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Revista de História. #150 PDF
Revista de História. #150 PDF
HISTÓRIA
Maria Cristina Cortez Wissenbach / Revista de História 150 (1º - 2004), xxx-xxx
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
Chefe: Prof. Dr. Osvaldo Luiz Angel Coggiola
Suplente: Prof. Dr. Carlos Alberto Ribeiro de Moura Zeron
REVISTA DE HISTÓRIA
Número 150 (Terceira Série) – 1º semestre de 2004 – ISSN 0034-8309
Conselho Consultivo
Braz A. Aquino Brancato (PUC-RS) Jean-Louis Flandrin (Sorbonne)
Caio Boschi (PUC-MG) José Carlos Sebe Bom Meihy (DH-USP)
Ciro Flamarion Cardoso (UFF) Laura Mello e Souza (DH-USP)
Emanuel Araujo (UnB) Leila Mezan Algranti (UNICAMP)
2 Euclides Marchi (UFPA) Luis Henrique Dias Tavares (UFBA)
Frederico Alexandre de Moraes Hecker (UNESP/Assis) Marco Antonio Villa (UFSCar)
Gilberto Luis Alves (UFMTS) Serge Gruzinsky (EHESS)
Holien Bezerra (UFGO) Sergio Miceli (USP)
Janice Theodoro (DH-USP) Teófilo Ruiz (Brooklyn College)
Jean-Claude Schmitt (EHESS) Vavy Pacheco Borges (UNICAMP)
Órgão Oficial do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – USP
Fundada em 1950 pelo Professor Eurípedes Simões de Paula, seu Diretor até seu falecimento em 1977
REVISTA DE 3
HISTÓRIA
Maria Cristina Cortez Wissenbach / Revista de História 150 (1º - 2004), xxx-xxx
Semestral
ISSN 0034-8309
CDD 900
Maria Cristina Cortez Wissenbach / Revista de História 150 (1º - 2004), xxx-xxx
EDITORIAL
07
DOSSIÊ
São Paulo - 450 anos
Maria Cristina Cortez Wissenbach 11 A Mercantilização da Magia na
Urbanização de São Paulo, 1910-1940
ARTIGOS
Cielo G. Festino 99 A História nas Estórias das Mulheres
do Raj
6
Maria Cristina Cortez Wissenbach / Revista de História 150 (1º - 2004), xxx-xxx
EDITORIAL
tão rico quanto carente de abordagens em nosso meio acadêmico. Por último,
na tradição da história das idéias, Lincoln Secco (Biblioteca Gramsciana: os
Livros da Prisão de Antonio Gramsci) aborda a construção do pensamento
gramsciano por meio da análise de sua biblioteca no cárcere.
8
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DOSSIÊ
São Paulo
450 anos
9
A MERCANTILIZAÇÃO DA MAGIA NA
URBANIZAÇÃO DE SÃO PAULO, 1910-1940*
Resumo
Com base em processo movidos contra réus incursos nos artigos que
criminalizavam o curandeirismo, o espiritismo, a feitiçaria e outras prá-
ticas similares, o texto busca o significado histórico de crenças religio-
sas na perspectiva de um universo citadino em transformação. Contem-
pla questões como a propagação do espiritismo, diferenças entre rituais
do “baixo” e do “alto” espiritualismo e o tratamento dado ao tema pela
imprensa e pelas autoridades que lideravam as campanhas antimagia.
Palavras-Chave
Religiosidade popular • Espiritismo • Urbanização • Ritos e Crenças Afro-
brasileiros • São Paulo
Abstract
Based on legal proceedings against those who practised withcraft and
sorcery, spiritism, healings rituals and other practices considered as cri-
me by the Legal Code of 1890, this article seeks the historical meannings
of religious faiths in a changing urban context. The study focuses on
questions such as the propagation of spiritism, the differences between
“low” and “high” spiritual rituals, and the way in which these thems were
treated by the press and by the leadership of the campaigns against magic.
Keywords
Popular religions • Spiritism • Urbanization • Afro-brazilian rituals and
cults • São Paulo
*
Este artigo é parte de uma pesquisa mais ampla, financiada pelo Capes/CNPq, que re-
sultou na tese de doutorado Ritos de magia e sobrevivência. Sociabilidades e práticas
mágico-religiosas no Brasil, 1890-1940. Departamento de História, USP, sob orienta-
ção da Profa. Dra. Maria Odila Leite da Silva Dias, 1998.
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1
Neste sentido, a documentação básica sobre o tema são processos criminais de réus
indiciados nos artigos do Código Penal de 1890 que criminalizavam o exercício ilegal
da medicina (artigo 156), o uso do espiritismo, da magia e de seus sortilégios para iludir
os incautos (artigo 157) e a prescrição de fórmulas medicamentosas (artigo 158). No pre-
sente artigo a documentação citada foi localizada no Arquivo do Poder Judiciário do Esta-
do de São Paulo (no extinto Arquivo da Vila Leopoldina).
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Sobre a extensão da influência das teorias de Frazer entre etnólogos, sociólogos, historia-
dores, juristas e teólogos e a polêmica que se estabelecia, já nos finais do século passa-
do, referente às relações entre ciência e magia, magia e religião, ver Gurvitch, G. (1950),
esp. cap. VII, "La magie, la religion et le droit".
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3
Correspondências similares entre os estados de transe, o sonambulismo e a histeria são
encontradas no estudo pioneiro de Nina Rodrigues, publicado em 1896 na Revista Bra-
sileira e, em 1900, na edição francesa. Nina Rodrigues, O animismo fetichista dos ne-
gros bahianos, 1935: 109.
4
Na raiz das formulações de Arthur Ramos – sobretudo em Os horizontes mythicos do
negro na Bahia, 1932 –, encontrava-se o trabalho de Freud, Totem e tabu, especialmente
parte III, Animismo, magia e a onipotência de pensamentos, de 1913.
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5
Conforme o Relatório do Chefe de Polícia do Estado de São Paulo, de 1928, localizado
no DAESP, tais perseguições foram conduzidas, inicialmente pelo Serviço de Inspeção
dos Costumes, anexo à 2ª Delegacia Auxiliar (1914), depois, pela Delegacia de Costu-
mes e Fiscalização de Jogos do Gabinete de Investigações e Capturas (1924), e final-
mente pelo Serviço de Repressão ao Baixo Espiritismo (1928), organismos que, suces-
sivamente, especializaram-se na repressão aos crimes em questão.
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dos baralhos, uma leitura das mãos, com um chá, uma mezinha, um passe
magnético, um transe hipnótico. E logicamente, pessoas especializadas neste
tipo de atendimento.
Enquanto alguns curandeiros transformavam-se em ambulantes, como
Amaro Issa, imigrante sírio que podia ser visto, em 1933, “andando pelas ruas
com uma valise, contendo medicamentos e objetos da magia” (Justiça e Amaro
de Almeida Issa, 1933), outros preferiam oferecer seus serviços por meio de
folhetos impressos ou em anúncios publicados nos jornais da cidade. Utilizan-
do-se de um codinome com acento afrancesado, Pedro dos Santos Boemer
prometia, em 1918, receitas magnéticas para aqueles que o procurassem:
Para serdes feliz o que deveis fazer e tentar? Ide à rua Canindé, 123,
ou escrevei a Pedro Casnot, com selo para resposta (Justiça e Pedro
dos Santos Boemer, 1918).
proclamava o ocultista, não sem antes advertir aos interessados de que se tratava
de uma prorrogação que fazia do prazo, tendo em vista o “justo pedido da classe
operária e funcionários que somente recebem seus salários e ordenados no
princípio do mês” (Folheto anexo à Justiça e Bento de Paula Souza e José Furtado,
1910). Ao lado destes, curandeiros negros, como Benedito Antônio da Silva,
vulgo Benedito Garfudo, limitavam-se a proclamos mais simples, ofertando:
“Curas gratuitas pelos meios simpáticos, homeopáticos e cópias alopáticas”
(Justiça e Benedicto Antonio da Silva, 1927).
As possibilidades de sobrevivência e em alguns casos de ascensão social
dos que transformavam o comércio da ilusão em ganha-pão estavam direta-
mente relacionadas a uma sociedade afeita a tais apelos, ávida em solucionar
por meio de recursos mágicos, fossem quais fossem, questões amorosas, insu-
cessos econômicos, problemas familiares e principalmente a cura de doenças.
Assim, confirmando o grande temor dos cientistas que lideravam as campanhas
anti-mágicas, as práticas mágicas, muitas vezes provenientes das classes ínfi-
mas da sociedade, consideradas pelos observadores como manifestações de
processos de involução das camadas populares, demonstravam, no entanto,
possuir uma capacidade extrema em se expandir, em contaminar e fascinar a 21
sociedade como um todo6.
Descrevendo, em 1912, a ante-sala de um famoso ocultista de São Paulo,
o articulista do Comércio de São Paulo, pôde observar:
6
Segundo as teorias de Gustave Le Bon, expressa em sua obra Psychologia das multi-
dões, um dos autores mais citados nos inquéritos da época, a degeneração era uma ameaça
social pois continha os germes da contaminação, podendo fazer com que a multidão,
mediante sugestão quase que hipnótica, regredisse a um estágio atávico e primitivo. As-
pecto indicado pela leitura do trabalho de Dain Borges, ‘Puffy, Ugly, Slothful and Inert’:
Degeneration in Brazilian Social Thought, 1880-1940, 1993: 237.
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Não eram somente os bondes que ali vazavam a população rude e in-
culta; também os automóveis e as carruagens particulares tomavam com
freqüência o caminho da Cabala, em procura de um pouco desta Ilu-
são, sem a qual a vida não seria possível. (Idem).
afirmava Maria Isabel Siqueira de Figueiredo, que colocou sob seus cuidados
uma filha que padecia de “ataques desde os sete anos”. Diante das pressões das
autoridades policiais, afirmava ainda a testemunha, de nacionalidade portuguesa,
que “não pode classificar as práticas a que já se referiu, mesmo porque a depoente
nunca viu iguais”; estranheza em que depositava suas esperanças, depois de haver
passado por quase todos os curandeiros de São Paulo e de Santos.
No encontro de credos, de correntes e de simbologias revelado pela docu-
mentação, o espiritismo aparece como elemento catalisador. A influência consi-
derável que exercia é repetidamente assinalada pelos estudos feitos na época.
7
De acordo com Yvonne Maggie (em Medo do feitiço) e Ubiratan Machado (em Os in-
telectuais e o espiritismo) tratava-se de um movimento que procurava, de fato, isolar do
chamado espiritismo científico as práticas consideradas como sendo próprias ao baixo
espiritismo. Além disso ambos defendem a tese de que os artigos do Código de 1890,
especialmente o art. 157, em seus sub-textos, denotavam o endosso às crenças pois par-
tiam do reconhecimento e da aceitação da eficácia e do poder que tinham as práticas da
magia em curar e seduzir aqueles que as procuravam.
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propondo antes uma convivência pacífica.8 Finalmente, diante das demais cor-
rentes religiosas do contexto brasileiro, o espiritismo guardava também ele-
mentos em comum: a possibilidade de comunicação direta com as entidades
sobrenaturais por meio da mediunidade e dos transes, a crença na imortalidade
da alma, a utilização de magnetismos para os processos de diagnóstico e exor-
cismo dos infortúnios e das doenças – núcleos em comum que possibilitavam
as aproximações.
Defendido nos inícios do século pelos expoentes da ideologia positivista,
em nome da liberdade de cultos, das religiões e do exercício profissional, o
espiritismo agiu rapidamente entre os setores médios das populações urbanas.
A penetração na classe média veio tanto de sua proposta cientificista quanto
das experiências e demonstrações públicas que freqüentemente eram realiza-
das, no Brasil, na França e nos Estados Unidos, para a comprovação da vera-
cidade de suas crenças. Com esse discurso cientificista, o espiritismo realiza
amplas conversões entre intelectuais, médicos, funcionários públicos e mili-
tares, alguns deles já anteriormente convertidos ao positivismo9.
De fato, pouco importava se a comunidade científica e católica teimasse
em contestar meticulosamente cada uma dessas experimentações, pois confor- 27
me aponta Keith Thomas, uma vez aceitas, as crenças religiosas prescindem
de comprovação, passando a ter uma qualidade autoconfirmatória indiscutível
e inabalável (Thomas, 1991: 522). Tendo em vista a mentalidade do homem
desta época, é impossível minimizar os efeitos de reclamos que prometiam a
equiparação de fenômenos míticos a procedimentos científicos: “Faço mila-
gres. Sim! faço milagres! Mas milagres ... científicos!!”, expressava um
ocultista que agia em São Paulo, desenvolvendo seus poderes em “sessões es-
píritas ao sistema indiano e não kardecista”, recebendo ondas magnéticas ema-
8
Neste sentido, no contexto das doutrinas espíritas no Brasil, prevaleceram as vertentes
preconizadas por Roustaing que, aliando os ensinamentos de Alan Kardec ao texto do Evan-
gelho, enfatizava a configuração de um espiritismo evangélico-católico. Sobre Roustaing e
sua influência sobretudo no pensamento de Bezerra de Menezes – um dos principais teóri-
cos do espiritismo brasileiro – ver: Hess, David. The Many Rooms of Spiritism in Brazil,
1987; Warren, Donald. A terapia espírita no Rio de Janeiro por volta de 1900, 1984.
9
Entre as conversões à nova religião, junto à comunidade científica internacional, os
estudiosos do espiritismo ressaltam a de César Lombroso, teórico da Antropologia Cri-
minal que aqui fez escola. César Lombroso, Hipnotismo e mediunidade, 1975.
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Entre os males exorcizados pelos médiuns curadores, sobressaíam-se as doenças cha-
madas de fundo nervoso, consideradas como estado mórbido induzido por ação fluídica
de influências estranhas, inteligentes, segundo Adolpho Bezerra de Menezes, em sua obra
de 1893, A loucura sob um novo prisma: estudo psiquico-fisiológico, cf. Donald Warren,
A terapia espírita no Rio de Janeiro por volta de 1900, 1984. Concepções de doenças e
de males próximos, sem dúvida, das visões de africanos e afro-descendentes.
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tudo isso sendo observado por: “um S. Onofre, de braços cruzados, metido
num boião de banha” (“O comércio da ilusão. Cartomantes e feiticeiros”, O
Comércio de São Paulo, 27/05/1913).
De fato, porém, embora avessa a qualquer conotação intelectualista ou
cientificista, evocando crenças afro-brasileiras vindas do passado escravista,
a magia dos negros exercia uma atração sem medidas. No levantamento feito
por Maynard Araújo sobre abusões populares, o homem negro, na cultura po-
pular e na medicina mágica do Vale do Paraíba, é visto por excelência como
um homem mágico (Araújo, 1958). Dos que portam em sua bagagem cultural
amuletos e rituais de cura, de proteção e também de malefícios, ele é também
o mais temido. Seus talismãs exercem um efeito considerável. Permanecem
intocados até hoje, após mais de meio século, em envelopes lacrados e anexa-
dos aos processos criminais; as autoridades judiciárias não ousaram examinar
a prova que constava dos autos, limitando-se a ler as descrições feitas pelos
escrivães policiais: “composto de um pedaço de gesso com inscrições, uma
figa, um cavalo marinho, dois guizos de cobra, objetos que se acham misturados
com um pó cinza”. (Justiça e Maria Aurora, 1939). Os pesquisadores também
30 souberam respeitar os lacres que os protegem de possíveis efeitos. No interior
dos patuás podem ser encontradas rezas ou orações protetoras, que revelam a
violência que se mantinha acoplada à vida dos setores negros da população.
Poderosas são também suas infusões, preparadas com ervas e produtos da far-
macopéia popular, que dominam com destreza.
Esse poder que emana dos feiticeiros, e sobre o qual a documentação da
época fez questão de pontuar, advém da força de crenças e de rituais seculares
numa sociedade aparentemente convertida aos argumentos cientificistas. Para
setores da clientela que buscam suas estratégias de cura, de feitiço e de contra-
feitiço, ou a ação protetora de seus patuás, talismãs e amuletos, são eles por
vezes o último recurso, talvez o mais poderoso entre as fórmulas de magia
existentes. A imagem mítica do homem negro na posse de poderes ocultos se-
duz também os imigrantes recém-chegados, que vislumbram, por detrás de
uma certa estranheza que sentem, ilimitadas possibilidades.
Embora os sinais do passado escravista tenham sido pulverizados pela
penetração vertiginosa de imigrantes; embora muitas das tradições culturais
e sociais dos negros paulistas possam ter se diluído na convivência entre eles
e os estrangeiros, compartilhando os mesmos cortiços e os mesmos bairros
de São Paulo, manteve-se aparentemente íntegra a força de sua magia. As prá-
ticas sociais da magia facultavam aos homens negros espaços de reconheci-
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Além dos títulos mencionados, a editora O Pensamento, de São Paulo, contribuía tam-
bém com a divulgação das chamadas ciências ocultas, em publicações como: Magnetis-
mo e hypnotismo (1940); Radiopatia, ciências herméticas e psicologia experimental;
Dicionário de sciências occultas (1937); Fisiognomia e frenologia; Os mystérios da
maçonaria e das sociedades secretas (1937), entre outras.
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rápico Salus, de Francisco Fritelli (1930), ou pelo sistema, batizado por Moura
Lacerda, de “Autocura Física de Piroterapia Brasileira”. Dizendo-se professor
higienista, Moura Lacerda ensinava aos que o procuravam “os meios para se
livrarem dos males físicos que os afligem, recomendando-lhes sol, ginástica,
regimens alimentares, curas por clima e chás de plantas comuns” (Justiça e
Francisco Xavier Galvão de Moura Lacerda, 1930). Além da divulgação dos
esportes, da ginástica e dos espetáculos públicos, a nova sensibilidade em
relação ao corpo vinha inscrita também em novas maneiras de tratá-lo
(Sevcenko, 1992: esp. cap. 1).
Cursos, conferências, leituras, atendimentos individuais e filiação aos
institutos conformavam algumas das múltiplas alternativas que poder-se-ia
encontrar difundidas na cidade, para se aperfeiçoar diante das exigências que
eram feitas pelo mundo urbano. O ritmo da cidade e as pressões multivariadas
produziam, uma sociedade nervosa, sensível e atenta aos temas relacionados
ao psiquismo. Uma parte das ações desenvolvidas e catalogadas como sendo
de exercício ilegal da medicina ou de uso da magia envolveu indivíduos que
se diziam psiquistas e se especializavam no tratamento das doenças nervosas,
por meio de novas terapêuticas a elas associadas. Em 1938, Ítalo Benassi era 35
investigado por oferecer “tratamentos para psicoses comuns e espiritóides,
fobias, tics nervosos, desânimo, gagueira, vícios e embriaguez”, por meio de
métodos igualmente numerosos: “sugestão, magnetismo, hipnotismo, clarivi-
dência sonambúlica, receitas de banhos com guiné, arruda, alecrim, saco-saco,
dentes de alho etc” (Justiça e Ítalo Benassi e outros, 1938). Também as teorias
psicanalíticas que aqui se difundiram de maneira tardia, poderiam se popula-
rizar na forma de exercícios destinados a ensinar o homem moderno a “maneira
como deve respirar, pensar e [...] dialeticamente viver” (Justiça e Amandus
Quart Siloe Schoen, 1931). Nos marcos da cidade das primeiras décadas do
século, magia e ciência gravitavam por vezes em círculos concêntricos, em
torno de procedimentos e crenças similares.
Bibliografia
ARAGÃO, Luiz Tarlei de. A dessacralização do sexo e o sacrifício de mulheres.
Religião e Sociedade, São Paulo, 6, 1980.
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REGIONALISMO PAULISTA E POLÍTICA
PARTIDIÁRIA NOS ANOS VINTE*
James P. Woodard
Brown University
Resumo
Os conflitos políticos do final dos anos vinte entre o Partido Republica-
no Paulista e o Partido Democrático de São Paulo tiveram um papel mui-
to maior no cenário político dos anos 30 do que a historiografia atual tem
apontado. Em particular, estes conflitos possibilitaram a mobilização do
estado de São Paulo contra o governo federal chefiado por Getúlio Vargas,
pois encorajaram a especie de identidade regionalista/nacionalista que ser-
viria de grito de protesto para os rebeldes paulistas de 1932.
Palavras-Chave
São Paulo • Regionalismo • Política
Abstract
The political conflicts of the late 1920s between the Paulista Republican
Party and the Democratic Party of São Paulo played a much larger role in
the politics of the 1930s than indicated by the existing historiography. In
particular, these conflicts helped to lay the groundwork for the mobiliza-
tion of the state of São Paulo against the federal government headed by
Getúlio Vargas by encouraging the kind of regionalist-cum-nationalist iden-
tification that would serve as a rallying cry for the Paulista rebels of 1932.
Keywords
São Paulo (Brazil - State) • Regionalism • Politics
*
Este trabalho – uma adaptação de um paper que apresentei ao congresso da Associação
de Estudos Brasileiros em abril de 2002 – deve muito às pesquisas que fiz para minha
tese de doutoramento, defendida em setembro de 2003. Gostaria de expressar meus agra-
decimentos à banca examinadora: Thomas E. Skidmore, Barbara Weinstein, e R. Douglas
Cope. Devo também agradecer a contribuição valiosa do meu amigo João Felipe Gonçal-
ves, que leu e corrigiu uma tradução preliminar deste artigo.
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1
MORGAN, Arthur. Os engenheiros de S. Paulo em 1932: pela lei e pela ordem. São Paulo:
1934, pp. 49-50; OLIVEIRA, Clovis de. A indústria e o movimento constitucionalista de 1932.
São Paulo: Serviço de Publicações do CIESP/FIESP, 1956; WEINSTEIN, Barbara. For social
peace in Brazil: industrialists and the remaking of the working class in São Paulo, 1920-1964.
Chapel Hill: University of North Carolina Press, 1996, pp. 63-64; PRADO, Maria Lígia Coe-
lho. A democracia ilustrada: o Partido Democrático de São Paulo, 1926-1934. São Paulo: Editora
Ática, 1986, capítulo 2, parte B; SANTOS, Francisco Martins dos. História de Santos, 1532-
1936. São Paulo: Empreza Graphica da Revista dos Tribunaes, 1937, capítulo 26.
James P. Woodard / Revista de História 150 (1º - 2004), 41-56
2
ADDUCI, Cássia Chrispiano. A “pátria paulista”: o separatismo como resposta à crise
final do império brasileiro. São Paulo: Arquivo do Estado, 2000; WEINSTEIN, Barbara.
“Racializing regional difference: São Paulo vs. Brazil, 1932”. In: Race and nation in modern
Latin America. Nancy Appelbaum, Anne Macpherson e Karin Rosemblatt (orgs.). Chapel
Hill: University of North Carolina Press, 2003, pp. 237-262, e correspondência com o autor.
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humiliation and the realization that it is fighting for its political position, its
white man’s culture, and the wealth, the lives, and the homes of its citizens”
(‘São Paulo tem uma moral extraordinária gerada por 20 meses de humilhação
e pela consciência de que está lutando por sua posição política, sua cultura de
homens brancos, e pela riqueza, vidas e lares de seus cidadãos’).4 Neste mo-
mento podemos lembrar o comentário de Katia Maria Abud sobre a figura do
bandeirante: “O bandeirante representa, por excelência, a entidade paulista
que se tornou sinônimo de bravura, integridade, arrojo, progresso, superiori-
dade racial e até mesmo democracia”.5
Essa identificação entre oposição política e paulistinidade era evidente
antes mesmo da fundação do Partido Democrático. Em uma declaração publi-
cada em setembro de 1925, o futuro líder honorário do partido, Antônio Prado,
declarou: “Já tarda que os paulistas, filhos da terra dos verdadeiros grandes
homens que contribuíram para a formação da nacionalidade brasileira, resol-
vam fundar um verdadeiro partido político, baseado nos princípios democrá-
ticos da nossa Constituição” 6.
44
3
Com algumas reservas, uso aqui o conceito habermasiano da “esfera pública” em uma
maneira similar ao uso do conceito pela Hilda Sabato em suas pesquisas sobre a partici-
pação política na cidade de Buenos Aires durante o século dezenove. SABATO, Hilda.
“Citizenship, political participation, and the formation of the public sphere in Buenos
Aires, 1850s-1880s”. Past & Present. Oxford: Oxford University Press, 136, pp. 139-
163, 1992; idem, The many and the few: political participation in republican Buenos Aires.
Stanford: Stanford University Press, 2001.
4
Carta de C. R. Cameron a Walter C. Thurston, São Paulo Political Report No. 49, São
Paulo, 9 de agosto de 1932, United States National Archives (USNA), College Park,
Maryland, Record Group 59 (RG59), 832.00/811. Cameron foi muito ligado às pessoas
que ele chamava de “better class Paulistas” e suas reportagens refletem essa familiari-
dade (citação de uma carta de C. R. Cameron a Walter C. Thurston, São Paulo Political
Report No. 48, São Paulo, 30 de julho de 1932, USNA, RG59, 832.00/810). Ao contrário
de Cameron, o embaixador norte-americano, baseado na capital federal de Rio de Janei-
ro, inclinou-se bem mais a responsabilizar os próprios paulistas pela “revolução” de 1932,
explicando que “The fanatical attitude of the population must be broken before the nor-
mal life of the city can be restored”. Carta de E. V. Morgan a Secretary of State, Rio de
Janeiro, 14 de otubro de 1932, USNA, RG59, 832.00/818.
5
ABUD, Katia Maria. “O bandeirante e o movimento de 32: alguma relação?”. In: O
imaginário em terra conquistada, Maria Isaura Pereira de Queiroz (org.). São Paulo: Cen-
tro de Estudos Rurais e Urbanos,1993, p. 36.
6
“O voto secreto”, O Estado de S. Paulo, 1 de setembro de 1925, p. 3.
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7
PRADO, Nazareth (org.). Antonio Prado no imperio e na republica. Rio de Janeiro: F.
Briguet, 1929, pp. 423-424.
8
Carta de Simplício Ferreira a Antônio Prado, Altinópolis, 24 de março de 1926, Arqui-
vo do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (AIHGSP), Arquivo Partido Democrá-
tico (APD), pacote 33.
9
Carta de Manuel Ahies [?] a “Illustre Commição Diretora do Partido Democratico”,
Bernardino de Campos, 18 de abril de 1926, AIHGSP, APD, pacote 33.
10
Carta de Joaquim da Fonseca Bicudo et al. ao Diretório Provisório do PD, Itu, 29 de
junho de 1926, AIHGSP, APD, pacote 33.
James P. Woodard / Revista de História 150 (1º - 2004), 41-56
11
“Partido Democrático”, O Estado de S. Paulo, 27 de abril de 1926, p. 6.
12
Ibid.
James P. Woodard / Revista de História 150 (1º - 2004), 41-56
13
Carta de Plínio F. da Silva aos “Diretores do Partido Democrata”, Rio de Janeiro, 29
de abril de 1926, AIHGSP, APD, pacote 48.
14
Ibid.
15
“Pelos direitos do povo”, recorte de jornal (O Progresso [Faxina], 10 de agosto de 1927),
AIHGSP, APD, album VI.
James P. Woodard / Revista de História 150 (1º - 2004), 41-56
16
ADDUCI, Cássia Chrispiniano. “O reforço da ‘mística paulista’ nas páginas do Diário
Nacional”. Lutas sociais. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 7,
pp. 101-114, 2001; DE LUCA, Tania Regina. A “Revista do Brasil”: um diagnóstico para
a (n)ação. São Paulo: Editora da UNESP, 1998.
17
Diário Nacional, 1 de abril de 1928, citado em ADDUCI, op cit., pp. 113-114.
18
C. R. Cameron, Report # 151, “São Paulo Press on the Kellogg Pact”, São Paulo, 4 Sept.
1928, USNA, Record Group 84, American Consulate, São Paulo, Correspondence, 1928,
vol. 7; idem, Report #167, “Fascism in São Paulo”, São Paulo, 29 Oct. 1928, in: ibid.
James P. Woodard / Revista de História 150 (1º - 2004), 41-56
19
Alexandre Marcondes Machado, “Conferência política realizada na cidade de Jaú, por
ocasião do primeiro comício de propaganda do Partido Republicano Paulista, reproduzi-
do de acordo com as notas tacquigráficas, em 1926”, CPDOC, Arquivo Marcondes Fi-
lho, doc. pi 1926.00.00.
20
Carta de Antônio Amaral Mello a Júlio Prestes de Albuquerque, São Paulo, 22 de se-
tembro de 1929, Arquivo do Estado de São Paulo (AESP), Arquivo Júlio Prestes de
Albuquerque (AJPA), caixa AP11.
21
Carta de Nestor Siqueira de Macedo a Júlio Prestes de Albuquerque, São Paulo, 13 de
agosto de 1929, AESP, AJPA, caixa AP10.
James P. Woodard / Revista de História 150 (1º - 2004), 41-56
Finalmente, concluiu Lobato, “porque não é com queijo, nem carne seca que
os graves problemas que defrontam o Brasil serão resolvidos. É com café, audácia,
visão, iniciativa e as mais outras qualidades yankees que caracterizam o paulista”.26
50
O próprio Vargas teve que apelar à estes valores durante a sua campanha
eleitoral. Em janeiro de 1930 o candidato gaúcho declarou:
22
Carta de Pedro Voss Filho a Júlio Prestes de Albuquerque, Tatuí, 17 de setembro de
1929, AESP, AJPA, caixa AP11; O Estado de S. Paulo, 22 de dezembro de 1909, p. 4.
23
Carta de Luiz Gonzaga Raposa a Júlio Prestes de Albuquerque, São Bento de Sapucaí,
31 de janeiro de 1930, AESP, AJPA, caixa AP14.
24
Carta de Chrispiano Cid Costa a Júlio Prestes de Albuquerque, Itatinga, 16 de janeiro
de 1930, AESP, AJPA, caixa AP14.
25
Carta de Monteiro Lobato a Júlio Prestes de Albuquerque, Nova York, 28 de agosto de
1929, citado em DEBES, Célio. Júlio Prestes e a primeira república. São Paulo: Im-
prensa Oficial, 1982, p. 96.
26
Ibid.
James P. Woodard / Revista de História 150 (1º - 2004), 41-56
27
“Como foram recebidos os candidatos liberais”, O Estado de S. Paulo, 5 de janeiro de
1930, p. 6.
28
J. Canuto, “Campanha em prol da unidade nacional”, recorte de jornal (Diário da Noite,
11 de setembro de 1929), AIHGSP, APD, pacote 59.
James P. Woodard / Revista de História 150 (1º - 2004), 41-56
29
Ibid.
30
AIHGSP, APD, pacote 13, item 8. O pôster é reproduzido em SÃO PAULO, Assem-
bléia Legislativa. Legislativo paulista: parlamentares, 1835-1999. Auro Augusto Caliman
(org.). 2a. edição, São Paulo: Imprensa Oficial, 1999, p. 77.
31
Pôster de propaganda promovendo o alistamento eleitoral, AIHGSP, Arquivo Liga
Nacionalista, pacote 1. O pôster é reproduzido em SÃO PAULO, op cit., p. 71. Para a
manipulação da imagem do bandeirante em 1932, ver ABUD, op cit., pp. 41-44.
32
LOBATO, Monteiro et al. O voto secreto: carta aberta ao Exmo. Snr. Dr. Carlos de
Campos. São Paulo: 1924.
James P. Woodard / Revista de História 150 (1º - 2004), 41-56
33
Antonio Monteiro da [ilegível] aos diretores do PD, São Paulo, 27 de março de 1926,
AIHGSP, APD, pacote 45.
34
WEINSTEIN, op cit.
35
BORGES, Vavy Pacheco. Memória paulista. São Paulo: Editora da Universidade de
São Paulo, 1997, capítulo 3; DUARTE, Paulo. Memórias. São Paulo: Hucitec, 1974-1980,
volume 2, p. 187.
36
BEZERRA, Holien Gonçalves. O jogo do poder: revolução paulista de 32. São Paulo:
Editora Moderna, 1989, p. 101.
37
RAMOS, Plínio de Abreu. “Partido Constitucionalista de São Paulo”. In: Dicionário
histórico-biográfico brasileiro. Alzira Alves de Abreu et al. (orgs.). 2a. edição. Rio de
Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 2001, p. 4283.
James P. Woodard / Revista de História 150 (1º - 2004), 41-56
Referências Bibliográficas
54
ABUD, Katia Maria. “O bandeirante e o movimento de 32: alguma relação?”.
In: O imaginário em terra conquistada, Maria Isaura Pereira de Queiroz (org.).
São Paulo: Centro de Estudos Rurais e Urbanos, 1993.
ADDUCI, Cássia Chrispiano. A “pátria paulista”: o separatismo como resposta
à crise final do império brasileiro. São Paulo: Arquivo do Estado, 2000.
ADDUCI, Cássia Chrispiniano. “O reforço da ‘mística paulista’ nas páginas do
Diário Nacional”. Lutas sociais. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo, 7, 2001.
38
O pôster é reproduzido em SÃO PAULO, op cit., 107.
39
A Manhã (Rio de Janeiro), 5 de julho de 1935 (2a edição), citado em FONSECA, Vitor
Manoel Marques da. “A ANL na legalidade”. Tese de mestrado da Universidade Federal
Fluminense, 1986, p. 236. Emquanto o PCB estava na legalidade, em meados dos anos
quarenta, biografias oficiais de certos candidatos do partido fizeram referências especi-
ais à participação dos candidatos nos eventos de 1932. Ver as biografias de Catullo Branco
e Milton Cayres de Brito, Hoje (São Paulo), 21 de novembro de 1945, p. 8, e 26 de no-
vembro de 1945, p. 6.
James P. Woodard / Revista de História 150 (1º - 2004), 41-56
WEINSTEIN, Barbara. For social peace in Brazil: industrialists and the remaking
of the working class in São Paulo, 1920-1964. Chapel Hill: University of North
Carolina Press, 1996.
. “Racializing regional difference: São Paulo vs. Brazil, 1932”. In:
Race and nation in modern Latin America. Nancy Appelbaum, Anne
Macpherson e Karin Rosemblatt (orgs.). Chapel Hill: University of North
Carolina Press, 2003.
56
“PALADINOS DA LIBERDADE”.
A EXPERIÊNCIA DO CLUBE NEGRO DE
CULTURA SOCIAL EM SÃO PAULO (1932-1938) *
Petrônio Domingues
Doutorando do Programa de História Social-FFLCH/USP
Professor da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE)
Resumo
O objetivo desse artigo é romper com o relativo silêncio historiográfico que
envolve a luta organizada do negro no combate ao racismo neste país, em
particular, nas primeiras décadas do período republicano. Por isso, resol-
vemos oferecer subsídios para se fazer, pioneiramente, um resgate históri-
co da entidade Clube Negro de Cultura Social (1932-1938) e, centralmen-
te, analisar seus dois veículos informativos oficiais: a revista Cultura, na
primeira fase, e o jornal O Clarim, na segunda fase da organização.
Palavras-Chave
Negro • Racismo • Movimento Negro • Relações Raciais
Abstract
The purpose of this article is to break with the historiographical silence
that persists in the organized black movement against racism in Brazil,
in particular with respect to the first decades of the Republican period.
The article offers elements for a pioneer study of a social entity called
the Clube Negro de Cultura Social (1932-38), analyzing its two official
publications: the magazine Cultura, during the first phase, and the
newspaper O Clarim, during the organization’s second phase.
Keywords
Black People • Racism • Black People Movement • Racial Relationships
*
Agradeço a leitura minuciosa de Marcos Cesaretti e os comentários do Prof. Antônio
Sérgio Alfredo Guimarães.
Petrônio Domingues / Revista de História 150 (1º - 2004), 57-79
Abdias do Nascimento
58
Introdução
Reconhecemos os avanços significativos na construção da história do negro
no Brasil, entretanto, muitos capítulos dessa história ainda precisam ser des-
vendados. Uma das lacunas reside na tradição de luta das organizações negras
no pós-abolição. Excetuando as maiores – como a Frente Negra Brasileira
(1931-37), Teatro Experimental do Negro (1944-68) ou Movimento Negro
Unificado (1978- ) – não se aborda ou raramente se aborda a experiência das
outras organizações, quanto à sua linha política, estrutura, seu poder de mobi-
lização, dinamismo de funcionamento, grau de organização e articulação com
os demais setores da sociedade e do Estado brasileiro.
A fim de romper com esse relativo silêncio historiográfico que paira
na luta coletiva do negro neste país, em particular nas primeiras décadas
do período republicano, é que aceitamos o desafio de escrever esse artigo.
A proposta é oferecer subsídios para se fazer um resgate histórico da enti-
dade Clube Negro de Cultura Social (1932-1938) e, centralmente, analisar,
seus veículos informativos oficiais: a revista Cultura, na primeira fase, e
o jornal O Clarim, na segunda fase.
Petrônio Domingues / Revista de História 150 (1º - 2004), 57-79
1. O ocultamento historiográfico
O Clube Negro de Cultura Social (CNCS) ainda não foi objeto de uma
pesquisa rigorosa. Sua vida continua submersa nos porões dos arquivos e da
memória histórica. De toda sorte, encontramos algumas pesquisas que, secun-
dariamente, fazem referência à trajetória dessa entidade. A obra A integração
do Negro na Sociedade de Classes, de Florestan Fernandes, foi a precursora
em tirar o CNCS do esquecimento e definir sua importância para a organização
da luta anti-racista no início do século XX: “A atuação desse grupo foi sempre
muito coerente, mantendo a bandeira do negro, ou seja, as reivindicações rela-
cionadas com o levantamento econômico, social e cultural do negro, com uma
mistura equilibrada de idealismo e de realismo, o que imprimiu às suas posições
um caráter marcantemente construtivo” (Fernandes 1978:87).
No entanto, esse consagrado autor não tece maiores considerações sobre
a “saga” da referida entidade, que, em última instância, permanece no semi-
anonimato. Depois de décadas, uma outra pesquisa intitulada O movimento
negro em São Paulo: luta e identidade, de Regina Pahim Pinto, aborda, apenas
num único parágrafo, algumas das iniciativas desportivas dessa entidade: “O
Clube Negro de Cultura Social foi a associação que incentivou o esporte, não
59
só promovendo competições e mantendo quadro esportivos, mas também pro-
curando criar uma estrutura para o desenvolvimento, como a construção de
uma praça de esportes (Pinto 1993:82).”
Por sua vez, a dissertação Visibilidade e respeitabilidade: memória e luta
dos negros nas associações culturais e recreativas de São Paulo (1930-1968),
de Maria Aparecida Pinto Silva, se credencia como a principal pesquisa a pers-
crutar, ainda que de maneira efêmera, a trajetória do CNCS. Através da me-
mória de seus ativistas, Silva faz uma reconstituição histórica da entidade. A
sua principal hipótese é demonstrar que as atividades culturais e recreativas
promovidas pela referida entidade foram colocadas a serviço do projeto polí-
tico do movimento negro: “O Clube Negro de Cultura Social, embora tendo
todo esse caráter combativo e francamente politizado, caracterizou-se por uma
intensa programação social, cultural e recreativa. Essas práticas não ficavam
descoladas da prática política. Assim, os praticantes de esportes e os freqüen-
tadores das sessões literárias estavam também vinculados às reivindicações
do movimento negro (Silva 1997: 112).”
O nosso artigo se inscreve justamente nesse quadro mais amplo de recons-
trução histórica do movimento negro e de suas organizações. A despeito da
Petrônio Domingues / Revista de História 150 (1º - 2004), 57-79
1
Integrantes de um movimento ultranacionalista de extrema direita, outrossim, conhe-
cido como versão brasileira do fascismo italiano, que surgiu na década de 1930.
2
Arlindo Veiga dos Santos foi o responsável pela criação do movimento patrianovista,
fundando, em 1928, o Centro Monarquista de Cultura Social e Política e, em 1932, a
Ação Imperial Patrianovista Brasileira. Este movimento, na ótica de Roy (1978), defen-
dia o nacionalismo, o tradicionalismo, o catolicismo e a reinstauração da monarquia e
implantação do III Império.
3
Entrevista de Francisco Lucrécio a Regina Pahim Pinto, em 23.06.1989, p.1.
Petrônio Domingues / Revista de História 150 (1º - 2004), 57-79
José Correia Leite. Em 23 de dezembro de 1931, ele enviou uma carta aos
membros do Conselho daquela entidade solicitando seu desligamento do cole-
giado. Nesse documento, Correia Leite apontava como causa do pedido de
afastamento sua “incompatibilidade com o personalismo, clericalismo”, mo-
narquismo e posições políticas “ultranacionalistas” do presidente da FNB.
Além disso, esse dissidente fazia questão de declarar que condenava a monar-
quia, a religião cristã e a “república aristocrática”, tendo como sonho a cons-
trução do “socialismo democrático”. Apesar de sua defecção do cargo de dire-
ção, Leite escrevia que ainda se dispunha a continuar nas “fileiras” da
organização como “soldado”4.
A FNB, então, passou a tratar o grupo que se aglutinava em torno do jornal
O Clarim D‘Alvorada como inimigos. Acusavam-lhes de traidores, “envenena-
dores da raça”, inoperantes, de nunca terem feito nada pelos negros e “só sabe-
rem falar e criticar”. Um dos dirigentes da FNB vociferava: “Os nossos segui-
dores não precisam de intelectuais; precisamos de mais ação e menos palavras”
(Leite & Moreira s/d: 14). Com efeito, um episódio agravou o clima de tensão
que se instaurou no movimento negro. Isaltino Veiga dos Santos, secretário
62 geral da FNB e irmão de Arlindo Veiga dos Santos, incorreu em uma postura
considerada imoral na viagem de inauguração, em São Sebastião do Paraíso
(MG), de mais uma delegação da FNB. Como nenhuma medida punitiva foi
tomada pela entidade, o grupo de O Clarim D‘Alvorada resolveu fundar um
novo jornal, o Chibata, somente para denunciar o caso. Quando estava no ter-
ceiro número, a redação do Chibata – que funcionava na casa de José Correia
Leite – foi violentamente empastelada por uma milícia a mando do Presidente
da FNB, Arlindo Veiga dos Santos. Revoltado, o grupo de O Clarim D‘Alvo-
rada resolveu republicar o jornal com o nome original:
O Clarim D‘Alvorada, reaparece hoje, em edição extra, para atirar a sua cuspa-
rada de desprezo, no rosto dos negros repugnantes, que na noite de 19 deste,
evadiram a nossa redação, com o fito de depredar os nossos materiais.
4
Carta de Snr. José Correia Leite aos membros do Conselho da Frente Negra Brasileira.
São Paulo, 23 de dezembro de 1931. Prontuário 1538 (Frente Negra Brasileira). Arquivo
DEOPS. Em todas as citações de documentos foi respeitado o português da época, pre-
servando-se, desta maneira, o original.
Petrônio Domingues / Revista de História 150 (1º - 2004), 57-79
Esses lacaios dos irmãos Veiga dos Santos, tipos nojentos da vasa bai-
xa, agrediram estupidamente duas mulheres, e assustaram os indefe-
sos filhinhos do nosso companheiro, José Correia Leite, em atitudes
selvagens dignas do bando de “Lampeão” (O Clarim da Alvorada. São
Paulo, 27.03.1932, p.1).5
5
O empastelamento do jornal Chibata ainda foi noticiado na Folha da Manhã. São Pau-
lo, 22.03.1932, p.14; Folha da Noite. São Paulo, 22.03.1932, p.3. Em todas as citações
de documentos foram respeitadas o português da época, preservando-se, deste maneira,
o original.
6
Entrevista de Aristides Barbosa a Regina Pahim Pinto, em 18.11.1989, p.12. Em razão
do CNCS atrair essencialmente o público juvenil, muitos de seus filiados eram parentes
(filho ou sobrinho, mormente) dos frentenegrinos.
Petrônio Domingues / Revista de História 150 (1º - 2004), 57-79
cípio a independência política dos negros na luta anti-racista, tal como foi sinteti-
zado nas palavras de um de seus dirigentes e uma das principais lideranças do
movimento negro da época, José Correia Leite (1992:118):
A gente lutava para conscientizar o negro que ele era quem tinha que
advogar sua causa, não esperar que alguém viesse advogar sua causa,
não esperar que alguém viesse advogar por ele. Já sabíamos que nin-
guém vinha tratar do desamparo, do erro da abolição. E não deixáva-
mos de reivindicar os direitos que o negro tinha em denunciar os pre-
juízos sofridos. A gente tinha de lutar... e foi o que a gente levou para
o Clube Negro de Cultura Social.
7
A eleição da nova diretoria do CNCS, igualmente, foi notícia em outro jornal: “De acordo
com as eleições realizadas em 17 do corrente, ficou assim composta a diretoria que re-
Petrônio Domingues / Revista de História 150 (1º - 2004), 57-79
gerá os destinos do Club este ano: Presidência, José Correia Leite e José Teixeira; Se-
cretaria, Atila J. Gonçalves e Patrício Valente Soares; Tesouraria, Luiz G. Braga e Alcides
Paulino de Moura; Bibliotecário, Ascanio de Barros; Comissão de Sindicância, Sebasti-
ão Gentil de Castro, Rubens dos Santos, Sebastião Laurindo, Alberto Cabral e Durvalino
Camargo; Conselho Deliberativo, Benedito de Souza, Amador de Barros, Alipio Anto-
nio da Silva, Galdino G. de Souza e Onofre dos Santos. (A Voz da Raça. São Paulo, 20 de
Janeiro de 1934, p. 3).
Petrônio Domingues / Revista de História 150 (1º - 2004), 57-79
8
Contudo, não podemos distorcer o caráter da rivalidade que havia entre o CNCS e a FNB
Pelo menos no plano político, selou-se uma aliança tática entre essas duas entidades negras.
Segundo Aristide Barbosa (depoimento in Barbosa, 1998:22), o CNCS não lançou candi-
datura própria às "eleições de 1937[1934]" para poder apoiar o candidato da Frente Negra.
9
O piquenique era um dos programas de lazer mais concorridos. Como assinala Silva
(1997:113), “todos participavam e compartilhavam esse momento significativo. Iam
juntos de trem ou de ônibus, ao interior ou à praia, comiam juntos. O piquenique signi-
ficava um contraponto, uma alternativa para o convívio social, já que lá fora havia a in-
terdição, principalmente em restaurantes para o negro.”
Petrônio Domingues / Revista de História 150 (1º - 2004), 57-79
10
Encontramos, entretanto, o lançamento, um ano antes, de uma revista denominada
Evolução, que trazia em seu subtítulo Revista dos Homens Pretos de São Paulo, lançada
em único número para as comemorações do 13 de Maio, data da abolição da escravatura
no Brasil. (Evolução. São Paulo, 13 de maio de 1933).
Petrônio Domingues / Revista de História 150 (1º - 2004), 57-79
“13 de Maio! Data que poderia ser o marco das reivindicações de uma
raça espoliada e espezinhada, é, apenas, uma ironia para nós os ne-
gros, e uma piedosa legenda para os brancos.
Negros fascistas, monarquistas, socialistas, perrepistas ou perrapados
- UNI-IVOS, num trabalho perfeito pela nossa emancipação integral.
Petrônio Domingues / Revista de História 150 (1º - 2004), 57-79
Este editorial acima ainda revela qual era a concepção de luta predomi-
nante do movimento negro da época: a “questão racial” estava acima das
diferenças políticas e ideológicas que cindia os diversos setores e estratos
sociais da população negra. A luta anti-racista devia ser suprapartidária:
“Todos nós tínhamos nossas idéias políticas, mas quando nós estávamos
reunidos em função das nossas idéias de negritude nós não misturávamos”
(Depoimento de José Correia Leite in: Barbosa 1998: 73) com política. A
tarefa de todos os negros seria, antes de mais nada, costurar uma unidade
de ação na luta pela sua emancipação, independentemente de suas convicções
partidárias. Nesse sentido, as contradições de classe, gênero, etc, deviam ser
colocadas em segundo plano; afinal, o interesse do negro era supostamente
comum: “elevação moral, material e cultural da raça e nada mais”. Daí a
política a favor da aliança de forças políticas e ideológicas antagônicas (“fas-
cistas, monarquistas, socialistas”).
70 Para o Clube Negro de Cultura Social, um dos instrumentos privilegiados
de conscientização dos negros, reiteramos, era o esporte:
(...) no esporte, nós possamos encontrar o que não temos conseguido com
palavras bonitas e doutrinárias. Mas o esporte só não basta para nós, dirão
os céticos. É preciso a educação moral e intelectual. Mas diremos nós:
o esporte, e mormente o atletismo, é um educador perfeito da moral e
do intelecto. E é por isso, que apontamos mais uma vez o Clube Negro
de Cultura Social. (Cultura. São Paulo, março de 1934).
11
Encontramos, inclusive, um artigo em que Fernando Goes - escrevendo sob o pseudô-
nimo de Ghandi de Araújo - demonstra ter afinidade com o que existia de mais avançado
em matéria de conhecimento antropológico, o princípio da diversidade cultural, que
negava o dogma da hierarquia biológica entre as raças: “Um cérebro sensato, desprovi-
do de preconceitos raciais absurdos é lido em Franz Boas, que afirma não existir inferi-
oridade de inteligências entre as raças, mas tão somente diversidade de culturas (O Cla-
rim. São Paulo, maio de 1935, p.6).
Petrônio Domingues / Revista de História 150 (1º - 2004), 57-79
“Não é só com a espada que se torna herói, mas também, com palavras
e ações. Será que os negros não sentem os prejuízos originados pelos
preconceitos? Somente nas organizações modelares é que se pode lutar
pela nossa Emancipação”. (O Clarim. São Paulo, março de 1935, p.1)
Este artigo foi escrito por Eunice de Paula, uma das redatoras do jornal O
Clarim, sinalizando que as mulheres participavam ativamente do processo de
conscientização racial e política da população negra. Eunice de Paula era res-
ponsável pela coluna feminina do jornal, a qual fazia sucesso entre os leitores.
Aliás, o discurso contrário ao machismo e a favor da emancipação feminina im-
primia a tônica de alguns artigos como “A mulher moderna e a sua educação”:
A vida ativa dos nossos dias, mobilizando todos os seres capazes, não
pode deixar de utilizar como elemento de primeiro plano, a mulher
válida, principalmente aquela que, pela instrução, se tornou capaz para
certos serviços de homem”. (O Clarim. São Paulo, maio de 1935, p.5).
“(...) conquistar para a Raça o conforto que ela merece, e aos seus ele-
mentos os direitos que lhe são devidos como cidadãos.
12
A “ideologia do branqueamento” é uma alusão ao desejo de um setor da comunidade
negra daquele período eliminar seus traços fisionômicos, a fim de se aproximar, no pla-
no das aparências, ao modelo fisionômico considerado superior, o branco (cabelo liso,
nariz afilado, lábio fino, cútis clara, por exemplo).
Petrônio Domingues / Revista de História 150 (1º - 2004), 57-79
Este artigo é uma evidência de que a atuação do CNCS foi pautada pelo
desejo confesso de despertar no negro o orgulho racial, de modo que tal seg-
mento da população pudesse assumir, na plenitude, a luta a favor dos “direitos
que lhe são devidos como cidadãos”. Depois de quatro números, O Clarim
saiu de circulação, deixando, dessa forma, o CNCS órfão de um veículo de
comunicação jornalístico.
lizar, houve uma sessão de declamação poética. Este foi o último ato público
de cunho mais político promovido pela entidade.
A implantação da ditadura “Varguista” do Estado Novo, em 1937, debelou
com todas as entidades políticas, inclusive, com as organizações do movimento
negro. Segundo a elite política do país, as lutas sociais dos negros eram peri-
gosas, pois criavam um problema que presumivelmente não existia, o racismo,
e colocavam em risco seu projeto étnico de Estado Nação. Por isso, após as
comemorações do Cinqüentenário da Abolição, o Clube Negro de Cultura
Social foi arbitrariamente fechado pelos órgãos de repressão do regime dita-
torial do governo de Getúlio Vargas. Na verdade, a polícia política ainda
permitiu que o Clube continuasse a funcionar, mas fez duas exigências: a
supressão do termo negro e o fim das atividades políticas. Após a desmobili-
zação dos últimos militantes, o Clube Negro de Cultura Social foi extinto, em
definitivo, meses depois. A última festividade de monta da entidade foi a
comemoração de aniversário, naquele mesmo ano, de sua fundação. Primeira-
mente, realizou-se um sensacional espetáculo teatral, literário e musical. A
partir de meia noite aconteceu um concorrido baile, que se estendeu até às 4
76 horas da manhã, no Salão do Paulistano, na rua da Glória.
Considerações finais
O Clube Negro de Cultura Social foi, acima de tudo, um pólo de resistência
cultural, que teve, entre outros méritos, a preocupação permanente de reforçar
os laços de união étnica de um grupo específico, através da aglutinação dos
afiliados na sede para se confraternizarem nos bailes, nos jogos, na prática
desportiva, nas apresentações cênicas, nas declamações poéticas, nas refeições
coletivas, nas palestras, nas festividades de datas comemorativas. Era um local
onde efetivamente o negro se sentia “gente”. Quando Elysário Petrus escreveu
para a revista Cultura, exultando os “negros da paulicéia” a “cerrar fileiras
em torno do Clube”, ressaltou o que tal gesto significava: “Lá estaremos em
nosso ambiente, livres dos `olhos vermelhos´ do preconceito”. (Cultura. São
Paulo, março de 1934).
O CNCS contribuiu para a elevação do nível de consciência política e racial
do negro em São Paulo, canalizando o descontentamento difuso deste segmento
da população em disposição de aderir às lutas sociais: “Este 13 de Maio, veio
alcançar o homem negro perfeitamente integrado nas lutas políticas sociaes”.
(O Clarim. São Paulo, Maio de 1935, p.1).
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13
Segundo Silva (1997:111), o CNCS publicou duas revistas (Chibata e Cultura) e um
jornal (O Clarim da Alvorada). Ora, tanto o jornal O Clarim da Alvorada (1924-1932) quanto
a Chibata (1932) - que era jornal e não revista - foram publicações que antecederam em
anos e meses, respectivamente, a fundação do CNCS Portanto, não podemos confundir: as
únicas publicações desta entidade foram a revista Cultura (1934) e o jornal O Clarim (1935).
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Referências Bibliográficas
ANDREWS, George Reid. Negros e Brancos em São Paulo(1888 - 1988).
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Petrônio Domingues / Revista de História 150 (1º - 2004), 57-79
80
REPRESENTAÇÕES HISTORIOGRÁFICAS CATÓLICAS
POR OCASIÃO DA COMEMORAÇÃO DO
IV CENTENÁRIO DA CIDADE DE SÃO PAULO
Resumo
Esse artigo é fruto da leitura do livro A Igreja dos Quatro Séculos de São
Paulo - 1554-1954. Verificamos que em primeiro lugar, este livropossui, em
sua análise histórica, as características da historiografia e das representações
do passado da elite paulista: o espírito bandeirante e a vocação nacional dos
paulistas. Assim, constitui-se um passado católico em São Paulo relaciona-
do com a seleção dos momentos e de determinados elementos históricos,
recaindo a preferência sobre a presença dos jesuítas em terras paulistas na
primeira fase colonial e sobre a fundação oficial da cidade de São Paulo. Nos
demais períodos, são escolhidos os fatos e atores que não chocam a repre-
sentação geral que, entre outras coisas, procura mostrar a força perene da
religiosidade católica em terras paulistas e brasileiras.
Palavras-Chave
Historiografia • Representações • Bandeiras • Catolicismo • Jesuítas
Abstract
This article results from a critical reading of the book A Igreja dos Qua-
tro Séculos de São Paulo – 1554-1954. In its historical approach, this book
expresses two characteristics of a historiography and representation of
the past associated with São Paulo’s elite: the bandeirante spirit and the
Paulistas’ role in shaping the nation. The book constructs São Paulo’s
Catholic past in relation to a selection of specific historical moments and
elements, emphasizing the presence of Jesuits during the early colonial
period and especially their role in the official establishment of the city.
During subsequent periods, this approach selects facts and actors that do
not contradict the general representation, which seeks to show the
perennial force of Catholicism in São Paulo and in Brazil.
Keywords
Historiography • Representation • Expeditions • Catholicism • Jesuits
Damião Duque de Farias / Revista de História 150 (1º - 2004), 81-95
Texto e Contexto
Neste ensaio bibliográfico analisaremos a obra A Igreja dos Quatro Séculos
de São Paulo - 1554-1954, composta no ano dos festejos do IV Centenário da
capital paulista e publicada pela Editora Documentários Nacionais Ltda. em
1955. O volume traz uma coletânea de textos (alguns originais e outros não)
de vários autores pertencentes ao Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo
(entre eles, Enzo Silveira), à Academia Paulista de Letras (por exemplo, J. P.
Leite Cordeiro) e à própria Igreja Católica (vide o Cônego Luiz Castanho de
Almeida). Escritores filiados a outras entidades literárias e científicas também
figuram, em menor número, no crédito dos autores1.
Podemos, com alguma liberdade, dividir o conjunto dos artigos apresenta-
dos na obra a ser analisada em dois grupos: o primeiro empreende uma análise
histórica e simbólica da presença da Igreja na cidade de São Paulo e, por extensão
(como veremos), no Estado de São Paulo e no Brasil. Esse grupo é constituído
por dois subgrupos: um composto pelos cinco primeiros artigos e o décimo pri-
meiro, intitulado “A Igreja em São Paulo, no Período Imperial”, de autoria do
Cônego Luiz Castanho de Almeida, e o outro constituído por outros nove artigos,
82 que compõem um quadro simbólico da presença da instituição católica em São
Paulo, apresentando resumos biográficos, dados genealógicos, símbolos oficiais,
etc. O artigo do Cônego Luiz Castanho de Almeida, isolado dentre os artigos
que compõem o primeiro subgrupo, demonstra, como observaremos, uma leitura,
consciente ou inconsciente, da história da Igreja em São Paulo.
O segundo grupo é composto de três partes: da primeira consta uma relação
de lugares públicos que receberam nomeação católica; a segunda refere-se às
igrejas e capelas da cidade de São Paulo; quanto à terceira, alude às paróquias
da Arquidiocese de São Paulo e ao trabalho social e religioso desenvolvido
por elas. Parece-nos que a intenção geral desse segundo grupo é demonstrar
o gigantismo da estrutura, a força e o trabalho da Igreja a acompanhar o desen-
volvimento da grande metrópole brasileira, uma cidade que carrega consigo
certos símbolos ligados ao trabalho, ao desenvolvimento, à modernidade.
1
O exemplar por nós analisado encontra-se no Arquivo D. Duarte Leopoldo e Silva, da
Cúria Metropolitana de São Paulo. Nele há uma nota introdutória de D. Carlos Carmelo
de Vasconcello Motta, então Arcebispo de São Paulo, aprovando elogiosamente a pu-
blicação da obra.
Damião Duque de Farias / Revista de História 150 (1º - 2004), 81-95
Neste trabalho, focaremos nossa análise apenas nos textos que tratam dire-
tamente da presença católica na história paulista e brasileira, compondo uma
narrativa historiográfica.
Para fundamentar nossa leitura, pareceu-nos interessante levantar alguns
elementos do contexto no qual está inserido nosso objeto de análise. Eviden-
temente o primeiro desses elementos são as comemorações do IV Centenário
da cidade de São Paulo, ocorridas em 1954. Nesse sentido, podemos considerar
que A Igreja dos Quatros Séculos de São Paulo: 1554-1954 é também uma
obra comemorativa, festiva. Possivelmente esse elemento suscitou uma análise
histórica da presença da Igreja em São Paulo mais gloriosa do que crítica. Com
essa afirmação, deixamos claro a presença de um certo valor relativo, haja vista
que a análise contida na obra em questão foi uma iniciativa da hierarquia, cuja
visão histórica até então estivera conformada pelos valores heróicos e positivos
que marcaram (e marcam) parte de nossa historiografia.
As festividades do IV Centenário têm sua importância realçada quando
consideramos que sobre o nascimento da cidade paira a iniciativa do Padre
Manuel da Nóbrega, considerado o primeiro grande nome da Igreja Católica
em terras paulistas e brasileiras. Nesse sentido, a hierarquia católica, acom- 83
panhada pela “Legião de São Paulo Pró-Catedral”, reuniu todos os esforços
com o fito de, na data considerada como a do IV Centenário da fundação da
cidade, ou seja, em 25 de janeiro de 1954, inaugurar a nova Catedral da Sé,
após décadas de trabalho de construção. Com esse ato pretendiam não só re-
lembrar a atuação de Nóbrega 400 anos antes, mas também marcar a impor-
tância e a presença católica na cidade de São Paulo. No Boletim Eclesiástico
da Arquidiocese de São Paulo, de janeiro de 1954, lemos o seguinte:
ja, a dignidade máxima que pode receber uma Diocese, está agora
condignamente abrigada em São Paulo.
2
Ver: FARIAS, Damião Duque de. Em defesa da ordem: aspectos da práxis conservado-
ra católica no meio operário em São Paulo (1930-1945). São Paulo: História Social/ USP,
Ed. Hucitec, 1998.
Damião Duque de Farias / Revista de História 150 (1º - 2004), 81-95
3
Conf. FARIAS, Damião Duque de. Crise e renovação na Igreja Católica em São Pau-
lo: impasses do progressismo e permanências do conservadorismo (1945-1975). Tese
de Doutorado, FFLCH-USP, 2002.
Damião Duque de Farias / Revista de História 150 (1º - 2004), 81-95
tual, material para maior renome da Nação em cuja história seus filhos ins-
creveram numerosos e tão gloriosos florões por vezes repassadas da maior
grandiosidade.” (A Igreja... 1955: 43).
Vejamos um trecho de “Súmula História de Quatro Séculos” de Antonio
de Arruda Camargo:
5
“Sete anos: combatendo índios, febres paludes/ Feras, reptis, — contendo sertanejos
rudes,/ Dominando o furor da amotinada escolta .../ Sete anos!... ei-lo de volta, enfim,
com seu tesouro! / Com que amor, contra o peito, a sacola de couro / Aperta, a transbor-
dar de pedras verdes! — volta ... / Mas um desvão da mata, uma tarde de sol posto, /
Pára. Um frio livor, se lhe espalha no rosto... / É a febre: o Vencedor não passará dali! /
É a febre: é a morte. / E o Herói, trôpego e envelhecido, / Roto, e sem forças, cai junto
do Guaicuí .../ Na terra que venceu há de cair vencido”.
Damião Duque de Farias / Revista de História 150 (1º - 2004), 81-95
6
“Não terá sido sem particular desígnio da Providência. Se de São Paulo partiram os
destemidos bandeirantes, que, deslocando o meridiano de Tordesilhas, alargaram consi-
deravelmente as fronteiras da então colônia portuguesa – em que outros ombros mais
robustos poderia descansar a responsabilidade de manter íntegro o território da nova nação
que surgia no continente americano? A que outros braços mais afeitos ao manejo das
armas se havia de confiar a defesa da terra e da gente brasileiras, entregues doravante à
sua própria sorte? E em que outros peitos mais fundo se radicara a invicta paixão da li-
berdade?” Discurso proferido por ocasião da comemoração da Independência do Brasil,
provavelmente de Dom Carlos Motta, s/data.
Damião Duque de Farias / Revista de História 150 (1º - 2004), 81-95
Com base nesses atos, pode-se dizer que Nóbrega é, para os autores ora
analisados, o fundador da Nação na representação dominante que conhecemos:
seu território e sua unidade religiosa. Para completar o quadro, falta ainda con-
siderar a formação do povo nacional, da sociedade brasileira em seus aspectos
social e moral. Aqui também a obra jesuítica teria sido de destaque.
Evidentemente o povo nacional em formação era composto por índios e
mestiços catequizados pelos jesuítas e que estabeleceram alianças com o colo-
nizador português. Antonio de Arruda Camargo anota que o cacique Tibiriça,
sogro de João Ramalho, é considerado a origem simbólica desse povo em for-
mação. “Martim Afonso - nome que adotou quando recebeu o batismo, em
homenagem ao grande amigo, cujas virtudes tanto admirava - Tibiriça é o enca-
deamento dos fatos. É o tronco, o primeiro varão da terra. A origem do povo
paulista.” (A Igreja... 1955: 61)
91
Aqueles considerados rebeldes ao cristianismo e às intenções dos coloniza-
dores eram desqualificados como povo nacional. Serão estrangeiros em suas
próprias terras, caçados, guerreados e mortos, como no episódio da Guerra
dos Tamoios. O plano colonizador de Nóbrega apresentava, pois, a intenção
de catequizar e aliciar para o trabalho os milhares de índios do Novo Mundo.
Assim, Ferreira analisa o Plano de Jesuíta Provincial:
Iniciado com Tomé de Souza e prolongada até Mem de Sá, cerca de vinte
anos, a obra de Nóbrega não tem paralelo na história do Brasil e na Histó-
ria de São Paulo. E São Paulo foi fundada por Manoel da Nóbrega, por ser
o posto-chave da colonização e da catequese. (A Igreja... 1955: 58).
Ou seja: São Paulo não se tornou apenas o “posto-chave”, ele já o era antes
da escolha: este era o seu destino.
Como se vê, em A Igreja dos Quatro Séculos de São Paulo - 1554-1954, a
análise da presença da Igreja nos quatro séculos de São Paulo foi reduzida ao
período colonial, com destaque para os seus primórdios e a atuação de Manuel
da Nóbrega na colônia portuguesa. Os demais períodos, o imperial e o repu-
92
blicano, carecem de textos analíticos. Quanto ao período imperial, temos um
único texto de dimensões reduzidas e que aparece separado, na estrutura do
livro, dos demais textos de análise histórica. Para o período da República não
há textos analíticos. Por quê ?
Ao tentar responder à questão, podemos levantar dois argumentos, ainda
que inseguros:
Referências Bibliográficas
A Igreja dos Quatro Séculos de São Paulo: 1554-1954. São Paulo: Editora
Documentários Ltda, 1955.
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,
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96
Cielo G. Festino / Revista de História 150 (1º - 2004), 99-127
ARTIGOS
97
A HISTÓRIA NAS ESTÓRIAS
DAS MULHERES DO RAJ
Cielo G. Festino*
Doutoranda em Letras Modernas - FFLCH/USP
Resumo
Nosso artigo tem como intuito mostrar a centralidade da literatura das
mulheres do Raj durante a presença do império britânico no subcontinente
indiano. Com esse propósito analisaremos três contos, escritos entre o
fim do século XIX e início do século XX, para mostrar como essas escrito-
ras vão além dos limites da ficção do pitoresco, o local epistmológico a
que elas são relegadas pelo discurso imperial, para expressar a sua visão
da história colonial.
Palavras-Chave
História • Estória • Pitoresco • Anedota • Hermenêutica do Cotidiano
Abstract
In this article we propose to discuss the relevance of the literature written
by the women of the Raj during the time of the English Empire on the
Indian subcontinent. Therefore we will interpret three short stories written
at the end of the nineteenth and beginning of the twentieth century to show
how these women writers go beyond the ‘literature of the pictureseque’,
the epistemological locus in which they are imprisoned by imperial
discourse, in order to express their own views on colonial history.
Keywords
History • Fiction • Picturesque • Anecdote • Hermeneutics of everyday life
* Bolsista do CNPq.
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I. Introdução
O propósito do presente artigo é elaborar uma releitura de textos literários
escritos pelas mulheres do Raj (governo imperial inglês na Índia) com o intuito
de mostrar como, embora reduzidos ao pitoresco, o anedótico e o cotidiano
são centrais no projeto da história colonial. Essas narrativas pertencem à
tradição literária “anglo-indiana”, ou seja, a literatura inglesa sobre a Índia
escrita principalmente pelos oficiais coloniais ingleses, suas mulheres,
viajantes e demais ingleses residentes no sub-continente, na segunda metade
do século XIX e primera metade do século XX.
Segundo Jacques Derrida, o conceito do suplemento carrega em si mes-
mo duas significações. Por um lado, o suplemento se acrescenta a si mesmo;
é um excedente, uma plenitude que enriquece uma outra plenitude mas, por
outro lado, o suplemento se acrescenta para substituir, se insinua no “lugar
de”. Se prencheer, é como preencher um vazio. Se representar e fizer uma ima-
gem, é pela omissão de uma presença (1992:83).
Entendemos que esse segundo caráter do suplemento, segundo a definição
de Jacques Derrida, se aplica às narrativas das escritoras do Raj porque, embora
100 pensadas como apêndice do discurso histórico colonial masculino no sentido de
que simplesmente acrescentam algo a um original, esses textos fornecem uma
visão aguda do choque cultural que teve lugar nesses anos entre ingleses e indianos,
a ponto de poderem ser entendidos como plenitude ou presença em justaposição
ao discurso sendo suplementado (Menezes de Souza 1994:61). Assim, essas
narrativas femininas parecem superar, implicitamente, nas palavras de Maria Odila
Leite da Silva Dias, “as polaridades tanto das relações de gênero como das
categorias de pensamento” que lhes são impostas (1994:373). No primeiro caso
porque, embora limitadas ao plano do ficcional e, por isso, entendidas como simples
gesto estético, são testemunhas da história de contato que se gerou a partir do
encontro entre colonizador e colonizado e, no segundo caso, devido a este
fenômeno, elas também pertencem ao marco das narrativas da história colonial.
Segundo nossa leitura, quanto mais as autoras tentam reduzir o narrado a
um gesto pitoresco, como que obedecendo à epistemologia imperial, mais se
destaca a consciência da importância histórica daquilo que está sendo contado
e fica mais claro que é nas entrelinhas da estória que a história é narrada.
Lemos essas estórias/histórias, então, como carregadas de “…sentidos implí-
citos, à margem do normativo e do institucional, que podem ser vislumbrados
nas entrelinhas, ou nos intervalos intertextuais, de certa forma sempre subver-
sivos da ordem, do permanente, cuja existência negam” (Silva Dias 1994:377).
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1
Nossa tradução.
2
Flora Annie Steel escreveu romances dentre os quais se destacam The Potter´s Thumb
(1894), On the Face of the Waters (1896), e coletâneas de contos como From the Five
Rivers (1893), The Flower of Forgiveness (1894), In the Permanent Way and Other Stories
(1898) e In the Guardianship of God (1903).
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3
Nossa tradução.
Cielo G. Festino / Revista de História 150 (1º - 2004), 99-127
Quem era Lâl? O que era ele? Essa era uma pergunta que eu fazia muitas
vezes: e embora ela fosse devidamente respondida, Lâl permanecia, e
permanece ainda, uma quantidade desconhecida – uma abstração, um
nome e nada mais. LAL. O mesmo de frente para trás, contido em si
mesmo, auto-suficiente (51)4
4
“Who was Lâl? What was he? This was a question I asked many times; and though it was
duly answered, Lâl remained and remains still, an unknown quantity – an abstraction, a name
and nothing more. LAL. The same backwards and forwards, self-contained, self-sufficing”.
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5
“Why Lâl was Lâl”.
6
“Baulked in my curiosity, I took refuge in business by inquiring what revenue Lâl paid
on his field. This was too much for the polite gravity of my hearers. The idea of Lâl paying
revenue was evidently irresistibly comic, and the venerable pantaloon choked himself
between a cough and a laugh, requiring to be held up and patted on the back”.
7
O tema da relação entre símbolo e signo foi um tema desenvolvido pelo Prof. Dr Lynn
Mario T. Menezes de Souza no curso de pós-graduação “Identidade e Narrativa” minis-
trado no Departamento de Letras Modernas da Universidade de São Paulo no segundo
semestre de 2002.
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8
“There are so many mysteries in Indian peasant life, safe hidden from alien eyes, that
I was lazily content to let Lâl and his field slip into limbo of things not thoroughly unders-
tood, and so, ere long, I forgot all about him.”
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Assim, de uma cena de perda ou ganho para outra, enquanto o sol bri-
lhava no céu claro. Por poças de água cristalina onde garças-azuis de
bico vermelho se equilibravam sobre uma perna, como se sentissem frio
no ar revigorante da manhã. Nos trechos desertos de areia onde córregos
límpidos e bandos de garças brancas combinavam para formar um bor-
dado prateado na imensidão marron. Por sobre o vau raso onde jacarés
narigudos entravam silenciosamente no córrego, ou ficavam imóveis
como sombras na areia escaldada pelo sol. Descendo o grande rio, onde
a água sinuosa se partia para a esquerda ou direita, e onde os anciãos
deitavam na água seus potes de barro para decidir qual dos dois córregos
iria provar sua força levando o maior número deles – uma questão de
peso, não facilmente resolvida, uma vez que a terra à oeste do grande
córrego pertencia a um vilarejo, e a terra à leste pertencia a outro (52)9.
9
“So from one scene of loss or gain to another, while the sun shone in the cloudless sky
overhead. Past pools of shining water where red-billed cranes stood huddled up on one
leg, as if they felt cold in the crisp morning air. Out on the bare stretches of sand where
glittering streams and flocks of white egrets combined to form a silver embroidery on
the brown expanse. Over the shallow ford where the bottle-nosed alligators slipped silently
into the stream, or lay still as shadows on the sun-baked sand. Down by the big river,
where the swirling water parted right and left, and where the grey-beards set their earthen
pots a-swimming to decide which of the two streams would provide its strength by bearing
away the greater number, -a weighty question, not lightly decided since the land to the
west of the big stream belonged to one village, and the land eastward to another”.
10
Mikhail Bakhtin (1981:425) define o “cronotopo” como uma unidade de análise para estu-
dar a natureza das categorias temporais e espaciais representadas nos textos. A diferença desse
conceito com outros usos de tempo e espaço na análise literária encontra-se no fato de que
nestes ambas categorias são interdependentes e, portanto, nehuma delas é privilegiada.
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cartesiano, vive entre o presente e o futuro. Assim, ao fixar o Outro numa ima-
gem pitoresca que o desfigura, a escritora coloca-se numa situação de controle
e poder que a protege frente ao desconhecido.
Nesse sentido, o indiano é apresentado como um ser sem qualquer tipo de
conhecimento científico, já que para os ingleses os seus métodos de controle sobre
a natureza, como no caso das enchentes do Hindus, são irracionais. Por sua vez,
o narrador é um funcionário do governo, que todo ano vem, com seu conhecimento
onipotente, tentar controlar até os rios da Índia a serviço da coroa britânica:
Pois ano após ano, armado da majestade da lei e escudado por réguas
e mapas, o Governo da Índia, na pessoa de um de seus oficiais, vinha
gravemente e alterava as proporções de terra e água na superfície do
globo, enquanto o rio gorgolejava e formava covinhas, como se risse
furtivamente (50)11.
11
“For year after year, armed by the majesty of law and bucklered by foot-rules and maps,
the Government of India, in the person of one of its officers, came gravely and altered
the proportions of land and water on the surface of the globe, while the river gurgled and
dimpled as if it were laughing in its sleeve”
12
“But the ruthless iron chain would come into requisition, and another green spot be
daubed on the revenue map, for Governments ignore chance. And still dimpled and gurgled
with inward mirth; for if it gave the vetch, had it not taken the wheat?”
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13
Nossa tradução.
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os ingleses ele foi visto como uma conspiração que confirmava a barbárie dos
indianos, já tantas vezes representada nos textos dos Orientalistas14, o que, por
sua vez, justificava a presença inglesa na Índia como parte da missão civilizadora.
Assim, o Amotinamento tornou-se não só um dos temas principais da nar-
rativa histórica inglesa na Índia mas também motivo de uma literatura melo-
dramática que encontrou inspiração nas atrocidades perpetradas nos sangrentos
eventos. Como assinala Patrick Brantlinger em seu livro Rules of Darkness,
nenhum outro episódio da história imperial britânica teve tanta repercussão
nem produziu tantos artigos de jornais e narrativas históricas e ficcionais como
o Amotinamento de 1857 (1988:199).
Muitas dessas narrativas foram escritas por mulheres, ainda que tempos
depois do Amotinamento, com o objetivo não só de relembrar os fatos, mas
porque o temor de um novo levante estava sempre presente. Tal é o caso do
conto “Ann White” de Alice Perrin.
O público alvo dessa escritora, conforme Benita Parry, eram os ingleses
back home, bem como os anglo-indianos. Seus livros mais conhecidos são duas
coleções de contos, East of Suez (1901) e Red Records (1906), que apresentam
110 mistérios, horrores e uma obsessão pela morte violenta e desastres sinistros.
Em “Ann White” a memória de 1857 é recriada através da figura fantasma-
górica de uma velha mulher, sobrevivente do Amotinamento, cuja mente, ainda
na sua velhice, está fixada nesses eventos, sobretudo no momento em que ela
foi deixada na floresta, vestida com roupas nativas como um último gesto de
desespero da sua mãe para salvar sua vida. Desde então, ela representa para a
14
Segundo Patrick Brantlinger em Rules of Darkness (1988), “A causa imediata da rebe-
lião foi munição para os rifles Enfield; os soldados do exército bengalês suspeitavam
que os cartuchos haviam sido untados com gordura de vaca e porco. As pontas de papel
tinham que ser arrancadas com a boca antes de ser usadas, e uma vez que gordura de
vaca era tabu para os hindus e gordura de porco para os muçulmanos, os britânicos pare-
ciam estar forçando os dois grupos de soldados a cometer um sacrilégio. Havia, é claro,
causas mais importantes – Disraeli disse no Parlamento que ‘a ascenção e queda dos
impérios não são uma questão de cartuchos untados’ – mas a maioria dos analistas bri-
tânicos encontraram insatisfação somente entre os regimentos de nativos, o que os pou-
pou de admitir uma agitação generalizada. Entre os historiadores britânicos e indianos,
o debate ainda se dá sobre se o levante foi apenas um ‘motim’ militar, ou uma ‘rebelião
civil’, bem como, ou como nacionalistas indianos sustentaram, ‘a primeira guerra de
independência da Índia” (200-201) (nossa tradução).
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O que primeiro parece chamar atenção do leitor é o fato de que esses mor-
tos, segundo a narradora, são vitimas da Índia e não do projeto de conquista
colonial. A presença inglesa no subcontinente nunca é questionada, o que indi-
retamente mostra o posicionamento ideológico da narradora.
Nesse momento, o túmulo de uma mulher chamada Ann White, lembra a
narradora de um outro túmulo, também de uma mulher, chamada Ann White
na Índia. Revelando o caráter misterioso da estória, que denota as convenções
da literatura romântica vitoriana, a narradora entra num estado de vigília e
15
“…people who have lived in the East feel the heat more severely than those who have
never experienced months on end of stifling days and nights, pitiless metallic skies, the
white glare of a death-dealing sun.”
16
“As I glanced about me I thought what a contrast to the arid cemeteries I had seen in
India, with their neglected memorial to victims of exile, all the tragic inscriptions that
told of untimely deaths; women and children who in England might have recovered from
sickness, men cut off in their youth, or when long-looked-for retirement was in sight;
sometimes whole families swept off by cholera”.
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“Drowsed by the warm perfume and peace, I let the history of that other Ann White
steal through my mind slowly, dreamily.”
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“The first time I saw her was at the beginning of the hot weather, soon after I had arrived
in India to keep house for my brother. She was seated, with an untidy-looking ayah,
squatting beside her, on the edge of the old concrete bandstand that still remained at one
end of the deserted parade-ground. […] I remember remarking to my brother as we rode
past the bandstand, that it was surely unusual to see an Englishwoman of that age living
in India – who was she? And Tom said indifferently, he didn´t know; he believed there
was some legend about the old lady, but he couldn´t remember. What did it matter?”
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“Being of an imaginative, or, perhaps, more truthfully, an inquisitive disposition, I felt
a longing to ferret out the old lady´s history. What was she doing in India at her time of
life, and looking like a ghost from the past, dressed in a poke bonnet and a voluminous
greygown? She might almost have been wearing a crinoline. There must have been some
interesting story”.
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No seu romance The Devil´s Wind. Nana Saheb´s Story (New York: The Viking Press,
1972) o escritor indiano Manohar Malgonkar narra o Amotinamento de 1857 da perspec-
tiva indiana. A estória/história é narrada para os ingleses por Nana Saheb, uma persona-
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Ciente desse conflito, Perrin faz uma digressão indo da narrativa ficcional
para a narrativa da história, e assim cruzando as barreiras do gênero, problema-
tiza a questão dos missionários na Índia e os mostra através de duas perspec-
tivas: a da colônia inglesa residente no subcontinente e a dela própria, uma
recém chegada:
114 Porém, por meio de sua narradora, Perrin oferece uma perspectiva diferente
sobre o trabalho dos missionários no sentido de que, embora nem sempre
eficazmente, o seu propósito seria resgatar os indianos de sua “ignorância”.
gem mais cruel do que Napoleão, para os indianos o primeiro líder no caminho à indepen-
dência. Ele explica que o incidente dos cartuchos com gordura de porco e vaca era enten-
dido pelos indianos como uma manobra, por parte dos ingleses, de conversão massiva
ao cristianismo: “O rumor de que os britânicos estariam tramando uma conversão em
massa do exército por meio dos novos cartuchos havia se espalhado com a velocidade de
uma brisa de monsão”(105). Também, “Agora a Companhia [da Índia Oriental] estava
tentando uma conversão em massa das cidades adulterando farinha de trigo com sangue
e ossos de vacas e porcos. Os portugueses não haviam feito o mesmo em Goa – converti-
do vilarejos inteiros jogando carne bovina dentro dos poços comunitários? Esses eram
os dispositivos reconhecidos do proselitismo” (133) (nossa tradução).
21
“The other ladies in the mission assured me that when I had lived long in India I should
realize that the ardour of missionaries like Mr Grigson did more harm than good, interfering
with ancient faiths that suited the people, forcing new wine into old bottles, often making
trouble in the bazaars where already trouble enough was brewing. Here in Jutpore, for
example, it was well known that a strong feeling existed against mission influence. Anything
at any moment might lead to a riot, the missionaries would be the first to suffer if the mob
got out of hand, and then probably we should all have our throats cut”.
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“I grew to appreciate understand and appreciate their efforts, to share their conviction
that though the work might seem but a scratch on the surface of idolatry, it was infinitely
worth while, and must lead eventually to a deep undermining of ignorance and superstition
among a people steeped in Nature worship, cruelly oppressed by higher castes, the
priesthood, and indirectly by each other”.
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na estrutura do colonialismo, e que fronteira pode ser traçada entre sua conivência
e seu confinamento na colonização do subcontinente23” (1992:76). Entendemos
que a resposta que Suleri dá a essa pergunta é que a mulher inglesa está duplamente
confinada, geograficamente no espaço colonial, como apontado anteriormente, e
textualmente por meio do discurso restritivo do belo e do pitoresco.
Elas são cativas de um sistema colonial de governo que impõe o seu des-
locamento geográfico para a Índia com o intuito de usá-las como barreira entre
o homem inglês e a mulher indiana, entendida essa última como a grande amea-
ça à pureza da raça branca.
Como as indianas, as inglesas também personificam a sua tradição: “A
mulher anglo-indiana estava na Índia como símbolo do lar inglês; ela era a
personificação de tudo o que o inglês deve proteger. Ela era uma salvaguarda
contra os perigos apresentados pela mulher oriental24” (Suleri 1992: 76). Po-
rém, comparada à mulher inglesa, a mulher indiana, que também devido ao
duro sistema patriarcal vive confinada na zenana25, é paradoxalmente mais
independente. Como explica Suleri, isto deve-se ao fato de que os filhos das
mulheres indianas fazem parte da sua vida, enquanto a mulher inglesa tem
116 que se separar muito cedo de seus filhos quando estes são enviados para estudar
na Inglaterra a fim de conservar a pureza da raça e da cultura. Tudo isso vem
mostrar que as arrogantes memsahibs, como as mulheres inglesas têm sido
muitas vezes representadas, são também vítimas da violência de um sistema
colonial que produz uma crise na estrutura familiar ao provocar seu desloca-
mento da Inglaterra para outro local do império. Então, embora o gênero do
pitoresco tente restringir o poder de expressão da mulher anglo-indiana, a lite-
ratura, como terceiro espaço, é uma das saídas que essa mulher tem para esca-
par dos papéis normativos que lhe são impostos.
Um dos contos mais refinados da tradição Anglo-Indiana que narra a sepa-
ração traumática entre mães e filhos é “Uma mãe na Índia” (1903) escrito,
como já apontado, não por uma escritora inglesa mas por uma canadense, Sara
Jeannette Duncan (1861-1922), que emigrou para a Índia aos trinta anos com
seu marido, curador do Museu de Calcuttá, e passou o resto de sua vida entre
23
Nossa tradução.
24
Nossa tradução.
25
Área de uma casa indiana onde as mulheres da familia vivem em reclusão.
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Ela tinha apenas cinco semanas de vida quando o médico nos disse
que deveríamos levá-la para casa imediatamente ou a perderíamos, e
no dia seguinte John pegou uma disenteria. Então Cecily foi enviada
para a Inglaterra com a mulher de um sargento que havia perdido seus
gêmeos, e eu me coloquei sob a orientação de um médico nativo para
lutar pela vida do meu marido, sem gelo ou comida adequada, ou um
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“She was just five weeks old when the doctor told us that we must either pack her
home immediately or lose her, and the very next day John went down with enteric. So
Cecily was sent to England with a sergeant´s wife who had lost her twins, and I settled
down under the direction of a native doctor, to fight for my husband´s life, without ice or
proper food, or sick-room or comforts of any sort. Ah! Fort Samila with the sun glaring
up from the sand!”.
27
“Meanwhile we noted the weekly progress with much the feeling one would have about
a far-away little bit of property that was giving no trouble and coming on exceedingly
well. We would take possession of Cecily at our convenience; till then, it was gratifying
to hear of our earned increment in her little dimples and sweet little curls” (77)”.
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Ela veio a meio caminho; suponho que nossos olhares foram muito
fixos, absortos demais, pois lá ela parou com um grito de terror diante
dos rostos estranhos, e voltou correndo para os braços abertos de sua
tia Emma. A coisa mais natural do mundo, sem dúvida. Eu caminhei
até uma cadeira em frente com minha bolsa e guarda-chuva e me sen-
tei – uma espectadora, distante e silenciosa [...] Não é divertido até
agora lembrar a raiva que eu senti. Eu não a toquei nem falei com ela;
eu simplesmente fiquei sentada observando minha posse alheia, com
o vestido que eu não havia feito e a faixa que eu não havia escolhido,
sendo induzida e protegida e afagada por tia Emma (78-79)28.
28
“Half-way she came; I suppose our regards were too fixed, too absorbed, for there she
stopped with a wail of terror at the strange faces, and ran straight back to the outstretched
arms of her Aunt Emma. The most natural thing in the world, no doubt. I walked over to a
chair opposite with my hand-bag and umbrella and sat down – a spectator, aloof and silent
[…] It is not amusing even now to remember the anger I felt. I did not touch her or speak
to her; I simply sat observing my alien possession, in the frock I had not made and the sash
I had not chosen, being coaxed and kissed and protected and petted by Aunt Emma”.
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eles se tornavam estrangeiros no seu próprio país. Duncan discute esse aspecto
dos coloniais quando, a bordo do navio que volta para a Índia, depois da sua
estadia na Inglaterra, a narradora reflete que:
O momento de ruptura cultural está marcado pelo novo apelo nacional “an-
glo-indiano”. Assim, a narradora mostra como a experiência colonial a coloca
num “terceiro espaço” que a torna uma estrangeira na sua própria cultura. Ela
mesma é uma curiosidade para os ingleses.
Em sua próxima viagem à Inglaterra, mãe e filha se olham através das duas
margens de um abismo cultural: “Nós passamos um verão agradável com uma
garotinha numa casa cujo interesse por nós era engraçado, e cujos passeios
120 era gratificante organizar; mas quando nós voltamos, eu não tive o desejo de
levá-la conosco. Eu achei que ela estava muito melhor onde estava” (81)30.
Uma vez mais de volta à Índia, a mãe se movimenta com o regimento de
seu marido: “Nós volltamos para a fronteira e o regimento viu muito serviço.
Isso significava medalhas e divertimento para meu marido, mas economia e
ansiedade para mim, embora eu conseguisse ter a permissão de chegar tão perto
da linha de fogo quanto qualquer mulher” (80)31. Que estória/história está sendo
29
“It was a Bombay ship, full of returning Anglo-Indians. I looked up and down the long
saloon tables with a sense of relief and solace; I was again with my own people. They
belonged to Bengal and to Burma, to Madras and to the Punjab, but they were all my
people. I could pick out a score that I knew in fact, and there were none in imagination
that I didn´t know”.
30
“We spent a pleasant summer with a little girl in the house whose interest in us was
amusing, and whose outings it was gratifying to arrange; but when we went back, I had
not desire to take her with us. I thought her very much better where she was(81)”
31
“We went back to the frontier and the regiment saw a lot of service. That meant medals
and fun for my husband, but economy and anxiety for me, though I managed to be allowed
as close to the firing line as any woman” (80).
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Cecily olhou para eles de soslaio. Para ela a atmosfera era estranha, e
eu percebi que de modo delicado e privado ela registrava suas objeções
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(...) Ela olhava com um lábio crispado para as mulheres que andavam
no convés com passos firmes, vestindo saias curtas e um tanto surra-
das, com as mãos nos bolsos de seus casacos falando de transferências
e promoções; e tendo se levantado às seis para fazer um esboço em
aquarela do nascer-do-sol, ela veio até a mim com uma profunda in-
dignação para dizer que tinha visto um homem de pijamas; sem dúvi-
da, pobre coitado, indo se barbear. Eu fui incapaz de convencê-la de
que não se esperava que ele fosse vestido encontrar o barbeiro (84)32.
Ao mesmo tempo, Cecily é vista por uma das mulheres a bordo como o
perfeito retrato da Inglaterra:
32
“Cecily looked at them in askance. To her the atmosphere was alien, and I perceived that
gently and privately she registered objections (…) She looked with a straightened lip at
the crisply stepping women who walked the deck in short and rather shabby skirts with
their hands in their jacket-pockets talking transfers and promotions; and having got up at
six to make a water-colour sketch of the sunrise, she came to me in profound indignation
to say that she had met a man in pyjamas; no doubt pour wretch, on his way to be shaved.
I was unable to convince her that he was not expected to visit the barber in his clothes”.
33
‘I think’, resumed Mrs Morgan, whose glance had wandered in the same direction, ‘that
Cecily is a very fine type of our English girls. With those dark grey eyes, a little prominent
possibly, and that good colour – it is rather high now perhaps, but she will lose quite enough
of it in India – and those regular features, she would make a splendid Britannia.’
34
“You don´t seem to see that the girl is protected by her limitations, like a tortoise. She
lives within them quite secure and happy and content.”
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35
“She responds instantly, intimately, to the beautiful everywhere”.
36
“I know – what you mean sunsets. Cecily is very fond of sunsets. She is always asking
me to come and look at them.”
37
“[Cecily] talked continually, she pointed out this and that, and asked who lived here
and who lived there. At regular intervals of about four minutes she demanded if it wasn´t
simply too lovely. She sat straight up with her vigorous profile and her smart hat; and
the silhouette of her personality sharply refused to mingle with the dust of the dynasty.
She was a contrast, a protest; positively she was an indignity. “Do lean back, dear child’,
I exclaimed at last. “You interfere with the landscape.”
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“Você não demorou”, disse [a mãe]. ‘Espero que você não tenha se apres-
sado por minha causa” ‘A Senhorita Farnham achou o mármore um pouco
124 frio sob seus pés”, respondeu Dacres, incluindo a Senhorita Farnham.”
“Sabe’ explicou Cecily, ‘Eu me esqueci tolamente de calçar um solado
mais grosso. Eu estou só de sandálias. Mas, mamãe, como é lindo! Va-
mos voltar durante o dia. Eu estou louca para fazer um desenho” (113)38.
38
“You have not been long”, said [the mother]. ‘I hope you didn´t hurry on my account”
‘Miss Farnham found the marble a little cold under foot”, replied Dacres putting Miss
Farnham in”.
“You see’, explained Cecily, ‘I stupidly forgot to change into thicker soles. I have only
my slippers. But, mamma, how lovely it is! Do let us come again in the daytime. I am
dying to make a sketch of it.”
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III. Conclusão
Entendemos que todas essas estórias não só historicizam a presença
britânica na Índia mas, denunciando o seu caráter iterativo ao tentar reproduzir
a perspectiva das narrativas imperiais, as transformam revelando o olhar da
mulher não só sobre aquilo que narra mas sobre sua própria situação nessa
estrutura colonial.
Que contam essas estórias? Revelando o olhar feminino, elas falam da
relação entre colonizador e colonizado, das diferenças culturais que os sepa-
ram, da ausência de interesse do europeu pelo Outro, do que há na consciência
coletiva dos anglo-indianos, presos entre duas culturas e, particularmente, do
confinamento da mulher e o seu desejo de subverter a ordem que lhe é imposta.
A história/estória nessas narrativas é contada de maneira oblíqua, a partir
de seus detalhes que parecem ofuscar o corpus principal. Como tentamos
demostrar, entendemos que isso é assim porque as mulheres na colônia têm
consciência do seu locus de enunciação. É como se elas não quisessem se
pronunciar em relação ao sistema imperial mas, o discurso as traísse. Por isso,
quanto mais tentam ocultar a narrativa que se adivinha nos interstícios do texto,
126 mais se insinuam e apagam os limites entre ficção e história.
Referências Bibliográficas
ASHCROFT, Bill et alli. The Empire Writes Back. London & New York:
Routledge,1989.
BHABHA Homi. ‘Freedom´s Basis in the Indeterminate” In The Identity Question.
London & New York: Routledge, 1992. (47-61);
BAKHTIN, Michael. The Dialogic Imagination. Michael Holquist, ed. Caryl
Emerson & M.Holquist, trad. Austin: University of Texas Press, 1990.
BRANTLINGER, Patrick. “The Well at Canwpore: Literary Representations of
The English Mutiny in 1857”. In Rules of Darkness. British Literature and
Imperialism, 1830-1914. Cornell University Press, 1988. (199-224).
BUTLER, Judith. “Fundamentos Contingentes: O Feminismo e a Questão do ‘Pós-
Modernismo’ ” In Cadernos Pagu. (11) 1998:pp.11-42.
DERRIDA, Jacques. Acts of Literature. New York & London: Routledge, 1992.
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128
NARRATIVA BIOGRÁFICA E ESCRITA DA HISTÓRIA:
OCTÁVIO TARQUÍNIO DE SOUSA
E SEU TEMPO*
Resumo
O objetivo do artigo é analisar valores e concepções que informaram a
discussão sobre os usos da biografia entre as narrativas historiográficas,
tomando como referência textos assinados por Octávio Tarquínio de Sousa,
nas décadas de 1930 a 1950.
Palavras-Chave
Biografia • História • Modernismo • Estudos Brasileiros • Historismo
Abstract
The objective of the article is to analyze the conceptions about the uses
of biography and the writing of history, between 1930 and 1960, taking
as reference texts signed by Octávio Tarquínio de Sousa.
Keywords
Biography • Historical Thought • Modernism • Brazilian Studies •
Historicism
*
Esse artigo corresponde a uma versão condensada de algumas análises realizadas em
minha tese de doutorado – Em terreno movediço: biografia e história na obra de Octávio
Tarquínio de Sousa – desenvolvida no programa de Pós-graduação da FFLCH/USP, área
de História Social, sob a orientação do Prof. Dr. Elias Thomé Saliba.
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1
A criação da ABDE simbolizou uma das primeiras iniciativas, por parte de alguns intelec-
tuais, de usar o associativismo corporativista, tão em voga na década de 1930, contra os
excessos do autoritarismo do Estado Novo. Entre os fundadores figuraram: Octávio Tar-
quínio de Sousa, Sérgio Buarque de Holanda, Astrojildo Pereira, Graciliano Ramos, José
Lins do Rego, Sérgio Milliet, Mário Neme, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Abguar
Bastos, Lourival Machado, Paulo Emílio Sales Gomes, Antônio Cândido Melo e Souza,
Dionélio Machado, Érico Veríssimo, Reinaldo Moura e Raul Riff. O nome da nova agre-
miação profissional, associado ao conjunto de seus primeiros organizadores, imputava
ao substantivo escritores uma designação adequada aos valores da época, posto que, abar-
cava todos os que procuravam viver da palavra escrita, nas suas variadas materializações:
o romance, o ensaio sociológico, a crítica literária, a biografia, a poesia, a história. En-
tre algumas das iniciativas da ABDE, destacaram-se, no campo das reivindicações pro-
fissionais, a elaboração do projeto de reconhecimento e regulamentação dos direitos
Márcia de Almeida Gonçalves / Revista de História 150 (1º - 2004), 129-155
como tantos outros textos, nos esforços analíticos de decifração, por vezes de
monumentalização, do caráter nacional brasileiro.
Tarquínio de Sousa compreendeu o uso da biografia na escrita da história
política nacional como fórmula testada com sucesso e exemplaridade por
Joaquim Nabuco – Um Estadista do Império – e por Oliveira Lima – D. João
VI no Brasil. Quis, num certo sentido, dar continuidade a essa maneira peculiar
de escrever história, produzindo biografias em consonância com os ventos de
renovação que o gênero veio a sofrer, durante a década de 1920. Houve, nesse
sentido, uma moderna tradição a informar duplamente, e em estreita corres-
pondência, a escrita de biografias e a produção historiográfica de Octávio
Tarquínio de Sousa.
Biografias modernas
Na introdução de seus ensaios sobre o desenvolvimento da biografia na
Grécia antiga, Arnaldo Momigliano elaborou algumas rápidas considerações
sobre o que ele denominou de papel ambíguo da biografia entre as pesquisas
históricas. A referida ambigüidade estaria associada à questão de que a bio-
132 grafia tanto poderia ser uma ferramenta quanto uma fuga das investigações
sociais. A discussão justificava a relevância do assunto tratado em seus ensaios:
a história da biografia e de suas relações com a historiografia, no universo de
seus inventores – os gregos antigos (Momigliano 1993: 1-7).
As análises de Momigliano sobre o desenvolvimento da biografia entre
os gregos foram publicadas em 1971, e corresponderam a conferências pro-
feridas na Universidade de Harvard, em 1968. Inventariando polêmicas acerca
das fronteiras e interseções entre a biografia e a história, Momigliano concluía
que, no momento em que realizou suas conferências, poucos duvidavam de
que a biografia fosse um tipo de história, o que, na época, finais da década de
1960, numa certa medida, parecia ser um tanto paradoxal, se comparado às
controvérsias que agitaram a discussão sobre competências e campos do fazer
biográfico e do fazer historiográfico, nas décadas iniciais do século XX.
Nesse período, segundo Momigliano, a distinção entre história e biografia,
numa certa leitura, atribuída às obras de Políbio e também de Plutarco, estava
sendo negada por turbulentos clamores internacionais, protagonizados, entre
outros, na Alemanha, por Emil Ludwig (1881-1948), na França, por André
Maurois (1885-1967) e, na Inglaterra, pelo polêmico Lytton Strachey (1880-
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3
Entre os textos que tematizaram a discussão sobre a biografia moderna destaque deve
ser conferido ao livro de Daniel Mandélenat – La biographie, Paris: PUF, 1984 -, o qual,
ao analisar a história da biografia, distinguiu e caracterizou três paradigmas: a biografia
clássica, a biografia romântica e a biografia moderna. Essa última, em particular, foi
associada ao relativismo ético, à psicanálise e às transformações da epistemologia his-
tórica, no alvorecer do século XX.
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4
A residência dos Strachey foi um dos pontos de encontro do grupo de Bloomsbury. O
nome de um bairro londrino tornou-se a designação de um conjunto de amigos que estu-
daram em Cambridge, no Trinity ou no King’s College, compondo um círculo de escrito-
res, intelectuais e artistas, do qual participaram Leonard e Virgínia Woolf, Arthur Valley,
Clive e Vanessa Bell, irmã de Virgínia, Roger Fry, John Maynard Keynes, entre outros
(Strachey 2001: 9-21).
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(...) É óbvio que a História não é uma ciência; é óbvio que a História
não é uma acumulação de fatos, mas a relação entre eles (...) Fatos rela-
cionados ao passado, se forem coletados sem arte, serão compilações,
e compilações, sem dúvida, podem ser úteis, mas elas não são Histó-
ria, tanto quanto manteiga, ovos, sal e temperos não são uma omelete.
(Maurois 1929: 110-111)
Publicar uma biografia, ou anunciá-la como tal e não como um romance, seria
o anúncio de fatos autênticos, aliás a moeda de troca e de confiabilidade entre
o biógrafo e seus leitores. O biógrafo, nesse sentido, deveria ao máximo pro-
curar ser fiel àquilo que o biografado de fato vivenciou e sentiu no curso de
sua existência (Maurois 1929: 131-132).
Conclamando a fala hipotética de um historiador, Maurois alertava para os
problemas do método biográfico; problemas associados ao infinito cuidado, à
absoluta honestidade, à fixação de nunca alterar fatos singulares. Ciente dessas limita-
ções, e posando de biógrafo crítico de si mesmo, Maurois asseverava uma espécie
de tautologia: a despeito de todos os problemas, não haveria outro método. Se o fato
científico poderia vir a ser explicado por procedimentos de análise e de síntese, o
entendimento de um ser humano e de sua inevitável complexidade não poderia ser
resumido a uma exaustiva compilação de detalhes (Maurois 1929: 133).
Se o biógrafo, entre dificuldades, cuidados e hesitações, poderia fazer da bio-
grafia um meio de expressão, em uma dimensão diferenciada, o mesmo teria valor
para os leitores dessas narrativas de vida. Como textos dessa natureza, com a preten-
são de alcançar o realismo, as biografias poderiam guardar, em suas páginas, exem-
142 plos comportamentais para leitores ávidos pelas existências alheias.
A recepção e as apropriações do texto biográfico pelos leitores ditavam, por
sua vez, as possibilidades de uso pedagógico e moral dessas narrativas de vida.
Se isso denotava um valor de uso para as biografias, em especial daquelas cujos
protagonistas já fossem considerados notáveis, incorria, paralelamente, em mais
uma responsabilidade por parte do biógrafo na realização de seu ofício. Maurois
finalizava suas considerações sobre a biografia como meio de expressão, aler-
tando para a prudência em não fazer da narrativa de vida de um homem um repo-
sitório de moralismos, que, à sua maneira, poderiam também representar, excesso
de subjetividade por parte das impressões do biógrafo.
As últimas considerações de André Maurois dedicaram-se, respectiva-
mente, à autobiografia e às relações entre biografia e romance. Retomando
questões discutidas anteriormente, em particular as que versaram sobre as
possibilidades e limites de conhecer a verdade sobre um homem, o autor fran-
cês acrescentou mais algumas inferências sobre o fazer biográfico.
Entendendo a autobiografia como uma derivação da biografia, André
Maurois encontrava, nas particularidades dos métodos autobiográficos, argu-
mentos preciosos sobre as limitações intrínsecas ao conhecimento da verdade
acerca da vida de um homem. Haveria uma espécie de ilusão autobiográfica
a ser lembrada, nos termos de que nenhum homem guardava lembranças
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5
A despeito do ceticismo, ou de sua maneira muito peculiar de caracterizar a natureza
humana – o ser complexo, em constante mudança, escravo da transitoriedade do tempo
– André Maurois finalizou sua conferência sobre autobiografia enumerando e comen-
tando textos qualificados como satisfatórios, na qualidade de trabalhos autobiográficos.
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contos das mil e uma noites. Para que a vida de Sherazade viesse a ser poupada,
a história que estivesse a narrar, sendo a de um único homem, suas desventuras
e esperanças, deveria primar pela cadência envolvente e provocativa da curio-
sidade sobre o desenrolar da trama, já que o final – a morte do biografado –,
a princípio, seria esperado (Maurois 1929: 137-138).
Para Maurois, a sobrevivência de Sherazade dependeria, em larga medida,
do sujeito biografado, não só pelas especificidades de sua trajetória de vida, como
também, pela forma como essas viessem a ser sistematizados pelo biógrafo.
Seria, nesse ponto, fundamental fazer do biografado o Homo Biographicus, uma
terceira categoria diferente do Homo Sapiens e do Homo Fictus. À sua maneira,
abusando de imagens irônicas, André Maurois concebia cada um desses como
espécimes habitantes de mundos correlatos, porém diferentes: a vida real, o espa-
ço ficcional e o universo particular da narrativa biográfica. O autor francês afir-
mava sua concepção acerca da biografia: o produto resultante da difícil junção
entre técnica e intuição. Estava, sem dúvida, a dignificar o gênero biográfico e
mais, a valorizar uma certa maneira de escrever biografias, onde aliás, ele próprio
figurava como entusiasta e divulgador (Maurois 1929: 199-203).
144
Em busca de homens históricos
As indagações de Maurois, no momento de sua emergência, tornaram-se uma
matriz importante de idéias sistematizadas acerca dos usos, valores e características
do gênero biográfico. Proferidas em inglês, publicadas em francês, traduzidas para
o inglês, entre 1928 e 1929, as lectures de Maurois circularam nas prateleiras de
livros de intelectuais de outras terras e línguas, aportando em solo brasileiro, para
a alegria ingênua dos bacharéis que liam avidamente tudo que da França brotasse.
A apropriação desse debate animou letrados brasileiros a desejar que, tam-
bém no campo das narrativas de vida – biografias, memórias, autobiografias
– viéssemos a superar o “atraso” frente às últimas inovações européias. Inte-
ressante constatar que o debate sobre a renovação do gênero biográfico ocorreu
em paralelo e, em relação direta, ao crescimento da publicação de histórias
de vidas individuais. Na leitura de Alceu Amoroso Lima assistiu-se a uma ver-
dadeira epidemia biográfica (Lima 1931: 165-177). Mais do que um mero
fenômeno quantitativo, a epidemia biográfica existiu como tema propulsor,
caro a muitos dos que se dedicaram à critica literária na época, e que, no exercí-
cio dessa atividade intelectual, estabeleceram as dimensões e significados da
dita biografia moderna no conjunto da produção bibliográfica brasileira.
Márcia de Almeida Gonçalves / Revista de História 150 (1º - 2004), 129-155
Não pretendendo esgotar, nos limites desse artigo, as polêmicas que mobi-
lizaram letrados nos seus diagnósticos sobre a epidemia biográfica, cumpre
destacar uma de suas apropriações. Entre o final da década de 1920 e a de
1950, com destaque para os anos trinta e os anos quarenta, intelectuais
empenhados na renovação da literatura e da história nacional, dispostos a cir-
cunscrever o campo dos Estudos Brasileiros, compreenderam a renovação da
biografia como mais um aspecto necessário entre as estratégias de atualizar
análises sobre a realidade nacional. No diálogo com as lições dos mestres da
biografia moderna, em especial Lytton Strachey e André Maurois, alguns letra-
dos brasileiros acharam que vultos eminentes da história política e da produção
literária brasileira poderiam ter suas vidas apresentadas como trajetórias de
homens de carne e osso, a sofrer todas as mazelas da condição humana – cria-
dores e criaturas de experiências e enredos históricos.
O fazer biográfico, sob a clave de uma narrativa humanizadora de seus
protagonistas, poderia tornar-se uma pedagogia de vida a instruir leitores no
catecismo dos saberes sobre a nação brasileira. De forma resumida, diríamos
que essa perspectiva informou – tanto quanto veio a ser informada por ela - a
produção das biografias históricas que compuseram a obra de Octávio 145
Tarquínio de Sousa.
Assim, para Octávio Tarquínio de Sousa, a reinvenção da história brasi-
leira, proposição candente entre os que respiraram a atmosfera das interroga-
ções modernistas (Saliba 2000: 43-49), seria promovida, naquilo que se referia
especificamente ao processo de constituição do Estado Nacional, por inter-
médio de um fazer biográfico que procuraria compreender as ações dos ho-
mens, suas virtudes, defeitos e hesitações, no seu meio social e histórico, ou
como Tarquínio de Sousa costumava nomear, no espírito de sua época.
Esse autor, ao desenhar a fisionomia de seus biografados, em retratos de
papel e letras, perseguiu, em igual proporcionalidade, a compreensão do perío-
do histórico que seus protagonistas viveram. A biografia, como a narrativa da
vida de um eleito, tornava-se, então, um instrumento mediador, a via de acesso
a uma outra época sob a perspectiva de reconstruir o passado pelos olhos de
quem o encenou. Nesses termos, a fisionomia do sujeito individual, exterio-
ridade captada por aparências e traços de comportamento porventura regis-
trados, guardava um caráter a ser decifrado. Na composição de ambos, fisiono-
mia e caráter, exterioridade e interioridade, forma e conteúdo, definiu-se a
possibilidade de compreender o espírito de um tempo, as concepções e as idéias
por meio das quais cada um, à sua maneira, aprendeu a estar no mundo, com
Márcia de Almeida Gonçalves / Revista de História 150 (1º - 2004), 129-155
ele foi na sua humana realidade, e não como no-lo impingiram apologistas e
detratores (Sousa 1942: IX-X).
Octávio Tarquínio ponderou que, mesmo não poupando esforços na
pesquisa de todos os elementos e de todo material indispensável à reconsti-
tuição da vida de Feijó, desenvolvendo-a com rigor em arquivos e bibliotecas
no Rio de Janeiro e em São Paulo, não pretendeu restringir a história, em
particular a biografia, ao mero levantamento cronológico ou ao fastidioso rela-
tório tão do gosto de certos caçadores de lêndeas. Reconhecendo que nada
seria inútil para o conhecimento de um homem e que as coisas mínimas pode-
riam por vezes explicar as maiores, Octávio Tarquínio asseverava que não seria
apenas por intermédio de uma interminável narração de detalhes que se poderia
elaborar uma boa biografia.
Haveria um nível de criação no trabalho do biógrafo, e as conjecturas fariam
parte da montagem do texto que pudesse restaurar o tempo que passou. O exercí-
cio desse potencial criativo exigiria o máximo de prudência de par com a mais
escrupulosa submissão aos fatos na forma como esses se consumaram. Para
Octávio Tarquínio, era fundamental atentar para as diferenças entre o trabalho
de criação do biógrafo e aquele que seria desenvolvido pelos romancistas. Esses 147
poderiam estabelecer planos próprios e específicos para a duração da vida de
seus personagens, aproximando-se em maior ou menor escala do espetáculo do
mundo. Historiadores, em especial os biógrafos, deveriam respeitar passiva-
mente o curriculum vitae do biografado (Sousa 1942: X-XI).
Explicitando uma de suas referências autorais, Octávio Tarquínio evocava
Lytton Strachey, confessando o quando foi difícil seguir o receituário do
mestre. Assim, com adequações, buscou aplicar a máxima de desprezar tudo
o que fosse redundante e nada perder do que fosse importante. Nas mudanças
no timbre da voz às diferentes fases de vida do biografado, mesmo as mais
lentas e monótonas, o biógrafo deveria alcançar o máximo de conformidade
com a vida que almejava fixar. Na busca dessa conformidade, entrariam tam-
bém a sondagem da alma do biografado e o corte em profundidade da época
em que a vida transcorreu.
Finalizando a apresentação da biografia de Feijó, Octávio Tarquínio dizia ter
se esforçado para permanecer num certo estado de dúvida receptiva com relação
ao seu biografado. Adiantava que, por motivos diversos, seu livro, provavelmente,
não agradaria aos panegiristas e aos detratores. Esperava, contudo, que os leitores
de boa vontade chegassem ao fim do livro com impressão semelhante a sua: uma
Márcia de Almeida Gonçalves / Revista de História 150 (1º - 2004), 129-155
fundada admiração por Feijó, visto embora nas contingências de sua vida e nos
limites de suas próprias dimensões (Sousa 1942: XI-XIII).
Como intelectual de seu tempo, a falar a linguagem de sua geração, Octávio
Tarquínio tornou-se o autor de biografias históricas em estreito diálogo com o
que foi tematizado sobre a emergência de uma biografia moderna. Leitor de
Lytton Strachey e de André Maurois, como atestam as marcações nos exempla-
res de obras desses autores em sua biblioteca, Octávio Tarquínio foi, entre seus
contemporâneos, aquele que talvez mais tenha investido na perspectiva de rein-
ventar a história nacional por intermédio da renovação do gênero biográfico.
Ao dar continuidade à prática de escrever a história de momentos ímpares
das experiências políticas brasileiras, valendo-se das trajetórias de vida de
alguns de seus diletos dirigentes, dialogou, como quis enfatizar, com uma certa
tradição, ancorada em referências às obras de Joaquim Nabuco e Oliveira
Lima. Ao atualizar a escrita biográfica, inspirando-se nas lições de Lytton
Strachey, Octávio Tarquínio imprimiu uma face moderna à sua historiografia,
nos quadros dos valores que conceberam as relações entre biografia e história
como estratégia eficaz para a informação e a sensibilização de leitores. Nesse
148 cruzamento se manifestou a moderna tradição dos textos de Octávio Tarquínio
de Sousa e mais, uma pedagogia dos saberes sobre a nação.
A análise das três biografias publicadas por Octávio Tarquínio de Sousa,
entre 1937 e 1942, nos permitiu identificar suas especificidades e, em especial,
verificar o quanto cada uma delas fez valer a premissa de que a narrativa bio-
gráfica viabilizava, a partir de certos cuidados metodológicos e conceituais,
escrever a história de uma época. A época foi o terreno movediço das Regên-
cias, utilizando aqui a expressão cunhada por Tarquínio de Sousa, tão expres-
siva na junção da imagem do terreno que se move, configurando um tempo e
uma paisagem histórica a ser retratada. Mais do que a época, houve um tema,
o da constituição do Estado independente e da nação, como entidade política
soberana, nas ambiências da predominância de uma mentalidade liberal.
Se o personagem biografado, suas ações e idéias, no curso de trajetórias
de vida, responderam pelas principais análises realizadas pelo autor, por inter-
médio de um narrador em terceira pessoa - o observador externo que enqua-
drava a cena e os protagonistas da história a ser contada -; essa última, nas
suas circunstâncias dramatizadas pela própria narrativa, tornava-se o elemento
definidor dos sentidos de cada uma das experiências da vida individual ali re-
presentada. Octávio Tarquínio procurava demonstrar o quanto os homens só
se configuravam enquanto sujeitos por intermédio da história, entendida aqui
Márcia de Almeida Gonçalves / Revista de História 150 (1º - 2004), 129-155
como vivência social e cultural, circunscrita a uma duração. Cada uma das
biografias mencionadas tiveram suas páginas saturadas por descrições inter-
pretativas das circunstâncias que afetaram grupos, valores, práticas políticas
na época em que a vida nacional, outra expressão utilizada por Octávio
Tarquínio, definia sua fisionomia. Para o autor, a apreensão da vida nacional
se daria pela mediação da vida de seus biografados, na perspectiva de enxergar
nas fisionomias individuais a fisiognomia de coletividades históricas.
Cada uma das individualidades cujas fisionomias Octávio Tarquínio quis
emoldurar em seus retratos em papel e letras assim veio a ser representada
como parte de um conjunto de relações historicamente condicionadas. Nesses
termos, a trajetória de Bernardo Pereira de Vasconcelos confundiu-se, a partir
de um certo momento, com a trajetória do Regresso Conservador. A de Evaristo
da Veiga ilustrou, de forma paradigmática, as propostas do reformismo liberal
de viés moderado, tão adequado, como procurou reiterar o biógrafo, à conso-
lidação da solda nacional. A vida de Feijó, mais vária e diversificada, garantiu
o panorama de momentos ímpares na história da constituição do Estado Impe-
rial, no Brasil, e da própria nação como corpo político autônomo: dos debates
nas Cortes de Lisboa às Revoltas Liberais de 1842. 149
Em cada uma dessas biografias, Octávio Tarquínio procurou fazer a bio-
grafia da nação brasileira sobre as premissas de que a constituição dessa comu-
nidade de homens, aglutinada pela partilha de valores, tradições culturais e
experiências comuns, havia sido gestada pela ação de sujeitos que abraçaram
os princípios políticos liberais. Mesmo ao modular os diversos projetos origi-
nários dessa matriz ideológica, como se quisesse ilustrar sua elasticidade his-
tórica, o biógrafo posicionou-se, por vezes, fazendo suas as opiniões e credos
de seus biografados. Na exemplaridade das condutas de seus protagonistas,
Octávio Tarquínio procurou, por um lado, interpretar as ações dos que cons-
truíram o Estado nacional no momento de sua emergência histórica e, também,
atualizar historicamente o valor do liberalismo político, em tempos em que
esse, sofria tantas críticas e revisões.
Nesse aspecto, o tempo das Regências, distante cerca de cem anos, do mo-
mento em que Tarquínio de Sousa produziu seus primeiros textos biográficos,
pareceu ser a paisagem histórica paradigmática, por excelência, para uma refle-
xão acerca dos usos do credo liberal na conformação de ordens políticas onde,
o justo meio e o ideal de moderação pudessem guiar a conduta dos que dese-
javam modernizar e redescobrir a nação. Cumpre destacar, o quanto Octávio
Tarquínio, autor/narrador em terceira pessoa, destacou a importância do debate
Márcia de Almeida Gonçalves / Revista de História 150 (1º - 2004), 129-155
6
Acreditamos que Octávio Tarquínio estabeleceu diálogos com a obra de Ernest Renan.
Apesar de não fazer nenhuma menção direta, nas indicações bibliográficas de seus tex-
tos, o biógrafo e historiador parece ter se inspirado nas lições do pensador francês acer-
ca do conceito de nação. Para Renan, a nação seria um princípio espiritual; o resultado
de profundas complicações históricas; uma consciência moral criada pelos homens, su-
bordinada a um rico legado de lembranças e ao desejo de viver juntos, a vontade de fa-
zer valer a herança indivisa; a nação, como o indivíduo, seria o resultado de um longo
passado de esforços, de sacrifícios e de devoções (...) (Renan 1997: 12-43).
Márcia de Almeida Gonçalves / Revista de História 150 (1º - 2004), 129-155
De Strachey a Dilthey
Firmando um estilo, o de autor de biografias históricas em diálogo com o
que essas pudessem materializar de exemplos de uma reinvenção da história
nacional e de atualização do próprio fazer biográfico, Octávio Tarquínio de
Sousa veio a publicar José Bonifácio, em 1945, e A vida de D. Pedro I, em
1952, essa última recebida entusiasticamente pela crítica literária da época.
O projeto de reunir suas biografias históricas e outros textos de sua autoria na forma
de uma coleção, em 1958, inegavelmente, perenizou os trabalhos de Octávio Tarquínio
de Sousa sob uma clave diferente daquela que havia, nos anos quarenta, o qualificado
como o historiador das Regências. Com a História dos Fundadores, novos sentidos
foram imputados a cada uma de suas biografias de dirigentes políticos imperiais, em
função do pertencimento a um conjunto particular – a coleção –, marcadamente com-
151
prometida com a análise de um tema e de uma época, qual seja: a emergência e a conso-
lidação do Estado Imperial brasileiro.
Se esse aspecto foi recorrente nos comentários dos que analisaram a coletâ-
nea lançada em 1958, cabe, destacar, o quanto, nesse momento, o autor expli-
citou referências à Wilhelm Dilthey nas suas perspectivas de relacionar nar-
rativa biográfica e escrita da história.
Na Introdução à História dos Fundadores do Império do Brasil, Octávio
Tarquínio declarou que, quando esteve em suas possibilidades, sua tarefa bio-
gráfica inspirou-se em boa parte das lições de Dilthey (Sousa 1960: v. I – 14)7.
De fato, como pudemos constatar, suas possibilidades estiveram associadas à
leitura de El mundo historico (Dilthey 1944). Na biblioteca de Octávio
Tarquínio de Sousa, a primeira edição em espanhol do referido livro, datada
7
Na introdução à História dos Fundadores Octávio Tarquínio, do mesmo modo que havia
feito no prefácio à primeira edição de Diogo Antônio Feijó, explicitou os valores que
informavam suas concepções sobre biografia e história. Não caberia nesse artigo detalhá-
las. Vale mencionar o quanto, naquele momento, 1958, conceitos das formulações
historistas vieram a compor o eixo de suas argumentações.
Márcia de Almeida Gonçalves / Revista de História 150 (1º - 2004), 129-155
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Márcia de Almeida Gonçalves / Revista de História 150 (1º - 2004), 129-155
156
AS TRADIÇÕES HISTÓRICAS INDÍGENAS DIANTE DA
CONQUISTA E COLONIZAÇÃO DA AMÉRICA: TRANSFORMAÇÕES
E CONTINUIDADES ENTRE NAHUAS E INCAS*
Resumo
Apresentaremos neste artigo algumas das principais características de duas
tradições históricas indígenas: a nahua e a inca. Em seguida, analisare-
mos comparativamente suas ações, reações, transformações e continui-
dades diante de desafios históricos similares e contemporâneos: as con-
quistas e as colonizações castelhanas do Altiplano Central Mexicano e
dos Andes durante os séculos XVI e XVII.
Palavras-Chave
Nahuas • Incas • Conquista e colonização castelhana • Tradições históri-
cas indígenas • Fontes históricas indígenas
Abstract
This article presents some of the main characteristics of two indigenous
historical traditions: the Nahua and the Inca. The author offers a
comparative analysis of indigenous actions, reactions, adaptations,
transformations, and continuities as they faced similar, contemporaneous
challenges: the Spanish conquest and colonization of Central Mexico and
the Andes during the seventeenth and eighteenth centuries.
Keywords
Nahua • Inca • Spanish conquest and colonization • Indigenous historical
traditions • Indigenous historical sources
*
Este trabalho teve como ponto de partida o curso Visão comparativa da conquista e colonização
das sociedades indígenas estatais: nahuas, maias e incas, ministrado durante o primeiro se-
mestre de 2002 no Depto. de História - FFLCH/USP pelo Prof. Dr. Federico Navarrete Linares
(Instituto de Investigaciones Históricas – UNAM), a quem agradeço pelas críticas e sugestões.
**
Bolsista Fapesp.
Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207
Introdução
A elaboração e o uso social de explicações sobre o passado foram práticas
constantes nas mais diversas sociedades humanas. Em geral, tais elaborações
tratam de explicar e articular as origens, as transformações, as permanências
e as expectativas grupais, dando-lhes sentidos supostamente imanentes, que
funcionam, entre outras coisas, como elementos de coesão social. E essa ima-
nência atribuída é socialmente entendida e aceita, em parte, pelo fato de que
tais explicações são construídas sobre as amplas concepções que cada socie-
dade possui – e compartilha de forma mais ou menos homogênea, dependendo-
se do caso – acerca do tempo, do espaço, da transformação, da permanência,
da origem, do destino, do que seja acontecimento, fato, verdade e etc; e que
formam um todo mais ou menos coerente, mas não monolítico, que podemos
chamar de visão de mundo.1
A construção e a manutenção de explicações históricas com aceitação social
é um processo de média ou longa duração e, em geral, sobretudo nas chamadas
sociedades complexas, tende a estar sob o controle de camadas sociais específicas,
que podem, inclusive, contar com indivíduos ou instituições especializados na pro-
158 dução, na transmissão e na difusão de tais explicações, como é o caso das sociedade
indígenas que analisaremos. Chamaremos de tradições históricas a essas organi-
zações, grupos, instituições ou indivíduos que se dedicam de forma sistemática –
mas não necessariamente exclusiva – à construção, manutenção e transformação
de explicações socialmente aceitas acerca do passado.
E tudo isso – a relação das tradições históricas com determinados grupos
sociais e a ligação de suas construções com uma determinada visão de mundo
– nos leva à conclusão de que é imprescindível entender as explicações sobre
o passado como produtos históricos específicos, inseridos em um conjunto de
problemas que se relaciona diretamente com a sociedade em questão.2
1
O conceito visão de mundo pode ser definido como um “Conjunto articulado de siste-
mas ideológicos relacionados entre sí en forma relativamente congruente, con el que un
individuo o un grupo social, en un momento histórico, pretende aprehender el universo.”
(López Austin 2002).
2
No entanto, é muito comum que as explicações produzidas pelas tradições não ociden-
tais – sobretudo pelas tradições indígenas – sejam analisadas e caracterizadas de forma
conjunta e genérica, como se fossem o resultado da ação de princípios ou leis univer-
Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207
Essas são as idéias gerais que orientaram a elaboração deste artigo, o qual
tem como objetivo específico apresentar algumas das principais características
das tradições históricas nahua e inca, para depois analisar, comparativamente,
suas diferentes ações, reações, transformações e continuidades diante de
processos históricos similares, contemporâneos e levados às regiões do
Altiplano Central Mexicano e dos Andes Centrais por um agente histórico
comum. Estamos nos referindo às conquistas e colonizações castelhanas dos
séculos XVI e XVII.
O entendimento dessas diferentes tradições e de suas distintas reações e
transformações diante da empresa colonial castelhana é fundamental para
podermos contextualizar e analisar adequadamente os escritos históricos3 pro-
duzidos nessas duas regiões durante o Período Colonial4, sejam os escritos de
origem e estrutura mais próximas ao pensamento nahua ou inca, ou sejam os
escritos tipicamente ocidentais que, de alguma maneira, utilizaram-se das
informações provenientes das tradições históricas locais.5
159
sais, que regeriam o pensamento de suas sociedades produtoras – chamado de pensamento
mítico. Partindo desse pressuposto, tais análises procuram determinar as características
formais e conceituais comuns a tais explicações, independentemente das especificidades
sociais e históricas em meio das quais foram produzidas. Veremos, por exemplo, que as
tradições históricas mesoamericanas utilizavam um preciso sistema de calendário como
elemento organizador de suas narrativas. Esse sistema funcionava como uma espécie de
coluna vertebral das narrativas e permitia a marcação de uma inequívoca seqüência tem-
poral diacrônica, fato que não excluía a presença da sincronia nos relatos. Apesar disso,
pouca atenção tem sido dada a esse caráter diacrônico do pensamento mesoamericano,
predominando a ênfase no caráter cíclico ou sincrônico, o qual condiz mais facilmente com
o pressuposto de que fora do mundo ocidental predomina o pensamento mítico, caracteris-
ticamente sincrônico e não preocupado em delimitar a fronteira presente-passado.
3
Estou chamando de escritos históricos ao conjunto de textos que, de modo central e
explícito, possuem como tema as histórias e os costumes dos povos americanos.
4
Esse raciocínio também pode ser aplicado, de modo mais geral, para ajudar a explicar
as distintas ações, reações e transformações das sociedades indígenas americanas frente
ao processo de conquista e colonização castelhanas. Em outras palavras, somente enten-
dendo as especificidades das diversas sociedades indígenas – inclusive suas construções
ideológicas sobre a chegada e a presença do europeu – é que poderemos compreender os
diferentes contatos, convivências e conflitos que foram construídos entre os povos lo-
cais e os estrangeiros a partir do século XVI.
5
Em outra ocasião, tratamos da produção de crônicas e histórias pelos religiosos espa-
nhóis e do uso que fizeram das informações provenientes das tradições indígenas meso-
americanas (Santos 1998).
Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207
6
Vale notar que nos Andes, diferentemente da Mesoamérica, onde era utilizado o siste-
ma numérico vigesimal, predominou o sistema decimal.
7
Dentre os quais podemos destacar Pease 1995.
8
Dentre os quais podemos destacar Ascher & Ascher 1995.
Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207
9
Prefiro o termo pictoglífico a pictográfico por acreditar que ele evoca, de forma mais
explícita, a combinação entre elementos pictóricos e glíficos, a qual era uma das princi-
pais características do sistema de escrita mixteco-nahua. Em outra ocasião tivemos a
oportunidade de analisar algumas das soluções figurativas empregadas nos códices nahuas
e pudemos comprovar que os problemas relacionados à semântica eram prioritários em
relação aos de reprodução realística da dimensão visual do mundo (Santos 2003).
10
Do Altiplano Central procedem dois manuscritos de formato, estilo, e características
tradicionais, mas cuja datação é controversa. São eles os códices Borbónico e Aubin. São
considerados como pré-hispânicos os códices Bórgia, Cospi, Féjérváry-Mayer, Laud e
Vaticano B (grupo Bórgia); Becker nº. 1, Bodley, Colombino, Nuttall e Viena (grupo
Nuttall). Todos esses procedem da região de Cholula, Tlaxcala e oeste de Oaxaca, da
qual procedem também o Códice Selden, do grupo Nuttall, mas cuja datação é contro-
versa. Da região maia procedem três códices pré-hispânicos: o de Dresde, o de Paris e o
de Madri, formado pelos códices Cortesiano e Troano e por isso também chamado de
Tro-cortesiano (Glass 1975).
11
Frank Salomon, em uma análise da crônica de Titu Cusi Yupanqui, propõe que as duas
tradições de escrita e pensamento histórico – a cristã e a inca – eram tão diferentes e
irredutíveis que as “traduções” eram virtualmente impossíveis (Salomon 1982).
Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207
Como uma espécie de compensação, que não chega a equilibrar nosso co-
nhecimento das duas tradições, no caso andino temos uma acentuada conti-
nuidade da oralidade. Tal continuidade se deveu, em parte, ao estabelecimento
e à manutenção de uma sociedade colonial extremamente cindida e que se
manteve até tempos mui recentes: de um lado, os castelhanos e seus descen-
dentes, ocupantes da costa; e por outro, os grupos indígenas, refugiados ou
habitantes tradicionais das montanhas. Essa cisão, apesar de seu caráter de
violência e de exclusão, possibilitou a continuidade e a transformação mais
lenta de várias comunidades andinas e suas tradições históricas orais, o que
tornou possível a realização de estudos antropológicos durante o século XX.12
A – Nahuas e Mesoamérica
Penso que entre as diversas características da tradição histórica nahua, três
merecem destaque por sua quase onipresença nos registros pictoglíficos e na
oralidade transcrita durante o Período Colonial: 1 – a utilização de um preciso
e complexo sistema calendário13 como elemento central na organização inte-
lectual das explicações acerca do passado; 2 – a localização da época atual
após uma seqüência de eras ou idades, cujos inícios e finais teriam sido mar-
163
cados por criações e destruições cósmicas parciais; 3 – a centralidade temática
do altepetl e seus pipiltin14 nas narrativas acerca do passado mais recente.
Essas características não são exclusivas dos povos nahuas. São encontradas
em grupos mesoamericanos anteriores à migração desses povos à Mesoamérica
– como por exemplo os maias e os mixtecos. Aliás, a presença dessas carac-
terísticas – aliadas a uma série de outras – tem servido justamente para que se
estabeleça a pertinência de um grupo à região cultural mesoamericana, cuja
fronteira norte durante o Período Clássico, aproximadamente do início da Era
Cristã ao século IX, encontrava-se muito mais ao norte do que durante a época
12
Para completar o desequilíbrio, podemos agregar a desigualdade de meu conhecimento,
como estudioso do México Central, em relação às tradições históricas das duas regiões.
13
Na língua portuguesa a palavra calendário e suas variações de gênero e número podem
ser substantivos ou adjetivos (Vocabulário ortográfico da língua portuguesa 1999: 130).
14
Termos em nahuatl que podem ser traduzidos, respectivamente, por cidade ou entida-
de política independente e nobreza local.
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15
Plural de altepetl.
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16
Esse ciclo de 260 dias era dividido em 20 trezenas, que eram registradas de maneira
sincrônica em livros pictoglíficos com finalidades mânticas e chamados de tonalamatl.
Esses livros eram utilizados por sacerdotes especializados em prognósticos, que envol-
viam todas as esferas da vida: nascimentos, mortes, enfermidades, guerras, plantios,
colheitas e etc. Não entraremos em detalhe sobre esse ciclo e seus livros corresponden-
tes pelo fato de que o foco deste artigo será o uso que as tradições históricas nahuas fa-
ziam de um outro ciclo calendário: a conta dos anos.
17
Todas as análises dos termos em nahuatl e suas traduções foram feitas a partir do vo-
cabulário do frei Alonso de Molina (Molina 2001) e do dicionário de Rémi Siméon (Rémi
Siméon 1997).
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18
Há uma polêmica acerca da utilização de mecanismos de ajuste entre o ciclo calendá-
rio de 365 dias e a duração do ano solar, aproximadamente de 365 dias e um quarto. Alguns
estudiosos, como Víctor Castillo Farreras (Castillo Farreras 1971), acreditam que havia
uma espécie de ano bissexto ou correções regulares, mecanismo indispensável para que
o início do ano calendário e suas subdivisões coincidissem de maneira regular com as
estações. Outros estudiosos, como Michel Graulich (Graulich 1990), acreditam que não
existia tal mecanismo e que ao longo do tempo houve uma grande defasagem entre o
início do ano calendário, suas subdivisões e as estações. Um outro grupo de estudiosos,
dentre os quais podemos citar Gordon Brotherston (Brotherston 1997), propõe ainda que
um sistema de calendário que teve uma continuidade de uso tão ampla e que possuía
subdivisões do ano marcadas por celebrações e festividades claramente relacionadas com
as estações, seguramente possuía um mecanismo de correção. Acreditam, no entanto,
que tal mecanismo não era empregado de modo tão regular como o mecanismo do ano
bissexto, e que funcionava a partir da observação dos solstícios e da conferência da posi-
ção das Plêiades no meio da noite em que se comemorava o início do ano calendário,
quando então essa constelação deveria ocupar o zênite. A defasagem da ocorrência do
solstício e da posição das Plêiades em relação ao calendário poderia servir para, de tem-
pos em tempos, se fazer correções. Para um balanço geral da questão: Tena 1992.
Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207
19
Além disso, cada ano sazonal era dividido em dezoito períodos de vinte dias – chama-
dos de vintenas e marcados pela passagem completa dos vinte signos do tonalli – mais
cinco dias finais considerados baldios ou ocos – chamados de nemontemi. Em outras
palavras, o ano que se iniciou, por exemplo, com 1 acatl teria todas suas dezoito vinte-
nas iniciadas com acatl e depois cinco dias finais considerados aziagos.
20
A integração entre os dois ciclos que formam o sistema de calendário mesoamericano
é tão complexa e completa que, em última instancia, podemos considerar o xiuhmolpilli,
isto é, o ciclo de 52 anos sazonais, como uma das partes de um grande tonalpohualli de
anos sazonais, pois 52 é a quinta parte de 260. Em outras palavras, cinco ciclos de 52
anos sazonais conformam um grande ciclo de 260 anos sazonais, o qual, por sua vez,
pode ser subdividido em 365 ciclos do tonalpohualli.
Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207
21
No entanto, existe uma polêmica sobre a origem dos grupos nahuas. Na verdade, não
temos certeza se vieram de fora da Mesoamérica, de dentro ou se regressaram a ela. De
acordo com suas próprias fontes, os nahuas seriam chichimecas – denominação geral
dada aos coletores-caçadores que habitavam ao norte da Mesoamérica – que migraram.
Mas esse discurso pode ser parte de uma estratégia política que reivindicava essa ori-
gem – valorizada por sua valentia e bravura guerreiras – para justificar os domínios po-
líticos e tributários sobre outros povos.
Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207
política que chegaram até nós por meio de códices pictoglíficos, textos
alfabéticos ou obras híbridas do Período Colonial e que expressam a produção
da tradição histórica mexica durante os séculos XV e XVI.22
O Códice Vaticano A (1996) é um bom exemplo para entendermos, de
modo mais concreto, as afirmações feitas acima acerca da tradição histórica
nahua e do uso da conta dos anos como elemento organizador das narrativas
acerca do passado. Nesse códice, temos uma grande seção que se constitui
como um livro de anais, em nahuatl xiuhamatl. Esses anais narram a história
da migração mexica desde a passagem por Chicomoztoc, passam pelo esta-
belecimento e fundação de México-Tenochtitlan e chegam até a época da con-
quista e princípios da colonização castelhana. Em outras palavras, temos nesse
códice uma seqüência narrativa de quase quatrocentos anos, na qual podemos
observar claramente que a conta dos anos sazonais, marcada pela seqüência
ininterrupta dos glifos de todos esses anos, possui uma função muito específica:
fornecer uma espécie de lógica organizacional sobre a qual eram inseridos os
registros pictoglíficos dos eventos.
Curiosamente, mas talvez sintomaticamente, esses anais terminam com umas
quantas páginas quase em branco (pp. 94v-96v), nas quais temos apenas os glifos 169
da conta dos anos. Em verdade, não sabemos se as páginas ficaram sem os
registros pictoglíficos dos eventos que corresponderiam aos anos marcados ou
se os glifos da conta dos anos foram pintados antes dos anos que estão sendo
marcados, como uma espécie de estrutura prévia à espera de uma seleção, de
uma combinação e de uma construção de eventos que seriam aí encaixados. A
confirmação da segunda hipótese reforçaria a posição estrutural que estou
atribuindo à conta dos anos para a organização das narrativas históricas nahuas.
No caso dos Anales de Cuauhtitlan (1945), texto alfabético produzido em
meados do século XVI e cujos autores provavelmente procediam de Cuauhtitlan,
cidade de origem nahua e vizinha de México-Tenochtitlan, também podemos
perceber o uso da conta dos anos como elemento organizador de uma narrativa
temporalmente muito ampla. O texto narra a história dos grupos chichimecas,
22
Vale lembrar que se as explicações acerca do passado cumprem funções ideológicas,
como por exemplo a legitimação do poder político de um grupo, necessitam de uma ampla
aceitação. Desse modo, é mais eficaz que as novas explicações históricas não se produ-
zam a partir de uma ruptura total com as antigas, mas sim a partir re-elaborações, con-
tinuidades ou rupturas aparentes.
Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207
23
Dentre os inúmeros chilames, o mais conhecido é o Chilam Balam de Chumayel (Libro
de Chilam Balam de Chumayel 2001).
Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207
24
Como exemplo, poderíamos citar a famosa Pedra do Sol ou a lápide de inauguração do
Templo Maior, ambas na Sala Mexica do Museu Nacional de Antropologia, México DF,
que trazem, respectivamente, as datas 13 acatl e 8 acatl, correspondentes a 1479 e 1487.
Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207
sazonais, ou seja, muitas vezes não sabemos se tal data se refere a um ano
“x”, ou ao ano “x” menos 52 anos, ou ainda ao ano “x”mais 52 anos e assim
por diante. No entanto, não devemos nos esquecer que isso não deveria ser
um problema para os contemporâneos dessas inscrições e monumentos, que
certamente possuíam uma série de outros referenciais externos a tais inscrições
e monumentos, os quais permitiam localizar tais datas de forma muito precisa
entre os diversos e sucessivos ciclos do xiuhmolpilli, fazendo assim que a di-
mensão diacrônica dessas datas estivesse assegurada.
Esse mesmo sistema de cômputo temporal também foi utilizado para a ela-
boração de explicações que versavam sobre um passado muito mais distante,
no qual tiveram origem os deuses, o mundo e os homens. Os nahuas, assim
como todos os grupos considerados mesoamericanos, explicavam esse distante
passado dividindo-o em diversas idades ou sóis, nos quais as atuações dos
deuses eram centrais para o desabrochar e o declinar de cada um deles, os
quais, em geral, terminavam por grandes cataclismos. Vale notar que esses iní-
cios e finais de idades não eram totais, ou seja, cada idade possuía elementos
que se transformavam e continuavam existindo na outra, gerando uma espécie
172 de aperfeiçoamento do mundo, dos homens e de seus alimentos vegetais, aper-
feiçoamento esse que culminou na idade e humanidade atuais. Essa humani-
dade seria, dependendo da versão, a quarta ou quinta e se caracterizaria pela
utilização do milho como alimento por excelência.
O que nos interessa aqui é o fato de que os ciclos de 52 anos serviam tanto
para contabilizar as explicações acerca do passado mais distante como do pas-
sado mais recente. Creio que isso reforça a hipótese de que o sistema calendário
– com suas dimensões sincrônica e diacrônica – desempenhava um papel
central para a percepção de passado, distante ou recente, e para a construção
de narrativas explicativas por parte da tradição histórica nahua. Tal fato nos
indica também que para os nahuas inexistia uma distinção qualitativa ou uma
ruptura temporal entre a percepção desses dois tipos de passado.
Apesar dessa continuidade estrutural-calendária entre as narrativas acerca
do passado mais distante e mais recente, havia uma importante distinção entre
as duas modalidades de relato. No caso das narrativas acerca das idades do
mundo, predominava uma grande síntese, ou seja, cada idade era narrada como
um todo, no qual se destacavam as ações divinas de criação e destruição, o
nome da idade em questão, o tipo de homem que existia, o cataclismo que a
encerrou e as mutações pelas quais passaram os homens e outros animais, além,
é claro, de sua duração, contabilizada em anos sazonais.25
Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207
De modo geral, depois de narrar essas quatro ou cinco idades, por vezes
enfatizando e detalhando um pouco mais as explicações acerca do início da
humanidade atual, esses textos cosmogônicos e históricos seguem com os episó-
dios que tratam de Tula, de Quetzalcoatl e dos toltecas, quando então os relatos
ganham mais detalhes e, em geral, adotam propriamente a forma de anais, forma
essa que continua na narrativa dos eventos mais recentes, como as migrações e
os estabelecimentos dos altepeme nahuas na região central do México. Talvez
isso indique a existência de uma concatenação narrativa típica da tradição histó-
rica nahua, a qual encaixava a história mais recente dentro de uma seqüência
cosmogônica marcada pela existência das diversas idades ou sóis anteriores. Em
outras palavras, talvez essa localização da história grupal dentro de um marco
temporal mais amplo, fornecido justamente pelas chamadas narrativas cosmogô-
nicas, fosse parte integrante dessa tradição histórica.26
No entanto, a existência dessa concatenação dos relatos cosmogônicos e
históricos não é uma unanimidade entre os estudiosos.27 Muitos afirmam que
as histórias indígenas pré-hispânicas caracterizavam-se pela centralidade do
altepetl e que essas histórias mais gerais, produzidas no Período Colonial,
seriam o resultado da influência das histórias universais cristãs, as quais leva- 173
ram os indígenas a reunir em textos únicos as histórias locais e as narrativas
cosmogônicas, construindo assim uma estrutura mais próxima dos textos do
Velho Testamento, sobretudo do Pentateuco.28
E essa centralidade do altepetl nas narrativas oriundas das tradições histó-
ricas nahuas é, justamente, a próxima característica a ser tratada.
25
De acordo com o texto da Historia de los mexicanos por sus pinturas (1996), por exem-
plo, as idades anteriores à atual duraram, respectivamente, 676 anos (treze ciclos de 52),
novamente 676 anos, 364 anos (sete ciclos de 52) e 312 anos (6 ciclos de 52). Tratamos
desse tema em detalhes em uma outra ocasião (Santos 2002).
26
Essa estrutura narrativa pode ser observada nos seguintes textos alfabéticos e códices
coloniais nahuas: Anales de Cuauhtitlan (1945), Leyenda de los soles (1945), Historia
de los mexicanos por sus pinturas (1996) e Códice Vaticano A (1996). Tal estrutura pode
ser observada também no texto do Popol Vuhl (1996), que narra a história grupal dos
quichés depois da cosmogonia, e nas estelas maias, que localizavam temporalmente os
feitos recentes, por meio da conta longa, a partir de uma data inicial (13 ou 14 de agosto
de 3113 a.C.), a qual marcaria justamente o início da atual idade.
27
Uma de suas principias defesas encontra-se em Brotherston 1997.
28
Entre esses estudiosos, podemos destacar Navarrete Linares 2000.
Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207
29
É muito comum que os anais nahuas registrem os terremotos e os fenômenos celestes
menos freqüentes, como os eclipses, as passagens de cometas ou a queda de meteoros,
fenômenos para os quais existiam glifos específicos. Esses fenômenos poderiam ser inter-
pretados como prenúncios de importantes eventos. Novamente temos a relação entre his-
tória e profecia: o passado poderia contribuir para revelar o futuro ou explicar o presente.
Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207
30
Inclusive, o discurso dos sábios e anciãos poderia ser chamado de calmecatlahtolli,
sendo que tlahtolli significa discurso, palavra, história ou relato.
31
A relação entre os escritos pictoglíficos e a oralidade não era de equivalência restrita e
direta. A recitação oral, que ocorria em ocasiões especiais e determinadas, interpretava e
se expandia a partir dos escritos que, por sua vez, traziam elementos que estavam além das
palavras faladas e que permaneciam inalterados ao longo do tempo. Ambos eram partes de
um sistema maior de comunicação (Lockhart 1992).
Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207
B – Incas e Andes
Como apontamos acima, as tradições históricas incas de tempos pré-hispâ-
nicos, e andinas em geral, são bem menos conhecidas do que as mesoameri-
canas. Tal deficiência deve-se, principalmente, à escassez de fontes documen-
tais produzidas por tais tradições, em tempos pré-hispânicos ou coloniais, o que
talvez relacione-se com o papel preponderante que era desempenhado pelas
narrativas orais e por formas de registro muito distintas das que tradicionalmente
reconhecemos como tais, como por exemplo os ceques.32 Soma-se a isso, a nossa
incapacidade de entender completamente os sentidos que eram veiculados por
fontes como os quipus, os pallares ou os tocapus.33
Devido a tal deficiência, recorreremos a dois campos de estudo que podem
nos proporcionar, de forma indireta, algumas informações e características das
tradições históricas incas.
Um desses campos é o que trata da visão de mundo andina, cuja impor-
tância reside no fato de que nela, certamente, estão os marcos teóricos e con-
ceituais dentro dos quais as tradições incas operavam e construíam suas expli-
cações sobre o passado. Tais estudos utilizam-se, além das fontes materiais e
escritas coloniais, dos trabalhos antropológicos realizados no século XX, os
177
quais demonstram a vigorosa continuidade das tradições orais andinas, res-
ponsáveis pela manutenção de relatos muito semelhantes aos poucos que foram
transcritos no Período Colonial. O outro campo é composto pelos estudos his-
tóricos e literários que se dedicam às crônicas coloniais que trataram da história
e dos costumes andinos, as quais contaram em suas produções com a partici-
pação de membros da sociedade inca ou de indivíduos que transitavam entre
os dois mundos, como por exemplo Guamán Poma de Ayala.
32
Os ceques eram linhas ou caminhos demarcados na paisagem por meio das guacas,
objetos ou lugares sagrados, muitos dos quais relacionados com os antepassados. Dessa
forma, os ceques eram um meio de se fixar ou relacionar a lembrança dos antepassados,
e dos acontecimentos a eles vinculados, com a geografia local. Veremos que ao longo
dos ceques eram proferidos discursos e encenados episódios sobre o passado.
33
Além dos famosos quipus, cuja parte da polêmica foi exposta anteriormente, existe
também uma discussão acerca dos significados dos pallares, conjunto de desenhos e
signos muito freqüentes na cerâmica mochica, e dos tocapus, desenhos e motivos geo-
métricos utilizados nos tecidos das vestimentas, principalmente dos grupos sociais hie-
rarquicamente superiores nas sociedades andinas (Millones 1987: 73-74).
Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207
34
Vale frisar que os incas, assim como os nahuas, eram integrantes de uma região cultu-
ral geograficamente muito ampla e historicamente muito antiga, à qual podemos cha-
mar de mundo andino ou simplesmente Andes. Desse modo, sua visão de mundo e suas
explicações acerca do passado devem ser entendidas como parte de uma tradição de pen-
samento muito mais ampla, da qual os incas eram partícipes ativos, mas não seus únicos
criadores ou portadores.
Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207
35
A importância e centralidade dessa divisão polar para o mundo inca, aliada a outros
indícios, levou alguns estudiosos a proporem que a existência de dois incas soberanos
simultâneos – yanantin ou casal – era, na verdade, a norma. As lutas entre eles serviri-
am para definir quem seria hanan (vencedor) ou hurin (perdedor). O inca hanan atuaria
fora de Cuzco, nas conquistas, nas cobranças de tributos (mita) e no sistema distributivo.
O inca hurin atuaria em Cuzco e estaria mais vinculado ao universo cerimonial. Na maioria
dos textos e crônicas coloniais teria havido uma transformação desse poder dual em
genealogias de monarcas que se sucediam (Pease 1995).
Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207
36
As concepções de tempo e de espaço de uma determinada sociedade relacionam-se de
modo muito estreito, chegando a formar uma verdadeira unidade no processo de apreen-
são e de explicação da realidade. Essa unidade tem sido denominada de cronotopo, ca-
tegoria utilizada analiticamente nos estudos de produções narrativas e literárias, o que a
torna virtualmente aplicável também aos estudos históricos que utilizam textos e crôni-
Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207
sado. Os dias que compunham o ano solar, chamado de guata, eram contados
com ceques que saíam de Cuzco e iam em direção às distintas posições do
nascer do Sol entre um e outro solstício. Como citamos anteriormente, nos
ceques a tradição histórica inca registrava o passado com guacas, que poderiam
ser altares, tumbas ou simplesmente pedras, a partir das quais os aconteci-
mentos eram narrados. Trata-se de uma forma de registro que se dava em uma
geografia acrescida de intervenções humanas e que contava com o funciona-
mento conjunto de uma tradição oral. Além disso, ocorriam grandes encena-
ções nessa paisagem historicizada que, segundo o cronista inca colonial Juan
Santa Cruz Pachacuti, desde os tempos de Pachacuti Inca Yupanqui, tratavam
dos feitos e conquistas dos soberanos incas.37
Além disso é muito conhecido o fato de que os soberanos incas, e também
muitas outras pessoas de distintos níveis sociais, eram mumificados e conti-
nuavam a ocupar seus palácios ou moradas. A concepção que estava por trás
dessa prática era a de que os mortos, e também o passado, continuavam pre-
sentes sob outra forma, continuavam no mundo de hurin (abaixo) sob a forma
de pedras ou de malquis (múmias) e, potencialmente, aptos para um retorno
quando o mundo passasse por um pachacuti.38 181
Essa concepção do passado como algo que continuava a existir aqui e agora
parece ter minorado a necessidade de utilização de uma ampla contagem dos
anos. Há uma polêmica acerca da existência ou não de tal contagem no mundo
andino, mas parece que de todos os modos ela não teve um papel de destaque
na organização da memória histórica entre os incas. Vale ressaltar que não esta-
mos falando de uma limitação técnica ou conceitual, mas sim do papel que a
tradição histórica inca dava para a contagem do tempo. É sabido que os povos
andinos utilizavam várias formas de cômputo do tempo, como por exemplo o
próprio ano solar, os ciclos de nove meses lunares e as semanas de dez dias,
mas parece que elas não eram utilizadas para definir e localizar de modo cro-
nológico-linear os acontecimentos ou mesmo a duração da vida dos indivíduos,
a qual era computada por ciclos vitais baseados nas condições físicas e na capa-
cidade para o trabalho.
Esse assunto é tratado por Guamán Poma de Ayala que, sintomaticamente,
não descreve as diversas idades da vida em ordem cronológica, ou seja, come-
çando pela infância e terminando com a velhice. Guamán Poma inicia seu relato
pela idade considerada mais importante, a de maior potencialidade para o trabalho,
isto é, pelo ciclo que vai aproximadamente dos 25 aos 50 anos e que era chamado
de auca camayoc, no caso masculino, e auca camayoc uarmi, no caso feminino.
Depois, trata das idades posteriores a esse ciclo de forma progressiva e, por fim,
das idades anteriores de forma regressiva (Díez Canseco 1985).
É quase inevitável pensar que havia uma relação conceitual na organização e
na utilização mnemônica dos ceques – que partiam de Cuzco e que continham
suas tumbas, altares, pedras ou guacas – com os quipus e seus diversos tipos de
nós. Isso leva-nos de volta ao problema da utilização dos quipus como registros
182 mnemônicos que possuíam dimensões narrativas além das quantitativas.
Como dissemos de início, não possuímos reconhecidas “traduções” ou
transliterações coloniais de narrativas supostamente registradas pelos quipus
ou veiculadas pela tradição oral quíchua. No entanto, alguns cronistas coloniais
afirmam que os informantes indígenas se baseavam em quipus para lhes relatar
acerca da história e de outros temas, como por exemplo para se recordar dos
pecados durante a confissão. A esse respeito, na obra Nueva Corónica y buen
gobierno, Guamán Poma afirma “Que los dichos padres del santo sacramento
de la confición mande exsaminar su anima y consencia una semana el dicho
penetente aunque sea español y el yndio haga quipo de sus pecados.”39 Afirma
também, em diversas partes de seu relato, que seus informantes tudo sabiam
a partir dos quipus e que ele próprio tirou informações deles “pues que en los
cordeles supo tanto que me hiciera a fuerza en letra”.40
39
Apud Montoya Rojas 1998a: 175. Nessa mesma página, Rodrigo Montoya reproduz
uma citação de Pérez Bocanegra, de 1631, que reafirmaria essa função dos quipus: “Para
este efecto les mandan vayan atando ñudos en sus hilos que llaman Caitu, y son los pe-
cados que les enseñan, los cuales parecen: añadiendo y poniendo en sus nudos otros,
que jamás cometieron, mandándoles, y enseñándoles, a que digan es pecado el que no lo
es, y al contrario.“
40
Apud Brotherston 1997: 118.
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41
A afirmação que consta nos autos do pleito judicial é a seguinte: “Los yndios desta
tierra tienen cuenta y razon de las cosas que dan a sus señores (…) por quipos que ellos
llaman y todo lo que han dado de mucho tiempo atras lo tienen asimismo en sus quipos.
E saue este testigo que los dichos sus quipos son muy ciertos e verdaderos porque este
testigo muchas y diversas veces ha cotejado algunas cuentas que ha tenido con yndios
de las cosas que le han dado e le han debido e les ha dado e ha hallado que los quipos
que tienen los dichos yndios eran muy ciertos …” Tal afirmação teria sido feita por Pedro
de Alconchel e foi publicada por Waldemar Espinoza Soriano em “Los huancas aliados
de la conquista; tres informaciones inéditas sobre la participación indígena en la con-
quista del Perú, 1558, 1560 y 1561". in Anales Científicos de la Universidad del Centro
1. Huancayo, 1971, 1972. Apud Murra 1985: 433.
42
As ilustrações que retratam os hatun chasqui encontram-se nas páginas 350 e 811 da
Nueva corónica y buen gobierno (Guamán Poma 1980).
43
Não se trata de uma questão meramente nominalista, mas sim da utilização analítica
do conceito de escrita para a abordagem e a interpretação dos quipus ou outros tipos de
registro do pensamento e da fala.
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Alguns estudiosos dos quipus andinos (Ascher & Ascher 1997) e dos
códices pictoglíficos mesoamericanos (Brotherston 1997) mostram que consi-
derar como escrita apenas aos sistemas logográficos, isto é, que registram a
fala, é uma enorme e preconceituosa redução analítica do mundo ocidental
para com outros sistemas de representação do pensamento e da fala. Tal redu-
ção estaria baseada no pressuposto de que a escrita logográfica, seja ela foné-
tica ou silábica, é o estágio mais avançado de uma suposta evolução universal
dos sistemas de representação do pensamento e da fala, ao qual uns poucos
povos eleitos teriam chegado. Essa suposta evolução teria começado com as
pinturas e os sistemas ideográficos no Oriente e Oriente Médio e chegado ao
seu mais alto grau com o alfabeto fenício e grego, caracterizado pela utilização
de signos abstratos, que possuem uma relação convencional de correspondên-
cia quase que exclusiva com a fala.44
De acordo com essa visão, poderíamos estudar e classificar evolutivamente
os sistemas não alfabéticos por aproximações ou carências em relação ao sistema
alfabético ocidental. Será que agindo desse modo, ou seja, analisando os sistemas
de registros por suas supostas carências e de forma desligada das demandas de
184 suas sociedades produtoras, não deixaremos de entender as especificidades de
funcionamento, as lógicas organizadoras, as formas de leitura, as relações especí-
ficas com a oralidade e os usos sociais desses outros sistemas?
Para os estudiosos que defendem a ampliação do uso analítico do conceito
de escrita, a oralidade não representaria um dos pólos de um binômio agonís-
tico, no qual encontraríamos, no outro extremo, a escrita alfabética. Em todos
os sistemas haveria graus de foneticismo que variariam de um para o outro,
pois nenhum conjunto de sinais gráficos seria capaz de representar por com-
pleto a língua falada, dependendo, em última instância, de uma oralidade para-
lela e complementar. De acordo com esses autores, o conceito de escrita deveria
ser ampliado e entendido como uma forma sistemática de registro, que possui
sua própria inteireza, estrutura interna, formato, ordem de funcionamento e
de leitura e que é utilizada para representar com regularidade sons ou conceitos
por meio de sinais gráficos ou outros artifícios – e que pode se relacionar com
a oralidade de formas diversas e em diversos graus.
44
Entre os estudiosos que ainda seguem esse modelo evolucionista no estudo dos siste-
mas mesoamericanos de escrita, podemos citar Manrique Castañeda 1989.
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Será que essa concepção mais ampla de escrita abrangeria o sistema dos
quipus? Caso abrangesse, como entender ou ler as informações contidas nos
diversos exemplares que chegaram até nós, de tempos pré-hispânicos e colo-
niais, se não possuímos “traduções” coloniais que explicitem o funcionamento
do sistema e se a tradição dos quipucamayocs praticamente já não conta com
nenhum representante em nossos dias?45 Que importância possuía esse sistema
para a tradição histórica inca? Que relação possuía com a tradição oral? São
perguntas para as quais ainda não temos muitas respostas, mas sobre as quais
vários estudiosos se dedicam atualmente e, certamente, produzirão trabalhos
que nos ajudarão a entender, em um futuro muito breve, alguns aspectos mais
da tradição histórica inca em tempos pré-hispânicos e coloniais.46
Um outro aspecto acerca das tradições históricas incas que merece ser
mencionado é sua centralidade e quase exclusividade nas poucas fontes textuais
que conhecemos do Período Colonial. Vimos que no caso mesoamericano
imperava uma certa polifonia de vozes, que explicavam de modo central a
história de cada altepetl. A situação é bem diferente no caso andino, pois as
informações contidas nas fontes coloniais provêm, preponderantemente, da
tradição histórica inca, que era parte de uma memória oficial a serviço de um 185
recente domínio expansionista sobre uma região com pelo menos 6.000 anos
de história.47 Podemos aventar duas explicações para esse fenômeno e que não
são, necessariamente, excludentes.
Em primeiro lugar, podemos pensar que esse quase monopólio inca da his-
tória andina deva-se ao tipo de dominação praticada, caracteristicamente cen-
45
Existem mais de 600 quipus espalhados por coleções públicas e privadas de todo o
mundo. A maior delas, cerca de 300 exemplares, encontra-se no Museum für Völkerkunde,
em Berlim (Urton 2003: 11).
46
Vale ressaltar que não se trata de condicionar a existência das tradições históricas incas
e andinas a uma forma de registro escrito, mas de perceber que o entendimento das possí-
veis dimensões narrativas nos quipus abriria novas possibilidades de estudo e de conheci-
mento dessas tradições.
47
Vale notar que a antiguidade dos primeiros centros cerimoniais e populacionais na re-
gião dos Andes é muito maior do que na Mesoamérica, com datas que variam entre 4000
a.C. e 3500 a.C. na região do lago Titicaca. Além disso, foram descobertas múmias no norte
do Chile que datam de 5000 a.C. e que possuem sofisticados tecidos e marcas de trepanação.
Veremos adiante que algumas informações acerca das civilizações andinas anteriores e con-
temporâneas aos incas encontram-se na crônica de Guaman Poma de Ayala, na qual a con-
cepção de que os incas foram os “civilizadores dos Andes” é muito presente.
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Isso não significa que os modos locais de organização social e de produção eram radi-
calmente alterados (Stern 1986: 49-53).
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188 49
É claro que algumas explicações cristãs acerca da origem do mundo e da história hu-
mana foram colocadas em xeque com a certeza de que a América era um “novo mundo”,
não referido pelos textos bíblicos ou por Aristóteles. Mas isso não significa que as expli-
cações construídas pelos povos americanos acerca do passado tenham sido levadas em
conta – pelo menos não explícita ou conscientemente – pelos pensadores que trataram
de reformular as tradicionais explicações cristãs. Essa reformulação se deu, sobretudo,
a partir do próprio pensamento aristotélico-tomista e de umas poucas e genéricas in-
formações sobre a América. Esse tipo de reformulação pode ser observado na obra do
jesuíta José de Acosta (Acosta 1985). Mas essas reformulações – cujos alicerces esta-
vam em ruínas, segundo Descartes em suas Meditações – foram paulatinamente sendo
substituídas por explicações construídas fora das universidades cristãs e fundadas em
outros princípios. Esse processo é conhecido como Revolução Científica, do qual o Ilumi-
nismo pode ser visto como uma continuação. Neles, o pensamento dos povos america-
nos pode ter desempenhado alguma influência, de forma indireta e implícita.
50
O impacto do descobrimento da América e de seus povos sobre a cosmologia cristã é um
tema bem estudado. Mas talvez faltem estudos sobre o impacto e a participação das expli-
cações de mundo americanas nas reformulações das explicações cosmogônicas e históri-
cas européias, reformulações essas que caracterizaram a história intelectual da Europa du-
rante toda a Época Moderna, e que culminaram no Iluminismo. Um caminho fecundo de
pesquisa poderia ser o mapeamento do percurso das crônicas e textos que incorporaram ou
reproduziram explicações e conhecimentos americanos e que chegaram até a Europa –
principalmente pelos jesuítas nos séculos XVII e XVIII – ou aí foram publicados. Esse
seria o passo inicial para tentar entender até que ponto tais explicações poderiam ter sido
conhecidas e lidas pelos pensadores europeus modernos e de como estariam presentes em
suas obras. Um caso mencionado freqüentemente é o de Montaigne, quem seguramente
conhecia algumas idéias cosmogônicas mesoamericanas, comentadas em seus Ensaios.
Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207
51
Também conhecida como Malintzin, cujo importante papel nessas negociações é re-
tratado em fontes nativas, como o Lienzo de Tlaxcala.
Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207
vitorioso com a derrota dos incas era muito menor do que no caso dos mexicas.
Veremos que as explicações históricas nativas para a conquista castelhana
construídas nessa fase final ainda acreditavam na possibilidade de expulsão
total dos castelhanos e na restauração da ordem andina anterior, anterior
inclusive aos próprios incas. 52
No entanto, a progressiva instalação do aparato colonial castelhano após
o fim das lutas contra os incas cooptava, cada vez mais, os membros das elites
incas derrotadas e os curacas dos mais diversos povoados. Conjuntamente, o
crescimento do número de castelhanos mostrava ao mundo andino que estavam
ali para ficar. Veremos que esses fatos transformaram as explicações andinas
e incas da conquista produzidas nessa fase – fins do século XVI e início do
XVII – pelas elites locais aliadas, que passaram a tratar o fenômeno da con-
quista e da colonização castelhana como algo irreversível. Não se tratava mais
de expulsar os castelhanos, mas sim de conseguir um sistema mais justo sob a
ótica andina, um sistema que respeitasse os princípios básicos da reciprocidade
e da organização social local, garantindo assim os privilégios e poderes subor-
dinados das elites locais, pois reciprocidade, mesmo em tempos pré-hispânicos,
192 não era sinônimo de relações igualitárias.
52
A idéia do retorno de um incarrí, ou inca-rei, que expulsaria os castelhanos e restau-
raria a antiga ordem no mundo andino, foi criada posteriormente, entre fins do século
XVI e início do século XVII, justamente após a execução pública de Tupac Amaru. Essa
idéia, que se tornará central para as tradições históricas andinas, caracteriza-se por uma
visão idealizada dos tempos incaicos, e sua construção foi fomentada, principalmente,
por dois motivos: a maioria das pessoas que havia vivido sob o domínio inca havia morrido
e o crescente domínio econômico, tributário, político e religioso dos castelhanos mostrava,
cada vez mais, sua face de violência e de exploração.
Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207
53
Na verdade, é muito difícil estabelecer um limite cronológico entre conquista e colo-
nização que valha para toda e Mesoamérica e Andes. Cada região e povo viveu esses
momentos em épocas distintas. Sabemos que em alguns casos, a invasão territorial e a
conquista militar foram processos que só se consumaram nos séculos XIX e XX. Sendo
assim, a divisão que estamos estabelecendo entre conquista militar e colonização serve
apenas para os dois casos estudados, isto é, nahuas do Altiplano Central e incas.
Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207
54
Suas obras estão referenciadas, respectivamente, como: Alvarado Tezozomoc 1998,
Chimalpahin Cuauhtlehuanitzin 1965 e 2001, Castillo 2001, Alva Ixtlilxochitl 1985 e
Muñoz Camargo 1998.
Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207
de Sahagún (Sahagún 2002) e pelo dominicano Diego Durán (Durán 1984) são os
exemplos mais acabados e sofisticados dessas pretensões missionárias de estabele-
cimento de um cristianismo livre das antigas idolatrias.
Mas esses trabalhos missionários de pesquisa foram realizados em
conjunto por freis, por alunos indígenas dos colégios missionários, descen-
dentes das elites locais, e por antigos sábios indígenas. E, desse modo, deram
a oportunidade para que uma série de relatos orais, como os huehuetlahtolli,
ou antiga palavra, fossem transcritos em nahuatl e depois traduzidos.55 Além
disso, inúmeros códices pictoglíficos também foram produzidos, glosados ou
parcialmente explicados nesses trabalhos conjuntos, dando origem a uma série
de textos alfabéticos que “traduziam” os conteúdos tradicionalmente veicu-
lados por meio do sistema pictoglífico.56 Esse fato possibilitou o estudo e o
entendimento de parte dos códices exclusivamente pictoglíficos.
Em todos esses códices e textos alfabéticos podemos perceber a forte conti-
nuidade de elementos utilizados anteriormente pelas tradições históricas
nahuas, como por exemplo os relatos cosmogônicos que tratam das eras ou
idades anteriores, a utilização da conta dos anos sazonais (xiuhmolpilli) para
mensurar as distâncias temporais e estruturar as narrativas e a centralidade 195
dos altepeme nas narrativas que tratavam do passado mais recente. Além disso,
podemos perceber também o esforço de adequar os conteúdos dos relatos tradi-
cionais aos novos preceitos cristãos e à cosmogonia do Velho Mundo. Isso se
dava, por exemplo, omitindo e minorando nos relatos os episódios de sacrifícios
humanos e de antropofagia ou ainda atribuindo-os aos povos inimigos.57
55
Os dois principais conjuntos dessas transcrições são os Romances de los señores de la
Nueva España e os Cantares mexicanos, ambos publicados sob o título de Poesía náhuatl
(2000). Há também uma seção do Códice Florentino, de autoria de Bernardino de Sahagún
(Sahagún 2002) e de sua equipe de informantes e alunos indígenas, dedicada aos poe-
mas e cantos tradicionais nahuas.
56
Entre os textos alfabéticos nahuas que apresentam indícios internos de terem sido produ-
zidos a partir de leituras de códices pictoglíficos, podemos destacar os Anales de Cuauhtitlan
(1945), a Historia de los mexicanos por sus pinturas (1996) e a Leyenda de los soles (1945).
57
Nos Anales de Cuauhtitlan, por exemplo, os mexicas são acusados de sacrificar deze-
nas de milhares de cativos na inauguração do Templo Maior (Anales de Cuauhtitlan 1945:
57-58). No entanto, alguns cronistas mexicas, como Alvarado Tezozomoc, não omitem
os sacrifícios nem os atribuem a outros povos, mas os reivindicam por sua conotação de
valentia guerreira e de devoção religiosa – valores locais que seriam compartilhados com
os espanhóis, ainda que mal encaminhados pois o demônio teria agido livremente nas
terras distantes do Evangelho (Navarrete Linares 2000).
Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207
58
Essa identificação entre São Tomás e Huemac encontra-se em duas importantes crôni-
cas coloniais: na obra do dominicano Diego Durán (Durán 1984) e no texto do Códice
Ramírez (1987), ou Relación del origen de los indios que habitan esta Nueva España, pro-
vavelmente um resumo da obra de Durán feito por Juan de Tovar, que fora encarregado
pelo vice-rei Martín Enriquez de Almanza para escrever uma história do México pré-his-
pânico (Camelo & Rubén Romero 1995). Ou talvez ambos tenham baseado-se em uma
obra anterior, perdida e de autoria desconhecida, chamada pelos estudiosos de Crónica X.
Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207
59
É claro que isso as obrigava a uma atitude de abertura e receptividade ainda maior
para a instalação das instituições políticas, econômicas e religiosas européias, pois a
aliança com os vitoriosos implicava em uma aliança com seus deuses, prática que já pos-
suía precedentes na antiga pauta da política andina (Stern 1986).
Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207
60
Referenciados, respectivamente, como Guamán Poma de Ayala 1980, Santa Cruz
Pachacuti 1968 e Garcilaso de la Vega 1968. No caso da obra de Guamán Poma, além des-
sa edição em livro, há uma edição fac-similar e eletrônica na Internet (http://www.kb.dk/
elib/mss/poma/) e que conta com comentários de Rolena Adorno e de John Charles.
61
Esse manuscrito descreve a geografia do Tahuantinsuyu, enfocando principalmente suas
guacas e elementos da paisagem tidos como santuários. Suas principais edições são:
ARGUEDAS, José María (comp.). Dioses y hombres de Huarochirí: narración quechua.
Lima, Museo Nacional de Historia e Instituto de Estudios Peruanos, 1966. / TAYLOR,
Gerard. Ritos y tradiciones de Huarochirí: manuscrito quechua, versión paleográfica.
Lima, Instituto de Estudios Peruanos e Instituto Francés de Estudios Andinos, 1987. /
SALOMON, Frank & URIOSTE, George. The Huarochiri manuscript: a testament of
ancient and colonial Andean religion. Austin, University of Texas Press, 1991.
62
Parece que o manuscrito Runa yndio de Huarochirí oferece apenas insinuações acerca da
existência de outras tradições históricas nos Andes em tempos incaicos (Brotherston 1997: 250).
Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207
vinha sendo implantada. Seu principal argumento nesse sentido é que a coloniza-
ção, do modo como funcionava até então, não beneficiava nem ao rei castelhano
nem aos andinos, mas apenas a uns poucos e desonestos conquistadores e buro-
cratas castelhanos e, por isso, deveria ser radicalmente modificada.
Guamán Poma, como sincero membro da igreja católica e testemunho
ocular da forte e crescente presença das instituições castelhanas, já não ques-
tionava o domínio e a presença cristã nos Andes. Mas, por outro lado, como
descendente direto das elites incas, não deixava de acreditar que a conquista
havia sido um pachacuti, pois os castelhanos, que deveriam mandar apenas
em Castela, mandavam agora também nos Andes. A solução proposta em seus
textos para a correção dessa injustiça era a supressão do grupo dos con-
quistadores e a aliança direta entre os incas, a coroa de Castela e o Papa.63
Essa proposta reflete, por um lado, a preocupação da classe dominante
indígena em recuperar seus privilégios – cada vez menores diante do cresci-
mento das instituições e do número de burocratas castelhanos – e marca uma
reação às sobre-explorações que passaram a caracterizar as relações econô-
micas e tributárias após 1580. Além disso, as epidemias matavam centenas de
200 milhares e geravam, em muitas partes, um verdadeiro caos social e econômico,
explicado pela visão de mundo andina como resultado das relações sociais
desequilibradas e que haviam sido implantadas pelos estrangeiros. E, por outro
lado, a utilização de conceitos tradicionais – como pachacuti, hanan, hurin e
manay – para explicar a conquista e a colonização e construir uma proposta
de futuro procurava validá-los mostrando sua eficácia em continuar dando con-
ta das transformações e continuidades da história.
Palavras finais
Enunciamos de início que a elaboração, a manutenção e a transmissão
sistemáticas de explicações acerca do passado não eram, nem o são atualmente,
uma exclusividade do mundo ocidental. Afirmamos também que nas chamadas
sociedades complexas esses processos tendiam a estar sob o controle de orga-
63
Em seu famoso mapa-múndi, Guamán Poma projeta a divisão quadripartida do
Tahuantinsuyu e apresenta os Andes acima de Castela. A maioria de seus desenhos traz
contrastes e orientações espaciais que são prioritariamente significativos: são como um
arranjo sintático de elementos em uma sentença gramatical (Adorno 1991).
Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207
64
É claro que isso também levou a um número muito maior de rebeliões e revoltas nos
Andes do que no México Central, onde elas praticamente não ocorreram durante todo o
Período Colonial. Situação distinta viveu a região maia, na qual, assim como nos Andes,
houve um longo e dificultoso processo de conquista e colonização, que resultou em uma
sociedade colonial extremamente cindida e na qual os castelhanos careciam de legitimi-
dade aos olhos da política indígena. No caso dos maias, também houve inúmeras rebe-
liões durante todo o Período Colonial.
65
Isso não significa que o grau de contato seja uma variável menos importante. Vale
lembrar que as regiões mais distantes dos centros de poder castelhano apresentaram uma
continuidade de funcionamento das tradições históricas nativas muito maior, chegando,
em alguns casos, até o século XX; enquanto que nos centros de poder castelhano, a maioria
das tradições locais desapareceu antes do fim do Período Colonial.
Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207
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Eduardo Natalino dos Santos / Revista de História 150 (1º - 2004), 157-207
208
BIBLIOTECA GRAMSCIANA:
OS LIVROS DA PRISÃO DE
ANTONIO GRAMSCI
Lincoln Secco
Depto. de História - FFLCH/USP
Resumo
Este artigo apresenta as conclusões preliminares de uma pesquisa sobre
os livros da biblioteca da prisão lidos por Antonio Gramsci. Tendo a sua
disposição apenas alguns livros de autores marxistas, Gramsci foi capaz
de refletir as questões mais importantes de seu tempo. Além disso, pro-
curo demonstrar que ele analisou os livros e seus editores como meios de
ligação entre a cultura e o público.
Palavras-Chave
História do Marxismo • História do livro • História da Itália • Fascismo •
Comunismo
Abstract
This article presents preliminary conclusions from research on the books
read by Antonio Gramsci in the prison library. Although he had only a
few books by Marxist authors at his disposal, Gramsci still was able to
face the most important issues of his time. In addition, the article argues
that in his Prison Notebooks, Gramsci analyzed these books and their
publishers as a means of showing the link between culture and the public.
Keywords
History of Marxism • History of Book • History of Italia • Fascism •
Communism
Lincoln Secco / Revista de História 150 (1º - 2004), 209-228
1
Evidentemente, este artigo não busca fazer referências aos avanços teóricos na área
específica da História do Livro senão indiretamente. Trata-se de abordar a maneira como
Gramsci tratou de temas semelhantes: mediação editorial, formas de pensamento, estra-
tégias de leitura etc.
2
A esse respeito veja-se: Deaecto, Marisa e Secco, Lincoln. “A Difusão dos Livros
Marxistas no Brasil”. In: Coggiola, O. (Org). América Latina. São Paulo: Xamã, 2003.
Lincoln Secco / Revista de História 150 (1º - 2004), 209-228
3
Vide: Maximilien Rubel. Karl Marx: essai de biographie intellectuelle. Paris: Marcel
Rivière, 1957.
Lincoln Secco / Revista de História 150 (1º - 2004), 209-228
4
K. Marx. Oeuvres. Économie. Édition établie par Maximilien Rubel. Paris: Gallimard,
1965 (Bibliothèque de la Pléiade), pp. 272-273.
5
Todavia, o próprio Gramsci considera o livro como meio material inserido no campo
das superestruturas. Trata-se de uma "base material superestrutural". Veja-se a esse respei-
to algumas notas nos Cadernos do Cárcere.
Lincoln Secco / Revista de História 150 (1º - 2004), 209-228
nos anos 1910. E quando se tornou dirigente do semanário L’Ordine Nuovo fez
traduções de textos franceses (como os do grupo Clartè, de Henri Barbusse). O
russo (que Gramsci travou contato por ter vivido na Rússia nos anos 1920) e
que se transformaria, com o tempo, numa língua relativamente importante no
movimento comunista internacional, só adquiriu a hegemonia de fato nos paí-
ses da Europa Central e do Leste. E, mesmo assim, quando essa região tornou-
se socialista, depois da Segunda Guerra. Quando Gramsci escreveu seus cader-
nos de tradução no cárcere, ele se preocupou em aprender o alemão e o inglês.
Mas isso era mais devido às suas condições e ao seu talento de intelectual nato
do que ao papel político preponderante dessas línguas. Certamente, o alemão
continuava sendo a referência teórica, mas já não era política.
A difusão do marxismo, portanto, teve dois veículos principais: a língua e
as editoras francesas. E teve um centro irradiador: Moscou. As razões para o
declínio de Berlim e do SPD alemão eram fáceis de se observar: o impacto mun-
dial da Revolução de Outubro criara um movimento igualmente mundial nela
inspirado. Nada semelhante ocorrera antes. Embora os alemães tivessem o do-
mínio da II Internacional, a estrutura desta era bem menos centralizada. Enquanto
a Internacional Comunista era um órgão dirigente de fato (e de direito, para os 213
comunistas) dos demais partidos comunistas, que eram suas seções nacionais.
Além disso, foi difícil qualquer colaboração política entre comunistas e
socialistas nos primeiros anos. Ao menos até a mudança de linha política da
Internacional Comunista nos anos 1930, quando a tática de frente única anti-
fascista foi adotada. Os autores vinculados à II Internacional ficaram definiti-
vamente em segundo plano. Turati, na Itália, McDonald, na Inglaterra, Kautski
e Bernstein, na Alemanha, eram substituídos por Lênin, Rosa Luxemburg,
Trostski e, mais tarde, Stalin. Os autores sociais democratas eram apenas cita-
dos de segunda mão, normalmente a partir das críticas a eles endereçadas pelos
marxistas revolucionários, como Lênin, Trotski, Bukharin, Zinoviev, Rosa
Luxemburg e Franz Mehring, ou eram apenas criticados por autores revolucio-
nários menores ou situados nas margens da atividade política revolucionária,
como Paul Matick, Karl Korsh ou Anton Pannekoek.
Pela “biblioteca gramsciana” do cárcere pode-se constatar esse fato: dois
títulos de Bernstein e um só de Kautski e de Turati. E se é verdade que só um
título de Bukharin e nenhum de Lênin ou Zinoviev aparecem na lista organi-
zada por Valentino Gerratana no aparato crítico da edição dos Quaderni del
Carcere do Instituto Gramsci, os motivos são bem conhecidos! Afinal, Zinoviev
e Bukharin, aquele mais do que este, tiveram uma circulação impressionante
Lincoln Secco / Revista de História 150 (1º - 2004), 209-228
nas editoras e livrarias francesas. Ao menos até o início dos anos trinta. Tam-
bém pelos poucos títulos de Stalin até o início dos anos 1930, pode-se obser-
var que o culto da personalidade ainda não estava inteiramente instalado na
União Soviética quando Gramsci foi preso, embora os boletins da oposição
de esquerda formada por Trotski, Zinoviev e Kamenev já usassem, em 1927,
a expressão “stalinismo”.
De toda maneira, a hegemonia editorial francesa era patente na própria
literatura que Gramsci usava no cárcere. O maior número de títulos que ele
citou nos Cadernos era, depois do italiano, obviamente, em francês. Isso por-
que, segundo Edgard Carone, em 1926 começa uma nova fase editorial na
França. O Bureau d’Editions herda o catálogo da Librarie de l’Humanité e
publica vários teóricos do marxismo. Ele se volta para as questões de organiza-
ção. As Editions Sociales Internationales editam Marx e Lênin, principalmente.
Mas também os romances proletários. Nas franjas dessa atividade editorial
dominante na esquerda, aparecem a Librarie du Travail, que continua a publi-
car trabalhos sobre sindicatos, a Rieder, que traduz e edita os livros de Trostski
e a Félix Alcan, que dá vazão às teses universitárias sobre marxismo6.
214 E o que se tem na Itália? As editoras, a exemplo da França, mantêm uma
organização considerável, mas com um público leitor muito menor. Desde os
anos 1870, a Associazione Tipografico-Libraria organiza muitos congressos e edita
o Giornale della Libreria. Além disso editou o Catalogo Generale della Libreria
Italiana dal 1847 al 1899. Um dicionário italiano do princípio do século XX
nomeava entre as mais importantes editoras italianas: Nicolò Zanichelli (Bologna),
Antonio Vallardi (Milano), Loesscher (Torino), G. Laterza (Bari), Sansoni
(Firenze)7. A Mondadori, também de Milano, fora fundada em 1907. Em 1929,
um de seus funcionários (Valentino Bonpiani) fundou outra editora, a Bonpiani,
também em Milano8. Outras, como a editora dos Irmãos Bocca (Torino), inte-
ressaram a Gramsci tanto pelo conteúdo quanto pela ação editorial. Além de
alguns livros de Robert Michels e de Loria (autor ao qual se fará referência
mais adiante), eles publicaram as obras de Max Nordau (depois passaram “às
6
Edgard Carone. O marxismo no Brasil. Rio de Janeiro: Dois Pontos, pp.40-42.
7
A. Brunacci. Dizionario generale di cultura. Torino: Libreria Editrice, 1915, pp.498-9.
8
Caro Bonpiani. Lettere com l´editore. Milano: Bonpiani, 1988, p.3.
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9
Antonio Gramsci. Quaderni del carcere. A cura di Valentino Gerratana. Torino: Einaudi,
1977, p. 1900. Doravante os Quaderni serão citados: Q.C.
10
Concetto Pettinato. “Libri, editori ed autori” , La Lettura, Revista Mensile del Corriere
della Sera, N. 10, outubro de 1910.
11
Marco Santoro. Storia del libro italiano. Milano: Editrice Bibliografica, 2000, pp.318-19.
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Gramsci chegou a por em dúvida dados como estes, lembrando que seria
preciso avaliar o conteúdo e a natureza dessas publicações. A análise quantita-
tiva precisava combinar-se à qualitativa.
Gramsci afirma que seria necessário ver se as cifras são calculadas hoje como
no passado e ver se mudou a “composição orgânica do complexo livreiro”. Ele
cita a multiplicação de casas editoras católicas que editam, muitas vezes, livros
sem nenhuma importância cultural. Por fim, seria preciso também inserir nas
estatísticas as tiragens, e isto especialmente para os jornais e revistas:
216 “Lê-se muito ou pouco? E o que se lê mais? Está se formando uma classe
média culta mais numerosa que no passado, que lê mais, enquanto as clas-
ses populares lêem muito menos; isto aparece na relação entre livros, re-
vistas e jornais. Os jornais diminuíram em número e imprimem menos
cópias; lêem-se mais revistas e livros (isto é, há mais leitores de revistas e
livros). Confronto entre a Itália e outros países nos modos de fazer a esta-
tística livreira e nas classificações por grupos do que se publica”13.
12
Q.C., p. 1699-1700.
13
Q.C., p. 1699-1700.
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14
Todas as cartas citadas a seguir provêm das seguintes fontes: Q.C., V. IV. Vide tam-
bém: Antonio Gramsci. Lettere dal Carcere. Torino: Einaudi, 1978, 303 páginas. Anto-
nio Gramsci. Novas cartas de Gramsci e algumas de Piero Sraffa. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1987, 116 páginas.
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“Carissimo amigo, recebi a tua carta de 13; não recebi ainda os livros
que me anunciou. Eu te agradeço muito cordialmente pela oferta que
me fez; já escrevi à Livraria Sperling e fiz um pedido bastante vistoso,
seguro de não ser indiscreto, porque conheço toda a tua gentileza”.
15
Q.C., p. 2125.
16
Joseph Buttigieg. “O método de Gramsci”, Educação em foco, Universidade Federal
de Juiz de Fora, V. 5, N. 2, fevereiro de 2001, p.20.
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Numa carta de 4 de abril de 1927 ele informa que possui alguns livros
dele mesmo e que toda semana recebe 8 livros da Biblioteca do Cárcere:
“Para você ter uma idéia, faço-lhe a lista dessa semana que, porém, é
excepcional pela relativa bondade dos livros conseguidos: 1. Pietro
Colletta, Storia del Reame di Napoli (ótimo); 2. V. Alfieri, Autobiogra-
fia; 3. Molière, Commedie scelte, traduzidas pelo Senhor Moretti (tra-
dução ridícula); 4. Carducci, dois volumes das Obras completas (medí-
ocres, entre os piores de Carducci); 5. Artur Lévy, Napoleone intimo
(curioso, apologia de Napoleão como “homem moral”); 6. Gina
Lombroso, Nell’America meridionale (medíocre); 7. Harnack, L’Essenza
del cristianesimo; Virgilio Brocchi, Il destino in pugno, romance (torna
possessos até os cães); Salvador Gotta, La donna mia (... tedioso)”.
Gramsci informa uma lista insuspeita para seus censores. Revela-se ain- 219
da apenas um leitor. E sua leitura tem tanto o interesse de futuras pesquisas
quanto de prazer estético ou intelectual. É que pouco tempo antes (março de
1927) ele havia feito uma requisição para escrever na sua cela. Foi indeferi-
da. Em 20 de fevereiro de 1928, ele escreveu à sua cunhada: “Posso ler, mas
não posso estudar, porque não me foi concedido o direito de ter papel e tinta
a minha disposição”. Uma nova requisição encaminhada pela sua família no
ano seguinte obteve a permissão. Em 24 de setembro do mesmo ano, ele vol-
tou a se lamentar sobre a questão da leitura (agora do suprimento de revistas):
“Você também não me escreveu nada a propósito das publicações periódicas
que eu deveria receber da Livraria Sperling”. Tratava-se de sua mudança de
endereço de Roma a Turi que precisava ser informada à livraria.
Diversas são as cartas onde ele mostra sua preocupação insistente com os
livros. Ora está a falar a Tatiana (20/08/28) de um “pacote de livros”. Em se-
guida (3/11/28) reclama o envio de seus livros que estavam nas mãos de seu
advogado, ou se refere aos livros da Slavia, editora que ele acompanhava aten-
tamente. A Slavia, dirigida por A. Polledoro, difundiu, entre 1926 e 1938, a
literatura russa e eslava na Itália.
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Fontes Socialistas
Pelos autores mais citados nos Quaderni também se poderia fazer um le-
vantamento da circulação editorial de alguns autores muito lidos na Itália. Por
exemplo, Antonio Bresciani (1798-1862), um jesuíta que cultivou a novela his-
tórica, tendo sido também o principal redator de Civiltà cattolica, publicação
que continuou a existir e que Gramsci lia assiduamente. Não foi à toa que
Gramsci o tenha citado muito. A obra de Bresciani teve uma repercussão euro-
péia fora do comum. Seu livro Hebreu de Verona alcançou 80 edições em
poucos anos e foi traduzido ao francês, russo, alemão, inglês e castelhano.
Outro autor muito citado foi A. Loria. Sua obra principal, Annalisi della pro-
prietà capitalistica (1888) recebeu da Academia dei Lincei (Roma) o prêmio
do rei. Ambos os autores eram usados por Gramsci para significar fenômenos
essencialmente negativos. Já Benedetto Croce, outro entre os mais citados, era
uma linguagem obrigatória. Os primeiros decênios de vida intelectual italia-
na no novecento foram assinalados pela “hegemonia [e Bobbio aqui faz alu-
são ao conceito gramsciano] de Benedetto Croce. O seu pensamento foi, con-
juntamente, centro de irradiação e de convergência dos movimentos
220 intelectuais do tempo”17. Todavia, não é verdade que Gramsci tenha se afastado
da leitura dos clássicos do marxismo e do socialismo, mesmo sob as duras con-
dições carcerárias.
O número de livros que Gramsci podia ter na cela era limitado. No quarto
volume da edição crítica dos Cadernos do Cárcere, preparada por Valentino
Gerratana, podemos encontrar um vasto material referente aos livros que
Gramsci possuía. Já no primeiro caderno carcerário encontramos uma lista
de “Libri consegnati da Turi a Carlo l’11 novembre 1929". Eram 63 títulos,
entre eles os de pensadores italianos como Benedetto Croce e Luigi Einaudi.
Mas o grosso dessa primeira lista era composto por literatura: de Pirandello a
Tolstoi, de Kipling a Dostoyevski, Tchekov e Maupassant. Mas também a cha-
mada literatura social (ou operária ou engajada) como o próprio Tolstoi, mas
também Panait Istrati, Boris Pilniaki e os best sellers da época como E. Re-
marque e Emil Ludwig.
17
Norberto Bobbio. Profilo ideologico del novecento. Milano: Garzanti, 1990, p. 90.
Lincoln Secco / Revista de História 150 (1º - 2004), 209-228
“Na Casa Penal de Turi de Bari, onde estou preso atualmente, seques-
traram-me novamente o libreto de Maccari, junto com estes outros:
Giuseppe Prezzolini, Mi Pare... (uma coletânea de artigos de varieda-
de editada em 1925 por Arturo Marpicati), Oscar Wilde, Il Fantasma
dei Canterville e outras duas novelas humorísticas, H. Man, Le Sujet,
Ed. Kra (romance da Alemanha Guilhermina), Petronio Arbitro,
Satyricon, J. London, Le memorie di un bevitore, Krasnoff, Dall’aquila
imperiale alla bandiera rossa (é um romance do general dos cossacos
18
Arnoldo Mondadori Editore. Catalogo Generale giugno 1956, Milano: Mondadori, p.108
Lincoln Secco / Revista de História 150 (1º - 2004), 209-228
19
Q.C., p. 2375.
20
Vide: I communisti di fronte alla polizia e di fronte ai giudici (lettera di un vecchio
rivoluzionario). Paris: Edizioni del PCI, junho de 1928, 15 p.
21
Norberto Bobbio. O conceito de sociedade civil. Tradução: Carlos Nelson Coutinho.
Rio de Janeiro: Graal, 1982, p.32.
Lincoln Secco / Revista de História 150 (1º - 2004), 209-228
“Nas edições Remo Sandron muitos livros para esta rubrica. Duas
direções. Sandron teve um momento de caráter ‘nacional’: publicou
muitos livros que se referem à cultura nacional e internacional (edi-
ções originais de obras de Sorel); e é editor ‘siciliano’, isto é, publi-
224
cou livros sobre questões sicilianas, especialmente ligadas aos even-
tos de 1893-94. Caráter positivista de uma parte e de outra sindicalista
das publicações de Sandron. Muitas edições esgotadas, para pesquisar
só em antiquários”23.
22
Ettore Fabietti é citado nos Quaderni (Q 2, , 88) por um artigo sobre bibliotecas popu-
lares de Milão, onde mostra que os operários eram os melhores usuários: cuidavam dos
livros e não os perdiam, diferentemente de outras categorias de leitores (empregados,
estudantes, donas de casa).
23
Q.C., p. 980.
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Fortuna Crítica
A discussão de Gramsci sobre os livros e editoras encontra-se apenas nos
Cadernos do Cárcere. Isso traz um problema para o historiador: as adições des-
ses textos implicam uma leitura e um direcionamento ideológico. Gramsci ele
mesmo nunca quis editar um livro e é bastante plausível supor que jamais pu-
blicaria suas notas carcerárias no estado em que as deixou. Quando recebeu uma
proposta, nos anos 20, para reunir seus artigos em livro, ele recusou sob o argu-
mento de que seus textos eram apenas circunstanciais, posto que ele era sempre
um intelectual em diálogo constante com os acontecimentos e os personagens
de ocasião. Estampava seus artigos apenas em jornais.
No Cárcere sua escritura sofreu uma alteração fundamental. Ele escrevia
Für Ewig (para a eternidade) como dizia. Escreveu reflexões mais demora-
das em 33 cadernos. Trabalhava neles muitas vezes ao mesmo tempo, o que
em alguns casos impede que saibamos a ordem cronológica dos textos. Rees-
crevia passagens inteiras às vezes mudando uma ou outra palavra. Como edi-
225
tar uma obra assim? Este problema foi enfrentado por Palmiro Togliatti.
A História da edição dos Cadernos começou já em vida de Gramsci. No
dia 7 de dezembro de 1933, após pedidos insistentes e uma campanha interna-
cional a respeito de suas precárias condições de saúde, Antonio Gramsci foi
finalmente transferido da prisão de Turi para uma clínica em Formia. A preocu-
pação do detento era com seus livros. Especialmente com seus cadernos ma-
nuscritos. Temia que a direção do cárcere lhe confiscasse tudo o que havia
escrito ou lido. Preparou uma operação: enquanto ele mesmo distraía seus car-
cereiros, um jovem amigo de cela, Gustavo Trombetti, enfiava os cadernos
embaixo das roupas, no fundo da mala.
Quando Antonio morreu em 27 de abril de 1937, ele deixou na clínica onde
passou os últimos dias lancinantes da vida, os seus livros. Livros lidos e escri-
tos. Livros do presente e do passado. E aqueles do futuro, de sua lavra, os
cadernos que viriam a ser publicados. Piero Sraffa, seu amigo e correspon-
dente, interpelou o centro exterior do Partido Comunista da Itália sobre o que
fazer com os manuscritos gramscianos. Palmiro Togliatti (cujo pseudônimo
era Ercoli) escreveu-lhe falando com veemência da herança política e literá-
ria de Antonio. Decidiu-se enviá-los a Giulia, esposa de Antonio, em Moscou
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24
Paolo Spriano. Gramsci in carcere e il partito. Roma: L’Unità, 1988, p.104-5.
25
Vide: Guido Liguori. “El debate sobre Gramsci en el cambio de siglo”. In: Dora
Kanoussi (Org). en America. II Conferência Internacional de Estudios Gramscianos.
México, D.F.: Plaza y Valdes, 2000, p. 307.
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nência de uma edição completa e rigorosa (do ponto de vista filológico) dos textos
de Gramsci. O exemplo de suas análises sobre a circulação dos livros pode ser-
vir para iluminar a edição crítica de seus próprios textos. É de se duvidar que se
consiga um dia editar os Cadernos como Gramsci os pensou enquanto escre-
via. Mesmo com os avanços da crítica literária neste tópico. Isso permanece sen-
do um problema. Mas também revela a riqueza desse pensador e homem de ação
tão notável que resistiu a todas as tempestades que varreram muitos autores su-
postamente identificados com o marxismo.
Referências Bibliográficas
BOBBIO, Norberto. O conceito de sociedade civil. Tradução: Carlos Nelson
Coutinho. Rio de Janeiro: Graal, 1982.
. Profilo ideologico del novecento. Milano: Garzanti, 1990.
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BUTTIGIEG, Joseph. “O método de Gramsci” In Educação em foco, Universidade
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CANFORA, Luciano. Libro e libertà. Bari: Laterza, 1994.
227
CARONE, Edgard. O marxismo no Brasil. Rio de Janeiro: Dois Pontos, 1982.
DEAECTO, Marisa e SECCO, Lincoln. “A Difusão dos Livros Marxistas no
Brasil”. In: Coggiola, O. (Org). América Latina. São Paulo: Xamã, 2003.
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. Novas cartas de Gramsci e algumas de Piero Sraffa. Rio de
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MARX, Karl. Oeuvres. Économie. Édition établie par Maximilien Rubel. Paris:
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del Corriere della Sera, N. 10, outubro de 1910.
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