeling one would have about
a far-away little bit of property that was giving no trouble and coming on exceedingly
well. We would take possession of Cecily at our convenience; till then, it was gratifying
to hear of our earned increment in her little dimples and sweet little curls” (77)”.
Cielo G. Festino / Revista de História 150 (1º - 2004), 99-127

esse também narrado de maneira monotônica e casual. À medida em que o


momento do encontro entre mãe e filha se aproxima, o ritmo da narrativa vai
num crescendo mas, ao invés de terminar num clímax de afetuoso reconheci-
mento, se resolve numa situação altamente anticlimática, quando a filha, como
previsto, trata a mãe como uma perfeita desconhecida:

Ela veio a meio caminho; suponho que nossos olhares foram muito
fixos, absortos demais, pois lá ela parou com um grito de terror diante
dos rostos estranhos, e voltou correndo para os braços abertos de sua
tia Emma. A coisa mais natural do mundo, sem dúvida. Eu caminhei
até uma cadeira em frente com minha bolsa e guarda-chuva e me sen-
tei – uma espectadora, distante e silenciosa [...] Não é divertido até
agora lembrar a raiva que eu senti. Eu não a toquei nem falei com ela;
eu simplesmente fiquei sentada observando minha posse alheia, com
o vestido que eu não havia feito e a faixa que eu não havia escolhido,
sendo induzida e protegida e afagada por tia Emma (78-79)28.

Há em “Uma mãe na Índia” uma desfamiliarização do tema da maternidade


produzida justamente pela separação que faz com que mãe e filha se sintam duas 119
estranhas. Porém, a ruptura não é somente geográfica mas também cultural.
Segundo Suleri, as narrativas dessas muheres mostram “…a ambivalência
produzida pela decentralização da vida doméstica da Anglo- Índia” desde que seus
filhos vão se afiliar a uma ou outra cultura (1992: 98). Na maioria das vezes as
mães, segundo mostra Duncan, não podiam imprimir um rumo determinado às
histórias dos seus próprios filhos já que eles se encontravam culturalmente
separados, o que produzia uma terrível frustração ao mesmo tempo que
demonstrava a impossibilidade de a mulher na colônia controlar sua própria família.
Embora durante sua residência na Índia os britânicos continuassem con-
siderando a Inglaterra como home, de volta à Europa após anos de serviço

28
“Half-way she came; I suppose our regards were too fixed, too absorbed, for there she
stopped with a wail of terror at the strange faces, and ran straight back to the outstretched
arms of her Aunt Emma. The most natural thing in the world, no doubt. I walked over to a
chair opposite with my hand-bag and umbrella and sat down – a spectator, aloof and silent
[…] It is not amusing even now to remember the anger I felt. I did not touch her or speak
to her; I simply sat observing my alien possession, in the frock I had not made and the sash
I had not chosen, being coaxed and kissed and protected and petted by Aunt Emma”.
Cielo G. Festino / Revista de História 150 (1º - 2004), 99-127

eles se tornavam estrangeiros no seu próprio país. Duncan discute esse aspecto
dos coloniais quando, a bordo do navio que volta para a Índia, depois da sua
estadia na Inglaterra, a narradora reflete que:

Era um navio de Bombaim, cheio de anglo-indianos retornando. Eu olhei


de um lado para outro as longas mesas do salão com um senso de alívio
e consolo; eu estava de novo com o meu próprio povo. Eles pertenciam
a Bengala e a Burma, a Madras e ao Punjab, mas eles eram todos o meu
povo. Eu podia distinguir uma vintena que eu conhecia de fato, e não
havia nenhum que em minha imaginação eu não conhecesse (83)29.

O momento de ruptura cultural está marcado pelo novo apelo nacional “an-
glo-indiano”. Assim, a narradora mostra como a experiência colonial a coloca
num “terceiro espaço” que a torna uma estrangeira na sua própria cultura. Ela
mesma é uma curiosidade para os ingleses.
Em sua próxima viagem à Inglaterra, mãe e filha se olham através das duas
margens de um abismo cultural: “Nós passamos um verão agradável com uma
garotinha numa casa cujo interesse por nós era engraçado, e cujos passeios
120 era gratificante organizar; mas quando nós voltamos, eu não tive o desejo de
levá-la conosco. Eu achei que ela estava muito melhor onde estava” (81)30.
Uma vez mais de volta à Índia, a mãe se movimenta com o regimento de
seu marido: “Nós volltamos para a fronteira e o regimento viu muito serviço.
Isso significava medalhas e divertimento para meu marido, mas economia e
ansiedade para mim, embora eu conseguisse ter a permissão de chegar tão perto
da linha de fogo quanto qualquer mulher” (80)31. Que estória/história está sendo

29
“It was a Bombay ship, full of returning Anglo-Indians. I looked up and down the long
saloon tables with a sense of relief and solace; I was again with my own people. They
belonged to Bengal and to Burma, to Madras and to the Punjab, but they were all my
people. I could pick out a score that I knew in fact, and there were none in imagination
that I didn´t know”.
30
“We spent a pleasant summer with a little girl in the house whose interest in us was
amusing, and whose outings it was gratifying to arrange; but when we went back, I had
not desire to take her with us. I thought her very much better where she was(81)”
31
“We went back to the frontier and the regiment saw a lot of service. That meant medals
and fun for my husband, but economy and anxiety for me, though I managed to be allowed
as close to the firing line as any woman” (80).
Cielo G. Festino / Revista de História 150 (1º - 2004), 99-127

contada? O mundo do marido pertence, como diria a autora indiana Arundhati


Roy em O deus das pequenas coisas (1997), ao “deus das grandes coisas”,
das grandes causas e acontecimentos, dos eventos históricos que faziam parte
do mundo masculino do Raj. O dela, porém, só traz frustração e ansiedade e
uma eterna espera. As mulheres pertencem “ao deus das pequenas coisas”,
mas suas histórias/estórias também precisam ser contadas, embora relegadas
ao mundo feminino do pitoresco.
Identificamos na narrativa de Duncan duas formações discursivas históricas:
uma que narra a história oficial do Raj, a vida do colonizador inglês na fronteira do
mundo civilizado, acompanhado pela sua mulher que representa os valores culturais
ingleses, e outra na qual, embora a mulher sinta-se identificada com a Anglo-Índia,
critica veladamente o sistema colonial que tem provocado uma ruptura familiar.
Segundo Teresa Hubel, em seu estudo sobre a obra de Duncan, a relevância
dessas narrativas estaria na possibilidade de enxergar a Índia a partir de uma
perspectiva feminina mostrando a sua surda resistência ao sistema patriarcal e im-
plicitamente afirmando que, para muitas mulheres inglesas na Índia, a narrativa
masculina não é apropriada, já que não reflete a sua realidade doméstica (1996:53).
A segunda metáfora da qual se utiliza Duncan para recriar a relação entre 121
Índia e Inglaterra, além da que retrata a relação entre mães e filhas, é a do
casamento. Segundo Hubel, a relação colonial entre Índia e Inglaterra poderia
ser entendida como uma “relação conjugal” (1996: 47), que é também funcio-
nal em “Uma mãe na Índia”. Assim, o caráter alegórico do conto, no seu desejo
de relatar não só a história das famílias mas também as diferenças culturais
entre ingleses e anglo-indianos, alcança o seu clímax quando a filha, a pequena
Cecily, cresce e, como era costume, vai com a mãe para Índia para se casar. A
mãe acha irritante os “modos ingleses” (English manners) da filha, o que num
outro nível vem mostrar em qual perspectiva, após morar alguns anos fora de
seu país, os anglo-indianos viam os ingleses.
Já no navio para a Índia, Cecily, tanto na maneira de se comportar como
nas roupas que veste, diferencia-se das mulheres e homens da Anglo-Índia
que, após permanecerem anos longe da Inglaterra, se vestem e se comportam
de uma maneira mais simples e diferente. A mãe narra como os anglo-indianos
são reprovados pela filha porque sua aparência mostra que eles já não são
ingleses puros mas “viraram nativos” (have gone native):

Cecily olhou para eles de soslaio. Para ela a atmosfera era estranha, e
eu percebi que de modo delicado e privado ela registrava suas objeções
Cielo G. Festino / Revista de História 150 (1º - 2004), 99-127

(...) Ela olhava com um lábio crispado para as mulheres que andavam
no convés com passos firmes, vestindo saias curtas e um tanto surra-
das, com as mãos nos bolsos de seus casacos falando de transferências
e promoções; e tendo se levantado às seis para fazer um esboço em
aquarela do nascer-do-sol, ela veio até a mim com uma profunda in-
dignação para dizer que tinha visto um homem de pijamas; sem dúvi-
da, pobre coitado, indo se barbear. Eu fui incapaz de convencê-la de
que não se esperava que ele fosse vestido encontrar o barbeiro (84)32.

Ao mesmo tempo, Cecily é vista por uma das mulheres a bordo como o
perfeito retrato da Inglaterra:

‘Eu acho’, retomou a Senhora Morgan, cujo olhar havia vagado na


mesma direção, ‘que Cecily é um belo exemplo das nossas moças ingle-
sas. Com aqueles olhos cinza-escuros, talvez um pouco proeminentes,
e aquela boa cor – está um pouco forte agora, talvez, mas ela irá perdê-
la o bastante na Índia – e aqueles traços regulares, ela faria uma esplên-
dida Britannia’ (92)33.
122
Cecily é caracterizada, na perspectiva irônica e crítica de sua mãe, como
compartilhando a cegueira cultural dos ingleses pela sua inabilidade de ver
além dos limites de sua cultura: “Você não parece ver que a moça é protegida
por suas limitações, como uma tartaruga. Ela vive dentro delas bem segura,
feliz e satisfeita” (98)34. Seu interlocutor é um jovem inglês, residente na Índia,
Dacres Tottenham, que, inexplicavelmente para a mãe, sente-se atraído por

32
“Cecily looked at them in askance. To her the atmosphere was alien, and I perceived that
gently and privately she registered objections (…) She looked with a straightened lip at
the crisply stepping women who walked the deck in short and rather shabby skirts with
their hands in their jacket-pockets talking transfers and promotions; and having got up at
six to make a water-colour sketch of the sunrise, she came to me in profound indignation
to say that she had met a man in pyjamas; no doubt pour wretch, on his way to be shaved.
I was unable to convince her that he was not expected to visit the barber in his clothes”.
33
‘I think’, resumed Mrs Morgan, whose glance had wandered in the same direction, ‘that
Cecily is a very fine type of our English girls. With those dark grey eyes, a little prominent
possibly, and that good colour – it is rather high now perhaps, but she will lose quite enough
of it in India – and those regular features, she would make a splendid Britannia.’
34
“You don´t seem to see that the girl is protected by her limitations, like a tortoise. She
lives within them quite secure and happy and content.”
Cielo G. Festino / Revista de História 150 (1º - 2004), 99-127

Cecily. Segundo ele, a moça tem a capacidade de ver a beleza em todas as


partes: “Ela responde instantaneamente, intimamente, ao belo em toda a par-
te”35. Mas, como a mãe sugere, é o tipo do beleza que os ingleses enxergam:
“Eu sei – o que você quer dizer com pores-do-sol. Cecily gosta muito de pores-
do-sol. Ela está sempre me pedindo para vir e observá-los” (101)36. Na sua
caracterização de Cecily, Duncan antecipa a crítica que anos mais tarde E.
M. Forster faria dos ingleses em A Room with a View (1908). Eles saem pelo
mundo com seus padrões estéticos e seus guias de turismo Baedeker esperando
ver as “vistas” que a sua própria cultura prescreve. Porém, eles não têm a capa-
cidade, nem intelectual nem emocional, de enxergar o que outras culturas ofe-
recem. Então eles voltam para Inglaterra sem ter se deixado influenciar pela
cultura do Outro. É justamente dessa maneira que “Uma mãe na Índia” se
resolve, mostrando como a ficção recria a cegueira dos ingleses no momento
histórico do auge de seu império.
Quando Dacres Tottenham decide pedir Cecily em casamento, eles estão
em Agra, a caminho de visitar o Taj Mahal junto com a mãe que, ao narrar a
reação de Cecily a tudo o que vê, a recria como o estereótipo dos “English
abroad” de Forster: 123
[Cecily] falava sem parar, apontava isso e aquilo, e perguntava quem
morava aqui e quem morava acolá. Em intervalos regulares de quatro
minutos ela perguntava se aquilo não era simplesmente lindo demais.
Ela sentava-se ereta com seu perfil vigoroso e seu chapéu elegante; e
a silhueta de sua personalidade se recusava a se misturar com a poeira
da dinastia. Ela era um contraste; definitivamente ela era uma indigni-
dade. “Recoste-se, minha querida’, eu finalmente exclamei. “Você está
atrapalhando a paisagem” (111)37 .

35
“She responds instantly, intimately, to the beautiful everywhere”.
36
“I know – what you mean sunsets. Cecily is very fond of sunsets. She is always asking
me to come and look at them.”
37
“[Cecily] talked continually, she pointed out this and that, and asked who lived here
and who lived there. At regular intervals of about four minutes she demanded if it wasn´t
simply too lovely. She sat straight up with her vigorous profile and her smart hat; and
the silhouette of her personality sharply refused to mingle with the dust of the dynasty.
She was a contrast, a protest; positively she was an indignity. “Do lean back, dear child’,
I exclaimed at last. “You interfere with the landscape.”
Cielo G. Festino / Revista de História 150 (1º - 2004), 99-127

Cecily é caracterizada como mostrando um entusiasmo por tudo aquilo


que ela enxerga, o que por sua vez denota o interesse dos ingleses pelo exótico,
que logo se transforma nos escritos femininos do pitoresco. Ao mesmo tempo,
o que a narrativa tenta sublinhar é que, por todo o seu entusiasmo, Cecily se
nega a fazer parte dessa paisagem: ela se destaca e não se mistura.
Dacres e Cecily saem da carruagem e entram nos jardins do Taj Mahal en-
quanto a mãe fica pensando na história do Imperador Mughal que, num gesto pós-
tumo de amor eterno, mandou construir o belo palácio em memória de sua amada.
Embora a mãe acredite que a relação entre os dois jovens é quase impossível e ela
mesma tenha tentado mostrar para Dacres as limitações da própria filha, nesse
momento e local ela pensa que quiçá a união entre ambos fosse possível: quem
poderia ser cego ou indiferente a tanta beleza? Mas quando os jovens rapidamente
voltam para a carruagem, as palavras irônicas de Dacres – ironia a que Cecily
permanece totalmente alheia – mostra a impossibilidade da união:

“Você não demorou”, disse [a mãe]. ‘Espero que você não tenha se apres-
sado por minha causa” ‘A Senhorita Farnham achou o mármore um pouco
124 frio sob seus pés”, respondeu Dacres, incluindo a Senhorita Farnham.”
“Sabe’ explicou Cecily, ‘Eu me esqueci tolamente de calçar um solado
mais grosso. Eu estou só de sandálias. Mas, mamãe, como é lindo! Va-
mos voltar durante o dia. Eu estou louca para fazer um desenho” (113)38.

Numa cena de dimensões fosterianas, Cecily é apresentada como totalmente


insensível a uma das representações mais monumentais da cultura do Outro, a
não ser pelo desejo de reduzi-la a um desenho para levar de volta para casa e
demonstrar, como Lucy Honeychurch em Uma janela para o amor (A Room
with a View), que ela soube “ver” aquilo que tinha de ser visto, enquanto que,
por meio de ironia dramática, a narradora mostra que ela não podia enxergar
nem o que estava acontecendo com a sua própria vida. Assim, é a rigidez de
Cecily que vai levar Dacres a preferir se casar, ironicamente, com uma rica

38
“You have not been long”, said [the mother]. ‘I hope you didn´t hurry on my account”
‘Miss Farnham found the marble a little cold under foot”, replied Dacres putting Miss
Farnham in”.
“You see’, explained Cecily, ‘I stupidly forgot to change into thicker soles. I have only
my slippers. But, mamma, how lovely it is! Do let us come again in the daytime. I am
dying to make a sketch of it.”
Cielo G. Festino / Revista de História 150 (1º - 2004), 99-127

herdeira americana, enquanto Cecily lamentará em silêncio, como manda o


decoro inglês, a perda do único homem que amará em toda sua vida.
Como aponta Teresa Hubel, Duncan nos faz pensar sobre “o quanto de-
vemos acreditar nos ideais expressados na superifice do texto e o quanto
devemos permitir que o subtexto os subverta” (47). Num outro nível, então, a
estória parece dizer que o fato de a mãe de Cecily ter feito todo o possível
para mostrar para Dacres as limitações de sua filha pode se re-significar como
o desejo da narradora de que a Índia, ou a Anglo-Índia, personificada em
Dacres, não se ajoelhe ou se deixe conquistar por uma Inglaterra tão con-
vencida dos seus próprios valores, que nunca poderá enxergar o Outro senão
como uma imagem apreendida em algum dos tantos textos escritos e dese-
nhados sobre a Índia pelos mesmos ingleses.
Por outro lado, se a estória/história é reconsiderada pela perspectiva de
Cecily, o que se lê nas entrelinhas é que a Inglaterra sempre lamentará o desen-
contro cultural com a Índia mas, como Cecily, nunca admitirá sua inabilidade
para aceitar a cultura do Outro além dos limites do pitoresco.
Entendemos que narrativas como as de Sara Jeanette Duncan, uma vez mais,
vão além do meramente anedótico, refletindo sobre um conflito social numa con- 125
juntura histórica. Enquanto “Uma mãe na Índia” não parece exceder os limites
de outro tableau vivant sobre os britânicos no acantonamento, a ironia que
permeia o texto funciona como tropo de desconstrução do imaginativo e ficcional
da estória para colocar a narrativa dentro do discurso da história. Embora nunca
dito abertamente, o desejo de relatar indo além das fronteiras textuais impostas
pelo discurso masculino mostra que as mulheres criam, por meio de sua literatura,
um modo de resistência ao modelo imperial patriarcal, ao mesmo tempo que
refletem sobre sua própria identidade e seu lugar nele.
Num outro nível, a narrativa de Duncan problematiza a idéia, proposta
por escritores como E. M. Forster em Passagem para Índia (A Passage to
India), de que as memsahibs foram uma das principais causas de desencontro
entre indianos e ingleses. Se no cantonment moravam mulheres como Cecily,
abnegadas porém cegas, também havia mulheres como a própria narradora,
capazes de enxergar a complexidade da situação da mulher na Índia, assim
como seus conflitos culturais.
Cielo G. Festino / Revista de História 150 (1º - 2004), 99-127

III. Conclusão
Entendemos que todas essas estórias não só historicizam a presença
britânica na Índia mas, denunciando o seu caráter iterativo ao tentar reproduzir
a perspectiva das narrativas imperiais, as transformam revelando o olhar da
mulher não só sobre aquilo que narra mas sobre sua própria situação nessa
estrutura colonial.
Que contam essas estórias? Revelando o olhar feminino, elas falam da
relação entre colonizador e colonizado, das diferenças culturais que os sepa-
ram, da ausência de interesse do europeu pelo Outro, do que há na consciência
coletiva dos anglo-indianos, presos entre duas culturas e, particularmente, do
confinamento da mulher e o seu desejo de subverter a ordem que lhe é imposta.
A história/estória nessas narrativas é contada de maneira oblíqua, a partir
de seus detalhes que parecem ofuscar o corpus principal. Como tentamos
demostrar, entendemos que isso é assim porque as mulheres na colônia têm
consciência do seu locus de enunciação. É como se elas não quisessem se
pronunciar em relação ao sistema imperial mas, o discurso as traísse. Por isso,
quanto mais tentam ocultar a narrativa que se adivinha nos interstícios do texto,
126 mais se insinuam e apagam os limites entre ficção e história.

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Cielo G. Festino / Revista de História 150 (1º - 2004), 99-127

128
NARRATIVA BIOGRÁFICA E ESCRITA DA HISTÓRIA:
OCTÁVIO TARQUÍNIO DE SOUSA
E SEU TEMPO*

Márcia de Almeida Gonçalves


Professora da UERJ e da PUC-RJ.

Resumo
O objetivo do artigo é analisar valores e concepções que informaram a
discussão sobre os usos da biografia entre as narrativas historiográficas,
tomando como referência textos assinados por Octávio Tarquínio de Sousa,
nas décadas de 1930 a 1950.

Palavras-Chave
Biografia • História • Modernismo • Estudos Brasileiros • Historismo

Abstract
The objective of the article is to analyze the conceptions about the uses
of biography and the writing of history, between 1930 and 1960, taking
as reference texts signed by Octávio Tarquínio de Sousa.

Keywords
Biography • Historical Thought • Modernism • Brazilian Studies •
Historicism

*
Esse artigo corresponde a uma versão condensada de algumas análises realizadas em
minha tese de doutorado – Em terreno movediço: biografia e história na obra de Octávio
Tarquínio de Sousa – desenvolvida no programa de Pós-graduação da FFLCH/USP, área
de História Social, sob a orientação do Prof. Dr. Elias Thomé Saliba.
Márcia de Almeida Gonçalves / Revista de História 150 (1º - 2004), 129-155

"Cada geração canta para ela própria e na sua linguagem"


Alfred de Musset

Durante seu tempo de vida (1889-1959) e, em particular, na época em que


realizou suas produções letradas, entre 1914 e 1958, Octávio Tarquínio de
Sousa foi o autor dedicado ao estudo da história política brasileira – 1º Reinado
e Regências – por intermédio da escrita das biografias de alguns de seus diri-
gentes: Bernardo Pereira de Vasconcelos, Evaristo da Veiga, Diogo Antônio
Feijó, José Bonifácio e D. Pedro I, elaboradas entre 1937 e 1952, ao fim reuni-
das na forma da coleção História dos Fundadores do Império do Brasil, em
1958. Além dessa marca autoral, vale esclarecer, a que mais foi sublinhada
pela memória dos pósteros, Octávio Tarquínio participou intensamente dos
círculos de sociabilidade intelectual que tanto imprimiram os ritmos da missão
de redescobrir o Brasil, decantada por homens de letras e de ciências, a partir,
notoriamente, de 1930.
Assim, entre outras atuações, foi diretor, de 1939 a 1959, da Coleção Do-
130 cumentos Brasileiros, publicada pela Livraria José Olympio Editora; colabo-
rou, com regularidade, para o Suplemento Literário do jornal Correio da
Manhã, entre 1947 e 1955; dirigiu a terceira fase da Revista do Brasil, entre
1938 e 1943; foi membro do conselho diretor da Sociedade Felipe D’Oliveira,
durante sua existência, de 1933 a 1945, tendo também atuado na criação da
Associação Brasileira de Escritores (ABDE), em 1942, da qual foi o presidente
da primeira diretoria1. Como outros de sua geração, Octávio Tarquínio garantiu

1
A criação da ABDE simbolizou uma das primeiras iniciativas, por parte de alguns intelec-
tuais, de usar o associativismo corporativista, tão em voga na década de 1930, contra os
excessos do autoritarismo do Estado Novo. Entre os fundadores figuraram: Octávio Tar-
quínio de Sousa, Sérgio Buarque de Holanda, Astrojildo Pereira, Graciliano Ramos, José
Lins do Rego, Sérgio Milliet, Mário Neme, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Abguar
Bastos, Lourival Machado, Paulo Emílio Sales Gomes, Antônio Cândido Melo e Souza,
Dionélio Machado, Érico Veríssimo, Reinaldo Moura e Raul Riff. O nome da nova agre-
miação profissional, associado ao conjunto de seus primeiros organizadores, imputava
ao substantivo escritores uma designação adequada aos valores da época, posto que, abar-
cava todos os que procuravam viver da palavra escrita, nas suas variadas materializações:
o romance, o ensaio sociológico, a crítica literária, a biografia, a poesia, a história. En-
tre algumas das iniciativas da ABDE, destacaram-se, no campo das reivindicações pro-
fissionais, a elaboração do projeto de reconhecimento e regulamentação dos direitos
Márcia de Almeida Gonçalves / Revista de História 150 (1º - 2004), 129-155

o sustento material realizando carreira profissional na burocracia do Estado.


Tornou-se, em 1932, um dos ministros do Tribunal de Contas da União, aposen-
tando-se das funções que desempenhara nesse órgão público, em 1946.
Nosso objetivo, nesse artigo, é analisar a maneira peculiar de relacionar
narrativa biográfica à escrita da história, na forma como esta veio a se manifes-
tar nos textos assinados por Octávio Tarquínio. Mais do que uma caracterização
da identidade maior da obra desse autor, buscaremos, nesse artigo, situar, de
forma sintética, alguns dos valores e concepções que informaram a discussão
sobre os usos e pertinências da biografia entre as narrativas de natureza histo-
riográfica, no curso do tempo em que o autor constituiu grande parte de sua
produção - décadas de 1930 a 1950.
Em nossas investigações, as biografias históricas assinadas por Octávio
Tarquínio de Sousa materializaram um cruzamento deveras interessante, a
saber: (i) a proposta de contribuir, como outros contemporâneos, para a
elaboração de interpretações históricas que se queriam inovadoras, mesmo que
dialogando com tradições historiográficas consagradas; (ii) o projeto de testar
e aprofundar os usos da biografia como narrativa que explicitasse as relações
entre indivíduo e sociedade, com destaque para as experiências de configuração 131
da entidade nacional.
Esse cruzamento individualizou a produção letrada de Octávio Tarquínio
frente a de outros parceiros e amigos de sua contemporaneidade – Gilberto
Freyre, Caio Prado Júnior, Sérgio Buarque de Holanda – que, cumpre lembrar,
cada qual à sua maneira, também lançaram-se em redescobrimentos e
reinvenções da História do Brasil, nas suas diversas possibilidades. As
biografias históricas assinadas por Octávio Tarquínio foram todas publicadas
em coleções relacionadas ao campo dos Estudos Brasileiros2, inserindo-se,

autorais, encaminhado à Assembléia Nacional Constituinte, em 1946, e, no campo de


um certo ativismo político, a realização do I Congresso Brasileiro de Escritores, em ja-
neiro de 1945, em São Paulo. Em especial, esse congresso, pelas suas dimensões e des-
dobramentos, representou uma das manifestações do processo de redemocratização que
então se iniciara (Abreu 2001: 1535-6).
2
À exceção de Evaristo da Veiga, publicado em 1939 na Coleção Brasiliana, pela Com-
panhia Editora Nacional, todos as outras primeiras edições das biografias assinadas por
Octávio Tarquínio de Sousa fizeram parte da Coleção Documentos Brasileiros, perten-
cente a José Olympio.
Márcia de Almeida Gonçalves / Revista de História 150 (1º - 2004), 129-155

como tantos outros textos, nos esforços analíticos de decifração, por vezes de
monumentalização, do caráter nacional brasileiro.
Tarquínio de Sousa compreendeu o uso da biografia na escrita da história
política nacional como fórmula testada com sucesso e exemplaridade por
Joaquim Nabuco – Um Estadista do Império – e por Oliveira Lima – D. João
VI no Brasil. Quis, num certo sentido, dar continuidade a essa maneira peculiar
de escrever história, produzindo biografias em consonância com os ventos de
renovação que o gênero veio a sofrer, durante a década de 1920. Houve, nesse
sentido, uma moderna tradição a informar duplamente, e em estreita corres-
pondência, a escrita de biografias e a produção historiográfica de Octávio
Tarquínio de Sousa.

Biografias modernas
Na introdução de seus ensaios sobre o desenvolvimento da biografia na
Grécia antiga, Arnaldo Momigliano elaborou algumas rápidas considerações
sobre o que ele denominou de papel ambíguo da biografia entre as pesquisas
históricas. A referida ambigüidade estaria associada à questão de que a bio-
132 grafia tanto poderia ser uma ferramenta quanto uma fuga das investigações
sociais. A discussão justificava a relevância do assunto tratado em seus ensaios:
a história da biografia e de suas relações com a historiografia, no universo de
seus inventores – os gregos antigos (Momigliano 1993: 1-7).
As análises de Momigliano sobre o desenvolvimento da biografia entre
os gregos foram publicadas em 1971, e corresponderam a conferências pro-
feridas na Universidade de Harvard, em 1968. Inventariando polêmicas acerca
das fronteiras e interseções entre a biografia e a história, Momigliano concluía
que, no momento em que realizou suas conferências, poucos duvidavam de
que a biografia fosse um tipo de história, o que, na época, finais da década de
1960, numa certa medida, parecia ser um tanto paradoxal, se comparado às
controvérsias que agitaram a discussão sobre competências e campos do fazer
biográfico e do fazer historiográfico, nas décadas iniciais do século XX.
Nesse período, segundo Momigliano, a distinção entre história e biografia,
numa certa leitura, atribuída às obras de Políbio e também de Plutarco, estava
sendo negada por turbulentos clamores internacionais, protagonizados, entre
outros, na Alemanha, por Emil Ludwig (1881-1948), na França, por André
Maurois (1885-1967) e, na Inglaterra, pelo polêmico Lytton Strachey (1880-
Márcia de Almeida Gonçalves / Revista de História 150 (1º - 2004), 129-155

1932). O debate teria adquirido proporções maiores e assumido a forma da


proposta de caracterizar o que foi denominado de biografia moderna3.
As discussões sobre a emergência de uma biografia moderna ganharam
corpo, no cenário europeu, no momento imediato ao fim da 1ª Grande Guerra.
Uma geração de escritores, nascida nos anos oitenta do século XIX, lançados
como intelectuais sob os ventos da Belle Époque, jovens em plena atividade
literária quando o confronto militar exacerbou seus horrores e idiossincrasias,
encontraram na escrita de biografias uma das trincheiras de defesa da auto-
nomia do sujeito individual. Perante a avalanche de mudanças sociais e polí-
ticas no Velho Mundo, aspiraram rever o conceito de natureza humana, a partir
de uma crítica às concepções racionalistas e cientificistas, tão caras para as
ambiências intelectuais dos oitocentos, em comunidades européias.
Segundo Stuart Hughes, entre 1890 e 1914, uma gama variada de pensadores
– Bergson, Freud, Weber, Croce, Dilthey, entre outros –, empreenderam, cada
um à sua maneira, em seus respectivos campos de atuação – a filosofia, a psico-
logia, a sociologia, a história –, reflexões sobre o homem e sobre os saberes que
se dispunham a conhecê-lo, realizando o que Hugues categorizou como uma
revolta anti-positivista. Esta, por seu turno, manifestou-se por intermédio da 133
defesa de uma concepção de natureza humana mediada pelo conceito de incons-
ciente, pela valorização do meio histórico e cultural na compreensão das
possibilidades e limites da ação dos indivíduos no mundo, pela junção, em escalas
diferenciadas, do intuitivo e do racional nos métodos cognitivos, por fim, pela
afirmação do caráter imanente de tudo o que dissesse respeito ao homem e aos
saberes que buscassem decifrá-lo (Hughes 1977: 33-66).
Tais discussões, na verdade, teriam composto um dos capítulos da
emergência de uma sensibilidade moderna, com direito a todas as ambigüida-
des que a mesma trouxe em termos da proposição do novo nos diversos campos
das realizações humanas. Teriam igualmente e, numa certa medida, repre-
sentado, de forma aguda, a crise de valores éticos, estéticos e políticos que

3
Entre os textos que tematizaram a discussão sobre a biografia moderna destaque deve
ser conferido ao livro de Daniel Mandélenat – La biographie, Paris: PUF, 1984 -, o qual,
ao analisar a história da biografia, distinguiu e caracterizou três paradigmas: a biografia
clássica, a biografia romântica e a biografia moderna. Essa última, em particular, foi
associada ao relativismo ético, à psicanálise e às transformações da epistemologia his-
tórica, no alvorecer do século XX.
Márcia de Almeida Gonçalves / Revista de História 150 (1º - 2004), 129-155

afligiu o cenário europeu, em finais do século XIX (Everdell 2000). O gênero


biográfico não escapou de um redimensionamento de seus significados e de
suas metodologias de produção, relacionados, desde então, à emergência de
uma sensibilidade moderna.
André Maurois, Emil Ludwig e Lytton Strachey tornaram-se os autores
emblemáticos de biografias onde homens e mulheres desciam de seus panteões
de notáveis para personificar a grandeza e a miséria de suas condições huma-
nas. Cada um desses autores, donos de estilos próprios e diferenciados, repre-
sentaram, com direito a polêmicas, os arautos de uma escrita biográfica que
se queria moderna (Cavalheiro 1943). Todos, em seus países de origem, e nas
traduções de suas principais obras, alcançaram sucesso editorial e reconheci-
mento internacional como renovadores e atualizadores de um gênero que,
segundo alguns, no decorrer do século XIX, havia sido engolfado pelos pane-
gíricos oficiais de memórias nacionalistas.
Antes de qualquer teorização e/ou categorização mais sistemática acerca das
biografias modernas, houve toda uma proliferação de textos, ainda ancorados no
oportunismo do sucesso editorial que as narrativas de vida de famosos pudessem
134 vir a desfrutar. Tais textos ensaiaram o abandono das monumentalizações ufanistas
de escritores e dirigentes políticos, apostando na boa receptividade do esquadri-
nhamento da humanidade contraditória de todo e qualquer sujeito individual. Nesse
ponto, a atmosfera eufórica da Belle Époque, na sua modernidade de crescimentos
urbanos e anonimatos providenciais de multidões, pareceu ter sido mais um ingre-
diente favorável à proliferação de leitores ávidos pelas mesquinharias pessoais
de ilustres personagens. Caso fosse bem escrita, em prosa fluente e bem encadeada,
a narrativa biográfica figuraria como o romance da vida de homens de carne e
osso. Uma espécie de folhetim reeditado e em diálogo com o dilaceramento realista
e triunfante de toda e qualquer subjetividade humana.
Os textos de Lytton Strachey assumiram, nesse contexto, caráter paradig-
mático. Tornaram-se não só o modelo de escrita biográfica inovadora, mas,
em especial, do uso do humor fino, bem dosado, quanto às imagens em letras
de seus biografados. Arnaldo Momigliano, entre outras observações sobre esse
autor, destacou a cena na qual Bertrand Russell havia sido flagrado em risos
ao ler Eminent Victorians (Momigliano 1993: 3). Publicado em 1918, o referido
texto foi o principal responsável pela notoriedade e pelo sucesso editorial do
escritor inglês, de fato, plenamente consagrado com o surgimento de sua
biografia sobre a Rainha Vitória, em 1921. A projeção de Lytton Strachey,
somada em particular, a de sua amiga pessoal, Virgínia Woolf, firmaram o
Márcia de Almeida Gonçalves / Revista de História 150 (1º - 2004), 129-155

grupo de Bloomsbury como uma referência no cenário intelectual europeu da


época. Para a produção literária em língua inglesa, o Bloomsbury Group passou
a significar uma crítica aguçada contra os valores culturais associados à
Inglaterra vitoriana4.
Foi, contudo, André Maurois quem, a princípio, buscou delimitar os parâ-
metros de uma nova escrita biográfica. Em 1928, o autor sistematizou idéias,
em publicação que reuniu conferências proferidas no Trinity College, em
Cambridge, local onde Strachey havia estudado, sob o título de Aspectos da
Biografia. André Maurois se dispôs a fazer uma espécie de radiografia do
estado atual das questões sobre narrativas de trajetórias individuais, desfiando
os seguintes temas: a biografia moderna, a biografia como obra de arte, a bio-
grafia considerada como ciência, a biografia como um meio de expressão, a
autobiografia e as relações entre a biografia e o romance (Maurois 1929).
Usando exemplos da literatura inglesa, o autor francês identificava na obra
de Lytton Strachey um divisor de águas, uma reação contra os tediosos e volu-
mosos panegíricos que tipificaram biografias do período vitoriano. A despeito
do impacto causado pelos posicionamentos de Strachey, em 1918, Maurois
avaliava que, em 1928, os críticos não haviam de todo desqualificado as bio- 135
grafias vitorianas. De qualquer forma, para o autor, a obra de Strachey havia
inaugurado uma nova escrita biográfica, elevando-a à categoria de obra de arte.
Strachey teria personificado, magistralmente, o historiador que, ao transformar
o material pesquisado em texto, desempenhou também funções de artista,
somando precisão à fluidez e à beleza da narrativa, decifrando e humanizando
seus notáveis personagens (Maurois 1929: 7-9).
As mudanças na forma do texto biográfico e na figuração do sujeito biogra-
fado foram os principais indicativos para a confirmação de que uma nova bio-
grafia estava a surgir. Nos argumentos de Maurois, a emergência dessa nova bio-
grafia remontava ao alvorecer do século XX. Esse tempo, segundo o autor francês,
teria sido um período de revolução intelectual, marcado, entre outros aspectos,

4
A residência dos Strachey foi um dos pontos de encontro do grupo de Bloomsbury. O
nome de um bairro londrino tornou-se a designação de um conjunto de amigos que estu-
daram em Cambridge, no Trinity ou no King’s College, compondo um círculo de escrito-
res, intelectuais e artistas, do qual participaram Leonard e Virgínia Woolf, Arthur Valley,
Clive e Vanessa Bell, irmã de Virgínia, Roger Fry, John Maynard Keynes, entre outros
(Strachey 2001: 9-21).
Márcia de Almeida Gonçalves / Revista de História 150 (1º - 2004), 129-155

pela crescente interferência da psicologia e da ética nos métodos de aprendizagem


e investigação. Uma certa liberdade na formulação de inquéritos afetou, sobre-
maneira, aos romancistas, espirrando sobre o conhecimento histórico e, princi-
palmente, sobre uma de suas manifestações, a biografia. O biógrafo moderno, em
diálogo com essas mudanças, seria aquele que entenderia o biografado como uma
verdade a ser construída a partir de um método de investigação pautado no abando-
no de quaisquer idéias pré-concebidas e no levantamento e na análise de toda docu-
mentação disponível (Maurois 1929: 13-15).
Entre os aspectos marcantes das biografias modernas, André Maurois des-
tacou, primeiramente, o que nas suas palavras seria a procura corajosa pela
verdade (Maurois 1929: 19-24), temperada por um aguçado senso de percep-
ção da complexidade e da mobilidade dos seres humanos e, em menor escala,
por um senso de unidade de sua natureza.
Para explicar tais percepções, o autor francês mencionou a importância
da filosofia de Bergson e de seus seguidores. Situou-os ao lado dos progressos
da física e da biologia que, por caminhos diversos, desconstruíram teorias
baseadas na indivisibilidade do átomo e da célula. A psicologia, com seus estu-
136 dos acerca da imutabilidade dos comportamentos humanos, também interferiu
na crescente alusão às imprevisibilidades das ações humanas, o que, em parte,
foi ainda reavaliado pelo sistema freudiano e pelas discussões sobre o conceito
de inconsciente. Mesmo tendo senões ao uso deveras alargado dessa noção, o
que para Maurois teria abalado o valor na crença da liberdade humana, o autor
forçosamente reconhecia sua validade na constatação hodierna da complexi-
dade das ações humanas.
Comparando átomos a indivíduos, Maurois entendia o caráter de cada um
como um conjunto de diversas personalidades e denunciava a ilusão de alguns
em querer apreender a “real self”. Para ele a máscara funcionaria como a
melhor chave de compreensão para as contradições e multiplicidades das vi-
vências individuais. O homem moderno seria aquele que acreditaria na depen-
dência direta entre a análise da psique humana e o exame das diversas facetas
e dos pequenos detalhes comportamentais.
Os biógrafos modernos, e Maurois entre eles se enquadrava, teriam ecoado
os efeitos dessas concepções numa maneira própria de retratar seus biografa-
dos, não os representando como massas sólidas de vícios e virtudes, evitando
julgamentos morais e percebendo que ninguém se mantinha o mesmo entre a
maturidade e a velhice (Maurois 1929: 27-30). Relativizando seus próprios
juízos, André Maurois asseverava que a perspectiva de reconhecer a
Márcia de Almeida Gonçalves / Revista de História 150 (1º - 2004), 129-155

complexidade da personalidade humana era algo submetido aos ritmos e


valores de cada época. No momento particular em que ele proferia suas con-
ferências, a afirmação dessa complexidade era, no seu entender, dominante e
isso deveria ser compreendido como uma segunda característica da moderni-
dade que também afetava a escrita de biografias.
Como terceira e última característica das biografias modernas, André
Maurois apresentou a adequação desses textos àquilo que os leitores de sua
época procuravam encontrar em narrativas sobre vidas alheias. Para o autor,
o homem moderno seria mais inquieto e instintivo; um assombrado por seus
hábitos de auto-análise que procuraria, na leitura de um texto ficcional ou de
um texto histórico, encontrar irmãos que partilhassem seus problemas. Nesses
termos, o prognóstico de Maurois pintava o quadro de uma era das incertezas,
onde homens desassossegados poderiam vislumbrar nas biografias uma espécie
de pedagogia existencial: o aprendizado com as falhas e dúvidas dos grandes
homens (Maurois 1929: 34-35).
Caberia destacar, nessas apreciações de Maurois, o quanto elas traduziram
uma perspectiva imanente de compreensão do indivíduo, tomado como sujeito
humano ligado à vida, à sua duração e às suas contingências. O autor francês 137
posicionava-se ao lado de outros contemporâneos que negaram o transcendente
como campo possível de conhecimento no que dizia respeito à condição huma-
na. As considerações de Maurois, nesse sentido, exemplificavam um lugar de
fala, no universo da crise de valores éticos e políticos de sua época. A biografia
moderna funcionaria como instrumento para compreender e, em certa medida,
julgar as ações dos indivíduos na história, auxiliando os homens perplexos do
alvorecer do século XX. Nesse ponto repousava a dimensão ética da biografia
na sua versão moderna.
As três características essenciais da biografia moderna nomeadas por
Andre Maurois – a procura corajosa da verdade, a valorização da complexidade
humana, a busca de homens modernos por textos e personagens “à sua imagem
e semelhança” – tornavam o trabalho de elaboração dessas novas narrativas
de vida uma empreitada dificultada por alguns impasses. O principal deles refe-
ria-se à conciliação de duas demandas aparentemente antagônicas: a investi-
gação da verdade histórica e a pesquisa das expressões de uma personalidade.
Para Maurois, nos quadros de sua época, a primeira esteve, fundamental-
mente, associada aos trabalhos de scholars, e a segunda manifestou-se nas
obras dos artistas. Haveria conciliação possível? André Maurois acreditava
ser possível mesclar a insistência na verdade com o desejo de beleza e se pro-
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punha a discutir a biografia como uma obra de arte e a biografia considerada


como ciência. Esperava, com isso, mostrar que arte e ciência poderiam ser
reconciliadas e que, um livro científico, perfeitamente construído, seria um
trabalho de arte (Maurois 1929: 37-38).
Ao discutir a biografia como arte e como ciência, André Maurois, sem
intenções totalmente declaradas, apresentou caminhos e estratégias para a pro-
dução de um texto biográfico que cumprisse, de forma exemplar, a concilia-
ção entre a verdade e a beleza. Para além do diagnóstico acerca do que carac-
terizava as biografias modernas, Maurois esboçou uma metodologia do como
proceder para produzi-las, desdobrando seus argumentos em prognósticos ava-
liativos sobre as relações entre história, ciência e literatura.
Nas suas considerações acerca da dimensão artística dos textos biográficos,
André Maurois enfatizou o esforço de criação e montagem realizado pelo bió-
grafo ao circunscrever, sob a forma da narrativa verossímil, a trajetória de vida
de seu biografado. Se o biógrafo, diferentemente do romancista, não realizava,
na plenitude de suas potencialidades, a invenção de personagens; se o biógrafo
enfrentava limitações impostas pelo fato de que protagonistas e antagonistas
138 de sua história tiveram existências mundanas e reais, tais balizas não o impe-
diam de praticar o exercício de uma determinada estética ao dar forma e enredo
às vivências e dramas pessoais de seus escolhidos.
Como o pintor de paisagens ou de retratos, o biógrafo deveria selecionar
as características essenciais do que ele estivesse contemplando. Por intermédio
dessas escolhas, caso ele conseguisse fazê-las sem comprometer a retratação
do todo, o biógrafo estaria protagonizando a função do artista (Maurois 1929:
50). Nesses termos, uma característica fundamental da arte de escrever bio-
grafias modernas seria o cuidado com a seleção dos detalhes. Nessa discussão,
Maurois estabeleceu diferenças entre os ofícios do biógrafo e do historiador.
Para ele, um scholar, nos seus procedimentos de pesquisa, acumulava um gran-
de número de informações e as ordenava sem maiores cuidados seletivos. Nem
todos, contudo, cometeriam esse pecado, pois haveria alguns que realizavam
a seleção do material pesquisado, procurando estabelecer linhas gerais de
sistematização e produzindo, assim, algum tipo de obra de arte. O biógrafo,
de fato preocupado com a dimensão estética de seu texto, pouparia seus leitores
do fardo de informações inúteis.
Seria uma espécie de dever do biógrafo ler tudo o que dissesse respeito à
vida do sujeito em estudo, com vistas a não correr o risco de perder ou ignorar
detalhes importantes. Para Maurois, todavia, a biografia não deveria consistir
Márcia de Almeida Gonçalves / Revista de História 150 (1º - 2004), 129-155

numa narrativa que pudesse tudo contar. A seleção do detalhe significante e


essencial seria parte imprescindível do trabalho do biógrafo. Ao descartar o
desnecessário, o biógrafo melhor destacaria os aspectos que vivificassem o
biografado, na maneira como esse se comportou em seu tempo de vida. Nesse
ponto repousaria uma tarefa difícil: fazer os leitores encontrarem seres de carne
e osso por trás das nuvens de papel, dos discursos e das ações do biografado
(Maurois 1929: 62-64).
André Maurois afirmava que a ciência histórica deixava os leitores na
incerteza quanto às individualidades e, caso essas viessem a ser tratadas, cum-
pririam a função de causas potenciais na ordenação dos eventos. A arte seria
o oposto da generalização, ela descreveria apenas o individual e desejaria o
que fosse único. Não poderia haver ciência para as idiossincrasias do caráter.
Um livro que descrevesse um homem em todas as suas inconsistências seria
uma obra de arte (Maurois 1929: 64-66).
Na análise do tema da biografia considerada como uma ciência, as argu-
mentações de André Maurois divagaram sobre as relações entre a escrita da
vida de um eleito e o grau de verdade histórica que ali poderia existir. Suas
análises partiram de algumas questões, a saber: haveria na biografia uma ver- 139
dade científica? Seria possível conhecer a verdade sobre um homem? Em que
extensão poderíamos descobrir a verdade sobre um tempo ou sobre um período,
a partir do registro da história de um homem?
Ciente do perigo e do absurdo de tentar estabelecer um paralelismo estreito
entre as ciências da natureza e as ciências humanas, Maurois se dispôs a res-
ponder tais questões com extrema cautela, debitando, em particular, da conta
dos procedimentos metodológicos que interferiam na produção da narrativa "bio-
gráfica" "o ônus" de algumas de suas limitações. Haveria assim como conhecer
a verdade sobre um homem? Para Maurois, não. O biógrafo deveria tentar fixar
a mutabilidade de luzes e sombras, ou tentar produzir o som da autêntica nota
individual. O que viesse a alcançar, contudo, seria um tipo de verdade totalmente
diferente daquela perseguida pelo químico ou pelo físico (Maurois 1929: 103).
As maiores digressões de Maurois foram deixadas para uma derradeira
questão, qual seja: em que grau seria possível estudar uma época da história
por intermédio da escrita da vida de um homem. E mais, em que proporções
seria lícito fazer de um homem a figura central de uma época. Segundo André
Maurois, o biógrafo poderia transformar um indivíduo numa figura central e
fazer com que os acontecimentos de uma época começassem e terminassem
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na vida do protagonista eleito. Considerando a biografia como uma obra his-


tórica, Maurois, contudo, buscava frisar suas identidades modernas.
O biógrafo deveria atentar para as especificidades de sua narrativa frente
ao que cabia ao campo das produções historiográficas. Se a biografia de um eleito
fazia parte da história, ela não poderia responder por toda a história; da mesma
forma que essa última não deveria ser entendida como um mero somatório de
relatos biográficos. Haveria diferenças entre os objetivos da biografia e da histó-
ria. A primeira, acima de tudo, seria o relato da evolução da vida de um homem.
A história deveria ser para esse protagonista aquilo que o pano de fundo represen-
taria para o pintor de retratos (Maurois 1929: 107-110).
A metáfora do pintor de retratos como simbologia para o trabalho do biógrafo,
nas suas relações com a história, veio também a ser utilizada, como conclusão final
de Maurois, acerca das possibilidades da biografia ser considerada uma ciência. O
pintor de retratos, como o biógrafo, deveria dominar as técnicas de seu ofício. Todavia,
diferentemente do homem de ciência, preocupado com explicações gerais, pintores
e biógrafos objetivariam retratar o que fosse único e individual, e nisso um trabalho
de natureza distinta da ciência. Uma citação de Lytton Strachey socorreu Maurois
140 na finalização de seus argumentos, desta feita para insinuar algo que o autor francês
não ousou afirmar tão categoricamente quanto seu mestre britânico:

(...) É óbvio que a História não é uma ciência; é óbvio que a História
não é uma acumulação de fatos, mas a relação entre eles (...) Fatos rela-
cionados ao passado, se forem coletados sem arte, serão compilações,
e compilações, sem dúvida, podem ser úteis, mas elas não são Histó-
ria, tanto quanto manteiga, ovos, sal e temperos não são uma omelete.
(Maurois 1929: 110-111)

Importante perceber, nessas formulações conclusivas de Maurois, a tônica na


singularidade, no único, no individual e no irrepetível como mote diferenciador
dos saberes sobre as experiências humanas. Nesse enfoque, a biografia poderia
figurar como a melhor expressão de um conhecimento histórico, visto como ma-
nancial de circunscrição do singular. Concebido dessa forma, contudo, o saber
histórico não poderia ser considerado uma ciência, caso essa última viesse a ser
conceituada como conhecimento racional, formulador de leis explicativas ou de
análises centradas na causalidade de fenômenos numa ordem geral.
Maurois, como outros intelectuais de sua época, e, nesse aspecto, exem-
plificando uma sensibilidade moderna, criticou os valores de uma racionalidade
Márcia de Almeida Gonçalves / Revista de História 150 (1º - 2004), 129-155

científica ancorada no percurso teórico e metodológico das ditas ciências da


natureza, tomadas por alguns, entre esses os positivistas, como o modelo a
ser seguido por todos os que desejassem produzir saberes verdadeiros. O conhe-
cimento do mundo dos homens exigiria para além da técnica, uma boa dose de
intuição, uma poiesis, e nisso a arte de criar algo, em especial, uma compreensão
que informasse e sensibilizasse. A história, na forma do que Strachey denominou
de compilações, informaria, mas não sensibilizaria. Para Strachey e Maurois, a
história como saber sobre a vida dos homens não poderia inserir-se no paradigma
de ciência então em voga, tanto quanto, a despeito das diferenças, a biografia
também não poderia. Na discussão sobre as relações entre biografia e história,
o que estava em pauta era o próprio valor do conhecimento histórico, a partir do
questionamento de sua natureza epistemológica.
Se a biografia, nas suas relações com a história, em muitos aspectos deveria
ser entendida como um obra de arte, as argumentações de André Maurois, nesse
ponto, vieram a ser desdobradas em aspectos sobre os usos da narrativa biográ-
fica. A partir de uma introdutória ponderação acerca das funções da arte como
veículo para os sentimentos e percepções do artista, Maurois apresentava a seguinte
questão: seria a biografia, tanto quanto o romance e a autobiografia um meio de 141
expressão, em especial dos pontos de vista e das emoções do biógrafo?
Desta feita, mais do que em outros momentos de suas argumentações, o autor
francês utilizou-se de sua própria experiência como biógrafo para tentar res-
ponder à questão proposta. André Maurois confessava que suas escolhas de
sujeitos a serem biografados estiveram diretamente vinculadas à identificação
de idéias e valores com os quais simpatizava. Firmando uma posição polêmica,
Maurois asseverava a pertinência da biografia como meio de expressão,
particularmente quando o biógrafo entendesse seu biografado como o outro que
pudesse aplacar secretas necessidades de sua própria natureza. Nessa maneira,
os sentimentos e as aventuras do biografado seriam uma mediação para os
sentimentos do biógrafo e, numa certa extensão, a narrativa tornar-se-ia uma
espécie de autobiografia disfarçada de biografia (Maurois 1929: 125).
Se tais estratégias seriam comuns e possíveis, Maurois não perdia de vista
a questão da legitimidade da escrita biográfica, ameaçada por práticas onde a
busca de si pudesse vir a suplantar o retrato do outro. Nesses casos, o biógrafo
correria o risco de, inconscientemente, deformar a verdade histórica, o que
abriria espaços para a condenação da qualidade de seu trabalho, em função
de uma excessiva subjetividade. Para André Maurois, antes de qualquer outro
aspecto, a história, ou aquilo que soubéssemos sobre ela, deveria ser respeitada.
Márcia de Almeida Gonçalves / Revista de História 150 (1º - 2004), 129-155

Publicar uma biografia, ou anunciá-la como tal e não como um romance, seria
o anúncio de fatos autênticos, aliás a moeda de troca e de confiabilidade entre
o biógrafo e seus leitores. O biógrafo, nesse sentido, deveria ao máximo pro-
curar ser fiel àquilo que o biografado de fato vivenciou e sentiu no curso de
sua existência (Maurois 1929: 131-132).
Conclamando a fala hipotética de um historiador, Maurois alertava para os
problemas do método biográfico; problemas associados ao infinito cuidado, à
absoluta honestidade, à fixação de nunca alterar fatos singulares. Ciente dessas limita-
ções, e posando de biógrafo crítico de si mesmo, Maurois asseverava uma espécie
de tautologia: a despeito de todos os problemas, não haveria outro método. Se o fato
científico poderia vir a ser explicado por procedimentos de análise e de síntese, o
entendimento de um ser humano e de sua inevitável complexidade não poderia ser
resumido a uma exaustiva compilação de detalhes (Maurois 1929: 133).
Se o biógrafo, entre dificuldades, cuidados e hesitações, poderia fazer da bio-
grafia um meio de expressão, em uma dimensão diferenciada, o mesmo teria valor
para os leitores dessas narrativas de vida. Como textos dessa natureza, com a preten-
são de alcançar o realismo, as biografias poderiam guardar, em suas páginas, exem-
142 plos comportamentais para leitores ávidos pelas existências alheias.
A recepção e as apropriações do texto biográfico pelos leitores ditavam, por
sua vez, as possibilidades de uso pedagógico e moral dessas narrativas de vida.
Se isso denotava um valor de uso para as biografias, em especial daquelas cujos
protagonistas já fossem considerados notáveis, incorria, paralelamente, em mais
uma responsabilidade por parte do biógrafo na realização de seu ofício. Maurois
finalizava suas considerações sobre a biografia como meio de expressão, aler-
tando para a prudência em não fazer da narrativa de vida de um homem um repo-
sitório de moralismos, que, à sua maneira, poderiam também representar, excesso
de subjetividade por parte das impressões do biógrafo.
As últimas considerações de André Maurois dedicaram-se, respectiva-
mente, à autobiografia e às relações entre biografia e romance. Retomando
questões discutidas anteriormente, em particular as que versaram sobre as
possibilidades e limites de conhecer a verdade sobre um homem, o autor fran-
cês acrescentou mais algumas inferências sobre o fazer biográfico.
Entendendo a autobiografia como uma derivação da biografia, André
Maurois encontrava, nas particularidades dos métodos autobiográficos, argu-
mentos preciosos sobre as limitações intrínsecas ao conhecimento da verdade
acerca da vida de um homem. Haveria uma espécie de ilusão autobiográfica
a ser lembrada, nos termos de que nenhum homem guardava lembranças
Márcia de Almeida Gonçalves / Revista de História 150 (1º - 2004), 129-155

completas sobre suas experiências, sentimentos, pensamentos, sonhos e racio-


nalizações. Memórias seletivas e imperfeitas, formadas por muitos esqueci-
mentos, voluntários e involuntários, consistiriam na matéria bruta a partir da
qual uma narrativa existencial poderia ser produzida. Nenhum homem, de fato,
era senhor de si e isso se tornava contundente e trágico quando alguém decidia
narrar sua vida de forma ordenada e significativa. Debitando da conta da com-
plexidade da psique humana os dividendos dessas limitações, Maurois concluía
que o autor de uma autobiografia ideal ainda estaria por nascer5.
Sua última reflexão correspondeu a uma análise acerca das dificuldades
de se alcançar a verdade sobre a vida de um homem, a partir de uma compa-
ração entre a liberdade de criação do romancista e as imposições da funda-
mentação documental, típicas do ofício do biógrafo. Se na construção de seus
personagens, o romancista poderia e deveria lançar mão das imagens neces-
sárias, no sentido de dar-lhes vida, percepções, pensamentos, ação; o biógrafo,
tanto quanto o historiador, assim não poderia proceder, tendo que circunscrever
suas inferências àquilo que estivesse presente nos vestígios documentais refe-
rentes ao seu biografado.
A diferença fundadora entre a narrativa ficcional e a de caráter realista, 143
em muitos aspectos, possibilitava ao romancista, especialmente àquele, em
alguma medida, ancorado na perspectiva de criar textos e personagens veros-
símeis, a produção de relatos muito mais convincentes na sensibilização de
leitores em busca de boas histórias sobre misérias e grandezas humanas. Essa
constatação foi encaminhada para uma derradeira questão: em que medida, o
biógrafo poderia valer-se das técnicas do romancista?
Para Maurois, a busca, por parte dos biógrafos, da elaboração de narrativas
humanizadoras de seus biografados, dificultaria ainda mais suas tarefas sempre
norteadas pela fronteira dos registros documentais. Nessa aparente adversidade,
contudo, Maurois visualizava um desafio e um estímulo, suportado e, sem dúvida
bem realizado, pelos biógrafos que criaram belos retratos em papel e letras.
Em certa medida, os bons biógrafos conseguiriam, como os bons roman-
cistas, manter Sherazade viva, caso ela fosse narrar suas histórias entre seus

5
A despeito do ceticismo, ou de sua maneira muito peculiar de caracterizar a natureza
humana – o ser complexo, em constante mudança, escravo da transitoriedade do tempo
– André Maurois finalizou sua conferência sobre autobiografia enumerando e comen-
tando textos qualificados como satisfatórios, na qualidade de trabalhos autobiográficos.
Márcia de Almeida Gonçalves / Revista de História 150 (1º - 2004), 129-155

contos das mil e uma noites. Para que a vida de Sherazade viesse a ser poupada,
a história que estivesse a narrar, sendo a de um único homem, suas desventuras
e esperanças, deveria primar pela cadência envolvente e provocativa da curio-
sidade sobre o desenrolar da trama, já que o final – a morte do biografado –,
a princípio, seria esperado (Maurois 1929: 137-138).
Para Maurois, a sobrevivência de Sherazade dependeria, em larga medida,
do sujeito biografado, não só pelas especificidades de sua trajetória de vida, como
também, pela forma como essas viessem a ser sistematizados pelo biógrafo.
Seria, nesse ponto, fundamental fazer do biografado o Homo Biographicus, uma
terceira categoria diferente do Homo Sapiens e do Homo Fictus. À sua maneira,
abusando de imagens irônicas, André Maurois concebia cada um desses como
espécimes habitantes de mundos correlatos, porém diferentes: a vida real, o espa-
ço ficcional e o universo particular da narrativa biográfica. O autor francês afir-
mava sua concepção acerca da biografia: o produto resultante da difícil junção
entre técnica e intuição. Estava, sem dúvida, a dignificar o gênero biográfico e
mais, a valorizar uma certa maneira de escrever biografias, onde aliás, ele próprio
figurava como entusiasta e divulgador (Maurois 1929: 199-203).
144
Em busca de homens históricos
As indagações de Maurois, no momento de sua emergência, tornaram-se uma
matriz importante de idéias sistematizadas acerca dos usos, valores e características
do gênero biográfico. Proferidas em inglês, publicadas em francês, traduzidas para
o inglês, entre 1928 e 1929, as lectures de Maurois circularam nas prateleiras de
livros de intelectuais de outras terras e línguas, aportando em solo brasileiro, para
a alegria ingênua dos bacharéis que liam avidamente tudo que da França brotasse.
A apropriação desse debate animou letrados brasileiros a desejar que, tam-
bém no campo das narrativas de vida – biografias, memórias, autobiografias
– viéssemos a superar o “atraso” frente às últimas inovações européias. Inte-
ressante constatar que o debate sobre a renovação do gênero biográfico ocorreu
em paralelo e, em relação direta, ao crescimento da publicação de histórias
de vidas individuais. Na leitura de Alceu Amoroso Lima assistiu-se a uma ver-
dadeira epidemia biográfica (Lima 1931: 165-177). Mais do que um mero
fenômeno quantitativo, a epidemia biográfica existiu como tema propulsor,
caro a muitos dos que se dedicaram à critica literária na época, e que, no exercí-
cio dessa atividade intelectual, estabeleceram as dimensões e significados da
dita biografia moderna no conjunto da produção bibliográfica brasileira.
Márcia de Almeida Gonçalves / Revista de História 150 (1º - 2004), 129-155

Não pretendendo esgotar, nos limites desse artigo, as polêmicas que mobi-
lizaram letrados nos seus diagnósticos sobre a epidemia biográfica, cumpre
destacar uma de suas apropriações. Entre o final da década de 1920 e a de
1950, com destaque para os anos trinta e os anos quarenta, intelectuais
empenhados na renovação da literatura e da história nacional, dispostos a cir-
cunscrever o campo dos Estudos Brasileiros, compreenderam a renovação da
biografia como mais um aspecto necessário entre as estratégias de atualizar
análises sobre a realidade nacional. No diálogo com as lições dos mestres da
biografia moderna, em especial Lytton Strachey e André Maurois, alguns letra-
dos brasileiros acharam que vultos eminentes da história política e da produção
literária brasileira poderiam ter suas vidas apresentadas como trajetórias de
homens de carne e osso, a sofrer todas as mazelas da condição humana – cria-
dores e criaturas de experiências e enredos históricos.
O fazer biográfico, sob a clave de uma narrativa humanizadora de seus
protagonistas, poderia tornar-se uma pedagogia de vida a instruir leitores no
catecismo dos saberes sobre a nação brasileira. De forma resumida, diríamos
que essa perspectiva informou – tanto quanto veio a ser informada por ela - a
produção das biografias históricas que compuseram a obra de Octávio 145
Tarquínio de Sousa.
Assim, para Octávio Tarquínio de Sousa, a reinvenção da história brasi-
leira, proposição candente entre os que respiraram a atmosfera das interroga-
ções modernistas (Saliba 2000: 43-49), seria promovida, naquilo que se referia
especificamente ao processo de constituição do Estado Nacional, por inter-
médio de um fazer biográfico que procuraria compreender as ações dos ho-
mens, suas virtudes, defeitos e hesitações, no seu meio social e histórico, ou
como Tarquínio de Sousa costumava nomear, no espírito de sua época.
Esse autor, ao desenhar a fisionomia de seus biografados, em retratos de
papel e letras, perseguiu, em igual proporcionalidade, a compreensão do perío-
do histórico que seus protagonistas viveram. A biografia, como a narrativa da
vida de um eleito, tornava-se, então, um instrumento mediador, a via de acesso
a uma outra época sob a perspectiva de reconstruir o passado pelos olhos de
quem o encenou. Nesses termos, a fisionomia do sujeito individual, exterio-
ridade captada por aparências e traços de comportamento porventura regis-
trados, guardava um caráter a ser decifrado. Na composição de ambos, fisiono-
mia e caráter, exterioridade e interioridade, forma e conteúdo, definiu-se a
possibilidade de compreender o espírito de um tempo, as concepções e as idéias
por meio das quais cada um, à sua maneira, aprendeu a estar no mundo, com
Márcia de Almeida Gonçalves / Revista de História 150 (1º - 2004), 129-155

uma assinatura e um rosto. Construindo biografias, Octávio Tarquínio de Sousa


pretendeu escrever história em uma literalidade absoluta, por vezes ingênua,
quanto à premissa de atribuir aos anos, e aos homens, uma fisionomia.
Em suas narrativas biográficas publicadas entre 1937 e 1942- Bernardo Pereira
de Vasconcelos e seu tempo, Evaristo da Veiga e Diogo Antônio Feijó – Octávio
Tarquínio de Sousa não só materializou a perspectiva de escrever biografias
históricas, como igualmente idealizou o projeto, posteriormente abandonado, de
elaborar uma História das Regências no Brasil. Acreditava que ao escrever bio-
grafias, produziria uma outra história sobre o que considerava um dos períodos
mais importantes do processo de formação do Estado nacional. Pela clave da
humanização de dirigentes que vivenciaram o momento em que a nação quase
não se constituiu como unidade política, Octávio Tarquínio visualizou o cruza-
mento entre identidades individuais e individualidades históricas.
Na primeira edição da biografia de Diogo Antônio Feijó, diferentemente
das que a precederam, consta um prefácio onde o autor dispôs-se a esclarecer
suas concepções sobre o fazer biográfico. A impressão de leitura dessas páginas
introdutórias nos levou a crer que Octávio Tarquínio, naquela altura de sua
146 trajetória intelectual, podia já demonstrar conhecimento adquirido na escrita
de um gênero cada vez mais presente na produção letrada nacional. Falava o
biógrafo, a esclarecer e dignificar funções e idiossincrasias de suas escolhas
autorais como historiador.
Apresentando seu principal personagem e o tema do qual tratava o novo
livro – a vida de Feijó –, o autor, de antemão, ponderava que a notoriedade
histórica em torno do protagonista mais do que facilitar, dificultara a realização
de um determinado tipo de biografia. Para o autor, seu biografado teria sido,
até então, representado pelos olhos deslumbrados de panegiristas ou avaliado
com rancor e má vontade por inimigos póstumos ou contemporâneos. Urgia
pois realizar o retrato fidedigno do padre paulista, criatura capaz de furor e
de ternura, vária, contraditória, complexa. Urgia restituir a Feijó sua condição
humana e deslocar imagens que carregaram nas tintas de uma monótona e estú-
pida coerência. Se Feijó havia sido o homem de governo a serviço da ordem,
com senso de autoridade e noção de dignidade, foi também, em outras ocasiões,
o político apaixonado e caprichoso, empenhado em ações contraditórias quan-
to aos princípios que havia encarnado. Desculpando-se junto a biógrafos que
poderiam ver em seu texto obra ímpia de dúvida e de negação, Octávio
Tarquínio afirmava que o mais importante era descobrir o indivíduo tal como
Márcia de Almeida Gonçalves / Revista de História 150 (1º - 2004), 129-155

ele foi na sua humana realidade, e não como no-lo impingiram apologistas e
detratores (Sousa 1942: IX-X).
Octávio Tarquínio ponderou que, mesmo não poupando esforços na
pesquisa de todos os elementos e de todo material indispensável à reconsti-
tuição da vida de Feijó, desenvolvendo-a com rigor em arquivos e bibliotecas
no Rio de Janeiro e em São Paulo, não pretendeu restringir a história, em
particular a biografia, ao mero levantamento cronológico ou ao fastidioso rela-
tório tão do gosto de certos caçadores de lêndeas. Reconhecendo que nada
seria inútil para o conhecimento de um homem e que as coisas mínimas pode-
riam por vezes explicar as maiores, Octávio Tarquínio asseverava que não seria
apenas por intermédio de uma interminável narração de detalhes que se poderia
elaborar uma boa biografia.
Haveria um nível de criação no trabalho do biógrafo, e as conjecturas fariam
parte da montagem do texto que pudesse restaurar o tempo que passou. O exercí-
cio desse potencial criativo exigiria o máximo de prudência de par com a mais
escrupulosa submissão aos fatos na forma como esses se consumaram. Para
Octávio Tarquínio, era fundamental atentar para as diferenças entre o trabalho
de criação do biógrafo e aquele que seria desenvolvido pelos romancistas. Esses 147
poderiam estabelecer planos próprios e específicos para a duração da vida de
seus personagens, aproximando-se em maior ou menor escala do espetáculo do
mundo. Historiadores, em especial os biógrafos, deveriam respeitar passiva-
mente o curriculum vitae do biografado (Sousa 1942: X-XI).
Explicitando uma de suas referências autorais, Octávio Tarquínio evocava
Lytton Strachey, confessando o quando foi difícil seguir o receituário do
mestre. Assim, com adequações, buscou aplicar a máxima de desprezar tudo
o que fosse redundante e nada perder do que fosse importante. Nas mudanças
no timbre da voz às diferentes fases de vida do biografado, mesmo as mais
lentas e monótonas, o biógrafo deveria alcançar o máximo de conformidade
com a vida que almejava fixar. Na busca dessa conformidade, entrariam tam-
bém a sondagem da alma do biografado e o corte em profundidade da época
em que a vida transcorreu.
Finalizando a apresentação da biografia de Feijó, Octávio Tarquínio dizia ter
se esforçado para permanecer num certo estado de dúvida receptiva com relação
ao seu biografado. Adiantava que, por motivos diversos, seu livro, provavelmente,
não agradaria aos panegiristas e aos detratores. Esperava, contudo, que os leitores
de boa vontade chegassem ao fim do livro com impressão semelhante a sua: uma
Márcia de Almeida Gonçalves / Revista de História 150 (1º - 2004), 129-155

fundada admiração por Feijó, visto embora nas contingências de sua vida e nos
limites de suas próprias dimensões (Sousa 1942: XI-XIII).
Como intelectual de seu tempo, a falar a linguagem de sua geração, Octávio
Tarquínio tornou-se o autor de biografias históricas em estreito diálogo com o
que foi tematizado sobre a emergência de uma biografia moderna. Leitor de
Lytton Strachey e de André Maurois, como atestam as marcações nos exempla-
res de obras desses autores em sua biblioteca, Octávio Tarquínio foi, entre seus
contemporâneos, aquele que talvez mais tenha investido na perspectiva de rein-
ventar a história nacional por intermédio da renovação do gênero biográfico.
Ao dar continuidade à prática de escrever a história de momentos ímpares
das experiências políticas brasileiras, valendo-se das trajetórias de vida de
alguns de seus diletos dirigentes, dialogou, como quis enfatizar, com uma certa
tradição, ancorada em referências às obras de Joaquim Nabuco e Oliveira
Lima. Ao atualizar a escrita biográfica, inspirando-se nas lições de Lytton
Strachey, Octávio Tarquínio imprimiu uma face moderna à sua historiografia,
nos quadros dos valores que conceberam as relações entre biografia e história
como estratégia eficaz para a informação e a sensibilização de leitores. Nesse
148 cruzamento se manifestou a moderna tradição dos textos de Octávio Tarquínio
de Sousa e mais, uma pedagogia dos saberes sobre a nação.
A análise das três biografias publicadas por Octávio Tarquínio de Sousa,
entre 1937 e 1942, nos permitiu identificar suas especificidades e, em especial,
verificar o quanto cada uma delas fez valer a premissa de que a narrativa bio-
gráfica viabilizava, a partir de certos cuidados metodológicos e conceituais,
escrever a história de uma época. A época foi o terreno movediço das Regên-
cias, utilizando aqui a expressão cunhada por Tarquínio de Sousa, tão expres-
siva na junção da imagem do terreno que se move, configurando um tempo e
uma paisagem histórica a ser retratada. Mais do que a época, houve um tema,
o da constituição do Estado independente e da nação, como entidade política
soberana, nas ambiências da predominância de uma mentalidade liberal.
Se o personagem biografado, suas ações e idéias, no curso de trajetórias
de vida, responderam pelas principais análises realizadas pelo autor, por inter-
médio de um narrador em terceira pessoa - o observador externo que enqua-
drava a cena e os protagonistas da história a ser contada -; essa última, nas
suas circunstâncias dramatizadas pela própria narrativa, tornava-se o elemento
definidor dos sentidos de cada uma das experiências da vida individual ali re-
presentada. Octávio Tarquínio procurava demonstrar o quanto os homens só
se configuravam enquanto sujeitos por intermédio da história, entendida aqui
Márcia de Almeida Gonçalves / Revista de História 150 (1º - 2004), 129-155

como vivência social e cultural, circunscrita a uma duração. Cada uma das
biografias mencionadas tiveram suas páginas saturadas por descrições inter-
pretativas das circunstâncias que afetaram grupos, valores, práticas políticas
na época em que a vida nacional, outra expressão utilizada por Octávio
Tarquínio, definia sua fisionomia. Para o autor, a apreensão da vida nacional
se daria pela mediação da vida de seus biografados, na perspectiva de enxergar
nas fisionomias individuais a fisiognomia de coletividades históricas.
Cada uma das individualidades cujas fisionomias Octávio Tarquínio quis
emoldurar em seus retratos em papel e letras assim veio a ser representada
como parte de um conjunto de relações historicamente condicionadas. Nesses
termos, a trajetória de Bernardo Pereira de Vasconcelos confundiu-se, a partir
de um certo momento, com a trajetória do Regresso Conservador. A de Evaristo
da Veiga ilustrou, de forma paradigmática, as propostas do reformismo liberal
de viés moderado, tão adequado, como procurou reiterar o biógrafo, à conso-
lidação da solda nacional. A vida de Feijó, mais vária e diversificada, garantiu
o panorama de momentos ímpares na história da constituição do Estado Impe-
rial, no Brasil, e da própria nação como corpo político autônomo: dos debates
nas Cortes de Lisboa às Revoltas Liberais de 1842. 149
Em cada uma dessas biografias, Octávio Tarquínio procurou fazer a bio-
grafia da nação brasileira sobre as premissas de que a constituição dessa comu-
nidade de homens, aglutinada pela partilha de valores, tradições culturais e
experiências comuns, havia sido gestada pela ação de sujeitos que abraçaram
os princípios políticos liberais. Mesmo ao modular os diversos projetos origi-
nários dessa matriz ideológica, como se quisesse ilustrar sua elasticidade his-
tórica, o biógrafo posicionou-se, por vezes, fazendo suas as opiniões e credos
de seus biografados. Na exemplaridade das condutas de seus protagonistas,
Octávio Tarquínio procurou, por um lado, interpretar as ações dos que cons-
truíram o Estado nacional no momento de sua emergência histórica e, também,
atualizar historicamente o valor do liberalismo político, em tempos em que
esse, sofria tantas críticas e revisões.
Nesse aspecto, o tempo das Regências, distante cerca de cem anos, do mo-
mento em que Tarquínio de Sousa produziu seus primeiros textos biográficos,
pareceu ser a paisagem histórica paradigmática, por excelência, para uma refle-
xão acerca dos usos do credo liberal na conformação de ordens políticas onde,
o justo meio e o ideal de moderação pudessem guiar a conduta dos que dese-
javam modernizar e redescobrir a nação. Cumpre destacar, o quanto Octávio
Tarquínio, autor/narrador em terceira pessoa, destacou a importância do debate
Márcia de Almeida Gonçalves / Revista de História 150 (1º - 2004), 129-155

parlamentar na condução da vida política daqueles dirigentes imperiais, monu-


mentalizando tais experiências frente a tantas ameaças à consolidação da solda
nacional. Talvez quisesse dizer aos leitores que a história de seu tempo presente
– marcada, entre outros aspectos, pela a vigência do Estado Novo e suas práticas
autoritárias, como a censura e o fechamento do Congresso – poderia ser diferente.
Por mais que os homens estivessem presos às circunstâncias históricas, essas,
numa certa proporção, se estabeleciam em conjunção com as suas vontades.
Como homem do seu tempo e na qualidade de letrado, Octávio Tarquínio
viu, nas narrativas de vida de seus biografados, a possibilidade de construir
análises históricas decifradoras e atualizadoras dos problemas nacionais.
Diríamos que, sua forma particular de narrar a nação (Bhabha 1999: 1-7) pro-
duziu uma biografia do Estado nacional, no momento de sua emergência, cen-
trada na proposta de figurar a dimensão trágica da história dos sujeitos indivi-
duais que assumiram postos na direção do mundo do governo (Mattos 1987:
109-129). A figuração da vida desse mundo do governo, por intermédio das
trajetórias individuais de seus dirigentes, permitiu a Octávio Tarquínio apre-
sentar a história da constituição do Estado nacional brasileiro sob a estreita
150 dependência da vontade de permanecer juntos6, posta à prova pelas próprias
contingências da história, que o biógrafo e o historiador registrou na forma
de um conhecimento que ordenava lembranças e esquecimentos providenciais.
Salta a impressão de que ao biografar dirigentes políticos da pretérita
experiência de construção do Estado nacional, Octávio Tarquínio buscou falar
do terreno movediço de sua contemporaneidade, visualizando na interpretação
do passado algo esclarecedor sobre as impertinências e descontinuidades de
suas vivências imediatas.
Cumpre destacar que, na busca de retratos em papel e letras que pudessem
gerar nos leitores a impressão de que o biografado voltava a viver, na premissa
de fazer da narrativa algo que pudesse figurar a dinâmica e o movimento das
experiências vivenciadas pelo protagonista, Octávio Tarquínio quis imprimir

6
Acreditamos que Octávio Tarquínio estabeleceu diálogos com a obra de Ernest Renan.
Apesar de não fazer nenhuma menção direta, nas indicações bibliográficas de seus tex-
tos, o biógrafo e historiador parece ter se inspirado nas lições do pensador francês acer-
ca do conceito de nação. Para Renan, a nação seria um princípio espiritual; o resultado
de profundas complicações históricas; uma consciência moral criada pelos homens, su-
bordinada a um rico legado de lembranças e ao desejo de viver juntos, a vontade de fa-
zer valer a herança indivisa; a nação, como o indivíduo, seria o resultado de um longo
passado de esforços, de sacrifícios e de devoções (...) (Renan 1997: 12-43).
Márcia de Almeida Gonçalves / Revista de História 150 (1º - 2004), 129-155

sobre seus textos um certo valor literário, a partir da utilização de elementos


da narrativa do romance – a graça, a leveza, a maneira de apresentar o assunto.
Na perspectiva de manter Sherazade viva, e nisso seguindo parcialmente a
receita proposta por Maurois, Octávio Tarquínio materializava, em suas nar-
rativas biográficas, mais uma de suas dimensões modernas.

De Strachey a Dilthey
Firmando um estilo, o de autor de biografias históricas em diálogo com o
que essas pudessem materializar de exemplos de uma reinvenção da história
nacional e de atualização do próprio fazer biográfico, Octávio Tarquínio de
Sousa veio a publicar José Bonifácio, em 1945, e A vida de D. Pedro I, em
1952, essa última recebida entusiasticamente pela crítica literária da época.
O projeto de reunir suas biografias históricas e outros textos de sua autoria na forma
de uma coleção, em 1958, inegavelmente, perenizou os trabalhos de Octávio Tarquínio
de Sousa sob uma clave diferente daquela que havia, nos anos quarenta, o qualificado
como o historiador das Regências. Com a História dos Fundadores, novos sentidos
foram imputados a cada uma de suas biografias de dirigentes políticos imperiais, em
função do pertencimento a um conjunto particular – a coleção –, marcadamente com-
151
prometida com a análise de um tema e de uma época, qual seja: a emergência e a conso-
lidação do Estado Imperial brasileiro.
Se esse aspecto foi recorrente nos comentários dos que analisaram a coletâ-
nea lançada em 1958, cabe, destacar, o quanto, nesse momento, o autor expli-
citou referências à Wilhelm Dilthey nas suas perspectivas de relacionar nar-
rativa biográfica e escrita da história.
Na Introdução à História dos Fundadores do Império do Brasil, Octávio
Tarquínio declarou que, quando esteve em suas possibilidades, sua tarefa bio-
gráfica inspirou-se em boa parte das lições de Dilthey (Sousa 1960: v. I – 14)7.
De fato, como pudemos constatar, suas possibilidades estiveram associadas à
leitura de El mundo historico (Dilthey 1944). Na biblioteca de Octávio
Tarquínio de Sousa, a primeira edição em espanhol do referido livro, datada

7
Na introdução à História dos Fundadores Octávio Tarquínio, do mesmo modo que havia
feito no prefácio à primeira edição de Diogo Antônio Feijó, explicitou os valores que
informavam suas concepções sobre biografia e história. Não caberia nesse artigo detalhá-
las. Vale mencionar o quanto, naquele momento, 1958, conceitos das formulações
historistas vieram a compor o eixo de suas argumentações.
Márcia de Almeida Gonçalves / Revista de História 150 (1º - 2004), 129-155

de 1944, ainda guarda as anotações e os marcadores de páginas, pequenas nes-


gas de papel amarelecidas, a denotar os vestígios de leitura do autor.
Entre tantas marcações, cumpre destacar, nos limites desse artigo, aquelas
em que o leitor Octávio Tarquínio deparou-se com as análises do filósofo sobre
a biografia. Em seis páginas, Dilthey se dispôs a expressar suas considerações
sobre o caráter científico e sobre a dimensão artística da narrativa biográfica.
Octávio Tarquínio assinalou grande parte do texto; parecia ter encontrado
sintéticos argumentos de autoridade para suas inquietudes de biógrafo.
Cabe relembrar que tais considerações de Dilthey foram originalmente
escritas em 1910 (Dilthey 1944: 417-418). O estatuto da escrita biográfica,
traduzido na questão de ser ela ou não parte integrante da história, na sua di-
mensão de conhecimento científico, estava exatamente sendo posto em xeque,
face a transformações relacionadas à emergência de uma biografia moderna.
Como filósofo empenhado na tarefa de realizar a crítica da razão histórica,
Dilthey percebeu, de forma acurada, o alcance epistemológico e metodológico
do debate em torno do estatuto da biografia, situando-o no campo das
determinações da própria cientificidade do conhecimento histórico.
152 Como sua crítica da razão histórica não só visava a fundamentar as ditas
Ciências do Espírito, com destaque entre elas para a História, como igualmente
se desdobrava em uma filosofia da vida, com implicações sobre os usos da
psicologia e da hermenêutica (Amaral: 1997; Gadamer 1998: 27-38), a
discussão sobre o estatuto da biografia representou, nas formulações
diltheyanas, a possibilidade de exemplificar o quanto suas idéias resolveriam
certas antinomias, cuja existência, na avaliação do filósofo, se devia à impro-
priedade de querer conhecer a vida humana por intermédio de valores que ser-
viriam unicamente às ditas Ciências da Natureza. Pelo seu pertencimento ao
campo da história, nesse aspecto, às Ciências do Espírito, por sua dimensão
de narrativa de vida, por sua funcionalidade entre as obras que se prestavam
a decifrar o mundo histórico, a biografia, segundo Dilthey, como resultado de
uma certa metodologia de produção do conhecimento, poderia ser qualificada
como obra de arte, possuindo, todavia, um caráter científico, ditado pelas suas
interfaces com o conhecimento histórico. O texto diltheyano, nessas argumen-
tações, se desenvolveu sobre um jogo de oposições e complementaridades,
onde ao fim, a expressão obra científica de arte apontou para a ambigüidade
intrínseca do fazer biográfico (Dilthey 1944: 270-276).
A par dessas argumentações, talvez possamos compreender o encontro
entre o leitor Octávio Tarquínio e o filósofo alemão. O biógrafo Tarquínio de
Márcia de Almeida Gonçalves / Revista de História 150 (1º - 2004), 129-155

Sousa, cuja produção intelectual havia se baseado em rigorosa pesquisa e crí-


tica documental, traduzidas em textos onde avultaram os cuidados com a forma
literária, visualizou nas considerações diltheyanas sobre a biografia, as lições
que, talvez, havia muito, fossem procuradas, e que, em certa medida, aprofun-
davam, em bases epistemológicas, valores decantados, de forma mais ligeira,
nas formulações de Strachey e de seu divulgador maior, André Maurois. O
historismo de Wilhelm Dilthey complementou, em larga medida, a trajetória
de um autor que pautou grande parte de sua produção no cruzamento entre
identidades individuais e individualidades históricas.
Nas palavras de Sérgio Buarque de Holanda, Octávio Tarquínio quis
abordar a História a partir dos homens que fizeram a História (Holanda 1988:
11). Assim o fez, em especial, no momento de reunir as biografias produzidas
ao longo de 15 anos, na forma da História dos Fundadores, firmando um lugar
e um valor para os usos da biografia na elaboração do conhecimento histórico.
Um dos últimos vestígios de leitura de Octávio Tarquínio sobre El mundo
historico, nos auxiliou no traçado de algumas derradeiras considerações:

(...) A vida se dá unicamente na vivência, na compreensão e na capta- 153


ção histórica. (...) Estamos abertos às possibilidades, já que o sentido
e o significado surgem primeiramente no homem e na sua história. Mas
não no homem individual, senão no homem histórico. Pois o homem é
algo histórico...(Dilthey 1944: 318)

A premissa diltheyana do homem como ser histórico e da sua vida como


algo cujo sentido só poderia ser captado por meio da História, delegou ao texto
biográfico, na sua acepção de escrita da vida de um homem, um valor intrínseco
entre narrativas voltadas para o estudo do que “realmente havia acontecido”.
As narrativas biográficas, contudo, deveriam configurar-se como textos que
ao decifrarem seus protagonistas como sujeitos individuais, viessem, acima
de tudo, apresentá-los como homens históricos. Nesse ponto, o encontro do
biógrafo e historiador Octávio Tarquínio de Sousa com as formulações histo-
ristas do pensador alemão Wilhelm Dilthey permitiram ao autor brasileiro rei-
terar e lapidar o valor de suas narrativas biográficas para a escrita da história
do Estado Nacional, em terras brasileiras. José Bonifácio, D. Pedro I, Feijó,
Evaristo da Veiga, Bernardo de Vasconcelos foram todos, nos retratos em papel
e letras de Octávio Tarquínio de Sousa, homens históricos.
Márcia de Almeida Gonçalves / Revista de História 150 (1º - 2004), 129-155

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Márcia de Almeida Gonçalves / Revista de História 150 (1º - 2004), 129-155

156
AS TRADIÇÕES HISTÓRICAS INDÍGENAS DIANTE DA
CONQUISTA E COLONIZAÇÃO DA AMÉRICA: TRANSFORMAÇÕES
E CONTINUIDADES ENTRE NAHUAS E INCAS*

Eduardo Natalino dos Santos**


Doutorando no Depto. de História - FFLCH/USP

Resumo
Apresentaremos neste artigo algumas das principais características de duas
tradições históricas indígenas: a nahua e a inca. Em seguida, analisare-
mos comparativamente suas ações, reações, transformações e continui-
dades diante de desafios históricos similares e contemporâneos: as con-
quistas e as colonizações castelhanas do Altiplano Central Mexicano e
dos Andes durante os séculos XVI e XVII.

Palavras-Chave
Nahuas • Incas • Conquista e colonização castelhana • Tradições históri-
cas indígenas • Fontes históricas indígenas

Abstract
This article presents some of the main characteristics of two indigenous
historical traditions: the Nahua and the Inca. The author offers a
comparative analysis of indigenous actions, reactions, adaptations,
transformations, and continuities as they faced similar, contemporaneous
challenges: the Spanish conquest and colonization of Central Mexico and
the Andes during the seventeenth and eighteenth centuries.

Keywords
Nahua • Inca • Spanish conquest and colonization • Indigenous historical
traditions • Indigenous historical sources

*
Este trabalho teve como ponto de partida o curso Visão comparativa da conquista e colonização
das sociedades indígenas estatais: nahuas, maias e incas, ministrado durante o primeiro se-
mestre de 2002 no Depto. de História - FFLCH/USP pelo Prof. Dr. Federico Navarrete Linares
(Instituto de Investigaciones Históricas – UNAM), a quem agradeço pelas críticas e sugestões.
**
Bolsista Fapesp.
Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207

Introdução
A elaboração e o uso social de explicações sobre o passado foram práticas
constantes nas mais diversas sociedades humanas. Em geral, tais elaborações
tratam de explicar e articular as origens, as transformações, as permanências
e as expectativas grupais, dando-lhes sentidos supostamente imanentes, que
funcionam, entre outras coisas, como elementos de coesão social. E essa ima-
nência atribuída é socialmente entendida e aceita, em parte, pelo fato de que
tais explicações são construídas sobre as amplas concepções que cada socie-
dade possui – e compartilha de forma mais ou menos homogênea, dependendo-
se do caso – acerca do tempo, do espaço, da transformação, da permanência,
da origem, do destino, do que seja acontecimento, fato, verdade e etc; e que
formam um todo mais ou menos coerente, mas não monolítico, que podemos
chamar de visão de mundo.1
A construção e a manutenção de explicações históricas com aceitação social
é um processo de média ou longa duração e, em geral, sobretudo nas chamadas
sociedades complexas, tende a estar sob o controle de camadas sociais específicas,
que podem, inclusive, contar com indivíduos ou instituições especializados na pro-
158 dução, na transmissão e na difusão de tais explicações, como é o caso das sociedade
indígenas que analisaremos. Chamaremos de tradições históricas a essas organi-
zações, grupos, instituições ou indivíduos que se dedicam de forma sistemática –
mas não necessariamente exclusiva – à construção, manutenção e transformação
de explicações socialmente aceitas acerca do passado.
E tudo isso – a relação das tradições históricas com determinados grupos
sociais e a ligação de suas construções com uma determinada visão de mundo
– nos leva à conclusão de que é imprescindível entender as explicações sobre
o passado como produtos históricos específicos, inseridos em um conjunto de
problemas que se relaciona diretamente com a sociedade em questão.2

1
O conceito visão de mundo pode ser definido como um “Conjunto articulado de siste-
mas ideológicos relacionados entre sí en forma relativamente congruente, con el que un
individuo o un grupo social, en un momento histórico, pretende aprehender el universo.”
(López Austin 2002).
2
No entanto, é muito comum que as explicações produzidas pelas tradições não ociden-
tais – sobretudo pelas tradições indígenas – sejam analisadas e caracterizadas de forma
conjunta e genérica, como se fossem o resultado da ação de princípios ou leis univer-
Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207

Essas são as idéias gerais que orientaram a elaboração deste artigo, o qual
tem como objetivo específico apresentar algumas das principais características
das tradições históricas nahua e inca, para depois analisar, comparativamente,
suas diferentes ações, reações, transformações e continuidades diante de
processos históricos similares, contemporâneos e levados às regiões do
Altiplano Central Mexicano e dos Andes Centrais por um agente histórico
comum. Estamos nos referindo às conquistas e colonizações castelhanas dos
séculos XVI e XVII.
O entendimento dessas diferentes tradições e de suas distintas reações e
transformações diante da empresa colonial castelhana é fundamental para
podermos contextualizar e analisar adequadamente os escritos históricos3 pro-
duzidos nessas duas regiões durante o Período Colonial4, sejam os escritos de
origem e estrutura mais próximas ao pensamento nahua ou inca, ou sejam os
escritos tipicamente ocidentais que, de alguma maneira, utilizaram-se das
informações provenientes das tradições históricas locais.5

159
sais, que regeriam o pensamento de suas sociedades produtoras – chamado de pensamento
mítico. Partindo desse pressuposto, tais análises procuram determinar as características
formais e conceituais comuns a tais explicações, independentemente das especificidades
sociais e históricas em meio das quais foram produzidas. Veremos, por exemplo, que as
tradições históricas mesoamericanas utilizavam um preciso sistema de calendário como
elemento organizador de suas narrativas. Esse sistema funcionava como uma espécie de
coluna vertebral das narrativas e permitia a marcação de uma inequívoca seqüência tem-
poral diacrônica, fato que não excluía a presença da sincronia nos relatos. Apesar disso,
pouca atenção tem sido dada a esse caráter diacrônico do pensamento mesoamericano,
predominando a ênfase no caráter cíclico ou sincrônico, o qual condiz mais facilmente com
o pressuposto de que fora do mundo ocidental predomina o pensamento mítico, caracteris-
ticamente sincrônico e não preocupado em delimitar a fronteira presente-passado.
3
Estou chamando de escritos históricos ao conjunto de textos que, de modo central e
explícito, possuem como tema as histórias e os costumes dos povos americanos.
4
Esse raciocínio também pode ser aplicado, de modo mais geral, para ajudar a explicar
as distintas ações, reações e transformações das sociedades indígenas americanas frente
ao processo de conquista e colonização castelhanas. Em outras palavras, somente enten-
dendo as especificidades das diversas sociedades indígenas – inclusive suas construções
ideológicas sobre a chegada e a presença do europeu – é que poderemos compreender os
diferentes contatos, convivências e conflitos que foram construídos entre os povos lo-
cais e os estrangeiros a partir do século XVI.
5
Em outra ocasião, tratamos da produção de crônicas e histórias pelos religiosos espa-
nhóis e do uso que fizeram das informações provenientes das tradições indígenas meso-
americanas (Santos 1998).
Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207

1 – As tradições históricas nahua e inca


É muito difícil fazer uma caracterização eqüitativa das tradições históricas
inca e nahua durante o período Pré-hispânico ou Colonial. O conhecimento
acerca dessas tradições – que possuem em comum o fato de pertencer a socie-
dades estamentais e dominadoras que foram alvos das primeiras guerras de
conquistas castelhanas – depende, muitas vezes, de fatores alheios à boa von-
tade do pesquisador, dentre os quais podemos destacar: a sobrevivência ou
não de registros produzidos por tais tradições; o entendimento de seus even-
tuais sistemas de registro; a existência ou não de escritos alfabéticos coloniais,
produzidos por indígenas ou castelhanos, que registrem depoimentos da ver-
tente oral, “traduzam” parte dos registros tradicionais ou que, pelo menos, des-
crevam o funcionamento de tais tradições; e, por fim, a continuidade ou não
dessas tradições até tempos recentes.
A positividade ou negatividade de cada um desses fatores determina,
em parte, a possibilidade de existência de um campo de estudo específico,
que se dedique aos registros tradicionais, aos escritos alfabéticos coloniais
ou aos grupos humanos que mantiveram tais tradições até tempos mais re-
160 centes. A articulação dos conhecimentos oriundos desses diversos campos
de estudo pode nos fornecer a possibilidade de entendermos, pelo menos
em parte, o funcionamento de tais tradições e de seus registros em tempos
pré-hispânicos ou coloniais.
Tal articulação tem sido mais afortunada no caso da tradição nahua do
que no caso da inca, pois existe um grande desequilíbrio, qualitativo e quan-
titativo, no conhecimento das fontes provenientes dessas tradições histó-
ricas, bem como no conhecimento de informações coloniais acerca de seus
funcionamentos.
O desequilíbrio qualitativo deve-se principalmente ao fato de reconhecer-
mos como tais e entendermos apenas os sistemas escriturários empregados
tradicionalmente na Mesoamérica, os quais serviram para a produção de um
sem número de registros sobre papel, pele, pedra, cerâmica e outros materiais.
Enquanto que no caso andino, reconhecemos e entendemos tão somente as
complexas dimensões numéricas dos quipus, registro que servia-se de con-
juntos de cordões de distintas cores e comprimentos, articulados entre si de
diversas formas e com nós em distintas posições. Os quipus mais simples pos-
suíam um cordel horizontal principal, ao qual se atavam cordéis verticais se-
cundários, nos quais registravam-se, de acordo com a quantidade de nós e suas
Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207

posições relativas entre si e entre o cordel principal, as unidades, dezenas,


centenas e etc.6
No entanto, além desse simples esquema de dois tipos de cordéis, muitos
quipus apresentavam cordéis duplos, triplos, com cores diferentes e com di-
ferentes tipos de nós, elementos esses que possivelmente também possuíam
seus significados. Desse modo, paira sobre os quipus uma enorme dúvida: eram
ou não utilizados também para o registro de informações não numéricas?
Pesa a favor dos que defendem que os quipus eram utilizados apenas para
registros numéricos7 o fato de não possuirmos nenhuma “leitura”, “tradução”
ou versão colonial reconhecida e aceita de seus supostos conteúdos não-numé-
ricos, apesar de que, como veremos, alguns cronistas do início do Período Colo-
nial relataram que seus informantes andinos utilizavam-se de quipus para res-
ponder aos questionamentos acerca de suas origens e história. Tais relatos
coloniais são utilizados como argumento pelos que defendem que os quipus
serviam também para o registro de informações não-numéricas8, as quais ser-
viam de base para narrativas que dependiam de uma tradição oral articulada.
Desse modo, creio que não devemos dar a polêmica por encerrada. Voltaremos
a essa polêmica ao tratarmos especificamente de caracterizar a tradição 161
histórica inca.
De qualquer modo, ao contrário do caso do México Central, no caso
andino não possuímos “textos” tradicionais, sejam pré-hispânicos ou colo-
niais, pois se os quipus sobreviventes possuem dimensões narrativas, ainda
não podemos entendê-las.
O desequilíbrio quantitativo caracteriza-se pelo fato de que o número de
documentos baseados nos quipus ou na reconhecida oralidade das tradições
históricas andinas produzidos durante o século XVI e princípios do século
XVII é infinitamente menor do que a quantidade produzida no México Central.
Essa escassez de “traduções” para línguas européias ou de transliterações em
línguas locais dos registros ou narrativas tradicionais – ou ainda a impossibili-
dade de entender totalmente os quipus – compromete as possibilidades de

6
Vale notar que nos Andes, diferentemente da Mesoamérica, onde era utilizado o siste-
ma numérico vigesimal, predominou o sistema decimal.
7
Dentre os quais podemos destacar Pease 1995.
8
Dentre os quais podemos destacar Ascher & Ascher 1995.
Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207

entendimento do funcionamento e das principais características das tradições


históricas incas e andinas em geral.
Bem diferente é o caso do México Central, onde reconhecidamente havia
um sistema de escrita pictoglífica9, com o qual se produziram numerosos
documentos em tempos pré-hispânicos e coloniais, dos quais alguns exemplares
tradicionais e muitos adaptados às demandas coloniais chegaram até nós.10
Além disso, esses documentos pictoglíficos tiveram parte de seus
conteúdos “traduzidos” ou explicados em textos alfabéticos em línguas indí-
genas e européias, com os quais, pese a todos os problemas envolvidos nesse
processo, podemos entender um pouco mais das principais características das
tradições de pensamento histórico dessa região. Em suma, houve um maior
reconhecimento por parte dos castelhanos das tradições históricas nahuas – e
conseqüentemente um número maior de trabalhos coloniais conjuntos de
transcrições e “traduções” – do que das tradições incas. Talvez isso tenha
ocorrido porque a estrutura narrativa em anais e a escrita pictoglífica utilizadas
na Mesoamérica fossem, relativamente, mais parecidas às concepções
históricas e ao sistema de escrita cristãos do que as concepções incas do
162 passado e sua menor importância atribuída à cronologia, além de suas relações
com a paisagem por meio dos ceques e de seus distintos sistemas de registro,
como os quipus.11

9
Prefiro o termo pictoglífico a pictográfico por acreditar que ele evoca, de forma mais
explícita, a combinação entre elementos pictóricos e glíficos, a qual era uma das princi-
pais características do sistema de escrita mixteco-nahua. Em outra ocasião tivemos a
oportunidade de analisar algumas das soluções figurativas empregadas nos códices nahuas
e pudemos comprovar que os problemas relacionados à semântica eram prioritários em
relação aos de reprodução realística da dimensão visual do mundo (Santos 2003).
10
Do Altiplano Central procedem dois manuscritos de formato, estilo, e características
tradicionais, mas cuja datação é controversa. São eles os códices Borbónico e Aubin. São
considerados como pré-hispânicos os códices Bórgia, Cospi, Féjérváry-Mayer, Laud e
Vaticano B (grupo Bórgia); Becker nº. 1, Bodley, Colombino, Nuttall e Viena (grupo
Nuttall). Todos esses procedem da região de Cholula, Tlaxcala e oeste de Oaxaca, da
qual procedem também o Códice Selden, do grupo Nuttall, mas cuja datação é contro-
versa. Da região maia procedem três códices pré-hispânicos: o de Dresde, o de Paris e o
de Madri, formado pelos códices Cortesiano e Troano e por isso também chamado de
Tro-cortesiano (Glass 1975).
11
Frank Salomon, em uma análise da crônica de Titu Cusi Yupanqui, propõe que as duas
tradições de escrita e pensamento histórico – a cristã e a inca – eram tão diferentes e
irredutíveis que as “traduções” eram virtualmente impossíveis (Salomon 1982).
Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207

Como uma espécie de compensação, que não chega a equilibrar nosso co-
nhecimento das duas tradições, no caso andino temos uma acentuada conti-
nuidade da oralidade. Tal continuidade se deveu, em parte, ao estabelecimento
e à manutenção de uma sociedade colonial extremamente cindida e que se
manteve até tempos mui recentes: de um lado, os castelhanos e seus descen-
dentes, ocupantes da costa; e por outro, os grupos indígenas, refugiados ou
habitantes tradicionais das montanhas. Essa cisão, apesar de seu caráter de
violência e de exclusão, possibilitou a continuidade e a transformação mais
lenta de várias comunidades andinas e suas tradições históricas orais, o que
tornou possível a realização de estudos antropológicos durante o século XX.12

A – Nahuas e Mesoamérica
Penso que entre as diversas características da tradição histórica nahua, três
merecem destaque por sua quase onipresença nos registros pictoglíficos e na
oralidade transcrita durante o Período Colonial: 1 – a utilização de um preciso
e complexo sistema calendário13 como elemento central na organização inte-
lectual das explicações acerca do passado; 2 – a localização da época atual
após uma seqüência de eras ou idades, cujos inícios e finais teriam sido mar-
163
cados por criações e destruições cósmicas parciais; 3 – a centralidade temática
do altepetl e seus pipiltin14 nas narrativas acerca do passado mais recente.
Essas características não são exclusivas dos povos nahuas. São encontradas
em grupos mesoamericanos anteriores à migração desses povos à Mesoamérica
– como por exemplo os maias e os mixtecos. Aliás, a presença dessas carac-
terísticas – aliadas a uma série de outras – tem servido justamente para que se
estabeleça a pertinência de um grupo à região cultural mesoamericana, cuja
fronteira norte durante o Período Clássico, aproximadamente do início da Era
Cristã ao século IX, encontrava-se muito mais ao norte do que durante a época

12
Para completar o desequilíbrio, podemos agregar a desigualdade de meu conhecimento,
como estudioso do México Central, em relação às tradições históricas das duas regiões.
13
Na língua portuguesa a palavra calendário e suas variações de gênero e número podem
ser substantivos ou adjetivos (Vocabulário ortográfico da língua portuguesa 1999: 130).
14
Termos em nahuatl que podem ser traduzidos, respectivamente, por cidade ou entida-
de política independente e nobreza local.
Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207

de predomínio dos grupos toltecas e nahuas, isto é, dos séculos X ao XVI.


Além disso, as regiões ao norte – Aridamérica e Oasisamérica – mantinham
constantes relações com a Mesoamérica, o que torna possível que algumas
dessas características, típicas das tradições históricas mesoamericanas, fossem
compartilhadas com os grupos setentrionais, como os nahuas, muito antes de
suas migrações em direção ao sul.
De qualquer modo, depois da decadência dos grandes e hegemônicos
centros urbanos teotihuacanos, zapotecas e maias, cujo predomínio político e
cultural caracterizou o Período Clássico, essas características passaram a ser
parte integrante das tradições históricas toltecas e nahuas. Esses grupos obtive-
ram uma relativa hegemonia política e cultural na Mesoamérica no Período
Pós-clássico e, simultaneamente, adotaram, mantiveram e transformaram anti-
gas características culturais mesoamericanas, entre as quais se encontrava o
sistema de calendário, a concepção das idades anteriores do mundo e a centra-
lidade dos altepeme15 e seus dirigentes na cosmologia, cosmografia e história.
Na região central do México, os novos centros desses novos senhores meso-
americanos foram Tula, Azcapotzalco e, por fim, México-Tenochtitlan.
164 Tratemos então das três características mencionadas acima e da
importância que possuíam para as tradições históricas nahuas.
Podemos dizer que a base do sistema calendário mesoamericano era a
conta dos dias, realizada por meio da combinação de um conjunto de vinte
signos, chamados de tonalli, com um conjunto de treze números que, juntos,
serviam para nomear os dias. O conjunto dos tonalli era composto por animais,
plantas, artefatos humanos, fenômenos naturais e conceitos abstratos, como
podemos observar na Tabela 1, que traz seus nomes em nahuatl e suas respec-
tivas traduções.

15
Plural de altepetl.
Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207

Tabela 1: Os vinte tonalli

Esse ciclo de 260 dias chamava-se tonalpohualli, palavra proveniente do 165


nahuatl e formada por tonalli, que significa ardor, calor do sol, tempo de estio
e que era empregada como sinônimo de dia, e por tlapohualli, que significa
coisa contada ou numerada. Desse modo, poderíamos traduzir tonalpohualli
como contar os dias.16
Mas é interessante notar que tonalli também significa alma, espírito, razão,
parte, porção, o que é destinado a alguém ou destino, e que tlapohualli também
significa história dita ou relatada. E assim, tonalpohualli poderia ser traduzido
também como relatar ou contar algo sobre as almas, sobre o quinhão de cada
um, sobre o que é destinado a cada ser.17 Veremos que essa estreita relação

16
Esse ciclo de 260 dias era dividido em 20 trezenas, que eram registradas de maneira
sincrônica em livros pictoglíficos com finalidades mânticas e chamados de tonalamatl.
Esses livros eram utilizados por sacerdotes especializados em prognósticos, que envol-
viam todas as esferas da vida: nascimentos, mortes, enfermidades, guerras, plantios,
colheitas e etc. Não entraremos em detalhe sobre esse ciclo e seus livros corresponden-
tes pelo fato de que o foco deste artigo será o uso que as tradições históricas nahuas fa-
ziam de um outro ciclo calendário: a conta dos anos.
17
Todas as análises dos termos em nahuatl e suas traduções foram feitas a partir do vo-
cabulário do frei Alonso de Molina (Molina 2001) e do dicionário de Rémi Siméon (Rémi
Siméon 1997).
Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207

entre contar o tempo e narrar sobre os destinos permeava o pensamento histó-


rico nahua e era utilizada também na conta dos anos e seus registros, dois quais
trataremos a seguir.
A partir da conta dos dias, os povos mesoamericanos nomeavam e conta-
vam os anos sazonais, cuja duração havia sido precisamente definida em 365
dias.18 O nome do primeiro dia do ano sazonal no tonalpohualli servia para
nomeá-lo. Imaginemos que hoje é o dia 1 acatl (cana) e que esse é o primeiro
dia do ano sazonal: esse ano se chamará 1 acatl. Mas como o ano sazonal é
maior do que o ciclo de 260 dias, o próximo ano sazonal não começará nova-
mente no dia 1 acatl mas no 106o. dia do ciclo seguinte do tonalpohualli. Que
dia será esse? Os vinte signos do tonalpohualli cabem dezoito vezes no ano
sazonal de 365 dias e sobram cinco dias, isto faz que o signo que nomeia o
ano, chamado de portador ou carregador do ano, salte de cinco em cinco signos
dentre os vinte tonalli. Como o conjunto dos signos é formado por vinte, ao
final de quatro anos se regressa ao primeiro signo. Em outras palavras, se o
primeiro ano teve como signo acatl, que é o décimo terceiro signo, o segundo
ano terá o décimo oitavo signo, isto é, tecpatl, o terceiro ano terá o terceiro
166 signo, isto é, calli, o quarto ano terá o oitavo signo, isto é, tochtli, e no quinto
ano volta-se ao signo acatl. Portanto, dentre os vinte signos do tonalli, apenas
quatro serviam para nomear os anos.

18
Há uma polêmica acerca da utilização de mecanismos de ajuste entre o ciclo calendá-
rio de 365 dias e a duração do ano solar, aproximadamente de 365 dias e um quarto. Alguns
estudiosos, como Víctor Castillo Farreras (Castillo Farreras 1971), acreditam que havia
uma espécie de ano bissexto ou correções regulares, mecanismo indispensável para que
o início do ano calendário e suas subdivisões coincidissem de maneira regular com as
estações. Outros estudiosos, como Michel Graulich (Graulich 1990), acreditam que não
existia tal mecanismo e que ao longo do tempo houve uma grande defasagem entre o
início do ano calendário, suas subdivisões e as estações. Um outro grupo de estudiosos,
dentre os quais podemos citar Gordon Brotherston (Brotherston 1997), propõe ainda que
um sistema de calendário que teve uma continuidade de uso tão ampla e que possuía
subdivisões do ano marcadas por celebrações e festividades claramente relacionadas com
as estações, seguramente possuía um mecanismo de correção. Acreditam, no entanto,
que tal mecanismo não era empregado de modo tão regular como o mecanismo do ano
bissexto, e que funcionava a partir da observação dos solstícios e da conferência da posi-
ção das Plêiades no meio da noite em que se comemorava o início do ano calendário,
quando então essa constelação deveria ocupar o zênite. A defasagem da ocorrência do
solstício e da posição das Plêiades em relação ao calendário poderia servir para, de tem-
pos em tempos, se fazer correções. Para um balanço geral da questão: Tena 1992.
Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207

Mas e quanto aos números que acompanham os vinte signos do tonalli


para nomear os dias? Será que apenas quatro números acompanhavam os
quatro signos do tonalli que nomeavam os anos? Isso aconteceria se tivéssemos
vinte números para acompanhar os vinte signos do tonalli, pois desse modo
teríamos uma seqüência de vinte combinações fixas entre os números e os sig-
nos na conta dos dias. Mas vimos que eram treze os números que se combina-
vam com os vinte signos para nomear os dias e, conseqüentemente, para no-
mear os anos. Como os treze números do tonalpohualli cabem vinte e oito vezes
no ano sazonal de 365 dias e sobra um, os números dos dias com os quais os
anos iniciam-se avançam de um em um. Em outras palavras, se o primeiro ano
teve como dia inicial 1 acatl, o segundo ano terá 2 tecpatl, o terceiro ano terá
3 calli, o quarto ano terá 4 tochtli, o quinto ano terá 5 acatl e assim sucessiva-
mente até se operarem todas as possíveis combinações entre os quatro signos
e os treze números que caem como dias iniciais dos anos sazonais, o que resulta
em uma série de 52 anos, após os quais os nomes dos anos se repetem.
Esses anos sazonais eram chamados de xihuitl e seu ciclo de 52 anos era
chamado de xiuhmolpilli.19 Esse ciclo calendário de 52 anos sazonais era a base
organizacional dos livros em forma de anais chamados xiuhamatl, por meio dos 167
quais diversos grupos mesoamericanos narraram a história do próprio grupo,
suas origens, migrações, guerras e dinastias reinantes.
Vale notar que os dois ciclos – o de 260 e o de 365 dias – integravam-se
perfeitamente, formando um só sistema, pois a repetição da combinação entre
ambos dava-se justamente a cada 52 anos sazonais ou 73 ciclos de 260 dias,
pois nos dois casos temos um total de 18.980 dias.20 Quando o primeiro dia do
xihuitl encontrava-se com o primeiro dia do tonalpohualli se celebrava a festa

19
Além disso, cada ano sazonal era dividido em dezoito períodos de vinte dias – chama-
dos de vintenas e marcados pela passagem completa dos vinte signos do tonalli – mais
cinco dias finais considerados baldios ou ocos – chamados de nemontemi. Em outras
palavras, o ano que se iniciou, por exemplo, com 1 acatl teria todas suas dezoito vinte-
nas iniciadas com acatl e depois cinco dias finais considerados aziagos.
20
A integração entre os dois ciclos que formam o sistema de calendário mesoamericano
é tão complexa e completa que, em última instancia, podemos considerar o xiuhmolpilli,
isto é, o ciclo de 52 anos sazonais, como uma das partes de um grande tonalpohualli de
anos sazonais, pois 52 é a quinta parte de 260. Em outras palavras, cinco ciclos de 52
anos sazonais conformam um grande ciclo de 260 anos sazonais, o qual, por sua vez,
pode ser subdividido em 365 ciclos do tonalpohualli.
Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207

do Enlace dos Anos, ou Fogo Novo, momento muito celebrado e importante


para a visão de mundo nahua e sua concepção de história, pois acreditava-se
que em um desses finais de ciclos o mundo voltaria a sofrer cataclismos que
poderiam marcar o final de mais uma era ou idade.
É possível que alguns povos setentrionais que migraram para o México
Central, entre eles os nahuas, já utilizassem essa conta calendária antes de suas
migrações. Embora não se possua nenhuma prova material direta de sua utili-
zação em tempos pré-migracionais, creio que podemos fazer essa inferência
a partir do fato de que diversos livros cosmogônicos e de anais de distintos
grupos nahuas e chichimecas possuem uma abrangência temporal, uma con-
tinuidade narrativa e uma coerência de dados e datas que dificilmente poderia
ser resultado apenas de elaborações posteriores à entrada desses grupos na
região mesoamericana.
Parece-me muito mais provável que esses grupos setentrionais possuíssem,
desde tempos pré-migracionais, indivíduos ou instituições responsáveis pela
elaboração de histórias grupais e de explicações acerca das origens do mundo
e do homem. E que tais indivíduos ou instituições se serviam de parte do siste-
168 ma calendário mesoamericano ou de alguma conta calendária similar, que pôde
ser transposta ao sistema mesoamericano. Tal hipótese é reforçada pelo fato
de que esses grupos compartilhavam uma série de outros traços culturais com
os povos mesoamericanos – como por exemplo as concepções cosmográficas
–, com os quais mantinham também ativas relações comerciais.21
É claro que depois das migrações e da posição de destaque que alguns
desses povos setentrionais conseguiram entre os antigos povos mesoamerica-
nos, como aconteceu, por exemplo, com os mexicas, tais histórias e cosmo-
gonias foram re-elaboradas de acordo com as novas demandas e as posições
políticas ocupadas dentro das intricadas redes de poder e de alianças. No caso
dos mexicas, são os relatos desse período pós-migracional e de hegemonia

21
No entanto, existe uma polêmica sobre a origem dos grupos nahuas. Na verdade, não
temos certeza se vieram de fora da Mesoamérica, de dentro ou se regressaram a ela. De
acordo com suas próprias fontes, os nahuas seriam chichimecas – denominação geral
dada aos coletores-caçadores que habitavam ao norte da Mesoamérica – que migraram.
Mas esse discurso pode ser parte de uma estratégia política que reivindicava essa ori-
gem – valorizada por sua valentia e bravura guerreiras – para justificar os domínios po-
líticos e tributários sobre outros povos.
Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207

política que chegaram até nós por meio de códices pictoglíficos, textos
alfabéticos ou obras híbridas do Período Colonial e que expressam a produção
da tradição histórica mexica durante os séculos XV e XVI.22
O Códice Vaticano A (1996) é um bom exemplo para entendermos, de
modo mais concreto, as afirmações feitas acima acerca da tradição histórica
nahua e do uso da conta dos anos como elemento organizador das narrativas
acerca do passado. Nesse códice, temos uma grande seção que se constitui
como um livro de anais, em nahuatl xiuhamatl. Esses anais narram a história
da migração mexica desde a passagem por Chicomoztoc, passam pelo esta-
belecimento e fundação de México-Tenochtitlan e chegam até a época da con-
quista e princípios da colonização castelhana. Em outras palavras, temos nesse
códice uma seqüência narrativa de quase quatrocentos anos, na qual podemos
observar claramente que a conta dos anos sazonais, marcada pela seqüência
ininterrupta dos glifos de todos esses anos, possui uma função muito específica:
fornecer uma espécie de lógica organizacional sobre a qual eram inseridos os
registros pictoglíficos dos eventos.
Curiosamente, mas talvez sintomaticamente, esses anais terminam com umas
quantas páginas quase em branco (pp. 94v-96v), nas quais temos apenas os glifos 169
da conta dos anos. Em verdade, não sabemos se as páginas ficaram sem os
registros pictoglíficos dos eventos que corresponderiam aos anos marcados ou
se os glifos da conta dos anos foram pintados antes dos anos que estão sendo
marcados, como uma espécie de estrutura prévia à espera de uma seleção, de
uma combinação e de uma construção de eventos que seriam aí encaixados. A
confirmação da segunda hipótese reforçaria a posição estrutural que estou
atribuindo à conta dos anos para a organização das narrativas históricas nahuas.
No caso dos Anales de Cuauhtitlan (1945), texto alfabético produzido em
meados do século XVI e cujos autores provavelmente procediam de Cuauhtitlan,
cidade de origem nahua e vizinha de México-Tenochtitlan, também podemos
perceber o uso da conta dos anos como elemento organizador de uma narrativa
temporalmente muito ampla. O texto narra a história dos grupos chichimecas,

22
Vale lembrar que se as explicações acerca do passado cumprem funções ideológicas,
como por exemplo a legitimação do poder político de um grupo, necessitam de uma ampla
aceitação. Desse modo, é mais eficaz que as novas explicações históricas não se produ-
zam a partir de uma ruptura total com as antigas, mas sim a partir re-elaborações, con-
tinuidades ou rupturas aparentes.
Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207

principalmente dos mexicas e dos cuauhtitlanenses, desde princípios do século


VII d.C. até princípios do século XVI, e apresenta claros indícios de ter tido a
antigos livros pictoglíficos de anais como base de sua confecção.
Um desses indícios é a própria maneira de utilização da conta dos anos
sazonais, que funciona no texto como uma espécie de fio condutor que estrutura
uma narrativa cujos eventos se dividem e se distribuem, de modo desigual, ao
longo das partes dessa conta, isto é, ao longo dos anos do xiuhmolpilli. Vale
notar que os nomes de todos os anos são citados de forma completa e ininter-
rupta por quase novecentos anos, mesmo que durante uma grande série de anos
não haja eventos narrados. Esse tipo de emprego da conta dos anos é em tudo
semelhante ao que possuía nos anais pictoglíficos, como vimos no caso do Códice
Vaticano A, nos quais o xiuhmolpilli também aparecia de forma contínua e
ininterrupta, suportando e estruturando o registro pictoglífico dos eventos e das
personagens que se distribuíam de forma desigual em seu decorrer.
Tanto no caso dos anais pictoglíficos do Códice Vaticano A como no caso
do texto alfabético dos Anales de Cuauhtitlan, creio que podemos perceber
claramente que não há nenhum outro tipo de divisão interna ou de elemento
170 estruturante da narrativa a não ser a ininterrupta presença da conta dos anos
sazonais, a qual, no caso do Códice Vaticano A, segue marcada mesmo quando
já não há eventos registrados. Desse modo, creio que é lícito propor que a pre-
sença da conta dos anos sazonais era parte integrante da explicação histórica
da tradição nahua e, portanto, parte também da própria percepção de passado.
Dito de outro modo, para a tradição histórica nahua, narrar o que aconteceu
implicava em localizar temporalmente os eventos em uma conta anual que pos-
suía duas dimensões muito claras e distintas: a sincrônica e a diacrônica.
A sincronia provinha do fato de que os anos sazonais, como vimos ante-
riormente, se repetiam a cada 52 anos e, junto com eles, suas qualidades. Sendo
assim, registrar o que aconteceu nos anos passados era uma forma de se co-
nhecer essas tais qualidades, que regiam os aconteceres, e, desse modo,
conhecer relativamente o que iria ocorrer nos anos presentes ou futuros. É a
famosa relação entre história e profecia que existe em todas as tradições histó-
ricas mesoamericanas e que encontra-se presente sobretudo nos livros maias
conhecidos como chilames.23 Mas, ao mesmo tempo, seja nos textos pictoglí-

23
Dentre os inúmeros chilames, o mais conhecido é o Chilam Balam de Chumayel (Libro
de Chilam Balam de Chumayel 2001).
Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207

ficos ou nos alfabéticos, esses ciclos estão dispostos de maneira sucessiva e


são acompanhados por eventos também sucessivos – como, por exemplo, a
ascensão e morte de um soberano –, fato que garante o inequívoco e preciso
registro da diacronia.
O sistema calendário nahua, e mesoamericano em geral, também possuía
uma estreita relação com a concepção cosmográfica. Para os mesoamericanos,
o espaço dividia-se, verticalmente, em um série de níveis celestes e inframun-
danos e, horizontalmente, em quatro rumos ou direções e um centro. Todas as
subdivisões dos ciclos calendários que compunham o sistema mesoamericano
estavam relacionadas, principalmente, com as quatro direções do mundo hori-
zontal. Desse modo, as trezenas que compunham o tonalpohualli se relacio-
navam sucessivamente com os rumos do universo, começando pelo oriente,
passando depois pelo norte, pelo ocidente e chegando ao sul, girando pelo
horizonte no sentido contrário ao dos ponteiros do relógio. Esse mesmo mo-
vimento do tempo pelas direções do universo era atribuído ao ciclo dos anos
sazonais, no qual cada ano se relacionava com uma das direções.
Todas essas direções, além dos próprios números e signos que marcavam
os dias e anos, eram portadoras de qualidades e características específicas e 171
que assim carregavam o tempo com influências e qualidades distintas, confor-
me sua direção de procedência. Desse modo, para a tradição histórica nahua,
o tempo não era uma entidade absoluta, apenas quantificável e desprovida de
qualidades inerentes, mas algo que trazia sempre sua própria carga de destino,
seu tonalli, a qual deveria ser entendida para que o homem pudesse, no caso
de um tempo propício, obrar em consonância ou, no caso de uma carga adversa,
tentar reverter ou anular seus efeitos.
Essa mesma forma de localização temporal também encontra-se presente
nos relevos em pedra e outros monumentos, onde é marcada por meio do em-
prego dos mesmos glifos calendários que estão nos códices pictoglíficos.24 O
problema é que na maioria dos relevos e dos monumentos temos apenas uma
data e não toda uma longa seqüência do xiuhmolpilli, fato que por vezes gera
incertezas na determinação dessa data dentro da seqüência de ciclos de anos

24
Como exemplo, poderíamos citar a famosa Pedra do Sol ou a lápide de inauguração do
Templo Maior, ambas na Sala Mexica do Museu Nacional de Antropologia, México DF,
que trazem, respectivamente, as datas 13 acatl e 8 acatl, correspondentes a 1479 e 1487.
Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207

sazonais, ou seja, muitas vezes não sabemos se tal data se refere a um ano
“x”, ou ao ano “x” menos 52 anos, ou ainda ao ano “x”mais 52 anos e assim
por diante. No entanto, não devemos nos esquecer que isso não deveria ser
um problema para os contemporâneos dessas inscrições e monumentos, que
certamente possuíam uma série de outros referenciais externos a tais inscrições
e monumentos, os quais permitiam localizar tais datas de forma muito precisa
entre os diversos e sucessivos ciclos do xiuhmolpilli, fazendo assim que a di-
mensão diacrônica dessas datas estivesse assegurada.
Esse mesmo sistema de cômputo temporal também foi utilizado para a ela-
boração de explicações que versavam sobre um passado muito mais distante,
no qual tiveram origem os deuses, o mundo e os homens. Os nahuas, assim
como todos os grupos considerados mesoamericanos, explicavam esse distante
passado dividindo-o em diversas idades ou sóis, nos quais as atuações dos
deuses eram centrais para o desabrochar e o declinar de cada um deles, os
quais, em geral, terminavam por grandes cataclismos. Vale notar que esses iní-
cios e finais de idades não eram totais, ou seja, cada idade possuía elementos
que se transformavam e continuavam existindo na outra, gerando uma espécie
172 de aperfeiçoamento do mundo, dos homens e de seus alimentos vegetais, aper-
feiçoamento esse que culminou na idade e humanidade atuais. Essa humani-
dade seria, dependendo da versão, a quarta ou quinta e se caracterizaria pela
utilização do milho como alimento por excelência.
O que nos interessa aqui é o fato de que os ciclos de 52 anos serviam tanto
para contabilizar as explicações acerca do passado mais distante como do pas-
sado mais recente. Creio que isso reforça a hipótese de que o sistema calendário
– com suas dimensões sincrônica e diacrônica – desempenhava um papel
central para a percepção de passado, distante ou recente, e para a construção
de narrativas explicativas por parte da tradição histórica nahua. Tal fato nos
indica também que para os nahuas inexistia uma distinção qualitativa ou uma
ruptura temporal entre a percepção desses dois tipos de passado.
Apesar dessa continuidade estrutural-calendária entre as narrativas acerca
do passado mais distante e mais recente, havia uma importante distinção entre
as duas modalidades de relato. No caso das narrativas acerca das idades do
mundo, predominava uma grande síntese, ou seja, cada idade era narrada como
um todo, no qual se destacavam as ações divinas de criação e destruição, o
nome da idade em questão, o tipo de homem que existia, o cataclismo que a
encerrou e as mutações pelas quais passaram os homens e outros animais, além,
é claro, de sua duração, contabilizada em anos sazonais.25
Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207

De modo geral, depois de narrar essas quatro ou cinco idades, por vezes
enfatizando e detalhando um pouco mais as explicações acerca do início da
humanidade atual, esses textos cosmogônicos e históricos seguem com os episó-
dios que tratam de Tula, de Quetzalcoatl e dos toltecas, quando então os relatos
ganham mais detalhes e, em geral, adotam propriamente a forma de anais, forma
essa que continua na narrativa dos eventos mais recentes, como as migrações e
os estabelecimentos dos altepeme nahuas na região central do México. Talvez
isso indique a existência de uma concatenação narrativa típica da tradição histó-
rica nahua, a qual encaixava a história mais recente dentro de uma seqüência
cosmogônica marcada pela existência das diversas idades ou sóis anteriores. Em
outras palavras, talvez essa localização da história grupal dentro de um marco
temporal mais amplo, fornecido justamente pelas chamadas narrativas cosmogô-
nicas, fosse parte integrante dessa tradição histórica.26
No entanto, a existência dessa concatenação dos relatos cosmogônicos e
históricos não é uma unanimidade entre os estudiosos.27 Muitos afirmam que
as histórias indígenas pré-hispânicas caracterizavam-se pela centralidade do
altepetl e que essas histórias mais gerais, produzidas no Período Colonial,
seriam o resultado da influência das histórias universais cristãs, as quais leva- 173
ram os indígenas a reunir em textos únicos as histórias locais e as narrativas
cosmogônicas, construindo assim uma estrutura mais próxima dos textos do
Velho Testamento, sobretudo do Pentateuco.28
E essa centralidade do altepetl nas narrativas oriundas das tradições histó-
ricas nahuas é, justamente, a próxima característica a ser tratada.

25
De acordo com o texto da Historia de los mexicanos por sus pinturas (1996), por exem-
plo, as idades anteriores à atual duraram, respectivamente, 676 anos (treze ciclos de 52),
novamente 676 anos, 364 anos (sete ciclos de 52) e 312 anos (6 ciclos de 52). Tratamos
desse tema em detalhes em uma outra ocasião (Santos 2002).
26
Essa estrutura narrativa pode ser observada nos seguintes textos alfabéticos e códices
coloniais nahuas: Anales de Cuauhtitlan (1945), Leyenda de los soles (1945), Historia
de los mexicanos por sus pinturas (1996) e Códice Vaticano A (1996). Tal estrutura pode
ser observada também no texto do Popol Vuhl (1996), que narra a história grupal dos
quichés depois da cosmogonia, e nas estelas maias, que localizavam temporalmente os
feitos recentes, por meio da conta longa, a partir de uma data inicial (13 ou 14 de agosto
de 3113 a.C.), a qual marcaria justamente o início da atual idade.
27
Uma de suas principias defesas encontra-se em Brotherston 1997.
28
Entre esses estudiosos, podemos destacar Navarrete Linares 2000.
Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207

A maior parte dos escritos nahuas conhecidos – sejam pictoglíficos tradi-


cionais, pictoglíficos adaptados às demandas coloniais ou ainda alfabéticos –
são anais que possuem como temas centrais a história de unidades políticas
independentes, conhecidas como altepetl. Tal centralidade também é confirmada
pela concepção cosmográfica reinante na Mesoamérica, na qual o espaço se
dividia, verticalmente, em um série de níveis celestes e inframundanos e,
horizontalmente, em quatro rumos ou direções e um centro, ocupado justamente
por cada altepetl, que se concebia, portanto, como o umbigo do mundo.
Como vimos acima, em algumas narrativas alfabéticas indígenas coloniais,
esses anais aparecem depois de uma seção que abordou a cosmogonia e suas
várias criações e destruições sobrepostas, apresentando as histórias locais, ou
seja, a história de determinados grupos e seus altepeme, como um capítulo
inserido em histórias mais amplas, as quais abarcariam desde as origens do
mundo e do homem, passariam pelas histórias tolteca e das migrações de cada
grupo e chegariam até o passado imediatamente anterior à produção de tais
narrativas. No entanto, muitos dos anais pictoglíficos nahuas, como por exem-
plo a Tira de la peregrinación, também chamada de Códice Boturini (1975),
174 iniciam-se simplesmente com a história migracional do grupo ou, no máximo,
com a história tolteca, não contando assim com a presença de uma seção dedi-
cada às histórias cosmogônicas.
Isso pesa a favor da hipótese de que as narrativas que possuem a tal conca-
tenação – cosmogonia, história tolteca e histórias locais – sejam, na verdade, uma
tentativa indígena-colonial de adaptar as explicações históricas e cosmogônicas
nahuas tradicionais a uma estrutura mais próxima das histórias universais cristãs.
Talvez tais relatos existissem de forma mais ou menos independente e, em princí-
pios dos tempos coloniais, tenham sido conectados pelos informantes, alunos indí-
genas e religiosos dos colégios missionários - principalmente franciscanos – para
que tivessem formatos similares aos das histórias cristãs de então.
De qualquer modo, a maioria dos textos, pictoglíficos ou alfabéticos,
produzidos pelos grupos nahuas que se estabeleceram no Vale do México apre-
sentam uma história mais curta em termos temporais e caracterizada pela aten-
ção central dedicada aos processos de migração, à história tolteca e ao esta-
belecimento definitivo dos altepeme e suas linhagens de governantes. Tais
linhagens, quase que invariavelmente, relacionavam-se com os toltecas, fato
que era evocado como fonte de legitimidade para os papéis que cada nova
entidade política da região desejava ocupar: herdeiros dos toltecas no controle
político e comercial depois da decadência de Tula, por volta do século XII.
Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207

A comparação entre tais textos mostra-nos a existência de enormes se-


melhanças estruturais e narrativas entre as histórias particulares de cada
altepetl. Uma dessas semelhanças reside na existência de fórmulas narrativas
comuns ao se tratar de eventos-padrão, como, por exemplo, a partida da terra
original, o estabelecimento definitivo do altepetl, suas alianças e conflitos
(Navarrete Linares 2000). Tais similitudes poderiam ser fruto de fortes contatos
entre as tradições históricas dos diversos grupos nahuas ou resultado da deri-
vação de todas essas narrativas de um modelo histórico comum, talvez de ori-
gem tolteca ou ainda teotihuacana. Além disso, tais similitudes possuíam im-
portantes funções políticas, pois é sabido que os anais históricos dos altepeme
nahuas desempenhavam a função de legitimar a ocupação de determinados
territórios e o estabelecimento de fronteiras territoriais e políticas em pleitos
inter-grupais, tarefa para a qual era conveniente utilizar-se de uma linguagem
e de uma estrutura reconhecida de forma universal. Em outras palavras, os
anais deveriam ser uma voz particular que defendesse os interesse do altepetl,
mas uma voz particular que compartilhasse elementos reconhecíveis e aceitos
pelas tradições históricas vizinhas (Navarrete Linares 2000).
Por outro lado, dentro do altepetl, os anais também funcionavam como 175
uma espécie de atestado de legitimidade para a posição ocupada pelas elites
dirigentes diante dos demais grupos sociais, pois registrava como seus ante-
passados, sangüíneos ou funcionais, eram os responsáveis pela condução das
migrações, pela fundação do próprio altepetl e pelas conquistas dos territórios
e alianças. Devido a essas funções legitimadoras, as instituições e pessoas res-
ponsáveis pela produção dos anais encontravam-se no interior dos grupos
governantes ou, pelo menos, relacionavam-se de forma muito estreita com eles.
Prova disso é que seus temas mais comuns eram as linhagens de pipiltin, as
mudanças de governantes e os eventos que afetavam o altepetl como
corporação, como por exemplo as migrações, as fundações, as guerras, os con-
flitos dinásticos e alguns fenômenos naturais.29

29
É muito comum que os anais nahuas registrem os terremotos e os fenômenos celestes
menos freqüentes, como os eclipses, as passagens de cometas ou a queda de meteoros,
fenômenos para os quais existiam glifos específicos. Esses fenômenos poderiam ser inter-
pretados como prenúncios de importantes eventos. Novamente temos a relação entre his-
tória e profecia: o passado poderia contribuir para revelar o futuro ou explicar o presente.
Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207

Essa estreita relação entre elites governantes e tradição histórica chegou,


inclusive, a se institucionalizar entre os mexicas por meio do calmecac, espécie
de centro de formação freqüentado pelos jovens descendentes dos grupos
governantes e sacerdotais.30 Nessa instituição, eram produzidas e transmitidas
– por meio de códices pictoglíficos e da oralidade31 – as explicações cosmo-
gônicas e históricas, as quais inseriam-se em meio de uma série de outros sabe-
res como, por exemplo, a arte da guerra e do sacerdócio.
Como conseqüência dessa dupla função legitimadora desempenhada pelos
anais das tradições históricas nahuas, cada altepetl ou grupo político procurava
criar versões históricas mais vantajosas para si. O resultado é que temos assim
uma verdadeira polifonia de versões no que diz respeito às etapas mais recentes
da história, principalmente quando os temas são o estabelecimento territorial,
as conquistas e expansões, o estabelecimento das elites dirigentes e as alianças
com altepeme vizinhos (Navarrete Linares 2000).
No entanto, no que diz respeito às etapas anteriores, que tratam da cos-
mogonia ou da história tolteca, parece haver uma concordância maior entre
as distintas vozes, principalmente quando se trata de estabelecer os toltecas
176 como antecessores das linhagens governantes ou de situar a criação da huma-
nidade atual em Teotihuacan. Essas coincidências reforçam a hipótese lançada
mais acima, isto é, que as diversas tradições históricas possuíam muitos con-
tatos ou baseavam-se em tradições históricas anteriores, talvez de origens
toltecas ou teotihuacanas.
É esse tipo de tradição histórica nahua que entrará em contato e se con-
frontará com os castelhanos e com a tradição histórica cristã no século XVI.
Veremos os resultados desse encontro-confronto depois de caracterizarmos
as tradições históricas incas.

30
Inclusive, o discurso dos sábios e anciãos poderia ser chamado de calmecatlahtolli,
sendo que tlahtolli significa discurso, palavra, história ou relato.
31
A relação entre os escritos pictoglíficos e a oralidade não era de equivalência restrita e
direta. A recitação oral, que ocorria em ocasiões especiais e determinadas, interpretava e
se expandia a partir dos escritos que, por sua vez, traziam elementos que estavam além das
palavras faladas e que permaneciam inalterados ao longo do tempo. Ambos eram partes de
um sistema maior de comunicação (Lockhart 1992).
Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207

B – Incas e Andes
Como apontamos acima, as tradições históricas incas de tempos pré-hispâ-
nicos, e andinas em geral, são bem menos conhecidas do que as mesoameri-
canas. Tal deficiência deve-se, principalmente, à escassez de fontes documen-
tais produzidas por tais tradições, em tempos pré-hispânicos ou coloniais, o que
talvez relacione-se com o papel preponderante que era desempenhado pelas
narrativas orais e por formas de registro muito distintas das que tradicionalmente
reconhecemos como tais, como por exemplo os ceques.32 Soma-se a isso, a nossa
incapacidade de entender completamente os sentidos que eram veiculados por
fontes como os quipus, os pallares ou os tocapus.33
Devido a tal deficiência, recorreremos a dois campos de estudo que podem
nos proporcionar, de forma indireta, algumas informações e características das
tradições históricas incas.
Um desses campos é o que trata da visão de mundo andina, cuja impor-
tância reside no fato de que nela, certamente, estão os marcos teóricos e con-
ceituais dentro dos quais as tradições incas operavam e construíam suas expli-
cações sobre o passado. Tais estudos utilizam-se, além das fontes materiais e
escritas coloniais, dos trabalhos antropológicos realizados no século XX, os
177
quais demonstram a vigorosa continuidade das tradições orais andinas, res-
ponsáveis pela manutenção de relatos muito semelhantes aos poucos que foram
transcritos no Período Colonial. O outro campo é composto pelos estudos his-
tóricos e literários que se dedicam às crônicas coloniais que trataram da história
e dos costumes andinos, as quais contaram em suas produções com a partici-
pação de membros da sociedade inca ou de indivíduos que transitavam entre
os dois mundos, como por exemplo Guamán Poma de Ayala.

32
Os ceques eram linhas ou caminhos demarcados na paisagem por meio das guacas,
objetos ou lugares sagrados, muitos dos quais relacionados com os antepassados. Dessa
forma, os ceques eram um meio de se fixar ou relacionar a lembrança dos antepassados,
e dos acontecimentos a eles vinculados, com a geografia local. Veremos que ao longo
dos ceques eram proferidos discursos e encenados episódios sobre o passado.
33
Além dos famosos quipus, cuja parte da polêmica foi exposta anteriormente, existe
também uma discussão acerca dos significados dos pallares, conjunto de desenhos e
signos muito freqüentes na cerâmica mochica, e dos tocapus, desenhos e motivos geo-
métricos utilizados nos tecidos das vestimentas, principalmente dos grupos sociais hie-
rarquicamente superiores nas sociedades andinas (Millones 1987: 73-74).
Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207

Tomando por base esses estudos, apresentaremos algumas concepções da


visão de mundo andina e inca que seriam fundamentais para a construção de
explicações acerca do passado, como por exemplo as concepções de espaço,
tempo e acontecimento.34 Depois, analisaremos algumas textos coloniais que
tratam do problema da utilização dos quipus.
Sabemos que no caso dos incas, e povos andinos em geral, predominava uma
organização dual do espaço, baseada na concepção de verticalidade e que tendia
a dividir o mundo entre acima e abaixo. Talvez a importância dessa divisão
relacione-se com a enorme valorização das distâncias verticais nos Andes,
responsáveis pelos enormes contrastes ecológicos entre a costa e a montanha, entre
as diversas altitudes de montanha e entre essas diversas altitudes e a planície da
Amazônia. Desse modo, era fundamental para a população de qualquer região
andina estabelecer relações – baseadas no princípio da reciprocidade ou manay –
de escambo ou comércio com outras populações, ou ainda possuir territórios e
enviar colonizadores, chamados de mitmag, a regiões de outras altitudes e, portanto,
com outros meios ecológicos (Stern 1986: 25-32).
A indispensabilidade das relações entre as populações de diversas altitudes
178 talvez tenha se formalizado intelectualmente e se explicitado por meio da con-
cepção de uma separação fundamental entre o acima, ou hanan, conceito que
se traduz por vida, ordem e luz, e o abaixo, ou hurin, traduzível por morte,
desordem e trevas. Vale notar que não se tratava de uma divisão do mundo em
categorias binárias, agonísticas e essencialmente distintas, mas sim de uma
polaridade complementar dentro da qual o mundo e seus seres transitavam
constantemente de um lado a outro. Por exemplo, a polaridade morte-vida era
vista como uma longa transição entre dois estágios: do macio-mole para o áspe-
ro-duro. Assim, o momento da morte em si não marcava uma divisão binária
entre dois estados completa e essencialmente diferentes, mas sim um passo a
mais no longo processo que possuía em seus extremos polares o macio e o
mole de um lado, características fortemente presentes nos seres jovens, e o

34
Vale frisar que os incas, assim como os nahuas, eram integrantes de uma região cultu-
ral geograficamente muito ampla e historicamente muito antiga, à qual podemos cha-
mar de mundo andino ou simplesmente Andes. Desse modo, sua visão de mundo e suas
explicações acerca do passado devem ser entendidas como parte de uma tradição de pen-
samento muito mais ampla, da qual os incas eram partícipes ativos, mas não seus únicos
criadores ou portadores.
Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207

duro e o áspero em outro, características predominante nos seres velhos e de-


pois no cadáver, no esqueleto e, por fim, nas pedras, que eram vistas como os
antepassados mortos em um estágio posterior (Fraser 2002). Desse modo,
poderíamos dizer que no mundo andino os homens começavam a morrer antes
da morte e continuavam a morrer depois dela.
Quando essa concepção era aplicada à geografia, gerava uma divisão do
espaço em pares de opostos que poderiam abranger, de uma só vez, toda a
região andina e, simultaneamente, suas micro regiões. Em outras palavras,
poderíamos pensar na costa e na montanha como, respectivamente, hurin e
hanan; no entanto, cada uma dessas partes, por exemplo a montanha, possuía
também suas subdivisões internas entre acima e abaixo (Montoya Rojas 1998).
Essa divisão do espaço e dos seres entre hanan e hurin35 somava-se a uma
outra divisão do mundo horizontal em quatro partes e um centro, como também
acontecia na Mesoamérica com o conceito de quincunce, espécie de divisão
do mundo horizontal como uma flor de quatro pétalas e um centro. Essa con-
cepção foi aplicada pelos incas na organização política e tributária das regiões
dominadas, chamadas em sua totalidade de Tahuantinsuyu e que se dividiam
em: 1 – Antisuyu, correspondente ao norte, região quente e úmida e caracteri- 179
zada pela floresta amazônica; 2 – Cuntisuyu, correspondente ao sul, região
quente e seca e caracterizada pela costa do oceano Pacífico; 3 – Chinchasuyu,
correspondente ao oeste, região úmida e fria; 4 – Collasuyu, correspondente ao
leste, região seca e fria. Cuzco era o centro dessa grande flor de quatro pétalas
e um microcosmos que reproduzia a totalidade dos territórios dominados e do
qual, como veremos em detalhe, saiam caminhos que “registravam” sentidos e
significados da contagem do tempo e do passado na paisagem: eram os ceques.
De forma muito relacionada a essa concepção espacial, podemos dizer que
para os povos andinos o tempo fluía de cima para baixo, de hanan a hurin.
Essa concepção de tempo teve uma enorme implicação na concepção de

35
A importância e centralidade dessa divisão polar para o mundo inca, aliada a outros
indícios, levou alguns estudiosos a proporem que a existência de dois incas soberanos
simultâneos – yanantin ou casal – era, na verdade, a norma. As lutas entre eles serviri-
am para definir quem seria hanan (vencedor) ou hurin (perdedor). O inca hanan atuaria
fora de Cuzco, nas conquistas, nas cobranças de tributos (mita) e no sistema distributivo.
O inca hurin atuaria em Cuzco e estaria mais vinculado ao universo cerimonial. Na maioria
dos textos e crônicas coloniais teria havido uma transformação desse poder dual em
genealogias de monarcas que se sucediam (Pease 1995).
Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207

passado e de história desenvolvida pelos andinos. Segundo essa concepção, os


homens nascem solares e suaves e se tornam mais escuros e duros em um pro-
cesso contínuo para o qual a morte é, ao invés do inverso da vida, a transfor-
mação dos homens em pedras, em terra e em montanhas: os homens mortos
passavam a povoar o mundo sob outras formas e, desse modo, continuavam
sempre presentes. Uma das formas de materialização dessa transformação eram
as guacas, seres que faziam com que o passado se tornasse parte do mundo atual
e os mortos seguissem vivos abaixo da terra ou ainda como múmias, ou malquis.
Essa presença material, efetiva e latente do passado tornava possível seu
retorno. Isso acontecia porque o tempo era responsável pelo movimento do
mundo, trazendo as coisas de acima para baixo e as de baixo para acima, cau-
sando a inversão dos espaços ocupados pelos seres e provocando assim um
pachacuti: momento em que o hurin se tornava hanan e vice-e-versa, uma espé-
cie de cataclismo natural ou social que marcava o momento de transição para
uma nova ordem de coisas.
O termo pachacuti parece ter tido sua origem a partir do nome de Pachacuti
Inca Yupanqui, soberano inca que viveu entre 1438 e 1471 e que se tornou
180 muito conhecido e respeitado por ter tomado o poder de seu pai, a quem acu-
sava de ser muito tolerante com os inimigos, e por ter conseguido derrotar os
changas, principal obstáculo no processo de expansão inca. A conquista dos
changas teria ocorrido com a ajuda das pedras – tidas como antepassados –
que ressuscitaram e se tornaram guerreiros. Desse modo, podemos ver como
essa concepção era fundamental para a tradição histórica inca explicar suas
próprias conquistas e, particularmente, o momento a partir do qual começaram
a se posicionar como os mais importantes senhores dos Andes e possuidores
de um grande aparato estatal, ao qual, certamente, a tradição histórica estava
incorporada. Veremos mais adiante que esse mesmo conceito foi utilizado para
explicar a conquista castelhana, tida como um pachacuti a partir do qual o
mundo se colocou de cabeça para baixo.
Para completar essa estreita relação entre tempo e espaço36, parece que
os incas utilizavam marcas na paisagem para contar o tempo e explicar o pas-

36
As concepções de tempo e de espaço de uma determinada sociedade relacionam-se de
modo muito estreito, chegando a formar uma verdadeira unidade no processo de apreen-
são e de explicação da realidade. Essa unidade tem sido denominada de cronotopo, ca-
tegoria utilizada analiticamente nos estudos de produções narrativas e literárias, o que a
torna virtualmente aplicável também aos estudos históricos que utilizam textos e crôni-
Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207

sado. Os dias que compunham o ano solar, chamado de guata, eram contados
com ceques que saíam de Cuzco e iam em direção às distintas posições do
nascer do Sol entre um e outro solstício. Como citamos anteriormente, nos
ceques a tradição histórica inca registrava o passado com guacas, que poderiam
ser altares, tumbas ou simplesmente pedras, a partir das quais os aconteci-
mentos eram narrados. Trata-se de uma forma de registro que se dava em uma
geografia acrescida de intervenções humanas e que contava com o funciona-
mento conjunto de uma tradição oral. Além disso, ocorriam grandes encena-
ções nessa paisagem historicizada que, segundo o cronista inca colonial Juan
Santa Cruz Pachacuti, desde os tempos de Pachacuti Inca Yupanqui, tratavam
dos feitos e conquistas dos soberanos incas.37
Além disso é muito conhecido o fato de que os soberanos incas, e também
muitas outras pessoas de distintos níveis sociais, eram mumificados e conti-
nuavam a ocupar seus palácios ou moradas. A concepção que estava por trás
dessa prática era a de que os mortos, e também o passado, continuavam pre-
sentes sob outra forma, continuavam no mundo de hurin (abaixo) sob a forma
de pedras ou de malquis (múmias) e, potencialmente, aptos para um retorno
quando o mundo passasse por um pachacuti.38 181
Essa concepção do passado como algo que continuava a existir aqui e agora
parece ter minorado a necessidade de utilização de uma ampla contagem dos
anos. Há uma polêmica acerca da existência ou não de tal contagem no mundo
andino, mas parece que de todos os modos ela não teve um papel de destaque
na organização da memória histórica entre os incas. Vale ressaltar que não esta-
mos falando de uma limitação técnica ou conceitual, mas sim do papel que a
tradição histórica inca dava para a contagem do tempo. É sabido que os povos
andinos utilizavam várias formas de cômputo do tempo, como por exemplo o

cas como fontes. O conceito de cronotopo ou tempo-espaço foi cunhado na Teoria da


Relatividade para estabelecer o estreito vínculo entre essas duas dimensões, presentes
na realidade e na percepção humana do mundo. Depois, Mikhail Bakhtin aplicou o con-
ceito à literatura e demonstrou a necessidade da existência de uma concepção coerente
de tempo-espaço no interior das narrativas literárias, fato que garante e torna possível
sua inteligibilidade (Navarrete Linares 2002).
37
Tal informação aparece na obra em quíchua desse cronista, intitulada Relación de
antiguedades deste reyno del Perú e escrita em 1613 (Millones 1987: 140-141).
38
Em tempos coloniais, os nobres incas aliados aos castelhanos continuaram a exibir os
malquis de seus antepassados em encenações públicas.
Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207

próprio ano solar, os ciclos de nove meses lunares e as semanas de dez dias,
mas parece que elas não eram utilizadas para definir e localizar de modo cro-
nológico-linear os acontecimentos ou mesmo a duração da vida dos indivíduos,
a qual era computada por ciclos vitais baseados nas condições físicas e na capa-
cidade para o trabalho.
Esse assunto é tratado por Guamán Poma de Ayala que, sintomaticamente,
não descreve as diversas idades da vida em ordem cronológica, ou seja, come-
çando pela infância e terminando com a velhice. Guamán Poma inicia seu relato
pela idade considerada mais importante, a de maior potencialidade para o trabalho,
isto é, pelo ciclo que vai aproximadamente dos 25 aos 50 anos e que era chamado
de auca camayoc, no caso masculino, e auca camayoc uarmi, no caso feminino.
Depois, trata das idades posteriores a esse ciclo de forma progressiva e, por fim,
das idades anteriores de forma regressiva (Díez Canseco 1985).
É quase inevitável pensar que havia uma relação conceitual na organização e
na utilização mnemônica dos ceques – que partiam de Cuzco e que continham
suas tumbas, altares, pedras ou guacas – com os quipus e seus diversos tipos de
nós. Isso leva-nos de volta ao problema da utilização dos quipus como registros
182 mnemônicos que possuíam dimensões narrativas além das quantitativas.
Como dissemos de início, não possuímos reconhecidas “traduções” ou
transliterações coloniais de narrativas supostamente registradas pelos quipus
ou veiculadas pela tradição oral quíchua. No entanto, alguns cronistas coloniais
afirmam que os informantes indígenas se baseavam em quipus para lhes relatar
acerca da história e de outros temas, como por exemplo para se recordar dos
pecados durante a confissão. A esse respeito, na obra Nueva Corónica y buen
gobierno, Guamán Poma afirma “Que los dichos padres del santo sacramento
de la confición mande exsaminar su anima y consencia una semana el dicho
penetente aunque sea español y el yndio haga quipo de sus pecados.”39 Afirma
também, em diversas partes de seu relato, que seus informantes tudo sabiam
a partir dos quipus e que ele próprio tirou informações deles “pues que en los
cordeles supo tanto que me hiciera a fuerza en letra”.40

39
Apud Montoya Rojas 1998a: 175. Nessa mesma página, Rodrigo Montoya reproduz
uma citação de Pérez Bocanegra, de 1631, que reafirmaria essa função dos quipus: “Para
este efecto les mandan vayan atando ñudos en sus hilos que llaman Caitu, y son los pe-
cados que les enseñan, los cuales parecen: añadiendo y poniendo en sus nudos otros,
que jamás cometieron, mandándoles, y enseñándoles, a que digan es pecado el que no lo
es, y al contrario.“
40
Apud Brotherston 1997: 118.
Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207

Além disso, parece que os próprios castelhanos perceberam a existência


de dimensões não numéricas de registro nos quipus e, assim como no caso
dos códices mesoamericanos, promoveram grandes queimas para destruir aqui-
lo que, ao juízo cristão, continha informações acerca da idolatria.
Outro argumento a favor de que os quipus possuíam dimensões narrativas é o
estudo do caso de um pleito judicial no qual um quipu teria sido apresentado e lido
pelos senhores de Hatun Xauxa à Audiencia de Los Reyes em 1561. Esse caso confir-
maria, no mínimo, que os cordéis do quipu estavam organizados sistematicamente
para representar sempre uma mesma seqüência de categorias de seres (homens, bata-
tas, lhamas, sandálias, cerâmicas, carvão, pescado e etc.), distribuídas, por sua vez,
em uma outra seqüência cronológica.41 Por fim, podemos agregar também o caso
relatado por Guamán Poma de Ayala dos famosos mensageiros incas, ou hatun
chasqui, que levavam mensagens com quipus, os quais especificariam datas e locais
e que são equiparados por esse cronista com as cartas.42
Além desses testemunhos que relacionam o uso dos quipus com o registro
de informações não numéricas, sabemos, também por relatos do início do Período
Colonial, que a formação de um experto em quipus, chamado de quipucamayoc,
demorava quatro anos e acontecia em escolas – yacha huasi – no centro do mun- 183
do inca, isto é, em Cuzco. Será que para entender apenas as dimensões numéri-
cas dos quipus seria necessário tanto tempo? Será que estes depoimentos são
suficientes para afirmamos que os quipus eram uma espécie de escrita? Essa
questão nos leva a outro intrincado problema: o que é uma escrita?43

41
A afirmação que consta nos autos do pleito judicial é a seguinte: “Los yndios desta
tierra tienen cuenta y razon de las cosas que dan a sus señores (…) por quipos que ellos
llaman y todo lo que han dado de mucho tiempo atras lo tienen asimismo en sus quipos.
E saue este testigo que los dichos sus quipos son muy ciertos e verdaderos porque este
testigo muchas y diversas veces ha cotejado algunas cuentas que ha tenido con yndios
de las cosas que le han dado e le han debido e les ha dado e ha hallado que los quipos
que tienen los dichos yndios eran muy ciertos …” Tal afirmação teria sido feita por Pedro
de Alconchel e foi publicada por Waldemar Espinoza Soriano em “Los huancas aliados
de la conquista; tres informaciones inéditas sobre la participación indígena en la con-
quista del Perú, 1558, 1560 y 1561". in Anales Científicos de la Universidad del Centro
1. Huancayo, 1971, 1972. Apud Murra 1985: 433.
42
As ilustrações que retratam os hatun chasqui encontram-se nas páginas 350 e 811 da
Nueva corónica y buen gobierno (Guamán Poma 1980).
43
Não se trata de uma questão meramente nominalista, mas sim da utilização analítica
do conceito de escrita para a abordagem e a interpretação dos quipus ou outros tipos de
registro do pensamento e da fala.
Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207

Alguns estudiosos dos quipus andinos (Ascher & Ascher 1997) e dos
códices pictoglíficos mesoamericanos (Brotherston 1997) mostram que consi-
derar como escrita apenas aos sistemas logográficos, isto é, que registram a
fala, é uma enorme e preconceituosa redução analítica do mundo ocidental
para com outros sistemas de representação do pensamento e da fala. Tal redu-
ção estaria baseada no pressuposto de que a escrita logográfica, seja ela foné-
tica ou silábica, é o estágio mais avançado de uma suposta evolução universal
dos sistemas de representação do pensamento e da fala, ao qual uns poucos
povos eleitos teriam chegado. Essa suposta evolução teria começado com as
pinturas e os sistemas ideográficos no Oriente e Oriente Médio e chegado ao
seu mais alto grau com o alfabeto fenício e grego, caracterizado pela utilização
de signos abstratos, que possuem uma relação convencional de correspondên-
cia quase que exclusiva com a fala.44
De acordo com essa visão, poderíamos estudar e classificar evolutivamente
os sistemas não alfabéticos por aproximações ou carências em relação ao sistema
alfabético ocidental. Será que agindo desse modo, ou seja, analisando os sistemas
de registros por suas supostas carências e de forma desligada das demandas de
184 suas sociedades produtoras, não deixaremos de entender as especificidades de
funcionamento, as lógicas organizadoras, as formas de leitura, as relações especí-
ficas com a oralidade e os usos sociais desses outros sistemas?
Para os estudiosos que defendem a ampliação do uso analítico do conceito
de escrita, a oralidade não representaria um dos pólos de um binômio agonís-
tico, no qual encontraríamos, no outro extremo, a escrita alfabética. Em todos
os sistemas haveria graus de foneticismo que variariam de um para o outro,
pois nenhum conjunto de sinais gráficos seria capaz de representar por com-
pleto a língua falada, dependendo, em última instância, de uma oralidade para-
lela e complementar. De acordo com esses autores, o conceito de escrita deveria
ser ampliado e entendido como uma forma sistemática de registro, que possui
sua própria inteireza, estrutura interna, formato, ordem de funcionamento e
de leitura e que é utilizada para representar com regularidade sons ou conceitos
por meio de sinais gráficos ou outros artifícios – e que pode se relacionar com
a oralidade de formas diversas e em diversos graus.

44
Entre os estudiosos que ainda seguem esse modelo evolucionista no estudo dos siste-
mas mesoamericanos de escrita, podemos citar Manrique Castañeda 1989.
Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207

Será que essa concepção mais ampla de escrita abrangeria o sistema dos
quipus? Caso abrangesse, como entender ou ler as informações contidas nos
diversos exemplares que chegaram até nós, de tempos pré-hispânicos e colo-
niais, se não possuímos “traduções” coloniais que explicitem o funcionamento
do sistema e se a tradição dos quipucamayocs praticamente já não conta com
nenhum representante em nossos dias?45 Que importância possuía esse sistema
para a tradição histórica inca? Que relação possuía com a tradição oral? São
perguntas para as quais ainda não temos muitas respostas, mas sobre as quais
vários estudiosos se dedicam atualmente e, certamente, produzirão trabalhos
que nos ajudarão a entender, em um futuro muito breve, alguns aspectos mais
da tradição histórica inca em tempos pré-hispânicos e coloniais.46
Um outro aspecto acerca das tradições históricas incas que merece ser
mencionado é sua centralidade e quase exclusividade nas poucas fontes textuais
que conhecemos do Período Colonial. Vimos que no caso mesoamericano
imperava uma certa polifonia de vozes, que explicavam de modo central a
história de cada altepetl. A situação é bem diferente no caso andino, pois as
informações contidas nas fontes coloniais provêm, preponderantemente, da
tradição histórica inca, que era parte de uma memória oficial a serviço de um 185
recente domínio expansionista sobre uma região com pelo menos 6.000 anos
de história.47 Podemos aventar duas explicações para esse fenômeno e que não
são, necessariamente, excludentes.
Em primeiro lugar, podemos pensar que esse quase monopólio inca da his-
tória andina deva-se ao tipo de dominação praticada, caracteristicamente cen-

45
Existem mais de 600 quipus espalhados por coleções públicas e privadas de todo o
mundo. A maior delas, cerca de 300 exemplares, encontra-se no Museum für Völkerkunde,
em Berlim (Urton 2003: 11).
46
Vale ressaltar que não se trata de condicionar a existência das tradições históricas incas
e andinas a uma forma de registro escrito, mas de perceber que o entendimento das possí-
veis dimensões narrativas nos quipus abriria novas possibilidades de estudo e de conheci-
mento dessas tradições.
47
Vale notar que a antiguidade dos primeiros centros cerimoniais e populacionais na re-
gião dos Andes é muito maior do que na Mesoamérica, com datas que variam entre 4000
a.C. e 3500 a.C. na região do lago Titicaca. Além disso, foram descobertas múmias no norte
do Chile que datam de 5000 a.C. e que possuem sofisticados tecidos e marcas de trepanação.
Veremos adiante que algumas informações acerca das civilizações andinas anteriores e con-
temporâneas aos incas encontram-se na crônica de Guaman Poma de Ayala, na qual a con-
cepção de que os incas foram os “civilizadores dos Andes” é muito presente.
Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207

tralizadora e que submetia os povos conquistados ou aliados a uma estrutura


política, econômica e cultural que emanava de seus centros de poder. Entre as
práticas que faziam parte dessa estrutura estatal e centralizadora inca estavam:
o estabelecimento de centros de controle político que se sobrepunham às elites
locais, as quais eram, por vezes, deslocadas para Cuzco e incorporadas à elite
inca; o assentamento de etnias estrangeiras nas terras dominadas e o desloca-
mento de grupos dominados para outras regiões; a construção de palácios e bases
de guarnições militares e de armazéns para o controle e a distribuição de víve-
res.48 Talvez a centralização política e a imposição de um aparato estatal tenha
desarticulado ou submetido as tradições históricas locais, cujos membros cer-
tamente pertenciam às elites locais incorporadas, aliadas ou vencidas. Em su-
ma, as explicações históricas eram parte integrante do processo de legitimação
ideológica do domínio inca e deveriam ser controladas ou emanar de seus centros.
Em segundo lugar, podemos pensar que esse monopólio inca da história andina
deva-se ao fato de que a grande maioria dos textos coloniais sobre a história local
procede dos antigos centros de poder e que, desse modo, contaram em sua produção
com informações oriundas da tradição inca ou com a participação de indígenas a
186 ela vinculados. Além disso, havia um outro motivo para que as elites indígenas
locais repetissem a versão inca da história andina, pois, como veremos em detalhe
a seguir, estabelecer uma relação de descendência com o passado inca poderia
funcionar para a obtenção ou a garantia de privilégios, já que o domínio castelhano
se consolidou no mundo andino por meio de alianças com a elite inca, ou com o
que havia restado dela depois dos conflitos iniciais.

2 – Transformações e continuidades das tradições históricas nahua e inca durante


o século XVI e início do século XVII
Nesta parte, trataremos de caracterizar e analisar comparativamente as
transformações e as continuidades pelas quais passaram as tradições históricas
nahua e inca diante da conquista e colonização castelhana. Para isso, utiliza-
remos, sobretudo, as fontes produzidas no início do Período Colonial que tra-
taram da história inca ou nahua como temas centrais e que contaram com a

48
Isso não significa que os modos locais de organização social e de produção eram radi-
calmente alterados (Stern 1986: 49-53).
Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207

participação de membros das tradições históricas nativas. O objetivo central


não será proporcionar uma análise minuciosa de cada uma das fontes, mas
sim estabelecer algumas características e reflexões gerais acerca de suas pro-
duções, usos e consumos, tarefa para a qual nos serviremos também dos estudos
historiográficos.

A – O impacto da conquista militar


As conquistas militares dos mundos inca e nahua foram, ao mesmo tempo,
processos muito semelhantes mas também muito distintos. Tratemos dessas
similitudes e distinções.
Ambos processos contaram com a participação de castelhanos que, a partir
de empresas particulares e com a autorização real, buscavam estabelecer
domínios subordinados à Coroa de Castela. Em ambos casos, os castelhanos
contaram com a participação aliada de grupos indígenas contrários aos domí-
nios inca e mexica. Foi utilizado nos dois casos, sobretudo por parte dos con-
quistadores e seus aliados, uma violência um tanto quanto inaudita, ou pelo
menos pouco usual nos Andes e na Mesoamérica, pois as lutas e matanças se
direcionaram não apenas contra os guerreiros mas também contra toda a popu-
187
lação. Além disso, as guerras passaram a durar todo o ano e não mais se res-
tringir a determinadas épocas. Em ambos processos, a principal justificativa
da conquista foi a suposta idolatria dos povos nativos e a obrigação cristã de
levar-lhes o Evangelho, o que resultou na obrigatoriedade da conversão, pelo
menos formal, dos povos aliados ou conquistados e na destruição de tudo que,
ao juízo cristão, estivesse relacionado com as antigas práticas religiosas: a con-
quista político-militar era uma empresa inseparável da conversão religiosa,
tanto que nas duas regiões podemos observar a participação de clérigos desde
os primeiros momentos de contato e confronto.
De acordo com os ideais da Reconquista que regiam a política e a religião
ibéricas nesse momento, a vitória militar castelhana e de seus aliados, formal-
mente convertidos, gerava como conseqüência um outro e inevitável passo, isto
é, a aceitação das explicações cristãs acerca do passado, do presente e do fu-
turo. A vitória militar era também a vitória do deus cristão e da visão de mundo
e de história católica. Essa situação impôs um grande desafio aos membros das
elites indígenas, portadores das tradições históricas, durante o Período Colonial:
além da sobrevivência física, era necessário encaixar e adaptar as explicações
históricas tradicionais à visão de mundo dos vencedores, parte da qual foi
Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207

apropriada rapidamente pelos indígenas, aliados ou derrotados, que se


converteram rápida e sinceramente ao cristianismo ou ao que entendiam por tal.
Em outras palavras, não devemos nos esquecer que a posição hierarquica-
mente superior ocupada pela visão de mundo e de história cristãs não era fruto
de um debate epistemológico no qual o cristianismo mostrou-se como a melhor
e mais apropriada forma de entender e explicar a história do mundo e do homem.
O que houve foi uma vitória militar que garantiu uma posição de comando ao
pensamento cristão, posição essa que determinava a direção e o sentido das adap-
tações e reelaborações: eram as explicações cosmogônicas e históricas nativas
que deveriam adequar-se ao modelo cristão e não o contrário.49
Porém, isso não significa que os castelhanos ditaram e dirigiram todos os
processos de transformação no mundo colonial e que a influência tenha se dado
em uma só direção.50 Sabemos que as formas de controle político e tributário,
a religiosidade e o cotidiano colonial foram determinados, em grande parte,

188 49
É claro que algumas explicações cristãs acerca da origem do mundo e da história hu-
mana foram colocadas em xeque com a certeza de que a América era um “novo mundo”,
não referido pelos textos bíblicos ou por Aristóteles. Mas isso não significa que as expli-
cações construídas pelos povos americanos acerca do passado tenham sido levadas em
conta – pelo menos não explícita ou conscientemente – pelos pensadores que trataram
de reformular as tradicionais explicações cristãs. Essa reformulação se deu, sobretudo,
a partir do próprio pensamento aristotélico-tomista e de umas poucas e genéricas in-
formações sobre a América. Esse tipo de reformulação pode ser observado na obra do
jesuíta José de Acosta (Acosta 1985). Mas essas reformulações – cujos alicerces esta-
vam em ruínas, segundo Descartes em suas Meditações – foram paulatinamente sendo
substituídas por explicações construídas fora das universidades cristãs e fundadas em
outros princípios. Esse processo é conhecido como Revolução Científica, do qual o Ilumi-
nismo pode ser visto como uma continuação. Neles, o pensamento dos povos america-
nos pode ter desempenhado alguma influência, de forma indireta e implícita.
50
O impacto do descobrimento da América e de seus povos sobre a cosmologia cristã é um
tema bem estudado. Mas talvez faltem estudos sobre o impacto e a participação das expli-
cações de mundo americanas nas reformulações das explicações cosmogônicas e históri-
cas européias, reformulações essas que caracterizaram a história intelectual da Europa du-
rante toda a Época Moderna, e que culminaram no Iluminismo. Um caminho fecundo de
pesquisa poderia ser o mapeamento do percurso das crônicas e textos que incorporaram ou
reproduziram explicações e conhecimentos americanos e que chegaram até a Europa –
principalmente pelos jesuítas nos séculos XVII e XVIII – ou aí foram publicados. Esse
seria o passo inicial para tentar entender até que ponto tais explicações poderiam ter sido
conhecidas e lidas pelos pensadores europeus modernos e de como estariam presentes em
suas obras. Um caso mencionado freqüentemente é o de Montaigne, quem seguramente
conhecia algumas idéias cosmogônicas mesoamericanas, comentadas em seus Ensaios.
Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207

pelas tradições indígenas, responsáveis portanto pela instauração de mundos


coloniais distintos nas diversas regiões americanas que eram controladas pelo
mesmo poderio castelhano. Apesar desse papel central das populações indíge-
nas na construção do mundo colonial, é importante ressaltar que o processo de
transformação não foi simétrico entre os dois mundos que se encontravam e se
enfrentavam nos Andes e na Mesoamérica. A posição de domínio castelhano e
o crescente contingente de europeus que chegava à América permitiu que os
estrangeiros criassem e dirigissem uma sociedade viável, que não corria o risco
de ser engolida pelas sociedades locais, cujos contingentes populacionais eram
cada vez menores devido às enfermidades e maus-tratos (Lockhart 1992).
Desse modo, a progressiva substituição dos aparatos estatais inca e mexica
pelo castelhano-cristão, aliada ao processo de conversão religiosa, gerou uma
impossibilidade crescente de manutenção e de reprodução das tradições históri-
cas nativas de forma independente dos poderes castelhanos, pois seus membros
eram, tradicionalmente, parte dos antigos poderes estabelecidos, que agora en-
contravam-se, majoritariamente, submetidos ou aliados aos cristãos. Em regiões
mais distantes dos centros castelhanos de poder, as tradições nativas mantiveram,
por muito tempo, uma relativa autonomia e continuaram a produzir suas próprias 189
explicações acerca do passado, produções essas que inclusive incorporavam os
novos e recentes acontecimentos, que envolviam os castelhanos, e se expressavam
por meios tradicionais, como os códices pictoglíficos e a tradição oral.
Apesar de todas essas similitudes entre os processos de conquista, houve
especificidades significativas e que geraram distintas formas de relação e de
pactos entre os antigos poderes locais, nahua e inca, e os novos senhores caste-
lhanos. As especificidades na construção dos contatos – assim como as distintas
e prévias visões de mundo nahua e inca – contribuíram para a elaboração de
explicações históricas nativas que incorporavam de maneira distinta o fenô-
meno da conquista e presença castelhanas.
No caso da conquista de México-Tenochtitlan, as alianças prévias seladas
por Cortés e Malinche51 entre 1519 e 1520 com os altepeme vizinhos e inimigos
tiveram um papel fundamental na rápida derrota do centro do poderio mexica,

51
Também conhecida como Malintzin, cujo importante papel nessas negociações é re-
tratado em fontes nativas, como o Lienzo de Tlaxcala.
Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207

que ocorreu entre 1520 e 1521. Desde Cempoala, os castelhanos estabeleceram


alianças com mais de dez altepeme para a luta contra os mexicas, dentre os
quais destacam-se Tlaxcala e Chalco. Calcula-se que o exército que chegou a
México-Tenochtitlan em novembro de 1519 contava com cerca de 500 caste-
lhanos e 10.000 indígenas aliados.
Além disso, parece que Moctezuma e parte dos mexicas queriam evitar a
guerra e receberam os castelhanos e aliados de forma amistosa para tentar esta-
belecer um pacto político. Mas talvez a impossibilidade de uma aliança política
sem a conversão religiosa deu início aos conflitos, que começaram justamente
numa das mais importantes festas religiosas mexica: a festa de Toxcatl, que
terminou com o famoso episódio da Matança do Templo Maior e com os cas-
telhanos sitiados. Depois da desesperada fuga para Tlaxcala, conhecida como
Noche Triste, sobreviveram apenas um quarto dos castelhanos, que trataram
de, entre julho e novembro de 1520, pedir reforços às ilhas do Caribe e
recompor e ampliar as alianças locais.
Em novembro desse mesmo ano, castelhanos e aliados reiniciaram uma nova
marcha, dominando o Vale de Puebla e todo o sul da Cuenca. Até março de 1521
190 contavam também com aliados ao redor de todo o lago Texcoco, os quais já
totalizavam mais de quarenta altepeme. México-Tenochtitlan, liderada agora por
Cuauhtemoc, resistiu até agosto de 1521 quando, após a morte de cerca de 80%
da população, os últimos soldados mexicas foram vencidos e consumou-se o
domínio dos cerca de 1.000 castelhanos e dos 20.000 indígenas aliados.
Essas alianças dotaram a vitória dos castelhanos de uma certa legitimidade
aos olhos da complexa e intricada rede política que regia as relações entre os
altepeme mesoamericanos, os quais mantiveram, pelo menos durante as pri-
meiras décadas após a queda de Tenochtitlan, uma certa continuidade de suas
autonomias e poderes locais, pois estavam ao lado dos vencedores. Sendo
assim, as elites indígenas desses altepeme sentiam-se como parte do regime
colonial e não como vítimas dele, fato que garantia uma certa colaboração polí-
tica. Essas alianças criaram também redes políticas complexas – que opunham,
por exemplo, os castelhanos e indígenas aliados aos indígenas inimigos – e
garantiram a rápida expansão dos novos senhores de Tenochtitlan em direção
a Oaxaca (1524), aos domínios tarascos (1524-1530) e a parte da Guatemala
(1524). Veremos, no próximo sub-item, as conseqüências dessa rápida con-
quista e das alianças castelhanas com as elites locais para o funcionamento e
o papel das tradições históricas indígenas na nova ordem colonial.
Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207

No caso da conquista dos incas, temos um processo de lutas e conflitos


muito mais longo, que vai de 1532, com a prisão de Atahualpa por Pizarro,
até 1572, com a morte de Tupac Amaru. Esse longo processo pode ser dividido
em três fases (Navarrete Linares 2002).
A primeira fase, de 1532 a 1536, iniciou-se com o famoso episódio da
prisão de Atahualpa por Pizarro, em Cajamarca, e pela morte de milhares de
incas e de apenas um castelhano. Essa fase teria terminado com a rebelião de
Manco Capac, soberano inca nomeado após a morte de Tupac Hualpa, que
havia sido nomeado pelos castelhanos após a execução de seu irmão Atahualpa
e que morreu em conflitos com grupos fiéis a Huáscar, assassinado enquanto
Atahualpa estava preso pelos castelhanos. Vale notar que os castelhanos fun-
daram Lima já nessa primeira fase da conquista, em 1535, e a fundaram na
costa, fato que marcaria o início de uma marcada separação sócio-geográfica
entre o mundo castelhano e o indígena que persistiu durante todo o Período
Colonial e chegou até a atualidade.
A segunda fase, de 1536 a 1555, caracterizou-se pelo combate à rebelião
de Manco Capac por Diego de Almagro, pelo refúgio dos incas em Vilcabamba,
por uma série de períodos de guerra e paz e por uma guerra civil entre os cas- 191
telhanos seguidores de Pizarro e de Almagro. Até esse momento, os povos vi-
zinhos não haviam apoiado os incas contra os espanhóis, pois viam o fim de
sua dominação como uma chance de maior autonomia, fato que se tornava
real com a crise da rede de caminhos e do aparato estatal inca, responsável
pela cobrança dos tributos.
A terceira fase, de 1555 a 1572, foi marcada pela consolidação do poder
castelhano, pela chegada do vice-rei Mendoza e dos burocratas após a morte
dos conquistadores e pelo início do pesado regime de trabalho ao qual os indí-
genas foram submetidos nas minas de prata, e que causou inúmeras rebeliões.
Essa fase caracterizou-se também pela continuidade da resistência inca desde
Vilcabamba, principalmente até 1567, quando Titu Cusi firmou a paz com os
castelhanos. Mas após sua morte, em 1571, seu irmão, Tupac Amaru, rebelou-
se e foi vencido e executado publicamente em Cuzco, em 1572.
O longo processo de conquista castelhana e de resistência inca aliado ao
pesado regime de trabalho e de tributos – que transformava a tradicional mita
em uma espécie de escravidão – geraram um verdadeiro caos social e econô-
mico que atingiu todas as regiões antes dominadas pelos incas, o que contribuiu
para a generalização de um sentimento de rechaço ao poder político e à religião
dos castelhanos. Além disso, o número de aliados indígenas que se sentia
Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207

vitorioso com a derrota dos incas era muito menor do que no caso dos mexicas.
Veremos que as explicações históricas nativas para a conquista castelhana
construídas nessa fase final ainda acreditavam na possibilidade de expulsão
total dos castelhanos e na restauração da ordem andina anterior, anterior
inclusive aos próprios incas. 52
No entanto, a progressiva instalação do aparato colonial castelhano após
o fim das lutas contra os incas cooptava, cada vez mais, os membros das elites
incas derrotadas e os curacas dos mais diversos povoados. Conjuntamente, o
crescimento do número de castelhanos mostrava ao mundo andino que estavam
ali para ficar. Veremos que esses fatos transformaram as explicações andinas
e incas da conquista produzidas nessa fase – fins do século XVI e início do
XVII – pelas elites locais aliadas, que passaram a tratar o fenômeno da con-
quista e da colonização castelhana como algo irreversível. Não se tratava mais
de expulsar os castelhanos, mas sim de conseguir um sistema mais justo sob a
ótica andina, um sistema que respeitasse os princípios básicos da reciprocidade
e da organização social local, garantindo assim os privilégios e poderes subor-
dinados das elites locais, pois reciprocidade, mesmo em tempos pré-hispânicos,
192 não era sinônimo de relações igualitárias.

B – Convivência, resistência e reacomodações


Depois de findados os processos de conquista militar, caracterizados pela
grande intensidade de guerras e matanças e pela imposição final do domínio
dos conquistadores e seus aliados indígenas, iniciou-se nas regiões nahua e
inca uma outra etapa histórica, caracterizada principalmente pelo traslado e a
implantação de instituições castelhanas e por uma certa estabilidade no contro-
le político e econômico. Isso não significa que as revoltas e conflitos armados
não continuaram a existir, principalmente no caso dos Andes e das regiões

52
A idéia do retorno de um incarrí, ou inca-rei, que expulsaria os castelhanos e restau-
raria a antiga ordem no mundo andino, foi criada posteriormente, entre fins do século
XVI e início do século XVII, justamente após a execução pública de Tupac Amaru. Essa
idéia, que se tornará central para as tradições históricas andinas, caracteriza-se por uma
visão idealizada dos tempos incaicos, e sua construção foi fomentada, principalmente,
por dois motivos: a maioria das pessoas que havia vivido sob o domínio inca havia morrido
e o crescente domínio econômico, tributário, político e religioso dos castelhanos mostrava,
cada vez mais, sua face de violência e de exploração.
Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207

mesoamericanas ao norte e ao sul do Altiplano Central, sobre as quais os caste-


lhanos e seus aliados procuravam ampliar seus domínios.53
E como vimos anteriormente, esse processo de conquista e colonização polí-
tica, militar e econômica era inseparável do processo de conquista espiritual.
Desse modo, as instituições religiosas cristãs, sobretudo igrejas, monastérios e
colégios, também foram trasladadas e implantadas nas regiões conquistadas, pas-
sando a ser os principais centros de difusão do pensamento histórico e cosmogô-
nico do Velho Mundo.
Durante o século XVI chegaram à região da Nova Espanha quase três mil
religiosos e ao Peru cerca de mil e oitocentos (Borges 1983). Foi com esses
religiosos cristãos que parte das tradições históricas nahua e inca se defron-
taram. Vejamos como isso se deu entre mexicas e incas.
A rápida expansão dos domínios políticos castelhanos e de seus aliados
na região central da Mesoamérica e a relativa legitimidade desses novos domi-
nadores em dezenas de altepeme possibilitaram a difusão massiva do cristia-
nismo e de alguns conceitos de sua visão de mundo. Ao mesmo tempo, era
fundamental para as elites nahuas – intermediadoras das relações entre os
novos senhores castelhanos e a população indígena – incorporar os símbolos 193
políticos e religiosos castelhanos que demonstravam suas posições sociais,
como por exemplo as roupas e os escudos de armas. Também era necessário
adequar sua história e cosmogonia à história e cosmogonia do deus cristão
vitorioso, deus este que, aliás, não era muito afeito à competição com outros
deuses ou a outras versões da criação do mundo e da história dos homens.
O resultado dessas reelaborações foram obras muito diversas, que com-
binaram de maneiras distintas as histórias e explicações cosmogônicas tradi-
cionais com as idéias de origem cristã. No entanto, todas elas possuem em
comum o fato de se destinar a dois universos de públicos distintos: os religiosos
e mandatários castelhanos e as elites e populações nahuas. A maioria dos
autores dessas obras estavam interessados em assegurar para si e para seu grupo
as posições e privilégios sociais dentro da nova ordem colonial e, para isso,

53
Na verdade, é muito difícil estabelecer um limite cronológico entre conquista e colo-
nização que valha para toda e Mesoamérica e Andes. Cada região e povo viveu esses
momentos em épocas distintas. Sabemos que em alguns casos, a invasão territorial e a
conquista militar foram processos que só se consumaram nos séculos XIX e XX. Sendo
assim, a divisão que estamos estabelecendo entre conquista militar e colonização serve
apenas para os dois casos estudados, isto é, nahuas do Altiplano Central e incas.
Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207

necessitavam dialogar com o mundo castelhano, por um lado, e com o indígena


por outro, pois somente sendo entendidos e legitimados pelos dois é que pode-
riam manter sua privilegiada posição de elite intermediária.
Algumas das mais importantes obras que se encaixariam nessa tipologia
foram escritas por Fernando Alvarado Tezozomoc, Domingo Francisco de San
Antón Muñón Chimalpahin Cuauhtlehuanitzin, Cristóbal del Castillo,
Fernando Alva Ixtlilxochitl e Diego Muñoz Camargo, alguns dos quais filhos
de castelhanos e indígenas.54
Vale lembrar também que os castelhanos, desde as alianças pré-conquista
de Tenochtitlan, necessitavam dessas elites para atender as demandas de seus
domínios e, futuramente, de seu império. Era preciso lidar com as unidades
políticas mesoamericanas, suas afinidades e tendências à fragmentação e à
autonomia, impulsionadas pelas centenas de micro-etnicidades e por um
modelo geral de organização celular no qual cada parte da rede de alianças
políticas era relativamente completa e, portanto, potencialmente independente.
Esse modelo político havia vigorado por milhares de anos e continuava exis-
tindo apesar da conquista. Uma demonstração da sua grande força foi o fato
194 de que quase que a totalidade dos altepeme se tornaram municípios na década
de 1530, garantindo assim sua sobrevivência como entidade-base da nova orga-
nização colonial. Isso garantiu a continuidade da existência de parte da elite
nahua que, em troca de privilégios e poderes subordinados, ocupou o governo
dessas unidades até o fim do Período Colonial (Lockhart 1992). É claro que
isso contribuiu para a continuidade transformada das tradições históricas
nahuas que, como vimos, tinham no altepetl seu centro temático.
A rápida expansão do cristianismo pela Mesoamérica durante o século XVI
contou também com a realização de uma série de trabalhos missionários de pes-
quisa, os quais pretendiam aprender as línguas e conhecer os hábitos, a religiosidade
e o pensamento nativos. Com esses saberes, os evangelizadores estariam dotados
de instrumentos de pregação e preparados para combater as indesejáveis misturas
entre as antigas idolatrias e a nova religião e, assim, conseguir uma conversão mais
eficiente e inspirada nos ideais do cristianismo primitivo e do milenarismo de Joaquín
de Fiore. Os trabalhos realizados ainda no século XVI pelo franciscano Bernardino

54
Suas obras estão referenciadas, respectivamente, como: Alvarado Tezozomoc 1998,
Chimalpahin Cuauhtlehuanitzin 1965 e 2001, Castillo 2001, Alva Ixtlilxochitl 1985 e
Muñoz Camargo 1998.
Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207

de Sahagún (Sahagún 2002) e pelo dominicano Diego Durán (Durán 1984) são os
exemplos mais acabados e sofisticados dessas pretensões missionárias de estabele-
cimento de um cristianismo livre das antigas idolatrias.
Mas esses trabalhos missionários de pesquisa foram realizados em
conjunto por freis, por alunos indígenas dos colégios missionários, descen-
dentes das elites locais, e por antigos sábios indígenas. E, desse modo, deram
a oportunidade para que uma série de relatos orais, como os huehuetlahtolli,
ou antiga palavra, fossem transcritos em nahuatl e depois traduzidos.55 Além
disso, inúmeros códices pictoglíficos também foram produzidos, glosados ou
parcialmente explicados nesses trabalhos conjuntos, dando origem a uma série
de textos alfabéticos que “traduziam” os conteúdos tradicionalmente veicu-
lados por meio do sistema pictoglífico.56 Esse fato possibilitou o estudo e o
entendimento de parte dos códices exclusivamente pictoglíficos.
Em todos esses códices e textos alfabéticos podemos perceber a forte conti-
nuidade de elementos utilizados anteriormente pelas tradições históricas
nahuas, como por exemplo os relatos cosmogônicos que tratam das eras ou
idades anteriores, a utilização da conta dos anos sazonais (xiuhmolpilli) para
mensurar as distâncias temporais e estruturar as narrativas e a centralidade 195
dos altepeme nas narrativas que tratavam do passado mais recente. Além disso,
podemos perceber também o esforço de adequar os conteúdos dos relatos tradi-
cionais aos novos preceitos cristãos e à cosmogonia do Velho Mundo. Isso se
dava, por exemplo, omitindo e minorando nos relatos os episódios de sacrifícios
humanos e de antropofagia ou ainda atribuindo-os aos povos inimigos.57

55
Os dois principais conjuntos dessas transcrições são os Romances de los señores de la
Nueva España e os Cantares mexicanos, ambos publicados sob o título de Poesía náhuatl
(2000). Há também uma seção do Códice Florentino, de autoria de Bernardino de Sahagún
(Sahagún 2002) e de sua equipe de informantes e alunos indígenas, dedicada aos poe-
mas e cantos tradicionais nahuas.
56
Entre os textos alfabéticos nahuas que apresentam indícios internos de terem sido produ-
zidos a partir de leituras de códices pictoglíficos, podemos destacar os Anales de Cuauhtitlan
(1945), a Historia de los mexicanos por sus pinturas (1996) e a Leyenda de los soles (1945).
57
Nos Anales de Cuauhtitlan, por exemplo, os mexicas são acusados de sacrificar deze-
nas de milhares de cativos na inauguração do Templo Maior (Anales de Cuauhtitlan 1945:
57-58). No entanto, alguns cronistas mexicas, como Alvarado Tezozomoc, não omitem
os sacrifícios nem os atribuem a outros povos, mas os reivindicam por sua conotação de
valentia guerreira e de devoção religiosa – valores locais que seriam compartilhados com
os espanhóis, ainda que mal encaminhados pois o demônio teria agido livremente nas
terras distantes do Evangelho (Navarrete Linares 2000).
Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207

Uma outra forma de adequar os antigos relatos sobre as idades do mundo


e a história tolteca às novas demandas era narrá-los novamente à luz dos textos
bíblicos. Desse modo, encontramos casos em que Huemac, soberano de Tula
e sucessor ou contemporâneo de Quetzalcoatl, foi identificado com o apóstolo
São Tomás, numa clara tentativa de vincular os relatos das duas tradições his-
tóricas, o que era importante para ambas. Por um lado, as elites indígenas alia-
das pretendiam provar que seu mundo e sua história também eram parte da
grande história universal cristã, adotada tacitamente no momento de sua con-
versão. Por outro, o problema da origem do homem americano e de seu esque-
cimento pelo deus cristão era algo que incomodava aos pensadores cristãos,
que também buscavam vincular a América, e o que imaginavam ser sua história,
aos relatos bíblicos.58
Dentro desse lento e contínuo processo de colonização, o uso da picto-
grafia, um dos principais meios de expressão da tradição histórica nahua, per-
durou até fins do século XVII e passou por dois momentos bem distintos
(Lockhart 1992). O primeiro, que durou até meados do século XVI, marcou-
se por uma continuidade geral dos princípios que regiam o sistema, que foi
196 usado inclusive para expressar as novas realidades trazidas pelos castelhanos,
como os cavalos e os nomes próprios. Até esse momento, poucos centros ha-
viam iniciado os trabalhos de ensino religioso a jovens ajudantes nahuas – basi-
camente no México e em Tlaxcala –, que aprenderiam a manejar o alfabeto
latino para transcrever seu idioma. O segundo momento, que durou de meados
do século XVI até o desaparecimento do sistema, no final do século XVII,
marcou-se por um decréscimo constante e progressivo no uso da pictografia
como veículo primário, pela proliferação das instalações religiosas e burocrá-
ticas castelhanas, pelo conseqüente crescimento da produção de textos alfabé-
ticos de diversos tipos e, por fim, pela adoção de padrões pictóricos europeus.
Além dessas formas de ajuste das explicações tradicionais ao pensamento
cristão e apesar da progressiva adoção do sistema alfabético, houve uma grande

58
Essa identificação entre São Tomás e Huemac encontra-se em duas importantes crôni-
cas coloniais: na obra do dominicano Diego Durán (Durán 1984) e no texto do Códice
Ramírez (1987), ou Relación del origen de los indios que habitan esta Nueva España, pro-
vavelmente um resumo da obra de Durán feito por Juan de Tovar, que fora encarregado
pelo vice-rei Martín Enriquez de Almanza para escrever uma história do México pré-his-
pânico (Camelo & Rubén Romero 1995). Ou talvez ambos tenham baseado-se em uma
obra anterior, perdida e de autoria desconhecida, chamada pelos estudiosos de Crónica X.
Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207

continuidade, estrutural e temática, da produção local de histórias e cosmogo-


nias até o fim do Período Colonial, sobretudo nas regiões mesoamericanas mais
distantes dos centros de poder castelhano. Por vezes, tais continuidades aden-
traram os séculos XIX e XX e, em última instância, chegaram até os dias atuais.
Talvez, de modo geral, possamos dizer que o grau de presença do pensamento
cristão nessas histórias e cosmogonias reelaboradas é diretamente proporcional
a dois fatores: ao grau de contato, convivência e penetração das instituições
de origem ibérica nessas comunidades e também à qualidade dos contatos,
isto é, se de maior receptibilidade ou maior rechaço aos elementos de origem
estrangeira por parte das comunidades nativas.
Citamos no item anterior que a longa conquista dos incas pelos castelhanos
gerou, pelo menos, dois tipos distintos de explicações históricas nativas. Por
um lado estavam aquelas que ainda acreditavam na possibilidade de se livrar
totalmente da presença castelhana e, por outro, aquelas que já tratavam o fenô-
meno da invasão como algo irreversível e que procuravam re-localizar, da
melhor forma possível, o mundo e a história andina diante da nova situação.
Ambas utilizaram-se de conceitos tradicionalmente utilizados pelas explica-
ções históricas incas e que faziam parte da visão de mundo andina em geral, 197
como por exemplo o conceito de pachacuti. Vejamos em detalhe esses dois
tipos de explicação histórica colonial, utilizadas pelos incas e povos andinos.
Ainda durante a fase final da conquista militar, em 1564, houve um grande
movimento pan-andino, na região de Huamanga, de rechaço ao mundo caste-
lhano chamado de Taki Onqoy ou enfermidade da dança. Segundo os depoi-
mentos de seus participantes – registrados pelo frei Cristóbal de Albornoz e
por seu tradutor, Guamán Poma de Ayala –, as guacas estavam zangadas pelo
colaboracionismo indígena e pela suspensão dos sacrifícios. Por isso passaram
a possuir os indígenas, fazendo-os cair ou dançar ininterruptamente, purifi-
cando-os por meio da renúncia ao cristianismo e a tudo o que viesse dos
castelhanos. Desse modo, os indígenas acreditavam estar prontos para o pró-
ximo pachacuti, quando então as guacas, encabeçadas por Titicaca e
Pachacamac, matariam a todos os castelhanos e curacas aliados e assim devol-
veriam as coisas aos seus devidos lugares (Navarrete Linares 2002).
Podemos perceber nesses depoimentos, de forma muito clara, a presença
de pelo menos duas idéias típicas das explicações históricas e da visão de mundo
andinas: o mundo divide-se entre hanan e hurin e um pachacuti inverte a posição
ocupada por cada uma das partes, como aconteceu durante a conquista
castelhana. Além disso, de acordo com a avaliação feita pelos participantes do
Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207

movimento, ainda seria possível expulsar totalmente os estrangeiros e restaurar


a antiga ordem das coisas. Inclusive, a ordem restaurada poderia ser uma ordem
melhorada, já que o recente domínio inca da região havia sido rompido pelos
castelhanos que, por sua vez, seriam expulsos.
A crônica de Titu Cusi Yupanqui (1985) também foi escrita durante essa
fase final da conquista, nos anos 1560, e, de um ponto de vista inca, compartilha
muitas explicações históricas diante do fenômeno da conquista com o movimento
Taki Onqoy. Titu Cusi – irmão de Tupac Amaru, filho de Manco Capac e neto
de Huayna Capac – relata centralmente a grande rebelião de Manco Capac, em
1536, e também apresenta um alto grau de rechaço aos castelhanos, classi-
ficando-os como seres que não pertenciam a hanan, mas sim a hurin, pois seriam
filhos de Supay, o Senhor do Mundo de Abaixo. Nessa classificação podemos
perceber outras duas idéias comuns às do Taki Onqoy: a divisão do mundo entre
hanan e hurin e a conquista castelhana como um pachacuti que inverteu o mundo
antes dominado pelos incas, seres procedentes do mudo superior e do Sol.
A percepção da população nativa, em constante decréscimo numérico,
sobre a dimensão do fenômeno colonizador alterou-se com o crescimento da
198 presença castelhana no último terço do século XVI. Essa alteração, conseqüen-
temente, acarretou a construção de explicações históricas distintas, as quais
já não falavam mais em se livrar totalmente dos novos senhores e estrangeiros,
mas sim, como citamos anteriormente, em restabelecer as relações de poder e
de subordinação de acordo com princípios políticos tradicionais.59
No entanto, por outro lado, essa elite era formada por pessoas que haviam
crescido e ainda viviam imersos em um universo cultural não muito diferente
daquele que existia em tempos incas. Desse modo, suas explicações históricas
e cosmogônicas eram, em realidade, construídas com conceitos tradicionais,
utilizados cotidianamente para dar conta da realidade natural e social e que
faziam parte da própria constituição de seus pensamentos. Reformular as expli-
cações tradicionais da antiga visão de mundo para dar conta da nova realidade
e incorporar as idéias cristãs era, muito mais do que um ato deliberada e cons-
cientemente interesseiro, a única forma de obter um certo reconhecimento por

59
É claro que isso as obrigava a uma atitude de abertura e receptividade ainda maior
para a instalação das instituições políticas, econômicas e religiosas européias, pois a
aliança com os vitoriosos implicava em uma aliança com seus deuses, prática que já pos-
suía precedentes na antiga pauta da política andina (Stern 1986).
Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207

parte dos novos senhores, de seus pares e da população indígena em geral, a


quem pretendiam representar e comandar desempenhando o papel de
intermediários.
Alguns relatos com essas características foram produzidos por membros
das elites incas entre o final do século XVI e o início do século XVII e, certa-
mente, podem ser considerados como re-formulações de explicações tradicio-
nais incas que atendiam às novas demandas dos tempos coloniais.
Os escritos mais conhecidos e que se encaixam nesse grupo são os de
Felipe Guamán Poma de Ayala, de 1615, os de Juan Santa Cruz Pachacuti
Yanqui Salcamayqua, de 1613, e os de Garcilaso de la Vega, de 1609.60 Há
ainda um texto em quíchua do século XVI, intitulado Manuscrito de Huarochirí
ou Runa yndio niscap Machoncuna, que também se encaixaria nesse grupo.61
Todos esses escritores incas coloniais e suas tentativas de reelaboração das
narrativas históricas e cosmogônicas refletem as demandas de uma época em
que já não podiam mais resistir militarmente e buscavam outros meios de oposi-
ção e adaptação, como a escrita e os meios legais (Zapata 1989). Entre todos
esses escritos, seguramente os que trazem uma maior quantidade de informa-
ções específicas do mundo andino são os de Guamán Poma de Ayala e o manus- 199
crito Runa yndio de Huarochirí.
O relato de Guamán Poma pode ser considerado como uma transcrição parcial
da tradição histórica inca – única a ser registrada em tempos coloniais62 – a partir
de narrativas orais, de informações dos quipus e do depoimento de anciãos. Sua
obra procurava estabelecer um projeto alternativo à colonização que efetivamente

60
Referenciados, respectivamente, como Guamán Poma de Ayala 1980, Santa Cruz
Pachacuti 1968 e Garcilaso de la Vega 1968. No caso da obra de Guamán Poma, além des-
sa edição em livro, há uma edição fac-similar e eletrônica na Internet (http://www.kb.dk/
elib/mss/poma/) e que conta com comentários de Rolena Adorno e de John Charles.
61
Esse manuscrito descreve a geografia do Tahuantinsuyu, enfocando principalmente suas
guacas e elementos da paisagem tidos como santuários. Suas principais edições são:
ARGUEDAS, José María (comp.). Dioses y hombres de Huarochirí: narración quechua.
Lima, Museo Nacional de Historia e Instituto de Estudios Peruanos, 1966. / TAYLOR,
Gerard. Ritos y tradiciones de Huarochirí: manuscrito quechua, versión paleográfica.
Lima, Instituto de Estudios Peruanos e Instituto Francés de Estudios Andinos, 1987. /
SALOMON, Frank & URIOSTE, George. The Huarochiri manuscript: a testament of
ancient and colonial Andean religion. Austin, University of Texas Press, 1991.
62
Parece que o manuscrito Runa yndio de Huarochirí oferece apenas insinuações acerca da
existência de outras tradições históricas nos Andes em tempos incaicos (Brotherston 1997: 250).
Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207

vinha sendo implantada. Seu principal argumento nesse sentido é que a coloniza-
ção, do modo como funcionava até então, não beneficiava nem ao rei castelhano
nem aos andinos, mas apenas a uns poucos e desonestos conquistadores e buro-
cratas castelhanos e, por isso, deveria ser radicalmente modificada.
Guamán Poma, como sincero membro da igreja católica e testemunho
ocular da forte e crescente presença das instituições castelhanas, já não ques-
tionava o domínio e a presença cristã nos Andes. Mas, por outro lado, como
descendente direto das elites incas, não deixava de acreditar que a conquista
havia sido um pachacuti, pois os castelhanos, que deveriam mandar apenas
em Castela, mandavam agora também nos Andes. A solução proposta em seus
textos para a correção dessa injustiça era a supressão do grupo dos con-
quistadores e a aliança direta entre os incas, a coroa de Castela e o Papa.63
Essa proposta reflete, por um lado, a preocupação da classe dominante
indígena em recuperar seus privilégios – cada vez menores diante do cresci-
mento das instituições e do número de burocratas castelhanos – e marca uma
reação às sobre-explorações que passaram a caracterizar as relações econô-
micas e tributárias após 1580. Além disso, as epidemias matavam centenas de
200 milhares e geravam, em muitas partes, um verdadeiro caos social e econômico,
explicado pela visão de mundo andina como resultado das relações sociais
desequilibradas e que haviam sido implantadas pelos estrangeiros. E, por outro
lado, a utilização de conceitos tradicionais – como pachacuti, hanan, hurin e
manay – para explicar a conquista e a colonização e construir uma proposta
de futuro procurava validá-los mostrando sua eficácia em continuar dando con-
ta das transformações e continuidades da história.

Palavras finais
Enunciamos de início que a elaboração, a manutenção e a transmissão
sistemáticas de explicações acerca do passado não eram, nem o são atualmente,
uma exclusividade do mundo ocidental. Afirmamos também que nas chamadas
sociedades complexas esses processos tendiam a estar sob o controle de orga-

63
Em seu famoso mapa-múndi, Guamán Poma projeta a divisão quadripartida do
Tahuantinsuyu e apresenta os Andes acima de Castela. A maioria de seus desenhos traz
contrastes e orientações espaciais que são prioritariamente significativos: são como um
arranjo sintático de elementos em uma sentença gramatical (Adorno 1991).
Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207

nizações ou grupos específicos que poderiam, inclusive, contar com indivíduos


ou instituições especializadas, aos quais denominamos de tradições históricas.
Creio que ao tratarmos, na primeira parte, de algumas características das
explicações históricas inca e nahua, pudemos, por um lado, comprovar a exis-
tência de tais tradições em tempos pré-hispânicos e, por outro, vislumbrar algu-
mas características de seu funcionamento, principalmente no que diz respeito
às preocupações temáticas, à organização estrutural das narrativas, aos me-
canismos de registro e transmissão e às concepções de tempo e espaço.
Na segunda parte, ao analisarmos comparativamente as transformações e as
continuidades das duas tradições históricas diante das conquistas e colonizações
castelhanas, creio que pudemos entender os modos específicos com os quais cada
uma reagiu, transformou-se e adaptou-se às novas demandas do mundo colonial.
Os resultados dessas transformações e adaptações materializaram-se, muitas vezes,
em códices e textos alfabéticos, chamados aqui de escritos históricos, e que devem,
portanto, ser situados e analisados dentro dos distintos, complexos e específicos
contextos coloniais em que foram produzidos.
A existência dessa grande produção de escritos históricos coloniais nativos
apontou para a continuidade transformada de instituições e de saberes de origem 201
indígena, principalmente no primeiro século pós-contato. Isso se comprovou pela
utilização de estruturas narrativas – como o calendário no caso nahua – e de
conceitos explicativos tradicionais – como o pachacuti no caso inca – nas obras
de tempos coloniais. Além disso, houve também uma continuidade da função
ideológico-legitimadora que as explicações acerca do passado desempenhavam
para as elites indígenas em tempos pré-hispânicos, pois muitos desses escritos
coloniais tinham como principal preocupação a adequação das antigas explica-
ções históricas e cosmogônicas ao pensamento histórico-religioso dos novos se-
nhores, redefinindo e garantindo assim uma nova identidade e uma nova posição
política para as tais elites na nova ordem colonial.
Vimos também, que o modo pelo qual se logrou a conquista dos incas e dos
nahuas pelos castelhanos foi um fator determinante na constituição das redes
de alianças que imperaram no mundo andino e mesoamericano colonial, e que
isso influenciou diretamente o posicionamento de maior adesão ou rechaço aos
novos senhores, o que, por sua vez, teve implicações diretas nas formas de
reelaboração histórica levadas a cabo pelas tradições históricas locais.
Podemos dizer que a rápida conquista dos mexicas pelos castelhanos e in-
dígenas aliados contribuiu para uma maior legitimidade relativa e para a aceita-
ção da nova ordem pelos grupos locais. Isso, por sua vez, contribuiu para uma
Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207

maior rapidez e facilidade de traslado de instituições castelhanas, sobretudo de


instituições religiosas, o que resultou em um grau muito maior de influência e de
presença cristãs nas novas explicações históricas nativas. Tais produções, em geral,
destinavam-se a leitores dos dois universos culturais, pois necessitavam, simulta-
neamente, do reconhecimento local e da aprovação dos novos e estrangeiros se-
nhores para lograr uma re-localização do passado e do presente indígena a partir
das novidades adotadas ou impostas pela tradição de pensamento cristã.
Já a dificultosa e prolongada conquista dos incas pelos castelhanos e seus poucos
aliados teve como resultado uma menor legitimidade relativa do poder dos novos senho-
res aos olhos dos princípios políticos locais, o que ocasionou uma maior dificuldade
no traslado e na implantação das instituições castelhanas, tornando-as mais tardias e
menos difundidas geograficamente em relação à região central do México.
Entre uma série de outros fatores, essas diferenças no processo de conquista
e colonização dos Andes contribuíram para importantes particularidades na pro-
dução das explicações históricas locais em relação às produções do Altiplano
Central. Tratamos mais detalhadamente de duas dessas particularidades: 1 – a
presença central e difundida da concepção de que a conquista castelhana havia
202 sido um pachacuti, uma inversão total da antiga ordem de coisas, e que seria
possível, em um futuro breve, revertê-la totalmente; 2 – a não-aceitação do poder
político e econômico dos conquistadores e burocratas como algo legítimo, fato
que levou um dos mais importantes cronistas coloniais incas a elaborar um pro-
jeto de vinculação direta das elites locais ao rei de Castela e ao Papa.64
Creio que todas essas reflexões nos apontam para a importância de anali-
sarmos a problemática da qualidade dos contatos entre indígenas e europeus
e da postura adotada por cada grupo nos processos de conquista e de coloni-

64
É claro que isso também levou a um número muito maior de rebeliões e revoltas nos
Andes do que no México Central, onde elas praticamente não ocorreram durante todo o
Período Colonial. Situação distinta viveu a região maia, na qual, assim como nos Andes,
houve um longo e dificultoso processo de conquista e colonização, que resultou em uma
sociedade colonial extremamente cindida e na qual os castelhanos careciam de legitimi-
dade aos olhos da política indígena. No caso dos maias, também houve inúmeras rebe-
liões durante todo o Período Colonial.
65
Isso não significa que o grau de contato seja uma variável menos importante. Vale
lembrar que as regiões mais distantes dos centros de poder castelhano apresentaram uma
continuidade de funcionamento das tradições históricas nativas muito maior, chegando,
em alguns casos, até o século XX; enquanto que nos centros de poder castelhano, a maioria
das tradições locais desapareceu antes do fim do Período Colonial.
Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207

zação castelhana – e não apenas o grau de contato, mensurado em distância,


tempo e presença de instituições castelhanas.65 Talvez, o enorme e multicolo-
rido leque de casos que essas análises irão nos revelar tornará necessária a
reavaliação da validade e do alcance explicativo de conceitos que, durante
décadas, foram aplicados para dar conta de todos os contatos entre europeus
e indígenas, como por exemplo os conceitos de mestiçagem e de aculturação.

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Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207

208
BIBLIOTECA GRAMSCIANA:
OS LIVROS DA PRISÃO DE
ANTONIO GRAMSCI

Lincoln Secco
Depto. de História - FFLCH/USP

Resumo
Este artigo apresenta as conclusões preliminares de uma pesquisa sobre
os livros da biblioteca da prisão lidos por Antonio Gramsci. Tendo a sua
disposição apenas alguns livros de autores marxistas, Gramsci foi capaz
de refletir as questões mais importantes de seu tempo. Além disso, pro-
curo demonstrar que ele analisou os livros e seus editores como meios de
ligação entre a cultura e o público.

Palavras-Chave
História do Marxismo • História do livro • História da Itália • Fascismo •
Comunismo

Abstract
This article presents preliminary conclusions from research on the books
read by Antonio Gramsci in the prison library. Although he had only a
few books by Marxist authors at his disposal, Gramsci still was able to
face the most important issues of his time. In addition, the article argues
that in his Prison Notebooks, Gramsci analyzed these books and their
publishers as a means of showing the link between culture and the public.

Keywords
History of Marxism • History of Book • History of Italia • Fascism •
Communism
Lincoln Secco / Revista de História 150 (1º - 2004), 209-228

A História do livro e da leitura constituiu um campo de estudo de muitas


possibilidades analíticas. Numa zona intermediária que une a História Social
e a História Econômica, ela tem inspirado estudos sobre livrarias, livreiros,
editoras, bibliotecas1. É também um ramo fecundo para iluminar novas facetas
da Revolução Francesa (por exemplo, os estudos de Robert Darnton), da His-
tória Cultural (Roger Chartier), da História Antiga (Luciano Cânfora e Gu-
glielmo Cavallo). Desde o clássico de Daniel Mornet (As origens intelectuais
da Revolução Francesa), foi possível ampliar muito o conhecimento das re-
lações (nem sempre tão diretas) entre as luzes e a Revolução.
No que tange à cultura operária e ao socialismo, N. Richter na França é
um exemplo dessa modalidade de abordagem. Na obra coletiva “História do
Marxismo”, organizada por Eric Hobsbawm, encontram-se artigos acerca des-
sa mesma temática. No Brasil, salvo estudos pioneiros de Astrojildo Pereira e
Edgard Carone, pouco ainda se fez sobre a História dos livros e editoras de
esquerda ou operárias2.
Também nesta área, Antonio Gramsci foi um pioneiro. Ele tem sido visto
como objeto de uma história mais ampla que a História do Livro, ou seja, a da
210 Recepção e difusão de suas idéias em várias partes do mundo. A Bibliografia
feita por John Cammett arrola milhares de títulos sobre Gramsci, muitos de-
les tratando da fortuna crítica de seus livros. Todavia, Gramsci ele mesmo re-
fletiu sobre os livros e a história deles. Ele percebeu a obra impressa como
um meio fundamental na constituição da cultura política. Até porque o socia-
lismo marxista nascia como um pensamento vinculado a uma prática política.
Filosofia da práxis é a expressão que Gramsci usava para se referir ao mar-
xismo em seus Cadernos do Cárcere. A práxis ocupa lugar central não só na
reflexão de Gramsci como no próprio pensamento marxista em geral. O termo
é essencial para se entender o papel que desempenhou na formação dos mili-
tantes sociais democratas e comunistas a literatura política inspirada em Karl

1
Evidentemente, este artigo não busca fazer referências aos avanços teóricos na área
específica da História do Livro senão indiretamente. Trata-se de abordar a maneira como
Gramsci tratou de temas semelhantes: mediação editorial, formas de pensamento, estra-
tégias de leitura etc.
2
A esse respeito veja-se: Deaecto, Marisa e Secco, Lincoln. “A Difusão dos Livros
Marxistas no Brasil”. In: Coggiola, O. (Org). América Latina. São Paulo: Xamã, 2003.
Lincoln Secco / Revista de História 150 (1º - 2004), 209-228

Marx e em seus seguidores. Como formulação teórica, Marx o retirou de August


Von Cieskowski (1838)3. Tornou-se conhecido mais entre socialistas graças às
teses sobre Feuerbach, escritas por Marx e publicadas por Engels no final do
século. Antônio Labriola usou o termo na Itália.
Como unidade entre teoria e prática, pensamento e ação, o marxismo apare-
ceu como filosofia que aspirou intervir permanentemente na realidade. Para ser
prática pensada e pensamento praticado, o marxismo precisou, todavia, se plas-
mar com o “sincretismo de base” de seus adeptos: o “senso comum”, como diria
Antonio Gramsci. Ou seja, os comunistas e socialistas em geral não eram ou não
foram apenas “marxistas”, e suas idéias conviviam com princípios nacionais, reli-
giosos, científicos (ou que se pretendiam científicos) etc. Também o “marxismo”
ao qual a maioria dos militantes tinha acesso não possuía o mesmo rigor dos me-
lhores pensadores sociais. Isso é particularmente importante na medida em que o
comunismo de Marx e Engels se propôs a ser a consciência teórica de uma práti-
ca social revolucionária, o que implicava diminuir (e tendencialmente eliminar) a
distância entre teoria e prática, entre dirigentes e dirigidos.
Foi a existência de um número crescente de gráficas e editoras e a possi-
bilidade igualmente crescente de que os socialistas, comunistas e anarquistas 211
tivessem acesso tanto à edição quanto ao consumo de livros e jornais, que fi-
zeram do marxismo uma “força material” potencial, para usar uma expressão
do próprio Marx. Os livros, as editoras, tipografias e os jornais tornam-se, a
um só tempo, infra-estrutura e superestrutura: as idéias só existem para o li-
vro e este para aquelas, interagindo e se determinando reciprocamente. Daí a
importância de se conhecer os formatos das brochuras, panfletos e livros. As
tiragens, as traduções, o número e especialmente o local das edições. É essa
materialidade sensível do livro (e, em certa medida do jornal) que confere à
teoria a possibilidade de se fazer práxis.
O livro é a base mais imediata, embora nunca a única, das formas de cons-
ciência social antes do advento dos modernos meios de informação. Ele se
insere num circuito global de reprodução das idéias e também de relações so-
ciais. O conjunto destas, como diz Marx, “forma a estrutura econômica da so-
ciedade, a base real, sobre a qual se eleva um edifício jurídico e político, e a

3
Vide: Maximilien Rubel. Karl Marx: essai de biographie intellectuelle. Paris: Marcel
Rivière, 1957.
Lincoln Secco / Revista de História 150 (1º - 2004), 209-228

qual correspondem formas determinadas da consciência social”4. A circula-


ção do livro (o comércio livreiro), faz parte dessa estrutura econômica5 de ma-
neira bastante especial, porque o livro, mais que outras mercadorias (no século
XIX), é um produto cujo valor de uso é portador imediato de elementos que
constituem a superestrutura ideológica. Isso o particulariza, embora sua par-
ticipação no conjunto da produção econômica seja pequena.

Condições Políticas e Editoriais na Itália


Os livros que Gramsci tinha no cárcere compunham um movimento edi-
torial bastante específico na Europa Latina, especialmente na França. Os li-
vros italianos eram de editoras que se tornariam tradicionais, como Mondadori,
Bonpiani. Assim como alguns livros franceses eram de editoras como Bernard
Grasset e Gaston Gallimard (o editor francês de Luigi Pirandello). Mas os li-
vros socialistas eram preferencialmente daquelas editoras que por mais ou
menos tempo dedicaram-se à literatura revolucionária, como a Marcel Rivière,
Rieder e o caso extremo da Alfred Costes, que apoiou uma das mais impor-
tantes tentativas de edição das obras completas de Marx e Engels. Esta edito-
212 ra extinguiu-se nos anos 1950.
A hegemonia cultural francesa era incontrastável até a Segunda Guerra
Mundial. Ao menos nos países a oeste do Elba, na Europa, e também nas penín-
sulas Itálica e Ibérica, bem como na América Latina. Por isso, destacar o mo-
vimento editorial francês corresponde a dar relevo à maior parte das edições
socialistas. Especialmente porque, na época de Gramsci, assiste-se ao declínio
do papel editorial do Partido Social Democrata Alemão (SPD) e à ascensão
das editoras ligadas aos partidos comunistas e, por via deles, à União Sovié-
tica e à Internacional Comunista. A Correspondance internationale e várias
outras publicações oficiais da Internacional Comunista eram em francês.
O próprio Gramsci dominava perfeitamente essa língua desde o tempo em
que fora jornalista e crítico literário nos jornais Avanti e Il Grido del Popolo,

4
K. Marx. Oeuvres. Économie. Édition établie par Maximilien Rubel. Paris: Gallimard,
1965 (Bibliothèque de la Pléiade), pp. 272-273.
5
Todavia, o próprio Gramsci considera o livro como meio material inserido no campo
das superestruturas. Trata-se de uma "base material superestrutural". Veja-se a esse respei-
to algumas notas nos Cadernos do Cárcere.
Lincoln Secco / Revista de História 150 (1º - 2004), 209-228

nos anos 1910. E quando se tornou dirigente do semanário L’Ordine Nuovo fez
traduções de textos franceses (como os do grupo Clartè, de Henri Barbusse). O
russo (que Gramsci travou contato por ter vivido na Rússia nos anos 1920) e
que se transformaria, com o tempo, numa língua relativamente importante no
movimento comunista internacional, só adquiriu a hegemonia de fato nos paí-
ses da Europa Central e do Leste. E, mesmo assim, quando essa região tornou-
se socialista, depois da Segunda Guerra. Quando Gramsci escreveu seus cader-
nos de tradução no cárcere, ele se preocupou em aprender o alemão e o inglês.
Mas isso era mais devido às suas condições e ao seu talento de intelectual nato
do que ao papel político preponderante dessas línguas. Certamente, o alemão
continuava sendo a referência teórica, mas já não era política.
A difusão do marxismo, portanto, teve dois veículos principais: a língua e
as editoras francesas. E teve um centro irradiador: Moscou. As razões para o
declínio de Berlim e do SPD alemão eram fáceis de se observar: o impacto mun-
dial da Revolução de Outubro criara um movimento igualmente mundial nela
inspirado. Nada semelhante ocorrera antes. Embora os alemães tivessem o do-
mínio da II Internacional, a estrutura desta era bem menos centralizada. Enquanto
a Internacional Comunista era um órgão dirigente de fato (e de direito, para os 213
comunistas) dos demais partidos comunistas, que eram suas seções nacionais.
Além disso, foi difícil qualquer colaboração política entre comunistas e
socialistas nos primeiros anos. Ao menos até a mudança de linha política da
Internacional Comunista nos anos 1930, quando a tática de frente única anti-
fascista foi adotada. Os autores vinculados à II Internacional ficaram definiti-
vamente em segundo plano. Turati, na Itália, McDonald, na Inglaterra, Kautski
e Bernstein, na Alemanha, eram substituídos por Lênin, Rosa Luxemburg,
Trostski e, mais tarde, Stalin. Os autores sociais democratas eram apenas cita-
dos de segunda mão, normalmente a partir das críticas a eles endereçadas pelos
marxistas revolucionários, como Lênin, Trotski, Bukharin, Zinoviev, Rosa
Luxemburg e Franz Mehring, ou eram apenas criticados por autores revolucio-
nários menores ou situados nas margens da atividade política revolucionária,
como Paul Matick, Karl Korsh ou Anton Pannekoek.
Pela “biblioteca gramsciana” do cárcere pode-se constatar esse fato: dois
títulos de Bernstein e um só de Kautski e de Turati. E se é verdade que só um
título de Bukharin e nenhum de Lênin ou Zinoviev aparecem na lista organi-
zada por Valentino Gerratana no aparato crítico da edição dos Quaderni del
Carcere do Instituto Gramsci, os motivos são bem conhecidos! Afinal, Zinoviev
e Bukharin, aquele mais do que este, tiveram uma circulação impressionante
Lincoln Secco / Revista de História 150 (1º - 2004), 209-228

nas editoras e livrarias francesas. Ao menos até o início dos anos trinta. Tam-
bém pelos poucos títulos de Stalin até o início dos anos 1930, pode-se obser-
var que o culto da personalidade ainda não estava inteiramente instalado na
União Soviética quando Gramsci foi preso, embora os boletins da oposição
de esquerda formada por Trotski, Zinoviev e Kamenev já usassem, em 1927,
a expressão “stalinismo”.
De toda maneira, a hegemonia editorial francesa era patente na própria
literatura que Gramsci usava no cárcere. O maior número de títulos que ele
citou nos Cadernos era, depois do italiano, obviamente, em francês. Isso por-
que, segundo Edgard Carone, em 1926 começa uma nova fase editorial na
França. O Bureau d’Editions herda o catálogo da Librarie de l’Humanité e
publica vários teóricos do marxismo. Ele se volta para as questões de organiza-
ção. As Editions Sociales Internationales editam Marx e Lênin, principalmente.
Mas também os romances proletários. Nas franjas dessa atividade editorial
dominante na esquerda, aparecem a Librarie du Travail, que continua a publi-
car trabalhos sobre sindicatos, a Rieder, que traduz e edita os livros de Trostski
e a Félix Alcan, que dá vazão às teses universitárias sobre marxismo6.
214 E o que se tem na Itália? As editoras, a exemplo da França, mantêm uma
organização considerável, mas com um público leitor muito menor. Desde os
anos 1870, a Associazione Tipografico-Libraria organiza muitos congressos e edita
o Giornale della Libreria. Além disso editou o Catalogo Generale della Libreria
Italiana dal 1847 al 1899. Um dicionário italiano do princípio do século XX
nomeava entre as mais importantes editoras italianas: Nicolò Zanichelli (Bologna),
Antonio Vallardi (Milano), Loesscher (Torino), G. Laterza (Bari), Sansoni
(Firenze)7. A Mondadori, também de Milano, fora fundada em 1907. Em 1929,
um de seus funcionários (Valentino Bonpiani) fundou outra editora, a Bonpiani,
também em Milano8. Outras, como a editora dos Irmãos Bocca (Torino), inte-
ressaram a Gramsci tanto pelo conteúdo quanto pela ação editorial. Além de
alguns livros de Robert Michels e de Loria (autor ao qual se fará referência
mais adiante), eles publicaram as obras de Max Nordau (depois passaram “às

6
Edgard Carone. O marxismo no Brasil. Rio de Janeiro: Dois Pontos, pp.40-42.
7
A. Brunacci. Dizionario generale di cultura. Torino: Libreria Editrice, 1915, pp.498-9.
8
Caro Bonpiani. Lettere com l´editore. Milano: Bonpiani, 1988, p.3.
Lincoln Secco / Revista de História 150 (1º - 2004), 209-228

mãos de editores do tipo Madela e Barion e foram lançadas aos vendedores


ambulantes a preços baixíssimos em grande quantidade)”9.
Tudo isso revela a amplitude geográfica do movimento editorial. Mas ainda
assim, não se podiam esconder por trás dessa variedade as debilidades
educacionais da população. 75% dos italianos eram analfabetos à época da
unificação e só 2,4% dominavam o idioma oficial (toscano). Essa situação me-
lhorou sensivelmente na era de Giolitti, mas até a Segunda Guerra era frágil a
situação social e educacional do país. No campo da produção editorial, essa
fragilidade educacional se refletia. A produção editorial era de 6.822 títulos
em 1906 e permaneceu quase a mesma (6.832) em 1909. Os editores argumen-
tavam, entretanto, que somente 10% desses títulos se mantinham com venda
constante por um ou dois anos10.
O período em que Gramsci permaneceu preso assistiu a um aumento da
média anual de publicações de livros. No intervalo 1922-26 a média anual foi
de 6.700 livros publicados. No período 1927-31, a média subiu a 9.568. De-
pois, entre 1932-36, a média foi de 12.656. Até a Guerra o volume de edições
incrementou-se mais ainda.
Os dados acima excluem os livros escolares. Se olharmos apenas para o 215
ano singular de 1933, quando o número de livros editados chegou a 13.975,
poderemos observar aquilo que foi uma tendência persistente daquele e dos
outros anos. A maioria dos livros era de ciências morais, sociais e políticas
(32,93%), depois literatura (22,91), artes (15,70%) e didáticos (11,96%).
Apesar das oscilações, apenas os livros escolares sofreram uma queda acen-
tuada até o fim da Segunda Guerra.
De fato, a Itália teve um aumento da produção editorial sem par no perío-
do 1928-32, os anos mais produtivos da atividade carcerária de Gramsci. En-
quanto a produção francesa estava estagnada em 72.044 (praticamente o mes-
mo número que nos anos anteriores 1922-27), a da Alemanha caía para 127.283
(contra 142.166 nos anos anteriores), a Itália saltava de 33.967 a 54.265, atrás
apenas da Grã-Bretanha (que subira de 65.791 a 73.400)11.

9
Antonio Gramsci. Quaderni del carcere. A cura di Valentino Gerratana. Torino: Einaudi,
1977, p. 1900. Doravante os Quaderni serão citados: Q.C.
10
Concetto Pettinato. “Libri, editori ed autori” , La Lettura, Revista Mensile del Corriere
della Sera, N. 10, outubro de 1910.
11
Marco Santoro. Storia del libro italiano. Milano: Editrice Bibliografica, 2000, pp.318-19.
Lincoln Secco / Revista de História 150 (1º - 2004), 209-228

Gramsci chegou a por em dúvida dados como estes, lembrando que seria
preciso avaliar o conteúdo e a natureza dessas publicações. A análise quantita-
tiva precisava combinar-se à qualitativa.

“Insiste-se muito sobre o fato do aumento do número de livros publi-


cados. O Instituto Italiano do Livro comunica que a média anual do
decênio 1908-1918 foi exatamente de 7.300. Os cálculos feitos para
1929 (ou mais recentes) dão a cifra de 17.718 (livros e opúsculos; exceto
aqueles do Vaticano e de São Marino, das colônias e das terras de lín-
gua italiana que não fazem parte do reino). Publicações polêmicas e,
portanto, tendenciosas”.12

Gramsci afirma que seria necessário ver se as cifras são calculadas hoje como
no passado e ver se mudou a “composição orgânica do complexo livreiro”. Ele
cita a multiplicação de casas editoras católicas que editam, muitas vezes, livros
sem nenhuma importância cultural. Por fim, seria preciso também inserir nas
estatísticas as tiragens, e isto especialmente para os jornais e revistas:

216 “Lê-se muito ou pouco? E o que se lê mais? Está se formando uma classe
média culta mais numerosa que no passado, que lê mais, enquanto as clas-
ses populares lêem muito menos; isto aparece na relação entre livros, re-
vistas e jornais. Os jornais diminuíram em número e imprimem menos
cópias; lêem-se mais revistas e livros (isto é, há mais leitores de revistas e
livros). Confronto entre a Itália e outros países nos modos de fazer a esta-
tística livreira e nas classificações por grupos do que se publica”13.

Primeiras Leituras na Prisão


Nos cerca de dez anos em que esteve no cárcere fascista (1926-1937),
Antonio Gramsci escreveu os Cadernos do Cárcere. Sob a rigorosa censura
carcerária ele não podia obter muitas informações acerca dos fatos cotidia-

12
Q.C., p. 1699-1700.
13
Q.C., p. 1699-1700.
Lincoln Secco / Revista de História 150 (1º - 2004), 209-228

nos, o que corrigia parcialmente com um número elevado de assinaturas de


revistas que se lhe permitiam ler.
Desde suas primeiras missivas, ele se preocupou muito com o fornecimento
de livros e periódicos. Na prisão de Ustica (9/12/26)14, quando lia O homem
que queria ser rei, de Kipling, pediu com urgência os dicionários e gramáti-
cas para seus estudos de alemão, o que denota seu interesse em aprofundar-se
na língua em que ainda estava boa parte dos escritos de Marx e Engels. Tam-
bém os livros sobre o Risorgimento e a unidade nacional, tema que ele já vi-
nha tratando pouco antes de ser preso, quando escrevia “Alguns temas da ques-
tão meridional”. Em outras cartas ele fez observações sutis acerca dos
diferentes grupos regionais e culturais do sul da Itália.
A primeira fonte para Gramsci foi a Biblioteca da prisão. Essa circunstân-
cia limitou e, ao mesmo tempo, estimulou a reflexão teórica. Eis um caso em
que o conteúdo, bem como a forma (leggere senza scrivere) determinou uma
nova abordagem da literatura. Numa carta de 22 de abril de 1929, Gramsci
informa a Tatiana que era preciso abandonar o modo de pensar escolástico e
não por na cabeça a idéia de se fazer estudos regulares e aprofundados, por-
que isso seria impossível até para aqueles que estavam em melhores condi- 217
ções do que ele. Exceto no caso do estudo das línguas modernas, para o qual
bastaria uma gramática, que se poderia encontrar em qualquer banca de li-
vros usados por preço barato (na expressão do próprio Gramsci), embora não
se pudesse aprender a pronúncia.
Além disso, muitos encarcerados subestimavam a biblioteca carcerária.
Certo, diz Gramsci, ela é desconexa, os livros são recolhidos ao acaso e abun-
dam livros de devoção e romances de baixa condição. Ele leu os romances
populares aos montes: Sue, Montépin, Ponson etc. Em geral, lia-os em fran-
cês. Mas os romances populares em italiano eram editados pelo jornal Corriere.
Publicava ao menos 15 ao ano em tiragens altíssimas. Seguia-o a Casa Sozogno.
Mas essa restrição inicial aos livros da biblioteca da prisão não impediu que
Gramsci, mesmo sem poder fazer apontamentos, chegasse a perguntas que se

14
Todas as cartas citadas a seguir provêm das seguintes fontes: Q.C., V. IV. Vide tam-
bém: Antonio Gramsci. Lettere dal Carcere. Torino: Einaudi, 1978, 303 páginas. Anto-
nio Gramsci. Novas cartas de Gramsci e algumas de Piero Sraffa. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1987, 116 páginas.
Lincoln Secco / Revista de História 150 (1º - 2004), 209-228

tornaram verdadeiros problemas de pesquisa: “Por que esta literatura é sempre


a mais lida e a mais editada? A quais necessidades satisfaz? A quais aspirações
corresponde?”. Ao comentar a atividade editorial da casa Sozogno ele disse:

“Um confronto no tempo de atividade editorial da Casa Sozogno da-


ria um quadro bastante aproximativo das variações do gosto popular;
a pesquisa é difícil, porque a Sozogno não imprime o ano de publica-
ção e não numera freqüentemente as reimpressões, mas um exame crí-
tico dos catálogos daria algum resultado”15.

Como se nota, “O cuidado e a atenção com os quais Gramsci registra rigo-


rosamente cada detalhe bibliográfico são surpreendentes”16.
Outro exemplo, indicado por Gramsci, é o do historiador Groethuysen que,
para estudar a burguesia nos dois séculos antes de 1789, leu toda uma literatura
de devoção, prédicas, catecismos de diversas dioceses, e fez um “magnífico
volume” (na expressão de Gramsci).
O principal intermediário de Gramsci nas compras de livros era Piero
Sraffa, professor de economia em Cambridge e amigo de Maurice Dobb. Direta
218
ou indiretamente eles sempre mantiveram discussões dessa natureza. Como
Gramsci tinha um limite definido para escrever cartas, a correspondência era
na maioria das vezes mediada por sua cunhadaTatiana Schucht. Piero Sraffa
abrira uma conta corrente ilimitada para Gramsci na livraria milanesa Sperling
e Kupfer. Em 21/12/26 Gramsci escreveu:

“Carissimo amigo, recebi a tua carta de 13; não recebi ainda os livros
que me anunciou. Eu te agradeço muito cordialmente pela oferta que
me fez; já escrevi à Livraria Sperling e fiz um pedido bastante vistoso,
seguro de não ser indiscreto, porque conheço toda a tua gentileza”.

Em seguida (2/1/27) ele informou a Piero Sraffa ter recebido os livros:

15
Q.C., p. 2125.
16
Joseph Buttigieg. “O método de Gramsci”, Educação em foco, Universidade Federal
de Juiz de Fora, V. 5, N. 2, fevereiro de 2001, p.20.
Lincoln Secco / Revista de História 150 (1º - 2004), 209-228

“Assim, vou ler abundantemente por algum tempo. Eu te agradeço a genti-


leza, mas não queria abusar. Asseguro-te, todavia, que francamente me re-
portarei a ti algumas vezes em que tiver necessidade de qualquer coisa”.

Numa carta de 4 de abril de 1927 ele informa que possui alguns livros
dele mesmo e que toda semana recebe 8 livros da Biblioteca do Cárcere:

“Para você ter uma idéia, faço-lhe a lista dessa semana que, porém, é
excepcional pela relativa bondade dos livros conseguidos: 1. Pietro
Colletta, Storia del Reame di Napoli (ótimo); 2. V. Alfieri, Autobiogra-
fia; 3. Molière, Commedie scelte, traduzidas pelo Senhor Moretti (tra-
dução ridícula); 4. Carducci, dois volumes das Obras completas (medí-
ocres, entre os piores de Carducci); 5. Artur Lévy, Napoleone intimo
(curioso, apologia de Napoleão como “homem moral”); 6. Gina
Lombroso, Nell’America meridionale (medíocre); 7. Harnack, L’Essenza
del cristianesimo; Virgilio Brocchi, Il destino in pugno, romance (torna
possessos até os cães); Salvador Gotta, La donna mia (... tedioso)”.

Gramsci informa uma lista insuspeita para seus censores. Revela-se ain- 219
da apenas um leitor. E sua leitura tem tanto o interesse de futuras pesquisas
quanto de prazer estético ou intelectual. É que pouco tempo antes (março de
1927) ele havia feito uma requisição para escrever na sua cela. Foi indeferi-
da. Em 20 de fevereiro de 1928, ele escreveu à sua cunhada: “Posso ler, mas
não posso estudar, porque não me foi concedido o direito de ter papel e tinta
a minha disposição”. Uma nova requisição encaminhada pela sua família no
ano seguinte obteve a permissão. Em 24 de setembro do mesmo ano, ele vol-
tou a se lamentar sobre a questão da leitura (agora do suprimento de revistas):
“Você também não me escreveu nada a propósito das publicações periódicas
que eu deveria receber da Livraria Sperling”. Tratava-se de sua mudança de
endereço de Roma a Turi que precisava ser informada à livraria.
Diversas são as cartas onde ele mostra sua preocupação insistente com os
livros. Ora está a falar a Tatiana (20/08/28) de um “pacote de livros”. Em se-
guida (3/11/28) reclama o envio de seus livros que estavam nas mãos de seu
advogado, ou se refere aos livros da Slavia, editora que ele acompanhava aten-
tamente. A Slavia, dirigida por A. Polledoro, difundiu, entre 1926 e 1938, a
literatura russa e eslava na Itália.
Lincoln Secco / Revista de História 150 (1º - 2004), 209-228

Fontes Socialistas
Pelos autores mais citados nos Quaderni também se poderia fazer um le-
vantamento da circulação editorial de alguns autores muito lidos na Itália. Por
exemplo, Antonio Bresciani (1798-1862), um jesuíta que cultivou a novela his-
tórica, tendo sido também o principal redator de Civiltà cattolica, publicação
que continuou a existir e que Gramsci lia assiduamente. Não foi à toa que
Gramsci o tenha citado muito. A obra de Bresciani teve uma repercussão euro-
péia fora do comum. Seu livro Hebreu de Verona alcançou 80 edições em
poucos anos e foi traduzido ao francês, russo, alemão, inglês e castelhano.
Outro autor muito citado foi A. Loria. Sua obra principal, Annalisi della pro-
prietà capitalistica (1888) recebeu da Academia dei Lincei (Roma) o prêmio
do rei. Ambos os autores eram usados por Gramsci para significar fenômenos
essencialmente negativos. Já Benedetto Croce, outro entre os mais citados, era
uma linguagem obrigatória. Os primeiros decênios de vida intelectual italia-
na no novecento foram assinalados pela “hegemonia [e Bobbio aqui faz alu-
são ao conceito gramsciano] de Benedetto Croce. O seu pensamento foi, con-
juntamente, centro de irradiação e de convergência dos movimentos
220 intelectuais do tempo”17. Todavia, não é verdade que Gramsci tenha se afastado
da leitura dos clássicos do marxismo e do socialismo, mesmo sob as duras con-
dições carcerárias.
O número de livros que Gramsci podia ter na cela era limitado. No quarto
volume da edição crítica dos Cadernos do Cárcere, preparada por Valentino
Gerratana, podemos encontrar um vasto material referente aos livros que
Gramsci possuía. Já no primeiro caderno carcerário encontramos uma lista
de “Libri consegnati da Turi a Carlo l’11 novembre 1929". Eram 63 títulos,
entre eles os de pensadores italianos como Benedetto Croce e Luigi Einaudi.
Mas o grosso dessa primeira lista era composto por literatura: de Pirandello a
Tolstoi, de Kipling a Dostoyevski, Tchekov e Maupassant. Mas também a cha-
mada literatura social (ou operária ou engajada) como o próprio Tolstoi, mas
também Panait Istrati, Boris Pilniaki e os best sellers da época como E. Re-
marque e Emil Ludwig.

17
Norberto Bobbio. Profilo ideologico del novecento. Milano: Garzanti, 1990, p. 90.
Lincoln Secco / Revista de História 150 (1º - 2004), 209-228

É preciso lembrar que a primeira lista expressa a cautela do prisioneiro,


acostumando-se a novas regras de conduta que circunscreviam suas possibili-
dades de leitura. Mais adiante, no mesmo primeiro caderno, encontravam-se
4 livros, dentre eles o do general Krasnof, dall’aquila imperiale alla bandiera
rossa (Firenze, Salani), cuja fonte e terminologia seriam usadas amiúde por
Gramsci. Na lista seguinte, “Libri fatti consegnare a Tatiana a Turi il 20
febbraio 1930”, havia 8 títulos com destaque para Croce e Prezzolini. Na lis-
ta seguinte, datada de 13 de março de 1930, 16 títulos, mas agora incluindo
periódicos como o Almanacco letterario e autores como Marcel Proust e Plu-
tarco. A lista de 20 de maio seguia o mesmo padrão. Só numa anotação a par-
te viam-se dois títulos socialistas de Leon Trotski: La révolution défigurée e
Vers le capitalisme ou vers le socialisme?. Gramsci certamente não podia ter
à mão os livros dos chefes do Estado Soviético, como Lênin e Stalin. Mas
Trotski já havia sido expulso da União Soviética e do Partido Comunista. Ele
foi mesmo publicado em italiano pela Editora Mondadori em 1930 (reedição
nos anos 50, com 13 ilustrações)18.
No Caderno 2 há um esboço de um requerimento, datado de setembro de
1930 (“Istanza a S.E. il Capo del Governo spedita nel settembre 1930”). Esta 221
carta é paradigmática porque revela a necessidade do prisioneiro (que tinha
uma relação quase física com os livros), saber quais as suas condições de lei-
tura. O que ele podia ou não ler. Ele conta que em junho de 1928, no cárcere
judiciário de Roma, confiscaram-lhe um opúsculo de versos de Mino Maccari,
notório escritor fascista. Gramsci protestou ao Tribunal Especial e conseguiu
saber que somente os livros de agitação política lhe eram proibidos:

“Na Casa Penal de Turi de Bari, onde estou preso atualmente, seques-
traram-me novamente o libreto de Maccari, junto com estes outros:
Giuseppe Prezzolini, Mi Pare... (uma coletânea de artigos de varieda-
de editada em 1925 por Arturo Marpicati), Oscar Wilde, Il Fantasma
dei Canterville e outras duas novelas humorísticas, H. Man, Le Sujet,
Ed. Kra (romance da Alemanha Guilhermina), Petronio Arbitro,
Satyricon, J. London, Le memorie di un bevitore, Krasnoff, Dall’aquila
imperiale alla bandiera rossa (é um romance do general dos cossacos

18
Arnoldo Mondadori Editore. Catalogo Generale giugno 1956, Milano: Mondadori, p.108
Lincoln Secco / Revista de História 150 (1º - 2004), 209-228

Krasnoff, emigrado tzarista em Berlim, editado por Salani de Floren-


ça); Maurice Muret, Le crépuscule des nations blanches, 1925. Trata-
se de livros anódinos e insignificantes, é verdade, mas trata-se para
mim, que devo ainda descontar 15 anos de reclusão, de uma importan-
te questão de princípio: saber com exatidão quais livros posso ler”19.

Gramsci aproveitava, no fim dessa carta, para pedir a concessão da leitu-


ra de Fülop Miller, Il volto del bolscevismo e a Autobiografia de Leon Trotski.
Nessa missiva há toda uma estratégia sutil de diálogo entre um prisioneiro e
combatente e seu algoz. Que não é necessariamente uma pessoa, mas um siste-
ma. E Gramsci cobrava das pessoas, representantes do sistema, uma coerên-
cia com as regras do próprio sistema. Há também uma ambigüidade proposi-
tal entre crítica e aceitação das regras, bem como uma estratégia de exploração
das brechas, das válvulas de escape. Como se sabe, Antonio Gramsci nunca
esboçou um gesto de luta ilegal enquanto esteve no cárcere. Condenou toda a
agitação ou pressão pública que se pudesse fazer a seu favor. Uma vez preso,
preferia lutar num horizonte reconhecível e dentro de perspectivas bastante
realistas que lhe preservassem ao menos os direitos que o próprio regime fascis-
222
ta declarava existirem. Comportamento que, se não destoava das diretivas que
o partido impunha aos seus militantes presos, também retirava qualquer velei-
dade de heroísmo vulgar e artificial apregoado à época20.
Por outro lado, ele jamais se rendeu ou declarou ter abandonado suas
convicções políticas. Na carta, ele aproveita para simular a pouca importân-
cia dos livros pedidos, acrescenta que são politicamente neutros ou mesmo a
favor do fascismo. Ora, se entre os livros pedidos há um ou mais fascistas no-
tórios (como ele diz) e se os mesmos são insignificantes, é uma crítica bas-
tante sutil e irônica ao próprio fascismo que se esboça através do diálogo so-
bre os livros. Por fim, ele volta a usar as “permissões” do sistema: se o governo
italiano permitiu a publicação de dois livros sobre o bolchevismo, incluindo a
autobiografia de Trostski, por que ele não os poderia ler?

19
Q.C., p. 2375.
20
Vide: I communisti di fronte alla polizia e di fronte ai giudici (lettera di un vecchio
rivoluzionario). Paris: Edizioni del PCI, junho de 1928, 15 p.
21
Norberto Bobbio. O conceito de sociedade civil. Tradução: Carlos Nelson Coutinho.
Rio de Janeiro: Graal, 1982, p.32.
Lincoln Secco / Revista de História 150 (1º - 2004), 209-228

Numa carta seguinte, a mesma “estratégia” é utilizada com mais ousadia.


Gramsci gentilmente lembra ao seu interlocutor que um pedido similar ao que
ora está a fazer foi recebido favoravelmente um ano antes. Uma vez mais ele
explora as contradições dos dispositivos regulamentares com o próprio siste-
ma, porque uma nova regra fixara uma tabela de publicações periódicas que
os presos poderiam ler, mas excluía (ou ignorava) um conjunto de outras revis-
tas que Gramsci já assinava há 4 anos e meio por autorização do Tribunal Es-
pecial de Defesa do Estado. No mesmo requerimento, Gramsci solicita livros
mais diretamente vinculados à questão socialista: Knickebocker, O Plano quin-
quenal soviético. Também Le procès du parti industriel de Moscou; Trotski,
La révolution défigurée e Vers le socialisme ou vers le capitalisme?. Para evitar
surpresa aos superiores, ele pede as obras completas de Marx e Engels com o
reparo de que já tinha autorização do Tribunal Especial para lê-las, pois já pos-
suía em sua cela vários volumes. Por fim, para justificar o livro de Marx, Lettres
à Kugelmann, com prefácio de N. Lenin, ele faz saberem que se trata de um
prefácio de 1907.
O interesse de Gramsci pelo desenvolvimento da União Soviética nunca
deixou de ser grande e persistente. Aparentemente, ela continuou sendo um 223
paradigma bastante concreto para qualquer socialista marxista baseado na rea-
lidade. Seus longos comentários a respeito da doutrina de Nicolai Bukharin
demonstram o quanto ele usou a linguagem da filosofia e das intrincadas
discussões sobre materialismo histórico e ciência para refletir sobre a nature-
za política do regime soviético.
O mesmo se pode dizer do interesse pelo marxismo. Seus cadernos do cárce-
re mostram que ele fez exercícios de tradução de vários livros de Marx e Engels,
como: Manifesto Comunista, Trabalho Assalariado e Capital, Questão Judaica,
Sagrada Família e Contribuição Para a Crítica da Economia Política. Ora, se é
verdade que Antonio Gramsci foi um marxista sui generis, muito ocupado com
aquilo que ele entendia ser o princípio leninista (“análise concreta de uma situa-
ção concreta”), ele não descurou do conhecimento teórico dos clássicos do marxis-
mo. Os títulos citados de Marx e Engels, somados, são 32 nos Cadernos.
A idéia de que Gramsci teria abandonado o axioma básico do chamado
materialismo histórico, a saber, a primazia em última instância da infra-estrutu-
ra ou base em relação às superestruturas, asseverando uma determinação da
sociedade civil (em termos gramscianos) sobre a totalidade da vida social, foi
propugnada por Norberto Bobbio21. Outros preferiram um Gramsci teórico ape-
nas da política. Mas tanto suas inúmeras e dispersas notas sobre economia,
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quanto os livros que ele compulsou sobre o assunto, confirmam o contrário.


Ele não deixou passar ao largo suas inclinações muito ortodoxas neste assun-
to. Ele citou pelo menos seis diferentes versões e/ou resumos de O Capital de
Karl Marx, além do original alemão.
Ora, Il Capitale foi editado na Itália em versões resumidas ou mesmo o
primeiro volume em tradução de segunda mão desde 1879, quando Carlo
Cafiero publicou seu resumo da obra de Marx. As duas editoras que publica-
ram Marx nos primeiros decênios do século XX foram Nerbini, de Florença e
Società Editrice Avanti, de Milão. Nerbini publicou a versão de Ettore
Fabietti22. As Opere de Marx, Engels e Lassale dirigidas por Ettore Ciccotti,
foram publicadas primeiro por Remo Sandron e, depois, por Luigi Modigliani
em Milão. Gramsci fez o seguinte comentário a respeito da atividade editori-
al de Remo Sandron:

“Nas edições Remo Sandron muitos livros para esta rubrica. Duas
direções. Sandron teve um momento de caráter ‘nacional’: publicou
muitos livros que se referem à cultura nacional e internacional (edi-
ções originais de obras de Sorel); e é editor ‘siciliano’, isto é, publi-
224
cou livros sobre questões sicilianas, especialmente ligadas aos even-
tos de 1893-94. Caráter positivista de uma parte e de outra sindicalista
das publicações de Sandron. Muitas edições esgotadas, para pesquisar
só em antiquários”23.

Vê-se que o conhecimento até mesmo da circulação e das vicissitudes edi-


toriais da obra de Marx era posto em relevo por Gramsci. Ele se referiu mais de
200 vezes a Marx nos seus cadernos e mais ou menos a metade disso a Engels.
Referiu-se mais ainda a Croce, é certo, e bastante a Maquiavel e Hegel. Ainda
assim, Gramsci tinha que eludir e iludir a censura carcerária não a respeito de
nomes como Bresciani ou Missiroli, mas em relação a Marx e Engels, muitas
vezes chamados de os corifeus ou fundadores da filosofia da Práxis, a Stalin

22
Ettore Fabietti é citado nos Quaderni (Q 2, , 88) por um artigo sobre bibliotecas popu-
lares de Milão, onde mostra que os operários eram os melhores usuários: cuidavam dos
livros e não os perdiam, diferentemente de outras categorias de leitores (empregados,
estudantes, donas de casa).
23
Q.C., p. 980.
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(Bessarione), a Trotski (Bronstein) e, especialmente, a Lenin, citado como Ilitch


ou o discípulo dos fundadores da filosofia da práxis (o marxismo).

Fortuna Crítica
A discussão de Gramsci sobre os livros e editoras encontra-se apenas nos
Cadernos do Cárcere. Isso traz um problema para o historiador: as adições des-
ses textos implicam uma leitura e um direcionamento ideológico. Gramsci ele
mesmo nunca quis editar um livro e é bastante plausível supor que jamais pu-
blicaria suas notas carcerárias no estado em que as deixou. Quando recebeu uma
proposta, nos anos 20, para reunir seus artigos em livro, ele recusou sob o argu-
mento de que seus textos eram apenas circunstanciais, posto que ele era sempre
um intelectual em diálogo constante com os acontecimentos e os personagens
de ocasião. Estampava seus artigos apenas em jornais.
No Cárcere sua escritura sofreu uma alteração fundamental. Ele escrevia
Für Ewig (para a eternidade) como dizia. Escreveu reflexões mais demora-
das em 33 cadernos. Trabalhava neles muitas vezes ao mesmo tempo, o que
em alguns casos impede que saibamos a ordem cronológica dos textos. Rees-
crevia passagens inteiras às vezes mudando uma ou outra palavra. Como edi-
225
tar uma obra assim? Este problema foi enfrentado por Palmiro Togliatti.
A História da edição dos Cadernos começou já em vida de Gramsci. No
dia 7 de dezembro de 1933, após pedidos insistentes e uma campanha interna-
cional a respeito de suas precárias condições de saúde, Antonio Gramsci foi
finalmente transferido da prisão de Turi para uma clínica em Formia. A preocu-
pação do detento era com seus livros. Especialmente com seus cadernos ma-
nuscritos. Temia que a direção do cárcere lhe confiscasse tudo o que havia
escrito ou lido. Preparou uma operação: enquanto ele mesmo distraía seus car-
cereiros, um jovem amigo de cela, Gustavo Trombetti, enfiava os cadernos
embaixo das roupas, no fundo da mala.
Quando Antonio morreu em 27 de abril de 1937, ele deixou na clínica onde
passou os últimos dias lancinantes da vida, os seus livros. Livros lidos e escri-
tos. Livros do presente e do passado. E aqueles do futuro, de sua lavra, os
cadernos que viriam a ser publicados. Piero Sraffa, seu amigo e correspon-
dente, interpelou o centro exterior do Partido Comunista da Itália sobre o que
fazer com os manuscritos gramscianos. Palmiro Togliatti (cujo pseudônimo
era Ercoli) escreveu-lhe falando com veemência da herança política e literá-
ria de Antonio. Decidiu-se enviá-los a Giulia, esposa de Antonio, em Moscou
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(o que significava, em verdade, fazê-los chegar a Ercoli). Escrevendo a Tatiana,


cunhada de Antonio, Piero a aconselhou a cuidar muito da segurança do trans-
porte dos manuscritos. Seria preciso um transporte “seguro”. Quando Piero
chegou à Itália, em junho, ele cuidou para que os cadernos do cárcere ficas-
sem sob custódia no cofre de um banco (Banca commerciale). O presidente
do banco era um antifascista amigo de Piero.
Os cadernos permaneceram no cofre por um ano24. Neste período Tatiana
fez várias instâncias a fim de tomar posse também dos livros que Antonio pos-
suía na prisão. Depois disso, providenciou um baú no qual os cadernos chega-
ram a Moscou. Lá, Vincenzo Bianco, representante italiano na Internacional
Comunista, retirou pessoalmente os escritos e os entregou a Ercoli. Foi assim
que os cadernos de Antonio Gramsci foram salvos.
Palmiro Togliatti publicou os Cadernos do Cárcere entre 1948 e 1951. Ele
reagrupou as notas de Gramsci por grandes temas. Assim, favoreceu uma leitu-
ra “fácil”, militante, mas também dirigida. Foram cinco livros: Maquiavel, o
Estado e a Política Moderna; Literatura e Vida Nacional; Passado e Presente;
O Materialismo Histórico e a Filosofia de Benedetto Croce; O Risorgimento.
226 Além disso, foram publicadas também as Cartas do Cárcere. Argumentou-se
que, embora essa seja ainda a mais importante edição dos textos gramscianos,
ela está ligada à chamada via nacional para o socialismo (estratégia do Partido
Comunista Italiano no pós-guerra). Agrupar as críticas de Gramsci a Croce e
não as críticas a Bukharin, revela uma escolha. No segundo caso, seria mostrar
um Gramsci que questionava o materialismo soviético, por exemplo. Além dis-
so, os Cadernos não foram escritos com unidades temáticas. Foi feito de manei-
ra fragmentada mas sob o prisma fundamental da história política.
Em 1975, Valentino Gerratana publicou os textos na sua “ordem espacial”,
ou seja, como eles aparecem nos cadernos originais. Obra mais “difícil” de ler
e que interessou bem mais aos especialistas e abriu uma longa discussão teóri-
ca, conceitual e, nos anos 80-90, também filológica. Gianni Francioni pretendeu
restabelecer a “ordem cronológica” dos textos25. Ainda hoje se discute a perti-

24
Paolo Spriano. Gramsci in carcere e il partito. Roma: L’Unità, 1988, p.104-5.
25
Vide: Guido Liguori. “El debate sobre Gramsci en el cambio de siglo”. In: Dora
Kanoussi (Org). en America. II Conferência Internacional de Estudios Gramscianos.
México, D.F.: Plaza y Valdes, 2000, p. 307.
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nência de uma edição completa e rigorosa (do ponto de vista filológico) dos textos
de Gramsci. O exemplo de suas análises sobre a circulação dos livros pode ser-
vir para iluminar a edição crítica de seus próprios textos. É de se duvidar que se
consiga um dia editar os Cadernos como Gramsci os pensou enquanto escre-
via. Mesmo com os avanços da crítica literária neste tópico. Isso permanece sen-
do um problema. Mas também revela a riqueza desse pensador e homem de ação
tão notável que resistiu a todas as tempestades que varreram muitos autores su-
postamente identificados com o marxismo.

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Fontes Utilizadas Times, Futura Md Cn Bt e Helvética Cn Lt
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Impressão da capa Quadricromia
Nº de páginas 230
Tiragem 500 exemplares

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